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Cultura: um conceito antropológico

Roque de Barros Laraia


O desenvolvimento do conceito de
cultura

A primeira definição antropológica de cultura foi


apontada pelos olhos de Edward Tylor (1871) que
formou a teoria de endoculturação, que vinha crescendo
desde o Iluminismo. Tentou demonstrar seu conceito,
afirmando que a cultura é um fenômeno natural que
possui regularidades e causas e que seus estudos
objetivos são capazes de proporcionar a formulação de
leis sobre o processo evolutivo e cultural.
Tylor buscava apoio nas ciências naturais e
concordava com outros pensadores como Aristóteles e
Leibniz e reafirmava a igualdade da natureza humana,
dizendo ser possível um estudo preciso em
comparação de raças da mesma civilização. A
variedade de culturas é explicada por ele como sendo
um resultado desigual do processo de evolução. Por
este motivo a antropologia estabeleceu uma escala de
civilização superiorizando às nações europeias e
colocando no outro extremo da escala as tribos
selvagens.
O século XIX foi um período de muitos estudos
tentando analisar o desenvolvimento das instituições
sociais, buscando explicações para procedimentos do
passado para a atualidade, predominando a ideia de
que a cultura desenvolve-se de maneira uniforme,
de forma que as sociedades atuais passassem as
mesmas etapas percorridas por sociedades
consideradas mais avançadas. E desta maneira criou-se
uma "escala de civilização’’ de forma claramente
etnocêntrica, na qual as sociedades humanas eram
classificadas hierarquicamente, porém com prioridade
para as nações europeias.
  A principal reação ao evolucionismo, conhecido como
método comparativo, inicia-se com Franz Boas (1858-
1949), atribuindo a antropologia duas tarefas: a
reconstrução da história de povos ou regiões
particulares e a comparação da vida social de
diferentes povos, cujo desenvolvimento segue as
mesmas leis. Além disso, Boas desenvolveu o conceito
de que cada cultura segue os próprios caminhos em
função dos diferentes eventos históricos por qual passou
(particularismo histórico) e isso nomeou-se Escola
Cultural Americana. A partir daí, a explicação
evolucionista só tem sentido quando ocorre em termos
de uma abordagem multilinear.
 Alfredo Kroeber (1876-1960)antropólogo americano,
mostrou como a cultura age sobre o homem e que
graças a ela distanciou-se do mundo animal anulando
seus instintos geneticamente determinados. Apesar dos
instintos serem quase todos perdidos, como na fase da
amamentação, os seres humanos passam a ofuscar seus
instintos e buscam se espelhar nos padrões culturais da
sociedade (ex: p.51 e 52). O homem passou a ser
considerado um ser que está acima de suas limitações
orgânicas, rompendo as barreiras das diferenças
ambientais. Uma de suas preocupações de Kroeber era
distinguir o orgânico do cultural.
Para se manter vivo o homem primata precisa do seu
sistema biológico e suas funções vitais, independente do
sistema cultural que pertença, embora as funções sejam
comum em toda sociedade, a maneira de satisfazê-las
mudam de uma cultura para outra. Todo ato do homem
predominantemente cultural depende inteiramente de
um processo de aprendizagem, portanto seus
comportamentos não são biologicamente determinados.
Kroeber procurou mostrar que o homem criou o seu
próprio processo evolutivo superando o orgânico, ou
seja, ampliando sua força e agilidade, sem passar por
quase nenhuma modificação física e assim de certa
forma libertando-se da natureza, a cultura é o meio de
apropriação de diversos ambientes ecológicos (ex: 42).
Cultura é um processo acumulativo de gerações que
determina o comportamento do homem, porém
permitem mudanças. O homem reflete o conhecimento
e a experiência adquirida pelos seus antecedentes, e
isto restringe ou estimula o processo criativo de cada
um deles. Não basta a natureza criar seres humanos
sábios, é necessário que esteja ao alcance desses
indivíduos o material que lhes permitam executar sua
criatividade inovadora (ex: p. 48). A comunicação é
um sistema cultural indispensável, pois se homem
não obtivesse possibilidades de propagar sua
comunicação oral, a cultura não poderia existir.
Concluímos que, toda a experiência cultural de um
indivíduo é transmitida para os demais, criando um
interminável processo de acumulação cultural (ex: p.
53).
Ideia sobre a origem da cultura

O que nos difere dos demais animais e nos privilegia


diante deles? 
Uma das primeiras teorias afirma que a cultura tenha
surgido no momento em que o cérebro do homem
começou a raciocinar e evoluir, porém, por ser uma
teoria muito genérica, ainda ficam os questionamentos
de como e por que houve essa evolução.            
Segundo antropólogos, como Richard Leakey, Roger
Lewin, David Pilbean e Kenneth P. Oakley, tal evolução
se deu através da vida arborícola que instigou os seres a
terem a sua percepção alterada de acordo com as suas
necessidades de sobrevivência, fazendo com que se
adaptassem ao meio em que viviam. Tais adaptações
como o aumento do campo de visão ao ficar ereto,
descoberta da sensibilidade tátil - que atribuiu
significados aos objetos, até então, sem utilidade -
fizeram com que sua capacidade cerebral se tornasse
mais complexa e evoluída permitindo o desenvolvimento
da inteligência humana e início da cultura.  
A partir do momento em que o primata torna-se
homem, começam a surgir teorias contemporâneas,
como a de Claude Lévi-Strauss, que considera que o
surgimento da cultura se deu com a criação da 1º
regra: a proibição do incesto. Neste momento, o
homem começa a distinguir o certo do errado, ditando
comportamentos e construindo símbolos.      
Para Leslie White toda cultura depende de símbolos e
para interpretá-los é necessário conhecer a cultura que
os criou(p. 57); cultura esta que se consolidou devido a
uma evolução lenta e contínua, o que fez com que a
teoria do ponto crítico seja descartada. Definitivamente
a natureza não age por saltos, a cultura evolui de acordo
com o desenvolvimento humano (p.57).
A cultura desenvolveu-se, pois, simultaneamente com o
próprio equipamento biológico.
Teorias Modernas sobre cultura

Existem diversos antropólogos fundamentando teorias


modernas sobre cultura, e nessa soma, surge uma ideia
em comum, a ideia de cultura como sistema
adaptativo (p. 60 e 61) – Keesing, 1974)
Em segundo lugar, Roger Keesing refere-se às teorias
idealistas, onde podemos criar três ramificações. A
primeira nos mostra a cultura como um sistema de
conhecimento, o qual é criado através dos princípios
básicos que adquirimos para sobreviver dentro da
sociedade em que fomos inseridos (ex: sistemas de
classificação folk, p. 62).
A segunda é encarada como um acúmulo de
informações adquiridas com o tempo; a soma da arte,
vida, linguagem, expressões, entre outros.
E por fim, a terceira ramificação, conhecida como
sistema simbólico, diz que somos adaptáveis para viver
em qualquer cultura, “todos nascemos para viver mil
vidas, mas terminamos no fim tendo vivido uma só.
Esta é uma discussão que permeará tempos, pois uma
compreensão exata do conceito de cultura significa a
compreensão da própria natureza humana.
A cultura condiciona a visão de mun
do e homem
De acordo com antropóloga  americana Ruth
Benedict, autora do livro O Crisântemo e a Espada,  a
cultura faz o homem enxergar o mundo por meio dela
e ter diferentes percepções do modo de viver.
Exemplo citado é o caso de alguém sem conhecimentos
aprofundados da vegetação na floresta amazônica, para o
indivíduo seria um aglomerado de árvores, flores e
plantas, já para um estudioso de botânica ou um índio
(habitante da região) a percepção seria diferente, algumas
árvores seriam até ponto de encontro em meio a mata,
plantas até serviriam como medicação. Logo o meio que
você vive forma sua maneira de agir. Geralmente a
discriminação ocorre quando o indivíduo age de forma
diferente da cultura da região, faz algo que está fora do
padrão estabelecido de seu povo.
Devido à cultura de cada povo (tribo) criamos o hábito
de julgar o que não é igual a nossa maneira de agir e
pensar pode ser errado, mas não significa que todas as
culturas seguem essa linha de pensamento.
Um exemplo empírico seria o caso do riso. A primeira
vez que foi visto um índio Kaapor rir, foi um motivo de
susto. A emissão sonora, profundamente alta,
assemelhava-se a imaginários gritos de guerra e a
expressão facial em nada se assemelhava com aquilo
que estavam acostumados a ver. Fica ainda mais claro,
que tal fato explica porque cada cultura tem um
determinado padrão para este fim. Mesmo sendo o
exercício de atividades consideradas como parte da
fisiologia humana que podem refletir diferenças de
cultura.  
O riso é provocado por diferentes motivos em cada
cultura, o estilo de comédia americano, pastelão, não tem
o mesmo feedback que uma comédia erótica italiana pois
em nossa cultura a piada deve conter um certo teor sexual
invés de trapalhadas, como torta na cara. Citando os
japoneses outra vez, mesmo em situações visivelmente
desagradáveis riem por etiqueta. Em suma o riso é
condicionado pelos padrões culturais.
Referindo-se ainda a questões fisiológicas, como o riso
podemos citar alguns exemplos existentes no artigo de
Marcel Mauss "Noção de técnica corporal"2, que visa
analisar as diferentes maneiras de homens de diferentes
culturas utilizam seus corpos. Um exemplo citado por
Mauss é a técnica de nascimento, segundo ele Mãya deu
a luz a Buda estando em pé, algumas mulheres na Índia
ainda  dão a luz desta maneira. Em nossa cultura a
posição comum para o parto é deitada sobre as cotas e
entre os Tupis e outros índios o comum o parto de
agachados.
A diversidade gastronômica também é baseada pela
cultura. Um prato típico de um país pode ser
considerado normal para quem já está acostumado,
porém, visto com os olhos de outro grupo , assusta e se
torna estranho, por não existir um conhecimento sobre
os alimentos. Mas não é somente o fato do alimento ser
diferente, mas também as formas e meios que cada
povo utiliza para comer. Muitos utilizam as mãos para
ingerir os alimentos, palitos e talheres.
Em cada região do mundo existe um padrão tradicional
ou local de alimentação que oferece uma variedade
necessária para a saúde e o crescimento. Cada grupo
utilizada sua cultura para a boa alimentação do seu
povo.  Essa alimentação alternativa que transforma
cada cultura em uma exclusiva.
No livro New Perspectives in Cultural Anthropology
3, Roger Keesing inicia com uma parábola de uma
jovem búlgara que oferece um jantar a estudantes
americanos de seus maridos, entre os convidados
estava um jovem asiático. Ao terminar a jovem
perguntar quem gostaria de repetir, pois na cultura
búlgara você está arruinado se alguém sai de sua casa
faminto, e o jovem asiático aceita repetir o segundo,
terceiro, e quarto prato, porém na metade do quarto
prato de comida o jovem se joga ao chão na certeza de
que está é a melhor maneira de dizer que está
satisfeito, pois em seu país é um insulto você recusar a
comida que lhe é oferecida.
Assim chegamos ao etnocentrismo, causado por cada grupo
acreditar que o seu modo de vida é o correto e assim causando
conflitos sociais. O etnocentrismo é um fenômeno universal, é
natural que cada região defenda sua cultura como a correta.
Vejamos alguns exemplos:
Os Cheyene, índios das planícies norte-americanas, se
autodenominavam "os entes humanos"; os Akuáwa, grupo Tupi
do Sul do Pará, consideram-se "os homens"; os esquimós
também se denominam "os homens"; da mesma forma que os
Navajo se intitulavam "o povo". Os australianos chamavam as
roupas de "peles de fantasmas", pois não acreditavam que os
ingleses fossem parte da humanidade; e os nossos Xavante
acreditam que o seu território tribal está situado bem no centro
do mundo.
Em alguns casos a crença desses grupos em se achar
superior aos outros grupos ultrapassa limites, e se
utilizam dessa certeza da superioridade para justificar
seus atos de intolerância a quem não faz parte de seu
grupo.
Temos a tendência de dividir o tratamento as outras
pessoas em “nós e outros”, que são os parentes tratamos
de forma diferenciada ou seja aqueles que pertence a
nossa cultura e os não-parentes que tratamos com
indiferença e as vezes até preconceitos.
A cultura interfere no plano biológico

Reação oposta ao etnocentrismo: APATIA.


Em uma determinada situação de crise os membros de
uma cultura abandonam a crença nos valores de sua
própria sociedade e perdem a motivação que os
mantém unidos e vivos. Exemplos p. 77 e78.
Doenças psicossomáticas: O termo “doença
psicossomática” é bastante utilizado quando uma
doença física ou não, tem seu princípio na mente. É
aquela que não é exclusivamente somática, corporal,
mas tem origem na psique, na alma. São fortemente
influenciadas pelos padrões culturais.
Quem acredita que o leite e a manga constituem uma
combinação perigosa, certamente, sentirá um forte
incômodo estomacal ao ingerir esses alimentos.
A cultura também é capaz de provocar doenças, reais
ou imaginários. Estas curas ocorrem quando existe a
fé do doente na eficácia do remédio ou no poder dos
agentes naturais.
Xamã: A cura consiste em uma sessão de cantos e
danças.
Os indivíduos participam diferentemente da
cultura

O indivíduo em sua participação na cultura é limitada


Notamos que a participação do indivíduo dentro da
sua própria cultura é, e sempre será limitada, devido a
algumas limitações impostas por seus próprios
participantes.
Marion Levy Jr. apud Laraia, afirmou:

“Nenhum sistema de socialização é idealmente perfeito,


em nenhuma sociedade são todos os indivíduos
igualmente bem socializados, e ninguém é perfeitamente
socializado. Um indivíduo não pode ser igualmente
familiarizado com todos os aspectos de sua sociedade;
pelo contrário, ele pode permanecer completamente
ignorante a respeito de alguns aspectos.”(LARAIA,
1999, pág. 84)
É verdade que, quando observamos os parâmetros
relacionados à idade como fonte de divisória dentro
de uma determinada sociedade ou cultura, os efeitos
são mais desastrosos, a idade tem se tornado um
agente impulsionador para reger diferentes
participações de indivíduos dentro de sua própria
cultura, baseado neste contexto escreveu Marion Levy
Jr. “nenhum sistema de socialização é idealmente
perfeito”.
O indivíduo de qualquer sociedade ou grupo, não existe
a possibilidade de um indivíduo dominar todos os
aspectos de sua cultura, porém deve existir um mínimo
de participação na pauta de conhecimento da cultura a
fim de permitir a sua articulação com os demais
membros da sociedade.

Quando olhamos para as diferenças relacionadas a sexo


dentro de uma determinada cultura, vemos que a própria
sociedade e seus indivíduos estabelecem divisões. 
A cultura tem uma lógica própria

Segundo o autor, todo sistema cultural tem a sua própria lógica e não

passa de um ato primário de etnocentrismo tentar transferir a lógica de
um sistema para outro. Infelizmente, a tendência mais comum é de
considerar lógico apenas o próprio sistema e atribuir aos demais um alto
grau de irracionalismo.
Nesse sentido, a coerência de um hábito cultural somente pode ser

analisada a partir do sistema a que pertence. Consequentemente, as
explicações encontradas pelos membros das diversas sociedades
humanas, portanto, são lógicas e encontram a sua coerência dentro do
próprio sistema. Ex. 92.
Por conseguinte, conclui Laraia, entender a lógica de
um sistema cultural depende da compreensão das
categorias constituídas pelo mesmo. Como categorias
entendemos, como Mauss, "esses princípios de juízos
e raciocínios constantemente presentes na linguagem,
sem que estejam necessariamente explícitas, elas
existem ordinariamente, sobretudo sob a forma de
hábitos diretrizes da consciência, elas próprias
inconscientes”.
“Muito do que supomos ser uma ordem inerente da
natureza não passa, na verdade, de uma ordenação que
é fruto de um procedimento cultural, mas que nada
tem a ver com uma ordem objetiva.” (LARAIA, 2001,
Pág. 89).
A cultura é dinâmica
Para Laraia existem dois tipos de mudança cultural: uma
que é interna, resultante da dinâmica do próprio sistema
cultural, e uma segunda que é o resultado do contato de um
sistema cultural com um outro. Ex: p.98.

No primeiro caso, a mudança pode ser lenta, quase


impercebível para o observador que não tenha o suporte de
bons dados diacrônicos. O ritmo, porém, pode ser alterado
por eventos históricos tais como uma catástrofe, uma grande
inovação tecnológica ou uma dramática situação de contato.
O segundo caso pode ser mais rápido e brusco.
Para Laraia, como a cultura tem um caráter dinâmico,
este segundo tipo de mudança, além de ser o mais
estudado, é o mais atuante na maior parte das sociedades
humanas. Pois é praticamente impossível imaginar a
existência de um sistema cultural que seja afetado apenas
pela mudança interna.

Assim, cada sistema cultural está sempre em mudança.


Entender esta dinâmica é importante para atenuar o
choque entre as gerações e evitar comportamentos
preconceituosos. Ex: p. 102.
O tempo constitui um elemento importante na análise
de uma cultura. Ex: p. 104.

Da mesma forma que é fundamental para a


humanidade a compreensão das diferenças entre povos
de culturas diferentes, é necessário saber entender as
diferenças que ocorrem dentro do mesmo sistema. Este
é o único procedimento que prepara o homem para
enfrentar serenamente este constante e admirável
mundo novo do porvir.

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