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Pós-graduação
Departamento de Filosofia da Universidade de
São Paulo
Todo leitor de Thomas Mann conhece esta passagem. Ela está no capítulo XXV de
Doutor Fausto e narra o momento em que o diabo procura o compositor Adrian
Leverkuhn para firmar com ele um pacto, mostrar-lhe o caminho da nova linguagem
musical. Conversa tensa, que em dado momento é suspensa pela contemplação de
uma impressionante metamorfose. Nela, o diabo apresenta uma de suas
especialidades, a arte de mudar de figura. Não, agora ele não se parecia mais com um
rufião ou um marginal. Na verdade:
Os escritores alemães, ou pelos menos alguns dos melhores deles, são à sua
maneira bastante aristotélicos. Pois de onde viria esta peculiar tendência de associar a
dialética nascente em seu território à uma atividade infernal, se em algum momento
eles não tivessem passado os olhos pela Metafísica, de Aristóteles? Desde Aristóteles,
aquele que acredita poder suspender o princípio de não-contradição só pode nos
convidar a viver em um mundo no qual julgamentos não são mais possíveis, no qual a
desorientação caótica reina. Dizer que a contradição não é o índice de uma
impossibilidade do pensamento determinar objetos, como quer o partido da dialética,
é abrir as portas para a dissolução completa, dissolver o mundo enquanto estrutura
capaz de responder à exigências elementares de ordem. A desconfiança da dialética
como a expressão do desejo cego e diabólico de dissolver mundos vem de longe.
Goethe e Thomas Mann sabiam disso.
Assim, não é de se estranhar que, a partir de certo momento, a última versão
da dialética, esta que conhecemos pela alcunha de dialética negativa, fosse acusada
como representante maior dos que estavam envolvidos nas sanhas niilistas da
dissolução completa. Reduzindo o pensamento ao “uso ad hoc da negação
determinada”, como dizia Habermas, a última versão histórica da dialética nunca
ofereceria um horizonte de reconciliação ao alcance da vista. Seus olhos úmidos,
sombrios, um tanto avermelhados, como disse Mann, só poderiam expressar o
niilismo desse “espírito que sempre nega” e que nos convida a ir ao inferno, nem que
seja a este inferno frio do Grande Hotel Abgrund. Pois, se o diabo é um desses
fenômenos que se diz de muitas maneiras, o inferno também se declina de forma
generosa. Ele pode ser, por exemplo, este lugar no qual a ruína parece eterna e
insuperável, no qual estamos condenados à cantar a cantinela triste da finitude, lugar
no qual as condições da praxis transformadora encontram-se, por isto, completamente
impossibilitadas, não restando outra coisa a não ser o pensamento que denuncia toda
solução como uma traição, toda imanência como um recuo. Um inferno que mais
parece o mundo invertido depressivo produzido por uma teologia negativa. Esta
pareceria ser a estação final da longa e complexa história da dialética no pensamento
ocidental.
Bem, se propus este curso é porque valia a pena perguntar sobre o que
aconteceria se tal leitura corrente estivesse radicalmente errada. Errada não apenas no
que diz respeito à dialética negativa de Adorno, mas principalmente no que diz
respeito à esta tradição dialética que inicia a partir de Hegel. Erro que não seria
simples incompreensão em relação a esses textos (como se diz) incompreensíveis de
filósofos como Hegel e Adorno, no qual as orações subordinadas parecem entrar em
compasso de vertigem. Erro que seria, na verdade, um desesperado modo de defesa do
senso comum contra essa forma de pensamento capaz de mostrar como:
A aparição é o surgir e o passar que não surge nem passa, mas que é em si e
constitui a efetividade e o movimento da vida da verdade. O verdadeiro assim
é o delírio báquico, onde não há membro que não esteja ébrio; e porque cada
membro, ao separar-se, também imediatamente se dissolve, esse delírio é ao
mesmo tempo repouso translúcido e simples. Perante o tribunal desse
movimento, não se sustêm nem as figuras singulares do espírito, nem os
pensamentos determinados; pois aí tanto são momentos positivos necessários,
quanto são negativos e evanescentes3.
Esse delírio báquico, onde não há membro que não esteja ébrio, só pode
aparecer para um certo senso comum como palavreado de quem quer criar
movimentos que são, ao mesmo tempo, repousos translúcidos e simples, surgir e
passar que não surgem nem passam, evanescências que não são apenas
desaparecimentos mas, ao mesmo tempo, momentos positivos e necessários. No
coração desta dialética delirante encontra-se, na verdade, um desejo diabólico de
dissolver a segurança do mundo e, com ele, as figuras singulares do espírito e os
pensamento determinados.
Assim, alguém que quiser pensar de maneira dialética começará por se
perguntar se não é a partir de tal dissolução que se inicia a verdadeira filosofia, se a
filosofia, ao menos esta que a dialética defende, não seria exatamente o discurso
daqueles que não precisam de um mundo, ou seja, que não precisam disto que nos
permite nos orientar no pensamento a partir da imagem de uma totalidade meta-
estável que, se não está atualmente realizada, colocar-se-ia ao menos como horizonte
regulador da crítica. Talvez isto explique porque as paradas finais da dialética sempre
foram tão sumárias e econômicas. Todo leitor de Hegel já percebeu como as
discussões sobre o saber absoluto são não muito mais que uma dezena de páginas, de
que as discussões de Marx sobre a sociedade comunista não enchem mais do que
algumas frases e que os momentos de conciliação em Adorno quase nunca são
efetivamente postos. Na verdade, por mais que seus detratores não queiram ver, isto
se explica pelo fato da teleologia da dialética ser a própria imanência do movimento
que ela desvela. Movimento este que será a pulsação interna da experiência do
conceito.
Neste sentido, a dialética nunca poderia ser diagnosticada, como muitos os
fizeram, como a perpetuação da eterna melancolia dos que só veem possibilidades que
nunca se realizariam por completo, seja porque a efetividade social no capitalismo
impede toda reconciliação possível, seja porque os traumas históricos do século XX
exigem meditar infinitamente sobre a barbárie ou seja porque o pensamento assumiu
uma ontologia da inadequação. Há um equivoco fundamental de setores importantes
da filosofia contemporânea a respeito do que realmente significa a atividade negativa.
Pois, longe de ser uma figura moral da resignação diante do não realizado, longe de
ser o mantra de um culto teológico à impossibilidade, a negatividade é forma de não
esmagar a possibilidade no interior das figuras disponíveis das determinações
presentes ou, e este é o ponto talvez mais importante, no interior de qualquer presente
futuro que se coloque como promessa. Ou seja, a possibilidade não é apenas mera
possibilidade que aparece como ideal irrealizado. Ela é a latência do existente que nos
esclarece de onde a existência retira sua força para se mover. Neste sentido, a
negatividade dialética não é nem poderia ser expressão de alguma espécie de falta ou
privação, como vemos, por exemplo, na tradição da crítica deleuzeana à dialética
Ontologia em situação
Uma zona de sombra que, como veremos, pode ser expressa sob a forma de
possíveis que não são postos na determinação do objeto, como “desatualização” do
objeto posto, como pura indeterminação, entre outras figuras.
Para finalizar, gostaria ainda de voltar ao conceito de “ontologia em situação”
a fim de insistir como a dialética é sensível à modificação histórica dos sistemas de
ideias, ou se quisermos, ao que aparece ao pensamento com “representação natural”.
Ela é sensível à maneira com que o “campo das experiências possíveis” modifica-se
historicamente a partir de um sistema de causalidades múltiplas. Mas isto significa,
principalmente, que ela também modifica sua forma de construir a “unidade entre
crítica e apresentação da metafísica”. O sistema de posições e pressuposições da
dialética, aquilo que ela deve apenas pressupor e aquilo que se ela se vê em condições
de anunciar deverá necessariamente se modificar de acordo com as condições
15 KORTIAN, Garbis ; Subjectivity and civil society, In: PELCZUNSKI; The state and
civil society : studies in Hegel’s political philosophy, Cambridge University Press,
1984, p. 203
16 HEGEL, Filosofia do direito, par. 243
pobreza, é um problema que exigiria o recurso a um conceito de Estado justo. Adorno
sabe disto. Tanto que afirmará:
O livre jogo de forças da sociedade capitalista, cuja teoria econômica liberal
Hegel aceitara, não possui nenhum antídoto para o fato de a pobreza, do
“pauperismo”, segundo a terminologia de Hegel atualmente em desuso,
aumentar com a riqueza social; menos ainda poderia Hegel imaginar uma
elevação da produção que faria troça da afirmação de que a sociedade não
seria suficientemente rica em mercadorias. O Estado é solicitado
desesperadamente como uma instância para além desse jogo de forças17.
Aprende então o que quero dizer com o outro segmento do inteligível, daquele
que a razão (logos) atinge pelo poder da dialética, fazendo das hipóteses não
princípios, mas hipóteses de fato, um espécie de degraus e de pontos de apoio,
para ir até aquilo que não admite hipóteses, que é o princípio de tudo,
atingindo o qual desce, fixando-se em todas as consequências que daí
decorrem, até chegar à conclusão, sem se servir em nada de qualquer dado
sensível, mas passando das ideias uma às outras, e terminando em ideias21.
23 “Deste modo, a dialética, sob os seus diversos aspectos, prepara a lógica. Para
se tornar, verdadeiramente, uma arte, ela supõe um estado das articulações
lógicas do discurso, das relações de consecução ou de incompatibilidade entre as
proposições; é preciso reconhecer e analisar os diversos modos de argumentaão,
saber distinguir entre os encadeamentos legítimos e encadeamentos incorretos.
Falta-lhe, no entanto, ainda duas coisas que a distinguem da lógica. Primeiro e
sobretudo, o seu saber lógico continua, em larga medida, em estado implícito. É
uma arte, uma técnica. Dá regras, mas sem chegar a estabelecer e a formular
sistematicamente as leis que as justificam. Além disso, o seu caráter agonístico
tem como efeito, não apenas impdir-lhe o acesso à independência científica, mas
concentrar seu interesse na argumentação de caráter erístico ou refutativo”
(BLANCHË, Robert; História da lógica, Lisboa: Edições 70, p. 21)
24 KNEALE e KNEALE; The development of logic, Oxford University Press, 1962, p.
7
25 DESCARTES, René; Regras para a direção do espírito
26 KANT, Immanuel; Crítica da razão pura, A 297
Enquanto faculdade dos princípios, a razão conhece o particular no universal
mediante conceitos que Kant chama de “ideias transcendentais”. Tais conceitos tem
“o aspecto de princípios objetivos”, o que acaba por nos induzir a pensar que eles tem
a normatividade suficiente para determinar objetivamente as coisas em si. No entanto,
os conceitos da razão nunca permitem o conhecimento imediato das coisas, apenas
um conhecimento por inferência a partir de premissas não imediatamente derivadas da
premissa maior. Por exemplo, “todos os homens são mortais” já tem relação analítica
com a proposição “alguns homens são mortais”, mas não “todos os sábios são
mortais”, já que o conceito de sábio não está posto. Sua articulação é possível através
daquilo que Kant chama de “inferências da razão” que visam unificar em princípios
gerais a diversidade das regras do entendimento. Tais princípios, dirá Kant:
30 Ver a este respeito ARANTES, Paulo; Ressentimento da dialética, São Paulo: Paz
e Terra, 1996
Dialética hegeliana, dialética marxista, dialética adorniana
Aula 2
Por que uma ontologia do ser não é possível?
Hegel e Heidegger
Na aula de hoje, gostaria de mostrar como Hegel inicia sua Ciência da Lógica
respondendo à pergunta : “por que uma ontologia do ser não é possível?”. Ou seja, por
que “ser” é uma categoria que não serve como fundamento para a determinação
normativa do que deve orientar nossa experiência do mundo. Devemos então nos
perguntar sobre qual problema a categoria de “ser” oferece, qual a natureza de sua
inadequação. Veremos como Hegel desenvolve a seguinte resposta: “Uma ontologia
do ser não é possível porque o ser é pura abstração”. O ser é exatamente aquilo do
qual se diz apenas uma tautologia auto-referencial (“O ser é aquilo que é”). Esta sua
indeterminação não é resultado de sua realidade superior em relação a todo ente,
como se estivéssemos diante de um Ens realissimus. Na verdade, para Hegel, ela é
apenas substancialização de ausência de realidade concreta.
Contra esta ausência de realidade, veremos em outras aulas como Hegel
propõe uma ontologia assentada no conceito de essência (Wesen), isto depois de
reconstruir a noção de essência através da absorção daquilo que Aristóteles entendia
por energeia (que pode ser traduzido por atividade, ato) e dynamis (potência,
movimento) no interior de uma teoria da reflexão. Hegel acredita que uma ontologia
do ser irá necessariamente transformar o fundamento em normatividade sem
temporalização, fundamento ligado à procura de expressão imediata do originário
pensado como pré-subjetivo. Falar de ser, seria para Hegel sempre retornar aos
domínios das identidades abstratas. Já a reconstrução hegeliana do conceito de
essência seria, ao menos para Hegel, dotado da possibilidade de compreender os
processos de temporalização. Tal forma hegeliana de desqualificar uma ontologia do
ser nos leva, necessariamente, a avaliar as críticas que, um século depois, Heidegger
fará à estratégia hegeliana. Como veremos, estará em confrontação duas maneiras
distintas de se pensar a temporalização das categorias da ontologia, ou seja, esta
maneira de pensar como a ontologia é capaz de dar conta do que se manifesta no
interior do tempo.
No entanto, se uma ontologia do ser não é possível, isto não significa que a
experiência da indeterminação do ser seja uma simples ilusão. Ela tem um conteúdo
de verdade, pois será a primeira manifestação de uma impossibilidade que servirá de
motor para o movimento dialético, a saber, a impossibilidade de pôr a identidade
imediata entre realidade (Wirklichkeit) e fenômeno (Erscheinung). A experiência da
indeterminação nos lembra que há algo que não se esgota nas formas atualmente
determinadas da presença. Em última instância, ela nos obrigará a reconstruir a
própria noção do que significa “determinar algo”. De uma certa forma, a
impossibilidade de uma ontologia do ser já é uma experiência com conseqüências
ontológicas. Isto talvez nos explique porque a impossibilidade de uma ontologia do
ser leva Hegel a afirmar algo como a possibilidade de uma ontologia que parte desta
que será a primeira categoria concreta da Ciência da Lógica, a saber, o devir.
Podemos dizer que uma ontologia que parte do devir não pode ser apenas uma
doutrina que substitua a centralidade do conceito de ser por um conceito de outra
natureza, como, no caso, o devir. Na verdade, sua operacionalidade deve ser diferente,
seus processos devem ser descritos de outra maneira. Trocar um conceito por outro
conservando a operacionalidade interna da teoria, seu modo de conceitualizar, não nos
leva muito longe. Por isto, podemos dizer que a ontologia tentada por Hegel tem por
característica principal procurar apreender os conceitos em seu processo de alteração.
Ela parte da defesa de que nenhum conceito isolado apreende adequadamente os
processos internos ao campo da experiência, mas tais processos podem ser
apreendidos através da passagem de um conceito a outro. Vale aqui o que dirá
posteriormente Adorno a respeito de Hegel: “Como cada proposição singular da
filosofia hegeliana reconhece sua própria inadequação à unidade, a forma exprime
então tal inadequação na medida em que ela não pode apreender nenhum conteúdo de
maneira plenamente adequada”31. Este movimento de passagem, que mostra a
insuficiência de conceitos pensados como descrição de objetos, é o fenômeno que
funda uma ontologia de caráter especulativo, como quer Hegel.
Uma maneira possível de compreender melhor este ponto passa pela tentativa
de compreender a natureza da estrutura peculiar da Ciência da Lógica com suas
divisões. Tal estrutura já nos introduz a certas especificidades do conceito hegeliano
de ser.
A primeira divisão com a qual nos defrontamos é a dualidade Lógica objetiva
(que engloba a Doutrina do ser e a Doutrina da essência) e a Lógica subjetiva
(Doutrina do Conceito). Grosso modo, a divisão não parece trazer maiores
dificuldades, já que ele parece indicar um movimento de internalização no qual a
tematização do ser (objeto da lógica objetiva), enquanto determinação aparentemente
exterior à forma do pensar, entra em movimento até se transformar em tematização do
conceito (objeto da lógica subjetiva). Ao alcançar a forma do conceito, o movimento
que animou as categorias ligadas ao ser, dará a forma para a re-organização dos
elementos da lógica tradicional (conceitos/formas do julgamento/modo s de
inferência). Ou seja, a passagem da lógica objetiva à lógica subjetiva descreveria, em
larga medida, o movimento através do qual a substância (o ser) é apreendida como
sujeito (o conceito), já que esta dualidade é inspirada da distinção sujeito/objeto.
No entanto, há duas peculiaridades importantes nesta divisão. Primeiro, a
lógica objetiva é dividida internamente a partir de duas noções (ser e essência).
Segundo, a lógica subjetiva não se contenta em apenas re-organizar os elementos da
lógica tradicional. Ela tem ainda uma longa subdivisão intitulada exatamente
“objetividade”, onde é questão de categorias normalmente vinculadas à filosofia da
natureza, como o “mecanismo”, o “quimismo” e a “teleologia” própria a organismos
biológicos (ou seja, os dispositivos de determinação da racionalidade dos fenômenos
nos campos da física, da química e da biologia). Como se não bastasse, a última
subdivisão, intitulada “A idéia”, dá espaço para a “vida”, assim como para a idéia do
verdadeiro (objeto da teoria do conhecimento) e do bom (objeto da moral) não dando,
curiosamente, desenvolvimento para a idéia do belo (objeto da estética). O que pode
se explicar se levarmos em conta que Hegel quer, na verdade, insistir na maneira com
que a Idéia unifica teoria e prática (o que o par verdadeiro/bom já parece dar conta).
De qualquer forma, fica claro como a tendência da lógica subjetiva é retornar à
exterioridade. Note-se que a Idéia não é nem uma categoria da subjetividade, nem da
objetividade. Ao contrário, ela é o que se encontra para além e para aquém da
distinção sujeito e objeto. Por isto, ela deve aparecer como superação destas
perspectivas particulares.
Esta é, sem dúvida, uma das afirmações mais conhecidas e polêmicas de Hegel. Antes
de comentá-la, notemos a peculiaridade que consiste em afirmar que a primeira
manifestação da qualidade é a indeterminação. Hegel reconhece que, por ser
indeterminado, o ser aparece como desprovido de qualidade; mas em-si o caráter de
indeterminação é posto como oposto da determinação ou do qualitativo. Por isto, o
ser: “faz da sua própria indeterminação sua qualidade”41.
Esta posição do ser como indeterminação aparece a Hegel porque o ser, como
começo, não pode referir-se a nada outro que ele mesmo, senão ele não seria começo,
isto no sentido da categoria mais imediata do saber. O ser é auto-referência imediata e
incondicional. No entanto, como a determinação é um processo relacional, só se
determina algo em relação a outro algo que é posto ao mesmo tempo, então esta auto-
referência imediata do ser só pode equivaler à absoluta indeterminação. Daí porque
Hegel pode dizer: “Qualquer determinação ou conteúdo que seriam postos nele como
diferentes, ou através do qual ele seria posto como diferente de um outro não lhe
permitiria manter-se em sua pureza”. De fato, o ser só passa à determinação quando
é posto em uma situação, ou seja, em um contexto (Zusammenhang) próprio à
existência. O que nos explica porque a segunda categoria da qualidade deve
necessariamente ser o Dasein (no sentido de existência, presença, ser-aí). Desprovido
de uma situação, abstraído de todo contexto ôntico, o ser só pode ser apreendido como
pura abstração:
Desta forma, Hegel procura criticar todo conceito pré-reflexivo de ser por
acreditar que isto significa fazer a filosofia determinar, como seu objeto privilegiado,
nada mais do que um vazio total, um X inexprimível que, por se subtrair a toda
predicação, advém um Ens realissimum.
Hegel dirá então que o ser: “é apenas a própria intuição pura, vazia”, ou seja, o
pensamento desprovido de objeto. Ao definir posteriormente o nada como “igualdade
Este pequeno parágrafo sintetiza o que Hegel entende por movimento e identidade
dialética. Não se trata exatamente de dizer que “ser” e “nada” são termos que
designam o mesmo, um pouco como “Vênus” e “estrela Dalva” designam o mesmo.
Trata-se de dizer que eles alcançam uma identidade que é resultado de um
movimento. No entanto, trata-se de um peculiar “movimento imediato”, ou seja,
movimento que ocorre imediatamente a partir do momento em que um termo é posto,
já que não é possível ao ser pôr-se sem passar no seu oposto (passagem no oposto que
Hegel chama de Verkehrung - inversão). Esta é uma maneira de dizer que o conceito
de ser não tem realidade. Da mesma forma, o conceito de nada não tem realidade.
No entanto, a passagem do conceito de ser ao conceito de nada tem realidade. Esta
passagem não é alguma forma de nadificação do ser, mas de reconhecimento da
insuficiência de sua significação. A significação do ser demonstra sua inanidade
quando é posta.
Aqui, devemos entender melhor a idéia de posição. Tentemos, por exemplo,
interpretar uma afirmação como: “ser e nada são o contrário em toda a sua imediatez,
isto é, sem que em um deles já tinha sido posta uma determinidade, que contivesse
sua relação para com o outro” 46. Fica claro como a idéia de posição implica
determinar, isto no sentido de passar à dimensão concreta, ôntica, fenomenal. Ser e
nada são contrários quando não são postos, quando são imediatamente visados. Até
porque: “não há nada no céu e na terra que não contenham em si ser e nada” 47. Este é
um ponto fundamental para todo penasamento dialético: a passagem à existência, a
posição, sempre é um acréscimo em relação à determinação categorial, e não sua
mera repetição, como se da determinação à existência não houvesse processo.
Lembrem a este respeito da afirmação kantiana, segundo a qual cem táleres reais não
contém mais do que já está presente em cem táleres possíveis48.
Mas dizer isto implica afirmar que o próprio uso gramatical do verbo não pode
ser visto de maneira indiferente pela especulação filosófica. Talvez isto explique
porque Hegel fala a todo momento que a forma da proposição “O Ser é nada”, forma
de um julgamento de identidade, é inadequada para expressão a verdade especulativa:
“Sendo o conteúdo especulativo, então também a não-identidade do sujeito e do
predicado é momento essencial, mas isto não está expresso no julgamento” 49. Isto a
ponto de Hegel afirmar que o conteúdo especulativo só poderia ser apreendido através
de uma série de duas proposições contrárias (“O Ser é nada” e “O Ser não é nada”)
que apresentam uma antinomia.
45 HEGEL, idem, p. 83
46 Idem, Enciclopédia, par. 88
47 HEGEL, ibidem, p. 86
48 Para uma boa discussão a este respeito a partir da afirmação kantiana de ver
FAUSTO, Ruy; Marx: logique et politique,
49 Idem, Wissenschaft der Logik, p. 93
Todas estas colocações visam indicar que não é possível pensar o devir a partir
de uma gramática filosófica própria à entificação das categorias do entendimento.
Pois o devir deve aparecer como movimento interno ao ser, isto a ponto de todas as
utilizações do verbo “ser” no interior de proposições de identidade não poderem mais
expor igualdades tautológicas, mas, digamos, “proposições de devir”.
Esta afirmação do devir como verdade do ser é a maneira hegeliana de
introduzir a temporalidade no interior do ser. Por isto, ele define os momentos do
devir como “nascer e perecer” (Entstehen und Vergehen), além de determinar o devir
como a potência da inquietude que corrói o ser por levá-lo ao ponto de
evanescimento, o que fica claro em uma afirmação como: “O devir é o
desaparecimento/ o desvanescer do ser no nada e do nada no ser, assim como o
desaparecimento do ser e nada em geral (...) O resultado é o ser que desaparece
(Verschwundensein), mas não como nada”50. Ou seja, o devir é a categoria que
determina a significação do ser e do nada como passagem ao seu limite, o que nos
leva a superar o caráter limitado destas categorias e a problematizar uma gramática
que visa fazer referência a uma experiência que a todo momento lhe escapa. O que
pode nos explicar porque: “O devir é o primeiro pensamento concreto e, com isto, o
primeiro conceito; ao contrário, ser e nada são abstrações vazias”51.
Esta idéia do devir como dispositivo de formalização de determinações que
estão passando no seu limite diz muito a respeito de um conceito renovado de
determinação que parece animar as considerações hegelianas (e não devemos
esquecer que o título desta nossa seção é exatamente “determinidade”). Neste ponto,
devemos lembrar desta rápida, porém importante, consideração hegeliana sobre o
caráter dialético das “grandezas infinitamente pequenas”. Tais considerações devem
ser lidas juntamente com a idéia de que, como notaram alguns comentadores, o termo
que teria valor de termo nulo está ausente da doutrina hegeliana do Conceito 52. Isto
acontece porque, em Hegel, o termo negado nunca alcança o valor zero, já que esta
função do zero será criticada por Hegel como sendo um “nada abstrato” (abstrakte
Nichts). Neste sentido, o interesse hegeliano pelo cálculo infinitesimal, base para sua
reflexão sobre as grandeza infinitamente pequenas, estaria ligado à maneira com que
Hegel estrutura sua compreensão da negação como um impulso ao limite da
determinidade. A negação hegeliana nunca alcança o valor zero porque ela leva o nada
ao limite do surgir (Entstehen) e o ser ao limite do desaparecer (Vergehen). O que
nos explica porque ele afirma: “Estas grandezas foram determinadas de tal modo que
são em seu desaparecer, não antes de seu desaparecer, pois seriam grandezas finitas,
nem depois de seu desaparecer, senão seriam nada”53. Ou seja, elas são pensadas no
processo em que as determinações discretas deixam de conseguir se referir às
grandezas ou, se quiseremos, onde a distinção entre ser e nada deve dar lugar a algo
que Hegel deplora por não ter, por enquanto, termo melhor do que “estado
intermediário” (Mittelzustand) entre ser e nada. Na verdade, podemos dizer que a
noção de grandezas infinitamente pequenas forneceria a exposição deste movimento
no qual o ser está desaparecendo e onde o nada esta manifestando-se em uma
determinidade. Movimento cuja exposição exige uma outra compreensão do que é um
objeto, para além da idéia do objeto como pólo fixo de identidade, e de determinação,
para além da idéia de determinação como definição atributiva de predicados
limitadores.
50 Idem, p. 113.
51 Idem
52 DUBARLE et DOZ, Logique et dialectique, Paris: Larousse:, 1972, pp.134-145
53 HEGEL, idem, p. 111
Notemos ainda como Sartre criticará esta maneira hegeliana de pensar a
indissociabilidade entre ser e nada ao afirmar: “não é possível que ser e não-ser sejam
conceitos de mesmo conteúdo porque, ao contrário, o não-ser supõe um
encaminhamento irredutível do espírito: qualquer que seja a indiferenciação primitiva
do ser, o não-ser é esta mesma indiferenciação negada. O que permite a Hegel “fazer
passar” o ser no nada é que ele introduz implicitamente a negação na própria
definição do ser”54. A crítica fará escola e consiste em dizer que ser e nada não podem
ser tratados como similares já que o nada seria não-ser, negação do ser: “Ora, o ser é
vazio de toda determinação diferente da identidade consigo mesmo, mas o não-ser é
vazio de ser. Em uma palavras, o que se deve lembrar contra Hegel, é que o ser é o
não-ser não é”55. No entanto, é exatamente a crença de que o ser seria identidade
consigo mesmo o objeto da crítica hegeliana. Hegel insiste que tal identidade expressa
no conceito de ser é simplesmente uma abstração inefetiva, por isto, ao tentar afirmar
sua identidade ele passa necessariamente no nada. Ao menos neste sentido, a
passagem do ser ao nada é simplesmente a forçagem da diferença enquanto potência
de movimento.
65 idem
66 HEIDEGGER, Holzwege, p. 119
a existir no sem-nome (...) Antes de falar, o homem precisa novamente deixar-se
interpelar, correndo o risco de que, sob esse apelo, ele pouco ou raramente tenha algo
a dizer”67. Só assim, ele poderia: “libertar o ser no sentido grego, o ει ναι, da
referência ao sujeito, para, então, entregá-lo à liberdade de sua própria essência”68.
Assim, contra uma concepção correspondencialista de verdade como
adequação (ou contra seu complemento hegeliano através da ontologização da
inadequação), Heidegger se propõe a recuperar o conceito grego de aletheia (verdade
como desvelamento, a-lethe: não-esquecimento). Uma verdade que apenas eclode lá
onde a atividade subjetiva de determinação não é mais sentida. Nestas condições: “a
liberdade revela-se como o deixar-ser (Gelassenheit) do ente”69. Daí uma afirmação
como: “Deixar-ser o ente – a saber, como o ente que ele é – significa entregar-se ao
aberto e à sua abertura, na qual todo ente entra e permanece, e que cada ente traz, por
assim dizer, consigo. Esse aberto foi concebido pelo pensamento ocidental, desde o
seu início, como τα αληϑεα, o desvelado” 70. Uma abertura que é deixar ser o que
aparece à racionalidade instrumental como acontecimento: “imprevisível e
inconcebível”71 ou, como dirá Heidegger, como Ereignis (acontecimento, evento,
ocorrência).
A primeira questão que podemos colocar diz respeito à correção deste modo
de leitura que assimila a subjetividade hegeliana ao sujeito cartesiano. Pois,
contrariamente a Descartes, para Hegel, pensar não é representar nem a verdade é
uma questão de adequação. O conceito não é uma representação previamente definida
em sua clareza e distinção, como o que se dispõe como o que há a ver, como imagem
de uma coisa na presença, mas um processo de reconstrução normativa a partir do
desdobramento da experiência, mesmo que Heidegger desqualifique o conceito
hegeliano de experiência como a confirmação da “etantidade do ente” que se desdobra
no campo da representação a si da consciência 72. Como veremos daqui a duas aulas, a
dialética desconhece representações porque, em seu interior, as relações entre
conceitos e objetos não se dão sob a forma de subsunções, por isto não é possível falar
em adequação entre conceito e objeto. As relações são pensadas a partir de negações
determinadas. Hegel chega mesmo a eleger o pensar representativo como objeto
maior de combate da dialética.
A segunda questão diz respeito à estratégia heideggeriana de dissociar ser e
sujeito a fim de abrir espaço à temporalidade fundamental do acontecimento.
Heidegger critica a estratégia hegeliana de compor uma historicidade pensada através
do desdobramento de negações determinadas pois, a seu ver, trata-se de uma
confirmação do que a consciência inicialmente projetara. Ou seja, trata-se de uma
historicidade sem acontecimento. Daí uma afirmação como: “o progresso na marcha
histórica da história da formação da consciência não é empurrado para a frente, em
direção ao ainda indeterminado, pela figura respectiva de cada momento da
consciência, mas ele é impulsionado a partir do objeto já proposto” 73. Esta é uma
crítica que fará escola e consiste a dizer que a história em Hegel é a teleologia do
Espírito que confirma a si mesmo no mundo e em uma progressão contínua.
Supõe-se que quem está apegado à esperança, e tem dúvida sobre a realização
de uma coisa, imagina algo que exclui a existência da coisa futura e, portanto,
desta maneira, entristece-se. Como consequência, enquanto está apegado à
esperança, tem medo de que a coisa não se realize. Quem, contrariamente, tem
medo, isto é, quem tem dúvida sobre a realização de uma coisa que odeia,
também imagina algo que exclui a existência dessa coisa e, portanto, alegra-se.
E, como consequência, dessa maneira, tem esperança de que essa coisa não se
realize80.
p. 139)
90 Idem, p. 141
91 BADIOU, Alain; L’être et l’évènement, Paris: Seuil, 1982, p. 135
92 SPINOZA, Bento; Ética, op. cit., p. 389
93 SPINOZA, Bento; Tratado teológico-político, op. cit., p. 312
apenas desdobrarão os possíveis de uma totalidade formalmente já assegurada em sua
eternidade. Por isto, pensar a mudança fundadora da experiência temporal sob a forma
da “sucessão de determinações opostas”94, como o faz Kant seguindo uma tradição
aristotélica, será pensar o movimento a partir da estabilidade do princípio de
contagem aplicado ao que se sucede, como Aristóteles que falava do tempo como: “o
número do movimento segundo o anterior-posterior” 95. É esta estabilidade que se
expressa em afirmações como: “Toda mudança só é possível por uma ação contínua
da causalidade”96.
De certa forma, podemos dizer que é isto o que acontece em Spinoza, para
quem todas as relações, temporais ou não, devem ser pensadas sob a estabilidade
estrutural da causalidade e seu desvelamento retroativo imanente da univocidade da
substância ou, ainda, da conveniência (convenientiam) entre ideia e ideado97. Isto
implica afirmar que o modo da causalidade com suas ordens e sua constituição de
relações necessárias não mudará com o tempo, não será afetado por ele, não perderá
sua centralidade na determinação das relações e dos argumentos que a razão
reconhece como legítimos. Muito diferente seria se as coisas singulares modificassem
em continuidade a totalidade, operando mutações qualitativas na forma do tempo.
Neste caso, como veremos mais a frente, não teríamos apenas tempo formal, mas um
regime muito específico de tempo concreto. Por isto, é correto dizer que a imanência
própria ao governo da multitude é um devir sem tempo. É este devir sem tempo que
aparece como contraposição ao tempo linear do medo e da esperança. A sua maneira,
este devir sem tempo trará ainda outra consequência política importante por
fundamentar o horizonte de concórdia prometido pela paz social.
Neste ponto, podemos medir a distância que separa Spinoza e Hegel.
A crítica da duração
É claro aqui como Hegel recusa a noção de que haveria uma pura forma do
tempo, assim como uma pura forma do espaço, estabelecidas como condição geral de
possibilidade para o movimento e a mudança. Tomadas como formas puras da
intuição, tempo e espaço são, segundo Hegel, abstrações da exterioridade ou, se
quisermos pecar por certo anacronismo, são reificações. Não pode haver dedução
transcendental das categorias de tempo e espaço, o que não é de se estranhar para uma
filosofia na qual: “toda constituição transcendental é uma instituição social” 99. O que
aparentemente é confirmado quando Hegel afirma que a temporalidade (Zeitliche) é
uma determinação objetiva das coisas, e não uma determinação subjetiva do sujeito
94 KANT, Immanuel; Crítica da razão pura, Lisboa: Calouste Gulbenkian, B 291/
A461
95 ARISTÓTELES, Physique – livres I-IV, Paris: Belles Lettres, 2012, 219b
96 ARANTES, Paulo; Hegel: a ordem do tempo, São Paulo: Hucitec, 2000, p. 114
97 SPINOZA, Bento; Ética, op. cit., p. 79
98 HEGEL, G.W.F.; Enzyklopädie, op. cit., par. 258
99 BRANDOM, Robert; Tales of the mighty dead,
que as apreende. “O processo das próprias coisas efetivas produz o tempo” 100 (macht
also der Zeit), isto não apenas no sentido da mudança que percebemos nas coisas, sua
geração e destruição, nos revelar a existência do tempo, um topos clássico que insiste
como, se as coisas não mudassem nem se movessem, não seria para nós possível
perceber o tempo que passa. Se devemos afirmar que o processo das próprias coisas
efetivas produz o tempo é por tal processo concreto fazer o tempo nascer e perecer,
modificar seu modo de passagem, paralisá-lo ou acelerá-lo, tirá-lo, por exemplo, do
regime da sucessão para colocá-lo no interior de uma dinâmica de simultaneidades. O
tempo é engendrado pelo processo das coisas porque o próprio tempo é uma
processualidade formalmente cambiante. Há uma plasticidade fundamental do tempo,
o que talvez nos explique porque Hegel se vê na necessidade de afirmar que o próprio
tempo é o devir, o nascer e o perecer. Problema de plasticidade cuja centralidade não
deve nos estranhar, já que é o problema da estrutura de um tempo em revolução que
se coloca no centro da reflexão filosófica de Hegel. Se é fato que: “a Revolução
Francesa permanecerá o centro decisivo da filosofia hegeliana: o evento que cristaliza
a intemporalidade da experiência histórica”101 há de se lembrar que um tempo em
revolução é, no seu ponto de vista estrutural, tempo que abandonou a ilusão da
estaticidade de suas determinações formais, que engendra outras categorias de
movimento e mudança a partir do processo efetivo das coisas.
Mas se assim for, o que dizer desta tendência muda da dialética hegeliana em
procurar superar o tempo em direção à eternidade do conceito; movimento que, ao
menos exteriormente, parece recuperar a defesa spinozista de que a razão concebe
necessariamente sob a perspectiva da eternidade? Pois não é possível esquecer como
Hegel afirma claramente: “o próprio tempo é eterno em seu conceito”, assim como ele
não temerá construir uma aparente oposição entre tempo e conceito já presente em
célebre passagem do capítulo final da Fenomenologia do Espírito:
A temporalidade concreta
Glorificar o existente
112 HEGEL, Vorlesungen über die Philosophie der Weltgeschichte – Band 1: Die
Vernunft in der Geschichte, op. cit., p. 29
113 HEGEL, Fenomenologia do Espírito II, Petrópolis: Vozes, 1991, p. 139 .
114 “As feridas do espírito são curadas sem deixar cicatrizes. O fato não é o
imperecível, mas é reabsorvido pelo espírito dentro de si; o que desvanece
imediatamente é o lado da singularidade (Einzelnheit) que, seja como intenção,
seja como negatividade e limite próprio ao existente, está presente no fato”
(idem, p. 140 – tradução modificada)
115 LEBRUN, O avesso da dialética, São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p.
34-6.
116 ADORNO, Theodor; Dialética negativa, op. cit., p. 252
no Espírito seria a senha para um certo quietismo em relação ao presente. Melhor
seria definir o espírito do mundo: “objeto digno de definição, como catástrofe
permanente”117, ou seja, consciência desperta do que foi necessário perder, e do que
ainda é necessário, no interior do processo histórico de racionalização social. Pois
pode parecer que uma filosofia a procura de explicar como os “homens históricos”
[geschichtlichen Menschen], ou ainda, os “indivíduos da história mundial”
[welthistorischen Individuen] serão aqueles cujos fins particulares não são postos
apenas como fins particulares, mas que submeteram tais fins à transfiguração,
permitindo que eles contenham a “vontade do espírito do mundo” [Wille des
weltgeistes] só poderia nos levar a alguma forma de justificação do curso do mundo,
como temia Adorno em sua Dialética negativa, repetindo uma crítica já feita por
Nietzsche em sua Segunda consideração intempestiva118 e por Marx quando acusa
Hegel de “glorificar o existente”119. Pois sendo a vontade do Espírito do mundo aquilo
que se manifesta através do querer dos homens históricos, então como escapar da
impressão de que, retroativamente, a filosofia hegeliana da história constrói a
universalidade a partir daquelas particularidades que conseguiram vencer as batalhas
da história? Como dirá Nietzsche: “quem aprendeu inicialmente a se curvar e a
inclinar a cabeça diante do ‘poder da história’ acaba, por último, dizendo ‘sim’ a todo
poder”120.
Escapa-se desta impressão, entretanto, explorando melhor duas características
fundamentais da ação histórica em Hegel, a saber, sua natureza inconsciente e sua
força de recuperar o que parecia perdido, de reativar oportunidades perdidas que
pareciam petrificadas, isto através da reabertura do que está em jogo no presente.
Sobre este segundo ponto, lembremos como, quando o Espírito sobe à cena e narra a
história, sua prosa é radicalmente distinta da prosa dos indivíduos que testemunham
fatos. Primeiro porque o Espírito não testemunha; ele totaliza processos revendo o que
se passou às costas da consciência. Ele é a coruja de Minerva que rememora, que só
alcança voo depois do ocorrido. Uma totalização que não é mera recontagem,
redescrição, mas construção performativa do que, até então, não existia. Pois um
relato não é apenas uma relato. Ele é uma decisão a respeito do que terá visibilidade e
será percebido daqui para a frente, por isto as acusações que vem na filosofia
hegeliana uma forma de “passadismo” erram completamente de alvo.
A este respeito, lembremos de, por exemplo, Vittorio Hösle, para quem o
passadismo de Hegel mostraria como: “filosofia é recordação, olhar retrospectivo ao
passado, não prolepse e projeto do que há de vir, do que há de se tornar realidade, E,
na medida em que o que deve ser não está ainda realizado, não pode interessar à
filosofia; ela apenas deve compreender o que é e o que foi. A pergunta kantiana “Que
devo fazer?” não tem, assim, nenhum lugar dentro do sistema hegeliano. Uma
resposta a ela poderia no melhor dos casos rezar assim: “Reconheça o racional na
Tudo parece passar, nada permanecer. Todo viajante já sentiu tal melancolia.
Quem esteve diante das ruínas de Cartago, Palmira, Persépolis, Roma sem
entregar-se a observações sobre a transitoriedade dos impérios e dos homens,
sem cobrir-se de tristeza por um vida passada, forte e rica?124.
O cosmo, o mesmo para todos, não o fez nenhum dos deuses nem nenhum dos
homens, mas sempre foi, é e será fogo sempre vivo, acendendo-se segundo
medidas e segundo medidas apagando-se131.
Hegel chega a falar que, para superar tal contradição de só poder pensar o
condicionado ao pôr uma multiplicidade infinita de condições e relações, a reflexão
deve dar para si mesma a lei de seu auto-aniquilamento. Podemos dizer que a Ciência
Por isto, Hegel dirá que: “a identidade é também em si mesma absoluta não-
identidade”151. Podemos entender melhor este ponto se levarmos a sério as crítica que
Hegel apresenta na nota 2 “Primeira lei originária do pensamento, proposição da
identidade”. Aqui, Hegel apresenta três críticas distintas, porém complementares, que
visam mostrar como a proposição A=A é uma tautologia vazia, desprovida de
conteúdo e sem valor algum para o conhecer. Os três argumentos usados por Hegel
são:
toda enunciação da identidade imediata é uma contradição performativa;
a experiência não fornece o fundamento da identidade
não é possível definir a significação de A=A a partir da pretensa analiticidade
da proposição.
Primeiro, Hegel procura mostrar como sempre enunciamos a clivagem ao
tentar pôr a igualdade imediata a si. Pois sendo a identidade imediata, a exclusão da
essencialidade da diferença é um processo constitutivo de sua própria determinação.
Mas, ao afirmar que a identidade e a diferença são diferentes: “Eles [a consciência
comum] não vêem que já dizem que a identidade é algo de diverso; pois dizem que a
identidade é diversa em relação à diversidade” (HEGEL, 1986b, p. 41). Com isto,
produz-se uma passagem da negação exterior à negação internalizada resultante do
reconhecimento da posição da diferença ser momento essencial e interno ao processo
de posição da identidade. Daí porque Hegel pode dizer que a verdade é apenas a
unidade da identidade e da diversidade.
Notemos ainda esta estratégia, tipicamente hegeliana, de medir a verdade de
proposições lógicas fazendo apelo à pragmática da fala. Ao falarmos sobre a
identidade, sempre somos obrigados a pressupor a diferença como dado primeiro e
definidor. Pôr a identidade exige pressupor a diferença. Ou seja, invertermos a ordem
lógica e colocamos o reconhecimento da diferença como lei originária do pensar, já
que “a identidade de uma entidade consiste em um conjunto de seus traços
diferenciais” (ZIZEK, 1999, p. 135). Ela é momento de uma separação em relação a
um processo no qual a diversidade desempenha papel fundante.
Por outro lado, Hegel afirma que a identidade não é um dado de alguma forma
derivado de experiência imediatamente acessível à consciência. Não há um
componente factual orientando o uso de enunciados do tipo A=A. Na verdade, a
experiência fornece apenas a relação da identidade do Um com a multiplicidade da
diversidade. Daí porque: “o concreto e a aplicação é justamente a relação do idêntico
simples a algo de variado distinto dele” 152. Ou seja, a aplicação expõe o esforço do
149 HEGEL, Enciclopédia, § 115
150 HEGEL, WL II, p. 40
151 HEGEL, WL II, p. 41
152 Isto talvez nos explique porque Hegel afirma que: “Nenhuma consciência
pensa, nem tem representações, nem fala segundo essa lei [da identidade]; e
nenhuma existência, seja de que espécie for, existe segundo ela. O falar conforme
esssa suposta lei da verdade (um planeta é – um planeta; o magnetismo é – o
magnetismo; o espírito é – um espírito) passa, com razão, por uma tolice: essa
sim é uma experiência universal” (HEGEL, Enciclopédia, par. 115
pensar em unificar o que não tem identidade imediata em si mesmo. Por isto que:
“expresso como proposição, o concreto seria inicialmente uma proposição
sintética”153. A posição da proposição de identidade já é, segundo Hegel, uma
modificação da experiência, já que esta nos mostra, na verdade, a unidade da
identidade com a diversidade.
Mas podemos dizer que A=A, enquanto proposição analítica seria
independente da experiência, o que sabemos, ao menos desde Quine, que não é
exatamente o caso, já que sabemos que um dos dogmas fundamentais do empirismo
é: “a crença em certa divisão fundamental entre verdades analíticas, ou fundadas em
significados independemente de questões de fato, e verdades sintéticas, ou fundadas
em fatos”154. Por isto, Hegel deve lembrar que mesmo a forma proposicional da
proposição já diz mais do que afirma. Este é uma maneira astuta de dizer que a
analiticidade de proposições do tipo A=A são um problema. Para chegar a tal
compreensão especulativa da proposição, Hegel compreende toda proposição a partir
de sua forma geral (S é P) que coloca as diferenças categoriais quantitativas entre a
particularidade do sujeito e as predicações de universais e rompe, assim, com a
sinonímia pressuposta entre sujeito e predicado155.
Quando digo, por exemplo “uma rosa é uma rosa” vê-se que a expectativa
aberta pela enunciação “uma rosa é ...”, na qual o sujeito aparece como forma vazia e
ainda não determinada, como “algo em geral”, como “som privado de sentido” 156, é
invertida ao final da proposição. A rosa que aparece na posição de sujeito é um caso
particular, uma determinação empírica. Rosa que, em si mesmo, é apenas negação –
acontecimento contingente desprovido de sentido – enquanto que a rosa presente no
predicado aparece inicialmente como “representação universal”157 abstrata que
forneceria a significação (Bedeutung) do sujeito. Podemos mesmo afirmar que ela é
extensão de um conjunto ainda vazio. Para Hegel, ao enunciar “uma rosa é uma
rosa”, dizemos que o conjunto é idêntico a um de seus elementos, dizemos que o
singular é o universal. Esta é a interpretação que podemos dar à afirmação: “Já a
fórmula da proposição está em contradição com ela [a proposição A=A], pois uma
proposição promete também uma diferença entre sujeito e predicado; ora, esta não
fornece o que sua própria forma exige”158. Ou seja, a posição da identidade produz
necessariamente uma contradição. O que nos explica por que Hegel afirma: “Se
alguém abre a boca e promete indicar o que é Deus, a saber Deus é – Deus, a
expectativa encontra-se enganada pois ela esperava uma determinação diferente”159.
Hegel teria compreendido a existência, na forma geral da proposição, de uma
cisão estrutural entre o regime geral de apresentação e a designação nominal do
acontecimento particular. Pois o primeiro momento da afirmação “o singular é o
universal” põe a inessencialidade do singular e a realidade do universal. Uma rosa
Tais colocações permitem a Hegel dizer que a proposição de identidade contém mais
do que ela visa, pois contém sempre a enunciação da diferença como seu pressuposto.
Hegel afirma que a diferença conhece dois momentos distintos: a diversidade
(Verschiedenheit) e a oposição.
A diversidade é a diferença pensada a partir da reflexão exterior. Por isto: “os
diversos estão em relação um com o outro não como identidade e diferença, mas
apenas como diversos em geral que são indiferentes um em relação a outro e em
relação à sua determinidade”. De uma certa forma, a diversidade é um gênero de
retorno à imediaticidade, um momento de recaída no empirismo de quem afirma que
“Todas as coisas são diversas” ou que “Não existem duas coisas que sejam iguais uma
à outra”. Tais proposições não deixam de se referir ao princípio leibniziano de
identidade dos indiscerníveis (se X e Y tem as mesmas propriedades, então eles são
idênticos).
Hoje diríamos que os termos sob a noção de diversidade estão dispostos como
um multiplicidade pura, ou seja, estrutura cujos elementos não tem função
subordinada, mas são estruturados por relações recíprocas que não podem ser
compreendidas como relações de oposição. Hegel compreende esta determinação da
Cada um é ele mesmo e seu outro, o que faz com que cada um tenha sua
determinidade em si mesmo, e não em um outro. Cada um relaciona-se a si
mesmo como se relacionando a um outro. Isto tem dois sentidos: cada um está
em relação com seu não-ser como suprimindo este outro, assim seu ser-outro é
apenas um momento interno ao si. Mas, por outro lado, o ser-posto se
transformou em um ser, um subsistir indiferente (...) consequentemente, cada
um é apenas na medida em que seu não-ser é.
165 Ela nos impede de colocar a questão: “como os objetos são redefinidos,
reconstituídos pelo fato de se inscreverem em relações? Quais transformações a
noção de objeto recebe pelo fato de assim ser reconstituída pelo pensamento?
(LONGUENESSE, 1981, p. 80)
oposto, tal como vemos na oposição real, é reflexão-no-outro. Um recurso à alteridade
que aparece como constitutivo da determinação da identidade que promete uma
interversão (Umschlagen) da identidade na posição da diferença. Como nos dirá
Henrich, o primeiro passo deste movimento dialético consiste em passar de algo que
se distingue do outro enquanto seu limite para algo que é apenas limite (HENRICH,
1967, p. 112). Tal passagem advém possível porque Hegel submete a negação
funcional-veritativa à noção de alteridade, seguindo aí uma tradição que remonta ao
Sofista, de Platão166: "Contrariamente à negação funcional-veritativa [fundada na idéia
de exclusão simples], a alteridade é uma relação entre dois termos. Faz-se necessário
ao menos dois termos para que possamos dizer que algo é outro" (HENRICH, 1967,
p. 133).
Tal submissão da negação à alteridade nos explica porque a figura maior da
negação em Hegel não é exatamente o nada ou a privação, mas a contradição
Contradição que aparece quando tentamos pensar a identidade em uma gramática
filosófica que submete a negação à alteridade. Nesta gramática, só há identidade
quando uma relação reflexiva entre dois termos pode ser compreendida como relação
simples e auto-referencial, ou seja, só há identidade lá onde há reconhecimento
reflexivo da contradição.
Sobre a contradição
174 ZIZEK, Slavoj; Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético,
São Paulo: Boitempo, 2013, p. 26
conflitos. Para a dialética, a reconciliação não significa a antecipação filosófica de um
destino, mas a compreensão efetiva de que as condições para a atividade já estão
dadas, que o que anteriormente era posto como impossível já é possível. Daí este
movimento peculiar de afirmação que a reconciliação se realiza quando
compreendemos que ela já ocorreu. Ou seja, a reconciliação não diz respeito à
antecipação formal de um destino, mas ao redimencionamente efetivo da ação.
Ter a contradição em si
Alto é o que não é baixo, alto é determinado apenas a não ser baixo, e só é na
medida em que há baixo; e inversamento, em uma determinação encontra-se
seu contrário". Mas : "alto e baixo, direita e esquerda, também são termos
refletidos em si, algo fora da relação [itálico meu]; mas apenas lugares em
geral (HEGEL, 1986b, p. 71).
A crítica deleuzeana
Uma das crítica mais contundente a esta forma de pensar a diferença a partir
da contradição vem de Deleuze. Deleuze tende a compreender que a posição de Hegel
não é essencialmente diferente da maneira que Aristóteles define a diferença e a
determinação. Esta articulação é fundamental para Deleuze poder afirmar que o que
temos em Hegel ainda é uma forma de pensamento da representação. Como não há
possibilidade de pensar a diferença no interior da representação, a não ser como
diferença opositiva que se acomoda a um quadro estruturado de representações, esta é
a forma de Deleuze afirmar que a dialética hegeliana é um pensamento da identidade,
incapaz de pensar a produtividade da diferença.
Deleuze inicia afirmando que a tendência hegemônica, desde Aristóteles,
consiste em pensar a determinação a partir de quatro princípios: a identidade em
relação ao conceito, a analogia entre julgamentos, a oposição entre os predicados de
um mesmo sujeito ou entre sujeitos exteriores e a semelhança entre os objetos
percebidos. Estes quatro princípios serão a base do que compreendemos por
representação. Representar algo é determiná-lo a partir de princípios de oposição,
identidade, semelhança e analogia. No interior deste modo de disposição que funda
aquilo que Deleuze chama de “representação orgânica”, a diferença distingue-se da
diversidade e da alteridade, aparecendo submetida à oposição, que é elevada à
condição de diferença fundamental.
Aristóteles afirma que é diferente aquilo que difere do outro a partir de um
elemento particular, sendo necessário a existência de um elemento idêntico que
construa um campo de equivalência possível. Este elemento comum pode ser o gênero
ou a espécie. Duas coisas são distintas em gênero quando não há matéria comum ou
geração recíproca, como é o caso de coisas de categorias diferentes. Elas são distintas
em espécie quando são idênticas segundo o gênero.
Sabemos que Aristóteles distingue quatro tipos de oposição: contrariedade,
contradição, relação e privação. É na contrariedade que Aristóteles verá a “diferença
perfeita”, já que a contrariedade representa a diferença máxima no interior do gênero
(“branco” e “preto”, “pedestre” e “alado”, etc,). Por “gênero” entendamos o que
constitui a unidade e a identidade de dois seres e que diferencia estes seres de uma
maneira que não é simplesmente acidental. “Animal” define minha unidade com um
cão, ao mesmo tempo que “animal” diferencia-se em mim e no cão de forma não
acidental, pois nos distingue em espécies. Ou seja, esta diferença no interior do gênero
divide-o, produzindo espécies que tem, entre si, relações de contrariedade (como
“mamíferos pedestres” e “mamíferos alados”). Desta forma, percebemos como a
diferença aparece como especificidade que divide o que permanece comum, a saber, o
gênero. Ela é um operador que permite a conservação da identidade conceitual do
gênero, inscrevendo-se no conceito indeterminado do gênero.
Esta “diferença específica”, ou seja, que determina espécies, é compreendida
por Deleuze como modo de não apresentar um conceito de diferença, mas de
submeter a experiência da diferença às limitações representacionais do conceito,
transformando-a em predicado de uma espécie. Daí porque ele precisa insistir que:
”confunde-se a determinação de um conceito próprio de diferença com a inscrição da
178 idem, p. 48
179 ARISTOTELES, Metafísica, X, 4, linea 26
180 Na verdade, não pode haver multiplicidade não-estruturada para Hegel. A
simples posição de uma proposição como: “Não há duas coisas que sejam
completamente idênticas” já pressupõe um dispositivo de contagem que organiza
a diversidade a partir da estrutura de uma multiplicidade numérica.
181 DELEUZE, idem, p. 62
Deleuze insiste que a maneira que Hegel dispõe de criticar a representação
consiste em salvá-la, ou seja, em conservá-la como fundamento a partir do qual o que
não se conforma à representação é posto como negativo. Daí porque a determinação
finita (a representação) não cessa de desaparecer (já que ele se confronta
incessantemente com o que lhe nega) e de nascer (já que ela permaneceria como
fundamento dos modos de orientação do pensamento). É isto que Deleuze tem em
mente ao afirmar que a dialética só pode descobrir o infinito deixando subsistir a
determinação finita: “dizendo o infinito da determinação finita, representando-a não
como dissolvida ou desaparecida, mas como dissolvendo-se e a ponto de desaparecer,
ou seja, também como engendrando-se ao infinito”182.
No fundo, esta maneira de só pensar o infinito como desaparecimento infinito
da determinação finita seria fruto de uma espécie de “sono antropológico” hegeliano.
Hegel seria ainda preso à antropologia da consciência, ou seja, aos limites cognitivos
da consciência psicológica. Por isto, desde de sua resenha crítica ao livro de Jean
Hyppolite, Lógica e existência, Deleuze se pergunta: “não podemos fazer uma
ontologia da diferença que não teria que ir até a contradição porque a contradição
seria menos do que a diferença, e não mais? A contradição não seria apenas o aspecto
fenomenal e antropológico da diferença?”183. Anos depois, em Nietzsche e a filosofia,
Deleuze acusará a dialética de ser “uma mistura bizarra de ontologia e antropologia,
de metafísica e de humanismo”184. Esta insistência na dialética hegeliana como
pensamento dependente dos limites de uma antropologia (tema heideggeriano por
excelência) vem da compreensão da consciência-de-si como uma consciência presa às
determinações representacionais de uma consciência empírica. Pois seria para uma
consciência presa ainda à representação que tudo não pensável sob a forma da
representação só pode ser uma contradição, ou seja, uma impossibilidade do
pensamento que só se apresenta como negatividade diante da clareza do pensamento
representacional. Daí porque Deleuze afirmará que a Fenomenologia hegeliana é, no
fundo, uma fenomenologia da consciência infeliz, tema que ele traz das leituras
hegeliana de Jean Wahl. Como se ela fosse prisioneira da cisão própria à consciência
infeliz entre a efetividade e a essência.
No entanto, tal interpretação é dificilmente sustentável. Primeiro, porque se
para a consciência a contradição é o impensável, para o Espírito ela é índice de
verdade. O Espírito não é uma consciência hipostasiada, mas outra forma de
pensamento, radicalmente distinta da forma de pensamento que define a consciência.
A Fenomenologia do Espírito não é uma antropologia da consciência, nem a
consciência infeliz é seu destino final, o que seria bizarro já que Hegel criou tal figura
da consciência para dramatizar as clivagens próprias à consciência moral kantiana,
que ele critica185. Por isto, o fundamento ao qual a contradição é reportada não pode
ser considerado: “uma maneira de tomar particularmente a sério o princípio de
identidade, dando-lhe um valor infinito, tornando-o coextensivo ao todo e, assim,
O problema do infinito
190 “Reconheço não apreender até aqui o sentido da oposição que você
estabelece entre conceito e representação”(Carta de Schelling a Hegel, 02 de
novembro de 1807)
191 DELEUZE, idem, p. 1
192 Isto se admitirmos a leitura de Alain Badiou, para quem: “o problema
fundamental de Deleuze não é certamente liberar o múltiplo, é dobrar o
pensamento a um conceito renovado do Uno. O que deve ser o Uno para que o
múltiplo nele seja integralmente pensável como produção de simulacros?”
(BADIOU, Alain; Deleuze : o clamor do ser, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p.
18)
de alguma forma de “fraqueza moral”, de descaminho do ser. Se aceitarmos c), então
colocaremos a crítica filosófica nas vias de uma crítica moral, como se o finito e a
identidade fosse a versão contemporânea do mal, um mal agora chamado de
“ressentimento”, tal como Deleuze acusa Hegel em Nietzsche e a filosofia. Não me
parece uma saída filosoficamente condizente com um pensamento, como o hegeliano,
que critica violentamente posturas morais deontológicas baseadas na cisão entre
desejo e vontade, entre dever e paixões. Um pensamento que é uma filosofia da
atividade e da transformação contínua, algo muito distante da fixação temporal
própria a todo ressentimento.
Se o finito e a identidade forem, por outro lado, entidades com dignidade
ontológica próprias, então a univocidade do ser estará quebrada e a multiplicidade se
mostrará mais frágil do que a identidade, já que a identidade seria uma “ilusão” com a
força de exilar a experiência da multiplicidade, isolá-la em territórios e momentos
regionais. Por isto, a identidade deve ser um momento da diferença, o finito deve ser
um momento da estratégia de atualização do infinito. Hegel parte do finito porque
começamos a pensar contra representações naturais enraizadas na linguagem
cotidiana e nas operações do senso comum. Como diria Sartre, o primeiro ato
filosófico é pensar contra si mesmo. Ignorar isto é esquecer que as determinações do
mundo atual não se confundem imediatamente com o que a experiência é capaz de
produzir. Ignorar isto seria elevar os limites do mundo atual a condição de limites de
toda linguagem e pensamento possível. Há uma explosão dos limites do atual que é
resultado de um processo de trabalho do conceito, dirá Hegel. Pois o fracasso do
finito em determinar-se deve ser momento de atualização de um infinito que,
inicialmente, deve aparecer como força de indeterminação, para depois aparecer
como força produtiva através da resignificação dos limites do finito. O finito deve
confessar que ele não é finito, ele deve se auto-negar através de uma crítica imanente
na qual ele descobre em si mesmo o infinito em operação, na qual ele começa a falar
outra linguagem, como se sua linguagem natural fosse simplesmente destruída. Ele
deve explodir seus limites e se realizar como infinito. É assim que devemos entender
uma afirmação central como:
O conceito de sujeito
Na aula de hoje, gostaria de discutir com vocês as características principais do
conceito hegeliano de sujeito. Não foram poucas vezes que a filosofia hegeliana foi
compreendida por seus críticos como uma filosofia que hipostasia o conceito de
consciência, só conseguindo determinar experiências a partir do quadro prévio de
categorias próprias a uma subjetividade constituinte. Neste sentido, a dialética
hegeliana sempre seria uma dialética idealista, isto no sentido que Robert Brandom dá
à “tese idealista”, a saber: “a estrutura e unidade do conceito é a mesma que a
estrutura e unidade do eu”195. Mas podemos compreender tal proposição de duas
formas. Primeiro, que o eu projeta sua estrutura e unidade no mundo através dos
conceitos por ele produzidos. Segundo, que o eu descobre em seu interior a estrutura
daquilo que o conceito tenta unificar. De certa forma, no primeiro caso, o objeto
aparece como o que se submete à estrutura representacional da consciência. No
segundo, a consciência descobre, em seu interior, algo da ordem da opacidade própria
aos objetos do mundo. A meu ver, esta segunda tese é mais adequada para pensarmos
a dialética hegeliana.
Para mostrar tal tese, devemos compreender como, em Hegel, “sujeito” não é
uma entidade substancial e auto-idêntica capaz de determinar a si mesmo, como
encontramos na tradição da filosofia moderna que vai desde Locke e Descartes. Na
verdade, “sujeito” é o nome de um movimento de reflexão e implicação com o que
não porta imediatamente a forma da identidade. Tal movimento é pensado por Hegel
através do conceito de “negatividade”. Ao cunhar tal termo, Hegel pensava não
apenas em uma negação, ou seja, o sujeito não é apenas aquele que nega a
imediaticidade do mundo. Tratava-se também de insistir em uma atividade negativa,
ou ainda, em uma atividade que parte da negação do mito do dado, do mito das
espécies naturais e que sempre será refratária a tal mito. Negatividade é o nome da
atividade que compreende o campo de determinações socialmente disponível como
limitado, como em falta diante das potencialidades da experiência.
Isto nos obriga a quebrar duas ilusões. A primeira consiste em confundir o
conceito de sujeito com o conceito de indivíduo, ou seja, esta entidade dotada de
inseparabilidade corporal, continuidade identitária e de um sistema pretensamente
consciente de interesses singulares. O sujeito hegeliano não é o indivíduo. Por outro
lado, sujeito não diz respeito a uma consciência mas a uma estrutura de relações entre
consciências que Hegel chama de consciência de si. Esta relação entre consciências é
pensada por Hegel a partir das dinâmicas de “reconhecimento” (Anerkennung).
Reconhecimento é o nome dado por Hegel para descrever o processo através do qual
sujeitos são instituídos como consciências de si. Só existem sujeitos que são
reconhecidos como tal. Gostaria então de discutir o que poderíamos chamar de “teoria
hegeliano reconhecimento”, base para a compreensão do que Hegel entende por
sujeito em sua capacidade judicativa.
Sabemos que Hegel desenvolve seu conceito de individualidade através da
noção de consciência-de-si. No entanto, esquecemos com freqüência como a
consciência-de-si hegeliana não é um conceito mentalista próprio à reflexividade de
uma subjetividade auto-suficiente que se delimita em relação ao que lhe é exterior. Na
verdade, consciência-de-si é, para Hegel, um conceito relacional que visa descrever
certos modos de imbricação entre sujeito e outro que têm valor constitutivo para a
experiência do Si mesmo. Por ser a consciência-de-si um conceito relacional, seus
atributos maiores na dimensão prática (como determinação, autonomia, liberdade e
imputabilidade) só podem ser pensados em seu verdadeiro sentido quando
195 BRANDOM, Robert; Tales of the Mighty Dead, p. 210
abandonamos a crença de que a experiência da ipseidade está assentada na entificação
de princípios formais de identidade e unidade. Até porque, a consciência-de-si não se
funda na apreensão imediata da auto-identidade, mas naquilo que nega sua
determinação imanente.
Mas dizer que a consciência-de-si é um conceito relacional é ainda dizer muito
pouco. Pois isto pode simplesmente significar que toda subjetividade é, desde o início,
dependente de uma estrutura intersubjetiva de relações que a constitui e a precede. No
entanto, parece que Hegel quer dizer algo a mais. Para tanto, precisaremos
compreender melhor quem é este outro com o qual me relaciono em experiências
constitutivas que se dão no campo do trabalho, da linguagem e do desejo. Trata-se
apenas de uma outra consciência-de-si ou de uma alteridade mais profunda que está
para além do que determina uma individualidade como objeto de representação
mental, um para além que me coloca em confrontação com algo que, do ponto de
vista da consciência, é indeterminado? O que pode exatamente significar, neste
contexto, essa expressão tão aproximativa : “uma alteridade mais profunda”?
Se seguirmos esta segunda hipótese, talvez compreendamos melhor porque,
para Hegel, a individualidade livre (ou seja, a individualidade que realizou seu
processo de formação) é aquela que leva ao campo da determinação a força
disruptiva da confrontação com o indeterminado e que, por isto, tem a capacidade de
fragilizar toda aderência limitadora a uma determinidade finita. Talvez seja assim que
devamos entender afirmações maiores de Hegel como: “A liberdade não se vincula
pois nem ao indeterminado nem ao determinado, mas ela é ambos” 196. Ou ainda: “O
Eu é a passagem (Ubergehen) da indiferenciação indeterminada para a distinção
determinada e põe uma determinação como um conteúdo e objeto” 197. Lembremos
que, por ser passagem, o Eu nunca deixa de conservar os momentos que ele coloca em
relação através do movimento de passar no oposto. O que nos leva a dizer que ele
deve conservar algo do que ainda não é um Eu, algo que é pré-individual.
Por outro lado, insistir neste aspecto nos permitirá mostrar como, a partir de
uma perspectiva hegeliana, o processo de reconhecimento da individualidade não
pode estar restrito ao simples reconhecimento da reivindicação de direitos individuais
positivos que não encontram posição em situações normativas determinadas, como o
quer Honneth ao afirmar não ser possível compreender porque a “antecipação da
morte, seja a do próprio sujeito seja a do Outro deveria conduzir a um reconhecimento
da reivindicação de direitos individuais”198. O mesmo Honneth para quem a
experiência da indeterminação é vivenciada pela consciência basicamente como fonte
de sofrimento, como: “um estado torturante de esvaziamento”199.
De fato, a questão não pode ser respondida se compreendermos o que exige
reconhecimento como sendo direitos individuais, expressões singulares da autonomia
e da liberdade. Mas não é isto que Hegel tem realmente em vista. Tanto é assim que
ele não teme afirmar que o não arriscar a vida pode produzir o reconhecimento
enquanto pessoa, mas não enquanto consciência-de-si autônoma e independente.
Como se a verdadeira autonomia da consciência-de-si só pudesse ser posta em um
terreno para além (ou mesmo para aquém) da forma da pessoa jurídica portadora de
diretos positivos e determinações individualizadoras. Por isto, tudo nos leva a crer que
Hegel insiste que se trata de mostrar como a constituição dos sujeitos é solidária da
196 HEGEL, G.W.F. ; Grundlinien der Philosophie des Recht, Frankfurt: Suhrkamp,
1996, § 7.
197 idem, § 6
198 HONNETH, Axel ; Lutte pour reconnaissance, Paris: Cerf, 2000, p. 30.
199 HONNETH, Axel; Sofrimento da indeterminação, São Paulo: Esfera Pública,
2007, p. 102
confrontação com algo que só se põe em experiências de negatividade e des-
enraizamento que se assemelham à confrontação com o que fragiliza nossos contextos
particulares e nossas visões determinadas de mundo. A astúcia de Hegel consistirá em
mostrar como o demorar-se diante desta negatividade é condição para a constituição
de um pensamento do que pode ter validade universal para os sujeitos.
Sendo assim, as tensões internas à teoria hegeliana do reconhecimento
também não podem ser pensadas a partir de dualidades como esta proposta por
Habermas ao afirmar:
Ontogêneses e conflitos
No entanto, parece que Hegel estaria assim entrando com os dois pés em
alguma forma de relativismo que submete expectativas universalizantes de verdade à
O sujeito intui no objeto sua própria falta (Mangel), sua própria unilateralidade
– ele vê no objeto algo que pertence à sua própria essência e que, no entanto,
lhe falta. A consciência-de-si pode suprimir esta contradição por não ser um
ser, mas uma atividade absoluta203.
A colocação não poderia ser mais clara. O que move o desejo é a falta que
aparece intuída no objeto. Um objeto que, por isto, pode se pôr como aquilo que
determina a essencialidade do sujeito. Ter a sua essência em um outro (o objeto) é
uma contradição que a consciência pode suprimir por não ser exatamente um ser, mas
uma atividade, isto no sentido de ser uma reflexão que, por ser posicional, toma a si
mesma por objeto e, neste mesmo movimento, assimila o objeto a si. Esta experiência
da falta é tão central para Hegel que ele chegar a definir a especificidade do vivente
(Lebendiges) através da sua capacidade em sentir falta, em sentir esta excitação
(Erregung) que o leva à necessidade do movimento; assim como ele definirá o sujeito
como aquele que tem a capacidade de suportar (ertragen) a contradição de si mesmo
(Widerspruch seiner selbst) produzida por um desejo que coloca a essência do sujeito
no objeto.
Mas, dizer isto é ainda dizer muito pouco. Pois se o desejo é falta e o objeto
aparece como a determinação essencial desta falta, então deveríamos dizer que, na
consumação do objeto, a consciência encontra sua satisfação. No entanto, como
sabemos, não é isto o que ocorre:
Na verdade, para entender o que Hegel tem em vista na sua noção de desejo como
falta, não devemos compreender a falta como privação, como carência ou
simplesmente como transcendência, mas como manifestação da infinitude. Esta
infinitude pode ser ruim, se a satisfação do desejo for vista como consumo reiterado
de objetos que produzem um gozo (Genuss) que é apenas submissão narcísica (ou
“egoísta”, se quisermos usar um termo hegeliano) do outro ao Eu. Mas ela será
infinitude verdadeira quando confrontar-se com objetos liberados de determinações
finitas.
Lembremos inicialmente que, para Hegel, a falta aparece como modo de ser da
consciência em um contexto histórico preciso. Contexto marcado pela
problematização do que serve de fundamento às formas de vida da modernidade.
Hegel compreende a modernidade como o momento histórico no qual o espírito
"perdeu" a imediatez da sua vida substancial, ou seja, nada lhe aparece mais como
substancialmente fundamentado em um poder capaz de unificar as várias esferas
sociais de valores. Daí diagnósticos clássicos de época como:
“[Nos tempos modernos] Não somente está perdida para ele [o espírito] sua
vida essencial; está também consciente dessa perda e da finitude que é seu
conteúdo. [Como o filho pródigo], rejeitando os restos da comida, confessando
sua abjeção e maldizendo-a, o espírito agora exige da filosofia não tanto o
saber do que ele é, quanto resgatar por meio dela, aquela substancialidade e
densidade do ser [que tinha perdido]”212.
Esta noite, este nada vazio que contém tudo na simplicidade desta noite, uma
riqueza de representações, de imagens infinitamente múltiplas, nenhuma das
quais lhe vem precisamente ao espírito, ou que não existem como efetivamente
presentes (...) É esta noite que descobrimos quando olhamos um homem nos
olhos, uma noite que se torna terrível, é a noite do mundo que se avança diante
de nós213.
Afirmações desta natureza servem a vários mal entendidos. Hegel não está dizendo
que a liberdade é apenas o nome que damos para um vontade construída a partir da
internalização de “dispositivos disciplinares” travestidos de práticas de auto-controle.
Não é qualquer submissão a um senhor que produz a liberdade, mas apenas a um
senhor que seja capaz de realizar exigências incondicionais de universalidade. Isto nos
explica porque, para Hegel, as grandes individualidades capazes de submeter um povo
produzem, necessariamente, o sentimento de que o trabalho do Espírito é sem medida
217 HEGEL, G.W.F.; Enciclopédia das ciências filosóficas - vol III, op. cit., § 433
218 HEGEL, G.W.F., Fenomenologia do Espírito, op. cit., pp. 128-129
219 Idem, Enciclopédia das ciências filosóficas, op. cit., § 435
comum com toda e qualquer política finita, com todo cálculo utilitarista baseado em
“meu” sistema de interesses egoístas. Por sinal, a maior de todas as ilusões consiste
exatamente em ver na crítica hegeliana do egoísmo uma estratégia astuta de
esvaziamento do particular. Hegel pode criticar o egoísmo porque não há nenhuma
individualidade neste “ego”, já que não há nada de individual no interior de um
sistema de interesses construído, na verdade, a partir de identificações e internalização
de princípios de conduta vindos de uma outra consciência determinada. Por isto, a
“dissolução da singularidade da vontade” pode aparecer como “liberação”.
Lebrun serve-se destas características da filosofia hegeliana para afirmar que a
formação da consciência-de-si é apenas a dissolução de um indivíduo definido como o
que se anula, renúncia incessante de si, ascese permanente. Pois: “ganhar uma
determinação acaba sempre por ser renúncia a uma diferença que me individualizava,
advir um pouco mais meu ser verdade na medida em que sou um pouco menos meu
ego”220. Neste sentido, tremer diante do mestre absoluto seria tomar consciência da
impotência de princípio que representa a singularidade natural. Como se a liberação
hegeliana fosse um passe de mágica no qual o sentimento de fraqueza se transforma
em legitimação da incapacidade de resistir. Assim: “em troca de seus sofrimentos, é o
gozo do universal que se oferece à consciência – belo presente ...” 221. Não estamos
muito longe de Deleuze vendo a dialética hegeliana como “idéia do valor do
sofrimento e da tristeza, valorização das ‘paixões tristes’ como princípio prático que
se manifesta na cisão, no dilaceramento”222.
No entanto, podemos fornecer uma interpretação diferente. Basta estarmos
mais atentos para o sentido que Hegel dá a esta despossessão de si produzida pela
internalização da morte como senhor absoluto. Neste contexto, a morte não é
destruição simples da consciência (e toda confusão neste sentido deve ser fortemente
rechaçada como um equívoco profundo), não é um simples despedaçar-se (zugrunde
gehen), mas é modo de ir ao fundamento (zu Grund gehen). Pois a confrontação com
a morte é experiência fenomenológica que visa exprimir o acesso ao caráter
inicialmente indeterminado do fundamento, que visa exprimir como: “A essência,
enquanto se determina como fundamento, determina-se como o não-determinado
(Nichtbestimmte) e é apenas a superação (Aufheben) de seu ser determinado
(Bestimmtseins) que é seu determinar”223. O que pode ser entendido da seguinte
maneira: a indeterminação do fundamento vem do fato dele servir de substrato
comum entre determinações opostas, daí porque Hegel poderá afirmar que o
fundamento implica a identidade entre a identidade e a diferença (die Einheit der
Identität und des Unterschiedes). Mas sendo o Eu o princípio sintético que fornece o
fundamento da experiência, assim como o princípio de ligação e unidade que
determina o modo de articulação entre o fundamento e aquilo que ele funda, então
pensar a verdadeira essência do fundamento como o que tem seu ser em um outro
(sein Sein in einen Anderen hat) exige a confrontação com um estado de diferenças
não submetidas à forma do Eu.
Vemos assim como a confrontação com a morte permite à consciência-de-si
compreender o Espírito como aquilo que se expressa na multiplicidade de suas
determinações fragilizando-as todas, levando-as a confrontar-se com uma potencia do
pré-pessoal e do indeterminado que nos permite, inclusive, recompreender o que vem
a ser a diferença. A diferença não será aquilo que determina a distinção entre
224 DELEUZE, Gilles ; Différence et répétition, 5 ed., Paris: PUF, 2000, p. 331
Dialética hegeliana, dialética marxista, dialética adorniana
Aula 7
Trabalho como movimento da essência em Marx
Na aula de hoje, daremos início ao segundo módulo do nosso curso, a saber, este
dedicado a aspectos da dialética em Marx. É importante começar salientando a
dimensão de “aspectos” pois não se trata de procurar dar conta da dialética marxista
em três encontros. Diria que se trata de qualificar articulações importantes da
articulação entre Marx e Hegel, isto a fim de mostrar como a visão que afirma existir
rupturas profundas no conceito de dialética utilizado pelos dois deve ser criticada.
Certamente, vocês conhecem, por exemplo, a leitura de Louis Althusser, para quem
entre Marx e Hegel passava uma espécie de corte epistemológico presente no interior
dos próprios textos de Marx. Pois o jovem Marx estaria, no fundo, ainda preso à
temática de uma filosofia do sujeito herdada da filosofia hegeliana e da
fenomenologia da perda da consciência através de seus processos de exteriorização.
Filosofia historicista cuja temática da alienação da falsa consciência seria o exemplo
maior de uma maquinaria humanista. Marx só se tornaria Marx quando ele
abandonasse os problemas centrados na filosofia do sujeito para operar uma “guinada
estruturalista” que nos levaria em direção a O capital. Um abandono que não seria
apenas de temáticas, mas de concepção de dialética. Althusser recusa radicalmente a
ideia exposta pelo próprio Marx: “A mistificação que a dialética sofre nas mãos de
Hegel não impede em absoluto que ele tenha sido o primeiro a expor, de modo amplo
e consciente, suas formas gerais de movimento (allgemeinen Bewegungsformen).
Nele, ela se encontra de cabeça para baixo. É preciso desvirá-la, a fim de descobrir o
cerne racional dentro do invólucro místico”. Para ele, não se trata de “desvirar” a
dialética hegeliana, mas de simplesmente abandoná-la. Como ele dirá: “as estruturas
fundamentais da dialética hegeliana, tais como a negação, a negação da negação, a
identidade dos contrários, a “superação”, a transformação da quantidade em
qualidade, a contradição etc., possuem em Marx uma estrutura diferente desta que
elas possuem em Hegel”225.
A diferença se daria principalmente por Marx ter pretensamente abandonado a
antropologia filosófica de Hegel. Abandonada tal antropologia, as estruturas
fundamentais da dialética não poderiam mais ser compreendidas como o movimento
através do qual a consciência opera, graças à reflexividade de seus conceitos, a
exteriorização de si e a interiorização de um mundo traz as marcas de sua própria
atividade constitutiva. A crítica não poderia mais ser crítica da alienação da
consciência, mas crítica da economia política com sua descrição dos modos de
produção e suas descontinuidades históricas.
No entanto, aqui poderíamos nos perguntar sobre o quanto tal tema de um
“antropologismo” a guiar a dialética hegeliana é, de fato, defensável. Tal tema, da
forma como ele se apresentou no pensamento francês contemporâneo, é tributário do
estruturalismo e da crença de que o sujeito é, de certa forma, uma determinação
completa da estrutura. Neste sentido, toda compreensão que parta da perspectiva dos
sujeitos agentes será necessariamente ideológica e marcada pelo desconhecimento. O
próprio conceito de sujeito, com suas ilusões de agência a partir das representações de
sua consciência, é o conceito ideológico por excelência por impedir a compreensão
225 ALTHUSSER, Louis; Pour Marx, p. 92
das determinações estruturais da ação. Por outro lado, esta perspectiva da agência dos
sujeitos traria em seu bojo a naturalização de um conceito essencialista de homem
com seus regimes de praxis e reflexão. Ao naturalizar um conceito essencialista de
homem que passa pela descontinuidade dos modos de produção conservando seus
atributos essenciais, a dialética hegeliana seria ideologia por excelência.
A meu ver, tal leitura é dificilmente sustentável. Ela precisa abandonar a
discussão sobre alienação em Marx por não saber como lidar com determinações
ontológicas que permanecem no horizonte da crítica da economia política marxista e
de sua crítica do trabalho. A natureza determinante dos modos de produção não
implica que tudo o que opera na transformação de tais modos são contradições
funcionais. Neste sentido, proponho começar a reler Marx a partir de discussões sobre
a centralidade da categoria de trabalho e da alienação no trabalho.
Enquanto categoria que descreve o princípio de atividade capaz de produzir as
transformações no interior do campo da experiência, o trabalho é a expressão
fundamental do que, na filosofia hegeliana, compreendemos como essência. Ele
seguirá um processo de exteriorização e retorno à si que marca os movimentos
próprios às determinações de reflexão. Esta exteriorização não segue, no entanto, as
dinâmicas expressivistas de uma consciência-de-si que se procura fazer-se intuir no
mundo a partir da pressuposição de uma unidade simples originária, como gostaria de
mostrar.
Comecemos por nos perguntar por que uma certa tradição dialética viu, no
trabalho, algo mais do que a reiteração de processos disciplinares que nos levariam,
necessariamente, a modelos cada vez mais evidentes de reificação social e de
sofrimento psíquico. Por que tal tradição insistiu, para além da estrutura disciplinar da
autonomia, em lembrar que o trabalho deveria também ser compreender como modelo
fundamental de expressão subjetiva no interior de realidades sociais
intersubjetivamente partilhadas, isto a ponto de elevá-lo (juntamente com o desejo e a
linguagem) a condição de um dos eixos de constituição daquilo que podemos entender
por “forma de vida”? Tal aposta no trabalho como processo emancipatório de
reconhecimento era, de fato, possível e necessária ou não passava da expressão dos
equívocos de filosofias tão fascinadas pelas dinâmicas de transformação que tendiam
a negligenciar como atividades socialmente avalizadas funcionam fundamentalmente
como processos de reiteração de sujeições?
Partamos, para isto, da definição do trabalho como modelo de exteriorização
(Entäusserung) do sujeito sob a forma de um objeto. Lembremos, a este respeito, da
famosa comparação de Karl Marx, certamente um dos pensadores modernos que
melhor configurou certa via ainda hegemônica na caracterização do trabalho:
226 MARX, Karl; Das Kapital I, Berlin: Dietz Verlag, 1983, p. 130
227 Ver, a este respeito, Habermas, 1976, p. 60.
228 MARX, Karl; Grundrisse, São Paulo: Boitempo, 2011, p. 43
229 Por exemplo: “o processo de trabalho é inicialmente um processo entre o
homem e a natureza, um processo no qual, através de sua própria ação, ele
media, regula e controla seu metabolismo com a natureza” (MARX, Karl; Das
Kapital I, op.cit., p. 129)
230 SCHMIDT, Alfred; The concept of nature in Marx, Londres: Verso, 2014, p. 79
231 MARX, idem, p. 129
Se este fosse o caso, tal modo de determinação do trabalho nos impediria, em
última instância, de distingui-lo do comportamento natural. Todo organismo biológico
tem a capacidade de se orientar e operar escolhas a partir de uma finalidade que serve
de norma de avaliação. O filósofo da biologia Georges Canguilhem é preciso neste
sentido. Sendo a vida uma “atividade de oposição à inércia e à indiferença”
(CANGUILHEM, 1983, p. 208), toda individualidade biológica diferencia e escolhe a
partir de normas. Toda individualidade biológica age a partir de um “ideal” com forte
potencial normativo, valorativo e, não devemos esquecer, transformador do meio-
ambiente.
Se quisermos dar alguma realidade à dicotomia afirmada por Marx, talvez
devamos voltar a uma importante afirmação presente nos Manuscritos (2004, p. 84):
“O animal é imediatamente um com a sua atividade vital. Não se distingue dela. É
ela. O homem faz da sua atividade vital mesma um objeto da sua vontade e da sua
consciência. Ele tem atividade vital consciente. Esta não é uma determinidade
(Bestimmtheit) com a qual ele coincide imediatamente”. A diferença entre a
transformação do meio-ambiente devido ao comportamento animal e ao trabalho
humano está no fato da relação de identidade imediata pressuposta pela animalidade,
isto ao menos segundo Marx, perder-se a partir do momento em que o homem “faz de
sua atividade vital um objeto de sua vontade e consciência”. Pois, desta forma, o
homem, segundo o jovem Marx, poderia produzir mesmo livre das determinações
próprias à necessidade natural232. Sua atividade: “não é uma determinidade com a qual
ele coincide imediatamente”.
Assim, se o trabalho é um modelo de expressão subjetiva, não há como pensá-
lo como passagem simples da interioridade pensada à exterioridade constituída. Ele é
expressão do estranhamento da vontade às formas que se colocam como
“representações naturais”, no sentido que Hegel utiliza tal termo na Fenomenologia
do Espírito233. Isto talvez explique porque Marx seja obrigado a definir a ideia
trabalhada como uma lei que “subordina” a vontade. Quem diz “subordinação” diz
imposição de uma norma a algo que lhe seria naturalmente refratário. A vontade
humana precisa ser subordinada à ideia trabalhada porque ela pode, a todo momento,
subvertê-la, desertá-la. Há uma característica negativa da vontade presente na
capacidade que tenho de flertar com a indeterminação através do que Hegel chamou
um dia de trabalho do negativo. Já a abelha de Marx não precisa subordinar sua
vontade à lei que determina sua ação porque ela não tem outra vontade possível, sua
vontade está completamente adequada à lei, sua potência é imediatamente ato. Por
isto, podemos dizer que a existência mesma do trabalho pressupõe a possibilidade
humana, possibilidade esta que é exclusivamente humana, do não-exercício do que se
coloca como potência. De certa forma, a expressão que se manifesta no interior do
trabalho será sempre marcada por esta potência de não passar imediatamente ao ato
ou por esta potência de alterar a determinidade que me seria imediatamente adequada.
Maneiras de expressar como a atividade humana encontra sua essência no excesso dos
possíveis (que podem aparecer inicialmente como impossíveis) em relação aos limites
das determinidades postas.
232 Daí uma afirmação como: “o animal produz apenas sob o domínio da
necessidade física imediata, enquanto o homem produz mesmo livre da
necessidade física, e só produz, primeira e verdadeiramente.em liberdade para
com ela; o animal só reproduz a si mesmo, enquanto homem reproduz toda a
natureza ” (MARX, Karl; Manuscritos econômico-filosóficos, op. cit., p. 85 [trad.
modificada])
233 Cf. HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espírito,
Neste sentido, podemos insistir em uma certa matriz hegeliana deste modo de
pensar a dimensão ontológica do trabalho. Como já foi dito, vem de Hegel as
primeiras colocações sobre o trabalho como fonte de reconhecimento social. No
entanto, é interessante lembrar como, em vários de seus textos, o trabalho aparece não
como a simples exteriorização de uma ideia, mas como modo de defesa contra a
angústia. A consciência se angustia diante da possibilidade de não ter objetividade
alguma, de não ter forma alguma que seja reconhecida socialmente. Por isto, ela
trabalha. Na verdade, ela trabalha como quem se defende contra uma possibilidade de
indeterminação que está sempre a lhe assombrar. No entanto, os objetos trabalhados
sempre terão as marcas desta sombra. Como Hegel (1992, p. 132) dirá, a respeito do
trabalho: “a relação negativa para com o objeto torna-se a forma do mesmo e algo
permanente”. Ou seja, a impossibilidade do ser humano encontrar um objeto que lhe
seja natural, algo que seja a expressão natural de sua vontade, ganha a forma de um
objeto trabalhado. Pois faz parte de toda defesa absorver algo do medo contra o qual
ela foi erigida.
Neste sentido, podemos a partir disto tentar complexificar nossa noção de
trabalho alienado. Normalmente, entendemos por trabalho alienado aquela
modalidade de atividade laboral na qual não me reconheço no que produzo, já que as
decisões que direcionam a forma da produção foram tomadas por um outro. Desta
forma, trabalho como um outro, como se estivesse animado pelo desejo de um outro.
Como dirá o jovem Marx (2004, p. 83): “Assim como na religião a auto-atividade da
fantasia humana, do cérebro e do coração humanos, atua independentemente do
indivíduo e sobre ele; isto é como uma atividade estranha, divina ou diabólica, assim
também a atividade do trabalhador não é sua auto-atividade. Ela pertence a outro, é a
perda de si mesmo”. Superar tal perda do que me é próprio seria indissociável da
capacidade de constituir-me como sujeito capaz de apropriar-me da totalidade das
relações produtoras de sentido social com suas mediações, colocando-me assim como
a “essência das forças motrizes”234. Constituição ligada, segundo certa tradição
marxista, a formação da consciência de classe proletária, única capaz de realizar a
apreensão do “caminho do processo de desenvolvimento histórico como
totalidade”235.
Mas podemos também insistir que não é certo que tal modalidade de
apropriação da totalidade possa no levar à superação da alienação. Pois tal
apropriação normalmente determina a totalidade como uma estrutura fechada na qual
todas as relações são necessárias pois previamente determinadas no interior de um
sistema meta-estável que encontra em um conceito de história teleologicamente
orientado seu campo de desdobramento e nos modos de apreensão reflexiva da
consciência seu destino final. Apropriar-se da totalidade aparece aqui como o ato de
reconhecer, na dimensão de tudo o que aparece, a natureza constituinte de uma
subjetividade que abandonou sua crença no encaminhamento transcendental apenas
para encontrar, em operação no interior do trabalho social com suas relações de
interação, a mesma forma de subsunção do diverso da sensibilidade em
representações que animava a atividade teórica.
Melhor seria lembrar como o trabalho alienado é, ao contrário, exatamente
aquele no qual aceitamos um leitura literal da ideia de Marx, segundo a qual: “no final
do processo de trabalho, vemos um resultado que desde o início estava na
representação do trabalhador, presente como ideal”. Pois, neste caso, a imaginação
do trabalhador é apenas a faculdade humana da planificação, do esquematismo prévio,
Identidades
236 Para uma boa discussão a este respeito a partir da afirmação kantiana de que
cem táleres reais não contém mais do que já está presente em cem táleres
possíveis, ver FAUSTO, Ruy; Marx: logique et politique, op cit.
237 MARX, Karl; Das Kapital I, op. cit., p. 294
238 Idem, O Capital – volume I, op. cit., p. 406
239 MARX, Karl; A ideologia alemã, op. cit., p. 56
Como veremos em outra aula, percebe-se aqui a natureza anti-predicativa do
reconhecimento proposto por Marx. Não me defino como caçador, pescador, pastor ou
crítico, embora possa caçar, pescar ou criticar. Não estou completamente vinculado
nem ao tempo originário da caça, pesca e pastoreio, nem ao tempo de apreensão
reflexiva da crítica, embora possa habitar as temporalidades distintas em uma
simultaneidade temporal de várias camadas. Não limito minha ação nem ao trabalho
manual, nem ao trabalho intelectual. Todas essas negações demonstram como, por não
passar completamente nos predicados historicamente disponíveis, o sujeito preserva
algo da dimensão negativa da essência, quebrando assim a natureza funcionalizada do
corpo social. Eis um ponto importante: a negatividade na relação a representações
naturais da atividade, apresentada nesta necessidade de estabelecer distinções
ontológicas entre expressão subjetiva e comportamento natural, pede também
manifestação no interior da relação entre o sujeito e seus predicados. Pois o problema
não diz respeito apenas a uma configuração histórico-temporal da atividade humana,
mas refere-se também a uma crítica ontológica da identidade, recurso fundamental a
todo pensamento dialético. Pois tal trabalho no comunismo desconheceria a
dominação disciplinar da identidade.
No entanto, poderíamos complexificar o diagnóstico de época e nos perguntar
sobre a diferença estrutural entre tal descrição da sociedade comunista e aquele
diagnóstico a respeito, por exemplo, do desenvolvimento do capitalismo nos EUA
presente nos Grundrisse:
241 Lembremos de uma boa síntese feita por Postone: “O objetivo da produção no
capitalismo não são os bens materiais produzidos nem os efeitos reflexivos da
atividade do trabalho sobre o produtor, é o valor ou, mais precisamente, o mais-
valor. Mas, valor é um objetivo puramente quantitativo, não existe diferença
qualitativa entre o valor do trigo e das armas. Valor é puramente quantitativo
porque, como forma de riqueza, ele é um meio objetivado: ele é a objetivação do
trabalho abstrato – do trabalho como meio objetivo de aquisição de bens que não
produziu” (POSTONE, Moishe; idem, p. 210)
242 A respeito deste trecho de Marx, Fausto dirá: “a mobilidade do trabalhador
não realiza o universal que é ao mesmo tempo singular, o universal não é outra
coisa aqui que uma sucessão de singularidades ou de particularidades” (FAUSTO,
Ruy; Marx: logique et politique, Paris: Publisud, 1986, p. 114). De fato, mas
poderíamos ainda nos perguntar sobre que tipo de determinação uma
universalidade que é ao mesmo tempo singular deve ter. Em que condições a
universalidade é posta no campo das singularidades? Insistiria que a
universalidade que se singulariza implica, neste caso, recusa a determinar o
singular como uma determinação completa, sendo que a incompletude de sua
determinação é forma de indicar a integração do indeterminado enquanto seu
momento próprio. Neste sentido, é verdade que tal determinação só é incompleta
para o entendimento, mas seu gênero de posição nada tem a ver com as
determinações já determinadas como possíveis. Tentarei indicar o desdobramento
deste tempo através de certa leitura do que podemos entender por “vida do
gênero” em Marx.
Na relação monetária, no sistema de trocas desenvolvido (e essa aparência
seduz a democracia), são de fato rompidos, dilacerados, os laços de
dependência pessoal, as diferenças de sangue, as diferenças de cultura etc.
(todos os laços pessoais aparecem ao menos como relações pessoais; e os
indivíduos parecem independentes (essa independência que, aliás, não passa
de mera ilusão e, mais justamente, significa apatia – no sentido de
indiferença), livres para colidirem uns com os outros e, nessa liberdade, trocar;
mas assim aparecem apenas para aquele que abstrai das condições, das
condições de existência sob as quais esses indivíduos entram em contato (e
essas, por sua vez, são independentes dos indivíduos e aparecem, apesar de
geradas pela sociedade, como condições naturais, i.e., incontroláveis pelos
indivíduos). A determinidade (Bestimmtheit) que, no primeiro caso, aparece
como uma limitação pessoal do indivíduo por parte do outro, aparece no
segundo caso desenvolvida como uma limitação coisal do indivíduo por
relações dele independentes que repousam sobre si mesmas243.
Gattungsleben
É neste contexto que uma intuição fundamental do jovem Marx pode ser
recuperada, a saber, esta, tão presente no idealismo alemão, que consiste em pensar a
expressão subjetiva na dimensão do trabalho a partir do paradigma da produção
estética. Como se a produção estética pudesse fornecer o horizonte normativo de toda
e qualquer atividade não alienada. Lembremos, neste sentido, de uma afirmação
como: “O animal forma (formiert) apenas segundo a medida e necessidade da espécie
a qual ele pertence, enquanto o homem sabe produzir segundo a medida de qualquer
espécie, e sabe considerar, por toda a parte, a medida inerente ao objeto; o homem
também forma, por isso, segundo as leis da beleza”244. Esta caracterização do homem
como “ser sem espécie definida”, “ser sem medida adequada”, de onde se segue sua
possibilidade de produzir segundo a medida de qualquer espécie, abre a possibilidade
para uma indiferença genérica em relação à determinação própria à toda espécie na
suas relações de transformação do meio-ambiente, o que lhe leva a encontrar a medida
inerente ao próprio objeto. Liberado da condição de ser apenas objeto para-um-outro,
o objeto pode ser expressão daquilo que, no sujeito, não se reduz à condição de ser
para-um-outro. Daí porque encontrar a medida inerente ao objeto é, ao mesmo tempo,
superar a alienação do sujeito. E o que, no sujeito, não se reduz à tal condição de ser
para-um-outro, é o que nele não se configura sob a forma de espécie alguma, não tem
Tal perspectiva talvez faça justiça de forma mais adequada à dimensão estética
da reflexão marxista sobre o trabalho. De fato, podemos dizer que é como portador
da vida do gênero que o sujeito trabalha segundo “as leis da beleza”. Pois as leis da
beleza não são estas que fundam as formas humanas em uma arché, um pouco como a
afirmação de Feuerbach parece nos levar a acreditar. Esta leitura seria
necessariamente conservadora a respeito das questões próprias à forma estética e
radicalmente defasadas mesmo diante do estado da crítica na estética romântica tardia
à época de Marx. Mais correto seria afirmar que as leis da beleza são estas que se
quebram diante da expressão do gênio, temática fundamental da estética romântica.
Não por acaso, a raiz latina da palavra alemã Gattung é o latim genus e o grego
génos. Genus partilha com genius a raiz gen que indica engendrar, produzir.
Giorgio Agamben tem um pequeno texto sobre o conceito de gênio que pode
auxiliar nas consequências desta estética da produção a animar o jovem Marx e, como
gostaria de defender, pressuposta mesmo no Marx de maturidade. Agamben lembra
que os latinos chamavam Genius ao deus ao qual todo homem é confiado sob tutela
na hora do nascimento. Resultado da afinidade etimológica entre gênio e gerar. Por
isto, Genius era, de uma certa forma, a divinização da pessoa, o princípio que rege e
exprime toda sua existência. No entanto, Agamben faz questão de insistir a respeito de
um ponto de grande importância para nós:
Mas esse deus muito íntimo e pessoal é também o que há de mais impessoal
em nós, a personalização do que, em nós, nos supera e excede. “Genius” é a
nossa vida, enquanto não foi por nós originada, mas nos deu origem. Se ele
parece identificar-se conosco, é só para desvelar-se, logo depois, como algo
mais do que nós mesmos, para nos mostrar que nós mesmos somos mais e
menos do que nós mesmos. Compreender a concepção de homem implícita em
Genius equivale a compreender que o homem não é apenas Eu e consciência
individual, mas que, desde o nascimento até a morte, ele convive com um
elemento impessoal e pré-individual247.
255 Daí, por exemplo, este horizonte de transparência absoluta que opera no
recurso à crítica do desvelamento da totalidade em Lukàcs. Lembremos, neste
sentido, do peso determinista de afirmações como: “As se relacionar a consciência
com a totalidade da sociedade, torna-se possível reconhecer os pensamentos e os
sentimentos que os homens teriam tido numa determinada situação de sua vida,
se tivessem sido capazes de compreender perfeitamente esse situação e os
interesses dela decorrentes, tento em relação à ação imediata, quanto em relação
à estrutura de toda a sociedade conforme esses interesses” (LUKÀCS, Gyorg;
História e consciência de classe, São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 141)
Dialética hegeliana, dialética marxista, dialética adorniana
Aula 9
Proletário como sujeito político em Marx
Genealogia do proletariado
Para compreender melhor este ponto, há de se insistir que uma situação define a
emergência do proletariado, a saber, sua despossessão. De fato, conforme definido da
Constituição Romana, proletário é a última das seis classes censitárias, classe
composta por aqueles caracterizados por, embora sendo livres, não terem propriedade
alguma ou por não terem propriedades suficientes para serem contado como cidadão
com direito a voto e obrigações militares. Sua única possessão é a capacidade de
procriar e ter filhos. Reduzidos assim à condição biopolítica a mais elementar, à
condição de reprodutor da população, os proletários representam o que não se conta.
Daí uma colocação importante de Jacques Rancière: “Em latim, proletarii significa
“pessoa prolífica” – pessoa que faz crianças, que meramente vive e reproduz sem
nome, sem ser contada como fazendo parte da ordem simbólica da cidade” 256. Até o
final do século XVIII, proletário designa o que é “mal, vil” ou, em francês, como
sinônimo de “nômade”, de sem lugar.
É no bojo da Revolução Francesa, e principalmente depois da Revolução de
1830, que o termo será paulatinamente acrescido de conotação política, agora para
descrever os que só possuem seu salário diário pago de acordo com a necessidade
básica de auto-conservação, sejam camponeses ou operários, e que devem ser objetos
de ações políticas feitas em nome da justiça social. Neste sentido, os proletários não
são ainda o nome de um sujeito político emergente, mas o nome de um ponto de
sofrimento social intolerável, um “significante central do espetáculo passivo da
pobreza”257. Exemplo claro neste sentido é o uso do termo feito por Saint-Simon. É
entre os saint-simonistas que a dicotomia entre proletários e burgueses será descrita
pela primeira vez ainda que em um horizonte de reconciliação possível de interesses.
Neste sentido, mais do que cunhar o uso social do termo, o feito de Marx
encontra-se em vincular o conceito de proletariado a uma teoria da revolução ou,
antes, a uma teoria das lutas de classe que é a expressão da “história da guerra civil
mais ou menos oculta na sociedade existente” 258. Daí porque Marx falará, a respeito
dos saint-simonistas e de outros socialistas “crítico-utópicos”: “Os fundadores desses
sistemas compreendem bem o antagonismo de classes, assim como a ação dos
elementos dissolventes na própria sociedade dominante. Mas não percebem no
proletariado nenhuma iniciativa histórica, nenhum movimento político que lhes seja
peculiar”259. Pois trata-se de levar às últimas consequências o fato de que: “o
proletariado romano viva à custa da sociedade, ao passo que a sociedade moderna
vive à custa do proletariado”260.
A sua maneira, Marx partilha com Hobbes a compreensão da vida social como
uma guerra civil imanente. No entanto, como não se trata de pensar as condições para
256 RANCIÈRE, Jacques; “Politics, identification and subjectivation” in: RAJCHMAN,
John; The identity in question, Nova York: Routledge, 1995, p. 67
257 STALLYBRASS, Peter; “Marx and heterogeneity: thinking the
lumpemproletariat” In: Representations, vol 0, n. 31, p. 84
258 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; Manifesto Comunista, São Paulo: Boitempo,
p. 50
259 Idem, p. 66
260 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; O 18 do brumário, op. cit., p. 19
a formação da sociedade como associação de indivíduos, mas parar de pensar a vida
social a partir da elevação do indivíduo como célula elementar, esta guerra não será a
expressão da dinâmica concorrencial entre indivíduos desprovidos de relações
naturais entre si. Ela será uma guerra de classes no interior da qual uma das classes
aparece como o conjunto daqueles que nada mais dispõem. Por isto, uma guerra que
só pode levar não a vitória de uma classe sobre outra, mas à destruição do princípio
que constitui as classes, a saber, o trabalho e a propriedade como atributo fundamental
dos indivíduos. O que explica porque Marx deverá ser claro:
Difícil não ler esta série descrita por Marx com seus literatos e amoladores de tesoura
sem se lembrar da Enciclopédia fantástica de Borges. Pois o que totaliza esta série não
é a suposta analogia entre seus elementos a partir do desenraizamento social. A este
respeito, lembremos como em Luta de classe na França, Marx chega a descrever a
própria aristocracia financeira como “o renascimento do lumpemproletariado nos
cumes da sociedade burguesa”. Há um lumpemproletariado no baixo nível do estrato
social e no alto nível, sendo os do alto nível perfeitamente enraizados à escroqueria
funcional do capitalismo financeiro.
O que os une é, na verdade, uma certa concepção de improdutividade, uma
diferenciação entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo, mas diferenciação
concebida do ponto de vista da produtividade dialética da história. Pois o
lumpemproletariado é uma massa desestruturada cuja negatividade não se coloca
como contradição em relação às condições do estado atual da vida. Neste sentido, ele
é a representação social da categoria de negatividade improdutiva. Por isto, trata-se de
uma massa que pode ganhar homogeneidade desde que encontre um termo unificador
que lhe dará estabilidade no interior da situação política existente. Tal termo, no 18 do
brumário, não é outro que Napoleão III, “o chefe do lumpemproletariado”. Aquele
que dá homogeneidade a tal heterogeneidade social, a história mesma repetida como
farsa e que deve se confessar enquanto farsa para poder se manter.
No entanto, há de se insistir como o modelo de estabilização produzido por
Napoleão III é uma espécie de estabilização na anomia. Através de Napoleão III, a
heterogeneidade do lumpemproletariado permanece radicalmente passiva, permanece
como ação anti-política, pois acomoda-se à gestão do desenraizamento social, seus
crimes romantizados não se transformam em ação de transformação social. Na
verdade, essa desestruturação e indefinição anômica do lumpemproletariado é própria
de quem ainda conserva a esperança de retorno da ordem, ou que não é capaz de
conceber nada fora de uma ordem que ele mesmo sabe estar completamente
268 MARX, Karl; O 18 brumário de Luis Bonaparte, São Paulo: Boitempo, 2011, p.
91
269 Ver, por exemplo, THOBURN, Nicholas; “Difference in Marx: the
lumpenproletariat and the proletarian unamable”; Economy and Society Volume
31 Number 3 August 2002: 434–460
270 MARX, Karl; O 18 do brumário, op. cit., p. 91
comprometida. O que faz suas ações políticas serem apenas “paródias” de
transformações, “comédias”, ou ainda, “mascaradas”: todos termos usados por Marx
no 18 de brumário para falar de revoluções que são, na verdade, tentativas de
estabilização no caos. O lumpemproletariado representa uma negatividade que não
pode ser integrada no processo dialético porque ele representa o congelamento da
negatividade em uma espécie de cinismo social. O lumpemproletariado representa
uma negatividade que não produz processo histórico algum.
Já o caso do proletariado é marcado pela ausência de qualquer expectativa de
retorno. O proletariado é uma heterogeneidade social que simplesmente não pode ser
integrada sem que sua condição passiva se transforme em atividade revolucionária.
Por isto, ao ser desprovido de propriedade, de nacionalidade, de laços a modos de
vida tradicionais e de confiança em normatividades sociais estabelecidas, ele pode
transformar seu desamparo em força política de transformação radical das formas de
vida, o que Marx deixa claro quando afirma esperar:
Se este for o caso, então poderemos dizer que a luta de classes em Marx não é
simplesmente um conflito moral motivado pela defesa das condições materiais para a
estima simétrica entre sujeitos dispostos a se fazerem reconhecer a partir da
perspectiva da integralidade de suas personalidades. Pois é assim que Axel Honeeth
define o que Marx compreenderia por “luta de classes”. Na verdade, Honneth serve-
se, entre outros, dos estudos de historiadores como E.P. Thompson e Barrington
Moore a fim de afirmar que a estrutura motivacional das lutas da classe operária
baseou-se, principalmente: “na experiência da violação de exigências localmente
transmitidas de honra”279, já que, mais importante do que demandas materiais teria
sido o sentimento de desrespeito em relação a formas de vida que clamam por
reconhecimento. Por procurar desde há muito defender tal perspectiva, Honneth pode
afirmar que, em Marx:
276 Sobre este ponto da filosofia hegeliana, tomo a liberdade de remeter ao meu
SAFATLE, Vladimir; Grande hotel abismo: para uma reconstrução da teoria do
reconhecimento, São Paulo: Martins Fontes, 2012.
277 BALIBAR, Etienne; Citoyen sujet et autres essais d’anthropologie
philosophique, Paris: PUF, 2011, p. 260.
278 RANCIÈRE, Jacques; La mésentente: politique et philosophie, Paris: Galilée,
1995, p. 63
279 Idem, p. 131.
280 HONNETH, Axel; Kampf um Anerkennung: Zu moralischen Grammatik sozialer
Konflikte, Frankfurt: Suhrkamp, 1992, p. 233
degradação cultural é fenomenologicamente secundária”281, já que conflitos por
redistribuição não poderiam ser compreendidos como independentes de toda e
qualquer experiência de desrespeito social. Mas, ao reduzir a integralidade das lutas
sociais às demandas pela afirmação das condições para a formação da identidade
pessoal, sua perspectiva anula por completo uma dimensão fundamental para a
compreensão da luta de classe, ao menos para Marx, a saber, a força de des-identidade
própria ao conceito marxista de proletariado.
Insistamos neste ponto lembrando de um importante trecho do Manifesto
Comunista:
A liberdade, para Marx, passa pela liberação do sujeito de sua condição de indivíduo
que se relaciona a outro indivíduo tal como dois terrenos separados pelo poste da
cerca. Estaremos sendo fiéis ao espírito do texto de Marx se afirmarmos que, através
da luta de classes, uma experiência social pós-identitária pode encontrar lugar.
Podemos mesmo dizer que “proletariado” é a nomeação política da força social de
desdiferenciação identitária cujo reconhecimento pode desarticular por completo
sociedades organizadas a partir da hipóstase das relações gerais de propriedade.
Que esta força de desdiferenciação própria ao conceito de proletariado tenha ganhado
evidência graças a marxistas franceses, como Badiou, Balibar e Rancière, isto
demonstra como algo do descentramento próprio ao conceito lacaniano de sujeito
alcançou a política através de ex-alunos de Louis Althusser. No entanto, tal
descentramento tem sua matriz na noção de “negatividade” própria ao sujeito
hegeliano. Assim, por ironia suprema da história, algo do conceito hegeliano de
sujeito acaba por voltar a cena através da influência surda em operação nos textos de
ex-alunos deste anti-hegeliano por excelência, a saber, Louis Althusser.
Por esta razão, o proletariado não pode ser imediatamente confundido com a
categoria de povo. Falta-lhe a tendência imanente à configuração identitária e
limitadora que define um povo. O proletariado funciona muito mais como uma
espécie de anti-povo, isto no sentido da potência sempre vigilante do que permanece a
lembrar a provisoriedade das identidades, estados e nações, assim como da pulsação
constante de integração do que se afirma inicialmente como exceção não-contada.
Esta é uma maneira de aceitar proposições como:
A coisa toda seria muito simples se houvesse apenas a infelicidade da luta que
opõe ricos e pobres. A solução do problema foi encontrada muito cedo. Basta
suprimir a causa da dissensão, ou seja, a desigualdade de riquezas, dando a
cada um uma parte igual de terra. O mal é mais profundo. Da mesma forma
que o povo não é realmente o povo, mas os pobres, os pobres por sua vez não
são realmente os pobres. Eles são apenas o reino da ausência de qualidade, a
efetividade da disjunção primeira que porta o nome vazio de ‘liberdade’, a
propriedade imprópria, o título do litígio. Ele são eles mesmo a união
distorcida do próprio que não é realmente próprio e do comum que não é
realmente comum286
285 MARX, Karl; Sobre a questão judaica, São Paulo: Boitempo, 2010, p. 49.
286 RANCIÈRE, Jacques; Le mésentente: politque et philosophie, Paris: Galiée,
1995, p. 34
287 Como nos lembra LACLAU, Ernesto; La razón populista, op. cit., p. 308
condição necessária para que o conceito marxista de “proletariado” continue a mostrar
sua operatividade. Na situação histórica atual de reconfiguração da sociedade do
trabalho, podemos repensar tal relação a fim de encontrar espaços outros para a
manifestação de exigências próprias a uma certa ontologia do sujeito pressuposta pela
construção marxista.
Dialética hegeliana, dialética marxista, dialética adorniana
Aula 9
A revolução como forma do tempo
293 LEFEVRE, Georges; La grande peur de 1789, Paris: Armand Colin, 1970
294 HEGEL, G.W.F.: Fenomenologia do Espírito
295 MARX, Karl; O 18 de brumário, p. 25
A colocação de Marx era precisa por problematizar um ponto fundamental da dialética
como processualidade referente à necessidade da repetição. A frase Hegel, dita a
respeito da morte de César, era: “de fato, uma revolução política é geralmente
sancionada pelos homens quando ela se repete. Assim, Napoleão sucumbiu duas vezes
e duas vezes foram afastados os Bourbons. Através da repetição, o que apareceu
inicialmente como possível e contingente adquire realidade e permanência”296. Nota-
se claramente aqui como a revolução é definida como uma forma específica de
repetição a partir de um acontecimento que aparece inicialmente como contingente,
como meramente possível no sentido de poder ter sido de outra forma, poder ter
ocorrido ou não. Uma revolução é repetição de um acontecimento contingente, mas
uma repetição feita de forma tal que transforma a contingência, transforma o que até
então não aparecia para uma situação como fruto de uma causalidade necessária, em
necessidade. Neste sentido, podemos falar em, “revolução” porque tal transformação
só é possível à condição do acontecimento produzir uma contradição formal com a
situação presente. O acontecimento é impensável no interior da situação presente, ele
não obedece ao regime de necessidade do que está imediatamente posto. Repeti-lo é
inscrevê-lo em uma nova estrutura simbólica.
Tentemos compreender melhor este ponto. Lembremos, inicialmente, como
Hegel define a contingência: “essa unidade da possibilidade e da efetividade
(Wirklichkeit) é a contingência (Zufälligkeit). O contingente é um efetivo que, ao
mesmo tempo, é determinado apenas como possibilidade, cujo outro ou oposto
também é” (HEGEL, 1986, p. 230). A contingência é unidade da possibilidade e da
efetividade porque, embora existente, ela conserva a marca do que poderia não ser, do
que é mera possibilidade. O outro de si, sua inexistência, seu oposto, era igualmente
possível. Daí porque ela é, aos olhos de Hegel, o espaço de uma contradição maior: “o
contingente não tem fundamento, porque é contingente, e da mesma forma tem um
fundamento, porque como contingente, é”. Sua existência não tem fundamento por
estar corroída pela situação de mero possível, ela é vizinha do não-ser, como dizia
Aristóteles, mas ao mesmo tempo tem alguma forma de fundamento por participar da
efetividade posta. Assumir a existência efetiva da contingência é, para Hegel,
confrontar-se como o que é uma: “interversão posta imediata” (gesetzte unvermittelte
Umschlagen), ou seja, com uma passagem contínua entre opostos que nunca se
estabiliza e que por isto abre a experiência a uma “absoluta inquietude do devir”
(absolute Unruhe des Werdens).
Hegel poderia, por exemplo, recusar dar a contingência alguma forma de
dignidade ontológica e professar um necessitarismo absoluto nos moldes daquele que
encontramos em Spinoza. Mas se ele fizesse isto, não haveria mais dialética, pois não
haveria mais produtividade da contradição. Hegel deve admitir que todo
acontecimento se apresenta inicialmente como contingente e tal apresentação não é
simplesmente um “defeito de nosso entendimento”. Ela é a expressão do fato da
essência estar em uma relação de exterioridade consigo mesma, dela se manifestar
como uma espécie de exceção de si. É nesta exceção, nesta excepcionalidade que uma
outra ordem começará por entrar em contradição com a situação normal para depois
afirmar-se.
Mas notemos um ponto. A contingência é absoluta inquietude do devir apenas
para uma filosofia, como a hegeliana, que ao recusar distinções ontológicas estritas
entre contingência e necessidade, procura compreender como o necessário se
engendra a partir da efetividade, como a efetividade produz a necessidade, produz um
“não poder ser de outra forma”. O que não significa que a realidade atual deva ser
296 HEGEL, G.W.F.; Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte, p. 242
filosoficamente completamente justificada, como já se criticou Hegel em mais de uma
vez. Antes, significa compreender como fenômenos contingentes, por não
encontrarem lugar na determinação necessária da realidade atual, transfiguram-se em
necessidade ao inaugurar processualidades singulares.
Assim, por exemplo, o assassinato de César – tópico fundamental no trecho da
Filosofia da História citado acima - aparece inicialmente como a anulação de uma
individualidade que parecia colocar em risco a forma da República, como a anulação
de algo que poderia ter sido de outra forma. Diante da situação representada pela
República Romana e sua institucionalidade, um acontecimento como César era
puramente contingente, colocando-se em contradição com a situação normal.
Eliminando-o, a necessidade da situação normal se restabeleceria. No entanto, o
assassinato de César produz sua repetição sob a forma simbólica de Césares que
retornam instaurando um novo regime de necessidade e de temporalidade no qual a
perda produzida no passado é apenas uma forma de abrir uma temporalidade espectral
que dará ao presente a espessura de novas camadas. Esta repetição é a prova de que a
forma da República havia sido esvaziada de sua substância. Ela não passava de um
mero formalismo.
Diria que esse processo de integração processual das contingências é a base
estrutural da compreensão de revolução presente em Marx. No entanto, ele
complexificado por Marx ao estabelecer a existência de um modo de repetição
histórica que é apenas a expulsão do que aparecia como a potência de transformação
de um acontecimento. Uma revolução sempre desencadeia um sistema de repetições,
mas há de se saber como e o que se repete. É importante para Marx operar tal
distinção no interior do conceito de repetição histórica para dar conta de um processo
bem descrito no capítulo III do 18 de brumário:
298 Idem, p. 27
299 SILBERTIN-BLANC, Guillaume; Pensée politique en temps inactuels, p. 64
outra; é, para usar um conceito hegeliano, um “presente absoluto”. Há um outro
tempo a assombrar o presente e ele só deixará de assombrá-lo quando não houver
mais presente tal como até agora houve. Pois as rupturas nos modos de produção que
as Revolução proletárias procuram realizar são modificações que, como bem lembra
Balibar, modificam: “a base econômica, as superestruturas jurídicas e políticas, as
formas da consciência social”300. Neste contexto, “formas da consciência social”
significa o modo de determinação dos sujeitos e de sua experiência espaço-temporal.
As configurações de sujeitos vão juntamente com os modos de produção.
No entanto, Marx fala que: “não é do passado, mas unicamente do futuro, que
a revolução social do século XIX pode colher sua poesia” 301. A princípio, parece que
Marx está a dizer que não se trata mais de recorrer a memórias históricas para
travestir burgueses de césares, insensibilizando a sociedade em relação ao real
conteúdo dos processos de transformação social. Como Marx insistirá, ao invés da
fraseologia histórica superar o verdadeiro conteúdo do processo revolucionário, era o
conteúdo que deveria enfim superar a fraseologia. No entanto, talvez Marx fale que é
apenas do futuro que a revolução poderá colher sua poesia porque não há figuras no
passado que possam dar forma à subjetividade política revolucionária pois o que uma
revolução faz ressoar é exatamente aquilo que, no interior do passado, ficou sem
forma e figura, aquilo que ficou sem lugar. A poesia da revolução é a poesia do que
não se inscreveu no tempo da história. Neste sentido, tem razão Walter Benjamin
quando afirma: “O historicismo se contenta em estabelecer um nexo causal entre
vários momentos da história. Mas nenhum fato, meramente por ser causa, é por isso
um fato histórico. Ele se transforma em fato histórico postumamente, graças a
acontecimentos que podem estar dele separados por milênios”302. Ou seja, a revolução
é este processo que reconstrói o tempo a partir da capacidade de “extrair uma época
determinada do curso homogêneo da história” 303. Tal extração pode, inclusive,
paralisar o tempo em uma configuração saturada de tensões que se cristaliza como
uma mônada. Assim, o tempo pode paralisar-se em uma saturação contínua, fazendo
com que os múltiplos instantes na história sejam o mesmo instante em repetição, até
que tal pressões de tensões produza a emergência de um novo sujeito.
Por exemplo, sabemos como Marx dirá que as revoluções do século XVIII são
intensas e tem vida curta, enquanto as revoluções do século XIX (1830, 1848) estão
em constante auto-crítica, parecem interromper sua marcha para começar tudo de
novo, para zombar da debilidade de suas primeiras tentativas. Elas “recuam
repetidamente ante a enormidade ainda difusa de seus próprios objetivos até que se
produza a situação que inviabiliza qualquer retorno”304. O que significa tais recuos e
interrupções? Podemos dizer que eles são os processos que paulatinamente produzem
o sujeito revolucionário através da consciência de sua ausência completa de lugar.
Marx, por exemplo, lembra como é recorrente este processo no qual o proletariado
abre mão de revolucionar o velho mundo para se lançar a: “experimentos doutrinários,
bancas de câmbio e associações de trabalhadores” 305. Como se o proletariado
acreditasse que os problemas sociais que enfrenta poderão ser resolvidos através da
conservação reajustada dos modos atuais de produção, dos modos atuais de narrativa
e de dramatização política. Ao fazer isto, eles só poderão produzir uma repetição
300 BALIBAR, Etienne; “Concepts fondamentaux du matérialisme historique”, In:
ALTHUSSER, Louis (org.); Lire le Capital, p. 424
301 MARX, Karl; 18 de brumário, p. 28
302 BENJAMIN, Walter; Sobre o conceito de história, p. 232
303 idem, p. 231
304 MARX, Karl; O 18 de brumário, p. 30
305 Idem, p. 35
histórica como paródia da revolução. Repetição como aprisionamento em um tempo
morto no qual o que retorna, retorna sob a forma da impotência social.
Assim, por exemplo, incapaz de assumir sua condição de completa
despossessão o proletariado francês em 1848 deixou-se apreender pelo imaginário
burguês da Revolução Francesa. Esperando pela repetição de Napoleão, ele terá que
se contentar com um Napoleão caricaturado, até que assuma sua condição de
expressão de um sujeito político sem figura e que, por isto, não pode mais se
representar sob a forma dos antigos atores. Enquanto isto não acontecer, sobe à cena
do político estes que não acreditam que poesia alguma virá do futuro porque são
movidos pela nostalgia de uma antiga ordem ou pela acomodação complacente à
desordem do presente. Movidos por uma negatividade improdutiva, sua espera por
transformações será, no fundo, espera por uma restauração. Vimos na aula passada
como tal anti-sujeito político é o que Marx chama de “lumpemproletariado”. Volto a
insistir, o lumpemproletariado é composto por todos os desenraizados que não são
capazes de se engajar em um processo de contradição com a situação normal. Sua
negatividade não chega à contradição. Neste sentido, o conceito de
lumpemproletariado traduz, acima de tudo, uma posição política diante de um
processo revolucionário.
Dentro deste processo, há de se sublinhar como ele se estabiliza através do
deslocamento do poder para uma caricatura, a saber, Napoleão III. Vendo-se na
incapacidade de unificar o poder em suas mãos, a burguesia francesa permite a
produção de uma espécie de dominação estatal que paira acima das classes. A figura
da estabilização através de um personagem que representa apenas o próprio vazio do
poder, que permite a coesão do estado por não exigir mais convicção alguma em
relação ao estado.
Neste sentido, podemos dizer que uma revolução é, acima de tudo, o processo
de emergência de novos sujeitos políticos. Esta emergência é a condição para que o
acontecimento contingente possa se transformar em necessidade. Sem tal emergência
acontecimentos se seguirão um após o outro sem que nenhuma sequência de
transformações se inicie. No entanto, tais sujeitos são produzidos por acontecimentos.
Daí porque todo acontecimento ocorre, ao menos duas vezes. A repetição do
acontecimento é levada a cabo por outros sujeitos.
Falta a aula 10
Dialética hegeliana, dialética marxista, dialética adorniana
Aula 11
A categoria de sujeito em Adorno
Em vários momentos, deve ter ficado claro como a dialética não é uma ontologia do
ser, mas uma filosofia do sujeito. O conceito de sujeito lhe é absolutamente central e
deveríamos agora nos perguntar a razão para tal centralidade. Esta centralidade fica
evidente na recuperação adorniana da dialética. Podemos mesmo dizer que, do início
até o fim, a filosofia adorniana não será outra coisa que uma complexa teoria do
sujeito que procura desdobrar suas conseqüências nos campos da reflexão sobre a
teoria do conhecimento, a estética, a moral e a teoria social. Ou melhor, uma teoria do
sujeito que só pode se configurar através das passagens da filosofia em direção a
campos empíricos do saber. Não seria difícil mostrar que, neste ponto, Adorno acaba
por mostrar sua profunda solidariedade com a tradição dialética inaugurada por Hegel,
já que a filosofia de Hegel é, a sua forma, também uma longa elaboração a respeito da
reconstrução possível da categoria de sujeito. Uma construção que também exige a
dispersão conceitual do fazer filosófico.
A primeira razão que podemos dar para este insistência na conservação da
categoria de sujeito é a defesa de que “sujeito” é o nome que damos para uma
experiência radical de não-identidade. A defesa do primado da não-identidade pede a
reflexão sobre a estrutura da categoria de sujeito. Desde Hegel, a reflexão cuja
atividade constitui a categoria do sujeito não é definida como auto-reflexão,
capacidade de auto-apreensão de si no interior de uma consciência especular. Ela é um
movimento necessário de alienação e retorno. Esta reflxividade dá ao sujeito sua
característica principal, a saber, sua dinâmica de implicação. Sujeito é o nome que
damos para um movimento de implicação com o que não se deixa pensar sob a forma
da identidade. Notemos ainda que Adorno prefere falar em não-identidade, ao invés
de, por exemplo, diferença, para insistir na natureza do movimento que permite o
redimensionamento do campo da experiência. Tal movimento não parte da eliminação
pura e simples das expectativas de organização próprias ao sujeito, como se fosse
possível suspendê-las por decreto e colocar-se diretamente na perspectiva do infinito.
Ele é dialético por levar tais expectativas a seu ponto de exaustão, a levar a identidade
até o ponto no qual ela confessa sua impossibilidade. Como se o sujeito fosse
necessariamente animado por um movimento de auto-superação de si.
Tal compreensão do sujeito como regime de implicação com uma experiência
de não-identidade explica porque, ao começar sua descrição das categorias de uma
lógica dialética (na segunda parte de Dialética Negativa), Adorno comece não com
uma consideração sobre o ser ou mesmo sobre o sujeito, mas com o “algo” (Etwas)
como “caráter coisal não idêntico ao pensamento” 306. Não partir do “algo” é, para
Adorno, aceitar a: “dominação do conceito que gostaria de permanecer constante ante
seus conteúdos”307. No entanto, se quisermos uma dialética materialista, há de se
pensar o processo de alteração do conceito pelo não imediatamente conceitual.
“Sujeito” é o nome que damos para a implicação com tal processo, para a capacidade
de ser afetado pelo pensamento de tal processo. Por isto, ele nos mostra como:
Adorno chega mesmo a falar que o que Kant chama de “enformação” (Formierung) é
deformação ou, ainda, chega mesmo a falar de um “cativeiro interiorizado” a fim de
sublinhar o caráter de coerção de tais condições formais da experiência. “O cativeiro
categorial da consciência individual reproduz o cativeiro real de cada indivíduo”, dirá.
Ou seja, os limites da estrutura atual da experiência são a expressão das condições
materiais para a reprodução de um regime de funcionamento da vida social. O
capitalismo tem sua forma de tempo e de espaço, assim como ele tem seus regimes de
Adorno insiste em pensar a partir de uma dialética entre sujeito e objeto que afirma:
“a separação entre sujeito e objeto é real e aparente”325. Verdadeira por expressar uma
situação concreta atual e aparente por não poder ser hipostasiada como invariante. No
entanto, uma separação radical leva o sujeito a “esquecer o quanto ele mesmo é
objeto”326. Ou seja, ignorar como não apenas o objeto é mediado pelo sujeito, mas
como o sujeito é mediado pelo objeto leva, paradoxalmente, o objeto da experiência a
ser nada mais que uma projeção de um sujeito constituinte. Adorno precisa andar em
uma linha tênue entre aqueles que recusam, ao mesmo tempo, um estado originário de
indiferenciação genérica entre sujeito e objeto, assim como uma separação ontológica
entre os dois. Daí uma afirmação importante como:
A colocação é clara: há uma espécie de síntese não identitária entre sujeito e objeto
que é resultado de um processo, que é uma produção, antes de ser o desvelamento de
uma unidade indiferenciada que muito se criticou como pressuposição da dialética
hegeliana. Esta síntese não tem a forma de uma comunicação entre sujeitos, mas de
um entendimento entre o que tem realidades ontológicas distintas, a saber, homens e
coisas. Tentemos entender melhor este ponto, assim como entender como tal ponto
nos abre para uma relação importante entre dialética hegeliana e dialética negativa.
De fato, há uma proximidade nem sempre relevada a respeito da dialética entre
sujeito e objeto em Hegel e Adorno. Proposição que pode parecer inicialmente
disparatada e ir na contramão de várias asserções explícitas do próprio Adorno. Pois
em mais de um momento, Adorno age como quem afirma que Hegel não pode levar a
dialética sujeito-objeto às suas reais conseqüências. Daí a necessidade de afirmações
como:
Esta mediação por meio dos extremos é, no entanto, a maneira com que a própria
dialética negativa funciona. O que demonstra quão equivocada são perspectivas que
procuram diferenciar a dialética hegeliana e a dialética adorniana a partir da pretensa
distinção entre seus modelos de mediação330. Tanto é assim que Adorno dará um nome
para tal mediação por meio dos extremos e nos próprios extremos que estaria entre
operação na dialética entre sujeito e objeto: mimese. Mas Adorno aproxima, de
maneira explícita, negação determinada hegeliana e mimese, como vemos em uma
afirmação como:
Assim, longe de se reduzir a uma relação meramente projetiva entre sujeito e objeto, a
dialética hegeliana reconhece afinidades miméticas que modificam a identidade dos
dois pólos. Mas isto significa necessariamente reconhecer que o sujeito encontra, no
interior de si mesmo, um “núcleo do objeto”332, isto no sentido de uma opacidade
própria à resistência do que se objeta à apreensão integral da consciência 333. Este
reconhecimento, por sua vez, é a maneira com que uma certa reconciliação opera na
dialética negativa todas as vezes que Adorno fala da relação entre sujeito e objeto
como uma “comunicação do diferenciado”334.
Mas, da mesma forma que é impossível, ao mesmo tempo, guardar o bolo e
comê-lo, não é possível dizer, ao mesmo tempo, que “o sujeito-objeto hegeliano é
sujeito” e que “o conceito especulativo hegeliano salva a mimese por meio da
autoconsciência do Espírito”. Pois no primeiro caso temos uma projeção irrefletida,
329 Idem
330 Como em O’CONNOR, Brian; Hegel, Adorno and the concept of mediation,
Bulletin of the Hegel Society of Great Britain (39/40):84-96.
331 ADORNO, Três estudos sobre Hegel
332 ADORNO, Palavras e sinais: modelos críticos II, Petrópolis: Vozes, 1995, p. 188
333 O que leva Adorno a afirmar que: “a construção do sujeito-objeto possui uma
duplicidade insondável. Ela não se contenta em falsificar ideologicamente o
objeto e em transformá-lo no ato livre do sujeito absoluto, mas também
reconhece no sujeito o elemento objetivo que se apresenta e com isso restringe
anti-ideologicamente o sujeito” (ADORNO, Dialética negativa, p. 290)
334 ADORNO, Palavras e sinais, op. cit., p. 184. Neste sentido, é correto dizer que
a dialética negativa nos remete a uma relação sujeito-objeto que se situa: “não
apenas para além de suas identidades, mas também para além de suas
diferenças” (RICARD, La dialectique de T.W.Adorno, Laval Théologique et
Philosophique, 55, 2 (junho, 1999), p. 271.
enquanto no segundo ainda temos uma projeção, mas submetida à dupla reflexão de
quem compreende a necessidade de internalizar o momento de resistência do objeto à
organização conceitual.
Neste sentido, lembremos como o pensamento mimético, para Adorno, não é
um modo de pensamento marcado pela crença na força cognitiva das relações de
semelhança e de analogia. A imitação própria ao pensamento mimético é,
principalmente, compreendida como a capacidade transitiva de se colocar em um
outro e como um outro. A mimese seria modo de superar a dicotomia entre eu e outro
(seja tal dicotomia construída na forma sujeito/objeto, conceito/não-conceitual ou
cultura/natureza) através da identificação com aquilo que me aparece como oposto.
Ela é, neste contexto, internalização das relações de oposição, transformação de um
limite externo em diferença interna. Não a mera imitação do objeto, mas a assimilação
de si pelo objeto. Por isto, Adorno descreverá a mimese como um regime de mediação
por meio dos extremos e nos próprios extremos 335. Mediação capaz de construir um
modelo de reconciliação que o filósofo chamará de “comunicação do diferenciado”.
Se Adorno afirma que o conceito especulativo hegeliano salva a mimese, o
que pressupõe a idéia de que a racionalidade mimética e a racionalidade conceitual
não tem entre si uma relação de negação simples, é porque afirmações como: “O Eu é
o conteúdo da relação e a relação mesma, defronta um Outro e ao mesmo tempo o
ultrapassa; e esse Outro, para o Eu, é apenas ele próprio” 336 não podem simplesmente
significar a submissão da relação sujeito-objeto à estrutura projetiva do sujeito. Se o
Eu é ao mesmo tempo a forma e o conteúdo da relação é porque algo da opacidade do
conteúdo à forma já é interno ao próprio Eu. Esta mediação por meio dos extremos da
forma e do conteúdo já é uma mediação interna ao Eu. O que implica internalização
da alteridade para o âmago do Eu337.
É assim que podemos ler uma afirmação como: “A consciência-de-si é a
reflexão, a partir do ser do mundo sensível e percebido; é essencialmente o retorno a
partir do ser-Outro”338. Podemos compreender tal passagem da consciência-de-si pela
alteridade do ser do mundo sensível percebido, com seu posterior retorno, levando em
conta como, na certeza sensível e na percepção, a consciência teve a experiência de
resistência do objeto às tentativas de aplicação do conceito à experiência. No próprio
campo da experiência, ela confrontou com algo que negava a aplicação do conceito à
experiência, tendo a experiência de uma diferença em relação ao conceito, uma
diferença vinda do objeto. Retornar de seu ser-Outro é assim internalizar tal diferença,
re-orientando não apenas as relações ao objeto, mas também as relações de identidade
no interior do si mesmo.
Tal reconhecimento de si no que há de opaco no objeto parece-me uma
operação central na estratégia hegeliana, já que ela nos leva ao capítulo final da
335 A respeito do conceito adorniano de mimese, tomo a liberdade de remeter ao
meu “Reconhecimento e dialética negativa”, In: SAFATLE, Vladimir; A paixão do
negativo: Lacan e a dialética, São Paulo: Unesp, 2006.
336 HEGEL, Fenomenologia, par. 166
337 Este modelo de reconciliação dialética foi bem compreendido por Zizek
quando afirma, explorando a via complementar, que a reconciliação deve ser
pensada como a duplicação de duas separações: “o sujeito tem de reconhecer em
sua alienação da substância a separação da substância consigo mesma. Essa
sobreposição [e o que se perdeu na lógica feuerbachiana-marxista da
desalienação na qual o sujeito supera sua alienação reconhecendo-se como o
agente ativo que pôs o que aparece para ele como seu pressuposto substancial”
(ZIZEK, Menos que nada, p.101). No entanto, Zizek não leva em conta como este
modelo é operativo na dialética negativa de Adorno.
338 HEGEL, Fenomenologia, par. 167
Fenomenologia. Neste momento central de reconciliação, Hegel apresenta um
julgamento infinito (unendlichen Urteil)339 capaz de produzir a síntese da dialética
entre sujeito e objeto. Trata-se da afirmação: “o ser do eu é uma coisa (das Sein des
Ich ein Ding ist); e precisamente uma coisa sensível e imediata (ein sinnliches
unmittelbares Ding)”. Desta afirmação, segue-se um comentário: “Este julgamento,
tomado assim como imediatamente soa, é carente-de-espírito, ou melhor, é a própria
carência-de-espírito”, pois se compreendemos a coisa sensível como uma predicação
simples do eu, então o eu desaparece na empiricidade da coisa – o predicado põe o
sujeito: “mas quanto ao seu conceito, é de fato o mais rico-de-espírito” 340. Trata-se de
afirmações de importância capital pois nos demonstram que, ao menos na
Fenomenologia, o término do trajeto especulativo só se dá com o julgamento: “o ser
do eu é uma coisa”. Aqui se realiza o reconhecimento de que: “a consciência de si é
justamente o conceito puro sendo-aí, logo empiricamente perceptível (empirisch
wahrnehmbare)"341. Mas se trata de uma modalidade de reconhecimento que só se
efetiva quando o sujeito encontra, em si mesmo e de maneira determinante, um núcleo
do objeto. Encontro que não é subsunção simples do objeto, mas insistência na
racionalidade do movimento do Espírito em integrar continuamente o que
inicialmente aparece como opaco às determinações de sentido. Tais colocações devem
ser levadas em conta para compreendermos melhor a processualidade própria à
totalidade hegeliana. Colocações que o próprio Adorno reconhece sua pertinência ao
afirmar:
Por mais que nada possa ser predicado de um particular sem determinidade e,
com isso, sem universalidade, o momento de algo particular, opaco, com o
qual essa predicação se relaciona e sobre o qual ela se apóia, não perece. Ele
se mantém em meio à constelação; senão a dialética acabaria por hipostasiar a
mediação sem conservar os momentos da imediaticidade, como aliás Hegel
perspicazmente o queria342.
339 Hegel definiu o julgamento infinito como uma relação entre termos sem
relação: “Ele deve ser um julgamento, conter uma relação entre sujeito e
predicado, mas tal relação, ao mesmo tempo, não pode ser” (HEGEL, Science de
la logique III, p. 123). No entanto: “o julgamento infinito, como infinito, seria a
realização da vida incluindo-se (erfassenden) a si mesmo” (HEGEL, PhG, p.233)
340 HEGEL, Fenomenologia II, p. 209.
341 HEGEL, Science de la logique III, op.cit, p. 307
342 ADORNO, Dialética negativa, p. 273
Dialética hegeliana, dialética marxista, dialética adorniana
Aula 12
Tempo histórico e tempo musical em Adorno
Esta é a última aula de nosso curso. Durante este semestre, procurei fornecer
chaves de leitura que poderiam nos orientar na recompreensão da experiência
dialética a partir de Hegel. Na verdade, este curso foi a tentativa de elaborar uma
questão simples apenas em aparência, a saber, em que as “dialéticas” que conhecemos
no começo do século XIX, em meados do século XIX e em meados do século XX
participam de uma partilha tensa e produtiva de uma mesma experiência de
pensamento? Em que tais dialéticas se aproximam, qual o sentido em insistir em tais
proximidades? Por que não seria melhor selar o diagnóstico da descontinuidade e do
distanciamento?
Tais perguntas foram colocadas já em nossa primeira aula a fim de permitir a
defesa de uma hipótese fundamental de trabalho. Ela insistia que a exploração de
linhas de continuidade entre dialética hegeliana, dialética marxista e dialética negativa
era possível porque a dialética hegeliana seria a dialética necessária para as
possibilidades históricas da experiência no início do século XIX, assim como a
dialética marxista o seria para o final do século XIX e a dialética adorniana o seria
para meados do século XX. Como uma ontologia cujo sistema de posições e
pressuposições modifica-se a partir de configurações históricas determinadas, sem
com isto modificar sua compreensão estrutural da processualidade contínua do
existente, ou seja, como “ontologia em situação”, a dialética reorienta-se
periodicamente em um movimento que leva em conta as transformações de suas
situações históricas. O que não poderia ser diferente para um pensamento que mesmo
nunca aceitando distinções estritas entre ontológico e ôntico, nunca abriu mão da
potencialidade crítica da verdade em relação ao campo de experiências entificado pelo
senso comum. A crítica se mede a partir das configurações historicamente
determinadas de bloqueio.
Neste sentido, falar em “ontologia em situação” equivaleria a falar de uma
ontologia que seja o campo de exposição do processo de crítica das próprias
categorias ontológicas produzidas por uma situação sócio-histórica, como ser,
essência, identidade, diferença, entre tantas outras. Por isto que podemos dizer, por
exemplo, sobre Hegel: “a lógica hegeliana é a ideia metódica, que se fundamenta, da
unidade entre crítica e apresentação da metafísica”343. Ou seja, ela é ao mesmo tempo
a apresentação de categorias da metafísica e a crítica de sua insuficiência. Uma
metafísica paradoxal que se realiza como crítica das categorias metafísicas ou, ainda,
como explicitação de significações em seu ponto de esgotamento. Vimos este ponto
através de um exemplo privilegiado, a saber, a maneira com que a dialética, de Hegel
a Adorno, auto-compreende-se como discurso de crítica à categoria fundamental da
ontologia: a categoria de ser.
No entanto, contrariamente ao que muitas vezes se defendeu, a dialética não é
apenas o movimento de dissolução das categorias da ontologia. Esta crítica que
organiza as categorias ontológicas a partir de seu esgotamento, de suas contradições
internas, ou seja, de sua incapacidade em abarcar o campo das experiências a respeito
343 THEUNISSEN, Michael; Sein und Schein: die kritische Funktion der Hegelschen
Logik, Frankfurt: Surhkamp, 1994, p. 16
das quais ela se propunha abarcar, não nos leva necessariamente a uma crítica geral da
ontologia. Ela nos leva, paradoxalmente, a uma certa ontologização da negatividade
da crítica, isto no sentido de compreender o movimento contínuo de dissolução da
estabilidade formal do sistema de ideias próprio a situações sócio-histórica
determinadas como sendo a própria manifestação das “formas gerais de movimento” a
respeito das quais fala Marx em seu reconhecimento de filiação a Hegel. Tal
movimento é, de certa forma, ontologizado, o que dá à dialética sua peculiar pulsação
entre ceticismo desenfreado e compreensão de suas dissoluções como processos
racionalmente orientados não em direção a um telos finalista, como muitas vezes se
afirmou, mas em direção a um modelo anti-predicativo de determinação que tentei
apresentar quando foi questão da discussão a respeito do conceito de sujeito em
Hegel, em Marx (através da noção de proletariado) e de Adorno. Ou seja, a
positividade da dialética nunca esteve ligado à orientações normativas
teleologicamente asseguradas, mas a compreensão da estrutura de processualidades
abertas.
Este modelo de leitura tem uma função importante para a interpretação do
pensamento de Theodor Adorno. Como vimos, não foram poucos os comentadores
que procuraram ver, na dialética negativa, uma certa forma de pensamento da aporia.
A leitura mais corrente vê a dialética negativa como uma certa forma de “amputação”
da dialética hegeliana. Como se a dialética negativa fosse uma dialética amputada do
momento positivo-racional de síntese. Amputação resultante, principalmente, da
pretensa liberação da negação determinada de sua função estruturadora no interior da
noção hegeliana de totalidade. Pois, em Hegel, a negação determinada seria, ao menos
segundo esta perspectiva, o movimento de constituição de relações entre conteúdos da
experiência tendo em vista a produção de uma totalidade acessível ao saber da
consciência. Ao passar de um conteúdo da experiência a outro através de negações
determinadas, compreendendo com isto que o resultado das negações não é a
anulação do conteúdo anterior mas a revelação de como ambos os conteúdos estavam
em profunda relação de interdependência, a consciência teria as condições de fazer a
experiência de como a determinação de um conteúdo só é completamente possível
através da atualização da rede de negações que o define. Ou seja, ela compreenderia o
verdadeiro sentido do adagio spinozista: Omni determinatio est negatio344. Tal
atualização da rede de negações que determinam conteúdos da experiência seria
exatamente o que Hegel compreenderia por posição da totalidade do saber. Uma
posição que, por sua vez, determinaria a negatividade como astúcia que visa mostrar o
caráter limitado dos momentos parciais da experiência, pois tais parcialidades seriam
superadas pelo desvelamento da funcionalidade de cada momento em uma visão
acessível do todo.
Já a dialética negativa adorniana, enquanto “prática ad hoc da negação
determinada”345, acabaria na aporia de uma crítica totalizante da razão incapaz de se
orientar a partir de um horizonte concreto de reconciliação, beirando assim o niilismo
desenfreado. Isto quando ela não for acusada de simplesmente não ser dialética. Basta
lembrarmos, a este respeito, do comentário de Robert Pippin: “ A ´dialética negativa´
344 Comentadores como Robert Brandom compreenderam claramente este ponto
mas, devido a uma apreensão não-dialética da negação determinada como
simples relação de oposição, eles tendem a ver, no força determinante da
negação hegeliana, apenas uma figura mais rebuscada da incompatibilidade
material (Ver BRANDOM, Robert; Tales of the mighty death, Harvard University
Press, 2002, p. 180)
345 HABERMAS. O discurso filosófico da modernidade, São Paulo: Martins Fontes,
2002, p. 183
simplesmente não é dialética, mas uma filosofia da finitude e uma demanda para o
reconhecimento de tal finitude. O ´não-idêntico´ desempenha um papel retórico
estranhamente semelhante à identificação kantiana da Ding an sich contra os
idealistas posteriores”346. A referência a Kant não é extemporânea porque,
aparentemente, seria possível ver a dialética transcendental como uma espécie de
dialética negativa, já que ela também é uma crítica da totalidade, mas através da
exposição das ilusões produzidas pelo uso transcendente das idéias transcendentais. O
que talvez nos explique porque esta leitura da dialética negativa como uma filosofia
da finitude de ares kantianos será encontrada em várias tradições de interpretação.
Lembremos, por exemplo, de Alain Badiou, para quem: “o que Adorno retém de Kant
é a irredutibilidade da experiência, a impossibilidade de dissolver a experiência na
pura atividade do conceito. Subsiste um elemento totalmente irredutível de limitação
passiva, exatamente como em Kant a passividade, que é a prática do sensível, é
irredutível”347.
No entanto, o que se desprende do texto adorniano é algo totalmente diferente.
Como deveria ser diferente o pensamento de alguém que afirma, claramente: “a
reflexão filosófica assegura-se do não-conceitual no conceito” 348, ou seja, ela integra o
não-conceitual como momento do desenvolvimento do conceito. Há de se notar, por
exemplo, que não existe conceito da dialética hegeliana que Adorno simplesmente
abandone. Totalidade, mediação, síntese, Espírito (compreendido em chave não-
metafísica como trabalho social): nenhum destes conceitos será objeto de uma
negação simples por parte de Adorno. Levando isto em conta, podemos dizer que a
dialética negativa de Adorno é o resultado não exatamente do abandono de certos
conceitos e processos da dialética hegeliana, ou ainda, da amputação desta. Na
verdade, a dialética negativa será o resultado de um conjunto de operações de
deslocamento no sistema de posições e pressuposições da dialética hegeliana. Isto
pode nos explicar esta peculiar operação na qual vemos todos os conceitos hegelianos
em operação na dialética adorniana, mas sem poder mais serem postos tais como eles
eram postos por Hegel, sem poder serem atualizado no interior das situações pensadas
por Hegel. Pois Adorno sabe que, em certas situações, pôr um conceito de maneira
direta é a melhor forma de anulá-lo. Deixá-lo em pressuposição é, às vezes, a melhor
maneira de reconstruir sua força crítica. Como ele dirá:
350 Idem
351 BADIOU, op. cit., p. 47
352 Como podemos ver, por exemplo, em RICOEUR, Paul; História, memória,
esquecimento,
da necessidade de realização do universal através da aceitação de uma teoria do fato
consumado. Para tanto, ele precisa passar por cima e não tirar as consequências da
idéia hegeliana de que, na história: “o interesse particular da paixão é inseparável da
ação geral”. Da mesma forma, ele não deve relevar o fato de uma filosofia da história
que simplesmente “despacharia tudo o que é individual”353 não poder dar tanto espaço
para a importância da ação individual de “grandes homens”, como vemos na filosofia
da história hegeliana, nem afirmar que o lado subjetivo das ações tem “um direito
infinito a ser satisfeito”. Defender a possibilidade de transmutação do individual no
interior da história não equivale a uma negação simples do indivíduo 354. O que nos
permite perguntar se as injunções de Adorno contra o destino do individual em Hegel
não estariam melhor adaptadas para descrever as interpretações feitas por Lukàcs do
mesmo problema. De toda forma, Adorno sabe que o conceito de Espírito do mundo
não pode ser negado de maneira simples:
Ela deve ser construída enquanto perspectiva crítica que permite nos livrarmos
da tendência a simplesmente confirmar a mera facticidade. Encontramos assim mais
uma vez o receio adorniano de uma reflexão sem recurso algum à totalidade se
transformar na afirmação positivista da ilusão do dado bruto. Por outro lado, a história
universal e, com isto, o Espírito do mundo devem ser negados a fim de salientar
como, até agora, a unidade entre os vários momentos históricos se deixa ler apenas
como aprofundamento progressivo dos mecanismos de dominação da natureza e, por
fim, de dominação da natureza interior. Isto leva Adorno a afirmar: “não há nenhuma
história universal que conduza do selvagem à humanidade. Mas há certamente uma
que conduza da atiradeira à bomba atômica”356. É certamente uma consciência desta
natureza que levará Adorno a definir o Espírito do mundo como catástrofe
permanente.
Mas há de se colocar alguns parênteses neste aparente niilismo para o qual a
universalidade do processo histórico seria apenas a perspectiva de denúncia de uma
falsa totalidade cada vez mais inexorável. A definição do Espírito do mundo como
catástrofe permanente pressupõe um sofrimento social advindo da consciência de algo
ainda não-realizado na história. Se os sujeitos não medissem a efetividade com a
promessa do que não se realizou, dificilmente a configuração do presente poderia ser
vivenciada como catastrófica. Neste sentido, a estratégia adorniana baseia-se na
pressuposição de uma experiência histórica em latência, que insiste como uma carta
não entregue. Notemos, a este respeito, que nem sempre o Espírito do mundo aparece
a Adorno como a consciência da catástrofe. Levemos a sério, por exemplo, a seguinte
afirmação:
Note-se aqui (e nisto não poderíamos ser mais hegelianos) que a história
universal, quando se realiza como expressão do Espírito do mundo, eleva os
indivíduos acima de si mesmos por abrir espaço a uma ação social que não é
meramente individual, mas promessa de realização de uma universalidade capaz de
fazer a institucionalização da liberdade avançar. O exemplo da Revolução Francesa
não poderia ser mais evidente neste sentido. Se assim for, então não devemos nos
perguntar se é lícito ou não pressupor, em Adorno, algo como o Espírito do mundo.
Ele precisa estar pressuposto para dar à crítica uma orientação normativa. Melhor
seria se perguntar porque toda tentativa atual de afirmá-lo só pode obscurecê-lo.
Neste ponto, Adorno age como que maprendeu claramente a lição de Freud,
referência maior para a antropologia filosófica que anima todas suas considerações
sobre a história universal desde o primeiro capítulo da Dialética do Esclarecimento.
Pois Freud nos lembra como o processo de desenvolvimento social e maturação
individual é pago com a constituição de um passado recalcado no qual encontramos as
marcas da brutalidade da dinâmica de racionalização social. Não é outro o tema geral
de O mal-estar na civilização. A incapacidade de rememorar tal passado, integrando-o
em um novo arranjo do presente, é fonte maior de patologia e sofrimento. Na verdade,
patologia de quem luta para não ouvir a pressão de uma vida racional que ainda não se
realizou, e que só pode se realizar se souber como integrar aquilo que ficou para trás
no processo de racionalização social.
Assim, a impossibilidade de afirmar a história como horizonte de realização
institucional progressiva da liberdade não aparece como expressão de alguma forma
de niilismo. Ela é condição para que o que ainda não encontrou espaço no interior de
uma história que impôs certa figura do humano e da humanidade, ou seja, que
constituiu uma antropologia determinada, possa ser reconhecido em sua potência de
transformação. É da astúcia do Espírito do mundo, reconstruído pela dialética
negativa, se voltar para o que ainda não tem história a fim permitir à história
continuar.
A reconciliação musical
Uma afirmação como esta demonstra, primeiro, que Adorno reconhece como a
totalidade em Hegel não se confunde com uma sistematicidade absoluta. Ele sabe que
o momento imediato não desaparece simplesmente na mediação, o que não poderia
ser diferente já que a relação entre o conceito e o não-conceitual é decisiva tanto no
conceito adorniana quanto no hegeliano de mediação. O que Adorno salienta outras
vezes, ao afirmar, por exemplo, que:
366idem, p. 314
367 Idem, p. 314
368 Idem, p. 319
369 ADORNO, Três estudos sobre Hegel
Segundo, trata-se de afirmar que tal concepção da totalidade poderia se
atualizar na experiência da forma musical. Experiência vinculada à maneira com que
o detalhe musical, em certas obras, não é apenas momento de uma relação de
contraste (do tipo antecedente/conseqüente), elemento na sequência inexorável de um
desenvolvimento motívico ou ainda momento de um pensamento serial alargado.
Neste sentido, apreender o detalhe musical como uma “unidade relativamente
plástica” significa procurar o motor de seu desenvolvimento dinâmico não na
submissão a um esquema (seja ele a noção de série ou às constantes formais da
linguagem musical tonal), mas no conflito irredutível do material com a forma.
Conflito que encontra sua forma primordial no estilo tardio de Beethoven.
Desta maneira, tudo se passa como se o pensamento se servisse da estética
para pensar aquilo que lhe é interditado em outras esferas da vida social. Através da
reflexão sobre a forma musical, problemas filosóficos de forte capacidade de indução
de transformações sociais, como a possibilidade de uma totalidade que não seja
simplesmente a afirmação autárquica do princípio de identidade, são recuperados. O
que não deve nos surpreender, já que:
Contra a comunidade
373 ROSEN, Charles; Beethoven’s piano sonatas, Yale University Press, 2002, p.
240