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Leia nesta edição

PÁGINA 02 | Editorial

A. Tema de capa

» Entrevistas

PÁGINA 06 | Leda Paulani: Poder e dinheiro. A flexibilidade do capital financeiro

PÁGINA 09 | Alvaro Bianchi: A crise financeira é a crônica de uma morte anunciada

PÁGINA 12 | Marcelo Carcanholo: A lógica hegemônica do capital fictício

PÁGINA 15 | Paulo Nakatani : “A crise financeira é só a manifestação da crise da sociedade capitalista”

PÁGINA 18 | Claus Magno Germer: O capitalismo ainda não morreu

PÁGINA 21 | Robert Kurz: O vexame da economia da bolha financeira é também o vexame da esquerda pós-moderna

B. Destaques da semana

» Teologia Pública

PÁGINA 29 | Carlos Mesters: A Palavra está presente em todos os setores da vida da Igreja

» Entrevista da Semana

PÁGINA 31 | Flávio Aguiar: “A literatura é um direito do cidadão, um usufruto peculiar”

» Destaques On-Line

PÁGINA 33 | Destaques On-Line

C. IHU em Revista

» Agenda de Eventos

» Perfil Popular

PÁGINA 37| Inês Raimunda Conor Bordori

» IHU Repórter

PÁGINA 38| Adriana Moré Pacheco

SÃO LEOPOLDO, 20 DE OUTUBRO DE 2008 | EDIÇÃO 278 3


4 SÃO LEOPOLDO, 20 DE OUTUBRO DE 2008 | EDIÇÃO 278
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Poder e dinheiro. A flexibilidade do capital financeiro
Para a economista Leda Paulani, o conceito marxista mais importante
para interpretar a atual crise financeira é o de capital fictício. O
crescimento desmedido não existiria se não existisse o capital fictício,
argumenta

Por Graziela Wolfart e Patricia Fachin

D
epois de tantas oscilações na economia mundial, chegou a hora de vislum-
brarmos o fim do capitalismo? Ou essa é apenas mais uma das acentuadas
crises que compõe o sistema financeiro internacional? Embora muitos mar-
xistas estimem que o capitalismo esteja em crise há quase meio século, a
economista da USP Leda Paulani afirma o contrário. Em entrevista concedida
por e-mail à IHU On-Line, a pesquisadora é enfática: “Creio que o reinado financeiro

Divulgação
ainda durará por um bom tempo, primeiro porque, por mais que a crise tenha debili-
tado essa poderosa riqueza financeira, ela ainda parece grande demais para deixar de
impor seus requerimentos ao andamento material do planeta”. Seguidora das idéias
de Karl Marx, Leda aponta para uma possibilidade futura: “Passaremos por um período
de maior regulação”. De qualquer modo, essas mudanças de posicionamento político e
econômico não vão conseguir acabar com a instabilidade econômica. “Se prevalecer,
como imagino que prevalecerá, o poder do capital financeiro, essas crises abissais con-
tinuarão no horizonte, porque o capital financeiro é extremamente flexível e pródigo
em invenções que escapam a qualquer regulação”, considera.
Leda Paulani é doutora em Teoria Econômica, pelo Instituto de Pesquisas Econômicas da
Universidade de São Paulo (USP). Obteve livre docência pela mesma universidade e é presi-
dente da Sociedade Brasileira de Economia Política, pesquisadora do Instituto de Pesquisas
Econômicas e professora da USP, além de ser autora de obras como Modernidade e discurso
econômico (São Paulo: Boitempo Editorial, 2005) e Brasil Delivery: servidão financeira e es-
tado de emergência econômico (São Paulo: Boitempo Editorial, 2008). Em outubro de 2007, a
professora esteve na Unisinos, participando do Ciclo de Estudos Fundamentos Antropológicos
da Economia, no qual apresentou o pensamento de Guy Debord (1931-1994), com a palestra
“A mercadoria como espetáculo”. Leda Paulani é autora do artigo “A (anti)filosofia de Karl
Marx”, publicado nos Cadernos IHU Idéias nº 41, de 2005.

IHU On-Line - É correto afirmar que a em crise desde meados dos anos 70 num ciclo de acumulação financeira.
crise financeira internacional é con- do século passado, porque desde en- Seja como for, o fato é que, pelo me-
seqüência da crise do capitalismo? tão as taxas médias de crescimento nos desde o início deste novo século,
Leda Paulani - Essa é uma questão declinaram em todo o planeta. Outros essa morosidade do sistema no que
polêmica, cuja resposta não podemos acreditam que há, desde pelos menos tange ao crescimento da riqueza real
dar aqui integralmente, pois o es- uma década antes disso, um problema parece ter sido substituída por uma
paço não é suficiente. O ponto mais não resolvido de sobreacumulação de velocidade maior, puxada fundamen-
polêmico é se o capitalismo está ou capital. Outros ainda acreditam que talmente pela decisão da China de
não em crise e se está desde quan- o capitalismo passa por ciclos sistê- passar a integrar o sistema capitalis-
do. Dentre os autores marxistas, al- micos de acumulação, ora real, ora ta. Nesse sentido, o terremoto finan-
guns julgam que o capitalismo está financeira, e que estaríamos agora ceiro que assistimos tem funcionado
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como desmancha-prazeres, de modo crescimento da riqueza real), implica
que se poderia dizer, ao contrário, a submissão da totalidade do sistema
que a crise do capitalismo (a que virá econômico aos imperativos da lógica
agora) é que é conseqüência da crise financeira da acumulação, o que ga-
financeira. Mas, como disse, essa uma rante a continuidade do crescimen-
questão muito complicada para ser to dessa mesma riqueza. Ora, esse
trabalhada aqui.
“O que Marx mostrou de crescimento desmesurado simples-
mente não existiria se não existisse o
IHU On-Line - Quais as lições de Marx
mais importante sobre capital fictício. Quando o dinheiro é
em relação ao livre mercado que emprestado para que se o receba de
podem nos ajudar a compreender a
o assim chamado ‘livre volta aumentado, numa data futura,
crise financeira atual? está implícita nessa transação a capa-
Leda Paulani - O que Marx mostrou
mercado’ é que ele cidade potencial que o dinheiro tem
de mais importante sobre o assim de se multiplicar. Essa capacidade é
chamado “livre mercado” é que ele
esconde por trás de sua “verdadeira”, se esse dinheiro for dar
esconde por trás de sua aparência de uma voltinha no mundo da produção
liberdade, igualdade e equilíbrio o
aparência de liberdade, de bens e serviços, mas cria capital
contrário disso. Ele põe a aparência fictício quando, por meio de uma sé-
de liberdade porque todos são juri-
igualdade e equilíbrio o rie de mecanismos, cuja explicação
dicamente iguais, proprietários de demandaria um espaço que não te-
mercadorias, e parecem livres para
contrário disso” mos, ele não percorre esse caminho. A
vender suas mercadorias a quem qui- crise que agora presenciamos tem em
serem e se quiserem e para comprar o seu bojo uma criação num grau inédi-
que quiserem, de quem quiserem e se to de capital fictício. Tudo seria mais
quiserem. Ele põe a igualdade porque simples se pudéssemos simplesmente
quando mostra que algo, uma bolsa, eliminar esse capital, digamos assim,
por exemplo, é igual a R$ 25,00, a “espúrio”, penalizando apenas quem
venda da bolsa parece uma transação res e devedores. Aquele que fornece contribuiu para sua disseminação,
justa, em que se trocou valor de um crédito é ao mesmo tempo o detentor conseguindo com isso colocar o siste-
tipo por valor de outro tipo. A apa- de uma forma especial de capital, ma de volta num curso menos fantas-
rência de equilíbrio vem da reitera- que Marx chama de capital portador magórico. Mas isso está longe de ser
ção das transações mercantis (com de juros, e que mais popularmente é simples, porque existem inúmeros fios
suas trocas iguais) no dia-a-dia dos chamado de capital financeiro. Marx nervosos ligando um sistema ao outro.
mercados, num movimento que pare- diz sobre o capital portador de juros O crédito para a produção e para o co-
ce poder repetir-se indefinidamente. que ele é a matriz de todas as formas mércio é o mais importante e o mais
Quando surgem crises da dimensão da aloucadas de capital. Quem acom- visível desses fios.
que agora vivemos, elas não combi- panhou o redemoinho vivido pelos
nam com essa aparência idílica e de- mercados financeiros do mundo nas IHU On-Line - A partir das teorias de
nunciam a complexidade e as relações últimas semanas não pode deixar de Marx, quais os rumos que podemos
contraditórias que constituem o siste- dar-lhe razão. imaginar para o mundo capitalista, a
ma capitalista. partir da crise financeira internacio-
IHU On-Line - Em que sentido o con- nal?
IHU On-Line - Qual a validade das ceito de “capital fictício” elaborado Leda Paulani - Esta pergunta está re-
definições de Marx para o crédito e por Marx contribui para esclarecer o lacionada à anterior sobre a crise do
o capital financeiro neste momento caráter da crise de agora? sistema capitalista e sua resposta de-
de crise mundial? Leda Paulani - Dentre todos os con- pende, em última instância, da forma
Leda Paulani - Crédito e Capital Fi- ceitos criados por Marx para dar con- como enxergamos o capitalismo hoje.
nanceiro condicionam-se mutuamen- ta da realidade capitalista, talvez Tem se falado muito que voltaremos
te. Quando o dinheiro serve não ape- não haja conceito mais importante a viver sob um capitalismo super re-
nas para comprar mercadorias (bens, para interpretar a crise atual do que gulado, como aquele vigente desde
serviços, força de trabalho, máquinas o de capital fictício. Muitos autores o fim da Segunda Guerra até meados
etc.), mas igualmente para pagar dívi- têm considerado que, pelo menos dos anos 1970, que o capital financei-
das (e também comprar honra, cons- desde o início dos anos 1980 do sé- ro perderá força, que o neoliberalis-
ciência, enfim tudo aquilo que seja culo passado, o capitalismo vive uma mo morreu etc. Não acredito muito
adaptável à forma preço), Marx diz nova etapa, cujo tom é dado pela fi- nessas previsões. Creio que o reinado
que ele se transforma em meio de pa- nanceirização. Essa financeirização, financeiro ainda durará por um bom
gamento geral, e se ele funciona as- produzida pelo crescimento desmesu- tempo, primeiro porque, por mais que
sim é porque já estão em cena credo- rado da riqueza financeira (frente ao a crise tenha debilitado essa poderosa

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riqueza financeira, ela ainda parece efetiva se estabeleça.
grande demais para deixar de impor
seus requerimentos ao andamento IHU On-Line - A senhora acredita
material do planeta. Segundo, porque que a atual crise irá suscitar uma
o que vivemos hoje é o resultado de renovação política mundial? Em
um longo processo de financeirização, “Quando surgem que sentido a senhora vislumbra
cujo desmonte não se dará assim do mudanças?
dia para a noite. Terceiro, porque, crises da dimensão da Leda Paulani - Uma verdadeira re-
e esse talvez seja o argumento mais novação política mundial só aconte-
forte, ninguém sabe para onde vai que agora vivemos, elas ceria se a crise permitisse uma re-
o sistema monetário internacional, organização dos trabalhadores e dos
e esse processo todo — a financeiri- não combinam com essa movimentos sociais de modo geral e
zação e sua crise — é resultado, en- planetário, num processo que per-
tre outras coisas, da (não) solução aparência idílica mitisse a construção de uma efetiva
encontrada para a desarticulação do resistência a esse “fascismo do ca-
sistema de Bretton Woods.1 e denunciam a pital” que experimentamos há pelo
menos um quarto de século. Infe-
IHU On-Line - A crise financeira complexidade e as lizmente, creio que estamos muito
internacional representa o fim de longe de um cenário como esse. Ao
um ciclo? Podemos aguardar uma relações contraditórias contrário, me parece que a crise vai
mudança na condução do sistema contribuir para vitaminar o discurso
financeiro internacional? que constituem o conservador (afinal, estamos numa
Leda Paulani - Se entendemos que a fi- situação de emergência!) e permi-
nanceirização configurou um ciclo e se sistema capitalista” tir a elevação do grau de exploração
ao mesmo tempo acreditamos que esta que possibilita, a um só tempo, en-
crise marca o fim do predomínio do ca- frentar a tendência congênita deste
pital financeiro, então estamos autoriza- tipo de capitalismo a sobreacumu-
dos a falar que esta crise marca o fim lar capital, e gerar a renda real que
de um ciclo. Se pensarmos, porém, que coloca sempre ao alcance da mão a
a economia mundial vinha finalmente possibilidade de tornar absolutamen-
retomando um crescimento menos anê- te concretos, assim que se queira, os
mico depois de décadas de resultados luxuosos desejos dos donos do capi-
IHU On-Line - Até que ponto a re-
pobres, então não dá para acreditar em tal fictício. Assim, se alguma mudan-
gulação do mercado proposta por
ciclo e teremos simplesmente que admi- ça houver será talvez uma perda re-
Marx e Keynes permitirá que o
tir que as estripulias financeiras destina- lativa de importância dos EUA, mas
mercado não se autodestrua?
das a aumentar mais e mais a riqueza e o nada que altere o âmago do sistema
Leda Paulani - Parece evidente que
poder do capital financeiro atropelaram capitalista e de sua reprodução tal
passaremos por um período de maior
o ciclo que vinha firmemente engatando como hoje se dá.
regulação, até porque isso acabará
a marcha da subida.
por se impor como exigência polí-
1 Conferência de Bretton Woods: nome com
que ficou conhecida a Conferência Monetária tica. Contudo, se prevalecer, como
Internacional, realizada em Bretton Woods, no imagino que prevalecerá, o poder
estado de New Hampshire, nos EUA, em julho do capital financeiro, essas crises Leia mais...
de 1944. A conferência de Bretton Woods, de-
finindo o sistema de gerenciamento econômi- abissais continuarão no horizonte, >> Confira outras entrevistas concedidas
co internacional, estabeleceu as regras para as porque o capital financeiro é ex- por Leda Paulani. Acesse nossa página eletrôni-
relações comerciais e financeiras entre os paí- ca www.unisinos.br/ihu
tremamente flexível e pródigo em
ses industrializados do mundo. Representantes
de 44 países participaram da conferência. Nela invenções que escapam a qualquer Entrevistas:
foi planejada a recuperação do comércio in- regulação. Além disso, não podemos * “Só uma crise de grandes proporções mudará o
ternacional depois da Segunda Guerra Mundial rumo do governo”. Revista IHU On-Line número
esquecer que vivemos uma fase do 125, de 29-11-2004, intitulada Política econômi-
e a expansão do comércio através da conces-
são de empréstimos e utilização de fundos. Os capitalismo em que o dinheiro e o ca. Nada mudou! Perdemos a oportunidade histó-
representantes dos países participantes con- poder estão muito próximos, parti- rica de mudá-la?;
cordaram em simplificar a transferência de di- * Lula. “Um governo muito amigo do capital pro-
cularmente por conta de ativos fi- dutivo e financeiro”. Notícias do Dia de 07-10-
nheiro entre as nações, de forma a reparar os
prejuízos da guerra e prevenir as depressões e nanceiros importantíssimos como os 2007;
o desemprego. Concordaram também em esta- títulos da dívida pública, cujo volu- * “O PAC não se constitui num projeto para a eco-
bilizar as moedas nacionais, de forma que um nomia do país”. Notícias do Dia de 29-02-2008;
me é hoje enorme em praticamente * “O discurso neoliberal continuará impassível a
país sempre soubesse o preço dos bens impor-
tados. A Conferência de Bretton Woods traçou todos os países. Passada a turbulên- desfiar os seus disparates”. Revista IHU On-Line
os planos do Fundo Monetário Internacional e cia e o temor, essa proximidade im- número 276, de 06-10-2008, intitulada A crise fi-
do Banco Mundial. (Nota da IHU On-Line) nanceira internacional. O retorno de Keynes.
pedirá que qualquer regulação mais

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A crise financeira é a crônica de uma morte anunciada
Para o professor Alvaro Bianchi, o único conselho que capitalistas e
liberais podem encontrar em O capital, de Marx, é que deixem de
ser capitalistas e liberais

Por Graziela Wolfart e Patricia Fachin

“A
obra de Marx, e principalmente O capital, tem por objeto as con-
tradições da sociedade capitalista e os limites postos ao capitalismo
por essas contradições. São estas contradições econômicas, sociais
e políticas as que provocam suas crises.” A análise é do professor Al-
varo Bianchi, do Departamento de Ciência Política da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp). Em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-
Line, ele lembra que “Marx nunca achou que o capitalismo encontraria calma e pacifi-
camente seu fim dando lugar a uma forma de sociabilidade que conseguisse expurgar as
crises. Mas as recorrentes crises do capitalismo revelam as tendências autodestrutivas
do próprio capitalismo. A escala dessa autodestruição não pode ser subestimada”. E
acrescenta: “O retorno de formas pré-capitalistas de trabalho, como o trabalho escravo
nas zonas agrícolas extrativistas, ou formas degradadas de salário, com a remuneração
por peça na moderna indústria, o aquecimento global e a invasão do Iraque são algumas
manifestações dessa autodestruição”. Professor do Departamento de Ciência Política
da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Alvaro Bianchi é diretor do Centro
de Estudos Marxistas (Cemarx) e secretário de redação da revista Outubro. É doutor em
Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas.

IHU On-Line - O que Marx enten- so, a ciência econômica deixou de ter transformações que o capitalismo
dia por “economia política vulgar”? como objetivo a investigação das con- neoliberal provocou na estrutura de
Como ela contribui para chegarmos tradições sociais e transformou-se em classes da sociedade brasileira?
à crise atual? uma apologética. Marx chamava essa Alvaro Bianchi - Nos últimos vinte
Alvaro Bianchi - Marx tinha em gran- ciência econômica pós-ricardiana de anos, tiveram lugar profundas trans-
de conta a economia política clássica “economia vulgar”. A principal carac- formações na estrutura de classes de
e considerava a obra de David Ricar- terística da economia vulgar é que nossa sociedade. Tais mudanças não
do1 o ápice da ciência econômica de ela insiste em fixar-se nas formas de atingiram apenas os trabalhadores
sua época. Mas, na medida em que o manifestação da mais-valia e da pro- como também a composição da bur-
conflito social tornou-se mais inten- dução capitalista, ao invés de analisar guesia. Comecemos por esta última.
1 David Ricardo (1772 - 1823): economista in- a verdadeira natureza destas. Desse Nas décadas de 1980 e 1990, teve lu-
glês, considerado um dos principais represen-
tantes da economia política clássica. Exerceu
modo, se, no capital produtor de ju- gar uma recomposição profunda da
uma grande influência tanto sobre os econo- ros, que é a forma do capital financei- economia nacional que reconfigurou
mistas neoclássicos, como sobre os economis- ro, este aparece (e destaco a palavra a burguesia. A indústria nacional, que
tas marxistas, o que revela sua importância
para o desenvolvimento da ciência econômica.
aparece) como fonte independente ganhou força nas décadas anteriores,
Os temas presentes em suas obras incluem a de valor, os economistas vulgares to- foi fortemente internacionalizada.
teoria do valor-trabalho, a teoria da distribui- mavam essa aparência como sua es- Fusões e aquisições tiveram lugar e
ção (as relações entre o lucro e os salários), o
comércio internacional, temas monetários. A
sência. Este erro, que já havia sido indústrias que simbolizavam o perí-
sua teoria das vantagens comparativas cons- denunciado por Marx em seus escritos odo anterior — por exemplo, Metal
titui a base essencial da teoria do comércio do começo dos anos 1860, pode aju- Leve, Cofap e Cobrasma — simples-
internacional. Demonstrou que duas nações
podem beneficiar-se do comércio livre, mesmo
dar a explicar a crise atual. mente deixaram de existir, dando
que uma nação seja menos eficiente na pro- lugar a empresas multinacionais em
dução de todos os tipos de bens do que o seu IHU On-Line - Quais as principais alguns casos. Ao mesmo tempo, os
parceiro comercial. (Nota da IHU On-Line)

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setores da indústria mais fortemente IHU On-Line - Por que hoje muitos
vinculados ao mercado internacional retomam Marx como o centro das
ganharam espaço. Houve, também, atenções no debate sobre a crise fi-
uma enorme expansão do setor finan- nanceira internacional?
ceiro e um importante crescimento Alvaro Bianchi - É como o romance
da agricultura e da pecuária vincu-
ladas à exportação. Tudo isso mudou
“Enquanto as de García Márquez:3 a crise financeira
é a crônica de uma morte anunciada.
profundamente a cara da burguesia
brasileira. Se antes era difícil falar
contradições imanentes Como disse, a obra de Marx é uma
investigação sobre as contradições e
de uma burguesia nacional, agora é
uma completa impropriedade. Do
ao sistema não forem os limites do capitalismo. Com base
nessa obra, os marxistas insistiram
lado da classe trabalhadora, ocorreu
uma intensa desregulamentação e
superadas, os limites muito nas últimas décadas que a li-
beralização e desregulamentação das
precarização do mercado de força de
trabalho com processos de terceiriza-
ao desenvolvimento da finanças, do comércio e da força de
trabalho tinham por objetivo superar
ção, externalização, deslocalização,
fragmentação, trabalho temporário
economia capitalista os entraves à acumulação do capital
que tinham levado ao esgotamento o
ou eventual. A relação salarial “ca-
nônica”, isto é, portadora de direitos
também não o serão modelo econômico do pós-guerra, as-
sentado nos acordos de Breton Woo-
sociais, tornou-se uma exceção à re-
gra da “contratualização”, ou seja,
definitivamente” ds. Acontece que, enquanto as con-
tradições imanentes ao sistema não
da multiplicação das formas contra- forem superadas, os limites ao desen-
tuais. A força de trabalho em alguns volvimento da economia capitalista
setores da indústria, como a metalúr- também não o serão definitivamente.
gica, diminuiu. Na verdade, durante Eles reaparecem logo à frente ainda
o governo FHC, a indústria brasileira maiores, mais perigosos e mais difí-
saiu correndo e comprou O capital,
perdeu mais de dois milhões de pos- ceis de transpor. Tomemos o caso que
de Marx, para compreender o que
tos de trabalho. Alguns mais apressa- está sendo discutido agora. A partir
ocorreria quando o capitalismo ruís-
dos chegaram até mesmo a falar do do final dos anos 1960, começou a fi-
se. A obra de Marx, e principalmente
fim do proletariado. Trata-se, a meu car claro que o capitalismo enfrenta-
O capital, tem por objeto as contradi-
ver, de um grande equívoco. Mas tam- va uma grave crise de superprodução.
ções da sociedade capitalista e os li-
bém é errado dizer que nada mudou. Um dos meios de superar essa crise
mites postos ao capitalismo por essas
A classe trabalhadora assumiu novas foi incentivar fortemente o consumo
contradições. São estas contradições
formas e cresceu numericamente em mediante uma expansão do capital
econômicas, sociais e políticas as que
setores como o de serviços. fictício (ações, títulos da dívida, de-
provocam suas crises. Uma compre-
  rivativos etc.) e do crédito. Isso per-
ensão apurada dessas contradições
IHU On-Line - Em que sentido Marx mitiu contornar os obstáculos à acu-
permitiria um conhecimento mais
pode ser visto como um caminho mulação, mas, como estamos vendo
aprofundado do desenvolvimento ca-
para entender a natureza do desen- agora, os novos obstáculos se revela-
pitalista. Mas a esse respeito é neces-
volvimento capitalista? ram ainda maiores. Aparentemente, o
sário um esclarecimento. Marx nunca
Alvaro Bianchi - Em  2005, Colin capital financeiro havia se tornado in-
achou que o capitalismo encontraria
Graham, da Merrill Lynch Investment dependente do processo de produção
calma e pacificamente seu fim dando
Management, aconselhou investido- de novos valores. Para Marx, assim
lugar a uma forma de sociabilidade
res que ouviam sua palestra a terem como para David Ricardo, era mais
que conseguisse expurgar as crises.
cautela com os hedge funds2 e contou fácil encontrar no trabalho o funda-
Mas as recorrentes crises do capita-
que, quando havia começado a traba- mento do valor. Hoje, a expansão dos
lismo revelam as tendências auto-
lhar na empresa, durante a crise nas mercados financeiros torna mais difí-
destrutivas do próprio capitalismo. A
bolsas de outubro de 1997, seu chefe cil encontrar essa essência por detrás
escala dessa autodestruição não pode
2 Hedge Funds, também conhecido como Fun- da aparência e a crise contemporânea
dos de Investimento Financeiro, foram criados ser subestimada. O retorno de formas
assume também a forma de uma crise
para propiciar uma redução do risco ineren- pré-capitalistas de trabalho, como o
te às aplicações no mercado financeiro. Esses da medida do valor. Os mercados são
fundos representam uma mobilidade de inves-
trabalho escravo nas zonas agrícolas
timento que reúne recursos de pessoas físicas extrativistas, ou formas degradadas 3 Gabriel García Márquez (1928): escritor
e jurídicas através de cotas, onde todos pos- de salário, com a remuneração por colombiano, autor de Crônica de uma morte
suem o objetivo de realizar um investimento anunciada (26. ed. Rio de Janeiro: Record,
em comum. Os recursos obtidos através desse
peça na moderna indústria, o aque- 2000). Sobre a obra do autor, confira a IHU
fundo são administrados por uma instituição cimento global e a invasão do Iraque On-Line n° 221 Cem anos de solidão. Reali-
financeira, e destinados à aplicação em Títu- são algumas manifestações dessa au- dade, fantasia e atualidade, disponível para
los e Valores Mobiliários, em cotas de outros donwload no sítio do IHU (www.unisinos.br/
fundos ou em títulos disponíveis no mercado
todestruição. ihu). (Nota da IHU On-Line)
financeiro. (Nota da IHU On-Line)  
10 SÃO LEOPOLDO, 20 DE OUTUBRO DE 2008 | EDIÇÃO 278
Hoje o espectro que ronda o mundo é
o da crise do capitalismo. Mas ainda
é cedo para saber se ele será capaz
de acordar seu parceiro, o fantasma
“Os mercados são incapazes de da revolução. Tem gente que já não
dorme direito pensando nisso.
dizer quanto os ativos realmente valem”  
IHU On-Line - Se Marx previu a natu-
reza da economia mundial no início
do século XXI, com base na análise
da “sociedade burguesa”, 150 anos
antes, que espécie de previsões po-
incapazes de dizer quanto os ativos Alvaro Bianchi - No Manifesto comu-
demos fazer para nossa economia a
realmente valem. Mas essa aparência nista, há uma descrição com cores
partir da sociedade que temos hoje,
só enganava os economistas vulgares, muito vivas do processo de afirmação
baseada em valores consumistas e
ou seja, aqueles que queriam ser en- e expansão do capitalismo em uma
na autonomia?
ganados. Certamente essa aparência escala mundial. Muitos já disseram
Alvaro Bianchi - Em  1999, o ultra-li-
não enganou os leitores mais atentos que Marx previu o fenômeno da glo-
beral Alan Greenspan,4 o chefe todo-
de O capital. balização econômica, e isso já se tor-
poderoso do Federal Reserve,5 anun-
  nou um daqueles lugares comuns que
ciou em depoimento ao Congresso dos
IHU On-Line - Qual o valor que os os liberais gostam de repetir. Na ver-
Estados Unidos, que teriam ido “para
capitalistas e liberais vêem nas te- dade, nesse texto, está explicitada a
além da história”, isto é, superado as
orias de Marx? Como entender esse tendência à internacionalização da
agruras dos ciclos econômicos e atin-
paradoxo? acumulação capitalista que se veri-
gido o crescimento perpétuo. Hoje,
Alvaro Bianchi - Na verdade, a maio- ficava já em seu próprio nascedouro,
ele é acusado pelo prêmio Nobel da
ria deles nunca leu O capital. O juízo com as grandes navegações e o em-
Economia, Paul Krugman,6 de ser co-
que costumam fazer da obra de Marx preendimento colonial nas Américas.
responsável pela atual crise. Para
costuma ser desinformado ou baseado O proletariado não tem pátria, se-
evitar justamente a apologética, os
em lugares comuns. Veja-se o tal eco- gundo o Manifesto, porque o capital
marxistas são muito cuidadosos, ou
nomista relatado por Colin Graham. também não tem. A reprodução am-
deveriam sê-lo, com as previsões. A
Marx nunca disse que o capitalismo pliada do capital tende a transgredir
única previsão que creio possível é a
ruiria sozinho devido a suas crises fronteiras a encontrar novas frentes
de que a dinâmica de crises continu-
econômicas. Se ele esperava encon- de expansão, a atingir os mais recôn-
ará e que os conflitos sociais se tor-
trar isso em O capital, e se de fato ditos lugares. O que o Manifesto não
narão mais intensos. A teoria de Marx
o leu, deve ter ficado decepcionado. disse e não poderia dizer é que essa
não permite (e não deseja) prever
Os mais esclarecidos, é verdade, pro- transgressão seria levada a cabo pelo
mais do que isso.
curam na obra de Marx uma análise capital financeiro. De fato, em outros
do desenvolvimento capitalista. Mas textos de Marx, é possível encontrar
a teoria que podem encontrar em menções à especulação financeira
O capital não é uma teoria do de- promovida pelos mercados acioná-
senvolvimento e sim uma teoria das rios. Mas são poucas passagens. Há,
contradições desse desenvolvimento. entretanto, um tema sobre o qual
O paradoxo é que essas contradições devemos prestar atenção. A mundia- 4 Alan Greenspan (1926): economista estadu-
não podem ser superadas sem que o lização do capital afirmada no Mani- nidense. Entre 1987 e 2006, atuou como pre-
sidente do Fed (Federal Reserve System) dos
próprio capitalismo seja superado. Ou festo é, também, a mundialização de Estados Unidos. Em Alan Greenspan: A era da
seja, o único conselho que capitalis- suas crises econômicas e políticas. O turbulência, lançado em 2007, o autor conta a
tas e liberais podem encontrar em O ano no qual esse texto foi publicado experiência de quase duas décadas frente ao
Fed, e analisa a economia global, propondo ru-
capital é que deixem de ser capitalis- já deu uma amostra do que estava mos para o futuro. (Nota da IHU On-Line)
tas e liberais. Mas não creio que este- por vir. A partir de fevereiro de 1848, 5 A Reserva Federal dos Estados Unidos da
jam dispostos a aceitá-lo. uma onda de revoluções propagou-se América (em inglês oficialmente Federal Re-
serve System, mas conhecida simplesmente
  pelo continente europeu com uma como Federal Reserve e informalmente como
IHU On-Line - Como relacionar o velocidade superior a dos meios de The Fed) é o banco central dos Estados Unidos
160° aniversário da publicação do comunicação. Essas revoluções fo- da América. (Nota da IHU On-Line)
6 Paul Krugman (1953): economista norte-
Manifesto comunista com uma crise ram precedidas pela crise econômica americano e professor de Economia e Assuntos
econômica internacional particular- que teve seu ápice em 1847. Embora Internacinais na Universidade de Princeton,
mente dramática, em um período de os comunistas fossem uma pequena Krugman, neokeynesiano, é considerado um
critico da Nova Economia. Ele acaba de re-
ultra-rápida globalização do livre- força política, o fantasma da revolu- ceber o prêmio Nobel de Economia de 2008.
mercado? ção andou assombrando muita gente. (Nota da IHU On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 20 DE OUTUBRO DE 2008 | EDIÇÃO 278 11


A lógica hegemônica do capital fictício
Segundo o economista Marcelo Carcanholo, a lógica do capital fictício
é tão hegemônica que até os trabalhadores se comportam como se
fossem proprietários de capital

Por Graziela Wolfart e Patricia Fachin

A
lém das especulações econômicas em torno da atual turbulência internacio-
nal, economistas de todo o mundo refletem sobre as possíveis mudanças no
capitalismo. “O que ocorrerá daqui para frente? O socialismo, rumo a uma
sociedade comunista?”, questiona Marcelo Carcanholo, da Universidade Fe-
deral Fluminense (UFF), em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Com pouca esperança, Carcanholo diz que não existem garantias de mudança. Para ele,

Divulgação
uma transformação no modelo econômico capitalista só vai ocorrer “se os seres huma-
nos se propuserem a isso, e se, de fato, esse projeto for historicamente exeqüível”. In-
dependente de uma interpretação marxista, aponta, “o período neoliberal manifestou
sua crise ideológica e política de forma aguda com esta crise financeira atual”. A única
alternativa para o capital, nesse momento, é contar com a atuação do Estado. “Isto
significa que o Estado arcaria com esses prejuízos, no sentido de que adquire esses tí-
tulos sem nenhuma liquidez (sem possibilidades de revenda em mercados secundários),
no final das contas, a custas do tesouro”, enfatiza. De qualquer modo, alternativas
como essa podem amenizar situações de crise, mas não são eficientes para combatê-las.
“Após um bom período de crescimento na acumulação do capital, esse tipo de ideário
acaba voltando, com uma ou outra roupagem”, assegura.
Professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e membro do Núcleo Inter-
disciplinar de Estudos e Pesquisas em Marx e marxismo (NIEP-UFF), Carcanholo é gra-
duado em Ciências Econômicas, pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em
Economia, pela UFF e doutor na mesma área, pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ). De suas obras, citamos A quem pertence o amanhã? Ensaios sobre o
neoliberalismo (São Paulo: Edições Loyola, 1997) e A vulnerabilidade econômica do
Brasil: abertura externa a partir dos anos 90 (Aparecida: Idéias & Letras, 2005).

IHU On-Line – Quais são as lições do as crises econômicas, manifestem- nham a transformar esse sistema social
marxismo para resolver uma situa- se estas da forma que for. Em outras — e nem os crescimentos da economia
ção de crise mundial, como a que se palavras, as crises não são anomalias são eternos. Qualquer perspectiva
apresenta no sistema financeiro? do sistema, mas partes integrantes de (que se diga) marxista que analise ins-
Marcelo Carcanholo - Em primeiro lu- sua lógica. O processo de acumulação trumentos de política econômica para
gar, do ponto de vista mais rigoroso, a de capital é cíclico, porque, para cada minorar os efeitos das crises está, no
obra de Marx — em especial, O capital, fase de crescimento na acumulação de fundo, propondo uma perspectiva mui-
que trata das leis gerais de funciona- capital, as contradições aprofundadas to mais keynesiana que marxista, pois,
mento do modo de produção capitalis- nessa fase levam, inexoravelmente, a para esta última, a política econômica
ta — não tem como objetivo construir crises, e estas, por sua vez, produzem para suavizar os movimentos cíclicos é
uma instrumentalização político-eco- conseqüências que permitirão uma uma questão menor, se é que se trata
nômica para resolver os momentos de nova fase de acumulação de capital. de uma questão.
crise da economia capitalista. Ao con- Dessa forma, nem o capitalismo aca- Em segundo lugar, o que o livro III
trário, o que se pretende é mostrar bará, por si só, em razão de uma crise de O capital mostra, dentre outras
como o processo de acumulação de econômica — ainda que esta possa ex- coisas, é que o desenvolvimento do
capital, e mais especificamente suas plicitar tanto as contradições do sis- capital fictício (que não pode ser con-
leis (de tendência) gerais, pressupõe tema que os seres humanos se propo-
12 SÃO LEOPOLDO, 20 DE OUTUBRO DE 2008 | EDIÇÃO 278
fundido com aquilo que Hilferding,1 sultado disso para os trabalhadores é tivamente fracionadas em seus interes-
em 1910, chamou de Capital Financei- o aprofundamento da atual lógica. O ses. O melhor exemplo disso foi depois
ro) potencializa o caráter dialético da que poderia mudar, lá adiante, é a ló- da crise cambial brasileira em 1999,
acumulação de capital, e, em momen- gica da apropriação dessa mais-valia quando a desvalorização do câmbio per-
tos de preponderância de sua funcio- produzida, com menor participação da mitiu atender os interesses da burguesia
nalidade, acelera o seu crescimento. lógica fictício-especulativa. Isso é me- agrário-exportadora, ao mesmo tempo
No entanto, pelas mesmas razões, nos ramente uma possibilidade, mas mes- em que, aliado ao ciclo de alta na liqui-
momentos de imposição de sua dis- mo aí o capitalismo tenderá a aprofun- dez internacional, essas maiores expor-
função, ele potencializa os efeitos da dar a exploração do trabalho. tações permitiam a entrada de divisas,
crise, podendo ser até o fator detona- o que atende os interesses meramente
dor dessa fase. Este é o momento que IHU On-Line - Quais as principais patrimonialistas do capital fictício-espe-
vivemos agora. transformações que o capitalismo culativo. Essa conjuntura unificou as três
neoliberal provocou na estrutura de frações de classe da burguesia brasilei-
IHU On-Line - Em que medida a regu- classes da sociedade brasileira? ra (agrário-exportadora, “financeira” e
lação das instituições financeiras po- Marcelo Carcanholo - Pelo fato de que “produtiva”). Tudo isso em pleno gover-
derá acalmar o mercado financeiro e o capitalismo neoliberal (contemporâ- no do Partido dos Trabalhadores, o que
proporcionar um novo rumo para o neo) corresponde ao domínio da lógica nos leva a outra questão.
capitalismo? Isso é possível? do capital fictício, meramente apropria- No capitalismo contemporâneo, a
Marcelo Carcanholo - Regulamenta- dor de mais-valia, sem produzi-la dire- lógica do capital fictício é tão hege-
Divulgação

ções que desincentivem as tomadas de mônica que até os trabalhadores pas-


posições mais especulativas de insti- sam a se comportar como se fossem
tuições financeiras podem diminuir a
instabilidade do sistema. Mas a lógica
“As principais empresas proprietários de capital. Isso ocorre
porque, quando os trabalhadores con-
que prevaleceu no capitalismo con-
temporâneo até agora foi justamente
‘produtivas’ da seguem poupar alguma parcela de
seus salários, do ponto de vista indivi-
a oposta: desregulamentação e flexibi-
lização de mercados. Do ponto de vis-
sociedade brasileira dual, aparece a questão: onde aplicar?
Entra-se exatamente no terreno do
ta do capital fictício, isso representa
um terreno construído para expansão
possuem, hoje em dia, capital fictício, de forma que os tra-
balhadores se sentem proprietários de
de sua lógica meramente de apropria-
ção de valor, sem contribuição direta
bancos e, portanto, um capital. Do ponto de vista das clas-
ses sociais, isso aprofunda também o
para a sua produção. Isso levou à crise
atual. Quais as suas conseqüências e o
atuam também com fracionamento de interesses dentro da
própria classe trabalhadora, algo já
seu tamanho? Isso é algo que só poderá
ser tratado com rigor a posteriori. É
uma lógica apontado pela reestruturação produti-
va neoliberal.
possível uma nova “fase de ouro” para
o capitalismo, com regulamentação
fictício-especulativa” IHU On-Line - Se Marx previu a natu-
do setor financeiro e participação do reza da economia mundial no início
Estado? Pode até ser, mas não antes do século XXI, com base na análise
que todas as conseqüências — extre- tamente, tende-se a acreditar que isso da “sociedade burguesa”, 150 anos
mamente maléficas para os seres hu- produziu um fracionamento determinís- antes, que espécie de previsões po-
manos — se explicitem, e, mesmo a tico na classe burguesa entre capitalis- demos fazer para nossa economia a
retomada da acumulação de capital, tas produtivos e capitalistas “financei- partir da sociedade que temos hoje,
dada a conjuntura atual, só será possí- ros”. Isto é um equívoco. De fato, esse baseada em valores consumistas e na
vel com um extremo aprofundamento fracionamento das formas do capital se autonomia?
da exploração do trabalho, a fim de aprofundou na atualidade, mas trata-se Marcelo Carcanholo - Sendo conse-
expandir a taxa de mais-valia. O re- ainda de conteúdo-capital, por mais que qüente com sua perspectiva teórico-
1 Rudolf Hilferding (1877-1941): economista se manifeste em outras formas. Isso, metodológica, Marx tratava a História
austríaco marxista e médico, foi líder da so-
cial-democracia alemã durante a República de
do ponto de vista social, nos permite como um processo aberto. Existem
Weimar. Proponente da leitura “econômica” de entender como mesmo os capitalistas leis de tendência em uma sociabili-
Karl Marx, foi um dos primeiros a seguir a teo- “produtivos” são também “financeiros”. dade que definem o leque de opções
ria do “capitalismo organizado”. Rebatendo a
teoria de Marx acerca da instabilidade e de um
As principais empresas “produtivas” da para o futuro, mas, dentro desse le-
eventual colapso do capitalismo, argumentava sociedade brasileira possuem, hoje em que, o rumo efetivo da época social
que a concentração do capital estaria cami- dia, bancos e, portanto, atuam também em questão possui uma determinação
nhando para a estabilização. Hilferding editou
publicações como Vorwärts, Die Freiheit e Die
com uma lógica fictício-especulativa. sociopolítica. Os seres humanos de-
Gesellschaft. Sua obra mais conhecida é Das Além do mais, distintos arranjos econô- cidirão, coletiva e conflituosamente
Finanzkapital (O capital financeiro). (Nota da micos podem unificar frações de classe (diferentes classes sociais), qual será
IHU On-Line)
que, por alguma razão, estivessem efe- o rumo efetivo. O que ocorrerá daqui

SÃO LEOPOLDO, 20 DE OUTUBRO DE 2008 | EDIÇÃO 278 13


para frente? O socialismo, rumo a uma o comunismo, não pode aprofundar a cos Centrais no mundo é a de, por vá-
sociedade comunista? Não há nenhu- lógica mercantil, ainda que pequenos rios instrumentos, sancionar/ratificar
ma garantia disso. Só ocorrerá se os espaços onde se troquem fortuitamen- esse excesso de demanda, mas o que
seres humanos se propuserem a isso, e te coisas possam existir, mas não como até agora se viu é que essas tentativas
se, de fato, esse projeto for historica- norma de sociabilidade. não tiveram sucesso. Isso significa que
mente exeqüível. Uma nova forma de o excesso de demanda será precifica-
manifestação histórica do capitalismo? IHU On-Line - Baseados em Marx, po- do, isto é, as taxas internacionais de
Pode ser. Mas, se assim for, continu- demos afirmar que o neoliberalismo juros subirão, o que reduzirá o fluxo de
arão imperando as leis gerais de seu se aproxima do fim? capitais para a economia brasileira, ao
funcionamento. As crises cíclicas den- Marcelo Carcanholo - Independente mesmo tempo em que obrigará a ele-
tre elas, mas existe outra mais trágica de uma interpretação marxista, pare- vação das taxas internas de juros. Por
para o destino da humanidade: a acu- ce que o período neoliberal manifestou outro lado, a recessão mundial freará
mulação de capital desenfreada com a sua crise ideológica e política de forma o crescimento de nossas exportações,
utilização de recursos naturais e pro- aguda com esta crise financeira atual. reduzindo os preços das commodities
dutivos que isso requer, sem nenhuma Isso por uma razão muito simples. A e a demanda pelos nossos produtos.
preocupação com a sua renovação e única “saída” para o capital é contar Os dois efeitos, em conjunto, signifi-
sustentabilidade. O fim disso é facil- com a atuação incisiva e decisiva do cam que os problemas estruturais da
mente antevisto. Estado na monetização de grande par- economia brasileira em suas contas
te dos créditos podres explicitados na externas voltarão a se explicitar, após
IHU On-Line - Você considera razoá- crise. Isto significa que o Estado arca- uma fase meramente conjuntural (em
vel a previsão de Marx de que o ca- ria com esses prejuízos, no sentido de razão do cenário externo), de relativo
pitalismo seria substituído por um que adquire esses títulos sem nenhu- alívio. A restrição estrutural ao cresci-
sistema administrado ou planejado ma liquidez (sem possibilidades de re- mento em função do estrangulamento
socialmente? Há elementos de mer- venda em mercados secundários), no externo voltará com toda sua força.
cado que poderiam sobreviver em final das contas, a custas do tesouro.
algum sistema pós-capitalista? Em um contexto como esse, fica difícil IHU On-Line - O senhor acredita que
Marcelo Carcanholo - Marx não fez sustentar qualquer aporia (neo)liberal. a atual crise irá suscitar uma renova-
nenhuma previsão sobre a inexora- Entretanto, é preciso lembrar que isso ção política mundial? Em que sentido
bilidade do socialismo/comunismo. já aconteceu antes. O que a História o senhor vislumbra mudanças?
Quando ele falou em necessidade de nos mostra é que, após um bom pe- Marcelo Carcanholo - É possível, mas,
transformação social, queria dizer ríodo de crescimento na acumulação mais uma vez, meramente possível.
que, se o ser humano não implemen- do capital, esse tipo de ideário acaba O que está em jogo neste momento
tar uma transformação emancipatória voltando, com uma ou outra roupa- é a capacidade da economia norte-
na sua sociabilidade, todos os proble- gem. Isso se deve ao fato da ideologia americana exercer sua hegemonia
mas de alienação, subordinação à ló- (neo)liberal explicitar de forma mais através de sua moeda como medida
gica do capital, exploração etc. con- clara a defesa e propaganda da lógica internacional dos valores, como di-
tinuariam. Portanto, a transformação da economia mercantil-capitalista. nheiro mundial. A crise financeira
social era uma necessidade para uma atual, sob a lógica do capital fictício,
afirmação do ser humano (social) para IHU On-Line - Como o senhor avalia poderá significar uma brutal desva-
si; ali começaria, de fato, a sua histó- a economia brasileira, a partir do lorização, em dólar, dos ativos que
ria. Se essa época social fosse possível sentimento ufanista de crescimento o compõe. Dependendo do tamanho
e obtida, a condição necessária para econômico? Quais os riscos do Brasil dessa desvalorização, o dólar pode
que ela se apresentasse (com o nome ser atingido pela turbulência inter- ser questionado como padrão mone-
que seja, socialismo, comunismo...) nacional? tário internacional. Entretanto, se as
era a de que as relações entre os se- Marcelo Carcanholo - Independente taxas de juros americanas subirem,
res humanos fossem imediatamente de qualquer coloração teórico-ideoló- refletindo a enorme falta de crédito
sociais, e não intermediadas, seja por gica, há consenso entre os interpretes em seu mercado, os capitais interna-
produtos do trabalho (mercadorias que a economia brasileira não ficará cionais podem fluir novamente para
transacionadas no mercado) e/ou por imune — ao contrário do que pensou a economia americana provocando o
uma instância externa que definisse de inicialmente nosso presidente — aos efeito inverso; uma tendência de va-
antemão o que, como, quanto e para impactos da crise financeira. Isso, ba- lorização do dólar. Quanto mais para
quem se produz. Sendo assim, uma so- sicamente, por duas razões. Do ponto um lado, como para outro, dependerá
ciedade emancipada que viva sob a ló- de vista do ciclo de liquidez internacio- da capacidade que a economia ameri-
gica da sociabilidade mercantil (onde nal, entramos agora na fase de descen- cana tiver de atender a demanda por
as relações sociais estão subordinadas so, ou seja, há escassez no mercado de liquidez e, portanto, dessa demanda
ao movimento das mercadorias) é uma crédito internacional, pois existe uma não ser precificada em elevação de
contradição insuperável. O socialismo, crescente demanda por financiamento seus juros e os conseqüentes impac-
para ser uma fase de transição para dos ativos podres. A tentativa dos Ban- tos cambiais.

14 SÃO LEOPOLDO, 20 DE OUTUBRO DE 2008 | EDIÇÃO 278


“A crise financeira é só a manifestação da crise
da sociedade capitalista”
Para o economista Paulo Nakatani, a crise financeira só ocupou
o centro das atenções porque está levando à falência muitos
capitalistas

Por Graziela Wolfart e Patricia Fachin

“O
s escritos de Marx nos permitem entender que o desenvolvimento
capitalista é o caminho para a destruição da própria humanida-
de”, assegura Paulo Nakatani, economista e presidente da Socie-
dade Brasileira de Economia Política (SEP). Na entrevista que se-
gue, concedida por e-mail à IHU On-Line, ele afirma que a atual
crise pode gerar conseqüências ainda mais negativas, principalmente para o mundo do
trabalho. No contexto em que aparentemente há uma redução das desigualdades sociais
e da miséria, a precarização do trabalho tende a aumentar com “a elevação da taxa de
exploração do trabalho pela maior intensidade do trabalho, a super-exploração de tra-
balhadores da periferia do sistema pela deslocalização das firmas e pelo aumento da ex-
tensão da jornada de trabalho”, aponta o pesquisador. Além de estar “em guerra quase
permanentemente em algum lugar do planeta, há décadas”, a crise do capitalismo ainda
vai “destruir ferozmente uma massa gigantesca de recursos naturais”, afirma.
Formado em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Nakatani
cursou mestrado na Université de Paris X, doutorado na Université de Picardie e pós-doutora-
do na Université de Paris XIII. Membro do conselho editorial da Revista de Economia Critica,
Nakatani também é professor da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). O pesqui-
sador é responsável pela organização do livro Crise ou regulação. Ensaios sobre a teoria da q
regulação (Vitória: Editora da Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 1994).

IHU On-Line - Por que hoje muitos fora do modo de produção capitalista. venção e agravando ainda mais a crise
retomam Marx como o centro das do capital.
atenções no debate sobre a crise fi- Clássicos econômicos ainda podem Os keynesianos e pós-keynesianos
nanceira internacional? Em que sen- explicar as crise? acreditam, em maior ou menor grau,
tido as teorias marxistas contribuem que o capitalismo pode ser regulado
para compreendermos a crise no sis- Um dos fundamentos da teoria neo- pelas intervenções do Estado. O prin-
tema financeiro? clássica é o equilíbrio. Portanto, não cipal equívoco deles, nesse caso, é
Paulo Nakatani – Como nenhuma das pode haver crise, a não ser por fato- que eles consideram que o Estado e
correntes da teoria econômica burgue- res externos. Quer dizer, a “culpa” é o Mercado são instituições distintas e
sa tem resposta para as crises econômi- sempre dos outros, nunca do capital. que uma pode intervir ou interferir na
cas ou suas respostas são insuficientes, São estes economistas, naturalmente outra. Ao contrário das teorias marxis-
alguns economistas e cientistas sociais junto com políticos no poder, esco- tas do Estado, nas quais a sociedade
tentam encontrar em Marx respostas las, meios de comunicação etc. que capitalista é uma totalidade contradi-
para a crise financeira atual. Outros o capitanearam as idéias, proposições tória em sua própria natureza.
fazem por oportunismo. O que chamo e políticas econômicas chamadas de Em síntese, a busca ou o retorno a
de teoria econômica burguesa é cons- neoliberais que nos conduziram à situ- Marx é a necessidade que alguns têm
tituída por todas as correntes deriva- ação atual. Eles estão incrustados em de compreender a natureza da crise.
das do neoclassicismo e inclusive os todos os níveis e esferas da economia Isso porque Marx demonstrou há mais
keynesianos e pós-keynesianos. Todas e do Estado, defendendo essas idéias, de um século que o capitalismo é uma
elas defendem o capitalismo e não vis- sugerindo as atuais medidas de inter- forma de organização da sociedade
lumbram nenhuma saída para a crise que traz em si mesma as crises peri-
SÃO LEOPOLDO, 20 DE OUTUBRO DE 2008 | EDIÇÃO 278 15
ódicas. Ou seja, a crise faz parte do de trabalho, um retorno aos séculos
modo de existência da sociedade e do
modo de produção capitalista.
“Antes desse pico de XVIII e XIX, com toda a propalada ide-
ologia da economia do conhecimento,
Além disso, Marx é o teórico que
estabeleceu os fundamentos que con-
desvalorização do das novas tecnologias, das tecnologias
de informação e comunicação etc.
sidero mais adequados para a com-
preensão das crises financeiras, infe-
capital fictício nas IHU On-Line - Em que sentido Marx
nos ajuda a entender as profundas
lizmente no livro III de O capital, que
poucos marxistas leram com atenção.
bolsas, os ministros do contradições do mundo atual no que
se refere às crises econômicas e
Nessa parte de O capital, ele desvenda
todos os mecanismos da esfera finan-
trabalho da União mundo do trabalho?
Paulo Nakatani – Para Marx, as crises
ceira e como a expansão dessa esfera
produz os fundamentos de uma crise
Européia já haviam capitalistas decorrem do excesso de
financeira capitalista. Naturalmente,
em razão das condições do desenvolvi-
decidido implementar produção, ao contrário das crises pré-
capitalistas, quando ocorriam devido
mento do capitalismo no século XIX, há
ainda muita coisa a desenvolver a par-
em seus respectivos às insuficiências na produção. Em úl-
tima instância, a crise capitalista é o
tir dos fundamentos teóricos que Marx
apresentou. A categoria teórica funda-
países uma jornada de resultado do excesso de produção de
capital e de bens de consumo. Assim,
mental é a do capital fictício, presen-
te nos dias de hoje na gigantesca dí-
trabalho de até 65 mesmo que haja milhões de pessoas
morrendo de fome, há superprodu-
vida pública, no enorme crescimento
do valor acionário das empresas e no
horas semanais” ção, porque as pessoas não dispõem
de renda para comprar. Paralelamen-
monumental volume de crédito criado te, o excesso de capital acumulado,
pelas instituições financeiras. não encontrando espaços de acumu-
é restrito a apenas 20% da população lação na esfera real, onde se produz
IHU On-Line - Em que sentido Marx mundial. mercadorias para atender as neces-
pode ser visto como um caminho sidades humanas, dirige-se à esfera
para entender a natureza do desen- IHU On-Line – A crise atual pode alte- financeira. Essa, parafraseando Marx,
volvimento capitalista? rar o valor trabalho? aparentemente “cria dinheiro como
Paulo Nakatani – Para Marx, o desen- Paulo Nakatani – A crise atual não al- uma pereira produz peras”. Só que o
volvimento capitalista é o desenvolvi- tera em nada a teoria do valor traba- dinheiro no capitalismo contemporâ-
mento da sua contradição fundamen- lho. A riqueza capitalista continua sen- neo é muito mais complexo do que na
tal entre as forças produtivas e das do, e continuará enquanto o modo de época de Marx, mas ele já havia avan-
relações de produção. Vivemos hoje produção capitalista for dominante, çado no livro III de O capital todos os
uma época em que as forças produti- baseada na exploração do trabalho. O elementos para sua compreensão. O
vas desenvolvidas pelo capital permiti- que a crise pode alterar, como ocorreu dinheiro hoje é dinheiro de crédito e
riam a supressão da miséria, da fome, nas crises anteriores, é a elevação da como crédito é, em sua essência, ca-
das desigualdades etc. Mas as relações taxa de exploração do trabalho pela pital portador de juros.
capitalistas de produção, ou seja, a maior intensidade do trabalho, a su- Em relação ao chamado “mundo
apropriação privada da riqueza pro- per-exploração de trabalhadores da do trabalho”, não é exatamente uma
duzida impede a organização de uma periferia do sistema pela deslocaliza- categoria marxista. Pode-se dizer que
forma de sociedade mais eqüitativa e ção das firmas e pelo aumento da ex- é uma expressão criada pela corrente
igualitária. É exatamente essa contra- tensão da jornada de trabalho. Junto pós-moderna para escapar da cate-
dição, entre produção e apropriação a isso, podemos acrescentar a precari- goria proletariado, que acabou sendo
da riqueza que está se manifestando zação do trabalho. Por exemplo, antes adotada por muito marxistas e costu-
através da crise financeira. desse pico de desvalorização do capi- mamos utilizá-la correntemente. Essa
Além disso, o desenvolvimento do tal fictício nas bolsas, os ministros do é uma discussão mais complexa, na
modo de produção capitalista é ex- trabalho da União Européia já haviam qual o ponto principal é a perda do
tremamente predador tanto da força decidido implementar em seus respec- proletariado em seu papel de princi-
de trabalho quanto da natureza. Os tivos países uma jornada de trabalho pal protagonista na luta de classes e
escritos de Marx nos permitem enten- de até 65 horas semanais. Isso é um da revolução.
der que o desenvolvimento capitalis- indicador de que o que Marx definiu O que posso dizer, nesse curto es-
ta é o caminho para a destruição da como aumento da taxa de exploração paço, é que o trabalho sempre foi e
própria humanidade. Por exemplo, o através da mais-valia relativa está en- continua sendo uma categoria funda-
padrão de consumo atual, criado pelo contrando alguns limites e, portanto, mental do marxismo e da realidade da
capital, é inviável no longo prazo. Ele é necessário aumentá-la através da exploração capitalista. As mudanças
só é possível nos dias de hoje, porque forma absoluta de exploração da força ocorridas na esfera da produção com a

16 SÃO LEOPOLDO, 20 DE OUTUBRO DE 2008 | EDIÇÃO 278


introdução de novas máquinas, coman- real e novas pressões inflacionárias. seus colegas de trabalho, permitindo
dadas por computador, e novas formas Um aspecto positivo é que a queda no aos capitalistas suprimirem as funções
de organização do trabalho, não mu- índice da bolsa está desvalorizando os de vigia e controle da produção, como
daram significativamente as relações ativos financeiros dos capitalistas es- ocorria no período dominado pela or-
entre capital e trabalho e a explora- trangeiros que possuíam mais de US$ ganização fordista/taylorista.
ção dos trabalhadores. O que aconte- 230 bilhões em carteira na BMF-BO- Assim, sua manifestação concreta
ceu é que essas transformações ocor- VESPA no final de agosto. atual aparece muito mais complexa e
ridas na esfera produtiva aumentaram Além disso, as indústrias brasileiras diversificada. Por isso, o projeto neo-
aceleradamente a taxa de exploração que dependem de insumos importados liberal conseguiu dividir cada vez mais
da força de trabalho, precarizaram já programaram férias coletivas para a classe trabalhadora, na qual cada
o trabalho produtivo e ampliaram as seus operários, os produtos importa- fração acaba enfrentando outra, bene-
atividades além do que era realizado dos já aumentaram de preço, e todas ficiando ao capital em detrimento dos
pelos operários industriais. Esses fo- as estimativas apontam para uma que- trabalhadores. Por essas razões, qual-
ram freqüentemente confundidos com da no crescimento do PIB. quer projeção sobre o futuro é muito
o proletariado, ou seja, esta categoria No curto prazo, não deverá ocor- arriscada. Eu espero que as condições
é muito mais ampla do que a do ope- rer nenhuma grande transformação, e objetivas permitam que os movimen-
rariado industrial. como sempre os trabalhadores serão tos sociais e os partidos revolucionários
os mais penalizados na medida em que avancem na luta de classes e conduzam
IHU On-Line - A crise financeira inter- as perdas dos capitalistas serão pagas a uma transformação revolucionária da
nacional já atingiu a economia real? pelos trabalhadores, através do Esta- sociedade brasileira.
Que transformações podem ocorrer do, como está ocorrendo nos países do
na economia brasileira caso a crise centro do capitalismo. A política eco- IHU On-Line - Em que medida a in-
persista? nômica do governo Lula privilegia há terferência do Estado pode evitar
Paulo Nakatani – A crise financeira é só muito tempo os capitalistas e especu- colapsos como este que está abalan-
a manifestação da crise da sociedade ladores internacionais e não deve ser do o sistema financeiro?
capitalista. Ela só ocupou o centro das agora que irá ser mudada. Paulo Nakatani – O ponto de vista dos
atenções porque está destruindo vo- No longo prazo, não é possível ter reformistas e sociais democratas é que
razmente uma massa enorme de capi- nenhuma avaliação. Tudo vai depen- é possível que o Estado possa regular
tal fictício e levando à falência muitos der do desenrolar da crise e do papel o capital e transformar o capitalismo
capitalistas. dos movimentos sociais. Refiro-me aos em uma sociedade menos desigual e
A crise do capitalismo já está pre- movimentos sociais porque os maiores mais justa. Do ponto de vista do mar-
sente na esfera real há muito tempo. e principais partidos de esquerda no xismo, isso não é possível. Somente
Ela já produziu bilhões de seres huma- Brasil abandonaram a luta pelo socia- uma revolução poderá fundar as bases
nos que devem viver abaixo da linha lismo e aderiram de uma forma ou de para a construção de uma nova forma
da pobreza e da miséria, destruiu fe- outra à ideologia neoliberal. Isso não de sociedade mais justa, igualitária e
rozmente uma massa gigantesca de re- exclui a possibilidade de algum par- solidária.
cursos naturais e está em guerra quase tido, ainda pequeno, possa assumir a A intervenção do Estado tem como
permanente, em algum lugar do pla- liderança e fazer avançar a luta pelo limite as leis próprias à acumulação do
neta, há décadas. socialismo. capital. Assim, o Estado não pode su-
primir as crises do capital, mas pode
Risco Brasil IHU On-Line - Quais as principais acelerar ou amenizar seus efeitos es-
transformações que o capitalismo tendendo-a no tempo. Mais ainda, o
Em termos mais específicos, a cri- neoliberal provocou na estrutura de desenvolvimento das contradições in-
se financeira já atingiu a produção e o classes da sociedade brasileira? Que ternas do próprio capital não permite
emprego tanto na Europa quanto nos projeções podemos vislumbrar para mais que a ação do Estado possa vir a
Estados Unidos e Japão. Ou seja, o de- o futuro, levando em consideração o gerar um novo ciclo virtuoso de expan-
semprego está crescendo e a produção atual momento financeiro? são da economia mundial. O que ainda
diminuindo. O mesmo está ocorrendo Paulo Nakatani – A estrutura de classes pode ocorrer são períodos de expan-
no Brasil, com um agravante que é a não foi fundamentalmente modificada são limitados no tempo e em algumas
pressão sobre a inflação decorrente pelo neoliberalismo. As novas tecnolo- regiões particulares. É o que alguns
da acelerada desvalorização cambial gias e formas de organização da pro- autores, como Samir Amin1 e Jorge
ocorrida entre setembro e outubro. dução foram muito mais importantes 1 Samir Amin (1931): economista egípcio neo-
Caso ela continue dessa forma por para as modificações no seio dos tra- marxisita. Realizou estudos sobre política, es-
balhadores assalariados. As técnicas tatística e economia, em Paris. Entre 1960 e
mais tempo, a vulnerabilidade externa 1963, atuou como conselheiro do governo de
tenderá a crescer e as reservas inter- de organização da produção introdu- Mali, e em 1970 foi diretor do Instituto Africano
nacionais não serão suficientes para zidas desde os anos 1970 transferiram de Desenvolvimento Econômico e Planejamen-
para o próprio trabalhador a tarefa to, em Dakar, Senegal. Atualmente, é diretor
evitar uma maior desvalorização do do Fórum do Terceiro Mundo, uma associação
de controlar e vigiar a si próprio e a internacional formada por intelectuais da Áfri-

SÃO LEOPOLDO, 20 DE OUTUBRO DE 2008 | EDIÇÃO 278 17


Beinstein,2 chamaram de fase de seni-
lidade do capitalismo.
O capitalismo ainda não morreu
IHU On-Line - O senhor acredita que
a atual crise irá suscitar uma reno-
vação política mundial? Em que sen- Para o economista Claus Magno Germer, o atual momento de
tido o senhor vislumbra mudanças? crise representa apenas uma certeza: a continuidade da bar-
Paulo Nakatani – Eu não acredito em bárie capitalista
qualquer mudança significativa nessas
elites políticas e econômicas, nem
vislumbro nenhuma mudança em suas Por Graziela Wolfart e Patricia Fachin
políticas, projetos, propostas e solu-

“A
ções. Eles têm necessariamente que
agir em função das necessidades de s crises não constituem anomalias do capitalismo, mas
reprodução do capital. Além disso, as são uma das suas características mais fundamentais”,
condições objetivas da crise capita- diz o economista Claus Magno Germer, da Universida-
lista exigem que eles se mantenham de Federal do Paraná (UFPR), em entrevista concedida
como são, pois as tentativas de refor- por e-mail para a IHU On-Line. Seguindo a orientação
ma do capital encontram suas barrei-
marxista, ele lembra que o economista alemão Karl Marx já advertia: “As
ras na própria crise do capital.
crises financeiras não podem ser evitadas, embora possam ser atenuadas,
Segundo Marx, os processos históri-
cos não ocorrem de forma espontânea e ou acentuadas, em certa medida, pelo Estado”. Segundo Germer, a crise
em uma seqüência definida, como mui- financeira em curso é prova concreta dos ensinamentos de Marx, a respei-
tos acreditavam. A construção de uma to da impossibilidade de reverter quadros como o apresentado no decorrer
nova sociedade só pode ocorrer quando dos últimos meses. Mesmo com a adoção de inúmeras medidas para conter
a classe trabalhadora assumir a tarefa colapsos financeiros, explica, “as crises sucedem-se porque fazem parte da
de efetuar essa construção. Os cami- natureza do capitalismo, e são por esta razão inevitáveis”. Marx dizia ainda
nhos desse processo não estão pré-de- “que medidas que se destinam a atenuar as contradições do capitalismo em
terminados; será um processo de busca nível apenas as projetam para um nível mais elevado, no qual explodem em
de alternativas, com erros e acertos, crises mais graves”. Nesse sentido, a atual crise financeira, embora assus-
onde todo o poder deve ser exercido tadora, é seqüência de outras crises monetárias, bancárias e financeiras do
pela maioria da população organizada
capitalismo.
de forma mais democrática possível.
Graduado em Agronomia, pela Universidade Federal Rural do Rio de Ja-
Nesse sentido, considero que alguns
países latino-americanos estão, nesse neiro, mestre em Economia Agrária, pela Escola Superior de Agricultura Luiz
momento, na vanguarda dos proces- de Queiroz, e doutor em Ciências Econômicas, pela Universidade Estadual
sos de enfrentamento ao capital e aos de Campinas, Germer é professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
imperialismos norte-americano e euro- Experiente na área econômica, com ênfase em teoria monetária e financei-
peu. Refiro-me em particular à Cuba, ra, o pesquisador escreveu a tese de doutorado Dinheiro, capital e dinheiro
Venezuela, Bolívia e ao Equador. Nos de crédito — O dinheiro segundo Marx.
três últimos países, a luta de classes
apresenta-se de forma mais aberta e
aguda nos quais se observa a interfe- IHU On-Line – De que maneira Marx pode ser visto como um caminho para
rência direta dos interesses imperialis- entender a natureza do desenvolvimento capitalista?
tas associados às burguesias nacionais. Claus Magno Germer - A teoria econômica de Marx distingue-se das demais
A maior novidade nesses países é que pelo fato de reconhecer o caráter transitório, em termos históricos, do ca-
os trabalhadores organizados estão as- pitalismo. Ou seja, concebe o capitalismo como uma forma de sociedade
sumindo o poder do Estado capitalista que não é eterna, mas que nasce e chega a um fim como resultado da ação
para efetuar a revolução socialista e, de causas objetivas que se desenvolvem espontaneamente no seu interior. O
nesse sentido, a crise financeira é um enfoque dialético de Marx o levou a procurar identificar as forças motrizes
momento em que esses países podem da mudança, e as encontrou nas contradições residentes no âmago do capita-
avançar ainda mais seus processos de lismo, cujo núcleo é a oposição de interesses entre as classes fundamentais
transformação. — a burguesia e a classe trabalhadora —, que se desdobra em um conjunto de
contradições em diferentes níveis e dimensões da sociedade capitalista. No
ca, Ásia e América Latina, também localizada plano especificamente econômico, Marx foi o primeiro autor a conceber as
em Dakar. (Nota da IHU On-Line) crises periódicas não como fenômenos estranhos ao capitalismo, mas como
2 Jorge Beinstein: economista e professor de
Economia da Universidade de Buenos Aires. momentos constituintes do desenvolvimento do mesmo. Portanto, a teoria
(Nota da IHU On-Line) de Marx nos mostra o capitalismo como uma forma de sociedade que se
18 SÃO LEOPOLDO, 20 DE OUTUBRO DE 2008 | EDIÇÃO 278
transforma e se move, de modo cícli- O capital e está, neste sentido, supera- mulação, mas que ao mesmo tempo fra-
co, em uma direção determinada — a da. Conseqüentemente, a importância gilizam moral e politicamente o sistema,
sua própria superação — movida por atual da obra de Marx, no terreno da porque expõem as suas contradições e
tensões intrínsecas à sua estrutura. polêmica teórica, reside na sua crítica fomentam o florescimento das potências
à economia vulgar, hoje materializada teóricas e práticas, transformadoras da
IHU On-Line - Qual a importância de na teoria neoclássica, como expressão sociedade.
Marx para fazermos uma crítica à do esforço continuado de justificação do
economia política? Como ele contri- capitalismo e não de compreensão cien- IHU On-Line - Em que medida a in-
bui para entendermos a crise finan- tífica das suas características. terferência do Estado pode evitar
ceira atual? No terreno específico das crises do colapsos como este que está abalan-
Claus Magno Germer - Há duas linhas capitalismo, Marx afirmou com clareza do o sistema financeiro atual?
de crítica de Marx no campo da teoria e rigor o caráter cíclico do capitalismo, Claus Magno Germer - A resposta mar-
econômica. Uma delas, a mais impor- isto é, que este desenvolve-se através xista a esta pergunta é que as crises
tante, é a crítica da economia política de uma sucessão de fases de expansão financeiras não podem ser evitadas,
clássica, representada principalmente embora possam ser atenuadas, ou
por Ricardo, à qual se refere o subtítu- acentuadas, em certa medida, pelo
lo da sua obra-prima — O capital: críti- Estado e o Banco Central, como se
ca da economia política. Marx tinha em
“O Estado e o mercado pode observar na contundente críti-
alta conta os autores mais destacados ca de Marx à lei bancária inglesa da
desta teoria, como Smith1 e Ricardo,
são, juntamente com sua época. Esta resposta decorre do
embora deles divergisse em aspectos exposto acima: as crises não consti-
fundamentais. A outra linha crítica foi
a economia, tuem anomalias do capitalismo, mas
endereçada por Marx ao que denominou são uma das suas características mais
economia vulgar. Esta era representada,
componentes do fundamentais. Elas não resultam de
na sua época, pelos precursores do que defeitos do capitalismo, mas das suas
viria a ser a escola neoclássica. Marx a
sistema integrado que maiores virtudes. A acumulação, que é
denominava vulgar porque, ao invés de a virtude suprema e a razão de ser do
uma teoria, constituía, no essencial, na
é a sociedade capitalismo, conduz periódica e inevi-
sua opinião, um esforço de justificação tavelmente a crises, crises de supera-
do capitalismo. Este esforço tinha como
capitalista” cumulação ou crises financeiras. Uma
núcleo central a negação de caracte- prova de que as crises não podem ser
rísticas fundamentais do capitalismo, evitadas é a própria crise financeira em
principalmente o trabalho como fonte e de retração ou crise. Foi o primeiro curso, que ameaça converter-se em
da riqueza, a instabilidade intrínseca e a autor a rejeitar vigorosamente a chama- uma das mais graves crises da história
propensão a crises periódicas, o caráter da lei de Say,2 uma das pedras angulares do capitalismo, a despeito da grande
transitório do capitalismo, entre outras. da ideologia de justificação neoclássica, quantidade de supostos mecanismos
A primeira linha crítica foi concluída por que implica que crises gerais são impos- de prevenção de crises, elaborados a
Marx e encontra-se consubstanciada em síveis. Uma das alavancas da acumu- partir da grande depressão dos anos
lação e uma das causas fundamentais 1930 e continuamente aperfeiçoados.
1 Adam Smith (1723-1790): considerado o
fundador da ciência econômica. A riqueza das das crises é o sistema de crédito. Marx Os bancos centrais foram dotados do
nações, sua obra principal, de 1776, lançou distinguiu dois tipos de crises: as crises poder de “regular” a oferta monetária
as bases para um novo entendimento do me- do setor produtivo, ou crises gerais, e e o crédito, de supervisionar e intervir
canismo econômico da sociedade, quebrando
paradigmas com a proposição de um sistema as crises bancárias ou financeiras, que no sistema bancário; leis foram elabo-
liberal, ao invés do mercantilismo até então podem ocorrer separada ou conjunta- radas com a finalidade de “disciplinar”
vigente. Outra faceta de destaque no pensa- mente. As crises são momentos neces- o sistema bancário e os mercados de
mento de Smith é sua percepção das sofríveis
condições de trabalho e alienação às quais sários, porque constituem a solução de capitais; criaram-se mecanismos au-
os trabalhadores encontravam-se submetidos contradições inerentes ao processo de tomáticos de “contenção” dos pâni-
com o advento da Revolução Industrial. O Ins- acumulação, que se avolumam durante cos financeiros nas bolsas de valores,
tituto Humanitas Unisinos promoveu em 2005
o I Ciclo de Estudos Repensando os Clássicos da a fase de expansão precedente, até o assim como órgãos encarregados de
Economia. No segundo encontro deste evento, momento da inevitável explosão. Assim supostamente assegurar a “transpa-
a professora Ana Maria Bianchi, da USP, profe- sendo, as crises são vistas como momen- rência” destes mercados; elaborou-se
riu a conferência A atualidade do pensamento
de Adam Smith. Sobre o tema, concedeu uma tos de restabelecimento das condições uma lista interminável de indicadores
entrevista à IHU On-Line número 133, de 21- que viabilizam a continuidade da acu- econômicos e financeiros e de mode-
03-2005. Ainda sobre Smith, confira a edição los econométricos, com a finalidade
35 do Cadernos IHU Idéias, de 2005, intitula- 2 Lei de Say: lei econômica, que se manteve
do Adam Smith: filósofo e economista, escrito como princípio fundamental da economia or- de antecipar o futuro e prevenir crises
por Ana Maria Bianchi e Antônio Tiago Loureiro todoxa até a grande depressão de 1930. Foi etc. A despeito de tudo isto, as crises
Araújo dos Santos, disponível para download formulada por Jean-Baptiste Say (1767-1832), sucedem-se porque fazem parte da
no sítio do IHU. (Nota da IHU On-Line) economista francês. (Nota do IHU On-Line)
natureza do capitalismo, e só deixarão

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de existir quando o próprio capitalis- doras inerentes ao capitalismo e condu-
mo deixar de existir.
“Os dois ou três centes ao seu fim. Esta contradição se
resolverá, por imposição das circunstân-
Uma crise sem fim
trilhões de dólares das cias, através da abolição da proprieda-
de privada dos meios de produção e a
Marx insistiu em afirmar que todas
operações de instituição da propriedade social, e da
as medidas que se destinam a atenuar conseqüente abolição do motivo egoísta
as contradições do capitalismo em um
salvamento articuladas do lucro como base da regulação do tra-
nível apenas as projetam para um ní- balho e da produção social e sua substi-
vel mais elevado, no qual explodem em
até este momento tuição pelo critério do atendimento das
crises ainda mais graves. A experiência necessidades da coletividade, em uma
das últimas décadas parece uma com-
pelos governos dos palavra, através do socialismo.
provação desta afirmação. Muitos dos Portanto, embora não se possa fa-
mecanismos que impedem a eclosão da
países capitalistas zer previsões precisas, dada a comple-
crise em dado momento têm apenas o xidade do processo histórico, o que
efeito de adiá-la, permitindo com isto
centrais destinam-se se pode dizer com base na teoria de
que o seu potencial destrutivo cresça Marx é que o capitalismo continuará
mais. Deve-se lembrar que a crise atual
a salvar instituições apresentando uma seqüência de ex-
é apenas mais uma de uma seqüência pansões e crises, ao longo das quais
de crises monetárias, bancárias e finan-
financeiras, mas nada as contradições enumeradas acima se
ceiras que acometem o capitalismo, na acentuarão, também de modo cíclico,
nossa época, desde os anos 1960, com
ou muito pouco se diz ampliando a instabilidade global do
intensidade crescente. sistema.
sobre o destino dos
IHU On-Line - Se Marx previu a natu- IHU On-Line - Qual a importância do
reza da economia mundial no início
devedores Estado e da regulação dos mercados
do século XXI, com base na análise para recuperação da ordem financei-
da “sociedade burguesa”, 150 anos
não-capitalistas e dos ra internacional?
antes, que espécie de previsões po- Claus Magno Germer - O marxismo
demos fazer para nossa economia a
trabalhadores não é ingênuo em relação à nature-
partir da sociedade que temos hoje, za e funções do Estado. O Estado e o
baseada em valores consumistas e na
lançados no mercado são, juntamente com a eco-
autonomia? nomia, componentes do sistema inte-
Claus Magno Germer - Marx foi um cien-
desemprego” grado que é a sociedade capitalista.
tista, não um profeta. Elaborou uma re- O Estado é um órgão do capital, isto
presentação teórica do capitalismo. Se que pode ser ilustrado pelo crescimento é, de representação dos interesses
a teoria de um fenômeno o representa contínuo da proporção do proletariado da classe capitalista. Conseqüente-
adequadamente, ela permite antecipar industrial na população, que passou de mente, os instrumentos de regulação
a ocorrência das principais característi- apenas cerca de 5% da população mun- que utiliza destinam-se a preservar os
cas do desenvolvimento do fenômeno. dial no início do século XX para mais de interesses e o domínio desta classe e
A teoria de Marx sobre o capitalismo é 30% no início do século XXI; antecipou o do processo de acumulação de capi-
uma teoria deste tipo, motivo pelo qual processo de aumento da polarização en- tal. Nas crises, a ação do Estado con-
lhe permitiu não só explicar a natureza tre uma minoria de ricos e uma maioria siste em socializar os custos, isto é,
do capitalismo e do seu funcionamento, de pobres, que é ilustrada cotidianamen- “sanear” a contabilidade de bancos e
como ainda antecipar características te nos meios de comunicação pelas esta- empresas mais atingidos, lançando o
que só se tornaram visíveis mais tarde. tísticas da pobreza e da miséria em es- passivo sobre a sociedade, especial-
Além do seu pioneirismo na admissão e cala continental, abarcando pelo menos mente sobre os trabalhadores e po-
explicação teórica das crises, Marx expli- dois terços da população mundial atual. bres em geral. É o que está ocorrendo
cou e antecipou o processo geral de cen- Estes dados ilustram a antecipação mais atualmente: os dois ou três trilhões de
tralização do capital que está na base da importante que decorre da teoria de dólares das operações de salvamento
fase monopolista do capitalismo, inau- Marx: de que a intensificação progressi- articuladas até este momento pelos
gurada no final do século XIX; explicou va, embora cíclica, da contradição entre governos dos países capitalistas cen-
a tendência, amplamente comprovada, a socialização crescente do trabalho e trais destinam-se a salvar instituições
de queda cíclica da taxa média de lucro; da produção, isto é, da riqueza, e a pri- financeiras, mas nada ou muito pouco
antecipou e fundamentou teoricamente vatização crescente desta riqueza e sua se diz sobre o destino dos devedores
a existência permanente do desemprego concentração nas mãos de uma minoria não-capitalistas e dos trabalhadores
no capitalismo; antecipou o processo de cada vez mais diminuta, representa o lançados no desemprego, ou sobre a
proletarização crescente da população, crescimento das potências transforma- origem destes recursos.
20 SÃO LEOPOLDO, 20 DE OUTUBRO DE 2008 | EDIÇÃO 278
IHU On-Line – A crise financeira pode
suscitar uma renovação na política
mundial?
O vexame da economia da bolha
Claus Magno Germer - Uma mudança
substancial na esfera política mundial é financeira é também o vexame da
possível e desejável. Mas a renovação mais
importante não consistiria em uma nova
instrumentalização da intervenção do Es-
esquerda pós-moderna
tado capitalista na economia. Quaisquer
que sejam as características desta inter- Para Robert Kurz, o Estado não pode estancar a desvaloriza-
venção, ela destina-se sempre a assegurar
ção, mas apenas administrá-la
os interesses da classe capitalista e da acu-
mulação, em detrimento dos da classe tra-
balhadora e da população em geral. A re- Por Graziela Wolfart e Patricia Fachin
novação desejável é de outra natureza. As

Q
últimas duas décadas, pelo menos, foram
Divulgação
palco do desfile triunfal, sem contestação uando aceitou conceder a entrevista a se-
significativa possível, da ideologia das ex- guir por e-mail para a IHU On-Line, o en-
celências do mercado, isto é, do capital. A saísta alemão Robert Kurz admitiu que pre-
classe trabalhadora e suas necessidades e feria analisar a crise financeira por si só,
aspirações viram-se reduzidas a um apên-
ao invés de relacioná-la com as teorias de
dice sem importância. A intensificação da
Marx, como foi nossa proposta. E ele acabou conseguin-
exploração da força de trabalho e o au-
mento do empobrecimento em massa atin- do nos presentear com uma rica e profunda análise do
giram todos os continentes. O desemprego crítico período financeiro pelo qual passa nosso mundo,
em massa provocado pelo processo geral sem deixar de ressaltar a importância de Karl Marx para
de reestruturação técnica e econômica do compreendermos essa fase. Nas suas respostas, Robert Kurz afirma contun-
capital, a nível mundial, jogou os trabalha- dentemente que “os recursos materiais e os agregados científico-tecnoló-
dores na defensiva e os condenou a assistir, gicos, bem como as capacidades e necessidades humanas não podem mais
com pouca ou nenhuma resistência possí- ser comprimidas nas formas básicas do capital. Ou, como Marx o formulou
vel, à abolição de direitos duramente con- nos ‘fundamentos’, ‘desaba o modo de produção baseado no valor de tro-
quistados em quase dois séculos de lutas ca’; manifesta-se a ‘desvalorização do valor’ enquanto limite histórico da
renhidas. A expectativa otimista é que o valorização do capital”.
fracasso das promessas grandiloqüentes de
Nascido em 1943, Kurz estudou Filosofia, História e Pedagogia. É co-
abundância e felicidade eternas, por parte
fundador e redator da revista teórica EXIT! — Kritik und Krise der Waren-
dos ideólogos do “livre mercado”, nas úl-
timas décadas, expresso em uma crise ca- gesellschaft (EXIT! — Crítica e Crise da Sociedade da Mercadoria). A área
tastrófica mundial como pode ser a atual, dos seus trabalhos abrange a teoria da crise e da modernização, a análise
poderá reabrir o debate crítico, teórico e crítica do sistema mundial capitalista, a crítica ao Iluminismo e a relação
político, sobre a natureza real do capitalis- entre cultura e economia. Publica regularmente ensaios em jornais e re-
mo, sobre as suas imensas contradições, e vistas na Alemanha, Áustria, Suíça e Brasil. Entre seus livros publicados em
fazer renascer a consciência da necessida- português, citamos O colapso da modernização (São Paulo: Paz e Terra,
de, e mais ainda da possibilidade real, da 1991), O retorno de Potemkin (São Paulo: Paz e Terra, 1994) e Os últimos
sua superação. combates (Petrópolis: Vozes, 1998).
Com efeito, manifestações explosivas
de descontentamento popular com o capi-
talismo na sua configuração atual surgem IHU On-Line - Em que sentido as teorias de Marx são importantes para se
em todos os continentes nos últimos anos. compreender o atual momento de crise no sistema financeiro global?
Elas ainda não adquiriram a densidade sufi- Robert Kurz - A importância da crítica da economia política feita por Marx,
ciente para converter-se em um movimen- para se explicar a grande crise financeira atual, evidencia-se inicialmen-
to consciente de transformação em direção te em dois níveis: por um lado, um aspecto fundamental é sua derivação
ao socialismo, mas sua potencialidade nes- da forma monetária no primeiro volume de O capital; por outro, em sua
te sentido é indubitável e crescente. Esta é análise do crédito, principalmente no terceiro volume. Nessas questões,
a única renovação política real que se pode aqui, somente poderei tratar alguns pontos elementares. A economia bur-
vislumbrar. Fora ela, o que se pode vislum- guesa clássica e neoclássica parte, contrafaticamente, de uma pura econo-
brar é apenas a continuidade da barbárie mia de bens e de relações naturais de troca entre os sujeitos do mercado.
capitalista atual. Ela abstrai do dinheiro e fala do “véu do dinheiro” sobre as transações
SÃO LEOPOLDO, 20 DE OUTUBRO DE 2008 | EDIÇÃO 278 21
econômicas “propriamente ditas”. O valores fictícios de dimensões astronô-
dinheiro, aí, aparece como mero signo, “O dinheiro não pode micas. Na ótica positivista, tratava-se
sem teor próprio, como constructo ju- simplesmente de “fatos” que pareciam
rídico baseado numa convenção social ser mero signo, mas fundamentar-se a si próprios. Até mes-
ou num decreto governamental. Para mo teóricos da esquerda explícita ou
que a economia funcione, importa ape- precisa ter, ele implicitamente abandonaram a teoria
nas adequar a quantidade de dinheiro marxista do dinheiro e do crédito, por-
à quantidade de bens (teoria da quan- próprio, o caráter de que na aparência ela estava refutada
tidade). Para Marx, em contrapartida, empiricamente.
o dinheiro não é o “véu” secundário, mercadoria, inclusive
mas premissa e veículo central, fim em A contradição que explica a crise
si mesmo, da valorização (Verwertung) de ‘rei’ das
capitalista. Ele é a forma de apresenta- Esse período de 35 anos desde o
ção geral do valor incorporado nas mer- mercadorias” fim da convertibilidade do dólar em
cadorias, ou seja, do valor agregado, o ouro, que é um período histórico
qual precisa voltar a se transformar na breve, encerrou-se, entretanto, em
forma monetária, que, por sua vez, já a noção do capital monetário a gerar 2008. Agora se mostra o verdadeiro
representa seu ponto de partida. Por lucros, como uma espécie de produ- caráter desse processo. Num pro-
isso, o dinheiro não pode ser mero sig- ção sui generis de mercadoria. Grosso cesso secular, o capital, em função
no, mas precisa ter, ele próprio, o ca- modo, fazem de conta que a “indús- de crescentes custos preliminares
ráter de mercadoria, inclusive de “rei” tria financeira” seria uma produção da produção baseada em tecnologia
das mercadorias. O dinheiro é “merca- de mercadorias tão real quanto, por científica, ficou cada vez mais depen-
doria genérica” colocada à parte, ou exemplo, a indústria automotiva. O dente do crédito como antecipação
o “equivalente genérico”, cujo “valor juro parece uma forma independente de real valor agregado futuro. As bo-
utilitário” não consiste em sua utilida- de valor agregado. Marx, em contra- lhas financeiras crescentes e excessi-
de concreta, mas em sua propriedade partida, mostra o caráter ilusório des- vamente infladas nas últimas décadas
de representar o valor abstrato ou valor sa noção. Ele comprova que o crédito, arrebentaram, de uma vez por todas,
agregado de todo o mundo das merca- ou capital que gera lucros, é apenas com a conexão entre “capital fictí-
dorias. Para as transações cotidianas, é uma forma derivada, sem formação cio” e real produção de valor agrega-
verdade que signos monetários podem própria de valor. O juro é o preço da do; a antecipação do valor agregado
tomar o lugar da mercadoria-dinheiro função capitalista do crédito, preço futuro jamais poderá ser resgatada.
propriamente dita, mas, em última ins- este que precisa ser subtraído do valor Essa contradição amadureceu e se
tância e principalmente nas crises, o social agregado da real produção de descarrega como crise financeira glo-
real conteúdo de valor do dinheiro pre- mercadorias. Na estatística burguesa, bal. Isto destrói não só a ilusão de
cisa ser resgatado como “mercadoria em contrapartida, os “produtos” do um crescimento “tocado pelas finan-
régia”. Por isso, para Marx, o dinheiro capital monetário são somados ao pro- ças”, mas também a ilusão do dinhei-
não pode emancipar-se totalmente dos duto social, com o que se distorce o ro como mero signo. Até o momento,
metais nobres como mercadoria mo- quadro real de valores. o ouro passa por dramática valoriza-
netária; isto não por causa do caráter ção frente a todas as moedas. Mas a
metálico natural, mas em função do Dinheiro x Dólar remonetarização do ouro não é pos-
valor social ali representado de forma sível, porque as potências de produ-
“concentrada”. No século XX, o dinheiro e todo o ção alcançadas historicamente nem
sistema monetário emanciparam-se podem mais ser representadas como
A questão do crédito e dos juros definitivamente do ouro como merca- “riqueza abstrata” (Marx) em forma
doria monetária real — na aparência; o de valor agregado. A desvalorização
O crédito emana da subdivisão do último lance dessa emancipação foi o do dinheiro corresponde à desvalori-
capital em capital de produção ou capi- abandono da convertibilidade do dólar zação da massa de mercadorias. Em
tal-mercadoria, por um lado, e capital em ouro em 1973. Isto se correlaciona outras palavras: os recursos materiais
monetário ou capital-que-rende-juros, com o fato de que, no período subse- e os agregados científico-tecnológi-
por outro. A duplicação da mercado- qüente, o capital monetário também cos e as capacidades e necessidades
ria em “mercadoria vulgar” (gemeiner se desacoplou cada vez mais da real humanas não podem mais ser compri-
Warenpöpel) e dinheiro como “mer- produção de mercadorias. O crédito midas nas formas básicas do capital.
cadoria régia” repete-se no nível do inflado gerou não só formidáveis mon- Ou, como Marx o formulou nos ‘fun-
capital. Na economia burguesa, não tanhas de dívidas, que sempre precisa- damentos’, “desaba o modo de pro-
existe conexão sistemática entre te- vam ser “roladas”, mas adquiriu uma dução baseado no valor de troca”;
oria monetária e teoria do crédito. A forma de circulação independente de manifesta-se a “desvalorização do
noção do dinheiro como “véu” e mero títulos financeiros (ações, títulos hipo- valor” enquanto limite histórico da
signo encontra-se em contradição com tecários, derivativos), onde se criaram valorização [Verwertung] do capital.
22 SÃO LEOPOLDO, 20 DE OUTUBRO DE 2008 | EDIÇÃO 278
O Estado como último credor teoria do “valor do trabalho”. O va-
lor devia, em última instância, ser
Nessa situação, o Estado aparece “Na economia burguesa determinado pelo trabalho humano.
como lender of last ressort [credor Acontece que essa teoria do “valor do
de último recurso]. Para a teoria bur- não existe conexão trabalho” era acrítica e incoerente. A
guesa, o Estado não é o outro lado, teoria marxista da determinação do
o lado político da relação de capital, sistemática entre valor e do valor agregado mediante
mas uma “instância extra-econômi- trabalho abstrato é fundamentalmen-
ca”. Também na esquerda, a ilusão do teoria monetária e te diferente. O conceito de trabalho
Estado tem uma longa tradição. Marx abstrato é entendido de forma crítica
não chegou mais a concluir a formula- teoria do crédito” e estritamente negativa como “abs-
ção da sua teoria do Estado. Mas já nos tração real” da produção concreta de
escritos da sua fase inicial ele criticou bens. No processo de produção e cir-
a ilusão estatal-política como “falsa redução da taxa de juros. Acontece culação do capital, a atividade produ-
causa pública”. Em sua teoria do cré- que esse tipo de inundação monetária tiva é reduzida, em sua forma social,
dito, no terceiro volume de O capital, sempre ainda pressupõe a ficção de ao dispêndio [Vernutzung] abstrato
o crédito do Estado é definido como uma “cobertura” por processos reais de energia humana ou aplicação de
forma especial do capital fictício, que de valorização, a qual já se tornou ilu- mão-de-obra abstrata como “gasto
continua dependente da real valoriza- sória. Os bancos comerciais somente [Verausgabung] de nervo, músculo,
ção do capital. Na verdade, o vexame ainda conseguem depositar nos bancos cérebro” (Marx), onde o teor concreto
da ilusão estatal não é de hoje, ilusão centrais “garantias” que deixaram de desse gasto é totalmente indiferente.
esta que esteve em alta após a gran- sê-lo, porque consistem em grande A massa de trabalho abstrato, uma vez
de crise na primeira metade do século parte de títulos podres. Isto impede realizada, se apresenta como massa
XX. No Ocidente, a regulação estatal que se inflem novas bolhas financeiras de valor social e como “valor objeti-
keynesiana e o crescimento induzido da forma convencional. O colapso dos ficado” [Wertgegenständlichkeit] dos
pela expansão do crédito estatal no créditos hipotecários somente foi o produtos. Na “valorização do valor”,
início dos anos 1980 fracassaram por catalisador de um processo de desva- o que interessa não é a massa de valor
causa da inflação sem limites. No Les- lorização de todo o capital financeiro, em si, mas apenas a massa de valor
te, o capitalismo estatal soviético do que vai muito além. Por isso, agora, agregado, a qual é distribuída aos di-
“resgate da modernização”, no final a crise é elevada ao nível da “última ferentes capitais pelo mecanismo da
dos anos 1980, ficou inadimplente e instância”, isto é, das próprias finan- concorrência. A valorização como fim
entrou em colapso. Estas já eram for- ças públicas. Só que o Estado não é em si mesmo transforma em fim em
mas em que se apresentava a histórica um demiurgo independente das leis da si mesmo também o trabalho abstrato
“desvalorização do valor”. Na virada valorização do capital. Já no ano fiscal que lhe dá origem, trabalho esse que
neoliberal, a intervenção do Estado, recém-passado, a dívida pública dos forma a substância do capital como
supostamente “extra-econômica”, foi Estados Unidos triplicou ainda antes gasto de energia humana abstrata.
responsabilizada pelo dilema e substi- da recente crise dramática; e, no caso
tuída por um radicalismo de mercado. de se invocarem as garantias estatais Do valor para a relação funcional
Essa virada, porém, não superou a bar- concedidas em todo o mundo, o resul-
reira interior da valorização, mas, me- tado somente pode ser uma grande O neoclassicismo burguês abando-
diante uma política de desregulação e crise das finanças públicas. O Estado nou a teoria clássica do “valor de tra-
da inundação monetária pelos bancos não pode estancar a desvalorização, balho”. O valor foi reduzido ao preço,
centrais, apenas abriu as comportas mas apenas administrá-la; ou em for- sendo entendido não mais como subs-
para uma expansão do crédito privado ma de deflação, caso ponha limite em tância comum das mercadorias, mas
e da economia baseada na bolha finan- seu próprio endividamento, ou em for- como mera função na inter-relação das
ceira como nunca se viu. ma de inflação, caso saia imprimindo mercadorias. Correlato disso foi que a
cédulas sem toda e qualquer “cober- filosofia burguesa passou do “concei-
O Estado: novamente o salvador? tura”. Nesta situação nova na História, to de substância” para o “conceito de
talvez até ocorram processos deflacio- função”. Pretendia-se eliminar o pro-
Depois que também esta ilusão es- nários e inflacionários em paralelo. blema da substância, transformando-o
tourou e o mercado falhou grandiosa- numa relação funcional vazia. A “ma-
mente, repentinamente pretende-se IHU On-Line - O que representa, na tematização” dos “modelos” neoclás-
que o Estado seja novamente o salva- atual crise, a teoria marxista do tra- sicos baseia-se nessa transformação
dor. Só que o problema não pode mais balho abstrato como substância do do valor numa relação estritamente
ser resolvido com nova inundação mo- capital? funcional. Com isto, a teoria do va-
netária por parte dos bancos centrais Robert Kurz - A economia burgue- lor foi adaptada à teoria do dinheiro
estatais, mediante uma convencional sa clássica baseava-se, ainda, numa enquanto mero “signo”. Essa “teoria
circulatória” funcional do valor, no
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meio de língua alemã, de certo modo, potenciais científicos e tecnológicos
também conseguiu entrar numa assim e que não pode ser infinitamente pro-
chamada “releitura de Marx”, na qual longado.
a teoria crítica marxista do “valor de “As curvas caóticas e
trabalho” era rejeitada, por ser “na- A tensão na administração da crise
turalista” ou “substancialista”, negan- os saltos
do-se que o dinheiro tivesse caráter de Sobre isto, ainda cabe fazer duas
mercadoria. descontrolados, por observações. Em primeiro lugar, as ca-
tegorias de Marx são categorias reais
A questão da mão-de-obra exemplo, do câmbio de uma lógica da sociedade como um
todo, a qual se baseia nos fenômenos
Como na economia burguesa, isto ou dos índices da bolsa empíricos, mas não pode ser descri-
exclui, por princípio, uma barreira ta de forma diretamente empírica.
interior absoluta da valorização. A necessariamente Isto porque empiricamente o capital
redução a uma relação funcional tor- não se desloca apenas em veiculações
na o valor atemporal e eternamen- precisam ser atribuídos complexas e contraditórias, mas a real
te regenerável, na aparência. Marx, agregação da substância de valor so-
em contrapartida, mostrou que o à natureza cial sempre se apresenta apenas em
desenvolvimento capitalista contém retrospecto. A estatística burguesa
uma autocontradição elementar. Por não-empírica do capital nunca capta a real massa de valor ou
um lado, a energia humana abstrata valor agregado, mas apenas os fluxos
forma a substância real do capital; e sua evolução superficiais de mercadoria e dinheiro,
por outro lado, a concorrência força os quais produzem uma imagem dis-
constante desenvolvimento da capa- substancial” torcida. Por isso os crashes também
cidade produtiva, a qual torna supér- não são previstos, mas apresentam-se
flua a mão-de-obra humana e solapa de forma eruptiva, quando a lógica ba-
a substância do valor. Até a segunda sal irrompe a empiria, como, ao que
agregado cai e a “desvalorização do
revolução industrial do fordismo, esse tudo indica, é o caso atualmente. As
valor” leva à “des-substancialização
processo secular de desvalorização curvas caóticas e os saltos descontro-
do capital”.
das mercadorias podia ser compen- lados, por exemplo, do câmbio ou dos
sado por meio do mecanismo do “va- índices da bolsa necessariamente pre-
O capitalismo reduzido às suas reais
lor agregado relativo”, analisado por cisam ser atribuídos à natureza não-
condições de valorização
Marx: pelo desenvolvimento da capa- empírica do capital e sua evolução
cidade produtiva, o valor da merca- substancial. Isto não está ao alcance
Este é o motivo pelo qual, no perí- de uma teoria categorial permanente
doria “mão-de-obra” [Arbeitskraft]
odo anterior, se podia simular mais va- ou afirmativa, que só consegue ficar
cai na escala social e a participação
lorização somente por meio de bolhas correndo atrás dos fenômenos im-
relativa do valor agregado na massa
financeiras desprovidas de substância. previsíveis. Além disso, a barreira da
total de valor aumenta. Essa parti-
Quando estas estouram, entretanto, valorização é estritamente objetiva.
cipação relativa aumentada do valor
não se atinge novo “ponto zero”, a Aquilo que “desaba” por entre as cur-
agregado, porém, está relacionada
partir do qual a valorização real possa vas é a capacidade de o capital repro-
com o número de “mãos-de-obra”
recomeçar. Ao contrário, o capitalismo duzir-se socialmente. Mas o que não
[Arbeitskräfte, trabalhadores, fun-
é reduzido às suas reais condições de desaba por si mesmo são as formas de
cionários] produtivamente utilizáveis.
valorização, cujo padrão de capacida- consciência ou “formas de pensamen-
Marx não chegou a concluir sua teoria
de produtiva é irreversível. Essa teoria to objetivas” constituídas pelo capital
da crise, mas implicitamente ela faz
substancial da crise, que fala de uma (Marx). Ao se alcançar o limite históri-
inferir que o desenvolvimento da ca-
barreira inferior absoluta do capital, co do capitalismo, surge por isso uma
pacidade produtiva chega a um ponto
muitas vezes foi criticada como “tec- tensão colossal entre a impossibilida-
em que o número de “mãos-de-obra”
nológica” justamente pela esquerda. de de continuar uma valorização real e
produtivamente utilizáveis se reduz a
Mas não se trata, no caso, do aspecto uma mentalidade generalizada que in-
tal ponto que a massa de valor agre-
técnico, mas do efeito da tecnologia teriorizou as condições capitalistas de
gado absoluto cai. Então, mesmo o
sobre as condições da valorização. existência e não quer nem consegue
aumento do valor agregado relativo
Marx não formulou uma teoria funcio- imaginar outra coisa senão viver den-
por mão-de-obra de nada serve. Esse
nal do valor em termos “atemporais”, tro dessas formas. A difícil tarefa está
ponto é atingido com a terceira revo-
e sim a teoria de um desenvolvimento em resolver essa tensão no processo
lução industrial da micro-eletrônica.
histórico e dinâmico do capital como de resistência contra a administração
O histórico mecanismo de compensa-
deslocamento da substância real, vei- da crise, ou o capitalismo desemboca-
ção do valor agregado relativo se ex-
culado pela crescente aplicação dos rá numa catástrofe mundial. Para isto
tingue, a massa real absoluta de valor
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não está preparada uma esquerda que trabalho abstrato é produtivo em na irrelevante o problema da subs-
se ajustou cada vez mais ao desenvol- termos capitalistas, nem contribui tância, mas nada tem a ver com uma
vimento capitalista. para a massa de valor agregado so- substância de valor da mercadoria
cial real. Certas funções da relação individual.
IHU On-Line - Quais as conseqüên- de capital são, em si, improdutivas
cias da crise financeira para o nível e com “custos mortos”. Mas tam- Uma ocupação improdutiva
de emprego em escala mundial? bém a atividade produtiva industrial
Robert Kurz - Desde o início da ter- pode tornar-se improdutiva em sen- Que significa isto para a era da
ceira revolução industrial nos anos tido capitalista, quando ela excede economia baseada na bolha financei-
1980, os novos potenciais de racio- a capacidade [Fassungsvermögen1] ra? A queda da massa de valor agre-
nalização eliminaram a mão-de-obra da real produção de valor agrega- gado social real foi mascarada, na
industrial do processo produtivo do (“capacidades ociosas”). Todos aparência, pelo “valor agregado fic-
numa escala nunca vista antes. Em os resultados do trabalho abstra- tício” do sistema de crédito inflado.
conseqüência, de ciclo em ciclo, au- to assumem a forma de mercadoria Dessa forma, gerou-se uma ocupação
mentou o desemprego e o subempre- enquanto “objetividade de circu- improdutiva que ultrapassava em
go em massa na escala global. O re- lação”. Ao conseguirem um preço, muito a capacidade [Fassungsvermö-
verso da medalha foi a simulação da gen] da real produção de valor agre-
valorização pelo inchaço de “capital gado. Em primeiro lugar, junto com
fictício”. Diferentemente de épocas a “indústria financeira”, o emprego
anteriores do capitalismo, entretan- “A depressão global a nesse setor inchou de forma despro-
to, não ocorreu uma desvalorização porcional, emprego esse que não
rápida do capital monetário destitu- ser esperada levará de produz valor algum, apenas inter-
ído de substância, para dar lugar à media transações financeiras. Além
nova acumulação real. Em vez disso, roldão não só grande disso, criou-se um setor igualmente
por falta de novas possibilidades de desproporcional de serviços pessoais
valorização real, iniciou-se uma im- parte dos financistas improdutivos em termos capitalistas,
bricação sem precedentes históricos de indústria publicitária, indústria
entre economia baseada na bolha capitalistas ‘donos do da informação e da mídia, indústria
financeira e a conjuntura. Os “va- do esporte e da cultura. Justamente
lores fictícios” não ficaram restritos universo’, mas também nesses setores, o desprovimento de
ao Éden financeiro, mas por longo substância se implementou, por um
tempo e em medida crescente foram boa parte dos que lado, como remuneração astronomi-
transferidos para a aparente econo- camente excessiva de uma pequena
mia real. Assim surgiu o famoso cres- deles dependem” elite de astros e, por outro, como
cimento “tocado pelas finanças”, que precarização em forma de freelan-
parecia desancar as leis econômicas cers, pseudo-autônomos e empresá-
do capitalismo e permitiu uma onda rios da miséria. Em terceiro lugar, a
de altas de conjuntura deficitárias, eles assumem uma parte da massa conjuntura deficitária global forçou
que na realidade não tinham funda- de valor agregado social, não vindo a ocupação de uma “aristocracia de
mento sólido. Embora o desemprego ao caso se sua produção contribuiu trabalhadores” nas indústrias de ex-
em massa aumentasse, ele era man- ou não para essa massa. Esse caráter portação (produção automotiva, má-
tido em relativos limites porque, no social global [gesamtgesellschaftli- quinas), a qual era igualmente im-
bojo das conjunturas deficitárias, ch] da produção de valor e de va- produtiva porque se baseava não em
criaram-se, por assim dizer, “pos- lor agregado não fica muito claro lucros e salários de real produção de
tos de trabalhos fictícios” que se em Marx, razão pela qual surgiu o valor agregado, mas era alimentada
alimentavam das bolhas financeiras famoso problema da transformação pelas bolhas financeiras.
desprovidas de substância. valor–preço. Entretanto, esse pro-
blema se resolve quando a massa de O sistema do trabalho abstrato leva a
A distinção entre “trabalho produti- valor agregado social não se baseia si próprio ao abstrato
vo” e “improdutivo” numa soma de valores “individuais”
de mercadoria, mas representa uma Na mesma medida em que o es-
Para se compreender essa evo- massa substancial, social global, não touro das bolhas financeiras reduz o
lução, é importante a distinção de quantificável em termos de adminis- capitalismo às suas reais condições
Marx entre “trabalho produtivo” e tração de empresas; sua quantidade de valorização, também boa parte do
“improdutivo”. Todas as atividades se revela somente pela concorrência emprego improdutivo terá de cair. A
no contexto formal capitalista são no nível da circulação. Isto não tor- real massa de valor agregado é muito
trabalho abstrato, o qual é repre- pequena para que se possa descrever
1 Literalmente , “capacidade de conter, de
sentado em dinheiro. Mas nem todo abarcar” (Nota do tradutor).
a “objetividade de circulação” desses

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setores inflacionados como “objetivi- o “trabalho cognitivo” improdutivo,
dade de valor”. A depressão global a em termos capitalistas, justamente
ser esperada levará de roldão não só nada contribui para a real massa de
grande parte dos financistas capitalis- “Não está preparada valor agregado social. A “autonomia”
tas “donos do universo”, mas também dessa forma específica de trabalho
boa parte dos que deles dependem: uma esquerda que se abstrato é ilusória, porque continua
precárias prestadoras de serviço, dependente do mercado mundial.
freelancers, baixo-assalariados, tra- ajustou cada vez mais Trata-se da ilusão de uma nova classe
balhadores temporários, assim como média, que perdeu seu fundamento.
empregos na indústria de exportação. ao desenvolvimento Quando o capitalismo é reconduzido
O sistema do trabalho abstrato leva a para suas reais condições de valori-
si próprio ao abstrato; e o capitalismo capitalista” zação, extingue-se também a “au-
global minoritário sofre seu Waterloo, tovalorização” do trabalho abstrato
mesmo que ninguém queira tomar co- nos setores do “conhecimento” e da
nhecimento, embora todos o saibam comunicação pela mídia. O vexame
intuitivamente. tendimento vulgar, se refletiu como da economia da bolha financeira é
“arbitrariedade”. O virtualismo eco- também o vexame da esquerda pós-
IHU On-Line - Em que consiste o peso nômico correspondia ao virtualismo moderna e do seu “anti-substancia-
do capitalismo na sociedade de hoje, tecnológico da internet, que sofreu lismo” ideológico, que pretende de-
caracterizada por relações virtuais, a mutação para o “second life” de clarar toda e qualquer manifestação
trabalho imaterial e autonomia? individualizadas existências abstra- de vida como “valorização”. A base
Robert Kurz - Os conceitos citados tas de bloggers, os quais são incapa- dessa ilusão não é econômica, e sim
provêm todos da ideologia pós-mo- zes de se organizar e de resistir em “existencialista”, pois recorre a Hei-
derna, que desde o começo acompa- termos reais. degger.4 Ao estourar a economia da
nhou e formulou o capitalismo finan- bolha financeira, a “heideggeriza-
ceiro neoliberal do “capital fictício” E a esquerda? ção” pós-moderna da esquerda corre
inflacionado. Já em fins dos anos o risco de desembocar em sentimen-
1970, em seu livro A troca simbólica A esquerda pós-moderna acabou tos nacionalistas e anti-semitas.
e a morte (São Paulo: Loyola, 1996), órfã desse processo, o qual redu-
Baudrillard2 explicitou a relação com ziu a luta social ao nível virtual e
a economia ao estabelecer o “capital simbólico. O “pós-operarismo” de
fictício” como novo princípio de rea- Antonio Negri3 exprime essa ideolo-
lidade. Também Derrida, num texto gia. O fetichismo objetivo do capi- Leia mais...
sobre “dinheiro falso”, afirmou a vir- tal é negado e, juntamente com a Confira outras entrevistas concedidas por
tualidade do capital. A pós-moderna crise, reduzido a subjetivas relações
Robert Kurz. Acesse nossa página eletrônica
rejeição radical do “essencialismo” www.unisinos.br/ihu
de vontade. O lugar da crítica radi-
ou “substancialismo” corresponde à cal do trabalho abstrato e da forma Entrevistas
tentativa do capital de contornar es- [abstrata] de valor é tomado pela
pertamente o seu próprio problema * “A globalização deve se adaptar às necessida-
ilusão de uma “autovalorização au- des das pessoas, e não o contrário”. Revista IHU
de substância, de certa forma “aris- tônoma” de freelancers de um “tra- On-Line nº 98, de 26-04-2004, intitulada A crise
totélico”. O culto da “virtualidade” balho imaterial”. Esse conceito não
da sociedade do trabalho. Estamos saindo do ca-
contagiou todas as esferas da vida, pitalismo industrial?
faz sentido [nonsense], porque todo * “Novas relações sociais não podem ser criadas
até mesmo as relações pessoais. A trabalho abstrato, mesmo que não por novas tecnologias”. Revista IHU On-Line nº
redução de valor a uma relação fun- leve a produtos materiais, é “gasto
161, de 24-10-2005, intitulada As obras coletivas
cional levou à paradoxal “absoluti- e seus impactos no mundo do trabalho.
de nervo, músculo, cérebro”. Só que
zação da relatividade”, que, no en- 3 Antonio Negri (1933): filósofo político e
2 Jean Baudrillard: filósofo e sociólogo. Um moral italiano. Durante a adolescência, foi
dos importantes pensadores ocidentais da atu- militante da Juventude Italiana de Ação Cató- 4 Martin Heidegger (1889-1976): filósofo
alidade, é autor de vários livros, entre os quais lica, como Umberto Eco e outros intelectuais alemão. Sua obra máxima é O ser e o tem-
destacamos A sociedade do consumo (Lisboa: italianos. Em 2000, publicou o livro-manifes- po (1927). A problemática heideggeriana é
Edições 70, 2000) e A troca impossível (Rio to Império (5. ed. Rio de Janeiro: Record, ampliada em Que é metafísica? (1929), Car-
de Janeiro: Nova Fronteira, 2002). Juremir 2003), com Michael Hardt. Atualmente, após tas sobre o humanismo (1947) e Introdução
Machado da Silva apresentou o IHU Idéias de a suspensão de todas as acusações contra ele, à metafísica (1953). Sobre Heidegger, confira
11-09-2003, intitulado “11 de setembro: Ano definitivamente liberado, ele vive entre Paris as edições da IHU On-Line nº 185, de 19-06-
III. Uma reflexão a partir de Jean Baudrillard”. e Veneza, escreve para revistas e jornais do 2006, intitulada O século de Heidegger, e nº
Sobre esse tema, Juremir concedeu uma en- mundo inteiro e publicou Multidão. Guerra e 187, de 03-07-2006, intitulada Ser e tempo.
trevista na 74ª edição da IHU On-Line, de 08- democracia na era do império (Rio de Janeiro: A desconstrução da metafísica, disponíveis
09-2003, sob o título 11 de setembro segundo Record, 2005), também com Michael Hardt. para download no sítio do IHU, www.unisinos.
Jean Baudrillard. Em 07-03-2007 Baudrillard Em 2003, esteve na América do Sul (Brasil e br/ihu. Confira, ainda, o nº 12 do Cadernos
faleceu. O sítio do IHU deu ampla repercussão Argentina) em sua primeira viagem internacio- IHU em formação, intitulado Martin Heideg-
ao fato. Para conferir, basta acessar www.uni- nal após décadas entre o cárcere e o exílio. ger. A desconstrução da metafísica. (Nota da
sinos.br/ihu. (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line)

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Teologia Pública

A Palavra está presente em todos os setores da vida da Igreja


“Judeus, Cristãos e Muçulmanos, somos irmãos, filhos do mesmo pai
Abraão”, considera o frei Carlos Mesters

Por Graziela Wolfart

A
o falar sobre a importância dos círculos bíblicos, Frei Carlos Mesters afirma que
neles “a Bíblia se torna um espelho, no qual as pessoas descobrem dimensões
mais profundas da sua própria vida que antes não tinham percebido”. Para ele,
na entrevista que segue, concedida por e-mail para a IHU On-Line, a impor-
tância de um sínodo sobre a Bíblia no atual momento é muito grande por vários
motivos, dentre os quais “o aprofundamento que a Palavra de Deus pode trazer para a vida
humana” e a percepção da “importância da presença da sabedoria de Deus na leitura que
os pobres do mundo inteiro fazem da Bíblia”.
Carlos Mesters é frade Carmelita, doutor em Teologia Bíblica. É natural da Holanda e ligado
à caminhada das Comunidades Eclesiais de Base, ajudou a criar o CEBI (Centro de Estudos Bíbli-
cos). Escreveu, entre outros, Esperança de um povo que luta (São Paulo: Paulus, 1983), Círculos
bíblicos (São Paulo: Paulus, 2001), Paulo apóstolo: um trabalhador que anuncia o evangelho (São
Paulo: Paulus, 2002), Bíblia: livro feito em mutirão (São Paulo: Paulus, 2002), e Por trás das pala-
vras (Petrópolis: Vozes, 2003). Mesters é assessor de um dos bispos brasileiros na XII Assembléia
Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, que ocorre de 5 a 26 de outubro, no Vaticano. A entrevista
a seguir foi elaborada em parceria com o setor de Teologia Pública do IHU.

IHU On-Line - A leitura orante da Pa- limitado. Um limite aparece quando povo faz da Bíblia nas várias partes
lavra de Deus tem tido muita difusão os participantes do Círculo Bíblico se do mundo, sobretudo nos países da
nas comunidades eclesiais, através fecham em si mesmos e esquecem a América Latina, África e Ásia. Uma
dos círculos bíblicos. Qual é para o realidade da vida ao redor. Pois a Pa- partilha assim enriquece a todos,
senhor a riqueza deste método e lavra de Deus não está só na Bíblia, ajuda relativizar os problemas e faz
qual o seu limite? mas também na Vida, na natureza, perceber melhor o caminho, o rumo
Carlos Mesters - A riqueza deste mé- nos fatos, em tudo que acontece. do Espírito; 2) favorece o aprofun-
todo é que a leitura orante da Pa-   damento que a Palavra de Deus pode
lavra de Deus provoca no povo um IHU On-Line - Qual é a importância trazer para a vida humana e ajuda a
contato direto com a Bíblia, sem in- de um Sínodo sobre a Bíblia no mo- descobrir melhor o alcance e o signi-
termediários, num ambiente comu- mento atual? Qual é a sua aprecia- ficado do documento “Dei Verbum1”
nitário de fé, dentro da realidade do ção do “instrumentum laboris” para do Vaticano II sobre a Revelação; 3)
dia-a-dia da vida. Deste modo, vai o sínodo? faz perceber a importância da pre-
nascendo um confronto entre Bíblia Carlos Mesters - A importância de
e Vida. A Bíblia se torna um espe- um sínodo sobre a Bíblia no atual 1 Dei Verbum: um dos grandes documentos
emanados do Concílio Vaticano II. Ele trata da
lho, no qual as pessoas descobrem momento é muito grande por vários revelação da Palavra de Deus. Esta constitui-
dimensões mais profundas da sua motivos: 1) permite uma partilha en- ção conciliar foi estudada e debatida no dia 15-
própria vida que antes não tinham tre os bispos, participantes do Síno- 09-2005, pela Profa. Dra. Lúcia Weiler, dentro
da programação do Ciclo de Estudos Concílio
percebido. Você pergunta: “Qual o do, em torno das experiências e dos Vaticano II. Marcos, trajetórias e prospectivas,
seu limite?”. Tudo o que é humano é problemas no uso e na leitura que o 11 de agosto a 11 de novembro de2005. (Nota
da IHU On-Line)

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sença da sabedoria de Deus na lei- possa fazer o mesmo com nossos ir- à verdade histórica.
tura que os pobres do mundo inteiro mãos muçulmanos. Judeus, cristãos e  
fazem da Bíblia. Isto ajudará para muçulmanos, somos irmãos, filhos do IHU On-Line - Que hermenêuticas o
que a exegese científica descubra mesmo pai Abraão. senhor apontaria como importantes,
melhor qual a sua contribuição para hoje, na leitura da Palavra, para não
a vida das Comunidades, para a Igre- IHU On-Line – Por que os livros apó- cair em fundamentalismos, literalis-
ja; 4) o Sínodo sobre a “Palavra de crifos atraem tanto ao público? Não é mos ou leituras ideológicas?
Deus na vida e na missão da Igreja” tempo de fazer uma leitura de como Carlos Mesters - Todas as hermenêu-
completa a caminhada iniciada no foram selecionados os livros que ticas que ajudam o povo a descobrir a
Sínodo anterior sobre a Eucaristia. hoje formam a Bíblia e revisar os que presença da Palavra de Deus na vida
Quanto ao Instrumentum Laboris, a ficaram de fora? são importantes: a hermenêutica fe-
opinião geral é de que se trata de Carlos Mesters - Acho que não há o minina, a negra, a indígena, a leitura
um documento bom que está dando que revisar. Os livros chamados apó- que os pobres fazem da Bíblia, enfim,
ao sínodo um rumo positivo. O Ins- crifos atraem porque são considerados tudo que faz a gente olhar os textos
trumentum Laboris é o resultado com um olhar a partir da realidade das
das contribuições do mundo inteiro. pessoas. Resumindo, acho importante
Mostra como a Palavra está presen- seguir os três passos do método ou da
te em todos os setores da vida da hermenêutica que Jesus usou com os
Igreja. discípulos na estrada de Emaús. O pri-
meiro passo: aproximar-se das pesso-
IHU On-Line - Que leitura o senhor as, escutar sua realidade e seus pro-
faz da presença de 25 mulheres e do “Não podemos blemas; ser capaz de fazer perguntas
rabino chefe de Haifa, Israel, Shear- que as ajudem a olhar a realidade da
Yashuv Cohen, neste sínodo? esquecer nunca que vida com um olhar mais crítico (Lc
Carlos Mesters - Acho muito impor- 24,13-24). O segundo passo: com a
tante a presença das mulheres, mas Jesus era judeu, luz da Palavra de Deus iluminar a si-
ainda é pouco. Só 25 entre mais de tuação que os fazia sofrer e os levou a
200 participantes. O olhar feminino nasceu judeu, viveu fugir de Jerusalém para Emaús; usar a
descobre e revela aspectos da Pala- Bíblia para fazer arder o coração (Lc
vra de Deus que o olhar masculino não como judeu e morreu 24,25-27). O terceiro passo: criar um
percebe, e vice-versa. Os dois olhares ambiente orante de fé e de fraterni-
se completam e se enriquecem mutu- como judeu” dade, onde possa atuar o Espírito que
amente. Limitando tudo ao olhar mas- abre os olhos, faz descobrir a presen-
culino, empobrecemos a riqueza que a ça de Jesus e transforma a cruz, sinal
Palavra de Deus poderia proporcionar de morte, em sinal de vida e de espe-
às Igrejas e à humanidade. Quanto à rança. Assim, aquilo que antes gera-
presença do Rabino chefe de Haifa, va desânimo e cegueira, torna-se luz
Shear-Yashuv Cohen,2 ela é muito sig- e força na caminhada (Lc 24,28-32).
nificativa e muito importante nos nos- O resultado do uso da Bíblia é o de
sos dias. Ela nos ajuda a recuperar a proibidos. Tudo que é proibido atrai. criar coragem e voltar para Jerusa-
memória. Não podemos esquecer nun- Na realidade, nunca foram proibidos. lém, onde continuam ativas as forças
ca que Jesus era judeu, nasceu judeu, Apócrifico quer dizer que estes livros de morte que mataram Jesus, e ex-
viveu como judeu e morreu como ju- não fazem parte da lista oficial. De- perimentar a presença viva de Jesus
deu. Todo o Novo Testamento é uma veriam ser chamados de livros “não- e do seu Espírito na experiência de
interpretação do Antigo Testamento à canônicos”. É bom notar que os livros Ressurreição (Lc 24,33-35). O objeti-
luz de Jesus. Temos muito a aprender apócrifos mais tardios, escritos entre vo último da Leitura Orante da Bíblia
uns dos outros. No passado, essa perda o século V e VIII, têm uma tendência ou da Lectio Divina não é interpretar
de memória a respeito da nossa origem anti-semita, o que não é bom. É deplo- a Bíblia, mas sim interpretar a vida.
nos levou a erros e crimes ao longo dos rável. Alguns chegam quase a conside- Não é conhecer o conteúdo do Livro
séculos. Recuperar a memória significa rar Pilatos3 como um homem honesto Sagrado, mas, ajudado pela Palavra
recuperar nossa identidade através do que foi enganado pelos judeus para escrita, descobrir, assumir e celebrar
diálogo com nossos irmãos judeus. Em condenar Jesus. Isto não corresponde a Palavra viva que Deus fala hoje na
mim nasce o desejo de que, um dia, 3 Pôncio Pilatos: também conhecido simples- nossa vida, na vida do povo, na rea-
2 Shear-Yashuv Cohen: grão-rabino de Haifa. mente como Pilatos, foi Prefeito (praefectus) lidade do mundo em que vivemos (Sl
Causou polêmica na abertura da XII Assembléia da província romana da Judéia entre os anos
Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, em 06- 26 e 36. Foi o juiz que, de acordo com a Bíblia,
95,7); é crescer na fé e experimentar,
10-2008, ao apresentar o lugar da Bíblia no ju- após ter lavado as mãos, condenou Jesus a cada vez mais, que “Ele está no meio
daísmo e fazer uma alusão ao silêncio de Pio XII morrer na cruz, apesar de não ter Nele encon- de nós!”
quanto ao Holocausto. (Nota da IHU On-Line) trado nenhuma culpa. (Nota da IHU On-Line)

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Entrevista da Semana
“A literatura é um direito do cidadão, um usufruto peculiar”
Para o professor Flávio Aguiar, Antonio Candido vê a literatura como
uma práxis de iniciação à vida e à própria arte

Por André Dick, Graziela Wolfart e Márcia Junges

“O
mundo da arte tem suas exigências próprias, e não pode ser
reduzido a lições panfletárias ou receitas ideológicas, que,
em geral, só o empobrecem”, declara o professor de Litera-
tura Flávio Aguiar. Ao falar sobre a importância de Antonio
Candido, ele lembra que a grandeza da arte, para o autor,
“está em abrir horizontes e porões, os desvãos do espírito humano e sua capaci-
dade para o vôo, e não a de fechá-lo em preconceitos e prejuízos”. Flávio Wolf
de Aguiar possui graduação em Letras e mestrado e doutorado em Letras (Teoria
Literária e Literatura Comparada) pela Universidade de São Paulo. Professor apo-
sentado da USP, é pós-doutor pela Université de Montreal e autor de, entre outros,
José de Alencar — Comédias (São Paulo: Martins Fontes, 2004), e organizador de
Antonio Candido: pensamento e militância (São Paulo: Humanitas/Fundação Per-
seu Abramo, 1999). Atualmente vive em Berlim, na Alemanha, de onde respondeu
as questões que seguem, por e-mail, com exclusividade, à IHU On-Line.

IHU On-Line - Quais são as princi- “Antonio Candido aliou desde sempre uma
pais qualidades que podemos ver
em Antonio Candido enquanto crí- firme formação teórica com uma sensibilidade
tico de literatura? Ele colaborou de
que modo na formação da crítica para a linguagem comunicativa”
brasileira moderna?
Flávio Aguiar - Antonio Candido1 aliou
desde sempre uma firme formação
teórica com uma sensibilidade para a (Folha da Manhã) deu-lhe este traço caipira, Os parceiros do rio Bonito.2
linguagem comunicativa. Ele escreve hoje raro na crítica brasileira, e aju- A visão sociológica contribuiu para
de modo simples, sem se apoiar no dou-o também a formular um perfil desenvolver-lhe uma consciência de
uso abusivo do jargão cerrado do lin- de crítico como um publicista, isto é, mão dupla. A primeira mão vai no sen-
guajar acadêmico. A formação como alguém que tem consciência de que 2 Os parceiros do Rio Bonito: O debate sobre
crítico de revista (Clima) e de jornal atua num espaço público. esse livro, de Antonio Candido, abriu a segun-
da etapa do II Ciclo de Estudos sobre o Brasil,
1 Antonio Candido de Mello e Souza (1918): realizado em 2004. O evento foi realizado no
escritor, ensaísta e professor universitário, um IHU On-Line - Muitos estudos de dia 9 de setembro de 2004, e o responsável
dos principais críticos literários brasileiros. É Candido são referenciais nas uni- pelos trabalhos sobre a obra foi o Prof. Dr.
professor emérito da USP e UNESP, e doutor versidades brasileiras. Na sua visão, Paulo Seben de Azevedo, professor na UFRGS
honoris causa da Unicamp. Foi crítico da revis- e na Faculdade de Ciências e Letras de Osório
ta Clima e dos jornais Folha da Manhã e Diário como ele contrabalança sua visão li- (FACOSFACAD). O tema do debate sobre o livro
de São Paulo. Na vida política, participou de terária com sua visão sociológica? Os parceiros do Rio Bonito, de Antonio Candi-
1943 a 1945 na luta contra a ditadura do Es- Flávio Aguiar - Candido formou-se do, foi abordado pelo professor Paulo Seben
tado Novo no grupo clandestino Frente de Re- de Azevedo em entrevista concedida à IHU
sistência. Escreveu o clássico Os parceiros do em Ciências Sociais, mas seu grande On-Line na 114ª edição, de 6 de setembro de
Rio Bonito (São Paulo: Livraria Duas Cidades. estudo nesse campo foi de cultura 2004. (Nota da IHU On-Line)
1977). (Nota da IHU On-Line)

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tido de trabalhar a crítica sobre uma tempo, ele estudou o processo de
obra ou um conjunto de obras com formação de uma literatura no país,
a consciência de que ela e ele estão isto é, ele primeiro formulou o con-
emoldurados, por assim dizer, por um ceito de literatura e depois viu como
contexto social que é parte inerente e quando ela se formou no Brasil. Na
de seu significado. A segunda mão vai época, e até hoje, isso permanece
no sentido de que a moldura nunca uma abordagem muito original, e
explica inteiramente o quadro, e que que influenciou pensadores na Amé-
esse contexto só se torna significati-
“Uma das páginas mais rica Hispânica e na África, além de
vo porque é internalizado dentro da uma abordagem que pode nos fazer
obra. Esta não “reflete” o campo so-
belas da ensaística entender muito das literaturas de
cial, mas o espelha, de modo criati- outras latitudes.
vo, “distorcido”, digamos, pela visão
brasileira é o elogio
particular do autor, do grupo a que IHU On-Line - É possível explicar as
ele pertence ou com que se identifi-
fúnebre de Alencar, obras literárias a partir de um siste-
ca, e pelas particularidades próprias ma como faz Candido? Em que pon-
da linguagem artística, suas conven-
feito por Machado, em tos isso lhe chama mais atenção?
ções, inovações. Flávio Aguiar - É possível explicar
que este diz que a sua função. Por exemplo, A more-
IHU On-Line - De que maneira Can- ninha, de Macedo, não é um grande
dido alia sua visão de literatura com
aquele era grande romance, no sentido de que Dom
sua militância no campo das idéias Casmurro o é. Mas foi A moreninha
políticas?
mesmo quando que abriu o caminho para Machado e
Flávio Aguiar - Candido vê a litera- outros autores adquirirem consciên-
tura como uma práxis de iniciação à
exagerava” cia de que eram parte de um “siste-
vida e à própria arte. A literatura é ma” chamado “literatura brasileira”,
assim um direito do cidadão, além de que era um conceito inexistente, por
ser um uso particular, um usufruto exemplo, pelo menos no sentido atu-
peculiar etc. Faz parte da cidadania al, no século XVII ou mesmo no XVIII.
e de seu exercício ter o direito de A crítica sistemática, cumulativa,
aceder a todo o mundo das criações pode explicar também a inteligibili-
do espírito (não ser obrigado a isso, dade da formação de certas obras de
evidentemente). Isto posto, o mundo jestosa, complicada, contraditória, arte, por exemplo, que Machado de
da arte tem suas exigências próprias, dramática, épica e trágica urbaniza- Assis não criou no vazio; há toda uma
e não pode ser reduzido a lições pan- ção do Brasil, até os dias de hoje, trajetória coletiva que leva até ele, e
fletárias ou receitas ideológicas, que, em que os números de inverterem: que ele reconhece. Uma das páginas
em geral, só o empobrecem. A gran- 80% da população brasileira vive nas mais belas da ensaística brasileira é
deza da arte, para Candido, está em cidades. Algo dessa passagem se es- o elogio fúnebre de Alencar, feito por
abrir horizontes e porões, os desvãos pelha sempre na sua obra, pois as Machado, em que este diz que aquele
do espírito humano e sua capacidade raízes do Brasil antigo estão sempre era grande mesmo quando exagerava,
para o vôo, e não a de fechá-lo em presentes nela, ora como raiz, ora ou algo assim. Há aí reconhecimento
preconceitos e prejuízos. como recordação, ora como prisão. solene, até porque parte de um pon-
to de vista crítico, de seu débito para
IHU On-Line - Uma de suas princi- IHU On-Line - De que modo uma com seu antecessor.
pais obras, Os parceiros do Rio Bo- obra como Formação da Literatura
nito, mostra uma reflexão sobre o Brasileira é referencial para enten- IHU On-Line - Quais são as obras ou
mundo caipira de São Paulo. Como der as obras feitas no país? ensaios mais referenciais de Candi-
o senhor enxerga essa ligação esta- Flávio Aguiar - Candido estudou a do em sua visão?
belecida por Candido entre campo formação da literatura brasileira Flávio Aguiar - Todas. Mas A Forma-
e cidade? não como um processo “natural”, ção vem em destaque. Aprecio (aí é
Flávio Aguiar - Até a década de 1930, ou de “aclimatação” do português e uma questão de gosto pessoal) mui-
o Brasil era um país eminentemente de suas expressões estéticas a uma to também Brigada ligeira, Teresina
agrário com alguma expressão urba- “nova paisagem”. Ele a estudou en- & etc., e penso que “O homem dos
na. 70% da população brasileira vivia quanto um desejo, o desejo dos inte- avessos”, leitura de Grande sertão:
nas zonas rurais. Candido cresceu lectuais brasileiros, a partir de certo veredas, está entre os momentos cul-
neste mundo. Ao mesmo tempo, pre- ponto, de criar uma literatura que minantes do ensaio brasileiro e uni-
senciou, viveu e influenciou a ma- desse expressão ao país. Ao mesmo versal.

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Destaques On-Line
Essa editoria veicula entrevistas que foram destaques nas Notícias do Dia do sítio do IHU.
Apresentamos um resumo delas, que podem ser conferidas, na íntegra, na data correspondente.

Entrevistas especiais feitas pela IHU On-Line e disponí- Caravana da Anistia. A luta pela preservação da memória
veis nas Notícias do Dia do sítio do IHU (www.unisinos. brasileira.
br/ihu) de 14-10-2008 a 18-10-2008. Entrevista com Jair Krischke
Confira nas Notícias do Dia 16-10-2008
Imposto sindical. “Os sindicatos estão maduros para a A memória brasileira é algo lamentável, uma vez que episó-
mudança” dios como os vividos durante a ditadura militar ainda não
Entrevista com Adalberto Cardoso foram investigados e resolvidos, constata Jair Krischke. A
Confira nas Notícias do Dia 14-10-2008 Caravana da Anistia estará hoje na Unisinos.
O sociólogo faz aqui nesta entrevista uma análise do sin-
dicalismo no Brasil, sobre a crise que se sustenta neste Soluções para a crise financeira? Uma questão política e
campo, a influências e as mudanças que a Constituição de jurídica que esbarra nos limites do capitalismo.
1988 tem sobre ele e, também, sobre a forma como deve Entrevista com André Lourenço
trabalhar a partir de agora. Confira nas Notícias do Dia 17-10-2008
Para o economista, o Brasil será afetado pela crise, mas
40 horas semanais de trabalho: “Se o trabalhador não possui vantagens em relação a outros países para enfrentar
romper com isso, certamente não será o empresário que este problema, como a preservação do seu sistema finan-
o fará”. ceiro público e a baixa relação crédito x PIB.
Entrevista com João Tristan Vargas
Confira nas Notícias do Dia 15-10-2008 Ainda que seja inevitável que a economia brasileira sofra
“Parece-me particularmente incrível que no país as cen- com essa crise, ela tem boas condições para enfrentá-la.
trais sindicais continuem a colocar como bandeira a jor- Entrevista com Simone de Deos
nada de 40 horas semanais”, critica o historiador João Confira nas Notícias do Dia 18-10-2008
Tristan Vargas, entrevistado pela IHU On-Line, que fala A economista acredita que o Brasil está preparado para en-
sobre o taylorismo e fordismo no mundo do trabalho e frentar a crise financeira que abala o mundo, mas, ainda
sobre o discurso e ação patronal. assim, deverá sofrer algumas conseqüências desse momen-
to turbulento da economia.

Análise da Conjuntura
A Conjuntura da Semana está no ar. Confira no sítio
do IHU - www.unisinos.br/ihu, em 15-10-2008.

acesse A análise é elaborada, pelos colegas do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores
- CEPAT - com sede em Curitiba, PR, em fina sintonia com o IHU

www.unisinos.br/ihu
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Agenda da Semana
Confira os eventos dessa semana, realizados pelo IHU.
A programação completa dos eventos pode ser conferida no sítio do IHU (www.unisinos.br/ihu).

Dia 22-10-2008
IHU Idéias
Globalização: Descolonização ou Colonização das Mentes?
Prof. Dr. Marcelo Dascal — Universidade de Tel Aviv (Israel)
Horário: das 17h30min às 19h
Local: Sala 1G119 — Instituto Humanitas Unisinos — IHU
Dia 23-10-2008
IHU Idéias
Via(da)gens teológicas. Itinerários de uma teologia queer no Brasil
Prof. Dr. André Sidnei Musskopf — EST
Horário: das 17h30min às 19h
Local: Sala 1G119 — Instituto Humanitas Unisinos — IHU

Participe dos novos eventos


do IHU
Confira a programação em
www.unisinos.br/ihu

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Perfil Popular

Inês Raimunda Conor Bordori


Por Bruna Quadros

H
á 49 anos, nascia, em Jaguariaíva, no Paraná, Inês Raimunda Conor
Bordori. Ao conversar, por telefone, com a revista IHU On-Line, ela
lembrou da infância, dos ensinamentos de seus pais e contou sobre
o seu trabalho como voluntária junto à comunidade da Vila Vitó-
ria, no bairro Sítio Cercado, em Curitiba, onde mora. Aposentada
pelo Banco do Estado do Paraná, ela atua no voluntariado muito mais do que
somente para ter com o que se ocupar. Inês se preocupa com a vida de quem
está próximo a ela e são menos favorecidos, socialmente. Acompanhe, a seguir,
a história de Inês:

“Meu pai, Luis Gabriel, trabalhava Aos 17 anos, Inês teve seu primeiro as. Eu não pararia com este trabalho,
no escritório de uma indústria. Minha emprego, numa empresa de represen- porque é muito gratificante ver as pes-
mãe, Maria de Lurdes, era enfermei- tações de fitas. Depois disso, fez con- soas felizes, ver que fiz alguma coisa
ra.” Assim, Inês começa a contar a sua curso para o Banco do Estado, onde para ajudar.”
trajetória de vida. Ela, que é a filha ingressou em 1978. Há 30 anos, Inês Inês é casada há 24 anos. Os filhos,
mais velha entre outras três irmãs, aos mora em Curitiba. Atualmente, Inês é Bruno Felipe, e Isabele, 17 a 21 anos,
nove anos de idade, teve uma grande aposentada, mas nem por isso parou são suas maiores alegrias. “Orgulho-me
perda. Sua mãe faleceu, vítima de de trabalhar. “Faço trabalhos voluntá- do meu filho, que abriu a sua estofaria.
câncer. “A maior tristeza da minha rios para a comunidade e trabalho em Vejo que ele é muito responsável, por-
vida.” Mesmo com este sofrimento, uma padaria comunitária, vinculada que aos 21 anos teve essa iniciativa.
Inês conseguiu aproveitar a infância. ao Cefuria.1 Já estou nesta atividade Estes valores vêm da família, da ma-
“Lembro de brincar de casinha, fazer há três anos. Atualmente, são três pes- neira como a gente o educou. Minha
comidinha e teatrinhos.” Com a morte soas trabalhando na padaria, que fun- filha está concluindo o segundo grau e
de sua mãe, ficou para o pai de Inês ciona na comunidade São Sebastião.” já pensa na faculdade que vai fazer.”
a responsabilidade de criar as filhas. Inês relata que decidiu atuar junto à Inês destaca que aprendeu com os pais
Foi com ele que Inês aprendeu a ter comunidade, porque sempre gostou de que o casamento é uma vez só. “Eu
responsabilidade, amor ao próximo e ajudar as pessoas. “Meu grande sonho também dou curso de noivos e sempre
a ser honesta. é poder ajudar as pessoas mais neces- falo para eles que não puderam esco-
Inês conta que morou em Jagua- sitadas, em termos de saúde, de ali- lher o pai e a mãe, mas o companheiro
raiva até os 12 anos de idade. “De lá, mentação saudável e moradia.” tem que ser especial.”
fomos para Telêmaco Borba, também Há cinco anos, Inês trabalha como Seguidora da religião católica, Inês
no Paraná. Depois que minha mãe fa- tesoureira na associação de morado- destaca que quem não tem fé não tem
leceu, meu pai acabou saindo da em- res da Vila Vitória, em Curitiba. Mui- os pés no chão. Ela demonstra que
presa onde ele trabalhava e queria tas pessoas da comunidade têm pro- tem os pés no chão, também, quando
trabalhar por conta própria. Então, blemas, como depressão. “Para mim, o assunto é política. “Nesta época de
ele comprou uma lanchonete lá.” Inês este trabalho é muito importante, eleições, o povo acha que todos são
teve como estudar até o Ensino Médio. porque estou ajudando a outras pesso- bonzinhos. É aí que está o erro. As pes-
Não deu continuidade aos estudos, 1 Centro de Formação Urbano Rural Irmã soas estão sem esperança, votam no
Araújo (Cefuria): Organização Não-Governa-
porque não tinha condições financei- mental fundada em 1980, com o objetivo de
primeiro que chega e oferece alguma
ras. “Para mim, o estudo é fundamen- assessorar e articular instituições populares. O coisa em troca do voto. O povo precisa
tal para educação, sabedoria. É im- foco do Centro é na Economia Solidária. (Nota entender mais o que é a política em si,
da IHU On-Line)
portante para tudo.” mudar a própria consciência.”

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