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O Amor

Certas pessoas jamais se enamorariam se


Nunca tivessem ouvido falar em amor
La Rochefoucauld

Se o sexo é a saída da família, enamorar-se é o caminho de volta, a passagem


de ida que é sempre um retorno. Do ponto de vista psicanalítico, os milagres
de afinidade são ecos de nossos primeiros fascínios. Esses estados de absorção
são a forma mais imediata de memória, a sensação de exclusividade, o sinal
misterioso do passado. O que está sendo recrutado, ou melhor, evocado – o
que possibilita essas experiências transformadoras – é o conhecimento e
desejo da infância.
Quando nos enamoramos, estamos nos lembrando de como nos enamorar. E
pela recuperação dessas versões anteriores de nós mesmos, obtemos uma
espécie de competência visionária. Porém, se enamorar-se é sempre um
lembrete, para Freud é o lembrete de uma impossibilidade. “O amor infantil é
ilimitado”, escreve ele, “demanda posse exclusiva, não se contenta com menos
que tudo. Mas ele tem uma segunda característica: de fato, não tem nenhuma
meta e é incapaz de obter satisfação completa e, principalmente por isso, está
fadado a terminar em desapontamento”. Estamos atualmente enfeitiçados – e
aterrorizados – por essa história de insaciabilidade, de infinita falta; é o nosso
sublime moderno, captado como paródia no comentário de Jacques Lacan de
que o amor é dar algo que não obtivemos para alguém que não existe. Mas
essa descrição freudiana da criança é sua versão do Fausto – o herói recriado
por Goethe, o “gênio” da língua nativa de Freud -, a figura lendária para quem
conhecimento e desejo são sinônimos; e para quem sua igualdade, seu
contrato, encanta a morte. Porém essa confusão originalmente platônica entre
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o amante e o conhecedor – como se fossem atividades comparáveis – confere


a cada um deles um projeto impossível. Como se cada um tivesse de fazer
ambas as coisas a fim de fazer uma delas. Nossa história, a intimidade é
informação privilegiada (ou invejável). O analista, diz Lacan em sua famosa
formulação, é aquele que tem obrigação de saber; não como poderia ter dito,
aquele que tem obrigação de amar. Supõe que o conhecer anteceda ou inclua o
amar. (Mais tarde ele diria: “Aquele a quem suponho conhecer, eu amo”; o
que claro, também é diferente). Uma vez que amar foi descrito como querer,
temos de encontrar alguém para querer e é nesse ponto que, supõe-se, entra o
conhecimento. Enamorar-se é, tradicionalmente, uma loucura para certos
filósofos, psicanalistas e poetas porque, entre outras coisas, ironiza de modo
irrecuperável toda distinção entre certeza e ceticismo.
“Transferência”, “repressão”, “fetichismo”, “narcisismo”, “o enigma da
feminilidade” – todos esses conceitos-chave psicanalíticos confirmam a
sensação de que, na psicanálise, amar é um problema de conhecimento.
Amantes são como detetives: estão tentando descobrir algo que fará toda a
diferença. E as histórias que a psicanálise conta sobre o amor tendem a
confirmar uma narrativa tradicional de progresso sobre a aquisição de
sabedoria (a sabedoria, naturalmente, é sempre antierótica). Os amantes
começam prodigamente criativos, produzindo ilusões cativantes e recíprocas
(recicladas do passado), apenas para se desapontarem com a verdade. A
loucura do amor é uma jornada do anti(ou dis) fundamentalismo até, de certa
maneira, as rochas da convicção. A psicanálise, em outras palavras, subscreve
a concepção de que enamorar-se não é uma boa maneira de chegar ao
conhecimento de alguém (em oposição, digamos, a pensá-lo simplesmente
como outra maneira, não invalidada pelos eventos subseqüentes). Como
alternativa, a psicanálise oferece-nos o romance de desilusão no qual
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enamorar-se é o prelúdio (por vezes necessário) a uma coisa melhor mas


reduzida –melhor porque reduzida - , uma apreciação mais realista de si
mesmo e da outra pessoa (ao que o esteta poderia replicar: Se isso é “real”,
então façamos outra coisa). Nessa história moderadora, a espontaneidade da
“idealização” - normalmente um pejorativo, e sempre uma matéria de capa na
psicanálise – é substituída pelas vacilações da ambivalência. Após todo o
entusiasmo, há as revelações do desalento. A frustração é a aura do real. Mas
pode ser que nesse lar crepuscular do desapontamento, promovido pela
psicanálise, as pessoas não estejam sofrendo com seu conhecimento, e sim
com a perda de uma capacidade mais implacável para a reinvenção do self
e/ou outra reinvenção. Não foi a verdade que ganharam; foi, por assim dizer,
sua capacidade de verter que perderam.
Freud e Proust estão alertas, de modos complementares, aos sentidos em que
conhecer as pessoas – ou certos sentidos de conhecimento sobre as pessoas –
podem ser antieróticos e percebem que a intenção inconsciente de certas
formas de familiaridade é matar o desejo. Não se trata simplesmente de que o
retraimento ou o ciúme sustentem o desejo, mas que certas maneiras de
conhecer as pessoas reduzem o interesse que elas têm por nós, e que essa pode
ser sua vontade permanente. Assim, temos de estar atentos às maneiras pelas
quais as pessoas nos convidam – ou nos permitem- conhecê-las; e também
alertar-nos para a possibilidade de que conhecer pode ser um modelo
demasiado tendencioso e matreiro para o amor.
É claro que os amantes são epistemólogos notoriamente frenéticos, perdendo
apenas para os paranóicos (e os analistas) na leitura de sinais e prodígios. Mas,
como seria enamorar-se se o conhecimento de si ou do outro, de si como um
outro, não fosse a meta ou o resultado? O que estaríamos fazendo juntos se
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não estivéssemos conseguindo nos conhecer? Outra maneira de dizer isso seria
imaginar um encontro ou um relacionamento sem perguntas (respondíveis).

É como se o amado, ou o desejado, fosse aquele por quem é impossível não


estarmos interessados. Mas, por serem nossas linguagens de amor versões da
teologia e da epistemologia, elas são inexoravelmente redentoras e
esclarecedoras. “Como sei se conheço alguém?” é uma pergunta muito
diferente de “Como sei se amo ou desejo alguém?”. Certas pessoas jamais
saberiam, se nunca tivessem ouvido falar em saber.

Adam Phillips
O Flerte
1998- São Paulo: Companhia das Letras.
Epistemologia
1 reflexão geral em torno da natureza, etapas e limites do conhecimento humano, esp.
nas relações que se estabelecem entre o sujeito indagativo e o objeto inerte, as
duas polaridades tradicionais do processo cognitivo; teoria do conhecimento
2 Estudo dos postulados, conclusões e métodos dos diferentes ramos do saber
científico, ou das teorias e práticas em geral, avaliadas em sua validade cognitiva, ou
descritas em suas trajetórias evolutivas, seus paradigmas estruturais ou suas
relações com a sociedade e a história; teoria da ciência.

Matreiro

1 dotado de sagacidade para lidar com pessoas ou situações; sabido, experiente


2 que é esquivo, que não se deixa pegar facilmente (diz-se de animal)
3 diz-se de pessoa esperta, ardilosa, que usa de má-fé e esquivas

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