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PENSAR COM

CONCEITOS

John Wilson

Tradução
WALDÉA BARCELLOS

Martins Fontes
São Paulo 200 I
E.ua obra foi pubf1rr1du m·;,(!inafmtme em in,!.!lês tom o tíruln
THINKING W/TH CONCEPTS po1 ?ress Syndicaie
f{ 1hr U1ú1•er,\·11y o{Camhridge. em 1963.
Cop\Ti�Ju © Ca111hridg<' Umrffsiry l'l'l'S."f, /CJ63.
Copyrh:hr © 1()01. Uw·aria Martms Fome.t Editora Ltc/11,
Stio Paufo. poro a f)J'l'St:11W l'(/Jçlío

11 ediç:lo
11rn/lo de 2001

Traduçâo
WAWiA 8ARCELLOS

Re\'iSão da tradução
earulinn 1\11drtrde
Revisâo gráfica
Morin Luf:a ,.-,.m'l!f
fran)' Picasso 8atis1a
Produçilo gráíic:1
Geraldo Afrcs
Paginação/Fotolitos
Srudio 3 De..senrolrimcnto E1/irorial

Dudos Internacionais de C:ilal0g:1çiio na Publica\'.iiO !CIP)


(Ciirnara llr:t<ilcirn do Livro, SP, llrasil)

Wilson. John. 19'.2S·


P.:insru com conccilos J Jobn \ViL�on : tn'tdução WaJJéa Barcellos.
Sfio Paula : Martin� fontes. 2001. - (Feffamcnrn:-.)

Ti111lo original: Thinking wilh cnnccpts.


ISBN 85-.�36·1�12·8

1. AnálL'e (Filosofia). 2. Conceito» !. Título. li. Série.

CDD·l21.4

Índices para catálogo sistemático:


l. Análi�e conceituai: Filosofia 121.4

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S11111úrio

/111/•1t111 . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . VII

I 1 11/il'itlmle da análise ...............................................

1 < > q uc é a análise conceituai? ......................... ...... .

' 1 )1JiL"uldadesmétodos de análise........................


e 16
.1) l>{/lculdades de temperamento ..... ...... ........ . . . . . . 16
li) /i'•rnicas de análise........................................... 22
1 ) ,/mwdilhas na linguagem................................. 38
d) /�'.,·ti/o................................................................. 44
< >hs<.:rvações complementares . . .......... ............ ........ 48
") l 1111 título para as técnicas................................ 48
hl <) <111e é um conceito?....................................... 52

/ I, I "'111 pfo.,· de análise.................................................. 59


1 t 'ríl il'a de trecbos escritos.. . . . ....... . . . . . .......... . . . . . . . . . . . 59
o1) // "República" de Platão.................................. 60
h) / 1111 diálogo moderno . . ..... ..... ........ ..... ............... 68
1 ) l'ussagens mais curtas...................................... 75
1 f '111110 responder a pergwltas sobre conceitos ....... 91
.i) '>/ 1mnição deve ter caráter de represália?"... 93
li) "tlstrologia é ciência?" . . . . . .... . ... .. . .. ... .. . .. .. . . . . . .. . 109
Ill A filosofia e a análise . . . . .. .. . . . . . . .. . . . . . . . .. . . . . . . . . .. . .. ... . . .. . . 123

IV. Prática em análise..................................................... 13 9


l. Textos para criticar................................................. 141
2. Pergw1tas para responder....................................... 164
l'rtfácio

Este não é um livro sobre o "raciocínio preciso" ou o


"pensamento claro". Sei que há obras sobre estes assuntos,
:tlgumas muito úteis (como Thinking to Some Purpose [Pen­
sando com objetividade] de Susan Stebbing), que ajudam o
leitor a tomar consciência de seus preconceitos e de sua ir­
racionalidade, com discussões e exemplos dos perigos da
parcialidade, dos sofismas, dos argumentos irrelevantes, do
vício de não verificar os fatos. São livros, porém, de utili­
dade limitada, uma vez que os métodos pelos quais se ensina
matéria tão ampla e mal definida como o "raciocínio preci­
so" são quase sempre ecléticos e heterogêneos. Sem dúvida,
tornam o leitor mais consciente da importância da razão e
da linguagem, mas não lhe oferecem uma técnica coerente de
pensamento, que ele próprio possa aplicar num campo mais
amplo.
Tal técnica, contudo, existe; foi criada há cerca de trin­
ta anos e tem conseguido avanços consideráveis, apesar de
prejudicada pela excessiva subordinação a certas escolas da
filosofia moderna. Pode-se dizer, inclusive, que a técnica a que
nos referimo::; provocou, discretamente, uma "revolução" no
modo co mo abordamos certas questões.
Chamei esta técnica de análise de conceitos porque foi
projetada especificamente para enfrentar e esclarecer conceitos.
Além disto, a análise de conceitos oferece método especia-
Vlll PENSAR COM CONCEITOS

lizado e adequado de ensino, de modo que se pode aprender


a aplicar a técnica para responder a muitas das mais impor­
tantes e interessantes questões que têm sido propostas.
Compreender os conceitos é necessário, também, em mui­
tos outros contextos. Para acompanhar as aulas dos cursos pre­
paratórios para o vestibular, os alunos têm de ter compreen­
dido claramente os conceitos básicos especificas de cada ma­
téria; e é erro supor que este tipo de compreensão se "infiJtre"
automaticamente na cabeça dos alunos.
A análise conceituai é muito útil também, evidentemen­
te, para a educação em sentido mais amplo; e é importan­
tíssima também, é claro, para estimular e tornar mais eficazes
a comunicação e a compreensão entre adultos.
Todos concordam quanto à importância dos objetivos da
análise conceitua]. O que nem todos entendem é que ( l) a aná­
lise conceituai é, de pleno direito, um "saber" especializa­
do, com técnicas próprias; (2) que sem essas técnicas não
se podem abordar questões gerais - e, de fato, nenhuma das
perguntas que envolvam conceitos abstratos-, senão de modo
confuso e ineficaz; e (3) que as técnicas, neste caso, podem
ser ensinadas e facilmente aprendidas.
Este, portanto, em primeiro lugar, não é um livro para ser
lido nas horas vagas, para algo que os meus alunos de ensino
médio têm o horrendo hábito de chamar de "cultura geral". É
um livro "de trabalho"; em certo sentido, é um "manual", um
livro didático.
Tenho ensinado estas técnicas, eu mesmo, h á alguns
anos, a alunos do ensino médio, com algum sucesso (além
de algumas dificuldades e algum tédio); mas não tenho dú­
vidas de que obtive resultados melhores do que obteria com
as "aulas expositivas", quase sempre muito vagas, que pode­
ria ter dado e que, quase sempre, dão a impressão de não Lt:r
nem objetivo nem método claros, seja para os alunos seja
para os professores que se preocupam com estudos especia­
lizados, em ambiente extremamente competitivo.
/'li'// ,, '/() IX

Mai:-; que isto, para ser franco, sinto que muitos dos adul­
lw. que se preocupam com "grandes questões" - religião,
p11lít1c.;a, moral, �sLudos sociais, ciência ou, simplesmente,
11·li1cionamentos pessoais - fariam melhor se dedicassem
111L·11os tempo à aceitação sem críticas das idéias dos outros
l 111;1is tempo para aprender a analisar conceitos. A análise

'111u.:citual dá estrutura e objetividade ao pensamento que,


"L'fl\ ela, estaria condenado a vagar sem rumo e indefinida-

111cnte pelos meandros do intelecto e da cultura.


O livro está dividido em quatro partes. N o Capítulo l,
procuro explicar quais são as técnicas pertinentes e como
podem ser acionadas de modo efetivo. É importante que o
primeiro capítulo esteja bem lido e bem compreendido,
:111tcs de passar adiante. Nos Capítulos II e IV, respectivamen­
k, aplico as técnicas a conceitos específicos e ofereço alguns

L'Xcmplos ao leitor, como exercício. A aplicação das técni­


cas nesses dois capítulos é feita em dois contextos:

(i) a crítica conceituai de passagens escritas por tercei­


ros; e
(ii) resposta a perguntas sobre conceitos.
O Capítulo III inclui comentários gerais sobre filoso­
fia e análise, para os que desejam avançar no estudo da ma­
téria. Os comentários estão dispostos numa ordem que, para
muitos, vai do mais fácil para o mais dificil. É mais fácil
começar com um trecho escrito por terceiros, porque a novi­
dade do assunto estimula a pensar: há uma passagem de
texto "palpável" e não nos sentimos totalmente perdidos.
Não é muito dificil passar desta etapa para o contexto de uma
pergunta específica: a existência de uma pergunta (como no
caso de um trecho escrito "palpável", embora em menor
grau) dá ao pensamento urna certa forma. A partir daí pode­
mos passar à tarefa mais di fíc il (.k pensar em abstrato sobre
conceitos. Neste estágio, é preciso pensar nos modos como
o conceito é usado, sem quaJquer ajuda, seja de tun texto
escrito por alguém, seja de uma determinada pergunta.
X PENSAR COM CONCEITOS

Em certo sentido, este livro foi especificamente proje­


tado para atender às necessidades de um grande número de
alw1os do ensino médio, que têm de enfrentar o importan­
tíssimo exame vestibular para ter acesso à universidade e,
especialmente, para os candidatos a cursos das áreas de "estu­
dos gerais" ou "estudos sociais", nas quais a maior parte dos
exames implica conhecimentos de natureza lógica ou con­
ceitual. Em todos estes exames há, invariavelmente (e cor­
retamente), questões que envolvem a análise de conceitos; e
muitas delas exigem também a crítica conceitual de trechos
fornecidos.
A mesma abordagem serve também para um adulto não­
estudante que queira conhecer a fundo as técnicas "de pen­
sar"; e, ainda, para os alunos que não estejan1 às portas de
algum exame importante. Em todos estes casos, a matéria é
séria e tem de ser abordada com método.

AGRADECIMENTOS

Gostaria de expressar minha gratidão às muitas pessoas


que me ajudaram com críticas e troca de idéias, em espe­
cial ao Sr. e à Sra. C. H. Rieu.

NOTA

Não foi fácil encontrar trechos adequados para comen­


tar no Capítulo Il. Para simplificar as questões para os alu­
nos que trabalharão com esses textos, omiti, em alguns casos,
palavras e expressões do texto original do autor; em nenhum
caso, acrescentei palavras de minha autoria. Procm·ei asse­
gurar-me de que as omissões não implicassem distorção ou
deturpação dos argumentos originais.
J. B. w
I f 11th1itlade da análise

1. O que é a análise conceituai?

l ·'.ste livro foi projetado para ensinar o leitor a usar cer­


l11s ll:cnicas e conhecimentos práticos. Teremos andado me­
Ltd<.: do caminho, se o leitor conseguir ter uma idéia clara
-,obre quais, exatamente, são essas técnicas e esses conhe­
l i111cntos e para que servem. Por isso, para começar, teremos
d<: <lcdicar um bom tempo a este ponto.
Não é fácil aprender a técnica de resolver equações de
segundo grau, ou escrever prosa em latim ou traduzir do
alemão para o inglês; mas nestes casos temos, pelo menos,
a vantagem de saber exatamente o que é que se espera de
nós - em outras palavras, o que temos de fazer-, mesmo que,
muitas vezes, não o façamos muito bem. Essas técnicas
e muitas outras têm sido classificadas, há muito tempo, sob
títulos diferentes: são o que as escolas chamam de "maté­
rias" - matemática, latim, alemão e outras. Muitas vezes,
para encontrar as respostas corretas para perguntas dessas
matérias, basta consultar um dicionário, uma gramática ou
um determinado compêndio.
Nenhum destes recursos existe no caso das técnicas que
se estudam neste l ivro, em parte porque aqui se estudam
técnicas novas: faz apenas vinte, trinta anos que nos tomamos
plenamente conscientes delas. Mas também, e principalmen-
2 PENSAR COM CONCEITOS

te, pela própria natureza das técnicas e do objetivo geral


para que servem.
Como são estas técnicas? Não são como as "matérias"
- como latim ou matemática -, que têm normas precisas e
bem definidas e nas quais as respostas são indiscutivelmen­
te certas ou erradas; são, antes, como certas habilidades
específicas - como saber nadar bem ou saber jogar futebol.
Mas, acima de tudo, são como certos conhecimentos práti­
cos gerais, largamente aplicáveis, como aqueles a que nos
referimos quando dizemos que alguém é "excelente mari­
nheiro", que fulano tem bom "golpe de vi sta" ou que bel­
trano tem "excelente capacidade de expressão". Essas habi­
lidades gerais são úteis num grande número de atividades
diferentes. Assim, ser bom marinheiro é útil para quem ve­
leja, para manobrar um barco salva-vidas, para salvar pessoas
de um naufrágio. Ter bom golpe de vista é grande vantagem
em todos os jogos de bola. E a capacidade de se expressar
bem por meio ele palavras ajuda na redação de ensaios, cartas
e relatórios, e é importante para que outras pessoas enten­
dam nossos desejos, sentimentos e carências. Embora essas
habilidades se manifestem em várias atividades diferentes,
pode-se ver que em todas elas atua o mesmo conjunto de
habilidades. Mais um exemplo: apesar de passarmos muito
tempo em contato com outras pessoas em muitas circuns­
tâncias diferentes - em casa, na escola, no exército, na fá­
brica, em féiias -, sempre sabemos distinguir um talento ou
habilidade especial a que chamamos "ser capaz de se rela­
cionar bem com outras pessoas". Sabemos, até, que esta ha­
bilidade pode ser cultivada; mas também vemos, imediata­
mente, que aprender este tipo de habilidade tem de ser muito
diferente de aprender latim ou matemática.
Um modo mais fácil de perceber a natureza dessas téc­
nicas é examinar o tipo de pergunta que elas nos ajudam a res­
ponder. Consideremos, para começar, estas questões:
1 J J /l // 1 l/l/� DA AN4USE 3

( i) l) ma baleia é capaz de afundar um transatlântico de


'1)00 toneladas?
( i i) Baleia é peixe?
Podemos descrever a primeira como uma pergunta so­
l 11 t· fotos. Para responder a ela, só temos de descobrir os fatos
tL·kvantes, seja pela experiência pessoal, seja pela obtenção
1k informações confiáveis de outras pessoas. Podemos ter
de reunir os fatos e equacionar o problema; assim, podemos
l'011scguir responder à pergunta - sem termos visto, de fato,
11111;1 baleia afundar um navio, e sem qualquer informação
L:onCiável de que ela seja capaz de fazê-lo - se, por exem­
plo, conhecermos o peso e a velocidade das baleias, a espes­
sura dos cascos de navios etc. Mas, mesmo nesse caso, não
estaríamos fora da esfera dos fatos. Para responder à pergun­
ta, precisamos apenas de conhecimento sobre o mundo e
sobre algumas das coisas que existem no mundo.
Mas a segunda pergutlta não é deste tipo. Mesmo que
conhecêssemos todos os fatos relevantes sobre baleias e pei­
xes, teriamas dúvidas, ainda assim, sobre como responder.
Por exemplo, poderíamos saber que as baleias amamentam
os filhotes, como os mamíferos, e que nadam, como os pei­
xes, além de uma boa quantidade de falos a seu respeito; ainda
assim, continuaríamos indecisos, por não sabermos se ba­
leia é peixe ou não. Para tentar responder, ainda teríamos
de fazer outra pergunta: "Será que a baleia (sendo o que é)
pertence à categoria 'peixe' ou não?"
É importante observar que essa não é uma pergunta se­
melhante à da baleia e o transatlântico; é uma pergunta de
outro tipo. Pois as técnicas de que vamos falar foram pro­
jetadas para responder a pergLU1tas deste outro tipo (do tipo
(ii), acima), que indicarei pelo nome geral de perguntas so­
bre conceitos. Assim, no exemplo, o termo "peixe" não repre­
senta apenas os peixes "de verdade", que nadam de um lado
para o outro, no oceano; o termo também representa uma
4 PENSAR COM CONCEITOS

idéia, um conceito de peixe - o que o termo designa na nos­


sa língua. Poderemos perceber melhor esse aspecto se repe­
tirmos a mesma pergunta sob diversas fom1as. Poderemos per­
guntar "A baleia está incluída no conceito de peixe, como
no1malmente o usamos?" "O conceito de peixe n01malmente
incl.ui seres como as baleias?" Ou, ainda: "O que normalmen­
te significamos, quando usamos o termo "peixe", abrange
as baleias, ou não?"
Reformular a pergunta, de um modo que possa parecer
desnecessátio e excessivamente meticuloso, é útil para cha­
mar a atenção sobre um ponto: a pergunta refere-se ao sig­
f cado. O que queremos saber é o que normalmente desig­
nii
namos pelo termo "peixe"; como se verifica se algo é peixe
ou não é; o que se conta como peixe.
Há outra coisa que se pode observar - e que pode pare­
cer curiosa - em perguntas do tipo (ii): a resposta depende
do que se queira dizer com a palavra "peixe". É erro imagi­
nar que "peixe" tenha um e apenas um significado. Um bió­
logo profissional ou um especialista em peixes provavelmen­
te dirá que a baleia não é peixe ou que "na realidade" não
é peixe; porque, na classificação dos biólogos, os peixes es­
tão em um grupo e os mamíferos em outro; mamíferos, por­
tanto, não são peixes; o conceito de peixe exclui os mamí­
feros. Mas alguém que trabalhe no Ministério da Agricul­
tura e da Pesca (que lide com baleias e com todos os demais
seres que vivem no mar) não dará muita atenção à classifi­
cação dos biólogos; usará uma classificação própria, pela qual
as baleias incluem-se no conceito peixe. O homem comum,
a menos que por acaso conheça wn pouco de biologia, pro­
vavelmente também chamará a baleia de peixe. Portanto, o
fato de chamam1os a baleia de peixe ou não depende exclu­
sivamente do ângulo a partir do qual consideramos a per­
gunta. Tampouco se pode dizer que um ponto de vista é me­
lhor do que o outro - que o biólogo, por exemplo, tem mais
1 1/'/1 'f/).!IDE DA ANÁLISE 5

d1r1,;ilo de ter uma opinião do que o Ministério da Agricul-


1 ura e da Pesca. Um dos pontos de vista é melhor para cer­
tas finalidades; o outro, para outras.
Poderemos ver esses pontos com maior clareza e nos
;1profundar neles se examinarmos outro par de exemplos. Con­
sideremos as perguntas:
(i) Um hidroavião consegue pousar em mar encapelado?
(ii) Hidroavião é barco ou avião?
Mais uma vez, podemos ver que a primeira é uma per­
gunta direta sobre fatos, enquanto a segunda é urna questão
mais complexa, sobre conceitos. Para responder à primeira,
precisamos de observação e experiência pessoal ou indire­
ta. Para responder à segunda, precisamos considerm· os con­
ceitos de barco e de avião, e ver em que categoria inclui-se
o hidroavião. E, novamente, podemos ver que não há respos­
ta que seja correta em todas as circunstâncias. No caso de
alguém que esteja interessado, digamos, em espaço para pou­
sar num rio ou em não perturbar os ninhos de aves marinhas,
o hidroavião será considerado barco. Por outro lado, para
alguém que esteja pensando em bombardeios aéreos ou no
conforto de viagens rápidas, o hidroavião seria considerado
avião. É erro dizer que o hidroavião é "realmente" um barco
ou "realmente" um avião. Uma vez que saibamos o que u m
hidroavião, d e fato, é- uma vez que alguém tenha descrito
todas as características do hidroavião-, considerá-lo barco
ou avião é questão de circunstâncias específicas.
No entanto, embora se trate de uma pergunta sobre con­

ceito e não sobre un1 simples fato, a decisão que tomarmos


sobre como usar nossos conceitos fará uma grande diferen­
ça: nos.sas decisões poderão ser criteriosas ou não. Por exem­
plo, se perguntarmos a um funcionário do escritório de uma
empresa de transporte aéreo se há um avião que possa nos
levar a Nova York antes da terça-feira, e ele disser "não",
ficaremos irritados, com muita razão, ao descobrir que, embo-
6 PENSAR COM CONCEI1'0S

ra não haja nenhwn avião convencional, há, sim, um hidroa­


vião. E ainda continuaríamos irritados se abordássemos o
funcionário e lhe disséssemos: "Olile, você não me deu a in­
formação correta: havia um hidroavião que partia bem na
hora em que eu queria viajar. Por que você não me falou
dele?", e o funcionário respondesse: "Bem, não falei por­
que hidroavião não é avião; é barco". Para nós, o funcioná­
rio foi pouco inteligente ao aplicar os conceitos de barco e
de avião. A questão, aqui, é que as palavras existem para ser­
vir aos propósitos e aos desejos humanos, e devem ser usadas
de modo a servi-los bem, e ficientemente. O funcionário não
respondeu bem porque não percebeu o contexto geral e o
objetivo da nossa consulta - só queríamos saber se havia
transporte rápido, que nos levasse a Nova York: à luz desse
contexto e desse objetivo, o funcionário da empresa aérea
deveria incluir os hidroaviões na categoria dos aviões. Este
funcionário dar-se-ia muito bem na capitania dos portos,
onde todos se preocupam com bóias e espaço para atraca­
ção e onde, portanto, os hidroaviões têm de ser vistos como
barcos; mas não aj uda nada numa empresa aérea.
Esse é um exemplo muito simples, para mostrar o que
é uma pergunta sobre conceitos, em seus e lementos básicos
essenciais, mas não basta para mostrar a enorme importân­
cia prática deste tipo de pergunta. Nem sempre os funcio­
nários de linhas aéreas são tão bobos. Mas suponhamos que
fizéssemos outra pergunta sobre conceitos: "A psicologia é
ciência?" Para começar, pesquisaríamos os fatos a respeito
da psicologia e, talvez, acabássemos por concordar que a psi­
cologia tem aspectos em comum com ciências como a fisi­

1
ca e a química, além de características que são totalmente
diferentes. Assim, dizer que a psicologia é ciência ou que
não é passa a ser questão de escolha. Posta nestes termos,
pode parecer que a escolha seja puramente acadêmica. Mas
suponhamos que sejamos obrigados a responder à mesma
1 1 TIVIDADE DA ANÁUSE 7

p�rgunta diante de uma comissão que tenha o poder de dis­


tribuir grandes somas de dinheiro para a pesquisa científi­
ca. Se a comissão perguntasse: "A psicologia é realmente

ciência, ou está mais perto da astrologia, da bola de cristal


e da feitiçaria?" Neste caso, teríamos de decidir: ou incluiría­

mos a psicologia na categoria "ciência" ou na categoria "astrn­


logia-e-foitiçaria". E fosse qual fosse a nossa decisão, ela
teria um efeito muito considerável sobre os eventos poste­
riores. Poderíamos resolver chamá-la de ciência, ou não cha­
má-la de ciência; ou poderíamos preferir inventar uma ter­
ceira categoria e, por exemplo, classificar a psicologia como
"em princípio, uma ciência", ou como "ciência em poten­
cial". Neste caso, seria muito importante ter total c lareza a
respeito dos conceitos: não se poderia nem começar a fazer
uma escolha sensata sem, antes, analisar e compreender o
significado de "ciência" ou de "ciência em potencial". O que,
evidentemente, é mais djficil do que entender os conceitos
de avião e de barco.
Antes, porém, de passar para as questões mais complexas
sobre conceitos, com as quais nossas técnicas trabalham,
temos de tentar estabelecer com maior clareza o que nos in­
teressa, precisamente, quando analisamos conceitos. Sabe­
mos que não nos interessa descobrir fatos novos. Também
é importante perceber que não estamos interessados em va­
lores ou juízos morais, nem no que esteja realmente certo
ou errado, ou seja, bom ou mau.
Consideremos três perguntas:
(i) É provável que o comunismo se espalhe pelo mundo?
(ii) O comunismo é um sistema desejável de governo?
(iii) O comunismo é compatível com a democracia?
A primeira é uma pergunta sobre fatos. Pode aconte­
cer de não termos capacidade para dar urna resposta defi­
nitiva, cujo acerto possamos provar, porque a pergunta ( i )
pede uma previsão do futuro. Mas as únicas evidências
8 PENSAR COM CONCEITOS

relevantes para a resposta são fatos sobre o comunismo e


fatos sobre o mundo. A resposta pode ser duvidosa, mas
não pelo fato de termos qualquer dúvida sobre o valor do
comunismo o u sobre o conceito de comunismo. Será duvi­
dosa, sim, por não termos certeza da direção que tomarão
os fatos - ou, quem sabe, apenas porque precisemos de
mais fatos.
A segunda pergunta, por outro lado, pede que atribua­
mos algum tipo de valor ao comunismo: pergunta-nos se ele
é bom ou mau, sábio ou não,. se está certo ou errado, se, em
termos políticos, é desejável ou indesejável. A segunda per­
gunta, portanto, é questão de juízo de valor.
Mas a terceira pergunta é questão de conceito. Temos
de considerar se o conceito de comunismo "cabe" ou "não
cabe" no conceito de democracia. Mais uma vez, no fim, a
resposta pode acabar "virando" questão de escolha: é pro­
vável que parte dos conceitos se encaixe bem e parte se
encaixe mal ou não se encaixe. Não teria sentido propor
uma pergunta sobre conceitos se a resposta fosse óbvia: é
tolice perguntar "A tirania é compatível com a democra­
cia?" porque todos sabemos que tirania e democracia são
conceitos diametralmente opostos.
Com o que, então, estamos realmente lidando ao ana­
lisar conceitos, se não estamos lidando com fatos ou valo­
res? Em certo sentido, é verdade que, neste caso, estamos
lidando apenas com palavras - palavras como barco, ciên­
cia, democracia e outras. Mas a resposta é enganosa por­
que implica que estejamos l idando com algo que não tem
nenhuma importância real ou prática. E nós vimos, nos casos
do funcionário da linha aérea e da comissão de bolsas para
pesquisa científica, que o modo como decidimos fixar nos­
sos conceitos (ou usar nossas palavras, como queiram) é
muito irnp011ante. De pouco adiantaria - se fôssemos j ura­
dos num julgamento e tivéssemos de decidir pela culpa ou
1 11 / t 'llJAJJE DA ANÁLISE 9

11 n>1.:ência do réu - responder "Ah, bem, depende do que


você queira dizer com 'culpado'; é questão de palavras e de-
1'111 ições".
Já dissemos acima que perguntas sobre conceitos têm
:1 ver com o significado; mas isto, apesar de também ser
v1.:rdade, não é muito adequado. Suponhamos que a pergun­
fa "Hidroavião é barco?" esteja relaci onada ao significado
da palavra barco. A suposição soa um pouco estranha por­
que sabemos muito bem o que significa a palavra barco;
não é uma palavra fora do comum ou excepci.onal; mas di­
gamos que nosso problema fosse a palavra assintótico ou a
palavra polimo1fo. Se soubermos francês ou alemão, pode­
mos traduzir as palavras para os dois idiomas, sem dificul­
dade. O mesmo vale para palavras mais complexas como ôên­
cia, comunismo e democracia, dentre outras.
Em certo sentido, sabemos bastante bem o que signifi­
cam estas palavras; e, se não soubéssemos, sempre podería­
mos consultar um dicionário. Mais W11 exemplo: suponha
que alguém diga "Aquele é um bom livro", e nós lhe per­
guntemos "O que você quer dizer com 'um bom livro'?".
É uma pergunta perfeitamente razoável e é também ques­
tão de conceito, porque o que queremos saber é o que a
pessoa inclui na categoria "um bom livro". (É como se
alguém dissesse "O comunismo é perfeitamente democrá­
tico", e lhe perguntássemos "O que você quer dizer com
'democrático'?") Nem assim alguém poderia dizer que esti­
véssemos perguntando pelo significado da palavra "bom".
"Bom" é um termo muito comum, que usamos corretamen­
te todos os dias; significa, aproximadamente, o que é "digno
de ser elogiado'', ou "digno de aprovação" ou "desejável". To­
dos sabemos. Mesmo sabendo, contudo, ainda perguntamos:
"O que você quer dizer com 'um bom livro'?"
O melhor modo de abordar este ponto é dizer que, em
perguntas sobre conceitos, não estamos interessados na sig-
10 PENSAR COM CONCEITOS

nificado de uma palavra. As palavras não têm só um signi­


ficado. Na realidade, em certo sentido, elas não têm abso­
lutamente nenhum significado intrínseco; só significam na
medida em que as pessoas as usam de vátios modos. O me­
lhor é dizer que o que nos interessa são os usos possíveis e
efetivos das palavras. É por isto que de nada adianta procurar
no dicionário o significado de cada palavra: não aj uda em
nada. Quando perguntamos "O que você quer dizer com 'um
bom livro'?", o que estamos realmente dizendo é "O que é
um bom 1 ivro para você?" ou "Quais são seus critérios para
dizer que um livro é bom?".
Às vezes, agimos como se só tivéssemos de descobrir

o "verdadeiro" significado de uma palavra - "democracia",


"barco" ou "ciência" - para que a resposta à nossa pergun­
ta ficasse óbvia. Infelizmente, não é tão simples. Basta pen­
sar um momento para ver que palavras como "democracia"
e "ciência" - e também a palavra "barco" - não têm "sig­
n ificados verdadeiros"; os usos e as aplicações é que são di­
ferentes. Nossa tarefa é analisar os conceitos e mapear seus
usos e aplicações.
Do mesmo modo, não devemos cometer o erro de pen­
sar que responder a perguntas sobre conceitos é questão de
"definir os termos que alguém usa" e que deveríamos co­
meçar por uma definição de "'ciência", "democracia" etc. Só
se pergunta "o que é" alguma coisa quando não se conhece
a definição das palavras que se ouvem. Ou talvez se possa
dizer que as palavras não têm definições, só têm usos.
Algumas palavras, é claro, têm, sim, definições precisas:
em geometria e mecânica, por exemplo, as pal avras "triân­
gulo", "linha reta", "ponto", "força'', "massa" e "trabalho"
são muito precisamente definidas. Se, na prova de mecânica,
nos perguntarem "O que é trabalho?", saberemos que teremos
de repetir a definição que consta do livro de mecânica. Mas
isto é assim porque a mecânica é uma ciência extremamen-
1 111/ l/I //>/· n,.1 ..JNALISE 11

I• 1 '1 tl1iida e razoavelmente precisa, e a prova visa a testar


1111 11t0111tocimento da ciência e não, de modo algum, nos-
1 • .q1acidt.Hlc para analisar conceitos. Mas se nos pergun-
1 1 1i1·111 "() que é trabalho?" numa prova de redação do exa-
1111 \'1.:,..;tibuJar, nossa abordagem teria de ser totalmente dife-
1111il' '!�ríamos de começar a pensar sobre o conceito de
11.1li:dtw como é usado no dia-a-dia, não corno o usa a ciên-
1 1i1 d< 1 mecânica. E não há definição de "trabalho" para usar
1H1 d1<1-a-dia. Teríamos de registrar os vários usos da palavra,
11:> d 1 ferentes significados que ela tem em contextos dife­
w11 t <.:s e assim por diante. Teríamos de analisar o conceito.
Até aqui, nos ocupamos em estabelecer algumas coi­
•:.1s com as quais as perguntas sobre conceitos não estão
n.:lacionadas; e isto é importante porque há uma tentação
permanente de tratar tais perguntas como outro tipo de per­
g1111ta - em parte porque a noção de "perguntas sobre con­
L'C i tos" e as técnicas para trabalhar com elas são bastante
recentes; e em parte porque é preciso muita prática para
apreender e compreender a fundo a natureza das questões
de conceito.
Perguntar sobre conceitos não é, portanto, perguntar
sobre fatos. As questões de conceito não são perguntas so­
bre juízos de valor; nem são perguntas que tenham a ver com
os significados das palavras ou com as definições das pala­
vras. Então ... o que são?
Tudo o que d issemos até agora é que elas têm a ver com
os usos das palavras e com os critérios ou princípios pelos
quais os usos são determinados. Mas tudo isto ainda pare­
ce muito vago e é preciso procurar melhor resposta. Tomemos
outro grupo de perguntas:
(j) Vocês têm, na Rússia, a liberdade de votar como qui­
serem?
(ii) A liberdade de votar como se quiser é algo positivo?
(iii) Será que algum dos nossos atos é realmente livre?
12 PENSA R COM CONCEITOS

E mais outro grupo:


(i) Os gregos consideravam certo manter as mulheres
em posição inferior à dos homens?
(ii) Você considera certo manter as mulheres em posi­
ção inferior à dos homens?
(iii) Pode alguém estar certo sobre o que é certo?
Agora sabemos o suficiente para identificar a primei­
ra pergunta de cada grupo como questão sobre fatos; a se­
gunda, como questão sobre valores; e a terceira, como ques­
tão sobre conceitos. No entanto,. as mesmas palavras são
usadas nas três perguntas de cada grupo: "livre/liberdade"
no primeiro; e "certo" no segundo. Mas, na primeira e na
segunda pergunta de cada grupo, parte-se do pressuposto de
que sabemos muito bem o que significam "livre" e "certo"
- como, de fato, em certo sentido, sabemos. Nas perguntas
(i) e (ii) não há nenhum problema lógico, nenhum proble­
ma de significado ou uso; mas há problemas deste tipo na
terceira pergunta, nos dois grupos.
Observe-se que, se não estivéssemos alerta para um certo
tipo de problema, facilmente deixaríamos de perceber que
os problemas, neste caso, são problemas lógicos. Não há nada
na forma da pergunta que nos informe que estamos diante
de uma pergunta sobre conceitos. A fo1ma gramatical de
"Pode alguém estar certo sobre o que é certo?" é semelhan­
te à forma de "Pode algum ato humano realmente destruir
o mundo?", que é uma questão sobre fatos, que envolve co­
nhecimentos sobre fissão nuclear, bombas atômicas etc. Do
mesmo modo, a pergunta: "Pode alguém estar certo sobre
o que é certo?" é parecida com "Pode alguém estar certo
sobre se choverá ou não amanhã?", que é uma pergunta so­
bre condições meteorológicas, não sobre concejtos.
É muito importante perceber o quanto pode ser enga­
nosa a aparência da pergunta; e isto significa que temos de ter
em mente que, embora "a destruição do mundo" e "a chuva
1 Ili li!1WE DA ANÁLISE 13

( 1111 o bom tempo) do dia seguinte" não sej am noções difí­


u: is ou misteriosas em termos lógicos, as noções de "livre"
,. "<.:crto", sim, são logicamente misteriosas.
Quando enfrentamos perguntas desse tipo, começamos
:1 lt.:r um vislumbre do que seja um mistério lógico. E há
l lu lros: "Como sabemos que toda a nossa experiência não é
-.:ó sonho ou alucinação?", "Todos os homens são iguais?",
"Todos os nossos atos são predeterminados?", "O que é a
verdade?", "A beleza existe?", "A fé e a razão são opostos?",
"Deus existe?". O mais curioso é que todas estas perguntas
l!Stão construídas com palavras que nos são muito familia­
res: "sonho'', "igual", "verdade", "beleza'', "fé'', "razão" e
"Deus". Algumas podem incluir palavras que fazem lem­
brar o jargão dos filósofos, como, por exemplo, "predeter­
minado"; mas, em geral, só incluem palavras comuns na
fala diária. Mas, mesmo assim, as perguntas acima dão-nos,
de algum modo, uma impressão de estranheza. Não são per­
guntas como as que normalmente fazemos, no dia-a-dia.
Ou, pelo menos, são perguntas que só fazemos quando esta­
mos naquele estado de espírito que nos ]eva a conversar so­
bre o que, de modo geral, chamamos de temas "abstratos". As
pessoas raramente se propõem questões como, por exemp lo:
"Será que sempre ajo l ivremente? Ou estou sempre domi­
nado por algum tipo de compulsão?" ou, digamos: "Vai ver. . .
a vida é só um sonho". Sim, pergw1tas como "Deus exis­
te?" são mais freqüentes e não parecem especialmente es­
tranhas. Mas pode-se ver que esta pergunta é significativa­
mente diferente de outras perguntas que, à primeira vista,
parecem iguais a ela; por exemplo: "Existe vida em outros
planetas?" ou "Existem unicórnios?", que são perguntas so­
bre fatos. O conceito de Deus é wn conceito misterioso, embo­
ra todos usemos, todos os dias, a palavra "Deus".
Este tipo de pergunta nos convida a levar a sério con­
ceitos aos quais, até o momento, havíamos dado pouca aten-
14 PENSAR COM CONCEITOS

çào. É como se alguém nos pedisse que nos tornássemos


conscientes de palavras que, até então, usávamos sem pen­
sar - não que, necessariamente, as tivéssemos usado incor­
retamente; as usamos, sim, sem prestar atenção a elas, quase
sem vê-las.
O processo é bastante semelhante à psicanálise ou aos
exames de consciência e confissões praticados pelos reli­
giosos. Em todos estes casos, somos convidados a agir mais
conscientemente, a encarar mais objetivamente os nossos atos
e a refletir sobre eles. Até aquele momento, nos contenta­
mos em agir; a partir destas perguntas, passamos a ter de
tomar consciência do signi ficado dos nossos atos. Do mes­
mo modo, quando lidamos com perguntas sobre conceitos,
somos "convidados" a tomar consciência do significado das
nossas palavras.
Mas, uma vez iniciado o processo, logo vem a frustração.
Alguém nos pergunta "O que é o tempo?"; e, como "tempo"
é uma palavra que usamos todos os dias, respondemos, des­
preocupados: "O tempo? Bem, o tempo é o que passa quan­
do uma coisa acontece depois da outra. Para saber que horas
são, h á os relógios. E também pode-se usar o sol. Fala-se
que o tempo está passando . O tempo é como um rio ...";
..

mas logo percebemos que não conseguimos explicar o con­


ceito com clareza.
As perguntas sobre conceitos parecem estranhas por­
que não sabemos como responder a elas. "Todos os homens
são iguais?" Como alguém pode responder a esta pergunta?
Por onde se começa? O que seria considerado uma respos­
ta adequada? A pergunta inteira é um mistério. "Iguais?
O que você quer dizer com 'iguais'? Iguais a quê? Iguais
em quê? Qual a intenção de quem diz que todos os homens
são iguais, ou que não são? Em que circunstâncias interessa­
ria a alguém dizer que sim? Ou dizer que não? E que conse­
qüências práticas teri a cada uma destas respostas? Sabemos
1 1 / 1 /I • l i 1/ / ! 1 IN ÍllS/;' 15

1 1 1 1 1 q111 11· 1 1 1os d izer quando afirmamos, e m geometria, que


111111 1 I li �· igual à linha CD ou que duas equipes jogam
L 1 1 1 1 1 1 1m·:, 1 1 10 número de jogadores. Mas, quanto a todos os
11111111 1 1 . '{L'11:1n iguais, como entender esta frase?" Temos a
1 1 1 1 1 1 1 1 ,•,110 de uma bola de barbante que tem de ser desemba-
1 11, 1 1 1 l.1 1 1 11 1 1 cuidado; ou de que temos de classificar uma enor-
1111 p i l l l : 1 ele objetos; ou de que temos de mapear uma gran­
il1 . 1 1 1 .i d<..: terra.
l i d veY. esta última comparação nos ajude a avançar um
1 1 • • 1 11·n. h1zer um mapa de uma região, como aprender a lidar
, 1 1111 co1 1ccitos, é essencialmente tun processo no qual nos
1 1 1 1 1s1·il'ntizamos do ambiente normal em que vivemos. Um­
"'' '·'' :1 região por algum tempo, no sentido de que passamos
pt 11 d1 e aprendemos a nos orientar por ali. Mas não somos
1 1h 1 d i vamente conscientes da região, como teremos de ser ile
q 1 1 1 s1;rmos fazer um mapa. Conhecemos o caminho de uma
1·1dade para outra, e podemos saber que algumas partes da
1 l·gião são montanhosas, outras cobertas de bosques, e as­
si rn por diante. Mas não conseguimos fazer um esboço no
p < 1 pe l , por menos preciso que seja, porque não conhecemos
a região do modo específico como é preciso conhecê-la
/>ara mapeá-la.
Do mesmo modo, trabalhamos com palavras a vida in­
leira, usamos palavras com sucesso para nos comunicar com
nossos semelhantes; mas nem por isto nos conscientizamos
dos significados das palavras.
A conscientização não é um processo simples; não é
tão simples, por exemplo, quanto aprender uma matéria que
lida com fatos concretos, como a fisica; ou uma matéria em
que as regras são estritas, como a matemática. Conscienti­
zar-se é mais parecido com aprender um jogo.
Para ser bom em qualquer j ogo, é preciso perceber cla­
ramente "o que está em jogo" - qual é o objetivo do jogo,
como se ganha, o que conta pontos -, e é preciso muita prá-
16 PENS.r!.R COM CONCEITOS

tica. Mas ouvir o técnico também ajuda muito, pois sempre


há regras, preceitos e princípios úteis. Mas os conselhos do
técnico não serão úteis, se não forem aceitos com a mesma
intenção com que são oferecidos. Um conselho útil no tênis,
por exemplo, é "Mantenha o braço bem estendido, e não
dobre muito o cotovelo". Mas há ocasiões - j unto à rede, por
exemplo - em que este conselho deve ser ignorado. O trei­
nador não pode fazer urna lista completa de todas as exce­
ções porque muito depende do jogador como indiv íduo, do
adversário, das condições da quadra. O jogador que esteja
sendo treinado não deve nem ignorar o conseLho nem levá-lo
excessivamente a sério e aplicá-lo sempre; e não deve pen­
sar que se o seguir sempre jogará necessariamente um bom
tênis. Deve aprender a considerar simultaneamente os con­
selhos e a prática do jogo em si; tem de transitar sempre en­
tre o conselho e a situação real da quadra, de um para outro.
Só assim o jogador tirará o máximo proveito dos treinos e
dos conselhos.

2. Dificuldades e métodos de análise

a) Dificuhlades de temperamento

Mesmo sob o risco de parecer arrogantes, temos de sa­


lientar, desde já, alguns obstáculos ou resistências psicológi­
cas ao uso das nossas técnicas. Estes obstáculos são ao mesmo
tempo os mais difíceis de superar e os mais difíceis de des­
crever ou expli car. Não é intenção deste livro investigá-los
em detalhe; mas, como são de grande importância para a

prática das técnicas, pode ser útil que o leitor os tenha diante
dos olhos, como um lembrete - apesar de serem freqüente­
mente óbvios e apesar de, em certo sentido, serem bem co­
nhecidos do leitor.
1 l i li li 1 li li:' Dtl ilNJÍL!SE 17

( 1 ) Uma das sensações mais preocupantes que podem


.1 i1b;1lcr sobre as pessoas quando começam a usar essas
1 1 1 ni�as é a sensação de estarem irremediavelmente perdi­
, /11,· AlgLms temperamentos, mais do que outros, gostam
q11e ludo seja expresso de modo claro e organizado, sob Lítu­
lw. se parados, como os ditados que anotamos nas aulas de
l 1 1 stúria do curso fundamental; ou como, digamos, armamos
1 1 1 11a equação em álgebra ou um teorema em geometria. Já
' 1 1 1 ws o suficiente para perceber que nossas técnicas não se
prestam a este tratamento. N inguém pode dizer "Sobre o
l·1111ccito de ciência há os seis pontos seguintes; uma vez
que vocês os tenham anotado e decorado, saberão tudo o
que há a aprender". Quem quer que pense em dizer isto já
t:stá muito distante da verdade.
Toda essa história é muito mais complexa. Acontece
com freqüência de pessoas que têm as idéias muito "arru­
madinhas" ficarem com a impressão, ao final de uma dis­
cussão sobre conceitos, de que ninguém chegou a nenhuma
conclusão: "eles não chegaram a lugar nenhum"; ninguém
apresentou "a resposta".
(2) Por outro lado, há os que têm a sensação de que as
perguntas sobre conceitos podem ser resolvidas muito mais
facilmente do que de fato ocorre. Pode acontecer de pes­
soas inteligentes mas excessivamente impacientes terem a

impressão, durante uma discussão, de que "eles estão 'pro­


curando pêlo em ovo ' ! É óbvio que o tal conceito significa
simplesmente isto ou aquilo. Não há a menor necessidade
de tantos detalhes!" Como veremos, a riqueza do uso e do
significado da maioria dos conceitos interessantes é tal que
seria perfeitamente possível examinar o mesmo conceito por
semanas a fio e ainda ter mais a aprender.
(3) Outra sensação que às vezes acomete aqueles que
se acostumam com facilidade às técnicas pode ser descrita
como urna curiosa compulsão em analisar tudo. Não é muito
18 PENSAR COM CONCEITOS

diferente do desejo de tudo interpi:etar à luz da psicanálise. que


às vezes acomete pessoas que se dão bem com a teoria psi ­

canalítica ou que freqüentam círculos de psicanalistas. A aná­


lise transforma-se em vício, de tal modo que as pessoas se
flagram na ânsia de analisar não só conceitos como ôência,
liberdade, democracia e outros, mas também conceitos per­
feitamente comuns, como mesa e cavalo. Sem dúvida, num
certo sentido, vale a pena analisar todos os conceitos, até os
mais simples. E temos de admitir que algumas palavras que
parecem simples - como "todo", "se" ou "é" - estão entre
as mais i mportantes para quem estuda lógica i nformal. No
entanto, pelo menos na prática, o melhor é isolar alguns con­
ceitos que merecerão atenção especial e deixar de lado os
restantes; para isto, é essencial um senso de proporção.
(4) Em seguida, há a incapacidade ou a falta de dispo­
sição para conversar ou debater, seja consigo mesmo, seja em
discussões amplas. Na rnaio1ia das discussões, tanto sobre con­
ceitos como sobre outros assuntos, quase sempre há pessoas
que permanecem caladas; pessoas que, de certo modo, têm
a sensação de que não podem dizer nada. Talvez tenham medo
de fazer "papel de bobo"; mas expor-se ao risco de fazer
"'papel de bobo" é um dos principais requisitos para apren­
der seja o que for: sem tentar (e, portanto, sem alguns fra­
cassos), ninguém alcança o sucesso.
Isto também se aplica ao que se pode chamar de debate
i nterior, ou seja, pensar consigo mesmo. em silêncio ou em
voz alta. Uma boa parte do pensamento construlivo é seme­
l hante a um debate interior ou à construção de uma dialéti­
ca: você concentra-se muna idéia, depois pensa em outra
idéia para contestar a primeira, pondera as duas idéias, com­
para-as; sendo o caso, talvez pense numa terceira idéia, e
assim por diante.
Especial mente no caso de perguntas sobre conceitos, é
muito importante dizer algo, como uma espécie de garantia
1 1 1 / I li 1 l i )/;' I )// ANALISE 19

i lt• q t t l' o que dissermos haverá de nos levar a alguma con­


' 11 1>;,10. Pode ser que leve e pode ser que não: mas se não dis-
l l l 1 111s alguma coisa, não teremos nem por onde começar. Uma

1 l. 1·. rnisas mais importantes a cultivar, portanto, é a fluên­


' 1;1 i:ntcndida como a capacidade para apresentar idéias e
1 1 1 1 1 1 1 ciados , l ivremente e de bom grado. E o bloquei o men-
1 . i l que nos impede de ser fluentes é, pela mesma razão, uma
1 l,1s co isas mais importantes a evitar.
( 5 ) Em contraste com essa atitude, há uma espécie de
l l1 16ncia superficial que mais impede do que auxilia o fluxo
do pe n s amento, porque o obscurece com urna enxurrada de
p<i la vras. Há pessoas que não se dão bem com o tipo de deba­
t<..· que nossa matéria exige, mas q u e adoram fazer longos
discursos ou manifestar as opiniões mais prolixas. Solicitadas
a fazer o mapa de uma parte da cidade, estas pessoas mar­
d1am com confiança e rapidez pelas ruas que supõem ser
as principais, sem ver as transversais e sem duvidar de que
as "suas" ruas sejam mesmo as principais. Este método é
cansativo e pouco produtivo, com escassos resultados. A
fluência, neste sentido, é mais típica dos discursos políticos
e da publicidade do que da análise de con ceitos .
(6) Finalmente, e talvez a dificuldade mais freqüente
de todas, há o desejo de dar lições de moral. Há palavras
que servem como estímulos emocionais para muitas pes­
soas porque, além do uso que se faz delas na fala comum,
trazem também implicações de valor. Assim, para recorrer
a exemplos óbvios, as palavras comunismo e democracia
têm um valor negativo e um valor positivo, respectivamen­
te, para grande parte das pessoas no mundo ocidental; pode-se
dizer que uma das palavras tem chifres e que a outra tem uma
auréola. Num exemplo mais sutil, a palavra ciência pode
denotar, para alguém, avanço e progresso, futuro melhor,
abordagem mais sensata e prática etc.; e, para outra pessoa,
a mesma palavra pode sugerir os horrores da guerra atômi-
20 PENSAR COM CONCEITOS

ca, a desumanidade das máquinas ou atitudes calculistas,


frias e insensíveis etc. De fato, são poucos os conceitos que
não abordamos de modo até certo ponto subjetivo e precon­
ceituoso. Conseqüentemente, há uma tentação permanente
de usar e manipular estes conceitos como armas, em vez de
analisá-los como tema de estudo: basta considerar a quan­
tidade de tempo que foi gasta para dizer algo de positivo ou
negativo sobre o comunismo, em comparação com o tempo
dedicado a aprender alguma coisa sobre a natureza do con­
ceito de Comunismo.

Poderíamos alongar consideravelmente esta lista, mas


talvez seja mais útil apontar um fator presente em todas as
nossas dificuldades: todas elas são, essencialmente, falhas
da comunicação. A análise de conceitos é uma forma muito
sofisticada de comunicação. São poucas as regras fixas, se
é que há alguma. E precisamos aprender a avançar, como j á
vimos, do mesmo modo como aprendemos Lm1 jogo ou como
aprendemos a nos relacionar com as pessoas, ou seja, jogan­
do e nos relacionando - em outras palavras, tanto pela prá­
tica do jogo e do relacionamento quanto pelo aprendizado
das normas. Por assim dizer, é preciso ter fé no jogo: mer­
gulhar nele, alerta e atentamente, mas sem excessiva ansie­
dade. Temos de estar interessados, ter vontade de alcançar
o sucesso, mas não podemos estar preocupados; temos de
estar controlados, mas não podemos estar inibidos. Alguns
pecam por um lado e não se envolvem o suficiente; acreditam
que a história pode ser facilmente resolvida, ou que basta­
rá um de seus discursos para que todos "aprendam" todas
as respostas. Assim, estão longe da situação real: falam
sozinhos e não conseguem se comunicar, não participam
corretamente do j ogo (como um jogador de futebol que não
passe a bola para ninguém). Outros são excessivamente an­
siosos e preocupados: sentindo-se perdidos e incapazes de
enfrentar a situação, mantêm-se calados e optam por nem
t 1 1 1 1 11 1 1 1 1 / IJ. t ,.JN!ÍLJSE 21

11 111111 ( l·n11 10 um joga dor que p re feriss e não tocar na bola e


q111 '•l' lilssc obrigado a fazê-lo, a passasse i m ed iatam e nte
11 11 i1 1 1 1 1 ! rn jogador).
l 1111 trús da idéia de "analisar conceitos" está, porta nto,
1 1 111il·11lu a i n da mais abrangente p ara "conversar" ou para

1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 i car-se"; e para fazer uso desta habilidade temos, a ci -


1 1 1 . 1 de 1 ud o, de aprender a reconhecer cada j ogo específico
q1 1L' esteja em andamento e aprender a participar dele. As­
-1 1 1 1 1 , quem cede ao desejo de dar lições de moral, não con­
.1·g11c c o n ve rsar a respeito de conceitos e só sabe fazer pre-
11 �· 1 H.:s com eles, não está, no fündo, parti cipando do jogo: o
q 1 1 c raz é mna espécie de trapaça. Do mesmo modo, quem
11 1sislt.: cm analisar cada um dos conceitos a qu e se refira
1 1 1 1 1 enunciado está j ogando, por assim dizer, co m e xag e ro
( l'lll no o j oga do r de futebol que insista em fazer firulas

diante do gol, e m vez de chutar forte e direto). A comu nica-


1J10 envolve, portanto, reconhecer o jogo específico e entrar
nele p le nam ente .
Há quem pense que a análise de conceitos seja um jogo
di lkil de reconhecer e praticar. Na minha opinião, é um jo­
go difícil de reconhecer, mas muito fácil de praticar: por isto
nos dedicamos, até aq ui , ao esforço de ex p licar exatamente
de que tipo de j ogo se trata. Sob este aspecto, também, apren­
der o nosso jogo é c omo aprender a nadar. O mais difícil é
aprender a "sentir" a água - em última análise, chegar à per­
cepção interior do fato de que a água realmente sustenta o
corpo. Conseguido isto, tudo muda, e nadar passa a parecer
fácil. É como se ocorresse uma espécie de estalo na nossa
cabeça e víssemos, de repente, o que de fato "estava em j ogo".
Do mesmo modo, ao aprender a analisar conceitos, vo­
cê é c onv id ad o a parücipar de um jogo novo - o jogo de ver
as palavras a part i r de um novo ângulo, uma espécie de
"virada" mental. Depois de alguns esforços, você entende­
rá tudo! Em a lgu ns casos, nem é prec]so muito trabalho: há
22 PENSAR COM CONCEITOS

gente que tem natural facilidade para aprender a nadar, assim


como há gente que precisa de mais tempo para ganhar a con­
fiança necessária. E os melhores nadadores nem sempre são
aqueles que rnajs rapidamente aprenderam a nadar.
As pessoas, naturalmente, têm temperamentos diferen­
tes. E meu principal objetivo nesta parte do livro é chamar a
atençã.o para os tipos de dificuldades pelas quais todos pas­
sam, ou sej a , as dificuldades vivenciadas no aprendizado de
um novo j ogo, no aprendizado de como se comunicar de uma
nova forma. É por esse motivo que falei tanto na análise de
conceitos como um jogo: não que a questão não seja séria
e importante, mas porque, por ser semelhante a um jogo, a
análise de conceitos não é como decorar alguns fatos, como
esforçar-se para ser mais virtuoso, ou como seduzir as pes­
soas para que votem em você, atividades cujas dificuldades
são muito di ferentes. Com isso em mente, e com a ajuda de
um pouco de perspicácia e de consciência de nós mesmos, po­
deremos descobrir que, depois que se começar a tentar ana­
lisar conceitos, ficará muito mais fáci l evitar os erros que a
maioria de nós comete; erros que, até recentemente, impe­
diam de fato os seres humanos de j ogar conscientemente o

jogo da análise.

b) Técnicas de análise

Para começar, h á algumas considerações gerais que são


quase sempre úteis e que devemos nos lembrar de aplicar
sempre que nos depararmos com qualquer pergunta que pa­
reça envolver a análise conceituai.

( 1 ) Como isolar perguntas sobre conceitos


Devemos começar por isolar as perguntas sobre con­
ceitos das outras perguntas. Só raramente encontra-se uma
t1 l/ ' 1 1 •1 / 1 1 IN /US/:" 23

q 1 1 1 1 1 . 1 :oh1e conceitos apresentada em forma pura. É pos-


1 1 1 1 1 111•, 1 1 1 1 p rovável , que alguém nos faça uma pergunta
1 1111111 () 1 1 n l é a natureza lógica do conceito d e punição?"
1 1 1 1 1.1 .,,· 1 1 1pre o que se encontra são perguntas mais confu-
1,. ' 1 1 1 1 11plcxas, como, por exemplo: "Devem-se punir as
1 11 •,1>.1:-. 1 1 1 1 crnadas em hospitais psiquiátricos?" Nesse caso,
1 1 1 1 • 1 g 1 1 1 1la, por assim dizer, nos convida a participar de diver-
11• 11 1gos diferentes. Para responder plenamente à pergunta,
1 11l·n·ssflrio: ( i ) analisar o conceito de punição; (ii) ter al-
1• 1 1 1 1 1 con hecimento concreto do tipo de pessoa que realmen­
h � slú internada nesses hospitais; e (iii) expressar algum
1 1 pu d e opinião moral sobre se tais pessoas devem ou não
1 1 ·l·cbcr punição. Em outras palavras, esta é uma pergunta
1 1 1 1 sl i 1 , que envolve não só a análise conceituai, mas também
l 1lnsiderações sobre fatos e sobre juízos de valor. Para exa-
1 1 1 1 11ar outros exemplos, tomemos primeiro a pergunta: "A J i ­
hi.:rdade é importante para um indivíduo em sociedade?"
l\qui temos uma pergunta para a qual se exige tanto uma
análise conceituai quanto um juízo de valor. Precisamos
( i) analisar o conceito de l iberdade e ( i i ) expressar uma opi­
nião sobre a importância e o valor do conceito. Outra per­
gunta: "O progresso é inevitável no século XX?" Nesse
caso, estão envolvidas análise conceitual e considerações
sobre fatos. Precisamos levar em conta o conceito de pro­
gresso (e talvez também o conceito de inevitabilidade), para
então examinar os fatos relacionados ao século XX que
consideramos relevantes.
Não faz parte do nosso objetivo considerar o modo
como se devem responder a questões sobre juízos de valor
ou sobre fatos. Mas é c laro que não responderemos muito
bem a nenhuma pergunta (e tampouco, seguramente, às per­
guntas sobre conceitos) se não fizermos uma d i stinção
muito nítida entre os tipos lógicos de indagação que podem
estar ocultos dentro do que parece ser uma única pergunta.
24 PENSAR COM CONCEITOS

H á apenas um ponto de interrogação, mas diversas pergtm­


tas. E não poderemos fazer justiça a nenhuma delas enquan­
to não tivennos tratado cada uma individualmente. Num dos
exemplos c i tados, é óbvio que não poderemos nem começar
a dizer quem deve ser punido enquanto não soubermos com
clareza o que é a punição. Sem saber isto, não teremos cer­
teza (num sentido perfeitamente litera l ) do que estamos fa­
lando. Temos de entender a liberdade antes de poder expres­
sar qualquer opinião inteligente sobre a importância da li­
berdade. E temos de entender o progresso para poder saber
se é inevitável. Devemos, portanto, isolar as questões so­
bre conceitos e tomá-las como prioritárias.

(2) "Respostas certas "


Intimamente associada a esse procedimento está a ques­
tão, já apresentada, de que as perguntas sobre conceitos ra­
ramente têm solução simples e bem definida. A esta altura,
já estamos acostumados à frase introdutória: "Depende do
que você quer dizer com. . .", que tem conseqüências importan­
tes para as respostas às perguntas "mistas" descritas ante­
riormente. Em poucas palavras: o efeito que a frase introdu­
tória provoca é que a pergunta mista, inteira, não tem "res­
posta certa". Assim, não precisamos entrar numa análise de­
talhada para perceber que poderíamos muito bem responder
à pergunta "mista": "O progresso é inevitável no século XX?"
dizendo: "Bem, se você entende que 'progresso' significa
tais e tais coisas (dados certos fatos), sim, o progresso é ine­
vitável. No entanto, se você entender que 'progresso' sig­
n i fica outras tais e tais coisas, não, o progresso não é ine­
vitável." Ou, para dar mais um exemplo, se alguém nos per­
guntasse "A democracia é um método satisfatório de gover­
no?", poderíamos começar por uma relação de inúmeros
usos ou critérios para usar o conceito de democracia, e en­
tão dizer algo como "Bem, se você quiser atrelar <\ palavra
1 1 /'11'/UAIJE IJA ANÁUSE 25

·democracia' a este conjunto de critérios" (entre os quais,


digamos. insistir em equilibrar o orçamento do país pelo
voto popular, em vez de pela decisão de especialistas reco­
nhecidos, para que o país seja considerado democrático), "en­
tão, nesse sentido de 'democracia', a democracia não é muito
satí sfatória como método de governar, porque favorece a
instabilidade. Mas se, para que o país seja considerado de­
mocrático, você exigir que o governo seja eleito só algumas
vezes, de tempos em tempos, pelo voto popular, então sim,
o método de governo me parecerá bastante satisfatório."
Esse é um dos motivos pelos quais, como já vimos, é
importante ( l ) isolar de outras considerações as perguntas
sobre conceitos e (2) tratar delas em primeiro lugar. Porque
considerações relacionadas aos fatos e à moral não podem
absolutamente ser aplicadas com pertinência enquanto não
tivermos estabelecido exatamente a que elas se aplicam.
Quando a pergunta "mista" apresenta a forma geral "Será
que x (um conceito) é y (bom, mau, inevitável no século X X
etc.)?", a resposta, às vezes, tem de v i r na seguinte formula­
ção: "Se com (uma palavra A) você quer dizer abc, sim,
porque . . . Mas se com (a mesma palavra A) você quer dizer
de, então não, porque . . .", como os exemplos com progres­
f

so e democracia já mostraram.
Por outro lado, assim como já vimos que não se deve
pensar em um significado para cada palavra, tampouco
se deve supor que a maioria dos conceitos seja totalmente
fluido e que cada um tenha apenas os lim ites que mais nos
agradem.
Sabemos, de qualquer conceito, que ele ocupa uma área
que pode ser localizada e mapeada por aproximação, mes­
mo que as fronteiras nunca sejam muito precisas. Logo,
mesmo que tenhamos dúvidas sobre se baleias, polvos, es­
trelas-do-mar, lagostas e ostras '"cabem" no território do con­
ceito de peixe, sabemos pelo menos que. na maioria das cir-
26 PENSA R COJ\4 CONCEITOS

cunstâncias, arenques, solhas, linguados, trutas e outros se


incluem, sem dúvjda, nesta classificação. Mais que isto, há
uma razão (ou conjunto de razões) pela qual (ou pelas
quais) temos dúvidas no caso de baleias, polvos, lagostas, mas
não temos dúvidas quanto aos arenques, solhas, linguados,
trutas: isto acontece porque o conceito de peixe não é sim­
plesmente um conceito arbitrário, formulado sem nenhuma
final idade. Os seres humanos consideram necessário ter
uma palavra para descrever seres que satisfaçam certas con­
dições - ter a capacidade de viver no mar; ser vivos, em vez
de pedras ou conchas; saber nadar (ao contrário das anêmo­
nas-do-mar) e assim por diante. Claro que estes critérios são
vagos, até certo ponto. Consideram, por exemplo, a aparên­
cia da criatma? Para ser "peixe" é preciso ter nadadeiras e
corpo flexível? Se for assim, teremos de excluir as lagostas
e os polvos. Mas e as águas-vivas, que não têm nadadeiras,
mas têm corpos flexíveis e que, além do mais, em inglês, são
chamadas de "jellyfish"?' Com esse tipo de raciocínio, pro­
curamos descobrir quais das condições são importantes ou
essencta1s, e quais não são.
Portanto, não devemos pensar nem que podemos dizer
definitivamente o que uma palavra "realmente significa", nem
que podemos escolher o que ela significa apenas porque é
conveniente a nós ou a alguma outra pessoa. Em outras
palavras: algumas instâncias do conceito - alguns casos em
que a palavra é usada - estão mais próximas do cerne do con­
ceito do que ouh·as. Por exemplo, vamos supor que estamos
examinando o conceito de verdade. Poderíamos pensar em
três exemplos de uso da palavra "verdadeiro(a)": quando d i ­
zemos que u m a afirmação ou crença é "verdadeira"; quando
dizemos que "um homem é bom e verdadeiro" ou que ai-

1. As águas-vivas (je/(1.Jlsh) têm incluída no si:u nome em inglês a palavra


fish (peixe). (N. da T.)
1 1 11VIDADE DA ANÁLISE 27

guém é um "verdadeiro amigo"; e quando dizemos que uma


jogada na mesa de bilhar "foi verdadeira"2• Não é dificil ver
que o primeiro uso é o mais próximo ao cerne do conceito.
As "coisas" que são verdadeiras em primeiro lugar são as afir­
mações e as crenças. E, dado que se pode falar de "verdadei­
ro amigo", de "jogada verdadeira" ou de "noite verda deiro",
é razoável afirmar que estes usos são extensões ou alterações
dos usos básicos; o mesmo acontece quando se diz que o
vento "sussurra" entre as árvores: usamos o verbo "sussurrar"
num sentido que é como uma extensão do seu uso normal,
uma metáfora emprestada do seu uso normal, em que o verbo
apl ica-se a pessoas. Com a prática, aprendemos a distinguir
os usos básicos e centrais de um conceilo e a isolá-los dos
usos derivados ou limítrofes. É esse tipo de sensibilidade que
faz toda a diferença entre uma análise útil e bem-sucedida e
uma tentativa canhestra de analisar o conceito pelo simples re­
gistro dos seus vários usos, sem qualquer distinção entre eles.

A esta altura, já podemos ver a util idade de outras téc­


nicas específicas de análise.

(3) Casos-modelo
U m dos bons modos de começar, sobretudo quando nos
sentimos totalmente perdidos no território de um conceito,
é selecionar um caso-modelo, ou seja, uma ocorrência que
nos pareça, sem dúvida algwna, exemplar; um caso daqueles
t:m que se pensa "Bem, se issu não é um bom exe mpl o de x . . .
nada mais será".
Quanto ao conceito de punição, pode-se pensar no caso
de alguém que desrespeitou intencionalmente uma norma
importante e, por isso, foi castigado por ordem das autori-

2. A expressão em inglês significa que a bola de bilhar "seguiu a traj etória


previsla,.. (N. ela T.)
28 PENSAR C01\ll CONCEITOS

dades. Digamos, um menino que tenha quebrado de propó­


sito uma janela da escola e que o diretor tenha submetido a
castigos corporais. Aí está, sem dúvida, um caso exemplar
de punição. Podemos então examinar as características do
caso para ver quais são as características essenciais, em de­
corrência das quais podemos usar - e usamos -, para desig­
nar o conceito, a palavra "punição". Pode-se discutir se o
que mais importa é o fato de o aluno ter desrespeitado uma
norma, ou o fato de ele tê-la desrespeitado intencionalmen­
te; de as autoridades terem assumido o caso; de o "castigo"
ter sido doloroso; ou se, afinal, o que mais importa é uma
certa combinação dessas hipóteses.
Em seguida, poderíamos tomar outros casos-modelo -
digamos, alguém que rouba e é "punido" por força de sen­
tença proferida por um juiz, num tribunal - e procurar ver
se todas as características que percebemos no primeiro caso
estão presentes tamhém no segundo. Se não estiverem, po­
de-se começar a pensar na idéia de que as características
ausentes não são essenciais. Pois, se fossem, elas talvez3
estivessem presentes em todos os casos-modelo. Isto para
dizer que podemos restringir o campo de nossa pesquisa em
busca das características essenciais . . . mediante a elimina­
ção das características não essenciais.

3. Talvez, mas não necessariamente. Há alguns conceitos que têm mesmo


caractt:rísticas essenciais. Assim, duvido que considerássemos que um objeto é
uma caixa se ele não pudesse conter coisas. Existem, porém, conceitos que não
possuem caractcristicas essenciais nesse sentido, embora possam apresentar traços
típicos. Desse modo, é típico que as vacas tenham chifres, e que os jogos sejam
atividades que podem envolver duas ou mais pessoas. No entanto, essas não são
características essenciais, já que pode existir uma vaca mocha ou um jogo de pa­
ciência. Em outras palavras, alguns conceitos referem-se a coisas que podem não
ter um único traço em comum. mas que estão associadas por um conjunto de traços
característicos, mas não essenciais. Com esses, portanto, lemos de nos contentar
com traços típicos em vez dos essenciais.
,
1 1111'/DADE DA ANÂUSE 29

( 4 ) Contra-exemplos
Pode-se chegar ao mesmo objetivo pelo método opos­
l o , isto é, considerando os casos em que se possa dizer:

"Bem, seja lá o que for tal conceito, isto eu sei que não é."
Suponhamos que estivéssemos preocupados com o concei­
to de justiça: escolheríamos casos nos quais não houvesse

dúvida de que alguém foi tratado de modo injusto. Pen­


semos, por exemplo, numa pessoa inocente, mas condenada
à morte por um crime que não cometeu. Ou imaginemos que
duas pessoas cometam o mesmo crime, nas mesmas cir­
cunstâncias, e uma seja punida e a outra absolvida. Estes
são exemplos clássicos de injustiça: nós então os examina­
mos para ver por que são exemplos clássicos. No segundo
exemplo, em que a lei trata duas pessoas de modo diferen­
te, a impressão é que a característica essencial é a desigual­
dade da injustiça. O caso é "injusto" porque as pessoas não
são tratadas da mesma forma?
Num outro contra-exemplo, suponhamos que duas pes­
soas cometam assassinato, mas em circunstâncias diferentes.
Smith, um homem rico porém ganancioso, mata sua vítima
só para ganhar um pouco mais de dinheiro. Brown, um ho­
mem generoso, que ama a mulher, a encontra na cama com
outro. O homem zomba dele. Brown perde a cabeça e o mata.
Nos dois casos trata-se de assassinato, mas seria injusto con­
denar Smith à morte e condenar Brown a apenas dez anos
de cadeia? Não, não seria. Mas. . . por que não, se o crime é
o mesmo e as punições são diferentes? Que outras circuns­
tâncias temos de levar em conta antes de considerar u m caso
"j usto" ou "injusto"? Será que é Smith que merece punição
maior do que B rown? Seria ótil examinar mais alguns con­
tra-exemplos para, do mesmo modo, aprender com eles.

( 5 ) Casos afins
São raros os casos em que se consegue analisar um con­
ceito sem considerar também outros conceitos afins, seme-
30 PENSAR COM CONCEITOS

l hantes ou que, de algum modo, estejam profundamente l i ­


gados a ele. É, portanto, evidente q u e não poderíamos pen­
sar sobre a punição e a justiça, ao examinar casos-modelo
e contra-exemplos, como acabamos de fazer, sem nos depa­
rarmos com o conceito de merecimento, que é, de fato, mna

característica essencial dos conceitos de punição e justiça,


que lhe são afins. Assim como não se pode entender uma
peça de máquína sem ter um conhecimento pelo menos su­
perficial de como a peça se encaixa em outras peças e de
como funciona o conjunto, também é dificil compreender
um conceito sem ver como ele se "encaixa" na rede o u na
constelação de conceitos da qual faz parte. Seria preciso,
portanto, ver em quais circunstâncias concordaríamos com
a idéia de que uma pessoa "merecia" ser tratada de certo
modo e em quais circunstâncias diríamos que, pelo contrá­
rio, ela "não merecia" aquele tratamento. (Poderíamos fazer
o mesmo com o aspecto positivo do conceito de mereci­
mento . ) Quase sempre, ao termos mais clareza quanto aos
critérios de aplicação do conceito afim (merecimento), ve­
mos mais claramente também o conceito original (punição
ou justiça).

(6) Casos limítrofes


Também é útil analisar exatamente aqueles casos dos
quais não temos certeza, e ver o que diríamos a respeito
deles. Suponhamos que wna criança toque num fio elétrico,
que já lhe disseram ser perigoso, e leve wn choque. O choque
é uma "punição"? Há características comuns entre este caso
e os casos-modelo de punição, mas talvez não sej am sufi­
cientes. Vejamos, então, qual é a característica importante que
está faltando. Será o fato de, no caso do choque, não haver
nenhuma pessoa que aplique a punição? E, no caso do pugi­
lista, de quem se diz que foi "muito castigado", a palavra "cas­
tigo" está sendo usada a sério ou em sentido metafórico? E
1 1 l'll 'IDADE DA ANÁLISE 31

o que dizer de alguém como Macbeth, na peça de Shakes­


pi.:are, que agiu com perversidade e sofreu por isto? Pode-se
dizer que ele "atraiu para si a própria pmlição"? Ou há aqui
metáfora? E o que dizer das brincadeiras com prendas nas
l'c�tas de Natal, quando alguém não consegue resolver um
i.:nigma e tem de "pagar uma prenda" ( l amber sabão ou en­
fiar o rosto num prato de farinha)? As prendas são pLmições
de veTdadc ou são uma espécie de versão brincalhona, uma
encenação do castigo? O objetivo, em todos esses casos, é
elucidar a natureza do conceito por meio da repetida expo­
sição a circunstâncias diferentes que se situam na periferia
do conceito - e que poderíamos chamar de casos estranhos
ou esquisitos. Ao perceber o que os torna estranhos ou es­
quisitos, identificamos os motivos pelos quais os casos ver­
dadeiros não são nem estranhos nem esquisitos e, portm1to,
o que faz com que sejam casos verdadeiros - e que são, de
fato, os critérios fundamentais do conceito.

(7) Casos inventados


Às vezes é necessário inventar casos que, na prática,
estão totalmente fora da nossa experiência normal, sim­
plesmente porque ela não oferece quantidade suficiente de
exemplos diferentes para esclarecer o conceito. Há, sim,
muitos casos que podemos usar para i nvestigar o concei­
to de "punição". No entanto, se estivéssemos investigando
o conceito de "homem'', descobriríamos que é d i fícil mui­
tos exemplos d i ferentes, porque no mundo em que vive­
mos raramente hesitamos quanto a chamar algo de homem
ou não. Na prática, é fácil distinguir entre homens e má­
quinas, macacos, legumes etc. Porém, se quisermos des­
cobrir os critérios essenciais para identificar um homem,
teremos de comparar vários casos que, necessariamente,
serão imaginários, mais próximos da ficção científica que
da vida real. Imaginemos, portanto, que descobrimos cria-
32 PENSA R CO.M CONC!::!TOS

turas que vivem a centenas de quil ômetros abaixo da super­


ficie da Terra, mai s ou menos parecidas com seres htm1anos
e providas de inte1igência, mas que não tivessem emoções,
não produzissem arte nem fizessem piadas. Será que as con­
s ideraríamos seres humanos?
Ou suponhamos que as tais criaturas se comportassem
exatamente como homens, com as emoções humanas e tudo
o mais, mas tivessem duas cabeças? Ou, então, imaginemos
que conseguíssemos construir ou criar um ser que fosse, di­
gamos, mais intel igente �o que um pigmeu pouquíssimo
desenvolvido e que risse, chorasse, às vezes demonstrasse
raiva, em outras ocasiões fizesse piadas e as s im por dian­
te? Esse ser seria um homem ou nós o desqualificaríamos
pelo s i mples fato de o termos construído ou de o termos
criado por meios artificiais? É claro que, em casos tão fan­
tasiosos, podemos ficar em dúvida quanto a como classifi­
car as criaturas; mas o exercício de imaginação é útil tam­
bém para compreendermos nossa experiência real: a análi­
se de conceitos é, na essência, um processo imaginativo; é,
sem dúvida, mais arte que ciência.

(8) Contexto social


Dado que a l i nguagem não é usada no vazio, temos de
cuidar para não pensar e falar como se as perguntas sobre
conceitos gerais só aparecessem em questões de exames.
Na realidade, elas surgem a todo o momento, na vida real ,

sob a pressão de circunstâncias particulares. A natmeza des­


sas circunstâncias é muito importante para compreender os
conceitos.
Assim, em cada afirmação que ouvimos, temos de ima­
ginar quem poderia tê-la feito, por que a faria, quando seria
mais natural que tal pessoa, por tal razão, fizesse tal afirma­
tiva, e assim por diante. Poderíamos nos defrontar, enh·e
outras, com a pergunta: "Será que as pessoas são responsá-
. I .-1 TI VJDADE DA ANÁLJSE 33

veis por seus atos?" Um bom modo de começar a captar o


conceito de responsabilidade é escolher um caso prático.
Quem diria a frase: "Esse homem não é responsável pelos
seus atos"? Talvez o advogado de defesa de um assassino,
num tribunal; e ele a diria porque lhe interessaria impedir que
seu cliente fosse punido; estas palavras seriam ditas depois
de j á estar claro que o homem havia cometido o crime, mas
ainda houvesse (na opinião do advogado) possibilidade de o
júri declará-lo louco ou irresponsável. No caso de esta defe­
sa prevalecer, o homem não seria mais tratado como crimino­
so perverso e passaria a ser visto como um pobre doente. A
conclusão sugere que a responsabilidade acompanha a culpa,
a imputabilidade e outros conceitos relacionados.

(9) Ansiedade subjacente


Intimamente associada à importância de examinar o con­
texto social de uma pergunta ou afirmação está a importân­
cia de levar em consideração a disposição de espírito ou os
sentimentos da pessoa "que fala", em cada caso. Perguntas
filosóficas ou sobre conceitos surgem , quase sempre, e m
decorrência d e alguma ansiedade subjacente. Certas carac­
terísticas da vida parecem ameaçar, de algum modo, o que
sempre pensamos e, por isto, causam insegurança. Por exem­
plo, a pergunta "Será que alguém é livre?" pode estar sendo
feita porque muitas pessoas têm a sensação de que a psico­
logia moderna, com as descobertas sobre as causas do com­
portamento humano, começa a ameaçar nossa liberdade.
Nestas circunstâncias, as pessoas perguntam "Será que tudo
o que fazemos não é determinado por algum fator psico­
lógico, na nossa própria mente?" ou "Será que realmente
chegamos a ser livres?". Neste caso, a ansiedade subjacente
nasce da sensação de que, se no passado nos sentíamos no
controle dos nossos atos, agora já ninguém tem tanta certeza.
E é útil perceber isto, porque a noção de controle é impor­
tante para compreender o conceito de liberdade.
34 PENSAR COM CONCEITOS

( l O) Resultados práticos
As questões sobre conceitos são quase sempre desnor­
teantes, porque não se pode garantir que tenham respostas
"certas" ou "erradas"; e pode acontecer de alguém querer
saber se alguma destas perguntas tem algum objetivo ou sig­
nificado. De fato, porque são perguntas, elas como que "exi­
gem" algum tipo de resposta. E, na medida em que as pes­
soas tenham tido alguma intenção ao fazê-las, as perguntas
têm algum tipo de objetivo ou significado. Muitas vezes,
porém, só nos resta tentar adivinhar o objetivo e o signifi­
cado. E um dos modos pelos quais podemos arri scar palpites
mais inteligentes, em vez de palpites completamente alea­
tórios, é ver os resultados práticos, na vida diária, de uma res­
posta "sim'' e de urna resposta "não". Por exemplo, supo­
nhamos que alguém pergunte "Como podemos saber que não
é tudo ilusão?" ou "Será que tudo na vida não é só sonho?".
Parece que nossa resposta, seja qual for, não terá efeitos na
prática. Imaginemos que respondêssemos que tudo é ilusão;
que a vida é sonho. E daí? Em que esta resposta afetaria nosso
comportamento? Que diferença real provocaria nos nossos
atos? Claro que a resposta nem afetaria nem faria qualquer
diferença, o que sugere que a pergunta (embora possa ter
algum objetivo ou sentido) não expressa muito claramente
a dúvida ou a preocupação subjace11tes que há na mente de
quem perguntou. Em outras palavras, houve alguma falha
grave na linguagem em que a pergunta foi formulada, uma
vez que se sabe que a resposta sempre implica alguma dife­
rença prática em toda e qualquer pergw1ta verdadeira ou
útil. Portanto - dado que os conceitos de ilusão e sonho só
fazem sentido em contraste com os conceitos opostos de
realidade ou de vida de olhos abertos -, vê-se neste exem­
plo que não se sabe qual o significado (se é que há aí algum
significado) que pode estar associado à frase "tudo é sonho"
ou "tudo é ilusão". Seria como dizer que todo dinheiro é falso.
1 l i 1 1 'fl)ADE DA ANÁLISE 35

A partir daí, temos uma chance de procurar i maginar


dL· modo mais razoável o real interesse de quem perguntou.
1 possível, por exemplo, que quem perguntou tenha desco­
l 1L·rto que algumas das coisas que considerava reais são, de
l:1ll1, ilusórias.
É como no exemplo do item (8), acima, em
que a pessoa descobre que o ato que imaginava ser um ato
1 ivre é, no fundo, um ato compulsivo e, por este motivo, mer­
g u l ha numa preocupação mais geral quanto à liberdade ele
todos os atos.
Em conseqüência ele perguntas desse tipo, somos leva­
dos a refletir sobre conceitos muito comuns (liberdade, rea­
l idade etc.), para recuperar nossa segurança e resolver as
dúvidas. Se começamos por uma reflexão sensata e racional
dos resultados práticos de responder a estas perguntas com
um "sim" ou um "não", podemos ver quais os conceitos que
realmente preocupam a pessoa que formulou a pergunta.

( 1 1 ) Conseqüências na linguagem
Como as palavras são sempre ambíguas e como nem
sempre é possível dizer qual é o significado de uma pala­
vra, pode acontecer de, muitas vezes, acabarmos na situa­
ção descrita acima, no item (2) (página 25): aquela situação
na qual temos de dizer "Bem, se com tal termo você quer
dizer abc, a resposta é tal; mas se você estiver querendo dizer
xyz, então a resposta é outra".
De fato, porém, podemos avançar um pouco mais:
mesmo quando as palavras são tão vagas que não se pode
dizer que tenham um significado principal, ainda assim
pode-se dizer que é mais racional ou mais útil adotar alguns
significados, em vez de outros. A palavra "democracia" tem
pouquíssimo significado central; o máKimo que se pode di­
zer é que, nesta palavra, o significado tem a ver com a idéia
de que o povo exerce algum controle sobre o governo; não
se pode dizer muito mais. Há vários casos aos quais é pos-
36 PENSAR COM CONCEITOS

sível aplicar a palavra "democracia": a Atenas do século V


a.C., os Estados Unidos do século passado, a Grã-Bretanha
deste século ou, mesmo, as "democracias populares" por
trás da cortina de ferro. Em todos estes casos, o povo exer­
ce algum controle, o que dá a estes países o direito de serem
considerados "democráticos".
No entanto, é evidente que, já que a palavra "democra­
cia" tem alguma utilidade na nossa lingua, é interessante
que ela tenha a maior utilidade possível. Nestes termos, é
úül que haja urna palavra para contrapor a "totalitário" -
uma palavra que descreva um Estado no qual as pessoas
possam opor-se às autoridades, sem muitas proibições. Daí
que pode ser útil restringir o uso da palavra "democracia'' de
modo a excluir a União Soviética (supondo-se que a União
Soviética seja "totalitária" e repressora, nesse sentido), mas
sem excluir a Grã-Bretanha. Sem esta "solução" - e nada,
de fato, nos obriga a isto - só nos restaria inventar uma
palavra para contrapor a "totalitário". Do mesmo modo, po­
deríamos dizer que em nenhuma nação o povo realmente
exerce S'/1ficiente controle sobre o governo para que a nação
seja considerada verdadeiramente democrática. Nesse caso,
porém, o significado da palavra "democracia" ficará tão li­
mitado e tão restrito que a palavra deixará de ser útil - por­
que não haverá nem um país que se possa classificar como
"democrático". A palavra "democracia" estará banida do nos­
so vocabulário prático.
É assim que temos de examinar "as conseqüências na
l inguagem" quando escolhemos significados para as pala­
vras ou delimitamos áreas para conceitos: os melhores crité­
rios são os mais úteis para o conceito. Então, quando tiver­
mos analisado o conceito e observado toda (ou quase toda)
a grande riqueza de suas muitas ocorrências possíveis (mas
só depois disto), poderemos dizer: "Dentre todos estes pos­
síveis significados da palavra x, o mais razoável e mais útil
A A TI V!DADE DA liNÂLISE 37

é atribuir-lhe o significado y; deste modo, poderemos usar


a palavra x com rendimento máximo".

As técnicas ficarão mais claras quando as aplicarmos


a exemplos de análise; e vou referir-me a elas especi fica­
mente quando examinarmos alguns exemplos. Por enquan­
to, vale salientar que nem todas as técnicas são igualmente
úteis em todos os casos. Pode acontecer, ao analisarmos um
conceito, de descobrirmos que não interessa muito exami­
nar o contexto social, os resultados práticos ou a ansiedade
subjacente - que podem ser óbvios, descabidos ou as duas
coisas. Se, por exemplo, estivermos investigando um con­
ceito acadêmico ou abstrato, como o conceito de infinito,
em matemática, ou de subjuntivo, na gramática, pode acon­
tecer de as considerações sociais não serem pertinentes.
Claro que sempre se pode dizer que elucidar esses con­
ceitos aj udaria a matemática e a gramática, o que por sua
vez beneficiaria nosso sistema educacional, o que por sua vez
faria progredir nossa sociedade, mas não são aspectos ime­
diatamente pertinentes.
Em comparação, pode-se admitir que o significado da
palavra "bom'' não sej a tão fácil de elucidar quanto o sig­
nificado da palavra "peixe"; mas no caso de "bom" não pre­
cisaríamos de muitos casos-modelo, casos lim ítrofes e outros,
do conceito de bondade, para termos uma idéia bastante
clara do conceito. O mais importante, neste caso, é consi­
derar os usos da palavra "bom", pelas pessoas que vivem
numa sociedade; pois é uma palavra comum, e seu verda­
deiro significado não é regido por nenhum conjunto muito
complexo de regras formaLs (como acontece no caso do
conceito de "infinito'', em matemática). Neste caso, os con­
textos sociais nos quais é usada a palavra, os resultados prá­
ticos de usá-la de certo modo, e as ansiedades subjacentes
a respeito de valores e ideais absolutos são, ao mesmo tempo,
complexos e importantes.
38 PENSAR COM CONCEITOS

N a prática, o procedimento mais adequado, no início,


é aplicar as técnicas na ordem indicada. Começa-se por
observar casos-modelo, contra-exemplos, casos associados,
casos lim ítrofes e, se necessário, casos inventados. Depois
de trabalhar algum tempo com essas l inhas de pensamento,
as verdadeiras normas que regem a aplicação do conceito
aparecem, razoavelmente "visíveis". Depois, então, pode-se
examinar o contexto social, a ansiedade subjacente (se hou­
ver), os resultados práticos e as conseqüências na lingua­
gem. Como vimos, nem todos estes critérios serão igualmen­
te úteis em todos os casos, mas sempre valerá a pena aplicar
todo o procedimento e ver se a técnica pode, de fato, levar
a alguma conclusão úti l. Com um bom tempo de prática,
adquire-se uma certa sensibilidade para os conceitos, o que
nos aj uda a fazer o melhor uso das técnicas pertinentes.

e) A rmadilhas na linguagem

É sabido que, ao debater, quando lemos, quando escre­


vemos ou ao fazer qualquer tipo de declaração, nós nos cons­
cientizamos de certas armadilhas no uso da linguagem.
Algumas das armadilhas mais óbvias são de conhecimento
geral e podem ser classificadas sob o título abrangente de
"pensar com clareza": como evitar sofismas, como reco­
nhecer preconceitos, dentre outras. Para nossos objetivos,
no entanto, é mais importante chamar a atenção para algu­
mas armadilhas mais sutis.
Caímos nestas armadilhas por uma razão geral: porque
somos dominados e fascinados pela l inguagem. Em vez de
usarmos a l inguagem, nós somos, num sentido muito rea1,
usados por ela. Permitimos que as palavras conduzam nosso
pensamento, em vez de nós mesmos o conduzinnos, de modo
crítico e consciente.
A A TIVIDA DE DA ilNIÍl/SE 39

Exatamente do mesmo modo como a psicanálise visa


a nos liberar da dominação ou do fasc ínio que nossas pró­
prias emoções e sentimentos exercem sobre nós, e dos quais
somos inconscientes, assim também a análise de conceitos
nos ensina a evitar as armadilh as da li nguagem - que só são
tão perigosas porque não são conscientes.

( l ) Crença em objetos abstratos


Essa é uma armadilha primária, mas muito difícil ele
evitar. Parece estar emaizada no nosso modo de pensar e,
portanto, na nossa língua. Temos a tendência a pensar como
se os substantivos abstratos - especialmente aqueles que
estão associados a sentimentos fortes, como a "j ustiça'', o
"amor", a "verdade" etc. - fossem nomes de objetos abstra­
tos ou ideais; como se em algum lugar existissem, no céu,
se não na terra, coisas chamadas "justiça", "amor" e "ver­
dade". A partir daí, passamos a acreditar que a análise de
conceitos, em vez de ser o que descrevemos, é, realmen­
te, algum tipo de caça ao tesouro na qual procuramos en­
contrar algum vis lumbre desses objetos abstratos. E nos fla­
gramos falando como se "O que é a justiça?" fosse urna
pergunta como "Qual é a capital do Japão?" - e m vez de
ser um pedido inconsciente de que se analise o conceito
de justiça. A maioria de nós (e aqui excluo certos filóso­
fos) não se sente tentada a dizer que há uma coisa abstra­
ta chamada "triângulo", "simetria" ou "cor vermelha"; mas,
especialmente no que diz respeito a conceitos morais,
cedemos muito facilmente à mesma tentação. U m a regra
prática boa, embora bastante restritiva, pelo menos quan­
do se está começando, é usar o menor número possível de
substantivos abstratos: examinar os usos das palavras "jus­
to", "verdadeiro" etc. em vez de procurar pela "justiça"
ou pela "verdade". A crença em objetos abstratos faz parte
de wna tentação universal de tratar as palavras como coisas,
40 PENSAI< COM CONCJ::ITOS

em vez de encará-las simplesmente como signos ou símbo­


los convencionais (que é o que são).

( 2 ) Conjúsão entre.fato e valor


Já observamos (item 1 , página 23) que existe o que se
pode chamar de perguntas "mistas": ou seja, perguntas que
exigem tanto uma anál ise conceituai quanto um juízo de
valor, corno "Será que as pessoas internadas em instituições
psiqu iátricas devem ser punidas?". Mas, assim como per­
guntas e enunciados, também, no mesmo sentido, há pala­
vras "mistas". Algmnas palavras ("bom", "deveria", "certo"),
em certos casos, podem ser apenas expressão de valor, com
a única fu nção de aprovar, condenar, elogiar, culpar etc.
Outras palavras ("honestidade", "roubo", "nobre", "justo")
transmitem as duas coisas - um sentido concreto e urna
implicação de valor. E ainda há outras palavras ("natural",
"normal", "maduro") em que um dos sentidos tem só um
significado concreto, e outro sentido, da mesma palavra,
tem também implicação de valor. Assim, "bom" significa
"a ser aprovado" ou "elogiável"; "roubo" significa "tomar
ilegalmente bem que pertença a outro mais a implicação de
que a prática do roubo é condenável"; e "normal" significa
"o que a maioria faz" ou "o que a maioria faz mais a implica­
ção de o que a maioria faz merece aprovação". É facílimo
inserir inconscientemente uma implicação de valor num enun­
ciado. E, embora os juízos de valor, se forem necessários,
sejam perfeitamente aceitáveis, é preciso que saibamos cla­
ramente o ponto exato em que os introduzimos no enunciado.

( 3 ) Implicações ocultas
Algumas palavras são círct1los viciosos muito sutis. Em
outras palavras, carregam implicações que não podem ser acei­
tas se quisermos acertar a resposta da pergunta. Assim, a per­
gunta "Se a natureza é bem organizada, Deus não tem de
1 ATIVIDADE DA ANÁLISE 41

existir?" só pode ser respondida de modo adequado se,


antes de responder, percebermos que a palavra "organizada",
como as palavras "pl anejada" e "proj etada", normalmente
implica a existência de uma pessoa "que organizou", "que
planejou" ou "que projetou". É claro que se pode falar, sem
precisão mas ainda corretamente, que algo é bem organiza­
do, bem planejado ou bem projetado, sem considerar implí­
cita alguma pessoa. É possível que, ao nos assombrarmos
com as maravilhas da natmeza, estej amos concordando que
a natureza seja "bem organizada'', neste sentido. Não faz
muita diferença o sentido que adotemos: é evidente que no
primeiro sentido conclui-se necessariamente pela existência
de alguém "que organizou" (e que você pode chamar de
Deus, se quiser), porque a existência deste "alguém" é parte
de um dos significados da palavra. Mas, neste caso, queremos
saber se a natureza é mesmo bem organizada nesse sentido,
ou seja, se temos de pressupor a existência de Deus. O que
mostra que não ganhamos nada, não saímos do mesmo l ugar.

( 4) Tautologia
Ao defender suas opiniões, as pessoas com freqüência
tentam tornar mais seguro o qLLe dizem, reduzindo suas sen­
tenças a tautologias, isto é, reduzindo-as a sentenças que
são necessariamente verdadejras porque quem as emite
as define como verdadeiras. Imaginemos que ternos de res­
ponder à pergunta "Há vi lões em todas as tragédias de
Shakespeare?". Poderíamos começar pensando em lago, de
Otelo; em Edmund, de Rei Lear, dentre outros, e formar a
opinião de que a resposta correta é "sim". Se alguém dis­
ser, então, "Ah, mas ... e Júlio César, ou Antônio e Cleópatra?",
poderemos nos sentir tentados a salvaguardar nossa opinião,
tornando-a tautológica. Há dois modos de fazer isto. Pode­
remos dizer: "Ora, essas não são tragédias de verdade"; ou,
então: "Bem, Marco Antônio em Jú/io César e Cleópatra em
42 PENSAR COM CONCEITOS

Antônio e Cleópatra, no fundo, são vilões". Neste caso, te­


ríamos outra base para as nossas afirmações - outros crité­
rios para excluir as duas peças do conceito de "tragédia" ou
para incluir as duas personagens no conceito de "vilão". Mas
(pelo menos nesse caso) é dificil acreditar que as coisas
sejam mesmo como parecem: se há tragédia neste mundo . . .

é Júlio César! Cleópatra e Marco Antônio não são vilões


no sentido em que o são lago e Edmund. Falamos, muito
provavelmente, só porque queríamos proteger nossa opinião.
Mas este tipo de reação não faz sentido, já que tudo o que
estamos dizendo, de fato, é "Para mim, só há tragédia se
houver vilão" ou então "Se eu disser que uma peça é tragé­
dia, tenho de insistir que haja nela pelo menos um vilão".
É trapaça. Mas, mais importante, é uma trapaça que não
interessa a ninguém.
É muito fácil responder a perguntas, do jeito que qui­
sermos, se formos os "donos" das palavras e lhes atribuir­
mos os s ignificados que nos derem "na telha".

( 5 ) Extensão do significado
Não há leis contra ampliar o significado normal das
palavras, só é perigoso. Mas nós, mais uma vez, somos ten­
tados a fazê-lo para "proteger" algum de nossos pontos de
vista específicos. Ampliar o sentido das palavras, porém,
vira risco de vida quando ampliamos tanto o significado de
uma palavra que ela deixa de ler qualquer utilidade. Por exem­
plo, suponhamos que alguém nos pergunte "Será que todos
os romances têm uma mensagem política?". Há, pelo me­
nos, três modos de responder. Talvez o mais racional (i) seja
manter os pés no chão e reconhecer que, norn1almente, só
usamos a palavra "político" para alguns poucos romru1ces:
entre outros, Admiravel m·undo novo de Huxley, 1 984 e A
revolução dos bichos, de OrweJI, por exemplo. Mas podería­
mos optar por (ii) ampliar o significado de "político" ou,
1 IT!VID!IDE DA ANÁLISE 43

pelo menos, da expressão "ter uma mensagem política", para


obter uma lista mais longa de romances do que em (i).
Assim, poderíamos incluir The Masters [Os mestres] de
C. P. Snow, porque, ao descrever a eleição do diretor de uma
!acuidade, ele nos faz compreender profundamente os mé­
todos "políticos" (num sentido obviamente mais amplo ele
"político"). E também poderíamos dizer que um romance
com personagens do alto empresariado, que descreva a imo­
ralidade, a ganância etc., tem uma mensagem anticap italis­
ta e também é, nesse sentido, w11 romance "político".
Mas se dissermos (iii) que os romances de Jane Austen,
P G . Wodehouse e Iris Murdoch, além dos contos de Hans
Andersen, A. A. Milne e Lewis Carrol!, têm mensagem po­
l ítica, o uso da palavra "político" foi tão ampliado que, na
prática, a palavra já não fu nciona porque perdeu todo o sig­
nificado.

( 6) Pensamento mágico
Finalmente, há uma quantidade enorme de erros, ainda
não mencionados nos parágrafos anteriores, que, de tantos que
são, não podem ser todos l istados, e que (como já foi dito)
cometemos porque, basicamente, somos dominados ou fas­
cinados por uma forma de linguagem. Quando cometemos
estes erros, estamos, quase sempre (em geral, inconscien­
temente), pensando de modo infanti l ou primitivo, como se
acreditássemos mais em mágica do que nas coisas que obser­
vamos ou aprendemos pela razão. A crença em objetos abs­
tratos (mencionada em ( 1 ) ) é só um exemplo deste tipo de
erro, mas h á outros. Por exemplo, na sentença "a gravida­
de fez a pedra cair", o perigo não está só na possibilidade
de acreditarmos numa coisa ou força abstrata chamada
"gravidade" (quando o que observamos, de fato, são vários
objetos qu.e têm comportamento regular); o perigo está tam­
bém na possibilidade de levarmos muito a sério a palavra
44 PENSAR COM CONCEITOS

"fez". A pedra não foi forçada a cair. Ela simplesmente caiu,


como acontece com pedras e outros objetos que estejam
próx imos de um corpo que contenha enorme quantidade de
matélia. Quando dizemos que os objetos "obedecem'' às "leis"
da natureza, estamos falando de um processo mágico: fala­
mos como se a natureza e os objetos naturais fossem pes­
soas, ou como se dentro dos objetos vivessem homenzinhos
que tivessem vontade própria. Essa tendência à magia, pro­
fundamente arraigada no nosso pensamento, causou proble­
mas intermináveis, nos primórdios da ciência. E ainda nos
atrapalha hoje, quando temos de enfrentar problemas liga­
dos às pessoas - dentre outros, problemas de moralidade e
de psicologia.

d) Estilo

O est i l o no qual expressamos nossas análises de con­


ceitos, ou nossas respostas a perguntas sobre conceitos, é
de enorme importância. No caso destas perguntas, não se
trata apenas de saber qual estilo de l i n guagem oral o u es­
crita é mais agradável; trata-se, sim, de encontrar o estilo
que melhor combine com o assunto. E nesta atividade, mais
do que em qualquer outra, quem errar na escolha do estilo
prej udica o próprio desempenho. É totalmente impossível,
por exemplo, pôr em palavras urna análise clara e sensata
de um conceito e, ao mesmo tempo, falar em estilo grandi­
Joqüente, rebuscado ou espirituoso.
Por outro lado, é importante - mesmo que não se est�ja
em prova - escrever a análise, do modo mais coerente e de­
finitivo que seja possível. Enquanto a análise não estiver es­
crita - ou, pelo menos, enquanto não nos sentirmos plenamen­
te preparados para escrevê-la - não perceberemos os pon­
tos fracos e as lacunas. Pensamentos e idéias, que parecem
l 1/ TIVllJADE DA ANÁLISE 45

perfeitamente lúcidos e completos na cabeça, mostram-se


rnnfusos e fragmentados quando se pensa em escrevê-los.
O processo de expressar nossos pensamentos - mais uma
vez, sobretudo nesta atividade - auxilia os próprios pensa­
mentos e serve como uma espécie de filtTo ou de regulador.
Por isso, é utilíssimo captar o tipo de estilo, o modo de ex­
pressão que se adapta melhor à análise de conceitos, se não
por outras razões, pelo menos porque, com a imitação e a
prática do estilo adequado, a análise torna-se mais fácil e
mais eficaz.
No que concerne às qualidades literárias do estilo, há
pouco o que dizer. O único critério importante é que o estilo
tem de ser (ou parecer) de profissional. Isto, é claro, impli­
ca wn estilo claro e direto, sem sinuosidades, nem obscw·o
nem descabido; implica ser econômico nas palavras, mas
nunca avarento a ponto de o leitor ficar em dúvida quanto
aos significados. E, naturalmente, implica tirar proveito dos
parágrafos, da pontuação e de outros recursos. Este aspec­
to é particularmente importante quando se redige uma aná­
lise conceitua], porque os recursos gramaticais, como a pon­
tuação, existem para garantir a clareza lógica dos textos; e
a c lareza é a razão de ser de nossa atividade. Evite as fra­
ses retóricas, as frases "de efeito", os ditos espirituosos, as
citações (a menos que sejam realmente pertinentes e eluci­
dativas) e outros recursos literários semelhantes. Mas use,
sempre que for o caso, todo e qualquer recurso que aj ude a
esclarecer o conteúdo lógico das sentenças. As analogias, por
exemplo, quase sempre ajudam a esclarecer conteúdos lógi­
cos específicos. Por outro lado, a linguagem altissonante é pe­
rigosa ("frases floreadas", metáforas poéticas e semelhantes).
Talvez a qualidade mais importante à qual deveríamos
aspirar ao escrever sobre conceitos, mesmo informalmente,
fosse a honestidade. Quem deliberadamente e em beneficio
próprio procura obscurecer uma idéia, ou quem se conten-
46 PENSAR COM CONCt:JTOS

ta com uma conclusão que sabe muito bem não ser derivada
do que foi dito, está condenado desde o início. Mas há for­
mas involuntárias e mais sutis de desonestidade, que são mais
difíceis de detectar e corrigir.
Deve-se sempre perguntar, antes de começar a escre­
ver, ou ao acabar de compor um texto: "É isto o que eu
quero dizer?", "É isto mesmo que eu quero dizer?" ou "O
que eu disse é mesmo verdade?" Como a análise é essen­
cialmente uma atividade dialética, nenhuma sentença pode
ser perfeita e completa; e, nesse sentido, nenhuma senten­
ça chega a ser totalmente satisfatória. Mas podemos, aos
poucos, ir ganhando controle cada vez maior sobre a verdade,
mediante um esforço contínuo para nos conscientizarmos
da imperfeição de nossas frases - dos pontos que têm de ser
destacados, das exceções que têm de ser marcadas, dos ar­
gumentos que pode1iam desestabilizá-las totalmente e assim
por diante.
Este, provavelmente, é o verdadeiro motivo pelo qual
se devem evitar frases empoladas ou tortuosas: porque, nes­
tes casos, a linguagem "esconde" o ponto que o autor quer
provar - para o leitor e para o própri o autor.
O mérito de um estilo direto e c laro não é só a facili­
dade de leitura; é, principalmente, o fato de que facilita a
detecção de erros e, portanto, a correção. Há aqui uma forte
analogia entre o comportamento para com outras pessoas e
o modo de escrever. Se somos honestos e diretos ao tra­
tar com os outros, conquistamos não só a vantagem de os
outros saberem o que pensamos deles mas, também, a van­
tagem maior de sabermos o que pensamos deles. Ou seja,
conhecemos melhor os nossos verdadeiros sentimentos,
porque não os encobrimos com atitudes teatrais, artificiais
e desonestas ou com o esforço para parecermos muito inte-
1 igentes. Ser honesto significa ser direto, c l aro, franco e, ao
mesmo tempo, ser sempre consciente do que se faz ou do
1 I f'IV!DADE DA ANÁLISE

q11c se diz - sempre tentando harmonizar nossas intnçes


e sentimentos, de um lado e nossos atos ou palavras, dmrn.
i': um processo difícil, mas imensamente gratificant1.
Nas próximas subdivisões deste l ivro, darei exe1)J)S
de análise conceitua!: exemplos de como criticar passges
escritas por outras pessoas; do diá logo interior e infrml
que cada um de nós tem de manter consigo·mesmo, n1 ín1-
mo; algumas respostas-"modelo" para perguntas sobncor
ccitos; algumas observações a respeito da lógica de ertG
conceitos interessantes, e outras coisas.
Quero salientar com muita ênfase que o leitor nãaie�
considerar "ideal" nem o estilo nem o conteúdo desse te:­
tos, em nenhum sentido. O mais importante não é qmvoc
concorde ou discorde do que é dito; nem importa que < re­
postas-"modelo" sejam modelo ou não. (Em pelo rnens m

sentido, é óbvio que elas não podem ser "modelo", j ql!


não há limites para o que se pode dizer acerca da rnion
dos conceitos, alguns dos quais se situam na raiz de pDbl­
mas filosóficos enormemente complexos.)
Se o leitor discordar das minhas idéias e fundan�nt�
seu desacordo com provas próprias; se descobrir superici;­
lidades e falhas lógicas; ou mesmo se considerar que á e­

ros sistemáticos e radicais, tanto melhor. O que realiem


importa é o método geral de abordagem.
N a análise de conceitos não há "resposta perfeii"; 1
que há é uma série de esboços lógicos mais bem-suceidG
ou menos bem-sucedidos. Ter isto em mente é duplaren�
útil: impede que você se ponha a batalhar, arrogantemnt,
em busca do impossível; e, além disto, talvez o estimlet
criar seu próprio esboço lógico e a oferecer sua valiosccm
tribuição. Um filósofo q_ue ache ql}e não tenha absolutaiei­
te mais nada a dizer a respeito de um tema, ou desesern
antes da hora ou é preguiçoso. E um filósofo que ac!dÍ!
ter dado a última palavra sobre qualquer coisa, tem deec<·
meçar a pensar.
48 PENSAR COl'vf CONCEITOS

3. Observações complementares

Há dois tópicos relevantes para este capítulo e para


todo o livro; e ambos são bastante complicados. Mas, como
creio que não sejam essenciais para compreender o livro,
sugiro que o leitor os ignore agora e voJte a eles mais tarde.
Inseri-os aqui porque são especialmente relevantes para este
capítulo.

a) Um titulo para as técnicas

Pode ser útil ao leitor que as técnicas que estamos exa­


minando tenham nome; e pensar sobre que nome lhes dar
pode nos ajudar a entender as próprias técnicas. E m outras
palavras: embora não seja fácil "batizar'' nossas técnicas,
podemos tirar alguma vantagem das dificuldades e perce­
ber alguns aspectos em que nossas técnicas se assemelham
a "matérias", e outros em que são diferentes delas.
Chamar as técnicas de "pensamento lógico" seria ins­
trutivo por um lado, mas enganoso por outro. Claro que
as técnicas têm a ver com o pensamento - como a maioria
das técnicas mentais; e claro que têm a ver com pensar "com
lógica". Mas o conceito de lógica ou de logicismo é um da­
queles conceitos de que falamos acima - um conceito enig­
mático, cuja geografia ainda não foi mapeada com precisão.
Por exemplo, alguém poderia supor que "com lógica"
tenha algo a ver com o que geralmente chamamos de "lógi­
ca formal". A lógica formal, sim, é uma "matéria", defini­
da originalmente por Aristóteles, que estuda as normas e
procedimentos dos argumentos formais, do tipo "Todos os
homens são mortais; Sócrates é homem; logo, Sócrates é
mortal". O assunto é importante, mas não é o nosso assun­
to. Nossas técnicas são muito mais frouxas, mais informais,
.L A TTV!DADE DA !IN/ÍUSE 49

menos precisas - lógica informal até que seria um bom tí­


tulo, mas, à primeira vista, não é muito compreensível.
Outras pessoas, ante a expressão "pensamento lógico",
talvez entendam que se trate ele outro modo de dizer "pen­
samento direto" ou "pensamento claro". E aí está um tema
sobre o qual se escrevem livros, embora talvez não seja uma
"matéria" tão claramente definida quanto a lógica formal.
Nestes l ivros, recomenda-se que se evitem os preconceitos,
que não se perca a caJma, que se procurem as falhas de to­
dos os argumentos, que se verifiquem os fatos, que não se
desvie a atenção do assunto etc. Mas traduzir "pensamento
lógico" por "pensamento claro" poderia mascarar o fato de
que "lógico" significa muito mais do que apenas "razoável"
ou "claro''. Como já vimos, h á técnicas novas e específicas
para trabalhar com as palavras, os significados, a verifica­
ção, os conceitos e os critérios - técnicas que é razoável
chamar de "técnicas de lógica" em vez de simplesmente de
"técnicas de raciocínio". Portanto, nem "lógica formal", nem
"claro" nos dão idéia satisfatória do que chamamos de "pen­
samento lógico".
Também p oderíamos nos sentir tentados a descrever o
que nossas técnicas fazem igual ao que, na essência, faz a
filosofia. Mas o conceito de filosofia também é enigmáti­
co e, atualmente, tem sido objeto de mui.to questionamen­
to. E seria enganoso, neste contexto, porque abrange muito
mais do que nossas técnicas. Para citar apenas uma ativida­
de, a filosofia inclui conselhos gerais sobre como viver a
vida (como os que um "guia, filósofo e amigo" nos pode­
ria dar); e isto não está incluído na nossa tarefa. Sem dúvi­
da, nossas técnicas são muito usadas, e com muita eficácia,
por filósofos modernos, especialmente na T nglaterra e nos
Estados Unidos. Temos boas razões para acreditar que elas
sejam importantes para a filosofia, em todos os sentidos da
palavra. E também lemos boas razões para crer que todos
50 PENSA R COM CONCEITOS

os que queiram estudar filosofia devam começar por estu­


dar nossas técnicas. Mas descrever as técnicas, resumida­
mente, como "filosofia elementar" seria querer ganhar u m
injusto monopólio d o conceito de filosofia.
Poderíamos examinar e rejeitar muitos outros nomes e
títulos. O que dizer de "Análise de conceitos gerais"? Seria
uma descrição bastante j usta; mas, como m uitas descrições
toleravelmente exatas, esta também dá poucas i ndicações
quanto ao seu objeto: para ser exata, acaba sendo incom­
preensível. Ou "Como usar as palavras"? Mais uma vez, o
título descreve razoavelmente o assunto ... mas só em um
sentido. O mesmo título caberia, com igual acerto, a um
livro de gramática da língua inglesa; a u m livro dedicado a
ampliar o vocabulário dos alunos; e, ainda, a um livro que
ensinasse a debater e falar em público. Nem "O significado
das palavras" serviria: parece título de livro sobre afixos e
sufixos em l í ngua estrangeira e o processo gramatical de
derivação de palavras - um livro que ensinaria, por exem­
plo, que kaiser, xá e czar são, todas elas, palavras deriva­
das do latim Caesar (César).
A verdade é que não há descrição destas técnicas que
seja, ao mesmo tempo, sucinta, precisa e compreensível.
Ou se escolhe uma expressão precisa, mas incompreensí­
vel para os leigos (análise Lógica ou análise de conceitos ge­
rais), ou uma expressão aparentemente compreensível mas
enganosa (pensar com clareza ou o uso das palavras).
A confusão existe, em parte, porque a prática das nos­
sas técnicas não é muito difundida, pelo menos no plano
consciente, embora haja quem diga que, mesmo no uso do
dia-a-dia, os conceitos ocultam muitas tensões inconscien­
tes. Há vários motivos: isto acontece, em parte, porque a
aplicação das técnicas (ou, pelo menos, SLta aplicação cons­
ciente) é bastante recente; em parte porque as pessoas que
se utilizam delas - professores e alunos de algumas wüver-
1 . ITll'WADE DA ANIÍL!SE 51

sidades, nas duas o u três últimas décadas - não se interes­


saram muito em difundi-las; e em parte porque muitos re­
sistem, em termos psicológicos, a aprender as técnicas e a
levá-Ias a sério.
Estas conclusões podem parecer pouco úteís e desesti­
mu l an tes , mas esp er o que sirva m pelo menos como adver­
tência para que ninguém tente incorporar as técnicas a outras
"matérias" com as quais esteja ma i s fami l iarizado; fingir,
por exemplo, que se trata "simplesmente de definir os ter­
mos usados" ou "apenas da lucidez de pensamento''. Há
uma eterna tentação de agir assim, mas é preciso resistir.
Corno a maioria das técnicas que servem realmente para al­
gum fim, as nossas, no fundo, têm de ser vistas como elas
mesmas; assim como um jogo que pode ser semelhante a
outro, mas que nunca será corretamente jogado a menos que
sej a aceito com todas as suas características próprias e por
seus próprios méritos.
As técnicas das quais estamos tratando derivam, con­
tudo, sem dúvida, da filosofia que vem sendo praticada em
Oxford, Cambridge e outros locais na Inglaterra e nos Es­
tados Unidos, há cerca de trinta anos. Há quem as descreva
corretamente (embora, mais uma vez, de modo i ncompreen­
sível para os leigos) como filosofia lingüística ou análise
lingüística. As técnicas discutidas neste li vro podem ser
tomadas como versões emprestadas, diluídas, desenvolvidas,
avan ça da s simplificadas, excessivamente simplificadas,
, ou

o que se queira dizer, quando comparadas com as técnicas


da filosofia lingüística, o que, na prática, não faz diferen­
ça. Mas a informação pode ser útil àqueles que desejarem
situar nossas técnicas em algum tipo de cenário lógico ou
histórico. A atividade que mais se aproxima da nossa é a fi­
losofia lingüística. Para quem se interessar por aprofundar
a questão, talvez sejam úteis os comentários do capitulo
final deste livro.
52 PENSA R COM CONCEITOS

b) O que é um conceito?

Neste capítulo, falei como se as questões de conceito e


as questões de significado fossem idênticas. Afirmei que a
pergunta "Baleia é peixe?" é uma pergunta sobre o conceito
de peixe e disse também que se trata de uma pergunta sobre
o significado da palavra "peixe''. Também comentei, quase
indiscriminadamente, a "nossa idéia de peixe", como usar
a palavra "peixe", dentre outras idéias. Estava, de fato, mais
preocupado em ser inteligível do que em ser preciso. E a
distinção que mais me interessava esclarecer era a distinção
entre pergw1tas sobre conceitos e sobre significados, de um
lado, e as demais perguntas de outro (sobre fatos, sobre opi­
nião moral etc.).
No processo, porém, tive, inevitavelmente, de passar por
cima da distinção entre conceitos e significado. E, como isto
pode ter preocupado alguns leitores, sinto-me no dever de w­
mentar a diferença que há entre aquelas palavras. Tudo quan­
to cu diga, contudo, tem de ser tomado como tentativa: aqui
nos defrontamos com problemas filosóficos muito dificeis.
Creio que a primeira coisa a dizer é que, assim como
não há - rigorosamente falando - nada que se possa chamar
de "o" significado de uma palavra, tampouco existe algo
que se possa chamar de "o" conceito de um objeto. Quando
falamos - numa espécie de l inguagem taquigráfica - sobre
"o" significado de uma palavra, nos referimos aos elemen­
tos significativos que aparecem nos numerosos e variados
usos da palavra e que a tornam compreensível; a uma "área
do mapa" sobre a qual concordam todos os usuários da pa­
lavra. Do mesmo modo, quando falamos sobre "o" con­
ceito de um objeto, nos referimos, quase sempre, abrevia­
damente, a todos os d iferentes conceitos daquele objeto
que os indivíduos tenham, na medida em que todos coin­
cidam. Portanto, podemos falar sobre "o" conceito de jus-
1 ITIVJDADE DA ANÁLISE 53

t il(a entre os romanos da antigüidade; e também podemos


folar do seu (do leitor) conceito de justiça, do meu concei­
to, ou do conceito de justiça de Cícero, tão freqüentemente
como dizemos: "A idéia que ele tem da justiça é x". Em
nenhum caso, devemos imaginar que "o" conceito de um
objeto seja uma entidade separada e autônoma.1
Agora, pensemos um pouco sobre como chegamos a
fom1ar conceitos. Os seres humanos, desde muito cedo, apren­
dem a agrupar certas características da sua experiência e a
usar certas palavras para descrever tais grupos. Tendo pri­
meiro classificado sua experiência sensorial em séries de
objetos ou entidades separadas, a criança começa a discri­
minar entre um tipo de objeto e outro. Ela pode, por exem­
plo, querer formar um grupo com todos os objetos grandes
de tampo plano. Assim que faz isto, a criança começa a for­
mar um conceito. Neste caso, seu conceüo pode ser apro­
ximadamente semelhante ao conceito que um adulto tem
dos objetos que chamamos de "mesa". N o entanto, a crian­
ça pode cometer erros. Se simplesmente agrupar tudo que
tiver tampo plano, acabará incluindo no grupo também o
que chamamos pianos e bandejas. Há dois modos pelos
quais é possível corrigir os erros: ( 1 ) a criança pode acabar
percebendo que só alguns dos objetos de tarnpo plano são
usados para servir a l imentos e reduzirá os limites do con­
ceito, de acordo com sua observação; ou ( 2 ) a criança pode
aprender, com os adultos, o uso da palavra "mesa". O apren­
dizado da palavra "mesa" também pode acontecer de dois
modos: ( 1 ) a criança aprende por tentativa e erro; aponta

J . Wittgenstein compara a noção de semelhanças familiares. Membros di­


ferentes da mesma família podem ser parecidos, a ponto de se poder falar racio­
nal mente de "uma semelhança familiar", mesmo que não haja. 1ia família, um
traço específico em comum. � claro que toda a família pode ter um "nariz de
Habsburg", mas quase sempre há apena s um ar geral de parecença - nada que se
possa indicar especificamente.
54 PENSAR COM CONCEITOS

para o piano e diz "mesa"; algum adulto corrige: "Não. Isso


aí não é mesa. 'Mesa' é isto aqui" (e aponta para uma mesa).
Ou (2), se a criança já sabe falar e entende bem o que ouve,
algum adulto pode usar outras palavras para explicar-lhe o
que é uma mesa. Uma expl icação possível seria: "Mesa é o
lugar onde a gente come." Assim também, alguém que não
soubesse o que é Lun tigre, que não tivesse formado nenhum
conceito de tigre, teria dois modos de aprender: alguém o
levaria ao zoológico, apontaria cada animal na jaula dos
tigres e diria: "Este é um tigre, e aquele e mais aquele" em
cada uma das demais jaulas do zoológico. Esse alguém tam­
bém diria: "Mas aquele animal não é tigre, nem aquele,
nem aquele outro." Este seria um método muito trabalhoso
e incerto; e se lhe dissessem que não eram tigres alguns ani­
mais que ele facilmente poderia confundir com tigres Ua­
guares, leopardos, gatos malhados etc.), é possível que, no
fim da lição, já tivesse urna boa idéia do que é um tigre. O
outro método só poderia ser usado se a pessoa tivesse sufi­
ciente compreensão das palavras para entender um enuncia­
do como: "Os tigres são quadrúpedes selvagens de quatro
patas, muito parecidos com o gato doméstico, mas maiores,
com listras e caudas longas."
Já se pode começar a ver que conceito e significado
estão int imamente vinculados. Freqüentemente, o processo
de formar um conceito de um objeto e o processo de apren­
der o significado de uma palavra que descreve o objeto
parecem ser os mesmos. Na realidade, não são. É perfeita­
mente possível ter um conceito de algo sem ter palavra que
o descreva - mesmo uma palavra inventada pela pessoa que
tenha o conceito. Posso ter uma idéia muito clara do tipo de
cachorro que quero comprar, do tipo de garota que consi­
dero atraente, ou do tipo de atmosfera que considero típi­
ca de histórias de fantasmas, sem ter uma palavra específica
que designe estes conceitos. E u poderia me esforçar ao máxi-
1 ITI 11/DADE DA AN;Í ust: 55

1110 para me comunicar; ditia "Quero um cachorro de homem",


"Gosto de garotas animadas" ou "Os contos de fantasmas
''
de M. R. James nos assustam quando menos esperamos ,
mas nenhuma destas palavras e expressões chegaria sequer
perto de esgotar todos os traços que eu teria de descrever.
É possível, até, que não h aj a palavra que corresponda a to­
dos os traços, embora, sem dúvida, em princípio, sempre se
possa inventar palavras e ensiná-las a outras pessoas.
Isto também mostra que se pode ter um conceito sem
ter imagem ou quadro mental de alguma coisa. Para muitas
pessoas, tudo parece mais fácil se elas conseguem formar
uma imagem clara; e é possível que, quando c1ianças, alguns
de nós tenhamos começado a formar conceitos a partir da
capacidade de visualizar objetos, mesmo no caso de obje­
tos que não estivessem diretamente frente aos nossos olhos.
Mas, embora eu possa visualizar (e talvez visualize) meu
tipo especial de cachorro ou de garota , é improvável que
visualize também a tal qualidade especial que percebo em
certas histórias de fantasmas. E mesmo assim, apesar de tudo,
é possível que a tal qualidade esteja, em certo sentido, mui­
to clara na minha cabeça. Eu poderia ter uma alta sensibi­
l i dade àquela qualidade e muita certeza quanto a uma his­
tória específica ter ou não aquela qualidade. Na realidade,
é evidente que conceitos de j ustiça, assim como outros con­
ceitos abstratos, não têm de ser associados a qualquer tipo
de imagem. Quando penso em j ustiça, ou quando alguém
pronuncia a palavra "justiça" dentro do meu campo auditi­
vo, posso, de fato, criar uma imagem - posso, por exemplo,
visualizar a estátua que há em frente do Tribunal de Justiça,
com uma espada numa das mãos e uma balança na outra.
Outra pessoa talvez visualizasse um juiz de peruca branca;
outra , um policial; e assim por diante. Todas estas, porém,
são associações acidentais, embora às vezes aconteça de nos
agarrarmos a elas a ponto de prejudicar a clareza do nosso
56 PENSAR COM CONCEITOS

pensamento e d o que dizemos. É possível, por exemplo, que


uma criança pequena derive o seu conceito de árvore exclu­
sivamente de um único imenso carvalho do quintal da sua
casa. E, se ela mantiver por muito tempo uma idéia tão es­
treita, poderemos dizer que seu conceito de árvore é muito
l imitado. E se ela usar a paJavra "árvore" para se referir
exclusivamente ao seu carvalho, d iremos que ela, no fundo,
não entendeu o signi ficado da palavra "árvore". No entan­
to, o simples fato de ela visualizar a imagem daquela árvore
especial enquanto usava :a palavra po deria ser puramente
acidental; não comprovaria nem a l i m itaçã o do seu concei­
to de árvore nem que ela tivesse um conceito devidamente
formado, como outras pessoas.
Como já observamos, o uso que fazemos de uma pala­
vra e a compreensão que temos dela estão intimamente rela­
cionados ao conceito que temos de um objeto. Formamos
conceitos à medida que aprendemos os usos das palavras,
e pode-se ver quais os conceitos que temos formados, ao

examinar o que entendemos por determinadas palavras. Em


outros termos: o uso e o entendimento da linguagem ser­
vem, ao mesmo tempo, como guias para a formação de con­
ceitos e como testes de conceitos já formados. Portanto,
poderíamos dizer, sem erro, que os limites lógicos de um
conceito podem ser iguais aos limites da faixa de significação
de uma palavra determinada. Por exemplo, os limites do
conceito que um homem tem da justiça são iguais aos limi­
tes dentro dos quais ele usa e compreende a palavra "justi­
ça". O que não quer dizer que o conceito e o significado
sejam idênticos, mas, sim, que são, por assim dizer, parale­
los um ao outro, ou que cobrem a mesma área lógica. En­
quanto estivermos interessados apenas na abrangência lógi­
ca de um conceito, o melhor guia possível é a abrangência
lógica da palavra à qual o conceito esteja normalmente as­
sociado.
1 l i / / / / J . l f )JUJ.4 ANÁLISE 57

A partir de agora, portanto, quando falarmos, neste li­


' 1 1 1. dü expressões como "o conceito de justiça", para depois
p.1ssm-mos a examinar diferentes usos da palavra "j ustiça",
p1 poderemos perceber que procurar uma justi ficativa para os
11s1ls da palavra "justiça" é, de fato, analisar o conceito de
1 1 1sliça. Por um lado, hã uma série de situações na vida real
( 1 1 H.: 1 1 i nos que são castigados, juízes que proferem senten­
�·as e assim por diante); por outro lado, há uma palavra -
". iustiça" - que é usada de vários modos. Recorrendo a estas
duas fontes, cada um de nós forma um conceito de justiça;
analisar esse conceito consiste em apresentar a nós mesmos
1 1 sos diferentes da palavra, em diferentes contextos da vida
real. Assim, de certo modo, revivemos o momento em que
formamos o conceito: apresentamos a nós mesmos situa­
ções reais, repetidamente, pela imaginação, e refletimos
sobre a adequação do uso da palavra "j ustiça" em relação
àquelas situações.
Finalmente, se quisermos responder à pergunta "O que
é um conceito?", teremos de admitir que nossa resposta in­
clua um certo grau de arbitrariedade. O único aspecto que
nos interessa, nesse contexto, é o que poderíamos chamar de
a�pecto lógico dos conceitos - suas limitações e aplicações,
que podem ser analisadas do ponto de vista lingüístico.
É verdade, no entanto, que sempre se poderia d izer que
um conceito, como a palavra é normalmente usada em por­
tuguês, pode ser encarado seja em termos psicológicos, seja
em termos lógicos. Poderíamos, afinal de contas, estar inte­
ressados no tipo de imagens que uma pessoa tenha, se tiver
alguma; ver até que ponto suas imagens são nítidas ou se
o conceito de justiça de determinado homem é a limenta­
do com força emocional ou com força moral. Todos esses
pontos poderiam surgir razoavelmente, em resposta a uma
pergunta corno "Qual é o seu conceito de 'alemães'?". Eu,
por exemplo, poderia responder: "Louros, malvados, com
58 PENSAR COM CONCEITOS

uniformes da Gestapo e chicotes; desagradavelmente efi­


cientes e trabalhadores". Seria uma resposta perfeitamente
justa, embora de modo algum correspondesse ao uso que
faço e ao entendimento que tenho da palavra "alemães". Se­
ria possível que eu entendesse e usasse a palavra ex.atamente,
em termos lógicos, como a entendem e usam outras pessoas
que tenham menos preconceitos que eu contra os alemães.
Isto tem alguma importância para nossas finalidades, já que
muito freqüentemente as pessoas conferem seriedade lógi­
ca a conotações que são psicológicas e acidentais - exata­
mente como eu poderia permitir que o meu preconceito
conceituai influísse no uso que faço da l i nguagem quando
falo de alemães, recusando-me a sequer considerar a possi­
bilidade de que alemães agradáveis sejam ... alemães. En­
tretanto, como este livro não trata basicamente desse tipo
de preconceito conceitua!, não precisamos nos preocupar
muito com esse aspecto. Basta-nos lembrar que é difícil tra­
çar uma linha dara de demarcação entre as características
lógicas de um conceito e suas conotações psicológicas; e
podemos prossegu i r com nossa tarefa de investigar as ca­
racterísticas lógicas.
11. �-,_,'\:emplos de análise

1. Crítica de trechos escritos

Um dos me lhores modos de ganhar prática na análise


de conceitos é verificar seu bom ou mau uso no discur­
so de outras pessoas. Neste capítulo, apresentaremos alguns
trechos aos qua i s se pode aplicar o t ipo especial de crítica
conceitua] que examinamos até aqui. E vale repetir, mais
uma vez, que a crítica dos conceitos não é uma questão de
lógica formal, nem qualquer simples questão de "pensar
direito". Por um lado, só muito raramente conseguimos con­
vencer os autores, sem relutância, de um exemplo clássi­
co de argumentação capciosa do tipo encontrado em ma­
nuais de lógica. Por outro lado, não basta afirmar que tais
passagens são apenas "confusas" ou "obscuras"; que o autor
"não definiu seus termos"; ou que "tem preconceitos''. O que
acontece nessas passagens é que os conceitos são tratados
de J,Jlodo incorreto; ou, para ser mais preciso, são tratados sem
a preocupação de alcançar máxima clareza e sem conscien­
tizaçâo.
Portanto, o que é necessário é uma crítica conceitual.
E deve-se esperar que os métodos de análise examinados no
Capítulo 1 sej am também úteis aqui. Em vez de simples­
mente nos deixarmos levar por aquilo que o autor escreve,
ou em vez de rejeitar a passagem inteira, sem maior aten-
60 PENSAR COM CONCEITOS

ção, temos de mergulhar por baixo das palavras, até o modo


como os conceitos são tratados. Precisamos de suficiente
empatia com o autor para perceber exatamente o que está
acontecendo com os conceitos. Só muito raramente os auto­
res escrevem ou dizem tolices absolutas; e quase sempre há
alguma plausibi lidade no que dizem. Por outro lado, é pre­
ciso manter um nível suficiente de vigilância crítica para
reagir rapidamente, cada vez que virmos que os conceitos
estão sendo distorcidos.
Examinaremos, em primeiro lugar, duas passagens mais
longas, de diálogos: uma do século lV a.C. e a outra do sé­
culo XX; e, depois, trechos mais curtos de vários autores.
Nos dois casos, meus comentários serão lógicos, mas bas­
tante informais.

a) A "República " de Platão

Temos aqui a tradução de parte do Livro l da Repúbli­


ca. Excluí a1gW1s trechos porque apenas retardavam a discus­
são. Sócrates narra o diálogo, em primeira pessoa. Nesta pas­
sagem, portanto, "eu" significa Sócrates . Seu interlocutor,
Trasímaco, fala primeiro.
"- Escute, então - disse ele. - Eu defino a j ustiça ou o
direito como aquilo que é do interesse dos mais fortes.
- Você tem de explicar mais claramente o que quer di­
zer - respondi.
- Pois bem, você sabe que algllils estados são tiranias,
alguns democracias, alguns aristocracias? E que em cada
cidade o poder está nas mãos da classe dominante?
- Sei.
- Cada classe dominante faz leis no seu próprio inte-
resse: uma democracia faz leis democráticas; uma tirania,
leis tirânicas; e assim por diante. E, ao fazer essas leis, os
I \ /:'i\IPLOS DE ANÁLISE 6J

g�lvemantes definem como "certo" para seus súditos o que


interessa a eles, governantes. E, se alguém desrespe.ita as
leis cios governantes, será punido como "malfeitor". É o que
quero djzer quando afirmo que o "certo" é a mesma coisa
em todos os Estados, ou sej a, o interesse da classe domi­
nante estabelecida. E esta classe dominante é o elemento
mais forte do Estado. Logo, se raciocinamos corretamente,
vemos que o "certo" é sempre o mesmo: o interesse dos
mais fortes.
- E os que estão no poder nos diversos Estados são
infalíveis ou não?
- É claro que pode acontecer de cometerem erros - res­
pondeu ele.
- Portanto, quando criam leis, eles podem fazê-las
bem-feitas ou malfeitas.
- Creio que sim.
- E, se legislarem bem, farão leis que lhes interessem;
e, se legislarem mal, farão leis que não lhes interessem. É
o que entendo.
- Concordo.
- Mas os súditos têm de cumprir as leis que os gover-
nantes fizerem, pois é este o modo correto de agir.
- Isto mesmo.
- Então, de acordo com sua argLm1entação, o modo cor-
reto de agir é fazer não apenas o que interesse aos mais for­
tes, mas também o contrário.
- O que você está querendo dizer? - perguntou ele.
· - Nós não concordamos que, quando os governantes
ordenam a seus súditos que façam algo, eles às vezes erram
quanto ao seu melhor interesse? E que, mesmo assim, o
certo é o súdito fazer o que o governante ordenar?
- Creio que sim.
- Logo, você deve reconhecer que é certo fazer coisas
que não são do interesse dos governantes (que são os mais
62 PENSAR COM CONCEITOS

fortes). Isto é: quando os governantes equivocadamente de­


rem ordens que os prejudiquem, pelo que você diz, o certo
é que os súditos cump ram tais ordens. Pois decerto, meu
caro Trasímaco, conclui-se que, nessas circunstâncias, o
certo é fazer o contrário do que você afirma ser certo, posto
que os mais fracos receberam ordens para fazer o que é con­
trário ao interesse dos mais fortes.
- Uma conclusão suficientemente clara - exclamou
Polemarco.
- Sem dúvida - interrompeu C litofonte -, se aceitar­
mos sua palavra.
- N ã o se trata da minha palavra - retrucou Polemarco.
- O próprio Trasímaco admite que, às vezes, os governan-
tes dão ordens que lhes são prejudiciais e que é certo que
os súditos lhes obedeçam.
- Mas - contrapôs Clitofonte - o que Trasímaco quis
dizer com "interesse dos mais fortes" é o que os mais for­
tes acreditam que seja do seu interesse. É isto o que o súdi­
to deve fazer, e é isto o que a definição significava.
- Bem, não foi isso o que ele disse - respondeu Po­
lemarco.
- N ã o faz diferença, Polemarco - disse eu. - Se este
era o significado do que Trasímaco disse, vamos aceitá-lo.
Diga-me, Trasimaco: era este o significado do que você de­
finiu como "certo"? Que "certo" é o que parece mais inte­
ressante aos mais fortes, quer seja, quer não seja?
- C laro que não - respondeu ele. - Você acha que eu
chamaria de "mais forte" alguém que erra, j ustamente quan­
do está errando?
- Pensei - disse eu - que isto fosse o que você queria
dizer.
- Porque você discute com muita malícia, Sócrates. O
artesão ou o cientista nunca erram, nem o governante erra
enquanto governa, embora seja verdade que, na linguagem
I \'CMPLOS DEANÁLJSE 63

comum, se possa dizer que o médico e o governante erram,


como acabei de dizer agora mesmo. Para ser bem preciso,
eleve-se dizer que o governante, na medida em que for gover­
nante, não erra e, portanto, sempre promulga leis que garan­
tem o melhor para ele e que seus súditos têm de cumprir. E
assim, como eu disse no início, o 'certo' significa o inte­
resse dos mais fortes."

Comentário
(a) Trasímaco começa dizendo "Eu defino a justiça ou
o cfüeüo como . . .". Ele está propondo uma definição da pala­
vra ou, pelo menos, diz que está. Mas será que é isto o que
está fazendo? Se for, está terrivelmente equivocado. Definição
é uma palavra ou expressão lingüisticamente equivalente ao
que está sendo definido - uma tradução, por assim dizer, de
uma palavra por outras. (Assim,triângulo "figura de três
=

lados em duas dimensões"; cachorrinho "filhote de cão";


=

ou cachorrinho = "cão que ainda não cresceu". Sempre que


se pode usar uma expressão, tem-se de poder usar a outra.)
Examinemos agora a "definição" de Trasímaco. Será que
alguém poderia imaginar, a sério, que "o interesse dos mais
fortes" seja lingüisticamente equivalente a "certo"? É óbvio
que não. Para começar: se fossem expressões 1ingüistica­
mente equivalentes, não poderíamos dizer "Tal atitude é do
interesse da classe dominante, mas acho que não é certa";
mas podemos e dizemos, a todo instante. "Certo", portanto,
não significa o que diz Trasímaco.
(b) Mas então . . . o que ele está fazendo? Talvez esteja
apenas dizendo que as classes dominantes fazem as leis, e
que sempre são leis que as beneficiam. Se é isto, está ape­
nas afirmando um fato: teríamos, naturalmente, de recorrer
a um historiador ou a um sociólogo para que nos disses­
se se a afirmação de Trasímaco é verdadeira. Pode aconte­
cer, até, de ser muito verdadeira e muito importante. Mas . . .
64 PENSAR COM CONCEITOS

até que ponto este aspecto sociológico tem algo a ver com
o significado de "certo''?
(e) Talvez ele esteja tentando dizer: "O que a majoria
das pessoas chama de 'certo' é, no fundo, o que as classes
dominantes ordenam" ou, com maior precisão: "Se as clas­
ses dominantes ordenarem isto ou aquilo, os atos e compor­
tamentos que resultarem desta ordem corresponderão ao
que a maioria das pessoas considerará 'certo'." A idéia aqui
é que, se quisermos saber quais as atitudes que, de fato, são
consideradas "certas", ou se quisermos saber o que as torna
"certas", teremos de examinar as atitudes e comportamentos
que sejam do interesse das classes dominantes, porque "ati­
tudes certas" coincidem com "atitudes que interessam às
classes dominantes". E coincidem, é claro, pela muito boa
razão de que as classes dominantes fazem leis e estabele­
cem códigos de moral que favorecem seus interesses; e é
por força destas leis e códigos que as pessoas consideram
as coisas "certas" ou "não-certas".
(á) Se a questão sociológica de Trasímaco em (b) for
verdadeira, será que (e) também é verdade? Façamos um
paralelo. Pode-se perguntar "O que é u m 'bom menino' na
escola?" e responder "Bem, ' bom menino' é aquele que
satisfaz as exigências do estabelecimento educacional:
que não cria problemas, que cumpre suas tarefas atenta e
cuidadosamente, que, provavelmente, se destaca nos jogos
e em outras atividades, que é obediente, e assim por diante.
Em outras palavras, o tipo de menino que serve aos inte­
resses da escola ou das classes dominantes (os diretores)".
Isto é o mesmo que admitir (b): que a instituição decreta
normas no seu próprio interesse; (e): que quando as pes­
soas falam de "um bom menino" (como, por exemplo, num
boletim escolar), referem-se, quase sempre, ao tipo de me­
nino que serve aos interesses da escola. Mas ninguém
disse, até aqui (veja (a)), que "bom" significa "que serve
1 1 / \//'/OS m; ANÁLTSE 65

. 1 1 1s interesses da escola". É óbvio que "bom" não signifi-


1 :i 1slo, embora "um bom menino" possa significar um
1 1 11.:nino que sirva aos interesses da escola. Parece estranho.
(e) Agora tem-se a impressão de que, na parte final de
(d), usamos o verbo "significar" de dois modos diferentes.
Suponhamos que estivéssemos querendo dizer '"Um bom
menino', de fato e na prática, significa realmente 'um meni-
110 que serve aos interesses da escola"' e depois "'Bom' sig-
1 1 i fica 'que serve aos interesses da escola'". A primeira frase
6 evidentemente verdadeira; a segunda, falsa. Demonstram-se
assim os dois modos diferentes de usar o verbo "significar":
(i) "significar" como "lingüisticamente equivalente a";
(ii) "significar" como "identificável na prática com".
Para ver mais faci lmente os dois usos, imaginemos um
general que diga "Precisamos de algo mais poderoso do que
as armas convencionais", e outro general que responda "Isso
significa a bomba atômica". "Signi fica'', aqui, está sendo
usado no sentido (ii) que acabamos de mencionar. Ninguém
imaginará que as expressões "a bomba atômica" e "algo
mais poderoso do que armas convencionais" sejam lingüis­
t icamente equivalentes.
(f) Em todo caso, como vimos no Capítulo l (pági­
na 40), palavras de sentido moral de aplicação geral, tais
como "bom" e "certo", são usadas, em primeiro lugar, para
aprovar ou e logiar; e, portanto, não podem ser lingüistica­
mente equivalentes a nenhwna expressão factual, concreta,
como "os interesse s dos mais fortes". Embora as atitudes
de fato que as pessoas na prática chamam de "boas" o u
"certas" possam ser de um certo tipo, não podemos atrelar
o uso de "bom" ou "certo" apenas àquele tipo de atitude.
Sempre podemos dizer: "Bem, apesar de servir aos interes­
ses da instituição e, portanto, poder ser chamado de 'bom
menino ' , acho que, no fundo, ele não é um bom menino";
ou "Mesmo que a maioria das pessoas considere tal coisa
66 PENSAR COM CONCEITOS

'certa', para mim é errada". Portanto, deveríamos pensar


bem antes de admitir (e). Se Trasímaco diz: "O que as pes­
soas chamam geralmente de 'certo' é, na prática, idêntico
ao interesse das classes dominantes", então (se estivesse cor­
reto quanto aos fatos) poderíamos concordar. Mas não admi­
tiríamos que "certo" signifique isto; não, pelo menos, sem

examinar meticulosamente como o verbo "significar" está


sendo usado aqui.
(g) Como a questão sociológica (a questão de os códi­
gos morais e das leis, por força das quais as pessoas con­
sideram "certas" algumas atitudes, serem criados para aten­
der aos interesses das classes dom inantes) é afetada pelo
que diz Sócrates? Trasímaco pode escolher entre aceitar a
sugestão de Clitofonte e rejeitá-la. Ele pode dizer:
(i) "certo" é o que as autoridades dizem que é certo,
mesmo que às vezes digam coisas que não são do i nteresse
delas; ou
( i i) "certo" é o que realmente é do interesse das auto­
ridades, não importa o que digam.
Trasímaco parece adotar a primeira h ipótese, mas, de
fato, adota a segunda. Pois, se acrescentarmos a (i) algo como
"e as autoridades sempre dizem aquilo que serve aos seus
próprios interesses (se não for assim, não as considerare­
mos autoridades)", a primeira hipótese transforma-se, de fato,
na segunda. Imagine o diretor de uma escola, que faça as
regras. Neste caso, a expressão "bem comportado" passa a
significar (num sentido de "significar") "obediente às nor­
mas do diretor"; e, se acres(;entarmos que o diretor cria nor­
mas no seu próprio interesse, podemos dizer que a conduta
que é dita "bem-comportada" resume-se, afinal de contas,
à conduta que interessa ao diretor. Suponhamos, porém, que
o diretor beba demais e crie alguma norma absurda, como,
por exemplo, a de que todos os meninos terão de namorar
pelo menos uma das meninas da região, por semestre. Isto
não é do seu interesse, porque causé}fá problemas com os
1 \/ \ll'I OS DE A NÁL!SE 67

1 1 1 ' ipriclários da escola, com as autoridades da educação, com


1 • . p:Jis, entre outros. Agora, o que será um "bom compor­
l . 1 1 1 1cnlo", considerada a nova regra? Se adotarmos a linha
"" pensamento de Trasímaco, diremos que, quando criou a
1 1or111a, o diretor não estava agindo como diretor; de tal modo
q 1 1c o menino bem comportado descumpriria a nova regra,
qlll : não era, realmente, do interesse do diretor. Outra opção
seria dizer que o menino bem comportado, como de costu­
me, obedeceria às nmmas, inclusive à nova regra .
(h) É válida a constatação sociológica geral de que o
rnmportamento que a maioria considera bom (ou "certo",
ou "justo") é, quase sempre, o comportamento que mais

i n teressa às autoridades. À s vezes, as autoridades não são os


melhores avaliadores dos próprios interesses, mas, neste caso,
adotar ou não a sugestão de Chtofonte é assunto para outra
discussão. Seja como for, a constatação continua válida.
(i) A última fala de Trasímaco parece estranha. A ten­
tação, neste caso, é dizer "Se Trasímaco admite que 'na lin­
guagem comum' é possível dizer que o médico ou o gover­
nante errou", por que não se satisfaz com isto? Por que
entra naquele estranho contorcionismo conceitua], e diz que
'o governante, na medida em que for governante, não erra'?"
No entanto, seria errado pensar que Trasímaco fala desse
modo só porque está procurando evitar as críticas de Só­
crates; não se pode partir do pressuposto de que Trasímaco
seja tolo; e, se adotasse a sugestão de Clitofonte, também
estaria evitando as críticas. Ele, portanto, deve ter concei­
tos diferentes dos nossos. Para Trasímaco, aparentemente,
a arte e a ciência vêm em primeiro lugar e o artista e o cien­
tista, em segundo; para nós, é o contrário. Acreditamos, an­
tes de mais nada, no médico; e depois, se pressionados, con­
cprdaremos que há algum tipo de habilidade ou capacida­
de ou conhecimento que os médicos usam, bem ou mal.
Trasímaco acredita, em primeiro lugar, num conhecimento
especializado chamado "curar pessoas". E "médico" é con-
68 PENSAR COM CONCEITOS

ceitualmente definido (pelo menos em termos estritos)


exclusivamente cm termos dt:ste conhecimento especializado.
Em outras palavras, "médico" é alguém que se dedica a
"curar pessoas". Nestes termos, estritamente definidos, o ho­
mem não é "médico" quando não está curando pessoas. Por­
tanto, não é médico quando comete erros na medicina ou
quando está em férias. Claro que temos aqui uma constela­
ção de conceitos bem diferentes dos nossos.

b) Um diálogo moderno

A seguir, um diálogo entre Bertrand Russell e o padre


S . C. Copleston, S.J. O debate completo foi transmitido pela
BBC e tratava da existência de Deus. Apresento aqui um
trecho em que se discutem a muralidade e os j uízos de valor.

RUSSELL ( 1 ) . Sinto que algumas coisas são boas e outras são


más. Gosto das que são boas, das que considero boas; e
detesto as que considero más.
COPLESTON (2). É, mas qual é sua justificativa para distinguir

entre o que é bom e o que é mau? Ou como você enca­


ra a distinção entre eles?
RUSSELL (3). Não tenho nenhuma justificativa, como tam­

bém não tenho j ustificativa para distinguir entre o azul


e o amarelo. Qual é minha justificativa para distinguir
entre o azul e o amarelo? Eu vejo que são diferentes.
COPLESTON (4). Bem, essa é uma justificativa excelente, devo

admitir. Você distingue o azul do amarelo pela visão. E


com que faculdade você distingue o bom do mau?
RUSSELL (5). Com meus sentimentos.

cOPLESTON (6). Com seus sentimentos. Bem, era isso o que

eu estava perguntando. Você acha que o bem e o mal


dizem respeito simplesmente aos sentimentos?
/ ,' f.MPWS DE ANÁLISE 69

IWSSELL (7). Bem, por que um tipo de objeto parece ser


amarelo e outro, azul? Posso dar-lhe uma re sposta apro­
ximada, graças aos fisicos. E, quanto ao motivo pelo
qual considero que algo é bom e outra coisa é nefasta,
é provável que exista uma resposta da mesma natureza,
mas ela ainda não foi pesq u is ada com o mesmo afinco
e cu não poderia lhe dar essa resposta.
l'OPLESTON (8). Bem, vejamos o comportamento do coman­
dante de Belsen.1 Parece-lhe indesejável e perverso, e a
mim também. Já, para Adolf Hitler, supomos que pare­
cesse bom e conveniente. Creio que você teria de dizer
que para Hitler era bom e para você, nefasto.
RUSSELL (9). Não, eu não iria tão longe. Quero dizer, acho
que as pessoas podem cometer erros, nesse e em outros
aspectos. Se você tiver icterícia, verá amarelo tudo que
não é amarelo. Estará cometendo um erro.
COPLESTON (1 O). É, os erros acontecem, mas será que a pes­

soa pode cometer wn erro se for simplesmente uma


questão de referência a um sentimento ou emoção? Hitler,
é claro, seria a única pessoa capaz de julgar o que agra­
daria às suas emoções.
RUSSELL ( 1 1). Seria perfeitamente correto dizer que o pro­
cedimento agradava às suas emoções, mas pode-se dizer
várias coisas sobre isto, dentre outras, que, se esse tipo
de atitude exerce esse tipo de fascínio sobre as emoções
de Hitler, então ele afeta minhas emoções de modo
totalmente diferente.
COPLESTON ( 12). C onco rdo. Mas então não existe, na sua
opinião, nenhum critério obj etivo, alérn do sentimento,
para condenarmos a conduta do comandante de Belsen?
RUSSELL ( 1 3). N enh u m critério além dos que existem para

o daltônico que se encontra exatamente no mesmo esta-

1 . Belsen foi um campo de concentração na Guerra Mundial de 1939 a


1945, o nde o comandante e outros comekram muitas atrocidades.
70 PENSA R COM CONCEITOS

do. Por que condenamos intelectualmente o daltônico?


Não será porque ele pertence à minoria?
COPLESTON (l 4). Eu ctiria que o condenamos porque ao dal­
tônico falta algo que pertence normalmente à natmeza
humana.
RUSSELL ( 1 5). É, mas não diríamos a mesma coisa se ele
pertencesse à maioria.
COPLESTON ( 1 6) . Logo, você diria que não há nenhum crité­
rio além do sentimento que permita distinguir entre o
comportamento do comandante de Belsen e o compor­
tamento, digamos, do arcebispo de Cantuária.
RUSSELL ( 1 7). A sensação é um pouco simpl ificada demais.
É preciso levar em consideração os efeitos dos atos e os
sentimentos despertados por esses efeitos . . . Pode-se mui­
to bem dizer que os efeitos dos atos do comandante de
Bclsen foram dolorosos e desagradáveis.
COPLESTON ( 1 8 ). Concordo que foram, sem dúvida, muito
dolorosos e desagradáveis a todas as pessoas no campo.
RUSSELL ( l 9). É, mas não só às pessoas no campo. Também
às pessoas de fora que observavam esses atos.
COPLESTON (20). É, é bem verdade, no plano da imaginação.
Mas essa é minha questão. Eu não aprovo aqueles atos
e sei que você também não os aprova, mas não vejo que
motivos você tem para não aprová-los porque, afinal de
contas, para o próprio comandante de Belsen, esses atos
eram agradáveis.
RUSSELL (2 1 ). É, mas veja bem, não preciso de nenhum mo­
tivo a mais nesse caso do que preciso no caso da percep­
ção de cor. Existem pessoas que acham que tudo é ama­
relo, pessoas que sofrem de icterícia, e eu não concor­
do com elas. Não posso provar que as coisas não são
amarelas. Não há nenhuma prova. Mas a maioria concor­
da comigo que elas não são amarelas; e a maio1ia con­
corda comigo que o comandante de Belsen estava come­
tendo erros.
1 \ l.'AIPLOSDE ANÁLISE 71

l 'omentários
(a) A passagem trata da justificativa de j u ízos morais.
No entanto, ela não parece avançar muito: o pedido de uma
.i ustificativa que Copleston faz no início (2) é repetido no
f"inal (20); e a resposta origi nal de Russell (3) também é
repetida no final (2 1 ). É passivei que as respostas de Russell
Lenham sido totalmente claras e satisfatórias e que Coples­
lon s im plesmen te não tenha entendido sua posição, mas não
é muito provável. E também é improvável que as respostas
de Russel l tenham sido totalmente imprecisas e insatisfató­
rias. É quase certo que o diálogo não tenha chegado a nenhu­
ma conclusão. E, como parece avançar em círculos, talvez
algo não tenha funcionado bem com ele.
(b) Podemos começar por eliminar algumas imperti­
nências:
(i) Em 7, Russell não está dando nenhumajustificativa
para suas opiniões morais. Está apenas sugerindo que pode
haver uma explicação científica (presumivelmente, uma
explicação psicológica) para elas, exatamente como existe
uma explicação para o motivo pelo qual os objetos parecem
ser amarelos e azuis.
( i i ) Em 4-6, Copleston apresenta a idéia de umafacuf­
dade com o auxílio da qual Russell faz juízos ou distingue
entre o que é bom e o que é mau. A imp l i c ação de 4 ( Bem ,
"

essa é uma justificativa excelente") e de 6 ("Bem, era isto


o que eu estava perguntando") é que perguntar qual a facul­
dade usada equivale a perguntar que j ustificati va pode ser
dada - ou pode ter uma associação importante com essa
pergunta. Mas isto não está claro. Pode-se usar uma facul­
dade para colher evidências, mas as evidências é que são a
justificativa, não o mero uso da faculdade. Deste modo, se­
ria possível usar Dossa faculdade da audição e com ela
obter uma impressã o de que ocorreu algum tipo de ruído.
Mas a justificativa para acreditar nisto seria a própria irnpres-
72 PENSAR CUM CONCEITOS

são, as impressões dos outros, o que ficou registrado num


gravador, e assim por diante. Sej a como for, é necessário
que haja uma faculdade para que as pessoas distingam entre
as coisas? Mediante que faculdade distinguimos entre o ver­
dadeiro e o falso, o fe l iz e o infeliz, a dor e o prazer, o belo
e o feio, e assim por diante? Poderíamos responder (como
Russel l): "Por meio dos nossos sentimentos", mas de que
serve esta resposta? Este não parece ser um conselho útil.
E talvez tenha sido uma sorte que, no diálogo, tenha sido
rapidamente abandonado. :
(e) Ora, mas será que a analogi a que Russell faz entre
os juízos morais e a percepção de cores realmente funcio­
na? É bem possível que não, já que as palavras pelas quais
atribLúmos valores não füncionam do mesmo modo que as
palavras descritivas (Capítulo l , página 40). De fato, é pos­
sível provar (ao contrário do que diz Russell em 2 1 ) que al­
guns objetos são amarelos e outrns são azuis. Quando dizemos
que algo é amarelo, estamos afirmando fatos que podem ser
verificados por métodos reconhecidos. Poderíamos, por
exemplo, perguntar a várias outras pessoas se o objeto era
am.arelo ou não. E, como último recurso, poderíamos medir
as ondas de luz emitidas pelo objeto. Mas o adjetivo "bom"
não funciona assim. Como "bom" é basicamente usado para
elogiar - de modo algum para afirmar fatos -, é certo que
não podemos provar que algo é bom do mesmo modo que po­
demos provar que algo é amarelo. De fato, é possível que
não consigamos "provar", de modo algum, que algo é bom
(embora, evidentemente, tudo dependa do que considere­
mos como prova).
(d) Portanto, Russell está errado ( 1 3 , 15 e 2 1 ) ao suge­
rir que se trate de mera questão de opinião dizermos que
algo é amarelo ou azul. Em resposta a 1 3, nós tomamos o
daltônico como deficiente, não só porque os daltônicos sejam
minoria, mas porque são, de fato, cegos para algumas cores;
I \l,'ilfPLOS DE ANÁLISE 73

11u seja, como insinua Copleston em 1 4 , porque os daltôni­


cos são mesmo deficientes, em certo sentido - afinal, eles
não conseguem distinguir cores que muitas outras pessoas
distinguem facilmente. E isto pode ser facilmente verifica­
do: por exemplo, o daltônico não consegue distinguir entre
as luzes de "Pare" e "Siga" nos sinais de trânsito. Nesse sen­
tido, os daltônicos continuariam a ser deficientes, mesmo
que fossem maioria.
(e) Russell, entretanto, parece estar confuso a respeito
disto. Em 9, ele fala de "cometer erros" a respeito de cores,
o que não faz sentido se ele diz, adiante ( 2 1 ) que "não há
,

nenhuma prova" quanto às cores. Ta mbém parece confuso


quanto aos juízos morais. É como se dissesse, por um lado,
que os juízos morais não precisam de justificativa (as pes­
soas simplesmente têm a sensação de que algo é bom ou
mau e ponto final) e afirmasse, por outro lado, que se podem
cometer erros em questões de juízo moral (9, 2 1 ). Mais para
o final da passagem, ele parece claramente ansioso para não
dizer que não há como demonstrar que os atos do coman­
dante de Belsen são maus; mas também não deixa claro
como se poderia demonstrar que são maus. E poderia ex­
plicitar (2 1 ) que a maioria das pessoas, como ele mesmo,
também teve a impressão de que os atos eram nocivos, o
que não prova coisa alguma. Como Russell diz, não há ne­
nhuma prova nessa linha de raciocínio. No entanto, se não
há absolutamente nenhuma prova, não faz sentido falar em
"cometer erros".
(j) Russe l l poderia ter defendido coerentemente uma
posição - a posição de que, ao fazer um juízo moral, a pes­
soa está simplesmente expressando um sentimento. Essa
posição poderia ser enunciada em termos aproximados se
disséssemos que "Isto é bom" significa simplesmente "Gos­
to disto". Não é muito plausível, mas supera a d i ficuldade
associada ao comandante de Belsen. Pois se "Isto é bom"
74 PENSAR COM CONCE
ITOS

só significar "Gosto disto", na realidade não há nenhuma


discordância entre Russell e o comandante. O comandante
está somente dizendo "Gosto de fazer esse tipo de coisa" e
Russell está respondendo "Pois eu não gosto". Se os dois lados
estão apenas expressando seus sentimentos, não há nenhum
motivo para discordância. Isto resolveria a questão a respeito
da justificativa: ninguém preci sará justi ficar juízos morais se
eles puderem ser traduzidos por "Gosto disto", "Viva aquilo !",
"Abaixo fulano de tal!", e assim por diante.
(g) Copleston tem toda a razão de insinuar (20) que os
esforços de Russell no sentido de justificar sua crença, em
( 1 7 ) e ( 1 9), são em vão. Russell poderia ter adotado a
linha oposta à que acabamos de mencionar em (f) e ter sus­
tentado que alguns sentimentos morais são justificáveis,
por exemplo, como sugere em ( 1 7) e ( 1 9 ), por meio de uma
verificação de se a maioria considerava algum ato desagra­
dável. Ele poderia ter dito de saída: "'Bom' significa ' o que
a maioria considera agradável " ' ou algo semelhante. Nesse
caso, naturalmente, seria possível provar qual das coisas é
"bom" (ou "boa"): bastaria descobrir o que a maioria das
pessoas considera agradável (que é uma questão de fatos
concretos), e pronto. Seria então possível falar em provas,
em cometer erros, em justificativas, e assim por diante. No
entanto, Russell recusa-se a fazer isto - ou, pelo menos, a
fazê-lo de modo coerente. Quando faz afirmações como
( 17) "É preciso levar em consideração os efeitos dos atos . . ."
e ( 1 9) "Também a pessoas de fora que observassem esses
atos'', ele parece estar mudando de idéia. Se não se cogita
de justificativa ou prova, por que seria ''preciso" formar nos­
sos juízos morais mediante o exame dos efeitos dos atos?
Ou por que deveríamos interessar-nos pelo sentimento de
quem está de fora? Dizer isto só faria sentido se pudésse­
mos apresentar alguma razão pela qual as pessoas devessem
agir daquele modo, o que só faria senbdo se partíssemos do
I 1 h\ //'LOS DE ANÁLISE 75

p1 l!ssuposto de que toda a história de juízos morais fosse


s11scctível de comprovação, justi ficativa, e assim por diante.
I ·: Russell não demonstrou que é este o caso.
(h) No entanto, a ilogicidade e as incoerências da posi­
diu de Russell são significatlvas porque, pelo menos, apon­
tam para um dilema autêntico. Por w11 lado, não vemos co-
1110 podemos falar racionalmente em "comprovação" e "jus-
1 i l'icativa" em temas de moral, j á que as palavras das quais
nos servimos para atribuir valor não descrevem fatos. Por
outro lado, não queremos dizer que a história toda é só
uma questão de gosto. Em outras palavras: queremos poder
provar que os atos do comandante de Bclsen são maus. Não
nos contentamos em dizer apenas "Não gostamos do seu
modo de agir". Mas também percebemos as dificuldades ló­
gicas quanto ao modo de provar este tipo de asserção. A
solução talvez esteja em formular uma noção d iferente de
"prova" ou de "j ustificativa", que possa ser aplicada a juí­
zos morais e a discussões morais, embora não se aplique a
discussões sobre fatos. ( Este é um dos problemas mais
sérios - talvez o mais sério de todos - na moderna filoso­
fia moral.)

e) Passagens mais curtas

( 1 ) C. S. Lewis, "O comportamento cristão "


Alguns de nós, pessoas que parecem ser bastante agra­
ciáveis, podem, na realidade, ter tirado tão pouco proveito
de bons traços hereditários e de urna boa criação que, de fato,
somos piores que os que consideramos desumanos. Podemos
ter certeza de como teríamos nos comportado se tivésse­
mos canegado nos ombros a disposição psicológica, a cria­
ção falha e, depois, o poder de, digamos, Himmler? É por
isto que se ensina aos cristãos que não julguem. O que se
76 PENSA I? COM CONCEITOS

vê é apenas o resultado que as escolhas de um homem mol­


dam em sua matéria-prima. E Deus não julga, de modo
algum, pela matéria-prima, mas por aquilo que o ho mem
fez dela ou com ela. A maior parte da estrutura psicoló­
gica do homem é, provavelmente, devida ao seu corpo. Quan­
do o corpo morrer, tudo se soltará dele e será desnudado o
verdadeiro homem central, aquilo que ele escolheu fazer,
que fez melhor ou pior - a partir da matéria-prima. Todos
-

os aspectos agradáveis que imaginávamos serem nossos,


mas que, de fato, deviam-se a uma boa digestão, soltar-se-ão
de nós. Todos os aspectos ' insuportávei s, que eram devi­
dos a complexos ou a uma saúde fraca, soltar-se-ão dos ou­
tros. E então, pela primeira vez, veremos todos como real­
mente foram.

Comentários
(a) Ternos aqui um quadro dos seres humanos não corno
se fossem compostos, essencialmente, dos fatores hereditá­
rios, do ambiente ou da posição que têm na vida, mas como
seres que podem fazer escolhas morais. Quando os fatores
hereditários e tudo o mais "se soltarem" deles, nós os vere­
mos como "realmente foram". Pessoas que "parecem bas­
tante agradáveis" podem ser "de fato piores" do que, por
exemplo, Himmler. O "verdadeiro homem central" é "aqui­
lo que escolheu ser".
(b) O mais surpreendente é que, embora este quadro
possa corresponder àquilo em que alguns de nós acredita­
mos (ou dizemos acreditar), o quadro não está, de modo
algum, em harmonia com o modo como normalmente fala­
mos. Geralmente, consideramos como parte de um homem
características que se podem revelar como enormemente
influenciadas, se não totalmente determinadas, pela heredi­
tariedade e pelo ambiente: a inteligência, o temperamento
agradável, a aparência fisica, o senso de humor, e assim por
l�XEMPWS Ot: ANÁLISE 77

diante. Não classificamos estes aspectos na mesma catego­


ria de outros aspectos - o saldo bancário de alguém ou a
casa em que mora. Estamos preparados para dizer que o
homem tem saldo bancário e casa própria, mas da inteligên­
cia e de atributos semelhantes di ze mos que fazem parte do
homem . De fato, inteligência e atributos semelhantes são,
exatamente, os aspectos que se unem para compor o que
signific amo s com as palavras "homem" ou "pessoa".
(e) Se, acompanhando o pensamento de Lewis, não acei­
tarmos que inteligência e atributos semelhantes sejam con­
siderados parte de um homem (ou parte "de verda de" ) , só
nos re sta rá "aquilo que o homem e sco l heu". Já desqualifi­
camos tudo o que resulta da hereditariedade e do ambiente
- e não importa em que proporção co nside remo s que façam
parte de uma pessoa, s empre comp orão uma boa parte dela.
De tal modo que os traços restantes (a vontade? a alma?)
p arec erão bastante tênues. De fato, seria concebível ap l ic ar
a palavra "homem" a "uma coisa capaz de escolher"? Não
importa que característica do homem sej a , será apenas uma
característica. E, a menos que revisemos radicalmente o
conceito de "homem", esta tal única característica não será
suficiente para que chamemos um ser de "homem".
(d) C om efeito, toda a idéia de dizer que o que parece
ser partes de um homem na re al id ad e não é - ou seja,
todo o quadro apresent ado por Lewis -, parece tão difícil
de conceber que chegamos a nos perguntar se o quadro de
Lewis faz s entido. Haverá, de fato, uma parte do homem
que possamos descrever como "uma coisa que escolhe", uma
parte totalmente isolada de qualquer aspecto relacionado à
sua hereditari ed ade e ao seu ambiente? Será que podemos

isolar tal parte, em termos lógicos? Deveríamos pedir tem­


po para fazer uma investigação meticulosa antes de concor­
dar com esse quadro.
(e) Além disto, caso aceitássemos o quadro, teríamos
de c orri gir uma boa parte da nossa linguagem. No m om en-
78 PENSAR COM CONCETTOS

to atual, não faz sentido algum dizer que pessoas agradá­


veis podem "realmente" ser piores do que Himmler, porque
não há significado algum que possa ser associado à palavra
realmente, a menos que, antes, tenhamos aceitado todo o
quadro. Esta é uma das muitas passagens nas quais, apesar
de as palavras usadas serem muito comuns na língua que
falamos e serem perfeitamente compreensíveis, somos "con­
vidados" - mais, somos quase "obrigados" - a aceitar uma
imagem totalmente nova do mundo e a encarar um modo
totalmente novo de usar os conceitos.

(2) A/dous Huxley, ':As portas da percepção "


Vivemos j untos, interagimos e reagimos uns aos outros;
mas sempre, e em todas as circunstâncias, estamos sós. Os
mártires entram na arena de mãos dadas, mas são crucifi­
cados sozinhos. Abraçados, os amantes tentam desespera­
damente fw1dir seus êxtases isolados numa única transcen­
dência do eu; em vão. Por sua própria natureza, todo corpo
encarnado está fadado a sofrer e a ter prazer em solidão.
Sensações, sentimentos, percepções profundas, fantasias -
tudo é pessoal e incomunicável, a não ser por símbolos e
em segunda mão. Podemos reunir i nformações sobre expe­
riências, mas nunca as próprias experiências.

Comentários
(a) "Vivemos j untos, mas estamos sempre sós" é um
paradoxo. A impressão (Capítulo 1 , página 42) que se tem
é que os limites do concei.to estão sendo, de algum modo,
estendidos além da conta. Se estamos sempre sós, podemos
atribuir algum sentido à noção de estar na companhia de
alguém, ou de compartilhar alguma coisa com alguém? Será
que Huxley, alguma vez, se permitiria dizer "Fulano de Tal
não está sozinho"? Afinal, aí está uma frase que todos pro­
ferimos com grande freqüência. Em outras palavras, há casos
l:".\'EMPLOS Dt:: ANÁLISE 79

na vida em que queremos dizer (não importa que palavras


usemos) : "Tal pessoa não está só'', "não está em solidão"
ou "não está isolada". E por que não deveríamos dizer isto
com as palavras que acabamos ele usar?
(b) É presumível que Huxley tenha cedido à tentação
de estender tanto o conceito de "estar só", porque queria
transmitir uma determinada idéia. E que idéia seria esta?
Talvez a idéia de que não conseguimos comunicar nossas
experiências "senão mediante símbolos e em segunda mão".
Ou, talvez, que não podemos, nunca, "reun i r. . . as próprias
experiências", ou sej a, que não podemos jamais ter a mes­
ma experiência que outra pessoa. Examinemos uma a uma
estas possibilidades.
( i ) Dizer que não podemos transmitir nossas experiên­
cias "a não ser mediante símbolos" é estranho porque, no
contexto, implica a possibilidade lógica de haver comuni­
cação sem símbolos, mas que não existe na vida humana,
tal como ela é. Mas pode1ia existir? Sem dúvida, todas as
formas de comunicação envolvem símbolos ou sinais arti­
ficiais (as palavras de urna l íngua, os gestos, o código Morse
etc.). É isso o que sígnifica "comunicação". Dizer que não
podemos jamais nos comunicar a não ser "em segunda
mão" é estranho, e pelo mesmo motivo. Corno seria um
caso de comunicação em primeira mão? Toda comunicaçãü
é "em segunda mão", no sentido inquestionável de que
envolve a mediação dos símbolos.
(ii) Não é preocupante dizer que não podemos ter "a
mesma experiência" que outra pessoa? Isto é evidentemen­
te verdade, em certo sentido: Smith não pode ter a dor de
cabeça de Brown (embora, é claro, possamos, em outro sen­
tido, ter "uma dor de cabeça igual" ou o mesmo tipo de dor
de cabeça que Brown). Mas dizer que Smith não pode ter a
dor de cabeça de Brown não é expressar um lamentável fato
da natureza, que poderia ser diferente: é expressar uma ver-
80 PENSAR COM CONCEITOS

dade da lógica. Smith não pode ter a dor de cabeça de Brown


porque, se Smith tivesse uma dor de cabeça, ela não seria
de modo algum a de Brown, mas a de Smith. Seria absur­
do dizer que Smith estava com a dor de cabeça de Brown.
É como l evar ao pé da letra a expressão "Se eu fosse você".
É óbvio que eu não posso realmente ser você - não faz sen­
tido; embora, é claro, eu possa pôr-me no seu lugar, parti­
lhar seus sentimentos, sentir-me solidáTio a você, e assim
por diante.
A implicação de tudo isto é que Huxl ey está lamentando,
não a ocorrência de algo que de fato ocorre mas poderia não
ocorrer, mas, sim, de algo que é uma necessidade lógica.
Enquanto atribuirmos sentido às distinções feitas por pala­
vras c01no "eu", "você", "Smith", "Brown" etc., é conse­
qüência necessária que tenhamos de pensar nestas pe ssoa s
e nas suas experiências como distintas, não como idênticas.
Pode mos , naturalmente, imaginar situações que dariam
maior peso a expressões como "comunicação" ou "compar­
tilhamento de experiências" - por exemplo, a telepatia. Mas
isto não altera a questão principal.

(3) Sir Arthur Eddington, "A natureza do mundo fisico "


Creio que não deveríamos negar validade a certas con­
vicções íntimas, que parecem paralelas à confiança cega na
razão que está na base da matemática; a um sentido inato
da adequação das coisas que está na base da ciência do mundo
fisico; e a um irresistível sentido de incongruência que está
na base da justificativa do humor. Ou, talvez, não seja tanto
uma questão de afirmar a validade de tais convicções quanto
de reconhecer sua função como parte essencial da nossa
natw-eza. Não defendemos a validade de ver beleza numa
paisagem natural; aceitamos com gratidão o fato de que so­
mos dotados da c apa c id ade para vê-la deste modo.
EXE1WPLOSDEANÁLISE 81

Comentários
(a) As duas primeiras frases sugerem opiniões diferen­
tes. Uma coisa é falar de "validade", "convicções" e "j usti­
ficativa"; outra é falar de coisas que têm uma "função co­
mo parte essencial da nossa natureza". A primeira indica
que estamos avaliando crenças, para ver se existem evidên­
cias que asjustifiquern, e a ss i m por diante. A segunda suge­
re que estamos examinando faculdades humanas ou padrões
de comportamento, e refletindo sobre como funcionam, se
são úteis ou "essenciais'', se são engrenagens im po rtan te s
na máquina humana. A última frase parece apoiar o segun­
do tipo de discurso, em vez do primeiro: devemos cons i d e­
rar não a validade das crenças humanas, mas o valor das

faculdades humanas das quais somos dotados.


(b) Suponhamos que comecemos por falar do primefro
modo: isto parece mais natural se estivermos preocupados
com "certas convicções íntimas", já que podemos presumir
que urna "convicção" é uma crença de que algo seja algo.
Quando lidamos com convicções ou crenças, nosso interes­
se primordial é saber se são verdadeiras. E para saber se
uma convicção é verdadeira não interessa saber se ela é útil,
tranqüil izadora ou "essencial'', nem se pode ser aceita com
gratidão; a única coisa que interessa, neste caso, é saber se
a tal convicção é razoável, se é "válida'' ou "j ustificável"<
se há evidência suficiente a seu favor.
(e) Algumas crenças sã.o justificáveis, outras não.
Eddington parece considerar que a matemática, como siste­
ma de crenças, não é justificável - que ela depende de "cega
confiança na razão"; e acredita que a ciência depende de
"um sentido inato da adequação das coisas". Sem nos apro­
fundarmos muito nos fundamentos lógicos da matemática e
da ciência, vê-se facilmente que esta idéia parece estranha.
Se as crenças da matemática e da ciência não são válidas,
o que é válido? Muitas destas crenças são, sem dúvida algu­
ma, modelos do que seja uma crença racional.
82 PENSAR COM CONCEITOS

(d) Quanto ao humor, porém, não se aplica este tipo de


conversa; porque o humor não envolve nenhum sistema de
crenças. Seria portanto fora de propósito, em termos lógi­
cos, falar em "evidência", "validade", "justificativa", e assim
por diante.
(e) Se passarmos para o segundo tipo de argumento, ele
agora nos parece incorreto porque não é assim que avalia­
mos usual mente as "convicções" ou os conjuntos de cren­
ças como os da matemática e da ciência - falar de coisas
que têm uma "função como parte essencial da nossa natu­
reza" é que está mais próximo do nosso modo de avaliar
coisas como o humor. Em outras palavras, para justificar o
humor, diríamos que ele é agradável ou úti l, em termos psi­
cológicos; mas, para justificar crenças, diríamos que são ver­
dadeiras.
(j) Examinemos agora a última frase. Se "ver heleza
numa paisagem natural" envolve nutrir uma crença (por
exemplo, o tipo de crença que se expressa em enunciados
como "Aquela paisagem é linda"), então precisamos do pri­
meiro modelo de argumento - o discurso sobre a validade,
a evidência, a justificativa, e assim por diante. Mas se "ver
beleza numa paisagem natural" não envolver uma crença,
mas apenas um sentimento (por exemplo, o sentimento ex­
presso em "Puxa! Adoro olhar para aquela paisagem!"),
então (como no caso do humor), não precisamos nos preo­
cupar com a verdade. Se é que temos de nos preocupar com
alguma coisa, é só com saber se o sentimento é agradável
ou útil.
(g) Finalmente, podemos amarrar nossas conclusões
com as "convicções íntimas" mencionadas no início. Se
Eddington quiser signi fo;ar apenas "sentimentos'', pode-se
aceitar o que se lê neste trecho. Mas é difícil não desconfiar,
porém, de que o autor comece por significar "crenças" e este­
ja interessado em justificá-las, mas depois suprima o ponto
l:.\'EMPLOS DE ANÁLISE 83

principal - a tentativa de usar evidências para justificar cren­


ças - e acabe imaginando que "convicções íntimas" pos­
sam, em qualquer sentido da expressão, ser "aceitas com
gratidão" como parte das faculdades humanas de que todos
somos dotados. D e fato, entretanto, pode-se ter a impressão
de que alguns sentimentos aliados a a1gumas crenças sejam
parte básica das nossas naturezas, apesar de não haver mé­
todo que os justifique. O senti mento e a crença religiosa
podem, é claro, ser deste tipo, como também podem sê-lo
o sentimento e a crença de que se pertence a uma "raça
dominante", a qual, por este motivo, tem o direito de assas­
sinar e perseguir pessoas das "raças infe riores . "

(4) D. H. Lawrence, "Edgar Allan Poe "


É fácil ver por que cada homem mata aq u ilo que ama.
Conhecer um ser vivo é matá-lo. É preciso matar para co­
nhecer satisfatoriamente. Por esse motivo, a consciência
desejosa, o ESPÍRITO, é um vampiro. Ter-se-ia de ser sufi­
c ientemente inteligente e interessado para saber muito so­
bre qualquer pessoa com quem se tivesse contato próximo.
Sobre ela. Ou sobre ele. Mas tentar conhecer qual q uer ser
vivo é tentar sugar-lhe a v i da O homem deseja tão horri­
.

velmente dominar com sua me11te o segredo da vida e da


individualidade. É como a análise de protoplasma. Só se
pode analisar protoplasma morto e conhecer seus compo­
nentes. É wn processo de morte. Deixemos o CONHECU\ilEN­
TO para o mundo da matéria, da fo rça e da função, que este
nada tem a ver com o ser.

Comentários
(a) É óbvio que algo de muito estranho acontece aqui
com a palavra "conhecer". Diz-se normalmente "Conheço
o Smith muito bem" sem nenhuma implicação, em termos
lógicos ou concretos, de "matar" Smith ou de "tentar sugar-
84 PENSAR COM CONCEITOS

lhe a vida". Presw11e-se que Lawrence tivesse consciência


deste uso comum, mas quisesse transmitir alguma idéia que
envolvia um uso "distorcido" da palavra conhecimento. Em
outras palavras, a distorção é tão radical que pode ser pro­
posital. O que o autor está tentando provar?
(b) Lawrence traça uma distinção entre (i) conhecer
fatos sobre Smith e (ii) conhecer Smith. De acordo com
Lawrence, ( i ) é fácil, mas ( i i ) é "vampirismo", um processo
de tentar "domi nar" Smith com nossa mente. É um método
ruim de abordar Smith, porque "nada tem a ver com o ser".
Este não é, obviamente, o método de abordagem que se adota
normalmente quando dizemos "Eu conheço Smith" ou "Você
conhece bem Londres?".
(e) Há um sentido pelo qual. ao "tentar conhecer Lon­
dres", estamos tentando "dominá-la" com nossas mentes. É
de presumir que Lawrence não faça objeção a isto. Mas
pode-se pensar também num sentido pelo qual alguém po­
deria usar a mente para "dominar" urna pessoa. Por exem­
plo, no caso de um paciente de psiquiatria, quando alguém
se intromete demais "onde não foi chamado" porque está
interessado em dominar outra pessoa ou quer interferir na
vida dela e, por assim dizer, "alimentar-se" do outro em
benefício próprio. Pode-se pensar, por exemplo, no caso de
uma mãe superpossessiva: neste caso há um sentido em que
se poderia dizer que a mãe tenta "conhecer" demais o filho,
"dominá-lo" com sua mente.
(d) Pode-se então distinguir ( i ) casos de conhecimento
de pessoas aos quais nada se pode objetar e (ii) casos de
conhecimento de pessoas que envolvam dominação, posses­
sividade ou "canibalismo". Lawrence chama (i) de "conhe­
cer coisas a respeito" de pessoas e (ii) simplesmente de "co­
nhecer" pessoas". Por que Lawrence quer distorcer e mono­
polizar a palavra "conhecer" em (ii), para servir aos seus
próprios objetivos? Não é uma pergunta fácil de responder
1: 1·1�·MPLOS DE ANlÍLISE 85

:'1 luz do texto que lemos. Talvez pudéssemos dar um palpi­


te - ao acaso - de que Lawrence está ansioso para criar um
�ontraste entre uma abordagem intelectual, analítica ou de
exploração das pessoas ("conhecê-las") e outras formas de
abordagem - amá-las, ter contato físico com elas, aceitá-las,
comunicar-se com elas, e assim por diante. A distorção pode
levar a erro, mas por trás dela pode haver uma questão váli­
da e importante.

(5) Herbert Butterjield, "Cristianismo e História "


Devo confessar que se, na atividade normal do ensino,
pedisse aos alunos o que teria de chamar cuidadosamente
de "explicação histórica" da vitólia do cristianismo no antigo
Império Romano, estaria admitindo que não poderia haver
dúvida quanto ao campo no qual o problema deveria ser
examinado, absolutamente nenhuma dúvida de que eu tinha
em mente uma pergunta sobre "como" o cristianismo teve
sucesso, não a pergtmta mais fundamental sobre "por que"
isto ocorreu. Como historiador técnico, não deveria satisfa­
zer-me com a resposta de que o cristianismo triunfou ape­
nas porque estava certo e era verdadeiro, nem porque sim­
plesmente Deus decretou sua vitória. Lembro-me de ter par­
ticipado de um exame oral em Oxford, há mais de dez anos,
quando ficamos total e permanentemente desnorteados com
um candidato que atribuía tudo à direta intromissão do
Todo-Poderoso e, portanto, dava-se por dispensado de discu­
tir quaisquer agentes intermediários.

Comentários
( a ) O fundamento geral deste trecho é que certos tipos
de discussão (sobre o que é verdadeiro ou certo, ou sobre a
vontade de Deus) são inadequados para uma "explicação
histórica''. O candidato, que presumivelmente respondeu a
todas as perguntas do exame oral com frases como "Bem,
86 l,ENSAI? COM CONCEITOS

foi a vontade de Deus", deixou os examinadores "total e


permanentemente desnorteados". Até aqui tudo é imediata­
mente compreensível.
(b) Por outro lado, há no texto algumas qualificações
estranhas. Butterfield tem o cuidado de djzer que "como his­
toriador técnico" não ficaria satisfeito com a resposta de que
o cristianismo triunfou simplesmente por ser verdadeiro ou
certo, ou simplesmente porque Deus decretou a vitória. As
implicações são que é somente como historiador técnico que
ele não ficaria satisfeito; que como historiador técnico ele
não teria nenhuma objeção, e m princípio, às razões ofere­
cidas, mas que as consideraria insatisfatórias porque inade­
quadas (talvez por não serem suficientemente completas?);
e que simplesmente dar essas razões é insatisfatório porque
há outras razões que também teriam de ser dadas. Em outras
palavras as objeções de Butterfield parecem ser duas:
,

( i ) as razões são insatisfatórias como resposta à pergun­


ta "Por que o cristianismo triunfou?" se a pergunta for en­
carada como pergunta de "história técnica ";
( ii ) as razões são insatisfatórias não tanto porque este­
jam totalmente deslocadas - em poucas palavras, por serem
o tipo errado de razões -, mas porque não são suficiente­
mente completas.
(c) Se tivermos razão ao extrair tais implicações - e
temos de admitir que a passagem não é longa o suficiente
para termos certeza delas -, há algo estranho aqui. Po­
deríamos dizer, sem dúvida, a res p e ito das objeções acima:
( i ) "Porque Deus quis'' é uma resposta insatisfatória à
pergunta "Por que o cristianismo triunfou?" em qualquer
sentido da pergunta, ou em qualquer sentido que possamos
conceber; é insatisfatória porque não explica nada. Exata­
mente como, se perguntássemos "Por que o Mar Vermelho
se abriu?" e nos respondessem "Porque Deus assim o quis"
ou "Foi um m i l agre", não nos teriam dito coisa alguma que
EXEMPLOS DE ANALISE 87

pudesse ser tomada como dita para explicai� Respostas desse


tipo são inúteis para a ciência, a história, ou qualquer outra
matéria da qual se espere que dê explicações.
(ii) Logo, não se trata apenas de as razões não serem
suficientemente completas, mas do fato de que não são nem
realmente razàes nem explicações, de modo algum. Como ra­
zões, sej a neste contexto, seja em qualquer outro contexto
de explanação, elas estão totalmente deslocadas.
(d) Butterfield parece não se ter dado conta disto por­
que, antes, disse que tinha "em mente a pergunta sobre 'como'
o cristianismo teve sucesso, não a pergunta mais fundamen­
tal sobre 'por que' teve sucesso". Que estranho modo de fa­
lar! Claro que, nas provas, ele propõe perguntas como "Por
que o cristianismo triunfou?". Seria esquisito perguntar
"Como o cristianismo triunfou?".
É claro que "por que" pode
pedir uma explicação. De fato, se tivéssemos de traçar algu­
ma distinção, poderíamos muito bem dizer que "por que"
pede uma explicação, ao passo que "como" pede apenas
uma descrição. (Basta comparar "Por que o papel de tor­
nassol tem o comportamento que tem?" com "Como o papel
de tornassol comporta-se em meio ácido?".) O que é, por­
tanto, a curiosa distinção que Butterfield faz?
(e) Mais uma vez, não podemos saber com certeza sem
examinar outros escritos de Butterfield. No entanto, pode­
se ver de que modo urna resposta do tipo "Porque Deus quis
assim" poderia ser uma resposta a "Por que o cristianismo
triunfou?" se usássemos a expressão por que num certo sen­
tido, para significar: "Para atender a qual finalidade?", "Para
atender aos objetivos de quem?" ou "Por vontade de quem?".
(Como se eu perguntasse "Por que você se sentou?" e você
respondesse "Porque quis, porque estava cansado de ficar em
pé".) É perfeitamente correto fazer este tipo de pergunta
(embora possa acontecer de ela não ter resposta), desde que
se tenha clareza quanto ao sentido exato que estejamos atri­
buindo a "por que".
88 PENSAR COM CONCETTOS

(6) John Wilson, ''Razão e Moral"


Pela expressão "mi lagre" podemos sign ificar algo que,
na prática, os seres humanos jamais serão capazes de expli­
car (por assim d izer, porque é di ficil demais para eles); ou
podemos significar que não pode ser explicado logicamen­
te; que, por definição, é inexplicável. Os que crêem na inex­
plicabilidade essencial dos seres humanos enfrentam uma
ambigüidade semelhante. Os motivos para a incerteza são
bastante óbvios, j á que, se os crentes se aferrarem ao pri­
meiro sentido, desvalorizarão os milagres, que ficarão redu­
zidos a fenômenos que são muito, muito difíceis de entender.
Neste sentido, os milagres poderão, no máximo, ser "mis­
teriosos", mas em nenhum outro sentido importante - por­
que, evide ntemente, sempre poderemos imaginar circuns­
tâncias que nos habilitem a entender um milagre ou um ato
humano; e, inclusive, sem grande dificuldade.

Comentários
(a) Nesse texto Wilson está tentando construir um dile­
ma para prender os que acreditam em milagres. O dilema é
aproximadamente o seguinte: ou (i) os acontecimentos de­
nominados "milagres" são apenas acontecimentos muito
intrigantes e de diflcil compreensão (caso em que não pre­
cisamos nos preocupar porque pode acontecer de conseguir­
mos compreendê-los no futuro) ou (2) então "milagre" sig­
nifica "acontecimento inexplicável" ou "algo que ninguém
poderá explicar jamais, em nenhuma circunstância" (caso
em que parece precipitado afirmar que haja m ilagres, por­
que quem garante que ninguém, jamais, os explicará?). Tudo
isto parece muito bem colocado, mas quem realmente acre­
ditar em m i l a gre s ficará com uma vaga sensação de ter sido
enganado. Será que há aí, de fato, algum dilema?
(b) A lguém que acredite em m ilagres pode negar que
sua posição esteja expressa, com j usteza, por qualquer uma
1 l i \ /l'l.OS IJE ANÁL!SE 89

das duas alternativas. Os mi lagres não são simplesmente


"at:ontecimentos muito intrigantes e de dificil compreensão";
1 1 1a s tampouco o satisfaria a afirmação de que os milagres
s;io ''inexplicáveis por definição". Examinemos, separada-
111cnte, cada um destes casos:
(i) Por que os mi lagres não são apenas acontecimentos
dçsconcertantes? Porque há pelo menos dois tipos de "acon­
tecimento desconcertante": ( 1 ) os acontecimentos descon­
Cl!rtantes que não são em princípio desconcertantes (por
exemplo, o fato de que o cérebro produz um certo tipo de
ritmo quando uma pessoa está dormindo - que é apenas
muito difici l de explicar); e (2) os acontecimentos descon­
certantes que, de algum modo, são totalmente desconcer­
tantes por serem produto de uma inteligência superior
(Deus) que, em princípio, não podemos entender (digamos,
por exemplo, a abertura do Mar Vermelho).
(ii) Por que não queremos aceitar a expressão inexp li­
"

cável por definição" sem melhor exame? Bem, num senti­


do podemos concordar gue os atos divinos são "por definição"
inexplicáveis - por definição do que queiramos significar
corn a palavra "Deus" ou com a expressão "ser humano",
uma vez que se poderia definir a palavra "Deus" como um ser
cujos atos não são de modo algum compreensíveis aos "se­
res humanos". Mas isto provoca uma impressão muito dife­
rente da que se provoca ao dizer simplesmente que milagres
são "inexplicáveis por definição". Se se disser apenas isto,
a implicação é que tais atos não fazem absolutamente ne­
nhum sentido, ao passo que o que acabamos de dizer suge­
re que eles fazem sentido para Deus, embora não o façam
para nós.
(e) Um exemplo esclarecerá este ponto. Imaginemos
formigas num formigueiro e suponhamos que elas tenham
algum tipo de inteligência rudimentar. E, às vezes, os seres
humanos fazem coisas que afetam as formigas: denamam
90 PENSAR COM CONCEITOS

água fervente sobre elas, salvam-nas de serem devoradas


p o r o utras formigas ou viram o formigueiro de modo que
e l e esteja sempre voltado para o sol. Agora, poderíamos di­
zer que as form igas não podem, em princíp i o (ou seja, por­
que são formigas), captar a e xp l i cação destes "milagres".
Não há dúvidas de que sejam, de fato, acontecimentos des­
norteantes, mas são desnorteantes numa ordem superior à
de outros acontecimentos também desnorteantes, como a
invasão por outro exército de formigas, a rebelião de a l ­
gumas formigas escravas o u o súbito desmoronamento de
parte do formigueiro. Será justo dizer que os "milagres" feitos
pelos humanos são "inexplicáveis por definição"? A posi­
ção lógica não está clara. Em outras palavras: é necessário
um maior exame para fazer justiça ao caso de quem acre­
dita em mi lagres .

(d) Por isto alguns dos comentários de Wilson são en­


ganosos. Por exemplo: "(só) neste s e n t i do (porque podem
ser muito difíceis de compreender), os milagres poderão, no
máximo, ser ' misteriosos', mas em nenhum outro sentido
importante". É que há, como o demonstra o exemplo acima,
pelo menos mais um outro sentido importante: os atos hu­
manos serão desconcertantes para as formigas no importan­
te sentido de que são atos humanos. E, por serem humanos,
pro duzem um desnmteamento totalmente diferente e de ordem
superi or. Também é enganosa a afirmação de que "eviden­
temente, s e mpre poderemos imaginar c ircunstâncias que
nos habilitem a entender wn milagre ou um ato hwnano; e,
inclusive, sem grande dificuldade", porque ignora o me smo
aspecto. As formigas poderiam, sim, conceber uma expli­
cação para algum acontecimento desnorteante no rmal (por
exemplo, um súbito desmoronamento no formigueiro), mas
não, não poderiam conceber uma explicação, por exemplo,
para a água fervente que humanos joguem, de repente, so­
bre o form igueiro.
/ \/· tl/PLOS OE ANÁLISE 91

(e) Tudo isso, até aqui, demonstra o perigo de tentar


l.: l i minar todos os adversários com um só golpe. Pode haver
pessoas cuja crença em mi lagres não dependa totalmente de
crerem em um Deus que esteja fora do alcance do entendi­
mento humano e que interfira no mundo de modos que
sejam em principio incompreensíveis - para estas pessoas,
os argumentos de Wilson teriam peso. Mas para as pessoas
cuja crença em milagres dependa exclusivamente de crerem
antes em um Deus inalcançável pela razão humana, os argu­
mentos de Wilson são inadequados. Em outras palavras, a
crença cm mi lagres é parte essencial de uma metafisica reli­
giosa específica e não pode ser totalmente destruída sem
que se considere toda a metafísica.

2. Como responder a perguntas sobre conceitos

Neste tipo específico de análise conceitua!, é essencial


adotar o método correto de procedimento, porque você quer
ter em mãos, ao final, um ensaio formal e completo, em vez
de apenas alguns comentários lógicos isolados, informal­
mente expressos. Portanto, custe o que custar, não comece
a escrever sem pensar, para não se meter num emaranhado
terrível e para evitar que seu segundo parágrafo contradiga
o primeiro.
Resista, custe o que custar, à tentação de pensar que você
tem tanto a dizer sobre uma questão de conceito quanto qual­
quer outra pessoa e que, por isto, quanto mais cedo começar,
melhor. Ceder a esta tentação leva à imprudência, aliás, tam­
bém no caso de responder a outro tipo de perguntas, mesmo
que você conheça claramente os pontos a serem abordados.
Nas perguntas sobre conceitos, porém, tal atitude é fatal por­
que, quando começamos a responder, sequer sabemos quais
são os pontos relevantes. Nas perguntas sobre conceitos não
há "moldura" na qual se possa construir a resposta.
92 Pé.NSAR COM CONCEITOS

Para estabelecer uma moldura deste tipo é preciso atin­


gir urna situação (antes de começar a escrever), na qual haj a
alguns pontos a serem elaborados em ordem, que levem a al­
gum tipo de conclusão e à resposta mais definida possí­
vel. Para fazer isto, recomendo o seguinte procedimento -
que pode parecer pouco elegante; que tem etapas que, com
alguma prática, poderão ser ignoradas; mas que, no inicio,
vale a pena adotar do primeiro ao último passo, sem deixar
de lado nenhuma etapa:
(1) Aja como se recomenda no Capítulo 1 , página 2 2 :
isole a questão (ou a s questões) sobre conceitos do restan­
te da pergunta (anote os conceitos a serem anali sados) .
(2) Aplique as técnicas das páginas 27-38 (casos­
modelo, contra-exem plos etc.) a cada conceito e vej a que
luz lançam sobre a questão (ou questões). Anote por escri­
to, resumidamente, os pontos que pareçam especialmente
sign ificnntes.
(3) À luz da etapa anterior, desenvolva um "diálogo"
mental, interior, a propósito do conceito. Proponha-se per­
guntas a você mesmo (ou mesma) e responda a elas. Se achar
interessante, ou oportuno, invente novos casos. Se qui ser,
volte à aplicação das técnicas na última etapa do procedimen­
to. Esta "conversa" informal com você mesmo (ou mesma)
é um dos elementos mais importantes no procedimento. Neste
diálogo, observe os pontos que levam a becos sem saída e

os que parecem levar a algum l u gar. Ao final , você deverá


ter na cabeça, devidamente esclarecido, o esboço básico do
conceito.
(4) Volte à própria pergunta. Este passo pode aj udá-lo
(ou ajudá-la) a enfatizar mais claramente os pontos mais
relevantes, ou a eliminar aspectos que não estejam direta­
mente relacionados à pergunta.
(5) À luz do seu diálogo i n formal e da pergunta, rela­
cione por escrito os argumentos a serem desenvolvidos e a
conclusão à qual vai chegar.
EXEMPLOS DE ANALISE 93

(6) Escre va o ensaio ponto por ponto (e, na medida do


possí ve l , interli gue os v ári os po ntos ) .
( 7 ) Finalmente, releia o que tiver escrito e exclua co­
mentários obviamente indcfensáveis ou extravagantes (e cor­
rija todos e quaisquer erros de estilo, desvios da gramática
da norma culta, pontuação, excesso de jargão da especiali­
dade etc . ) .
Como todo conjunto d e instruções, este também pare­
cerá do lorosamente lento. Imagine que você tenha de apren­
der a nadar "por regras": "Ponha a mão direita na água, à
freme da cabeça. Mantenha os dedos uni dos e puxe a mão
de volta, para perto do corpo, até onde puder, como se o braço
fosse um remo. Ah! E não esqueça de respirar!". À primei­
ra vista, qua l quer pessoa teria se afogado antes de cumprir
todas essas instruções. Mas, de qualquer modo, seguir as
regras sempre é um jeito de começar. . .
No nosso caso, as regras servi rão, de início, para mos­
trar-lhe o que fez de errado, quando tiver de fato escrito um
ensaio, de modo que você então poderá voltar e dedicar aten­
ção especial a alguma das etapas que inconscientemente
tenha deixado de completar.
Exami naremos agora duas perguntas e tentaremos res­
ponder a elas, etapa a etapa, conforme o procedimento expos­
to. Farei referências freqüentes às considerações gerais de
análise mencionadas no capítulo anterior (páginas 22- 7), às
técnicas específicas (páginas 27-38) e às armadilhas da lin­
guagem (páginas 38-44). Será útil ao leitor consultar cada
uma destas seções, quando mencionadas.

a) '�4 punição deve ter caráter de represália?"

Etapa 1
Observamos, primeiro , que há dois conceitos obscuros:
"punição" e "represália" e que, portanto, exigem análise. Em
94 PENSAR COM CONCEITOS

segundo lugar, percebemos que a pergunta construída com


a locução "deve ter" implica que podemos ser chamados a
fazer um juízo de valor. Conseqüentemente, temos de adiar
o juízo de valor, até termos analisado os conceitos.

Etapa II
Aplicamos agora algumas das técnicas de análise:
(a) Um caso-modelo de punição seria o de um menino
que quebrasse propositalmente uma janela e recebesse cas­
tigo corporal aplicado pelo diretor da escola. Este seria tam­
bém um caso-modelo de represália.
(b) Um contra-exemplo de punição seria um caso em
que o menino fosse castigado sem ter feito nada de errado.
Evidentemente, este não é um caso de represália. Por que
não? Porque o tratamento que o menino recebeu não lhe foi
aplicado por represália - ele não está tendo de pagar por
algo que tenha feito, já que não fez coisa alguma que exi­
gisse represália.
(e) Como caso afim, poderíamos considerar se o trata­
mento foi "justo" ou "imparcial". Nos dois casos mencio­
nados, o menino "merecia" ser tratado como foi? Diríamos
que sim no primeiro caso e que não no segundo. O primei­
ro tratamento foi "justo" e "imparcial"; o segundo poderia
ser chamado de "injusto" e "parcial".
(d) Corno caso limítrofe, poderíamos tomar o caso de
alguém que houvesse cometido um crime, mas, em vez de ser
enforcado ou encarcerado, tivesse sido condenado pelo
juiz a ser internado em um asilo de loucos. A expressão é
estranha ou esquisita. Será que "condenado" é realmente a
palavra certa? E se ele quisesse ir para o asilo? Afinal, "asilo"
nonnalmente significa um abrigo, um refúgio, um lugar agra­
dável. Ir para um asilo seria uma "punição"? Quando hesi­
tamos, sem saber que nome dar a algo, onde, exatamente,
está nossa dúvida? Estará em não sabermos se ir para o asilo
l:'XEMPLOS /JE ANÁL!SE 95

é agradável ou desagradável? Ou a dúvida estará no fato de


o tratamento parecer ter pouca l igação com o crime come­
tido? Neste caso não há, sem dúvida, "represália", de modo
algum: alguém cometeu, digamos, um assassinato torpe e não
está tendo de pagar pelo crime.
Precisamos de um caso mais claramente diferente do
que ocorre normalmente nos tribunais britânicos.
(e) Portanto, inventemos um caso (talvez absurdo na
prática) no qual o homem receba um tratamento extrema­
mente agradável - por exemplo, longas férias remuneradas,
com garotas atraentes para cuidar dele e champanhe de graça.
isto não é, certamente, nem "punição" nem "represália".
Mesmo que esse tratamento fosse ordenado por um juiz,
num tribLU1al oficial, como tratamento adequado para o crime
cometido, nem assim concordaiíamos em chamá-lo de "pu­
nição". A razão de não concordarmos deve ser a de que, em
princípio, este tratamento não é adequado como "punição":
é agradável, não detestável. Chamaríamos a este tratamen­
to "injusto" ou "parcial", nem tanto em relação ao homem
j ulgado, mas em comparação com o tipo de tratamento dado
a outros criminosos. Neste caso, o acusado comportou-se
mal e foi recompensado; os outros acusados comportam-se mal
e são punidos. Toda a situação é "injusta": as recompensas
e os castigos, nesta sociedade, não são corretamente distri­
buídos. (Observe-se que o conceito de "recompensa" acom­
panha de perto o conceito de punição.)
(j) Ao examinar o contexto social, podemos ver como
o desenvolvimento da psicologia moderna (entre outras coi­
sas) pode sugerir que devemos rever nossas opiniões sobre
como tratar criminosos em geral. Até o momento, a maio­
ria das sociedades, na maioria dos períodos h i stóricos, con­
tentou-se em tratar os criminosos de acordo com uma sim­
ples lei de represália estilo "olho por olho, dente por dente".
Podemos, no entanto, nos preocupar quanto a tal procedi-
96 PENSAR COM CONCEITOS

menta ser satisfatório ou não. Talvez a punição devesse


também reformar o criminoso - e, decerto, deveria desen­
corajar criminosos em potencial. Daí surgiu a discussão so­
bre punição "reforrnatória" e punição "dissuasiva". A per­
gunta "A punição deve ter caráter de represália?" represen­
ta esta preocupação social. Estamos preocupados em saber
como encaixar outros objetivos (os objetivos da recupera­
ção do c1iminoso e da intimidação de criminosos em poten­
cial), ou, mesmo, em saber se precisamos, mesmo, manter
a noção de represália. Mas - voltando ao uso das técnicas
(a)-(e), como acabamos de aplicá-las - tem-se a impressão
de que todos os casos de punição são também, logicamen­
te, casos de represália. Pode-se, l ogicamente, ter uma puni­
ção sem represália? (Devemos nos lembrar de que este ponto
terá de ser retomado mais adiante.)
(g) A pergunta acima talvez sugira uma ansiedade sub­
jacente na qual se baseia a pergunta. Se a punição nada ti­
vesse de represália - o que talvez signifique nada ter de desa­
gradável - o que seria da lei e da ordem? É claro que temos
de submeter os criminosos a coisas desagradáveis; sem isto,
o que impediria as pessoas de cometerem crimes? O que
traz de volta a idéia da punição como fator de intimidação.
Seria possível preservar o fator de intimidação sem preser­
var, ao mesmo tempo, a noção de represália? Devemos vol­
tar também a este ponto.
(h) Quais seriam os resultados práticos de responder
"sim" ou "não" à pergunta? Se respondermos "sim", parece
que estaremos nos comprometendo com a idéia de impor
tratamento desagradável a todos que cometam crime, porque
punição, represália e tratamento desagradável parecem estar
logicamente ligados. No entanto, isto só vale se insistirmos
em proferir sentenças punitivas. O que aconteceria se tirás­
semos a palavra puniçüo do contexto da criminal idade e pas­
sássemos a pensar exclusivamente sobre qual o tipo de tra-
...

1 1 1 \li'/ OS IJE ANÁLISE 97

1 . 1 1 1 1L·1Ho que consideramos desejável (ao invés de pensar-


1 1 1os no tipo de punição)? Com esta mudança, ganharíamos
111aior liberdade para decidir sobre o tratamento, uma vez
l j l ll: o conceito de punição parece nos atrelar a um tipo espe­
df"rco de tratamento, ou seja, ao tratamento desagradável.
Se respondêssemos à pergunta com um "não", aparen­
l1.:111cnte estaríamos nos contradizendo - isto no caso de a
pun ição implicar logicamente a represália -, o que seria um
mau começo para qualquer tipo de investigação da vida social.
Tudo parece indicar que, para finalidades sociais, é
preciso, antes, ter clara compreensão do que significam as
palavras "punição" e "represália" e, em seguida, propor uma
pergunta mais neutra, como, por exemplo: "Como devemos
lratar os criminosos?"
(i) Seja qual for a idéia que tenhamos dos conceitos de
"punição" e "represália", temos de buscar a máxima clareza
de l inguagem. Aparentemente, "punição" e os termos afins
designam noções bastante distintas e, provavelmente, bas­
tante úteis. Temos apenas de esclarecer o significado nor­
mal destas palavras; não temos de sugerir nem novos senti­
dos nem outras interpretações. Parece que estabelecemos
que punição e represália envolvem necessariamente "trata­
mento desagradável". Talvez envolvam também outros as­
pectos, que teremos de investigar mais a fundo, antes de nos
indagar se temos mesmo de revisar drasticamente nossos
conceitos.

Etapa III
Comecemos agora nosso diálogo interior. Retomemos,
primeiro, os pontos de que tratamos na etapa anterior. Pode­
ríamos ter logicamente urna punição sem represálias? E po­
deríamos preservar o fator de coibição sem preservar a noção
de represália? "Represália" parece envolver a idéia de "qui­
tação de uma dívida": alguém - o diretor da escola ou o juiz
98 PENSAR COM CONCEITOS

- fez com que o menino que quebrou a janela e o homem


que cometeu o crime pagassem pelo que fizeram; em outras
palavras, fez com que "quitassem suas dívidas". O que suge­
re que tenha de haver alguém que deliberadamente aplique
a pun ição; sem esta interferência, a punição não é "puni­
ção" no sentido que nos interessa aqui.
Verifiquemos este ponto com um caso. Suponhamos que
um criminoso saia impune, no que diz respeito à lei, mas
seja espancado pelos parentes da vítima, depois de encerra­
do o j ulgamento. Isto é "punição"? Não. A melhor palavra,
neste caso, seria vingan ça. Para que haja "punição", tem de
ser aplicada por uma autoridade devidamente constituída.
Tem de ser resultado de ato humano? Imaginemos que o
mesmo criminoso, que acaba de ser liberado pelo juiz, seja
atropelado por acaso, na rua. Isto é punição? Claro que não.
Poderíamos, num estado religioso de espírito (se tivéssemos
esse tipo de religião), dizer que "Deus o puniu'', mas seria
forçado, na linha de reflexão que estamos construindo.
Este exemplo mostra que a punição não é apenas ques­
tão de alguém receber um tratamento desagradável depois
de ter feito algo condenável, mas de alguém receber trata­
mento desagradável por ter feito algo condenável. E a ex­
pressão "por ter feito" manifesta aqui a idéia de ação deli­
berada, praticada por mn ser humano expressamente auto­
rizado a praticá-la.
Tudo, agora, começa a parecer mais promissor. "Puni­
ção" é um conceito que traz uma implicação oculta (pági­
na 40): a implicação de "tratamento desagradável por algu­
ma ação condenável, para 'quitação de dívida' ou como
represália". Voltemos agora a examinar a etapa anterior. O
exemplo em (d), no qual o criminoso é internado num asilo,
pode não ser exemplo de punição. Se o juiz estiver dizen­
do, de fato: "Nós não o estamos tratando como criminoso,
mas como doente menta]. Por isso, não estamos interessa-
1 1 1 ,\f/'/.OS OE ANIÍL!SE 99

1 l 1 1., fazê-lo pagar pelo mal que praticou. Acreditamos


(;111

q 1 1 L' o me lhor para você é ser internado num asilo", com esta

"1 nlença, ele não o estará punindo: estará simplesmente

f/1 1/undo do homem. Assim também, em (e) - no caso inven­


lado o criminoso que recebe longas férias remuneradas
-,

1 1 a o está sendo punido porque o tratamento que recebe não

�: desagradável. É claro que poderíamos chamar os dois

vasos de punição, se insistíssemos em que qualquer decisão


tomada por juiz, a respeito do criminoso, fosse considera­
da "punição", mas i sto seria ampliar excessivamente o sig­
ni ficado da palavra (página 42).
Portanto, parece que "punição como represália" diz duas
vezes a mesma coisa: toda punição tem, logicamente, de ser
''como represá lia".
E o que dizer de "punição dissuasiva" e "punição refor­
matória"? São expressões contraditórias? Não necessaria­
mente, porque a punição pode ter aspectos dissuasivos e
reformatórios, aJém de satisfazer ao princípio de represália.
Porém, haverá casos em que o melhor tratamento para dis­
suadir e/ou reformar não satisfará necessariamente o prin­
cípio da represália e, nestes casos, não podemos logica­
mente chamar o tratamento de "punição". Po1tanto, se algum
dia quisermos tratar assim os criminosos, teremos de aban­
donar a noção de punição. Estamos preparados para fazer
isto? Bem, depende de insistirmos ou não em manter a idéia
de represália. Para algumas pessoas, parece positivo exigir
represália em todos os casos de transgressão. Para outras,
parece desnecessário. É uma questão de debate moral, em­
bora não esteja claro que objetivos úteis serão beneficiados
se insistirmos em manter a idéia de represália em todos os
casos. A maioria dos nossos objetivos está adequadamente
representada pela noção de dissuasão e de recuperação -
essas inc1uem nossa preocupação geral com a sociedade e
com o criminoso, como indivíduo.
1 00 PENSAR COM CONCEITOS

Talvez, porém, isto já esteja fora do alcance da pergun­


ta. A pergunta "O tratamento que damos aos criminosos deve
ter caráter de represália?" é bem diferente. Poderíamos deci­
dir, em relação a esta segunda pergunta, que o princípio da
represália funciona muito bem como norma geral, simples­
mente por envolver o tratamento desagradável e pelo fato de
o tratamento desagradável ter um bom efeito dissuasivo (e
talvez também um bom efeito reformatório) sobre as pessoas.
Mas essa é uma questão referente a fatos sociológicos, e para
responder a ela precisaríamos de estatísticas, não de palpites.
É possível que o tratamento com represália funcione bem
para certos tipos de ctimes, mas não para outros, ou, para ser
mais preciso, para certos tipos de criminosos, mas não para
outros. Pode ser que valha a pena dizer tudo isto, mas não
devemos nos afastar demais da pergunta original.

Etapa IV
Ao examinar a pergunta mais uma vez, percebemos que
agora parece estranho perguntar "A punição deve ter cará­
ter de represá lia?". Em termos lógicos, ela tem de ter. O que
precisamos fazer, portanto, para que nossa resposta seja a
mais eficaz possível, é provar este ponto lógico, antes de
mais nada, e, então, esboçar outras possíveis linhas de abor­
dagem para enfrentar as questões que podem estar subja­
centes à pergunta, questões como "Nosso tratamento para
criminosos deveria ter o caráter de represália?" ou "Nossa
punição deveria ter apenas o caráter de represália?". Não pre­
cisamos nos aprofundar nessas linhas de raciocínio, j á que
essas não foram as perguntas que nos pediram que respon­
dêssemos. Mas talvez valha a pena trabalhar um pouco nelas.

·Etapa V
Procuremos agora o modo mais rápido e convincente
de provar os pontos lógicos - e, em primeiro l ugar, o ponto
l:".YEMPLOS DE ANÁLISE JOJ

tle que a punição logicamente implica a represália. Podería­


mos enumerar nossos pontos do seguinte modo:
(a) "Represá lia", em l i nguagem comum, significa "for­
çar alguém a sofrer pelo que fez". É semelhante a "retalia­
ção". Falamos de "cobrar em represália", recorrendo a uma
metáfora aparentemente derivada da cobrança de dívidas.
Uma espécie de "olho por olho, dente por dente".
(b) O que vale como punição? Aqui tomamos os casos
do diálogo interior, da última etapa: os casos do criminoso
que recebe tratamento agradável e do criminoso que é atro­
pelado por um ônibus. Em nenhum destes dois casos, se fa­
laria de "punição", na linguagem corrente - o que só se ex­
plica porque faltam, nos dois casos, traços essenciais do
conceito: (i) tratamento desagradável; ( i i ) tratamento desa­
gradável por ter (o criminoso) feito algo, ou cm represália
a alguma ação condenável; e ( iii) tratamento desagradável
que deve ser aplicado por alguém devidamente autorizado
a agir assim. Poderíamos ampliar e i lustrar esta conclusão
com outros exemplos que utilizamos quando aplicávamos
as técnicas na Etapa II; digamos, o menino que quebrou a
janela, ou o criminoso que foi internado num asilo. Corno to­
dos eles preenchem os critérios, a punição logicamente im­
plica a represália.
(e) Portanto, a pergunta "A punição deve ter caráter de
represália?" é estranha em termos lógicos, porque, na nossa
l íngua, punição é represália. Poderíamos reformular a per­
gunta para "O tratamento que damos aos criminosos deve
ter caráter de represália?" ou "A punição deve ter exclusi­
vamente caráter de represália?". É isto o que preocupava
quem formulou a pergunta 01iginal? Em caso positivo,
podemos apresentar algumas idéias.
(d) Ao examinar "A puniçã o deve ter exclusivamente o
caráter de represália?", poderíamos com razão considerá-la
uma pergunta boba. Qualquer um desejaria que os crimino-
102 PENSAR COM CONCEITOS

sos fossem punidos para, se possível, coibir novos crimes


ou criminosos em potencial, que a punição recuperasse cri­
minosos em atividade ou que, de algum outro modo possí­
vel, a punição beneficiasse a sociedade. É óbvio que a res­
posta é "Não: a pllnição pode e deve ter outros usos".
(e) Ante "A punição deve ter exclusivamente caráter de
represália?'', poderíamos dizer
( i) A represália exclusivamente pela represá! ia não pa­
rece favorecer qualquer ponto relevante.
(ii) É mais do que provável que o desejo da represália
seja irracional e, embora sati sfaça a impulsos presentes na
sociedade e na mente do indivíduo, a represália não leva a
nenhum resultado especialmente desejável.
(iii) Por outro lado, a represál i a pode ser bastante posi­
tiva como um princípio prático na sociedade. E, como prin­
cípio prático, ela pode ser j ustificada porque leva a alcançar
objetivos desejáveis, como a coibição de crimes e a recupera­
ção dos criminosos. Mas esta é uma questão relativa a fatos
sociológicos; para responder a ela seria necessário pesqui­
sarmos muito mais.
(j) Qualquer que fosse a intenção fundamental de quem
perguntou, seria melhor que fizesse uma pergunta mais neu­
tra, como "De que modo deveríamos tratar nossos crimino­
sos?" para, assim, evitar as impl icações lógicas de palavras
como "punição" e "represália". Com a palavra "punição" a
discussão entra num círculo vicioso, já que punição tem
necessariamente caráter de represália.
(g) Pode-se interpretar o significado da pergunta (pá­
ginas 36-7) como "É útil e conveniente atrelar, na linguagem,
a palavra punição à palavra represália?" A pergunta é estra­
nha. De fato, punição está mesmo atrelada a represália, e
muito firmemente. Se a desatrelássemos, teríamos de inven­
tar outra palavra que significasse "tratamento desagradável
aplicado (por alguém com autoridade para tal) por um ato
1 \'/,".�IPLOS DE ANALISE 1 03

condenável", o que seria perda de tempo. O idioma que fa­


lamos funciona perfeitamente nesta área, desde que nos man­
tenhamos conscientes dos significados das palavras que
usamos.
Toda esta discussão, restunida em notas, teria a seguin­
te forma:
( i ) Significado da palavra represália (do uso normal
em nosso idioma).
(ii) Significado da palavra punição ( três critérios ou
traços de significado: casos para ilustrá-los).
(iii) Logo, a punição implica represália. Portanto, em
termos lógicos, a pergunta é estranha.
(iv) Reinterpretações da pergunta : ( 1 ) . . . exclusiva­
"

mente o caráter de represália?" - pergunta tola. (2) . . . tn­


"

tamento de criminosos . . . ?". Finalidade da represália? Moti­


vos para isto? Ú til como princípio prático? Pergunta que
trate de fatos exige pesquisa maior. (3) Necessidade de uma
pergunta neutra, que não envolva conceitos como o de "pu­
nição", se estivermos preocupados com a sociedade. (4) In­
teressa a lterar o significado de palavras da língua de todos
os dias? Pergunta sem sentido.

Etapa VI
Devemos agora tentar organizar essas idéias na forma
de um breve ensaio. Naturalmente seria possível escrever
sobre o assunto em quase qualquer extensão. Para um exem­
plo prático, partirei do pressuposto de um prazo de cerca de
quarenta minutos, incluídas as etapas preliminares e a reda­
ção em si. Quanto destes quarenta minutos você vai gastar
nas etapas preliminares e quanto vai gastar escrevendo é em
parte uma questão de gosto; mas, como j á dissemos antes,
o melhor é cobrir meticulosamente o terreno preliminar e
só começar a escrever depois de saber quase exatamente o
que vai dizer. Isto significa que o tempo real para escre-
104 PENSAR COM CONCEITOS

ver será de cerca de vinte minutos; embora, no caso de o


trabalho de preparação ser fácil, possa-se completá-lo mais
rapidamente e ampliar para trinta minutos o tempo reserva­
do para redigir o texto. Isto, porém, é essencialmente uma
questão de prática e de tentativa e erro: pessoas di ferentes
podem estabelecer regras diferentes.
Ensaio: "A puniçc7o deveria ter o caráter de represá­
lia ? "' Antes ele fazer um juízo de valor de que A deve ser B,
temos de ter certeza, primeiro, de que ternos plena consciên­
cia dos sentidos e usos das palavras A e 8. Com o conceito
de represália, a dificuldade é pequena. Represália significa
"ser obrigado a pagar por algo que se tenha feito" ou "acerto
de contas". Falamos de "exigir em represália" exatamente
como falamos de exigir o pagamento por uma dívida. Vê-se
um criminoso que comete um roubo ou w11 assassinato
como alguém que "tem uma dívida a pagar". A sociedade
exige que ele pague ou sofra represálias e o faz passar al­
gum tempo preso ou o executa. Embora haja problemas prá­
ticos acerca do quanto possa ser exigido "em represália" ou
de que tipo de represália (se é que algum) possa ser exigido,
não há nenhum problema lógico sério quanto à natureza do
conceito.
Já a noção de punição é mais complexa. Vê-se que é
preciso três condições para que um tratamento conte como
punição. Em primeiro lugar, o tratamento deve ser desagra­
dável. Se um criminoso cometeu um homicídio torpe e in­
tencional e foi sentenciado a longas férias remw1eradas, nós
não uescreveríamos essa decisão como punição, mesmo que
tivesse sido ordenada por uma autoridade legal devidamen­
te constituída. Em segundo l ugar, o tratamento desagradá­
vel deve ser imposto deliberadamente por uma pessoa, pela
transgressão ou em refação à transgressão cometida pelo
criminoso. Assim, se um criminoso fosse absolvido por um

tiibunal, mas pouco depois fosse atropelado por wn ônibus


1 \l ,llPLOS DE ,JNÁUSE 105

u11 atingido por um raio, nós não chamaríamos estes even­


tos de "punição" - a não ser, talvez, em virtude de alguma
crença metafisica mediante a qual pudéssemos dizer que
"Deus o castigou". Em terceiro lugar, o tratamento deve ser
imposto por uma autoridade devidamente constituída. Pode­
mos recorrer a mais um caso, no qual um criminoso seja
considerado tecnicamente culpado de um crime, mas se­
ja internado num asüo de loucos em vez de ser encarcerado.
[sto é punição? Provavelmente diríamos que não, porque
não saberíamos ao certo se se aplicaria ao caso qualqL1er um
dos dois critérios mencionados anteriormente. Não está
claro ( i ) se ir para um asilo de loucos (para esse homem
específico) é desagradável ou não, nem (ii) se esta senten­
ça lhe foi imposta por seu crime.
Estes critérios - e em especial o segundo - parecem
demonstrar que a noção de represália é parte integrante do
conceito de punição. Mais resumidamente, punição impli­
ca necessária e logicamente represália; não fosse assim,
não seria punição, mas algum outro tipo de tratamento. Por
isto, a pergunta é curiosa em termos lógicos: parece fazer
pouco sentido perguntar se a punição deve ter o caráter de
represália dado que, em termos lógicos, a punição necessa­
riamente tem um traço de represália. Aquela pergunta, con­
tudo, pode ser um modo deselegante de expressar outras per­
guntas mais interessantes. A mesma pergunta poderia ser
reformulada para "A punição deve ter exclusivamente o ca­
ráter de represália?'', ou talvez (num estilo mais drástico,
mas mais útil) "O tratamento que damos aos criminosos
deveria ter o caráter de represália?".
A primeira das perguntas reformuladas não leva a lugar
algum, pois poucas pessoas desejariam que a punição só aten­
desse à exigência de servir "como represália". Quase todos
desejariam que uma punição intimidasse criminosos poten­
ciais, recuperasse criminosos cm atividade, e que, em geral,
exercesse um efeito benéfico ou "cmativo" sobre a sociedade.
106 PENSAR COM CONCEITOS

Já a segunda questão abre um campo muito amplo. Em


primeiro lugar, não está absolutamente claro quais os resul­
tados benéficos obtidos por meio da represália como um
fim em si mesma. Pode-se defender, como princípio moral,
que os cidadãos perniciosos devam ser forçados a sofrer,
mas esta é uma idéia que dificilmente poderia ser defendi­
da. Em segundo lugar, um desejo de impor represálias pare­
ce suspeito em termos psicológicos e éticos e difici !mente
estaria em harmoni a com os credos e as visões de mundo
pregadas (embora raramente praticadas) pelas civilizações
mais modernas. Talvez se possa defender a represália como
um princípio prático em sociedade, com base no fato de que
o tratamento pela represália, de fato e na prática, atende a
outras finalidades - por exemplo, aos objetivos de coibir e
recuperar. Mas esta é uma questão relativa a fatos socioló­
gicos e, para responder a ela adequadamente, precisamos de
estatística, não de palpites.
Se estamos socialmente interessados no tratamento dado
a criminosos e transgressores em geral, seria mais prudente
formular uma pergW1ta que não nos envolvesse em conceitos
complexos - alguma pergunta mais simples, como "De que
modo deveríamos tratar os criminosos?". Usar a palavra pun i­
ção é prejulgar a questão, pois punição, como vimos, especi­
fica um certo tipo de tratamento. Em teoria, seria possível
alterar o significado da palavra punição, de modo a desatre­
lá-lo da noção de represália. Talvez devêssemos tê-lo tornado
sinônimo de "tratamento". Mas parece haver pouco sentido
em tentar uma revisão l ingüística dessa ordem. Uma vez que
estejamos conscientes das implicações da palavra punição, é
provável que prefiramos debater nossos problemas sociais em
l inguagem diferente e menos carregada.

Etapa Vil
Agora voltemos a examinar esse ensaio, já que reserva­
mos um certo tempo para coneções. Observemos o seguinte:
1 1 J:All'LOS DE ANÁLISE 107

(a) Começamos o primeiro parágrafo com a expressão


Antes de fazer um juízo de valor", mas não satisfizemos a
i 1 11plicação de que faríamos mesmo o ta1 juízo de valor. Te-
1 1 1os de dizer alguma coisa a respeito. O melhor lugar é o
terceiro parágrafo.
Em vez de dizer "Por isto, a pergunta é curiosa em ter­
mos lógicos: parece fazer pouco sentido pergw1tar se a puni­
ção deve ter caráter de represália, dado que, em tennos lógi­
cos, a pW1ição necessariamente tem um traço de represália",
digamos: "É dificil entender o que se quer saber ao perguntar
se a punição deve ter caráter de represália, uma vez que, em
termos lógicos, ela necessariamente tem um traço de represá­
lia. Daí que é impossível, como demos a entender no iní­
cio, apresentar qualquer juízo de valor a esse respeito".
(b) No segundo parágrafo, a terceira frase fornece uma
razão para a segunda; ou seja, espera-se que nosso exemplo
sirva para provar o critério de desagrado (em outras pala­
vras, o critério pelo qual se identificam as punições desa­
gradáveis). Para que isto fique absolutamente claro, talvez
seja melhor começar a terceira frase com "Pois, se um cri­
minoso . . .".
(e) No meio do segundo parágrafo, onde falamos da
idéia de que "Deus o castigou", será que ela foi expressa
com suficiente clareza? Nós mesmos a entendemos com
clareza? O melhor, neste caso, é escolher: ou desenvolvemos
e elaboramos este ponto, ou o eliminamos. Talvez devamos
escrever apenas " . . . normal mente, não chamaríamos esse
acontecimento de punição em nenhum sentido l iteral", e
terminar a frase aí.
(d) No quarto parágrafo, primeira frase: "poucas pes­
soas não desejariam" é desnecessáriamente complicado.
Reescreva como "praticamente todos gostariam".
(e) No meio do quarto parágrafo, dizemos "Pode-se de­
fender, como princípio moral, que os cidadãos perniciosos
1 08 PENSAR COM CONCEJTOS

devam ser forçados a sofrer, mas esta é uma idéia que difi­
cilmente poderia ser defendida". Será que é mesmo assim?
É o que queremos dizer? Na realidade, poderíamos defen­
der várias idéias, inclusive a que se menciona mais adiante,
no mesmo parágrafo: de que se trata de um bom princípio
prático. Seria melhor acrescentar aqui algo semelhante a " ...
(ser defendida) como um fim em si mesma" ou " ... defen­
dida como desejável por si mesma".
(/) No final do quarto parágrafo, onde dizemos "Mas
esta é uma questão relativçi a fatos sociológicos", fomos
excessivamente d i retos. O melhor será dizer algo semelhan­
te a "Mas essa visão, se quisermos avaliá-la adequadamente,
exige um conhecimento sociológico muito maior do que o
que temos no momento. Pode parecer plausível, mas não faz
muito sentido ceder a palpites no contexto atual".
(g) No início do quinto parágrafo, consideramos sim ­
ples a pergunta "De que modo devemos tratar os crimino­
sos?". Esta não é, certamente, urna pergunta simples, não,
pelo menos em qualquer de seus sentidos mais evidentes.
Deveríamos eliminar o adjetivo simples, ou explicar que nos
referimos a "simples em termos lógicos (porque não inclui
conceitos difíceis nem palavras de alta carga emocional)".
Ao examinar as etapas nesse procedimento, procurei
avançar o mais lentamente possível. O leitor terá a impres­
são - e acho que deve, mesmo, ter esta impressão - de que
muitos pontos poderiam ter sido deixados de lado, de que ou­
tros pontos merece1iam ser mais bem discutidos e de que, pro­
vavelmente, faltaram pontos importantes. É claro que se po­
deria escrever muito mais para complementar a parte final
do ensaio - que trata da reformu l ação das perguntas -, já
que ali se abre todo o campo da reforma criminal, dentre
outros campos; mas não creio que tais assuntos estejam es­
tritamente incluídos nos termos de referência propostos pela
pergunta, embora acrescentem alguns pontos de interesse e
l:'X�MPLOS DE ANÁLISE 1 09

aprofundem toda a questão, para além da comprovação su­


cinta e árida do fato de que "punição" está logicamente atre­
lada a "represália". Melhor seria, para a discussão, que nos
demorássemos mais para provar este ponto; salientássemos
outros aspectos de interesse lógico a respeito do conceito;
e que consumíssemos menos tempo para responder a pergun­
tas de cunho sociológico que, em sentido estrito, ninguém
perguntou. No entanto, desde que tenhamos consciência de
que temos de fazer justiça à pergw1ta original, podemos dizer
que qualquer outro aspecto que queiramos cobrir será ques­
tão de opinião - talvez, mesmo, questão de gosto.

b) ''Astrologia é ciência? "

Etapa I
Observamos (página 23) que esta é uma pergunta mis­
ta, que envolve conhecimento sobre a natureza da astrologia
e alguma compreensão do conceito de ciência, e decidimos
enfrentar primeiro a questão do conceito.

Etapa [!
(a) Um caso-modelo de ciência talvez seja a astrono­
mia, embora obviamente haja muitos outros. Haveria alguma
vantagem em escolher a astronomia, porque há muito em
comum entre astrologia e astronomia (ambas têm por obje­
to as estrelas e os planetas).
(b) Poderíamos também inventar um contra-exemplo
que tivesse a ver com estrelas. Imaginemos que alguém pin­
tasse um quadro impressionista em que aparecessem estrelas
ou escrevesse um poema a respeito delas. Nenhuma des­
tas atividades pode ser considerada ciência: são considera­
das arte. Em certo sentido, como a astronomia, o quadro e
o poema também têm a ver com estrelas, mas a abordagem
é feita de ângulo diferente, ou tem objetivo diferente.
110 PENSAR COM CONCEITOS

(e) Que conceitos estão relacionados à ciência? Talvez


a noção de conhecimento; mas neste caso a relação não é
muito íntima, porque há muitos tipos de conhecimento que
não são científicos. Podemos saber latim, matemática, saber
nadar, conhecer o nome do primeiro-ministro em 1 888, e
assim por diante. O que dizer do conhecimento da nature­
za? Este está mais perto da ciência, mas ainda não o sufi­
ciente. Pode-se dizer que grandes pintores paisagistas como
Wordsworth ou Constable, e lavradores e camponeses, todos
estes "conheciam a natureia'', mas nada sabiam sobre a na­
tureza, não a conheciam como a conhecem os cientistas. Ti­
nham conhecimentos concretos, mas não eram capazes de
formular leis e h ipóteses e nunca fizeram experiências. Po­
de-se dizer que estes são alguns dos critérios para que algo
seja ciência.
(d) Que outras atividades estão bem próximas da ciên­
cia, além da astrologia? Examinemos, por exemplo, a psico­
logia. Ora, os psicólogos de fato têm conhecimentos sobre
os seres h umanos. Eles sem dúvida formulam leis e hipóte­
ses e, sim, fazem muitas experiências. Mesmo assim, ainda
não sabemos ao certo se a psicologia é ciência. Por que não?
Talvez porque achemos que os psicólogos nem sempre nos
dizem a verdade. Mas ... nem os físicos nem os astrônomos
dizem sempre a verdade. Não há ramo da ciência que nunca
tenha cometido erros.
Será que não temos certeza quanto ao caráter científi­
co da psicologia porque, às vezes, temos a impres:são de que
os psicólogos não nos dizem nada que já não saibamos?
Talvez achemos que o que eles dizem ou é tolice ou é óbvio.
Experimentemos outro caso limítrofe: a meteorologia ou
previsão do tempo. Será ciência? Ser ciência o u não, neste
caso, parece depender de os meteorologistas terem capaci-·
dade para fazer previsões do tempo que sejam mais acerta·
das do que as de uma pessoa comwn e de todas as suas
I \ EMPLOS DF: ANÁLISE 11l

experiências e hipóteses terem, de fato, algum valor. Portanto,


tnlvez a previsão seja o critério mais importante. 1 Mas talvez
os experimentos e as hipóteses também tenham importância.

(e) Inventemos, então, um caso em que haja previsões


admiráveis, mas sem a parafernália científica. Suponhamos
que eu olhe numa hola de cristal e prevej a com exatidão o
vencedor do Derby, todos os anos. Partamos do pressuposto
de que eu não tenha idéia de como consigo tal resultado c de
que não faça qualquer tipo de experiências: eu apenas olho
a bola e digo quem vai vencer. Isto é ciência? Claro que não.
Por que não? Talvez porque eu trabalhe sem equipamento,
além da minha bola de cristal. e não faça experiências. Su­
ponhamos então que eu compre uma grande quantidade de
equipamentos; que cerque minha bola de cristal com fios e
tubos; que de vez em quando derrame líquidos de cores
diferentes em provetas, e assim por diante. Será que isso aju­
daria? Não, não ajudaria. Diríamos que eu disfarcei a coisa
toda para parecer científica, mas que, no fundo, tudo con­
tinuou exatamente como antes.
Para começar, eu não chego às minhas previsões por
um processo de raciocínio e observação. O equipamento e
as pseudo-experiências não estavam de fato vinculados às
minhas previsões. Portanto, parece que já ternos mais alguns
critérios: (i) a atividade tem de nos dizer mais do que o q11e

1 . Não creio que possamos contar a capacidade de previsão como um crité­


rio essencial. A botânica e a anatomia, por exemplo, são geralmente consideradas
ciências; mas sua principal função consiste em classificar, mais do que em fazer
previsões. No entanto, a capa cidade de fazer previ sõ es é muito im portante.
Mesmo o trabalho de classificação resulta, muitas vezes, num aumento do poder
de fazer pre visões, pois os itens classificados são reunidos em grupos, de acordo
com características impo1tantes que têm em comum, e a maior conscicntização quan­
to a estas características aperfeiçoa nossa capacidade para prever o comportamen­
to futuro dos itens classificados. De fato, não haveria nenhum sentido ou finali­
dade - pelo menos nenhuma finalidade cie ntífica cm clas�ificar as coisas, se a
classificação não nos ajudasse a entender o funcionamento dos seres classifica­
dos e daí (inevitavelmente) aperfeiçoasse nossos poderes de previsão.
1 12 PENS/JR COM CONCEITOS

já sabemos; (ii) tem de fazer isto, não por palpite, inspiração


divina ou seja lá o que for, mas por meio da observação, da
experimentação, da verificação de hipóteses, por experiên­
cias, e assim por diante. A ciência não é simplesmente conhe­
cimento: ela é con11ecimento que o homem comum não pode
produzir sozinho, e é um conhecimento organizado de modo
específico e complexo, destinado a produzir resultados.
(f) Esta pergunta poderia aparecer num contexto social se,
digamos, estivéssemos cogitando a possibilidade de ensinar
astrologia na escola ou na universidade. "É ciência?" signi­
ficaria "Vale a pena ensiná-la?". Sabemos que vale a pena
ensinar ciência pelo menos por um bom motivo: porque a
ciência é útil. Com a ciência, podemos melhorar nosso padrão
de vida, defender-nos de agressões, mandar o homem ao
espaço etc. Será que a astrologia produzirá resultados úteis?
Isto depende obviamente de a ciência produzir conhecimen­
to que não pudéssemos obter por outros meios, como men­
cionado em (e).
(g) Existe alguma ansiedade oculta aqui? Não estare­
mos talvez preocupados com o fato de a astrologia poder
ser uma ciência sem que o saibamos? Que podemos estar
descartando o assunto com excessiva facilidade? Mas, neste
caso, o que ternos de fazer é testar para ver se ela produz
con11ecimento genuíno e que não possa ser obtido de outro
modo. Ou será que estamos com a preocupação oposta - a
de que estejamos sendo tentados, só porque a palavra ter­
mina em "logia", a aceitá-la como ciência, mas, ao mesmo
tempo, queremos manter no nível mais alto possível as qua­
lificações para que algo seja considerado "ciência"? Quere­
mos proteger zelosamente o conceito e não correr o risco
de contaminar ciências "verdadeiras" com pseudociências?
fsso também depende de a astrologia passar nos testes con­
siderados relevantes para que determinado "saber" seja consi­
derado "ciência" ou de satisfazer os critérios.
l:"\EMPLOS DE ANÁUSE 113

(h) Os resultados práticos de responder "sim" ou "não"


a esta pergunta são bastante óbvios. Se considerarmos a

astrologia uma ciência, poderemos esperar que se escrevam


livros didáticos "de astrologia" e que a astrologia seja ensi­
nada nas escolas e universidades. Haveria catedráticos de
astrologia e a. Royal Society aceitaria astrólogos como mem­
bros. Aqui vemos o aspecto prático que a pergunta visa a
esclarecer. O que nos interessa é saber se a astrologia é ou
mistificação ou perfeitamente respeitável. Se for m istifica­
ção ou, mesmo, se não tiver nada de importante a oferecer,
não vamos querer perder dinheü·o com ela. Mas isto tam­
bém depende de a astrologia poder fornecer conhecimento
genuíno.
({) Se concluirmos que a astrologia satisfaz a alguns dos
critérios, mas não a outros, poderemos querer chamá-la de
ciência, mesmo que isto signifique estender o conceito um
pouco além dos seus limites no1mais. Deveriamos fazer isto
somente se, após uma reflexão cuidadosa, considerássemos
que a astrologia satisfaz - o u que talvez possa em princípio
satisfazer - os critérios mais importantes. (Assim, podería­
mos dizer, embora sej a arriscado, que a psicologia deve ser
considerada ciência, porque em princípio pode satisfazer a
todos os critérios, mesmo que no presente momento não o�
satisfaça.) Por outro lado, se ela não satisfizer a nenhum dos
critérios, ou se satisfizer somente aos menos importan•es,
não teremos nenhuma razão para estender o conceito de
ciência, de modo a induí-la.

Etapa III. O diálogo interior


Para começar, vamos dar mais uma olhada nos critérios
para que algo seja ciência, porque as idéias que temos sobre
este ponto ainda não estão perfeitamente claras. Primeiro, a
atividade típica deve ter alguns poderes de previsão superio­
res à capacidade do homem comum. Qualquer um pode pre-
114 PENSAR COM CONCEITOS

ver chuva depois de ver no céu nuvens de tempestade; mas,


para que a meteorologia seja ciência, ela terá de poder pre­
ver chuva num momento em que o homem comum ainda
nem pense em chuva. (Mas e se, ocasiona/mente, a meteo­
rologia fizer previsões corretas em momentos em que o ho­
mem comum ainda nã.o consiga prever coisa alguma? Não
basta: poderia acertar por puro acaso. Para aceitá-la como
ciência, teríamos de ter certeza, pelo menos, de que a me­
teorologia não acerta só por acaso. Portanto, precisamos
de previsões corretas e ra;zoavelmente consistentes, vale di­
zer, previsões nas quais o número de erros não esteja muito
perto do número de acertos.)
Em segundo lugar, a previsão deve resultar de alguma
técnica organizada. É necessário que haja equipamento com­
plexo? Na realidade, não. Pode-se praticar a astronomia com
bastante sucesso recorrendo apenas aos olhos e ao raciocí­
nio. Mas . . . não é isto, exatame11tc, o que faz o vidente da
bola de cristal, em (e)? Absol utamente, não. Porque o viden­
te não observa nada antes de fazer seus cálculos e verificar
suas teorias, como faz quem observa os movimentos dos pla­
netas e depois desenvolve teorias sobre eles. Portanto, é
preciso que haja algum tipo de técnica, de observação,
de raciocínio, de experimentação etc. Não se trata apenas de
que o cientista possa fazer previsões; trata-se também de que
suas previsões sejam firmemente fimdarnentadas em obser­
vações e teorias. Porque só assim poderemos explicar por
que, digamos, haverá um eclipse ou por que o papel de tor­
nasse! se tornará vermelho.
A idéia da explicaçclo é wn critério necessário? Inven­
temos um caso em que todos os outros critérios sejam satis­
feitos, exceto a explicação. Tomemos o exemplo da astro­
nomia elem�ntar que já usamos. Observamos (por meio de
telescópios e outros equipamentos complexos) as estrelas e
os planetas, e notamos que eles se movem em certas órbi­
tas regulares ao longo de determinados períodos. Pela obser-
EXEMPLOS DE ANlÍ.llSE 1 15

vação constante, mas sem teorizar quanto às causas, che­


gamos a uma posição na qual podemos prever com preci ­
são que planetas estarão em que parte do céu, em certas
ocasiões. A í está algo que o homem comum não conse­
guiria calcular sozinho: mas será ciência? Poderíamos pen­
sar também em alguém que passasse muito tempo obser­
vando o comportamento dos pássaros no jardim, de modo
que pudesse fazer previsões quanto ao seu comportamento
que outros não poderiam fazer. Será ciência? Poderíamos
preferi r dizer que estas são observações preliminares à ciên­
cia. Mas estes, obviamente, são casos limítrofes; e, de fato,
não fomos precisos ao dizer que, nestes casos, não houve
nenhum elemento de explicação e nenhuma "teorização
sobre as causas". Pois o observador de estrelas diria coisas
como "Vênus vai aparecer no horizonte dentro de uma hora
porque sempre aparece nesta época do ano, desde que não
ocorram tais e tais condições .". E o observador de pássa­
. .

ros diria coisas como "Bem, aquele c hapim vai entrar no


buraco do coqueiro, porque quando há neve no chão os cha­
pins entram em buracos de coqueiro, a menos que encon­
trem insetos que possam comer...", e assim por diante.
Talvez estas sentenças sej am diferentes das sentenças da
ciência "verdadeira", na qual as razões não se expressam só
em termos do que aconteceu no passado; mas a diferença
não é radical; não podemos, portanto, usar o critério da expli­
cação ou da formulação de teorias para criar uma nítida
linha divisória entre a ciência e a observação inteligente.
E quanto à astrologia? A questão, aqui, é mais de fatos
concretos do que de conceitos. Sabemos que os astrólogos
empenham-se (ou parecem empenhar-se) e m fazer previ­
sões com base numa suposta conexão entre as posições dos
astros e a vida humana. Es pera se que pessoas nascidas sob
-

a influência de um certo signo do Zodíaco tenham um certo


temperamento. Quando o planeta A está em conjunção com
o planeta B, diz-se que a época é favorável para o amor, a
116 PENSA R COM CONCEITOS

guerra, os negócios. Não há dúvidas de que a astrologia "fala"


como se fosse ciência. Para os astrólogos, a astrologia é
capaz de fazer previsões em casos em que o homem comum
não conseguiria, mediante técnicas aperfeiçoadas (conheci­
mento especializado do que significam os movimentos dos
astros, a criação de horóscopos etc.), com sucesso razoavel­
mente consistente.
Será que a astrologia confirma tudo isto? Não sabe­
mos, porque não se sabe se ela foi algum dia submetida a
algum teste crucial. Teria sido preciso projetar experimentos
controlados, nos quais se solicitassem as mesmas previsões
a grupos de astrólogos e a grupos de pessoas comuns, todos
informados dos mesmos fatos e com a mesma capacida­
de intelectual média (com a única diferença de que os as­
trólogos contariam com seu "conhecimento especializado").
As previsões têm de ser definidas e verificáveis; se não o
forem, não haverá como testar sua correção. (De pouco ser­
virão "previsões" como "Se você estiver com algum dinhei­
ro hoje, provavelmente gastará parte dele". ) Para que a
astrologia fosse considerada ciência, os astrólogos teriam
de demonstrar (i) que fizeram mais previsões corretas e
com maior regularidade do que as pessoas comuns; e (ii)
que as fizeram graças a seu "conhecimento especializado",
e não apenas por clarividência. Mesmo neste caso, ainda se
poderia pensar que seria ciência apenas no mesmo sentido
(amplo) em que o observador de astros e o observador de
pássaros dos exemplos mencionados "fazem ciência". Os
astrólogos teriam de dizer: "Bem, não sabemos por que moti­
vo, mas acontece que, quando Marte está ascendente e em
conjunção com Vênus, a ocasião é boa para que oficiais do
exército se casemn. Em outras palavras, o volume de expli­
cação e de teorias formuladas sobre as causas pode ser insu­
ficiente para que a astrologia seja considerada ciência; ela
pode estar simplesmente no estágio preliminar de observa­
ção geral.
f;').EMPLOS DE ANÁLISE 1 17

Um último comentário: os "saberes" não são conside­


rados ciências a menos que sejam adeq uadamente científi­
cos. Se algum dia a astro logia houvesse sido ciência, a esta
altura, provavelmente, ela já estaria comprovadamente re­
conhecida (embora não necessariamente: basta pensar na
percepção extra-sensorial, cujo estudo, hoje, apenas come­
ça a ser feito de modo científico). Ninguém haveria de que­
rer que se começasse a ensiná-la nas escolas e un iversida­
des, na vaga esperança de que, quando afinal forem feitos
todos os testes, se comprove o "caráter científico" da per­
cepção extra- sensorial . É cl aro que se pode dizer que "Pode
haver algo digno de estudo na percepção extra-sensorial ...",
mas isto não significa grande coisa. Pode haver algo digno
de estudo na cristalomancia, na feitiçaria, no espiritismo, na
alquimia, na c larividência, na cartomancia, o que não nos
dá a menor razão para considerar estas atividades como
"ciência em potencial " , sequer por um instante; continuam
a ser mistificação. Seres racionais só acreditam no que ve­
nha apoiado em boas evidências.

Etapa I V
Após mais um exame da pergunta, vemos que ela não
apresenta qua lquer outra dificuldade. Pedem-nos simples­
mente que digamos se a astrologia se encaixa no conceito
de ciência. Poderíamos refo rmular a pe rgun ta : "Seria sen­
sato considerar ciência a astrologia?", mas de pouco adianta­
ria; no máximo, esta ríamos explicitamente reconhecendo que
se trata de questão conceituai.

Etapa V
Devemos agora tentar passar para o papel, do modo mais
sucinto possível, em ordem coerente, os vários pontos lógi­
cos que estabelecemos.
( a ) O conceito de ciência distingue-se da mistificação,
118 PENSAR COM CONCEITOS

por um lado, e do conhecimento comum que tem o homem


rné<lio, por outro lado.
(b) Ciência é um conjunto de conhecimentos factuais e
de teorias sobre os fenômenos da natureza; em termos lógi­
cos, é diferente da arte, da adivinhação, da apreciação esté­
tica etc.
(e) Os critérios para que um dado "saber" seja reconhe­
cido como ciência parecem ser:
(i) a capacidade para fazer previsões com sucesso ra­
zoavelmente regular, em áreas de conhecimento nas quais o
homem comum não consiga fazê-las;
(ii) as previsões devem ser firmemente fundamentadas
num conjunto de observação, teorias e talvez também no re­
curso a expetimentos e a equipamentos complexos, de tal mo­
do que se possa ver que derivam deste conjunto.
Talvez pudéssemos expressar esses dois pontos dizen­
do que a ciência é um conjunto sofisticado de conhecimen­
tos ou um método altamente organizado para obter conhe­
cimento.
(d) Embora a previsão acertada - como em ( i ) - talvez
sej a o critério mais importante, a necessidade de explicar e
de formular teorias, como em (ii), é um critério mais amplo.
Poderíamos traçar uma distinção entre os estágios prelimi­
nares da ciência (ou talvez anteriores à ciência) e a ciência
"verdadeira". Os casos da astronomia de amadores e da obser­
vação de pássaros encaixam-se aqui.
(e) A astrologia alega, no mínimo, que satisfaz a estes
critérios, com base numa suposta conexão entre os astros e
a vida humana.
(j) Estas alegações não foram comprovadas. Para com­
prová-las, precisaríamos de certos testes e experimentos,
meticulosamente projetados para garantir que os dois crité­
rios sejam satisfeitos.
(g) Parece improvável que a astrologia possa satisfazê-los,
posto que até hoje não o fez. Portanto, não seria sensato,
f.XEM!'LOS D/:. ANALISE 1 19

nem de um ponto de vista lógico, nem de um ponto de vista


sociológico, considerá-la ciência.
Na forma de anotações, teríamos:
(i) A ciência é diferente ( 1 ) da mistificação, ( 2 ) da arte,
apreciação estética etc. e ( 3 ) do conhecimento comum de
amadores.
( i i ) A ciência é um conjunto de fatos e teorias a respei­
to da nalmeza.
( i i i) Critérios: ( 1 ) previsões consistentes e acertadas;
(2) previsões que derivem de observações, teorias etc., pelo
menos até certo ponto.
(iv) Distinção entre a ciência "verdadeira" e o estágio
pre liminar de observação.
(v) A astrologia alega que satisfaz a estes critérios, mas
isto não foi provado. É preciso testar.
(vi) Enyuanto não passar pelos testes, é precipitado
aceitar a astrologia como ciência.

Etapa VI. O ensaio completo


O que é uma ciência? Sabemos que, dentre outras, a as­
tronomia, a fisica e a química são ciências, ao passo que a
poesia, a pintura e a natação não são. A partir daí vemos que
uma ciência, pelo menos, deve interessar-se pela descober­
ta e enunciação de fatos sobre o mundo natural (em con­
traste com a criação de obras de arte ou com o aprendizado
de técnicas). Mas esta não pode ser uma condição suficien­
te para a ciência: a alquimia e a quiromancia, por um lado,
e o conhecimento vulgar do mundo natural ao alcance do
leigo comum, por outro, não se qualificam como ciência,
muito embora pareçam voltados para descobrir e enunciar
fatos. Os critérios da ciência são mais rigorosos.
O primeiro critério é que a atividade deve permitir que
se façam previsões, com um nível de acerto razoavelmente
regular, que o homem comum provido de conhecimentos
120 PENSAR COM CONCEITOS

comuns não consiga fazer. Assim, o homem comum pode


ser capaz de prever que vai chover se vir no céu uma nuvem
de tempestade, mas só um meteorologista especial izado pode
prever chuva sem que haja sinais tão óbvios. Todo o con­
jLmto de observações, hipóteses, experimentos, leis, teorias
e o equipamento complexo e sofisticado do que chamamos
de "ciência" mostra um nível de organização do conheci­
mento muito superior ao conhecimento de senso comum. E
é em virtude disto que são possíveis as previsões mais sofis­
ticadas - como de um eclipse ou de uma reação atômica.
Esse critério, no entanto, não é essencial, e é também
insuficiente. Podemos imaginar um vidente ou alguém que
constantemente tivesse "palpites" confiáveis e que fizesse
previsões com índice elevado e constante de acerto; o que
fizessem ainda não se podeiia considerar ciência. A mera
posse de equipamentos complexos e de uma técnica sofis­
ticada não basta para corrigir essa falha. Um adivinho pode­
ria, por exemplo, usar bolas de cristal, um complexo siste­
ma de "deitar as cartas" para i nterpretá-las e assim por dian­
te, e também fazer previsões acertadas, e, ainda assim, não
preencheria as condições para ser um cientista. A técnica
sofisticada tem de ser vista como a base da qual emanam as
previsões: a técnica e as previsões têm de estar racional­
mente ligadas. Nosso segundo critério, portanto, é que, se
uma ciência tratar de previsões, estas terão de derivar de um
conjunto altamente organizado de observação, experimen­
tação, teoria etc.
Este segundo critério é bastante amplo, e podemos ima­
ginar casos nos quais se poderiam fazer previsões com um
sucesso espantoso, mas cuj a base teórica fosse tão frágil
que hesitaríamos em chamar esses casos de ciência. Al­
guém que passe muito tempo olhando os astros, ou obser­
vando o comportamento de pássaros, pode prever com mais
acerto do que o homem comum - assim como um cozinhei­
ro pode prever o comportamento de certos sólidos e líqui-
EXEMPLOS DE ANÁLJSE 121

dos com mais acerto do que alguém que não se dedíque à


culinária. Nestes casos, não há qualquer mistificação, como
no caso de quem lê a sorte. No entanto, não há nestas pre­
visões teoria suficiente, nem explicações suficientes, nem as
causas foram suficientemente investigadas. A atividade não
é altamente organizada nem sofisticada o suficiente para ser
considerada ciência.
A astrologia alega que é ciência, ou seja, alega que não
é arte, técnica, nem simplesmente uma boa diversão; susten­
ta que os acontecimentos da vida humana podem ser pre­
vistos por meio do exame dos astros e planetas. Infelizmente_,
até agora a astrologia não provou que satisfaz a qualquer dos
dois critérios. Não sabemos nem se os astrólogos podem de
fato fazer previsões com precisão constante e com maior
acerto do que o homem comrnn, nem se suas previsões (se
forem acertadas) derivam da "técnica" da astrologia. Teríamos
de realizar testes rigorosos, comparando grupos de controle
de astrólogos com outros grupos de não-astrólogos, e tam­
bém investigar a l igação entre as previsões astrológicas e a
teoria astrológica, para sustentar qualquer tipo de defesa da
astrologia. E parece improvável, dada a antigüidade desta
pseudociência, que haja defesa convincente, já que houve
tempo suficiente para que os astrólogos provassem suas ale­
gações. É claro que pode "haver algo digno de estudo" na
ash·ologia, que pode, com o tempo, passar a merecer estu­
do científico, como está acontecendo agora com os fenô­
menos da percepção extra-sensorial. Por enquanto, porém,
parece não fazer sentido que se estendam os limites do con­
ceito de ciência de modo a incluir a astrologia.

Etapa Vil. Correções.


(a) No terceiro parágrafo, o ponto principal não está bem
esclarecido. Antes da última frase do parágrafo, depois de
"têm de estar racionalmente ligadas", deveríamos dizer algo
como "O vidente de sucesso não sabe por que seus palpi-
120 PENSAR COi'vl CONCEITOS

comuns não consiga fazer. Assim, o homem comum pode


ser capaz de prever que vai chover se vir no céu uma nuvem
de tempestade, mas só um meteorologista especializado pode
prever chuva sem que haja sinais tão óbvios. Todo o con­
jtmto de observações, hipóteses, experimentos, leis, teorias
e o equipamento complexo e sofisticado do que chamamos
de "ciência" mostra um nível de organização do conheci­
mento muito superior ao conhecimento de senso comum. E
é em vi rtude disto que são possíveis as previsões mais sofis­
ticadas - como de um eclipse ou de uma reação atômica.
Esse critério, no entanto, não é essencial, e é também
insuficiente. Podemos imaginar um vidente ou alguém que
constantemente tivesse ''palpites" confiáveis e que fizesse
previsões com índice elevado e constante de acerto; o que
fizessem ainda não se podeiia considerar ciência. A mera
posse de equipamentos complexos e de urna técnica sofis­
ticada não basta para corrigir essa falha. Um adivinho pode­
ria, por exemplo, usar bolas de cristal, um complexo siste­
ma de "deitar as cartas" para i nterpretá-las e assim por dian­
te, e também fazer previsões acertadas, e, ainda assim, não
preencheria as condições para ser um c ientista. A técnica
sofisticada tem de ser vista como a base da qual emanan1 as
prevjsões: a técnica e as previsões têm de estar racional­
mente ligadas. Nosso segundo critério, portanto, é que, se
uma ciência tratar de previsões, estas terão de derivar de um
conjunto altamente organizado de observação, experimen­
tação, teoria etc.
Este segundo critério é bastante amplo, e podemos ima­
ginar casos nos quais se poderiam fazer previsões com um
sucesso espantoso, mas cuja base teórica fosse tão frágil
que hesitaríamos em chamar esses casos de ciência. Al­
guém que passe muito tempo olhando os astros, ou obser­
vando o comportamento de pássaros, pode prever com mais
acerto do que o homem comum - assim como um cozinhei­
ro pode prever o comportamento de certos sólidos e líqui-
EXEMPLOS DE ANÁLISE 121

dos com mais acerto do que alguém que não se dedique à


culinária. Nestes casos, não há qualquer mistificação, como
no caso de quem lê a sorte. No entanto, não há nestas pre­
visões teoria suficiente, nem explicações suficientes, nem as
causas foram suficientemente investigadas. A atividade não
é altamente organizada nem sofisticada o suficiente para ser
considerada ciência.
A astrologia alega que é ciência, ou seja, alega que não
é arte, técnica, nem simplesmente uma boa diversão; susten­
ta que os acontecimentos da vida humana podem ser pre­
vistos por meio do exame dos astros e planetas. Infelizmente,
até agora a astrologia não provou que satisfaz a qualquer dos
dois critérios. Não sabemos nem se os astrólogos podem de
fato fazer previsões com precisão constante e com maior
acerto do que o homem comum, nem se suas previsões (se
forem acertadas) derivam da "técnica" da astrologia. Teríamos
de realizar testes rigorosos, comparando grupos de controle
de astrólogos com outros grupos de não-astrólogos, e tam­
bém investigar a l igação entre as previsões astrológicas e a
teoria astrológica, para sustentar qualquer tipo de defesa da
astrologia. E parece improvável, dada a antigüidade desta
pseudociência, que haja defesa convincente, já que houve
tempo suficiente para que os astrólogos provassem suas ale­
gações. É claro que pode "haver algo digno de estudo" na
astrologia, que pode, com o tempo, passar a merecer estu­
do científico, como está acontecendo agora com os fenô­
menos da percepção extra-sensorial. Por enquanto, porém,
parece não fazer sentido que se estendam os limites <lo con­
ceito de ciência de modo a incluir a astrologia.

Etapa Vil. Correções.


(a) No terceiro parágrafo, o ponto principal não está bem
esclarecido. Antes da última frase do parágrafo, depois de
"têm de estar racionalmente ligadas", deveríamos dizer algo
como "O vidente de sucesso não sabe por que seus palpi-
122 PE/vSAR COM CONCEITOS

tes dão certo e o equipamento que possui não o aj uda quanto


a isto".
(b) No mesmo parágrafo, "a base da qual emanam as
previsões" não está bem expresso; melhor será "a base na qual
as previsões se fundamentam", ou algo semelhante.
(e) No quarto parágrafo, a questão da imprecisão do cri­
tério não é apresentada de modo imediato e direto. Subs­
tituir a primeira frase por "Este segundo critério é bastante
impreciso. Que nível de organização esse conjunto de
observações [etc.] precisa ter? Podemos imaginar casos . . .".
(d) No quinto parágrafo, o que está implícito na primei­
ra frase é que, ao mencionar "uma arte, uma técnica ou sim­
plesmente uma boa diversão", exaurimos as possibilidades de
todas as atividades não-científicas. Mas o caso da matemáti­
ca, por exemplo, demonstra que as coisas não se passam bem
assim. Devemos dizer "uma disciplina acadêmica reconheci­
damente i ndependente, uma arte, uma técnica, simplesmente
boa diversão ou qualquer outra atividade semelhante". Pode
não ser a meli1or emenda possível, mas serve.
(e) N a segunda frase do quinto parágrafo, a astrologia
reivindica a definição de ciência; nos termos em que foi posta,
a reivindicação não é clara. Deve-se mudar para "A astro­
logia afirma que é ciência e alega, para prová-lo, que os
acontecimentos na vida humana podem ser previstos com
sucesso constante e notável por meio de um estudo especia­
lizado e experiente dos astros e planetas".
(/) No final do quinto parágrafo, realmente transmiti­
mos a idéia de que talvez haja "algo digno de estudo nela"?
Se houver tempo, o melhor será criar um novo parágrafo
depois de " . . . para que os astrólogos a comprovassem" e que
começasse 1.;om "Não se trata necessariamente de descartar
a astrologia como pura mistificação. Pode haver nela algo
digno de estudo . . ." e, a partir daí, talvez se consiga desen­
volver melhor o restante do parágrafo .
s

)
IIL A filo.�ofia e a análise

Embora este seja basicamente um l ivro didático escri­


to com um obj etivo específico, dissemos no Prefácio que
ele deveria ser útil às pessoas comuns no curso normal das
suas vidas - ou seja, que não se destinaria apenas a quem
tenha de enfrentar um exame vestibular ou de final de curso,
ou que tenha de fazer um curso de filosofia. Não é uma
esperança hipócrita, mas pode parecer vã, porque o abismo
entre a filosofia e a vida comum é enorme, de dimensões
apavorantes. Conseqüentemente, creio que será útil dizer
algo a respeito de como as técnicas exemplificadas neste
livro inserem-se na filosofia, e de como a filosofia pode
inserir-se na vida comum.
É claro que o tema é imenso, e não posso fazer-lhe justi­
ça. Mas espero demonstrar, pelo menos, que a pessoa comum
tem boas razões para ser mais otimista quanto à importân­
cia da filosofia; mais, pelo menos, do que alguns filósofos
a tenham levado a crer.
Tudo gira em torno da filosofia. Uma opinião, talvez
ainda a mais popular, é a de que a filosofia trata direta e
imediatamente de um estilo de vida e da verdade sobre a
realidade. Tem a ver com o que as pessoas são, com o que
fazem e sentem, com seu comportamento, suas emoções,
suas crenças e juízos morais. Deste ponto de vista, a filo­
sofia de um homem é uma espécie de mistura de seus moti-
1 24 PENSAR COM CONCE!TOS

vos, seu comportamento e seus valores. Assim, pode-se pro­


curar o prazer, considerar o prazer bom e ser rotulado de
hedonista ou de utilitarista. Ou pode-se dar ouvidos aos
ditames da consciência, agir a partir de wn sentido do dever
e ser rotulado de kantiano (ou kantiana) ou de intuicionis­
ta. Estas são as fil oso fias de cada um.
A filosofia como um todo, de acordo com tal teoria,
sobrevive de descrever em linhas gerais várias filosofias e
de tentar julgar entre elas. Platão nos p intará um tipo de
vida; Aristóteles, outro; Bertrand Russell, um terceiro. Filó­
sofos diferentes c1iticarão diferentes estilos de vida. O indi­
víduo lê os filósofos e faz sua escolha sozinho. Esta talvez
ainda seja a visão mais comum da filosofia. Algumas pes­
soas declaram-se "a favor da lógica"; outras, "a favor das
emoções"; uns acreditam no dever; outros, na fel icidade; uns,
no misticismo; outros, em fatos concretos.
A objeção a esta visão geral é que, aqui, o filósofo é
pouco mais que uma espécie de gerente de galeria de arte n a
qual s e exibem quadros de diferentes estilos d e vida, que a l i
ficam expostos à luz, são criticados, avaliados e, finalmen­
te, comprados. O filósofo cuida de expô-los, explicá-los, ava­
liá-los, e assim por diante. As pessoas compram o que lhes
interessa. Parece que não há lugar, de fato, para Lm1a ava­
l i ação racionai, que não há critério pelo qual um "quadro"
possa ser julgado melhor do que outro. Há várias opções al­
ternativas: pode-se comprar um Epicuro ou uma obra da
escola estóica de pintura; u m Bentham ou u m Kant; um D.
H. Lawrence ou w11 Arcebispo de Cantuária. 0 debate a res­
peito de que quadro comprar torna-se vago e sem senti­
do. O processo pode ser divertido e promover a tolerância
mútua, mas de modo algum satisfaz a forte exigência de
verdade, a necessidade de saber com a maior exatidão pos­
sível o que é verdade e o que não é, e o desejo de ter algum
método ou instrumento eficaz para julgar, recursos que sem­
pre existiram, no século XX ou em qualquer outro momento.
. 1 F!LOSOF!A E A AN!ÍL!SE 125

O segw1do ponto de vista, ainda seguido hoje - s e não


preconizado - pelos modernos filósofos da l inguagem do
eixo Oxford-Cambridge, é uma reação violenta e radical ao
primeiro. Por este segundo ponto de vista, o filósofo não tem
absolutamente qualquer vínculo direto com estilos de vida,
motivações, comportamentos ou valores. Ele é um analista
da linguagem, que se dedica à verificação e ao significado dos
enunciados, bem como ao uso lógico das palavras. O filó­
sofo não está interessado no que as pessoas pensam sobre
a vida (muito menos em como escolhem comportar-se); só
lhe interessam as palavras com as quais as pessoas expres­
sam seus pensamentos. Enunciados a respeito de Deus têm
significado? A noção de verdade é aplicável a juízos morais?
O que significamos com a afirmação de que um homem age
l ivremente? Essas são questões de natureza lingüística, que
giram em torno do emprego de palavras como "significa­
do'', "verdade", "liberdade'', dentre outras.
É evidente que tal radicalismo dispõe de muitos argu­
mentos em sua defesa. Há alguns milhares de anos, os homens
vêm discutindo a questão de Deus, do certo e do errado, do
verdadeiro e do falso, da beleza, intuição, l iberdade, e assim
por diante. Pode-se dizer - porque provavelmente é verda­
de - que, num sentido importante, os homens não sabiam do
que estavam falando, na medida em que nenhum dos con­
ceitos que usavam em suas filosofias jamais foi submetido
a rigoroso exame analítico. É óbvio que não faz muito sen­
tido discutir o que é certo e o que é errado, a menos que sai­
bamos o que se quer significar pelas p alavras "certo" e
"errado". E o mesmo vale para todas as perguntas.
Além disso, é uma i lusão perigosa supor que conheça­
mos, em todos os sentidos, os significados das palavras.
Podemos empregá-las corretamente, mas não temos p lena
consciência de como funcionam em termos lógicos, na lín­
gua. E não ter consciência disto pode nos levar a formular
126 PENSAR COM CONCEITOS

perguntas equivocadas e até mesmo, em alguns casos, sem


sentido.
No entanto, como um programa completo para a filo­
sofia, este é insuficiente. É insuficiente, em primeiro lugar,
porque a linguagem não é uma atividade abstrata, mas uma
forma de vida. As pessoas usam a l í ngua e a linguagem; e,
mais do que isto, a l í ngua e a linguagem são coisas mui­
to mais íntimas, muito mais parte integrante das pessoas do
que supõem a maioria dos filósofos da filosofia lingüís­
tica. A l i nguagem de um homem é apenas um sintoma do
seu equipamento conceituai, assim como seus padrões neu­
róticos de comportamento são apenas s i ntomas do seu esta­
do psíquico interior. A expressão "equipamento conceituai"
abrange muito mais do que a linguagem, embora a análise
da linguagem seja um modo - e um bom modo - de inves­
tigar o equipamento conceitual .
Para descobrir a postura de u m homem diante d o mun­
do e lorná-lo consciente desta postura para que ele possa
modificá-la, um bom método consiste em ver como ele fala
e torná-lo consciente da sua li nguagem.
Contudo, as palavras representam somente uma parte do
equipamento com o qual as pessoas encaram a vida. Quando
dizemos, por exemplo: "Ele encara a vida de um modo dife­
rente do meu", não estamos querendo dizer nem (como ale­
gam os defensores do primeiro ponto de vista, acima) que
o outro tenha um estilo de vida diferente do meu, que nos­
sos padrões de comportamento, motivações e valores sejam
diferentes, nem (de acordo com o segundo ponto de vista)
que o outro apenas faz enunciados de tipos diferentes dos
que eu faço, que usa a l inguagem de modo diverso.
É claro que ambas e8tas visões podem ser verdadeiras,
e é provável que o sejam. Mesmo assim, não é o que signi­
ficamos quando dizemos que "Ele encara a vida de um modo
diferente". O que queremos dizer é que o seu equipamento
il FILOSOFIA EA il!VÁLISE 127

conceitua} é diferente. É como se disséssemos - como tan­


tas vezes se faz - "Ele fala outTa língua", usando a frase
num sentido metafórico, ou "Não adianta. Nós não falamos
a mesma língua". Aqui, de um modo significativo e inte­
ressante, estamos ampliando a noção de l inguagem para que
ela cubra muito mais do que os símbolos pronunciados das
palavras; referimo-nos a todo um modelo de pensamento,
às categorias, conceitos e modos de pensar que estão sub­
jacentes ao estilo de vida do homem de quem falamos e, tam­
bém, às palavras reais que ele diz.
De todos os seres que conhecemos, somente o homem
foi capaz de criar e manter a noção de significado, o que é
o mesmo que dizer que "o homem tem experiências", num
sentido diferente daquele em que podemos dizer, se quiser­
mos, que os animais ou os objetos inanimados têm expe­
riências. Cães são espancados, rosas sofrem com fungos,
lagos são drenados e morros são arrasados, mas essas ocor­
rências não significam nada para suas "vítimas": simples­
mente acontecem a elas. As vítimas agem e recebem a ação
de outros fatores sobre elas: neste sentido - mas só neste
sentido -, pode-se dizer que tenham experiências. No caso
dos homens, porém, poder dizer "Ontem passei por uma
experiência aterradora" é, em si mesmo, ter o poder da ex­
periência consciente: é ter o poder de ser consciente do que
nos acontece e do que fazemos, de nos lembrarmos da expe­
riência, dar-lhe nome e descrevê-la, refletir sobre ela e in­
terpretá-la. O homem tem, dentro dos limites definidos pela
sua própria natureza, a liberdade de atribuir qualquer força
ou peso que queira às suas experiências: a liberdade de lhes
conferir significado.
Se dermos ao conceito de significado ou de interpreta­
ção u m sentido mais amplo, veremos que ele se insere em
todas as atividades ou ocorrências das quais temos cons­
ciência a qualquer instante. Como filósofos, temos uma ten-
128 PENSAR COM CONCEITOS

dência maior a destacar os casos nos quais temos plena cons­


ciência de dar e compreender o significado, como, por exem­
plo, nos símbolos artificialmente criados da matemática ou,
cm menor grau, nas palavras. No entanto, decidimos tomar
banho de sol, admirar um mar azul e cintilante, fazer amor,
ler um romance, pedir um vinho específico, comprar um
carro especifico ou até mesmo fumar mais um cigarro, e
nossas escolhas são obviamente governadas pelo peso ou
força que os acontecimentos têm em nossa mente. E isto,
em certo sentido, quer dizer que nossas escolhas são deter­
minadas pela nossa própria interpretação ou avaliação
delas. O sol, o mar, o namoro - tudo! - tem algum sign.ifi­
cado para nós. E os conflitos surgem sobretudo nos relacio­
namentos pessoais, porque coisas diferentes têm significa­
dos diferentes para pessoas d iferentes.
Sem a menor dúvida, muitas das "nossas" interpreta­
ções, em t;erto sentido, nos são impostas. Crescemos num
mundo no qual, em nome da sobrevivência, somos forçados
a atribuir certo peso à alimentação, ao calor, a objetos físi­
cos e a muitas outras coisas. E, com isto, criamos e aceita­
mos - sem criticá-la - uma estrutura de interpretação que,
em sua maior parte, permanece conosco pelo resto das nos­
sas vidas, como acontecimentos da mais tenra inf'ancia que
inconscientemente influenciam as atividades conscientes da
nossa vida de adulto, porque nos impõem certas interpreta­
ções e avaliações. Algumas podem ser aceitáveis e benéfi­
cas, como o desejo pelo alimento. Outras podem ser inacei­
táveis e cansativas, como o medo de gatos ou de água co·r­
rente. Mais tarde, adquirimos, de modo mais ou menos
consciente, uma estrutura de atitudes e valores referentes a
todos os aspectos da vida humana com que possamos depa­
rar, referentes a homens, mulheres, clianças e todos os papéis
que possam representar (pais, im1ãs, amm1tes etc.); ao dinhei­
ro e aos bens materiais; à natureza; ao nosso próprio papel
A FJLOSOFIA E li ANÁLISE 129

na sociedade; à música, à literatura e às artes; à ciência, à


matemática, à filosofia e a todas as outras discipl inas que a
humanidade criou. Esta estrutura é nosso equipamento con­
ceituai.
Não é fácil descrever o equipamento conceituai, desen­
volver o significado da expressão. Podem-se usar muitas
metáforas, cada uma delas tão boa ou tão inadequada quan­
to qualquer outra, para dar uma idéia geral do que estamos
falando. Em qualquer período específico da sua vida, cada
homem encara a si mesmo e ao mundo, mediante a postura
que adote, mediante uma certa atitude em relação a si mes­
mo e ao mundo. Assim, o homem pode acovardar-se, per­
manecer de pé, levantar queixo e punhos, esperar passiva­
mente que o destino o alcance, e assim por diante. Ou pode­
mos dizer que ele encara as coisas com um certo jogo de
ferramentas: os instrumentos incisivos e diretos da física;
as sondas e sondagens menos informativas mas mais pro­
fundas da psicanálise, dentre outros recursos. Ou ainda po­
demos dizer que ele vê a vida através de lentes diferentes:
lentes rosadas, lentes escuras de pessimismo, ou óculos re­
sistentes e protetores de esquiador ou de piloto de motoci­
cletas. Ainda podemos dizer que ele fala várias línguas e
que as entende: a língua da moralidade estrita e autoritária;
a mais delicada mas mais indefinida do liberal; o vocabu­
lário bem definido do cientista natural; ou a língua simbólica
e carregada de emoção do poeta ou do crente religioso. Ou
ainda podemos dizer, finalmente, que ele sabe jogar um certo
número de jogos na vida: o jogo de trabalhar com colegas,
o jogo de atuar em produções musicais ou dramáticas, o
jogo do amor.
Destas mt:: láforas, talvez a mais produtiva seja a do jogo.
Quase todo comportamento humano, e todo e qualquer com­
portamento que aspire a ser racional em qualquer sentido,
é artificial. Consciente ou inconscientemente, as pessoas
130 PENSAR COM CONCEITOS

obedecem ou tentam obedecer a certas normas; podem ser


normas de procedimento, como num tribunal; normas de
convenção, como nos relacionamentos pessoais informais;
normas de raciocínio, corno na lógica ou no estud<> de algu­
ma disciplina específica; normas de comportamento, em
suas vidas mora i s ; normas da língua, na comunicação nor­
mal, e assim por diante. De modo mais sutil, mas ainda den­
tro dos limites da analogia, as pessoas seguem certos prin­
cípios nos seus relacionamentos pessoais mais profundos e
quando têm contato com as artes. Aprender a ter uma boa
convivência com os outros e (num nível menos óbvio, mas
ainda verdadeiro) aprender a amar alguém ou a ser amigo
íntimo de alguém é aproximadamente como aprender um
jogo, assim como aprender a exercer a advocacia ou a tocar
piano é corno aprender um jogo. Numa descrição bastante
útil, pode-se dizer de pessoas que fracassaram, num sentido
ou noutro, que fracassaram porfalta de habilidade. Há quem
não goste de música (a menos que seja incapaz de distin­
guir notas musicais) porque a aborda de um modo inade­
quado. São pessoas que não "sabem ouvir". Delinqüentes
juvenis simplesmente não sabem "jogar" a modalidade de
j ogo da vida da qual façam parte das normas o direito cri­
minal e civil do país. Nações novas, que experimentam a
democracia pela primeira vez, fracassam, quase sempre, por­
que lhes falta sensibilidade para os procedimentos demo­
cráticos: há pressupostos tácitos que temos de observar, se
não quisermos o colapso dos debates parlamentares. Estas
são as regras de um jogo que alguns dos participantes não
entendem.
Um último exemplo, de um campo que está mais ob­
v iamente ligado à concepção que temos atualmente de filo­
sofia: pessoas que rejeitam totalmente a religião o fazem
porque, por assim dizer, não conseguem "localizar-se" na
paisagem conceituai da religião. Os conceitos e experiên-
li FILOSOFIA t· A ANÁL!SE 1 \1

cias da religião (como os da poesia ou da música) fornrnrn


um jogo que requer habilidade, prática e estud?, para tiCr
bem jogado.
Numa comparação grosseira, pode-se dizer que "o
objeto" da filosofia é conseguir que as pessoas se conscien­
tizem das regras destes jogos. Pois, a menos que tenham
consciência das regras, jamais conseguirão jogar melhor,
nem serão capazes de identificar outros jogos que queiram
aprender a jogar, nem poderão escolher, dentre os jogos
antigos, os que desejam continuar a jogar e os que querem
abandonar.
Com certos jogos, cuja l ógica é bastante simples, a
filosofia já se saiu bem. As regras ou princípios de acordo
com os quais fazemos ciência, matemática ou lógica for­
mal já estão estabelecidos com bastante clareza. E é em
parte por isto que estes estudos prosperaram. Há jogos bem
mais difíceis, como, por exemplo, decidir sobre problemas
morais ou sobre problemas de relacionamentos pessoais.
Como avaliar obras de arte? Como decidir ter uma religião
ou não e qual abraçar?
Em todos esses casos, a função do filósofo não é (como
sustenta o primeiro ponto de vista) simplesmente apresen­
tar uma visão moral, uma visão sobre os relacionamentos
pessoais, uma teoria da estética ou da religião, e comparar
a "sua" com outras opiniões, deixando que o indivíduo cs�
colha por si mesmo (afinal, a partir de que critérios ele teria
de escolher?), nem a função da filosofia é (como afirma o
segundo ponto de vista) simplesmente analisar a linguugcn1
da moral, da estética e da religião, já que a simples arn'l l i��
não esclarece as regras do jogo, em profundidade su l'i\:i1,;11
te. Cabe ao filósofo, como sua principal função, csclan:<.:v1
o modo como, de fato, os jogos são jogados; cs<.:larcn•1 11
que é resolver uma questão moral; o que é ter umn r<,�I ii•.1110,
1 32 PENSAR COM CONCEITOS

o que é amar alguém ou ser amigo de alguém, até que estes


jogos sejam tão claros para nós quanto são, hoje, o que é
fazer ciência e o que é fazer matemática.
Que tipo de processo é este esclarecimento? Usando o
exemplo da ciência, poderíamos ter a impressão de que é de
fato muito simples esclarecer o jogo ela ciência. Afinal de
contas, todos estamos familiarizados, hoje em dia, com a
técnica-padrão de usar nossos sentidos para observar, com
a formulação de h ipóteses, a realização de experimentos
cruc.iais, a elaboração de teorias e leis e as previsões que se
fazem a partir delas. No entanto, de fato e de acordo com a
história, a humanidade demorou até o Renascimento para
ter idéia clara sobre o jogo "da ciência". Foi longo e árduo
o processo de passar de uma visão de mundo pela qual a
natureza era mágica e misteriosa para outra visão pela qual
a natureza era essencialmente explicável e previsível. Os
homens, aos poucos, foram superando uma crença no mundo
mágico e conquistaram o poder de ver a natureza como uma
coleção de coisas, objetos despersonalizados que podiam
ser pesados, medidos, analisados. Este tipo de transiçã. o po­
de ser visto sob vários aspectos.
Psicólogos que estudam o inconsciente, como O. Man­
noni1, ofereceram uma explicação cl ara da natureza psico­
lógica daquela transição (o homem precisa sentir-se seguro
para l ivrar-se do desejo de povoar a natureza com duendes,
forças mágicas, fantasmas, espíritos etc.). Mas, além deste
aspecto, há naquela transição um importante aspecto con­
ceituai e é este, precisamente, o objeto da filosofia.
Não se trata, simplesmente, de como nos sentimos quan­
to ao mundo e quanto a nós mesmos; é questão de em que
termos concebemos o mundo e a nós mesmos.

1 . Prospero c111d Cafiban, de autoria de O. Mannoni (Methuen).


A FlLOSOFlA E A ANÁLJSE 1 11

Trata-se aqui de algo que pode ser submetido a dc:bail:


racional, no qual poderemos nos tornar mais conscientes do.s
nossos próprios conceitos, da nossa própria língua, de como
representamos o mundo para, a pmiir daí, aprender a trans­
formá-los.
Todos nós ignoramos, em grande parte, os princípios
conceituais pelos quais funcionamos. Neste século, temos
uma compreensão razoave lmente firme do mundo da expe­
riência dos sentidos e nos sentimos à vontade em relação
à ciência. Mas, no que diz respeito à mora l , à religião, à
literatura e às artes - e, acima de tudo, aos relacionamen­
tos pessoais -, sentimo-nos perdidos e atordoados (a menos
que já estejamos tão cegos a ponto de acreditar que não
haja o que ver).
Nenhum dos dois pontos de vista que critiquei acima
cuida de modo adequado nem da cegueira nem do atordoa­
mento. De nada adianta repetir que devemos nos esforçar
mais, nos comportar melhor ou ter estilos de vida mais sen­
satos. E tampouco adianta dizer que temos de exam inar
meticulosamente nossa linguagem e que temos de ser cada
vez mais atentos à lógica das palavras. Porque nossas difi­
culdades não nascem do fato de não sermos suficientemen­
te bons ou virtuosos, nem de não sermos suficientemente
inteligentes. Nossas dificuldades nascem de nos sentirmos
perdidos, soltos, às tontas, procurando aprender os vários
jogos da vida.
É o tipo de sensação que muitos temos no momento de
pisar na pista de dança sem saber dançar: não se sabe co 1 1 10
começa1�
A filosofia é, portanto, esclarecimento do método, dl·
como se jogam todos os jogos. Os filósofos já estão 1;011:-:
cientizados disto, o que se pode ver no modo como 1 iclam e< 111 1

certos problemas metafisicas: "Algum dos nossos a(O!' (.· n·11 I


mente livre?" ou "Podemos chegar a ter certeza de alg11111.1
1 34 PENSAR COM CONCEITOS

coisa?" Ante perguntas como estas, o mais dificil é saber


como começar a responder a elas. São perguntas que nos des-
11011eiam: não temos à mão nenhum método para abordá-las.
Na vida, contudo, há centenas de perguntas que são
"metafisicas", neste sentido, ou seja, centenas de perguntas
que surgem porque tentamos participar de jogos cujas re­
gras não conhecemos com clareza. As questões metafisi­
cas clássicas - questões sobre o livre-arbítrio, a realidade, a
verdade e outras - sempre formaram uma pequena arena
intelectual na qual lutam os professores da academia. En­
quanto isto, nas praças, nas ruas, nos lares, nas danceterias,
há gente "comum" igualmente desnorteada com aspectos
das suas vidas; desnorteada de um modo que pede uma edu­
cação voltada para a consciência de si mesmo, para a per­
cepção de corno cada um, de fato, encara o mundo e a si
mesmo, para uma reform ulação do seu equipamento con­
ceitua!. A esta educação chamo educação para a filosofia.
Seria preciso uma reflexão muito mais cuidadosa para
investigar as formas que a filosofia, neste sentido, adotará
no futuro. Mas não há dúvida de que, mesmo que a filo­
sofia se fragmente em vários departamentos destinados a
esclarecer e abordar jogos diferentes, ela ainda assim se
manterá mais coerente do que, por exemplo, as ciências físi­
cas. Pois há vínculos muito fortes entre nossa psicologia
profunda, nosso comportamento, nossos estilos de vida, nosso
equipamento conceitual, nossas crenças mais autênticas e a
língua na qual nos exprt:ssarnos. E dificil mente se imagina
que um filósofo competente admita a ignorância em qual­
quer departamento. Por esse motivo, a formação de filóso­
fos meramente como analistas da l inguagem é absurdamen­
te inadequada; e ninguém se deve surpreender com o surgi­
mento de "contra-sintomas", na forma de pensadores que
não dão a mínima importância para a análise da linguagem,
mas abrem a porta para experiências e "jogos-de-vida" que
A FILOSOFIA E A ANÁLISE l .V i

os filósofos da filosofia lingüística preferem deixar à espe­


ra, no corredor - por exemplo, a escola existencia l i sta ou a

escola dos teólogos metafisicos alemães.


Também há grupos que obviamente deveriam associar­
se à filosofia, mas que os apavorantes ensaios que produzi­
mos praticamente afastaram para sempre de nós. Os dois
exemplos mais óbvios são, cm primeiro lugar, o grupo dos
psicanalistas e, em segundo, o pessoal da crítica literária de
Cambridge.
Por estes motivos, o filósofo deve fami l iarizar-se e ser
solidário com todos os principais campos que se relacionem
diretamente com os conceitos humanos, todos os estudos e
formas de criação que possam ensinar, iníluenciar ou afe­
tar, de qualquer outro modo, o nosso equipamento concei­
tuai. Candidatos óbvios a tema de estudo são a literatura
(em especial, o romance e o teatro), a música, a psicologia,
as ciências sociais e a h istória. Todos estes têm influência
direta - e, para a maioria das pessoas, influência muito mais
eficaz que a filosofia - sobre o nosso equipamento concei­
tua}, sobre nossa postura diante da vida, sobre o tipo de lente
que usamos, sobre as técnicas de jogos que jogamos, as fer­
ramentas que utilizamos, as imagens que formamos.
Pode-se pensar até que os filósofos "de academia" tenham
cometido o erro evidente de supor que só as disciplinas que
produzam proposições verdadeiras tenham alguma relação
com a verdade. Porque é claro que, no sentido normal de
"verda de", a música, a pintura, o teatro e até mes mo os ro­

mances não enunciam nada de verdadeiro; mas nem por isto


se deve concluir que não tenham coisa alguma a ver com a

verdade.
A música, a pi11tura, o teatro e os romances podem,
indiretamente, gerar enunciados factualmente verdadl:i ros.
mediante um processo complexo - que ninguém a i ndn t;Sl ll•
dou a fundo - e que consiste, em termos muito gcrnis, l! l 1 1
l 3(i PENSAR COM CONCEITOS

nos proporcionar certas experiências que afetam nossos sen­


timentos e emoções de um certo modo e que por isto nos
perturbam e nos esclarecem, de tal modo que, pelo conhe­
ci mento daquelas experiências, podemos mudar as imagens
que temos do mundo e os nossos conceitos, até acabar por
criar asserções ou concordar com asserções que, antes, nada
signifi cawrn1 para nós.
Embora as artes não afirmem fatos, ainda assim nos
ensinam - e ensinam racionalmente. É este tipo de ensi­
no racional que a filosofia ·tem de incluir no seu ambiente.
Dado que o debate racional se faz em palavras, a parte
essencial e básica da "caixa de ferramentas" do filósofo
será, é claro, lingüística. Mas haverá outras ferramentas: em
vez de apenas ser capaz de analisar enunciados, o filósofo
aprenderá a relacioná-los às visões gerais do mundo e ao
equipamento conceituai total dos indivíduos.
Esse processo da filosofia é, evidentemente, ele mesmo,
um jogo, e um jogo especialmente difíc i l de jogar. É como
se a filosofia tivesse de mudar-se para o andar de cima, para
observar as pessoas que, no térreo, empenham-se, com su­
cesso maior ou menor, em seus vários jogos, para depois
avaliá-las e criticar suas normas. Ou como se ganhássemos
de presente de Nata1 uma coleção de jogos . . . sem as instru­
ções e as regras de como devessem ser jogados. Teríamos
de descobrir quais eram os jogos, como deveriam ser joga­
dos e se valeria a pena jogá-los.
Para fazer tudo isto, as exigências são pesadas e rigo­
rosíssimas: é preciso que haja absoluto rigor lógico para
que o jogo da filosofia tenha um objetivo e não seja sim­
ples galeria cm que se exibam diferentes conceitos; também
é preciso que a compreensão tenha amplitude máxima, para
que nos comuniquemos com todos os jogos que existem.
A importância da filosofia, portanto, é evidente, em qual­
quer nível da vida e em qualquer contexto: sem o processo
,l /<ILOSOF/,f E A ANALISE l "\ 7

de conscientização cada vez maior das regras, talvez scj:i


impossível aval iar ou fazer qualquer mudança racional deli­
berada na nossa vida. Claro que se pode mudar e que se pode
viver sem filosofia, assim como é possível viver sem o senso
comum ou sem qualquer dos cinco sentidos ou sem vários
deles. Mas não se consegue nem mudar nem viver com a
mesma eficácia.
Carecemos desesperadamente de uma técnica para en­
frentar os problemas da mudança e da vida. E, com a filoso­
fia, mesmo sem pesquisar muito mais, talvez se possa, pela
primeira vez, estabelecer esta técnica, numa base firme.
Pelo menos, reconhecemos os campos de atividade en­
volvidos - a l iteratura, as artes, a ciência social, dentre outras
- e podemos começar a pensar sobre os métodos de cada
um desses campos e sobre os modos como influenciam os
problemas da vida. Talvez vivamos para ver os filósofos
ganharem, de fato, o próprio sustento.
A análise de conceitos surge, portanto, apenas como
urna ferramenta no equipamento do filósofo, mas uma fer­
ramenta muito necessária por ser um ótimo modo de gerar
conscientização. Uma coisa, pelo menos, todos sempre po­
demos fazer: sempre podemos perguntar "O que significa
istoT'. Mas se o filósofo se contentar com o que se pode cha­
mar de análise estiitamcnte lógica, seu aumento de cons­
cientização, embora útil, não será tão profundo quanto pode­
ria ser. Porque o significado vai mais fundo que o hábito e
o uso. O si gnificado está na base de todo o equipamento con­
ceitual do homem, o qual, por sua vez, está enraizado na sua
personal idade e nas experiências passadas. Por esta razno,
temos, para mapear, muito mais do que uma paisagem p u ra­
mente verbal; talvez como alguém que realmente quisessi.:
entender a geografia de um país e que tivesse de mcrg1tll111r
abaixo da superficie para entender também a geologia d:1 p:i 1
sagem - a natureza do subsolo, a história dos cstrnl os n >ri 1 1 1
1 38 PENSAR COM CONCEITOS

sos, e assim por diante. Claro que geografia e geologia são


disciplinas muito d i ferentes. E é claro que, no mínimo em
nome da simplicidade, temos de considerar a filosofia como
disciplina diferente da psicologia, da história, da sociologia
etc. Mas até isto pode ser ilusório. Estaremos nos enganando
se supusermos que estes estudos "de humanidades" tenham
objetos Lutalmenle separados e isolados; melhor dizer que
há problemas humanos que podem e devem ser abordados
seja cm termos filosóficos, seja em termos psicológicos,
sociológicos etc.
Precisamos, para trabalhar, de numa equipe harmonio­
sa de especialistas, que sejam especialistas em métodos es­
pecíficos de abordagem, não de válios especialistas isolados,
cada um trabalhando no seu próprio escritório e laboratório.
Numa abordagem deste tipo, creio que se1ia possível
tornar os métodos da filosofia tão reais e importantes para
a pessoa comum quanto, digamos, os métodos da aritméti­
ca elementar, da leitura ou da escrita. O perigo, é claro, é que
a união mais íntima de tantas disciplinas variadas resulte em
que nenhuma delas seja praticada com o rigor e a profundi­
dade necessários. Pode acontecer de acabarmos numa espé­
cie de sopa otimista e liberal de disciplinas vagamente cul­
tura is, que de algum modo estejam relacionadas - mas não de
modo muito rigoroso ou direto - aos problemas humanos.
Este é um dos motivos pelos quais creio que se deva
começar por aprender a análise de conceitos - que é uma
disciplina muito exigente, quando corretamente praticada.
Mas também espero que se perceba que, se for associada a
outras ferramentas, todos poderemos atingir resultados su­
periores às nossas atuais expectativas.
IV. Prática em análise

Este é um capítulo relativamente curto. Não proponho


uma quantidade muito grande de textos para serem critica­
dos, nem muitas questões sobre conceitos a serem respon­
didas. Em primeiro lugar, porque, na medida em que o livro
for usado no ensino médio e por alunos que vão enfrentar
exames, os professores haverão de estar interessados prin­
cipalmente no tipo específico de prova geral pela qual os
alunos terão de passar. E é claro que, apesar de todas as pro­
vas incluírem questões sobre conceitos, há muitos tipos de
exames. É natural que os professores queiram discutir tex­
tos de exames anteriores, publicados pelas universidades e
faculdades, e desejem que os alunos se concentrem no tipo
de textos e perguntas neles incluídas. Em segundo lugar, se
este livro cair em mãos de quem não esteja preocupado com
exames, pode acontecer de se interessar mais por um campo
do pensamento do que por outros. Assim, haverá quem se
interesse pela religião; outros, pela política; outros, pela mora l ,
e assim por diante. Estes interesses específicos são impor­
tantes porque são um incentivo a mais para a análise de co11
ceitas. É provável que alguém que se interesse seriam<.: ntc
pela religião faça mais justiça aos conceitos desenvolvidos
nos textos que tratem de religião do que aos conceitos qul:
apareçam nos textos em que se trate de outros assuntos. E 1 1 1
terceiro lugar, embora este seja, em certo sentido, \ tn 1 liv10
140 PENSAR COM CONCEITOS

didático, não quero dar a ninguém a impressão de que, de­


pois de ter analisado os exemplos apresentados como exer­
cício prático, o leitor esteja p lenamente equipado para lidar
com todas as outras situações nas quais a análise é indis­
pensável; que o leitor, por assim dizer, esteja perfeitamente
vacinado contra a ambigüidade, o pensamento confuso ou
a falta de percepção lógica. Uma parte necessária da forma­
ção em análise consiste em ser capaz de reconhecer passa­
gens e perguntas nas quais a análise sej a necessária, o que
é bem diferente de ser capaz de analisar um texto determi­
nado ou de responder a uma determinada pergunta. Embora
nenhum 1ivro sozinho possa ensinar isto, todos os livros de­
vem preocupar-se em não impedir que se veja, imediatamen­
te, a importância de saber reconhecer os trechos e as per­
guntas que tenlrnm de ser analisadas.
O que o leitor deveria adquirir por meio dos nossos exem­
plos práticos, portanto, é, basicamente, uma sensação de
confiança: a sensação de que passa a ter uma compreensão
mais firme sobre o tipo de processo que é a análise de con­
ceitos. Em nenhum caso - por maior que seja o número de
exemplos que tenha de estudar - o leitor deve se convencer
de que cobriu todos os casos concebíveis em que a análise
é necessária. Cada texto e cada questão de conceito é diferen­
te dos demais. Procurei escolher perguntas de vários cam­
pos e textos de autores de várias idades, vários interesses e
vários estilos, para mostrar um pouco da diversidade de
contextos dos quais pode participar a análise conceitua!. No
entanto, o pro ce s so de ganhar maior competência em aná­
lise nunca termina e cabe ao leitor, inevitavelmente, a maior
parte do trabalho (com a ajuda de alguém que o oriente, se
for possível) ao ler a literatura que lhe interesse, ouvir rádio,
apanhar o jornal de manhã, discutir com seus amigos ou re­
fletir sozinho.
A importância da análise conceituai como instrumento
educacional está, principalmente, em obrigar o indivíduo a
l'IUÍTJCA EM ANALISE

trabalhar, por si mesmo, para alcançar maior grau de co ns­


cientizaçâo e de compreensão lógica.

1. Textos para criticar'

( 1 ) Cardeal Newman, "Apologia Pro Vita Sua "


Dado que, por força de orações, alcançam-se beneficies,
salvamentos acontecem, resultados inesperados são obti­
dos, doenças curadas, tempestades acalmadas, pestes afas­
tadas, a fome el iminada, sentenças impostas, não há neces­
sidade de analisar as causas, sejam elas naturais, sejam so­
brenaturais, às quais se devem os fatos. Os fatos podem, ou
não, num ou noutro caso, obedecer às leis da natureza ou
superá-las, e podem fazê-lo de modo explícito ou ambíguo,
mas o senso comum da humanidade sempre os tomará por
milagrosos. Pois, pelo termo "milagre", não importa qual
sej a a definição formal, o que se quer indicar popularmen­
te é um acontecimento que infunde na mente a presença
imediata do governante moral do mundo. E l e pode às vezes
atuar por meio da natureza, às vezes além dela ou contra
ela. Mas aqueles que admitem a realidade destas interferên­
das facilmente admitem também seu caráter estritamente
milagroso, se as circunstâncias do caso o exigirem. Quando
um bispo com seu rebanho ora noite e dia contra um here­
ge e, finalmente, implora a Deus que o leve embora, e quan­
do o herege é de fato eliminado, quase no instante do seu
triunfo, e com uma morte terrivdmente significativa, em de­
corrência da sua semelhança com morte registrada na Sa n la
Escritura, não será perda de tempo perguntar se uma ocor­
rência dessas está à altura da definição de milagre?

1 . Em alguns dos textos ci.tados adiante, os autores niio tàlam e111 �t:11s p1 u•
prios nomes, mas apresentam as opiniões de personagens de ro111a11ccs <Ili di1\l11
gos. Isso se aplica aos números (3), (9), (17) e (20),
1 42 PENSAR COM CONCEITOS

(2) Barbara Wootton, "Social Science and Social Pathology "


[Ciência social e patologia social] (citando ELiot Sfater: "The
McNaghten Rules and Modem Concepts of Responsibility "
[As regras de McNaghten e conceitos modernos de responsa­
bilidade})
Por seu apoio à doutrina inflexível de que "Nenhuma
teoria de medicina mental poderia ser desenvolvida sem a
hipótese prática do determinismo", S later efetivamente se dis­
sociou de todos aqueles cujas idéias examinamos até agora.
Para ele, o '" livre-arbítrio', no qual se baseiam tanto a lei
quanto a religião, prova ser uma idéia estéril. Se tentarmos
inseri-la na nossa análise de causação, ela apenas introduzirá
um elemento do desconhecido". Além do mais, asserções sobre
a responsabilidade moral de outras pessoas são, de fato, ape­
nas asserções sobre o próprio estado mental de quem fala.
Quando "damos opiniões sobre a responsabilidade dos outros,
estamos realmente relatando nossos próprios estados men­
tais. Talvez estejamos fazendo pouco mais do que nos iden­
tificar com o criminoso e nos perguntar se poderíamos ou
não ser culpados do seu crime. Se então acharmos que só
poderíamos ter feito aquilo se estivéssemos loucos, pode­
remos dar um tipo de resposta. Se tivermos a sensação de
que poderíamos ter cometido aquele ato, mas só se repri­
míssemos tudo o que houvesse de melhor em nós, daremos
outro tipo de resposta. A responsabilidade, vale salientar, tem
mesmo algum significado em termos subjetivos, em nossos
juízos, acerca dos nossos próprios atos. É só quando aplica­
mos o conceito aos atos de terceiros que ele não resiste."

(3) G. lowes Dickinson, "A Modern Symposium " [Um ban­


quete moderno]
Depreende-se disso que meu ideal de sociedade é o ideal
aristocrático. Pois urna classe de cavalheiros pressupõe classes
de trabalhadores a sustentá-la. E estes, a partir deste ponto
de vista ideal, devem ser considerados apenas como meios.
l'RÁTJCA EM ANÁLISE 1 4.1

Não estou dizendo que isto seja justo. Não estou dizendo que
seja isto que devamos preferir. Mas tenho certeza de que esta
é a lei do mundo em que vivemos. Em todo o reino da natu­
reza, cada espécie existe apenas para ser o meio de susten­
tação da vida de outra espécie. E m todos os planosi os supe­
riores alimentam-se dos inferiores. Em toda parte, o bom é
parasita do mau. E, assim como na natureza, o mesmo ocor­
re na sociedade humana. Estudem história com imparciali­
dade, leiam-na sob luz forte, e verão que nunca houve uma
grande civilização que não tivesse como base a iniqüidade.
Aqueles que têm olhos para ver sempre admitiram, e sem­
pre admitirão, que a maior civilização da Europa foi a da
Grécia. E, naquela civilização, um aspecto que não foi mera­
mente acessório, mas condição essencial, foi a escravidão.
Eliminem a escravidão, e terão eliminado Péricles, Fídias,
Sófocles, Platão.

(4) George W Hartmann, "Educational Psychology " [Psico­


logia educacional]
A associação de maturidade sexual e imaturidade ocupa­
cional, que se estende por urna década de vigorosa vida ju­
venil, quase está projetada de modo a violar os preceitos
mais fundamentais da higiene mental. O casamento preco­
ce é a solução que parece melhor preservar todos os valores
sociais e biológicos envolvidos, mas somente alguns feli­
zardos parecem ter acesso a essa solução preferencial. Os re­
cursos anticoncepcionais são agora universalmente com­
preendidos; e sem dúvida estimularam uniões temporárias
e experimentais, cuja utilidade ainda é incerta. A promis­
cuidade deliberada, em qualquer dos sexos, é anormal, pelo
menos no sentido estatístico, e geralmente indica algum obs­
táculo na personalidade que impede a verdadeira felicida­
de. O homossexualismo é um enigma clínico em si mesmo,
mas também um exemplo da necessidade de tolerância na

avaliação de muitos dos modos inferiores de aj u�te sexual


144 PENSAR COM CONCEITOS

nos quais os indivíduos se encaixam quando seu desenvol­


vimento emocional normal é prejudicado. Psicólogos não
têm nenhum direito a priori de insistir que casamentos mo­
nogâm icos para toda a vida são os únicos casamentos felizes
que se possam conceber, mas, em comparação com as a lter­
nativas geralmente praticadas, eles vêm nitidamente em pri­
meiro lugar. Nestas circunstâncias, parece simplesmente
correto que nosso programa educacional volte-se para a mis­
são de levar ao maior sucesso possível esta forma de orga­
nização famili ar, por meio da cTiação, no início da vida, de
atitudes e controles favoráveis a tal resultado.

(5) S. Freud, "O futuro de uma ilusão "


Devem-se agora mencionar duas tentativas de fugir ao
problema, que transmitem, as duas, a impressão de um esfor­
ço desesperado. Uma, autoritária por natureza, é antiga; a
outra é sutil e moderna. A primeira é o Credo quia absur­
dum do antigo patriarca da Igreja, que sugeriria que as dou­
trinas rei igiosas estão fora da jurisdição da razão. Estão aci­
ma da razão. Sua verdade precisaria ser sentida no íntimo.
Não seria necessário compreendê-las. Este credo, entretan­
to, só interessa como confissão voluntária. Como decreto,
ele não tem nenhum poder de coação. Terei de acreditar em
todos os absurdos? E se não for obrigado, por que apenas
neste? Não há apelação além da razão. E, se a verdade das
doutrinas religiosas for dependente de uma experiência inte­
rior que a corrobore, o que será daquele grande número de
pessoas que não têm essa rara experiência? Pode-se esperar
que todos os homens usem o dom da razão que possuem, mas
não se pode impor urna obrigação que se aplique a todos,
com base em algo que só exista para alguns. Que importân­
cia pode ter para outras pessoas o fato de você, a partir de
um estado de êxtase que o comoveu profundamente, ter con­
quistado uma convicção inabalável na real veracidade das
doutrinas da religião?
l'NiÍ TICA EM ANÂLJSt:

( 6 ) Walter de la Mare, "Lave " [O amorJ


Do significado atribuido à palavra "amor", em todas as
suas variações - amor ao lar, à pátria, aos filhos, a idéias e

ideais -, dependeu grande parte da genialidade, do caráter e

Ja condição ética inglesa e, não em menor grau, a concep­


ção da feminilidade. As teorias freudianas estreitaram e de­
t urparam esse significado ao concentrar a atenção em ape­
nas um dos seus elementos. O mesmo aconteceu com nos­
sos sonhos. Fantásticos ou aparentemente vazios, nítidos,
intensos, esclarecedores ou comoventes, não importa qual
.seja a relação que tenham com as horas que vivemos acor­
dados, nossos sonhos são um tipo de experiência. Em de­
corrência da imposição de uma interpretação arbitrária sobre
eles - e nenhuma interpretação pode real mente ser refuta­
da - foram sacrificados não apenas ao sexo, por cujas rami­
ficações de qualquer modo não somos responsáveis, mas a
uma concepção degradada do sexo. Deste modo, Swift, com
seus Yahoos, difamou e degradou a natureza humana. Nada
está a salvo ante esta garra secreta, decidida a tudo revirar
e revelar. E, sem dúvida, não estão a salvo a literatura e os
poemas de amor. "Não nos importamos ao ouvir" (diz C. S .
Lewis em seu ensaio A psicanálise e a critica literária)
"que, quando apreciamos a descrição que Milton fez do
Paraíso, algum interesse sexual latente está, de fato, e em
associação com milhares de outros aspectos, presente no

nosso inconsciente. Discordamos é de quem diz 'Você no

fundo sabe por que está gostando disso?' ou 'É claro que
, ,,
você percebe o que está por trás disso?

(7) John Locke, "Ensaio sobre o entendimento humano "


Portanto, se sabemos que existe algum ser real e qu1:
uma não-entidade não pode produzir nenhum ser real. ní cs! r'1
uma demonsh·ação evidente de que, desde sempre, algo 1.:x1s
tiu, já que o que não existiu desde sempre teve u 1 1 1 i 1 1 í v i 1 1 ,
146 PENSAR COM CONCEITOS

e o que teve um início deve ser produzido por alguma outra


coisa. Em seguida, é evidente que aquilo que recebeu sua
existência e seu início ele outra coisa também deve ter rece­
bido tudo o que está no seu ser, e que pertence ao seu ser,
de alguma outra coisa. Todos os poderes de que dispõe devem
ser derivados da mesma fonte e dela recebidos. Portanto,
esta fonte eterna de todo ser deve também ser a fonte e
modelo de todo poder. Assim, esse ser eterno deve ser tam­
bém o mais poderoso. Mais uma vez, um homem descobre
em si mesmo percepção e conhecimento. Demos, então,
mais um passo adiante. E, agora, temos certeza de que exis­
te não só algum ser, mas algum ser sapiente, inteligente, no
mundo. Houve, então, uma época em que não existia nenhum
ser sapiente e em que o conhecimento começou a existir.
Ou então também houve um ser sapiente desde sempre. Se
for dito que houve uma época em que nenhum ser dispunha
de conhecimento, em que aquele ser eterno era carente de
todo entendimento, eu contesto qu�, nesse caso, era impos­
sível que um dia chegasse a ter existido qualquer conhecimen­
to - por ser tão impossível que coisas carentes de conheci­
mento e que operassem às cegas, sem nenhuma percepção,
produzissem um ser sapiente, quanto é impossível que um
triângulo torne seus três ângulos maiores do que dois ângu­
los retos.

(8) Tolstoi, "Guerra e paz "


A presença do problema do l ivre-arbítrio do homem,
embora não expressa, é percebida em cada etapa da histó­
ria. Todos os historiadores sérios involuntariamente enfren­
taram esta questão. Todas as contradições e obscuridades da
hi stória, bem como a falsa trilha pela qual a ciência histó­
rica seguiu , são devidas exclusivamente à falta de urna solu­
ção para esta questão. Se o arbítrio de cada homem fosse livre,
ou seja, se cada homem pudesse agir como quisesse, a his­
tória seria uma série de acidentes desconexos. Se, em m i l
PRÁTICA EM ANÁLISE

anos, apenas um homem em um milhão pudesse agir com

liberdade, ou seja, como quisesse, é evidente que um únicu


ato livre de tal homem, que violasse as leis que regem as ações
humanas , destruiria a poss.ibil idade da existência de quais­
quer leis, para toda a humanidade. Se houver uma única lei
que governe os atos dos homens, o livre-arbítrio não pode
existir, pois o arbítrio do homem seria sujeito a tal lei. O
problema é que, encarando-se o homem como sujeito de
observação, não importa de que ponto de vista - teológico,
histórico, ético ou filosófico - descobrimos uma lei geral
de necessidade à qual o homem (como tudo o que existe)
está sujeito. Porém, encarando-o de dentro de nós mesmos,
como aquilo de que ternos consciência, sentimo-nos livres.
Esta consciência é uma fonte de autoconhecimento totalmen­
te separada e independente da razão. Pela razão, o homem
se observa, mas só pela consciência ele se conhece. Além
da consciência do eu, nenhuma observação ou aplicação da
razão é concebível.

(9) Charles Williams, "Shadows of Ecstasy " [Sombras de


êxtase]
Ele via o intelecto e a razão lógica do homem não mais
como algo sereno e necessário mas, sim, como uma estrei­
ta ponte de prata sobre um imenso precipício; e em volta de
cuja entrada, alta e protegida, acumulavam-se nuvens de pre­
senças malignas e iradas. Muitas vezes, confundindo as
causas e muitas vezes julgando equivocadamente os efeitos
de todas as seqüências mortais, esta capacidade de conhe­
cer causa e efeito ainda assim se lhe apresentava como a úl­
tima estabilidade do homem. Ele sabia que ela, sempre se
aproximando da verdade, não poderia nw1ca ser a verdade,
pois nada pode ser a verdade , enquanto não se tornar um com

seu objeto; e esta união não é dado ao intelecto alcançar Sl.!lll

perder sua própria natureza. No entanto, na sua rcílcx�o di


vina e abstrata do mundo, seu espelho desapai xonado clH ll'I
1 48 PENSAR COM CONCEITOS

sagrada que governava o mundo, não em experimentos, êxta­


ses ou palpites, a suprema perfeição da mortalidade girava.
Ele a saudava como seu filho e servo; e dedicava-se novamen­
te a ela, pelo que lhe restasse da vida, orando para que ela vol­
tasse à luz da sua assombrosa integridade sobre ele e o prote­
gesse da auto-ilusão, da ganância, da infidelidade e do medo.
"Se A é igual a B", dizia ele, "e B é igual a C, então A é igual
a C. Outras coisas podem ser verdade. Pelo que sei, elas
podem ser diferentes ao mesmo tempo; mas pelo menos isto
é verdade."

(1 O) Dorothy Sayers, "Unpopular Opinions " [Opiniões impo­


pulares/
Ou retomemos o caso da palavra "realidade". Nenhuma
palavra provoca tantas discussões mal conduzidas. Estamos,
agora, emergindo de um período em que as pessoas se sen­
tiam inclinadas a usá-la como se nada fosse real, a menos
que pudesse ser medido. E alguns materialistas antiquados
ainda a usam assim. No entanto, se examinarmos o que está
por trás dos significados dicionarizados - como "aquilo que
tem existência objetiva" - e por trás da sua história filosó­
fica em busca da derivação da palavra, descobriremos que
"realidade" significa "a coisa pensada". A realidade é um
conceito; e um objeto real é aquele que corresponde ao con­
ceito. Na conversa normal, ainda usamos assim a palavra.
Quando dizemos "essas pérolas não são ' verdadeiras'2", não
estamos querendo dizer que não podem ser medidas. Que­
remos dizer que a medida da sua composição não correspon­
de ao conceito de "pérola"; que, consideradas como péro­
las, elas são apenas aparência. São concretas, sim, mas não
são "verdadeiras". Como pérolas, de fato, elas não possuem
nenhwna existência objetiva. O professor Eddi ngton é muito

2. Em português, o equivalente ao termo em pauta - "real'' - referente a


pérolas seria "'verdadeiras". (N. da T.)
l'IV{T!CA EM ANÁLISE

perturbado pelas palavras "realidade" e "existência''. E 1 1 1


sua Filosofia da ciência jlsica, e l e não consegue encontrar
nenhum uso ou significado para a palavra "existência" - a
menos, admite ele, que se considere que a palavra signifi­
que "aquilo que está presente no pensamento de Deus". Este,
acredita ele, não é o significado geralmente atribuído à pa­
lavra. Mas é, com efeito, o significado preciso, e o único
significado dado a ela pelo teólogo.

( L 1) Matthew Arnold, "The Function of Criticism " [A junção


da crítica}
A força e o direito são os governantes deste mundo; a
força, enquanto o direito não estiver pronto. A .força enquan­
to o direito nãó estiver pronto. E, enquanto o direito não
estiver pronto, a força, a ordem vigente das coisas, é justi­
ficada, é o governante legítimo. No entanto, o direito é algo
moral, e pressupõe um reconhecimento interior, u1n livre
consentimento da vontade. Não estaremos prontos para o di­
reito - o direito, no que nos diz respeito, não está pronto
- enquanto não tivermos atingido o sentido de vê-lo e de
querê-lo. O modo pelo qual para nós ele poderá mudar e
transformar a força, a ordem vigente das coisas, para tor­
nar-se, por sua vez, o legítimo governante do mundo, depen­
derá do modo como nós o encararmos e o desejarmos quan­
do chegar nossa hora. Portanto, que outras pessoas fascina­
das pelo seu direito recentemente discernido tentem impô­
lo a nós como nosso e, com violência, queiram substitu[r
nossa força pelo seu direito é um ato de tirania, ao qual se
deve opor resistência. Este ato reduz a nada a segunda parle
da nossa máxima: força enquanto o direito não estiver pron­
to. Foi este o grande erro da Revolução francesa. E seu mo­
vimento de idéias, ao abandonar a esfera intelectual, per­
correu com efeito uma trajetória prodigiosa e memorúvd,
mas não produziu nenhum fruto intelectual semelhante aos

do movimento de idéias do Renascimento.


1 50 PENSAR COM CONCEITOS

( 1 2) Dorothea Krook, ''Three Traditions ofMoral Thought "


[Três tradições do pensamento moral}
O empirista acredita que os fatos observados do com­
portamento moral dos homens gerarão generalizações ou
"princípios" não só descritivos, mas também prescritivos;
e esta é a crença que determina (e para ele j ustifica) seu
método de investigação. Mas a crença é totalmente ilusó­
ria. A transição vital, daquilo que é para aquilo que deveria
ser, não pode jamais ser efetuada pelo método de mera ca­
talogação, classificação e análise do comportamento obser­
vado de homens. Pois o conhecimento daquilo que é nunca
produzirá um conhecimento daquilo que deveria ser, enquan­
to "aquilo que é" referir-se apenas ao concreto e não der qual­
quer atenção ao possível. Ele somente poderá fazê-lo quando
a noção de "aquilo que é" estiver relacionada a alguma visão
de possibilidade humana, distinta da mera concretude hu­
mana. Pois os homens "deveriam ser'' aquilo que "em ter­
mos ideais" são capazes de ser. Este é o único significado
correto da palavra "deveriam" nesse contexto. E isto, neces­
sariamente, pressupõe algum ideal de homem, alguma vi­
são da possibilidade humana, distinta da sua concretude. Lo­
go, segundo esta análise, o empirista, que se orgulha de ser
l ivre de quaisquer preconceitos acerca da possibilidade hu­
mana, que em suas investigações sobre a moral alega não
estar prejudicado por nenhum ideal de possibilidade huma­
na, por nenhuma visão daquilo que os homens poderiam
ser em contraste com o que são, está totalmente iludido.

( 1 3) Susan Stebbing, "Thinldng to Some Purpose " [Pensando


com objetividade}
O Dr. Ernest Barker levanta a questão: "Mas o comu­
njsmo, em qualquer sentido real da palavra, é uma fé?" E
responde: "A fé exige alguma afirmação de crença em algo
apreendido porém invis[vel. É um empreendimento de cora­
gem espiritual, que abandona o nível prosaico e alça vôo.
l'N 1 m ;J EM ANÁLISE l5 1

l 'qda afilosofia do comunismo é decididamente contrária


:'i !e. É uma filosofia de causação; e seus seguidores dedi­
cam-se ao estudo de causas materiais e à produção de efei­
tos materiais." A isto, o Sr. Hamilton Fyfe respondeu : "O

Dr. Ernest Barker limita de modo indevido o significado de


· ré ' quando diz que 'toda a filosofia do comunismo é con­
trária à fé ', e define ' fé' como 'crença no invisív�I'. Os
comunistas têm fé na natureza humana, fé em que o d ireito
Lriw1fará sobre a força (embora não deixem o direito desar­
mado), fé em que a justiça e o companheirismo surgirão a
partir do twnu1to de luta e competição egoísta e implacá­
vel, fé em que a igualdade de oportunidades na vida propi­
ciará melhores resultados do que as distinções sociais cruéis
e imerecidas do nosso sistema atual." Em primeiro lugar, o
Dr. Barker distingue entTe "um sentido real da palavra" e,
presumivelmente, um sentido irreal. Esta distinção é decer­
to desprovida de significado, ou revela ser uma flagrante
manipulação em prol de algum "sentido da palavra" que seja
adequado à sua própria argumentação. Em segundo lugar, o
Sr. Fyfe, ao chamar a atenção para a definição de "fé" do
Dr. Barker, protesta quanto ao seu significado ser indevida­
mente limitado se ela for definida como "crença no invisível",
mas logo passa a sustentar que os comunistas têm fé naqui­
lo que eu, pelo menos, suporia também ser "o invisível".

( 1 4) T S. Eliot, "Religion and Literature " [Religião e lite­


ratura]
Simplesmente não é verdade que obras de ficção, prosa
ou verso, ou seja, obras que descrevam atos, pensamentos,
palavras e paixões de seres humanos imaginários, ampliem
diretamente nosso conhecimento da vida. O conhecimento
direto da vida é o conhecimento direto de nós mesmos; é
nosso conhecin1ento de como as pessoas se comportam cm
geral, na medida em que aquela parte da vida da qua 1 nóH
mesmos participamos nos forneça material para gcn1.mdi:1:1
1 52 PENSAR COM CONCl:'ITOS

ções. O conhecimento da vida obtido mediante a ficção só


é possível por meio de outro estágio de autoconsciência. Quer
dizer, ele só pode ser wn conhecimento do conhecimento que
outras pessoas têm da vida, mas não um conhecimento da
vida em si. Enquanto estivernws absortos nos acontecimen­
tos de qualquer romance, do mesmo modo que nos deixamos
absorver pel o que acontece diante dos nossos olhos, estare­
mos adquirindo tanto a falsidade quanto a verdade. No en­
tanto, quando somos suficientemente evoluídos para dizer:
"Esta é a visão da vida ·de alguém que foi um bom obser­
vador dentro dos seus limites, Dickens, Thackeray, George
Eliot ou Balzac; mas ele a encarava de um modo diferente
do meu, porque era uma outra pessoa. Até selecionou aspec­
tos bastante diferentes para observar, ou os mesmos aspec­
tos numa ordem de importância diferente, porque era uma
pessoa diferente. Logo, aquilo que estou vendo é o mundo
como é visto por uma mente especí fica" -, neste caso, esta­
remos em condições de ganhar algo a partir da leitura de
ficção. Estaremos aprendendo algo sobre a vida, di reto da­
queles autores, exatamente como aprendemos direto a partir
da leitura de obras de História. No entanto, aqueles autores
somente nos estão ajudando de verdade quando pudermos
ver e levar em conta as diferenças que têm em relação a nós.

( 1 5) Bernard Shaw, Prefácio a "Saint Joan " [Santa Joana


d 'Arc}
Os m a ni cô mio s judiciários são ocupados cm gnmde
parte por assassinos que obedeceram ao comando de vozes.
Assim, uma mulher pode ouvir vozes que lhe digam para de­
golar o marido e estrangular o filho enquanto dormem, e
ela pode se sentir obrigada a fazer o que lhe for ordenado.
Por uma superstição médko-jurídica, nossos tribunais julgam
que criminosos cujas tentações se apresentem sob a forma
de ilusões deste tipo não são responsáveis por seus atos e
l'l<tÍ TJCA EMANÂL!St: l ''d

devem ser tratados como desequilibrados. No entanto, os

que têm visões e os que ouvem revelações nem sempre são


criminosos. As inspirações, intuições, conclusões desenvol­
vidas no inconsciente dos gênios assumem às vezes a forma
de ilusões semelhantes. Sócrates, Lutero, Swedenborg, Blakc
tinham visões e ouviam vozes, exatamente como São Fran­
cisco de Assis e Santa Joana d' Are. Se a imaginação de
Newton tivesse sido provida do mesmo tipo de dramatici­
dade vivaz, ele poderia ter visto o espírito de Pitágoras en­
trar no pomar e explicar por que as maçãs estavam caindo.
Uma ilusão semel hante não teria invalidado nem a teoria da
gravidade nem a sanidade geral de Newton. Além do mais,
o método visionário de fazer a descoberta não teria sido
nem um pouco mais milagroso do que o método normal.
Verifica-se a sanidade, não pela normalidade do método,
mas pela racionalidade da conclusão.

( 1 6) Simone Weil, "The Needfor Roots " [A necessidade de


raízes}
A noção de obrigações vem antes da noção de direitos,
que é subordinada e proporcional à primeira. Um direito
não é efetivo em si mesmo, mas apenas em relação à obri­
gação à qual corresponde. O efetivo exercício de um direito
não brota do indivíduo que o possui, mas de outros homens
que consideram dever a ele alguma obrigação. O reconl1e­
cimento de uma obrigação confere-lhe efetividade. Uma
obrigação que não seja reconhecida por ninguém não perde
nada da plena força da sua existência. Um direito que não
sej a reconhecido por ninguém não tem muito valor. Não faz
sentido dizer que os homens têm, de um lado, direitos e, do
outro, obrigações. Estas palavras apenas expressam diferen­
ças de ponto de vista. O verdadeiro relacionamento entre as

duas noções é semelhante ao que existe entre sujeito e objl..'


to. Um homem, considerado em isolamento, só tem d0vi;res,
entre os quais estão certos deveres para consigo mes1110.
154 PENS/lR COM CONCEITOS

Outros homens, vistos a partir da perspectiva dele, só têm


direitos. Ele, por sua vez, tem direitos, quando encarado a
partir do ponto de vista de outros homens que reconhecem
ter obrigações para com ele. Um homem que estivesse só
no universo não teria absolutamente nenhum direito, mas
obrigações.

( l 7) Platão, "A pologia de Só cra tes "


Deveríamos refletir que há muita razão para ter espe­
ranças de um bom resultado, também por outros motivos.
A morte é uma de duas coisas. Ou ela é wna aniqui lação, e
os mortos não têm nenhuma consciência de nada. Ou, como
nos dizem, ela é realmente uma mudança - urna migração
da alma deste lugar para outro. Agora, se não existe nenhu­
ma consciência mas apenas um sono sem sonhos, a morte
deve ser um proveito maravilhoso. Suponho que, se disses­
sem a alguém que escolhesse a noite em que dormiu tão
profundamente a ponto de nem sonhar, que a comparasse
com todas as outras noites e dias da sua vida, e que então
lhe pedissem que dissesse, depois de refletir bem, quantos
dias e noites mais fel i zes e melhores do que aquela havia
passado ao longo da vida - bem, acho que o próprio Grande
Rei, quanto mais qualquer pessoa comum, concluiria que
aqueles dias e noites seriam fáceis de contar em compara­
ção com o resto. Se a morte for assim, então, eu a conside­
ro um lucro; porque, se a encararmos assim, toda a eterni­
dade poderá ser vista como nada mais do que uma única
noite. Se, pelo contrário, a morte for uma remoção daqui para
algum outro lugar, e se o que nos dizem for verdade, que
todos os mortos estão lá, que bênção maior do que essa
poderia haver, senhores?

( 1 8) Aristóteles, "Poética "


A tragédia é em sua essência uma imitação, não de pes­
soas, mas da ação e da vida, da felicidade e da desgraça. Toda
PRÁTlCA EM ANÁLISE 1 55

felicidade ou desgraça humana assume a forma de ação. O


objetivo em mente é um certo tipo de atividade, não uma
qualidade. O Caráter nos confere qualidades, mas é nos
nossos atos - no que fazemos -, que somos felizes ou não.
Portanto, numa peça, ninguém atua de modo a representar
as Personagens; as peças incluem as Personagens para que
possa haver a ação. De modo que é a ação nela existente,
quer dizer, sua Fábula ou seu Enredo, que é o objetivo final
da tragédia. E a finalidade é em tudo o aspecto mais impor­
tante. Além djsso, a tragédia é impossível sem a ação, mas
pode existir tragédia sem o Caráter das Personagens. Susten­
tamos portanto que o fundamento essencial, a vida e a alma,
por assim dizer, da tragédia é o Enredo. E que as Perso­
nagens vêm em segundo lugar. Compare-se a analogia com
a pintura, na qual as cores mais belas dispostas sem nenhu­
ma ordem não provocam o mesmo prazer que um simples
esboço de um retrato em preto e branco.

( 1 9) Santo Agostinho, "Confissões "


Quando, portanto, desejei alguma coisa, ou não a dese­
jei, sempre tive grande certeza de ter sido eu e nenhuma
outra pessoa que desejou ou não desejou o fato; e cheguei
mesmo a observar que a raiz e a causa do meu pecado n isto
residiam. Mas qualquer coisa que eu fizesse involuntaria­
mente, eu via que era objeto dela em vez de sujeito e con­
siderava que aquilo não era um erro, mas um castigo. E Jogo
admitia - quando me lembrava de que Tu és justo - que eu
não era punido injustamente. Mas então voltava a dizer:
"Quem me fez? Não foi Deus, Que não só é Bom, mas é a
própria Bondade? Como então chego eu a desejar aquilo
que é mau e a não desejar aquilo que é bom, motivo pelo
qual acabo sendo punido com justiça? Quem pôs em mim
tal poder e enxertou no meu caule esse ramo de amargor, se
cu fuj totalmente criado por meu Deus, dulcíssimo? Se o
l 56 PENSAR COM CONCEITOS

demônio for o autor disto, de onde se origina este mesmo


demônio? E se ele mesmo, por sua própria vontade perver­
sa, de um bom anjo passou a demônio, de onde se originou
a vontade de ser mau, se ele tinha sido feito anjo totalmen­
te bom, por aquele Criador boníssimo?" Com estas cogita­
ções, eu voltava a me deprimir.

(20) Lawrence Du.rrell, "Clea "


Algo a mais, exatamente com o mesmo nível de fascí­
nio: eu também percebia que amante e amado, observador
e observado lançam um campo, um em volta do outro. ("A
percepção tem a forma de um abraço - o veneno entra com
o abraço" , como escreve Pursewarden.) Eles, então, inferem
as propriedades do seu amor, avaliando-o a partir do seu
estreito campo de visão, com suas imensas margens de des­
conhecido ("a refração"), e passam, então, a relacioná-lo a
uma concepção generalizada de algo constante nas suas qua­
lidades e universal na sua operação. Como foi valiosa esta
lição, tanto para a arte quanto para a vida! Em tudo o que
tinha escrito, eu apenas vinha confirmando o poder de uma
imagem que tinha criado sem querer com o mero ato de ver
Justine. Não havia nenhuma questão de verdadeiro ou falso.
Ninfa? Deusa? Vampiro? É, ela era tudo isto, e nada disto.
Era, como toda mulher, tudo o que a mente de um homem
(e definamos "homem" corno um poeta em perpétua conspi­
ração contra si mesmo) - que a mente do homem desej asse
imaginar. Ela estava ali para sempre, e nunca tinha existido!

(2 1 ) A. J Aye1� "The Problem ofKnowledge " [O problema do


conhecimento}
As respostas que encontramos para as perguntas que
estivemos examinando até agora ainda não nos deixaram
em posição que nos permita dar explicação completa do que
significa saber que algo realmente é o caso. O primeiro pré-
PR/ÍT!CA EM ANÁUSI:' 1 57

requisito é que aquilo que se sabe seja verdadeiro; mas isto


não é suficiente. Nem mesmo se acrescentarmos a condi­
ção ulterior de que se tenha absoluta certeza daquilo que se
sabe. Pois é possível ter absoluta certeza de algo que seja
na realidade verdadeiro, mas mesmo assim não saber o que
é. As circunstâncias podem ser tais que não se tenha o direito
à certeza. Por exemplo, uma pessoa supersticiosa, que sem
querer tivesse passado por baixo de urna escada, poderia
estar convencida de estar a ponto de sofrer alguma desgraça
em conseqüência disto. E poderia de fato ter razão. Mas não
seria correto dizer que ela soubesse que isto ia mesmo ocor­
rer. Chegou a tal crença por meio de um processo de racio­
cínio que não seria confiável em termos gerais. Portanto,
embora sua previsão se realizasse, não se tratava de um caso
de conhecimento. Mais uma vez, se alguém estivesse ple­
namente convencido de uma proposição matemática por meio
de uma prova que se pudesse demonstrar inválida, sem maio­
res evidências, não se poderia dizer que conhecesse a pro­
posição, muito embora ela fosse verdadeira.

(22) Cyril Connolly, "Enemies ofPromise " [Inimigos da Pro­


missão]
De fato não existe nada que se possa chamar de escri­
ta sem estilo. O estilo não é tmrn forma de escrita; ele é um
relaci onamento: a relação que existe na arte entre a forma
e o conteúdo. Todo escritor tem uma certa capacidade para
pensar e sentir; e tal capacidade nunca é exatamente igual
à de nenhuma outra pessoa. É uma capacidade que pode ser
apreciada; e, parn sua aval iação, há certos termos. Falamos
da integridade de um escritor, do seu talento ou dos seus
poderes, querendo falar da força mental à sua disposição.
No entanto, ao tirar proveito destes recursos, o escritor é guia­
do por mais uma consideração: quanto ao seu tema. Seria
possível dizer que o estilo de urn escritor é condicionado
por sua concepção do leitor; e que ela varia conforme clé
1 58 PENSAR COM CONCElTOS

esteja escrevendo para si mesmo, para seus amigos, seus


mestres ou seu Deus, para uma elite instruída, para uma
classe inferior necessitada de instrução ou para um júri hos­
til. O estilo é, portanto, a relação entre o que o escritor quer
dizer - seu tema - e ele mesmo ou os poderes de que dis­
ponha: entre a forma do seu tema e o conteúdo do seu talen­
to. O estilo manifesta-se na l inguagem. O vocabulário de um
escritor é sua moeda, mas é papel-moeda, e seu valor de­
pende das reservas mentais e emocionais que o sustentem.
O perfeito uso da linguagem é aquele no qual cada palavra
transmite o significado que se pretendia que transmitisse,
nada a menos e nada a mais.

(23) Erich Fromm, "Man for Himself" [O homem por si


mesmo}
A crise humana contemporânea levou a um retrocesso
em relação às idéias e esperanças do Iluminismo, sob os
auspícios das quais tjvera início nosso progresso econômi�
co e político. A própria noção de progresso é considerada
uma ilusão infantil e o que se prega e m seu lugar é o "rea­
lismo", um novo termo para designar a total falta de fé na
humanidade. A dúvida crescente quanto à autonomia e à
razão humana gerou um estado de confusão moral no qual
o homem permanece sem a orientação seja da revelação
divina, seja da razão. O resultado é a aceitação de uma posi­
ção relativista que propõe que os juízos de valor e as nor­
mas éticas são exclusivamente questão de gosto ou de pre­
ferência arbitrária e que não se pode fazer nenhuma asser­
ção objetivamente válida neste terreno. Entretanto, como o
homem não pode viver sem valores e normas, o relativismo
torna-o presa f
ácil para sistemas de valores irracionais. Ele
volta a uma posição que a civilização grega, o Cristianismo,
o Renascimento e o Iluminismo do século XV[Jf já tinham
superado. As exigências do Estado, o entusiasmo pelas qua­
lidades mágicas de l íderes poderosos, por máquinas poten-
l'RÁT/CA EM ANÁLJSE L 59

tes e pelo sucesso material tornaram-se as fontes das suas


normas e dos seus juízos de valor.

(24) K. R. Popper, "A miséria do historicismo ''


Em forte oposição ao naturalismo metodológico no
campo da sociologia, o h i storicismo alega que alguns dos
métodos característicos da fisica não podem ser aplicados
às ciências sociais, em decorrência das profundas diferen­
ças entre a sociologia e a fisica. As leis físicas, ou "leis da
natureza'', diz o h istoricismo, são válidas em toda parte e
em qualquer momento, pois o mundo físico é governado por
um sistema de uniformidades fisicas invariáveis ao longo do
espaço e do tempo. A s leis sociológicas, porém, ou as leis
da vida social, diferem em locais e períodos diferentes. Em­
bora o historicismo admita a existência de grande quantidade
de condições sociais típicas cuja regularidade de recorrên­
cia pode ser observada, ele nega que as regularidades detec­
táveis na vida social tenham o caráter das regularidades imu­
táveis do mundo físico. Pois elas dependem da história bem
como de diferenças na cultura. Dependem de uma situação
histórica específica. Logo, por exemplo, não se deveria falar,
sem maior particularização, das leis da economia, mas, sim,
das leis da economia feudal, ou do início da era industrial,
e assim por diante, sempre fazendo menção ao período his­
tórico no qual se supõe que as leis em pauta estivessem em
vigor.

(25) C. I'. Snott1, "11ie Two Cultures and the Scientific Revo­
lution " [As duas culturas e a revolução científica}
Participei muitas vezes de reuniões de pessoas que, pe­
los padrões da cultura tradicional, são consideradas alta­
mente instruidas e que, com prazer considerável, expressavam
sua incredulidade ante a ignorânc i a dos cientistas. Uma
vez ou duas senti-me atingido pela provocação e perguntei
ao grupo quantos deles poderiam descrever a Segunda Lei
1 60 PENSAR COM CONCEITOS

da Termodinâmica. A reação foi fria; fo i também negativa.


E no entanto eu estava fazendo uma pergunta equivalente,
em termos científicos, a "Você leu alguma obra de Shakes­
peare?". Agora acredito que, se tivesse feito uma pergunta
ainda mais simples - como, por exemplo, "o que você quer
dizer com massa ou aceleração?", que é o equivalente cien­
tífico de "Você sabe ler?", não mais do que uma em cada
dez pessoas de alto nível de instrução saberia responder.
Vê-se, portanto, que a enorme estrutura da fisica moderna
vai subindo e que a maioria das pessoas mais inteligentes
do mundo ocidental sabem tanto "de física contemporânea"
quanto seus antepassados do período neolítico.

(26) Arthur Koestler, "Neither Lotus nor Robot " [Nem lótus,
nem robô}
E por que devem o Mestre e seus discípulos escrever
livros e mais livros para explicar que o Zen não pode ser ex­
plicado, que ele está "literalmente para além do pensamento,
fora dos limites do pensamento mais refinado e sutil" que
ele, em suma, não pode ser posto em palavras? Sabemos
que não é só a experiência mística que oferece um desafio
à verbalização. Existe toda uma gama de intuições, impres­
sões verbais, sensações corpóreas, que também se recusam
a ser convertidas em moeda verbal. Pintores pintam, baila­
rinos dançam, músicos fazem música, em vez de explicar
que estão praticando não-pensamento em suas não-mentes.
A impossibilidade de articular algo em palavras não é mo­
nopólio do Zen, mas o Zen é a única escola que criou uma
filosofia a partir deste ponto, cujos expoentes explodem em
verborragia para provar sua constipação mental.

(27) Hans Meyerhojf. "Plato among Friends and Enemies "


(Platão entre amigos e inimigos]
Podemos rej eitar o tipo específico de ficção invocado
por Platão, ou o objetivo ao qual ele serve na República. No
l'l?ÁTICA EM ANÁLISE l61

entanto, antes de expressar nossa indignação moral diante


de Platão, ou de usar esta passagem como único :fundamen­
to para a acusação extrema de que ele defenderia a "propa­
ganda mentirosa", poderíamos também fazer uma pàusa
para refletir que Platão (como de costume) estava lidando
com um problema :fundamental da teoria social. Depois de
Marx, N ietzsche, Sorel e Freud, seria ingenuidade negar que
ficções ou mitos desempenharam e continuam a desempe­
nhar um papel crucial na política. Logo, não é hábil, para
dizer o mínimo, distorcer a evidência de que Platão conhe­
cia este fato, para transformá-la na acusação de que ele
defendia a "propaganda mentirqsa" - ainda mais se o voca­
bulário político do próprio crítico não conseguir dispensar
mitos disfarçados. Pois, de acordo com o Sr. Popper, os va­
lores morais absolutos que escolhemos como objetivos para
a boa sociedade são "decisões" ou "convenções'', que não
são justificáveis racionalmente e que invariavelmente con­
têm "um certo elemento de arbitrariedade". Ora, se a liber­
dade e a igualdade forem escolhidas como valores morais
absolutos, não com base em motivos racionais, mas por um
ato da vontade, ou da fé, que seja indiscutivelmente arbitrá­
rio, não terão eles o status lógico de mitos políticos?

(28) W H. Auden, "The Fallen City " [A cidade caída}


N a melhor das hipóteses, o homem público é aquele que
dedica a vida a algum objetivo público, política, ciência,
indústria, arte etc. A finalidade está fora dele mesmo, mas
a escolha da finalidade é determinada pelos talentos parti­
culares dos quais a natureza o dotou, e a prova de sua esco­
lha ter sido acertada é o sucesso material. Dedicar a vida a
um fim para o qual não se possui talento é lo ucma a loll­
,

cura de um Dom Quixote. Em termos estritos, ele não dese­


j a a fama para si mesmo, mas deseja realizar algo que mere­
ça fama. Como seu objetivo é público, ou seja, está situado
1 62 PENSAR COM CONCEITOS

na esfera pública - casar com a mulher da própria escolha


ou ser um bom pai são objetivos pessoais, não públicos - a
vida pessoal e suas satisfações são, para o homem público,
de importância secundária e, caso entrem em conflito com
sua vocação, devem ser sacrificadas. O homem público, na
melhor das hipóteses, sabe que as outras pessoas existem, e
desej a que existam - um estadista não tem nenhum desejo
de estabelecer a justiça entre mesas e cadeiras -, mas, se for
necessário para a realização dos seus objetivos tratar certas
'
pessoas como se fossem objetos, então, seja de modo insen­
sível, seja com remorsos, é isto o que ele fará.

(29) Sir Arthur Eddington, "A filosofia da ciência fisica "


Suponhamos que um ictiólogo esteja explorando a vida
no oceano. Ele lança uma rede ao mar e recolhe uma varie­
dade de peixes. Ao avaliar a pesca, ele adota o procedimento
habitual de um cientista para classificar o que a rede lhe mos­
tra. Chega a duas generalizações:
(1) Nenhuma criatura marinha tem menos de 5 cm de
comprimento.
(2) Todas as criaturas marinhas têm guelras.
As duas são verdadeiras no que diz respeito ao material
que apanhou na rede, e ele supõe inicialmente que perma­
necerão válidas, não importa quantas vezes repita a expe­
riência. N a aplicação desta analogia, o material apanhado na
rede simboliza o conjunto de conhecimento que constitui a
ciência fí sica e a rede, o equipamento sensorial e intelec­
,

tual que usamos para obter tal conhecimento. Lançar a rede


corresponde à observação, pois o conhecimento que não
tiver sido ou não puder ser obtido pela observação não é
admitido no terreno da ciência fisica. Um observador pode
apresentar a objeção de que a primeira generalização está er­
rada. "Há muitas criaturas marinhas com menos de 5 cm de
comprimento; só que sua rede não está adaptada para apa-
PRÁTICA EM ANÁLISE 163

nhá-las." O ictiólogo descarta a objeção com desdém. "Qual­


quer coisa que minha rede não possa apanhar estará, por
isto mesmo, fora do campo do conhecimento ictioJógico e
não fará parte do reino dos peixes, que foi definido como
o tema do conhecimento ictiológico. Em suma, o que minha
rede não puder apanhar não é peixe."

(30) Geoffrey Gorei: ''O marquês de Sade "


Como homem, Sade é importante por sua qualidade de
paradigma. A não ser por sua franqueza e pelo fácil acesso
aos seus desej os inconscientes mais profundos, não há ne­
nhum motivo para considerá-lo excepcional. Apesar dos es­
forços dos psicanalistas, ainda sabemos pouquíssimo a res­
peito dos motivos que tornam a criação artística tão imperio­
sa para algumas pessoas. Com sua reducionista abordagem
histórica ao desenvolvimento humano, a psicanálise tem a
tendência a ver a criação artística como sublimação bem­
sucedida de desejos infantis reprimidos, de natureza sexual
ou para-sexual, e provavelmente explicaria o fracasso de
Sade como dramaturgo atribuindo-o ao fato de que suas re­
pressões não seriam suficientemente fortes, de que ele seria
"desinibido" demais. No entanto, outra interpretação pare­
ce-me possível. Parece possível que o misterioso impulso
para a criatividade seja muito primitivo em alguns indiví­
duos e que, quando esse impulso é frustrado - pela inca­
pacidade técnica ou pela indiferença do público -, ocorre
uma "reversão" para um sadomasoquismo mais direto, em
vez do oposto, ou seja, o sadomasoquismo é um substinito
da criatividade, em vez de ser a criatividade uma sublimação
de desejos infantis. Se Mussolini tivesse sido um dramatur­
go de sucesso, ou se Hitler tivesse sido um grande arquite­
to, a história deste século poderia ter sido muito diferente.
1 64 PENSAR COM CONCEITOS

2. Perguntas para responder

( l ) Até que ponto a educação é uma questão política?


(2) Existe algo que se possa chamar de lei internacio­
nal, no mundo atual?
( 3 ) A distinção entre clássico e romântico é urna ferra­
menta útil para a crítica literária?
( 4) "O objetivo primordial do pintor é representar seus
próprios sentimentos na tela." Comente.
(5) Qual é o "assunto" da matemática?
(6) Poderia um dia existir uma ciência da natureza
humana?
(7) E m que sentido, se houver algum, poderíamos falar
de verdade poética propriamente dita?
(8) A coerência de cada Estado depende de uma mora-
lidade comum?
(9) "Se Deus não existe, tudo é permitido." Comente.
(J O) O comunismo é urna religião?
( 1 1 ) Há algum outro tipo de explicação além da expli­
cação científica?
( 1 2) Seria possível algum dia construir um robô igual
ao homem em todos os aspectos?
( 1 3) Os animais pensam?
( 1 4) A Inglaterra era uma democracia antes de as mu­
lheres poderem votar?
( 1 5) Há valores absolutos? Como poderiam ser estabe­
lecidos?
( 1 6) O historiador algum dia será capaz de fazer previ-
sões precisas?
( 17) "Todos os homens nascem iguais." Comente.
( 1 8) Há mérito em fazer o que gostamos de fazer?
( 1 9) "Penso; logo existo." Este é um bom argumento?
(20) Pode ser cetio fazer algo imoral?
( 2 1 ) O que é um Estado totalitário?
(22) "A beleza só existe aos olhos do dono." Comente.
PRATICA EM ANÁl/SF: 1 65

(23) Todos os romances têm finalidade moral?


(24) Se meus atos fossem todos previsíveis, poderiam
ser livres?
(25) Em que sentido, se houver algum, a música nos
"diz" alguma coisa?
(26) "A propriedade é roubo." Comente.
(27) A existência de Deus poderia um dia ser compro­
vada?
(28) "O Ministro da Fazenda foi responsável pelo co­
lapso econômico." A fadiga do metal foi responsável peJo
"

acidente do avião." O termo "responsável" está sendo usado


no mesmo sentido nas duas frases?
(29) Em que aspectos as leis da natureza diferem da lei
moral?
(30) "Não há drama naturalista." Comente.
(3 1 ) Qual é a diferença entre educação e doutrinação?
(32) "A Alemanha é uma nação menos adulta do que a
Grã-Bretanha." Qual poderia ser o significado desta frase?
(33) Pode-se censurar alguma literatura apenas pela obs­
cenidade?
(34) Até que ponto a imaginação faz parte do trabalho
do historiador?
(35) Com base em que motivos gerais - se houver -
deveria o Estado reprimir a liberdade do indivíduo?
(36) Podemos chegar a ter certeza absoluta de que o
que vemos não é ilusão?
(37) "Nada há de mais certo que as verdades da geome­
tria." Comente.
(38) Que dificuldades lógicas impedem a tradução de
uma língua para outra?
(39) Até que ponto o conceito de moralidade se apli­
caria a mn homem numa ilha deserta?
(40) É possível distinguir entre forma e conteúdo em
poesia?
1 66 PENSAR COM CONCEITOS

(4 1 ) Elétrons existem no mesmo sentido em que mesa

existe?
(42) "Cadbury's significa bom chocolate." O que "sig­
nifica" significa nesta frase?
(43) Até que ponto o progresso da ciência depende da
intuição?
(44) "O latim treina a mente." Que evidências se podem
apresentar a favor ou contra esta afirmação?
( 45) Uma teoria científica pode ser verificável em ter­
mos conclusivos?
(46) Você class ificaria o primeiro capítulo do Gênese
como "fato" ou "ficção"?
( 4 7) É possível distinguir com precisão uma invenção
de uma descoberta?
(48) "A virtude é sua própria recompensa." Comente.
(49) "Não podemos nunca ter consciência da mente in­
consciente, já que por definição ela é inconsciente." É ver­
dade?
(50) Existe algo que se possa chamar de "aprender a pen­
sar", sem referência a nenhum campo de estudo específico?

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