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METAPSICOLOGIA

FREUDIANA
Uma introdução

Paul-Laurent Assoun

Jorge Zahar Editor 1\


142'\ Transmissão
V da Psicanálise
METAPSICOLOGIA FREUDIANA:
UMA INTRODUÇÃO

O termo "metapsicologia", utilizado por


Freud pela primeira vez em uma carta a
Fliess de 1896, veio a se constitu\r em seg­
mento essencial de sua obra: uma superes­
trutura teórica e coerente, na qual a enorme
diversidade dos achados da experiência clí­
nica pôde encontrar inscrição lógica passível
de se sustentar em seus diferentes aspectos,
dinâmico, tópico e econômico. Embora a im­
portância da rnetapsicologia não pudesse ser
maior afmal é dela que a psicanálise extrai
-

sua legitimidade epistêmica -, não são


muitos os escritos psicanalíticos que se de­
bruçam sobre esse domínio tão árduo e nu­
clear da teoria que, com efeito, Freud lamen­
tou não haver esgotado.
Neste trabalho de fôlego, Paul-Laurent
Assoun propõe uma introdução à metapsi­
cologia freudiana que apresenta a estrutura
lógica e heurística da teoria psicanalítica em
suas mais primordiais articulações. Trata­
se, para o autor, de definir os conceitos fun­
damentais da metapsicologia e a rede de no­
ções e temas que gravitam em torno de cada
núcleo conceitual. Desse modo, vêem-se as
noções-chave da teoria psicanalítica emer­
girem nos diversos patamares do edifício me­
tapsicológico com um conteúdo homogêneo,
e sempre com esclarecimentos novos e
originais.
Esta Metapsicologiafreudiana compõe-se
de três grandes partes - os fundamentos,
os elementos, as màrgens - ao longo das
quais o autor disseca, com mestria o com­
plexo arcabouço teórico psicanalítico. Os
fundamentos tratam da forma metapsi­
cológica, co� seu objetÇ>, ·seus exemplos e T@íbhoteta jf reullíana
METAPSICOLOGIA
FREUDIANA
uma introdução

suas ficções. Os elementos enfocam a repre­


sentação em seu caráter dúplice, de coisa e
de palavra, bem como a letra. As margens
dizem respeito ao aquém da representação:
o afeto, o corpo, o ato e o relato. Assoun
conclui com uma abordagem do sujeito da
psicanálise, categoria pouco freqüente no
texto freudiano, mas cuja função atravessa
toda sua teoria e sua práxis.

PAUL-LAURENT ASSOUN, nascido em 1948


na Argélia, formado em filosofia, psicopa­
tologia e psicologia Clínica, é professor da
Universidade de Paris VII e co-diretor do pro­
grama Psicanálise e Práticas Sociais de Saú­
de (cNR.s!Universidade da Picardia), além de
dirigir a coleção "Philosophie d' Aujour­
d'hui" para a editora francesa Presses Uni­
versitaires de F rance.

É autor de inúmeras obras, muitas delas tra­


duzidas no Brasil, destacando-se: Freud, a
filosofia e os filósofos (1976); Marx et la
répétition historique (1 978); Freud e
Nietzsche (1980); lntroduction à L'épis­
témologie freudienne (1981); Freud e a mu­
lher (1983, rev.1993; Jorge Zahar Editor,
1993); L'entendement freudien (1984);
Freud et Wittgenstein (1988); Le pervers et
lafemme (1989); O freúdismo (1990; Jorge·
Zahar Editor, 1991); Le couple inconscient
(1992); Freud et les sciences sociales (1993).
. Paul-Laurent Assoun

METAPSICOLOGIA
FREUDIANA
uma introdução

Tradução;
DULCE DUQUE ESTRADA

Revisão:
MARCOS COMARU
Mestre em teora
i psicanalítica. UFRJ

T@íbhoteta jf reullíana

Jorge Zahar Editor


Rio de Janeiro
Título original:
lntroduction à la métapsychologie freudienne
Tradução autorizada da primeira edição francesa,
publicada em 1 993 por Quadrige I Presses Universitaires
de France, de Paris, França
Copyright Q 1993, Presses Universitaires de France
Copyright@ 1995 da edição em língua ponuguesa:
Jorge Zahar Editor Ltda.
rua México 31 sobreloja
2003 1 - 1 44 Rio de Janeiro, RJ
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A reprodução não-autorizada desta publicação, no todo
ou em parte, constitui violação do copyright (Lei 5.988)

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Assoun, Paul-Laurent
A869m Metapsicologia freudiana: uma introdução I Paul-
Laurent Assoun; tradução, Dulce Duque Estrada;
revisão Marcos Comaru. - Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1996
-(Transmissão da psicanálise)

Tradução de: lntroduction à la métapsychologie


freudienne
ISBN 85-7 1 1 0-346- 1

I. Freud, Sigmund, 1 856-1939; 2. Metapsicologia.


3. Psicanálise. I. Titulo. 11. Série
CDD 150. 1952
-

96-0147 CDU 1 59.964.2


-
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

PROLEGÔMENOS
a um ''Tratado de Metapsicologia" . . . . . . . . . . . . . . . . . l3

PRIMEIRA PARTE

OS FUNDAMENTOS
Da forma metapsicológica

CAPiTULO I

O OBJETO METAPSICOLÓGICO.
O evento freudiano . . . . . . .
. . . . . . . . . . . 23
1. Da matéria metapsicológica 23
2. Da exigência de real ao enunciado metapsicológico 26
3. Metapsicologia e metafísica 31
4. A certeza de alteridade 32
5. O sujeito, operador metapsicológico 33
6. Metapsicologia do id�: destinos da Kultur 35
·

7. A ética do metapsicólogo ·37

Notas 39

CAP{TULOII
O EXEMPLO E A COISA.
Clínica e metapsicologia . . . . . . . . . . . . . . 42

1. O estatuto <lo saber clínico 42


2. o exemplo é a própria coisa" 44.
·..

3. A racionalidade clínica como "exemplificação" 46


. 4. O '1uízo clínico" como procedimento de reflexão 50
5. Da "arte do sintoma" à referência transferencial 52

Notas 54
CAPÍTULO III

FICÇÃO E FICCIONAMENTO METAPSICOLÓGICOS. . . 56


Figuras da ficção 57
1. A ficção metapsicológica: o "aparelho psíquico" e o
"imaginário tópico" 59
2. A "ficção originária": a "convenção metapsicológica" 61
3. Crítica metapsicológica do "ficcionalismo": Freud e a
filosofia do "como se" 63
4. O fantasiar metapsicológico 68
5. A "construção", a ficção e a história 70
6. O supereu metapsicológico 71

Notas 72

SEGUNDA PARTE

OS ELEMENTOS
Doutrina da representação: da matéria metapsicológica

CAPÍTULO IV

REPRESENTAÇÃO DE COISA E
REPRESENTAÇÃO DE PALAVRA.
Por uma metapsicologia da linguagem . . 77

I. Da patologia da linguagem à lógica da representação 79


1. Aflfsia e patologia verbal 79
2. O associacionismo lógico 81
3. Lógica e patho-lógica: a função da nomeação 82

11. A representação verbo-coisa/, operador metapsicológico 84


I. Metapsicologia e doutrina da representação 84
2. Instituição do operador metapsicológico 84
3. Psicose e razão lógica 86

III. Metapsicologia do sujeito falante: psicanálise e lingüística 88


1. Da psicologia da linguagem à lógica do inconscieate 88
2. Significância lingüística e significância inconsciente 89
Conclusão: objeto metapsicológico e sujeito da representação 92
Notas 94

CAPÍTULO V

A COISA.
Metapsicologia e psicossexualidade . . . . . . . . . . . . . . . 96

I. Genealogia da Coisa sexual 99


1. O discurso dos Mestres, ou a Coisa mata 99
2. Por que não o dizem? ou a Urszene freudiana 102
3. A fala dos neuróticos, ou a Coisa dita 105
4. Por que eles não o sabem? ou a Coisa nem sabida nem dita
108

11. Metapsicologia da Coisa sexual JJO


1. O afeto da Coisa: o Unheimliche 111
2. O odor do recalcado J13
3. Lógica da Coisa. Tempo 1: a representação 114
4. Lógica da Coisa. Tempo li: o (des)julgamento 115
5. Lógica da Coisa. Tempo III: a função Ver- ou o
(des)raciocínio 117

III. A episteme da Coisa 120


1. A arte da alusão: o exemplo como coisa 120
2. A ilusão sexológica 122
3. A Coisa-pretexto 123

Notas 124

CAPÍTULO VI

A LETRA.
Por uma metapsicologia do ler 127

I. Metapsicologia do Lesen 127


I. O laço oculto entre a representação e a Coisa 127
·

2. O Lesen, operador mágico 129


3. O Lesen, compilação fantasística 130

11. Do Lesen ao Verlesen: destinos inconscientes do texto 133


10 OLer-sintoma 133
2 O sonhador e o leitor 136
0

3 Édipo leitor 137


o
I

m; o sujeito da leitura e o trabalho da fantasia 138


1 A Trieb do leitor 138
0

20 O leitor e o neurótico 139


30 A excitação do escrito 141
40 O atestado do sintoma 142

O Livro inconsciente 143

1. O livro do sonho 143


20 A censura, operador do livro inconsciente 144

Notas 146

TERCEIRA PARTE
AS MARGENS
O aquém da representação:
da situação metapsicl6gica

CAPÍTULO VII

OAFETOo
O evento .metapsicológico o o o o o o 0 151

Da afetividade ao afeto: a "doutrina do afeto" 152

I. A cena primitiva do afeto: a histeria 154

1. O "afeto encurralado" 154


20 Da emoção ao afeto: Freud com Darwin 156
3o Afeto e trauma 158

H. O afeto e seu destino inconsciente:


metapsicologia da angústia e doutrina do afeto 159

l o Um estranho afeto 159


20·0 "sinal de angústia" ou a memória-de-afeto 161
30 O "luto" entre afeto e "trabalho" 162
40 Retrato metapsicoló&ico do afeto 162
111. Figuras do afeto: afetos e "destinos do afeto" 167
l. O afeto, indicador "semiótico" clínico 167
2. O "destino social" do afeto 168
3. O afeto no tratamento 170

O sujeito, o Outro e o afeto 171

Notas 172

CAPÍTULO VIII

O CORPO.
O Outro metapsicológico . . . . . . . . . . 174

Campo semântico do Corpo freudiano 176

I. O Corpo captado pela clínica 178


l. O corpo-sintoma: a histeria 178
2. O corpo próprio e o desejo do Outro 180

ll. Por uma "metapsicologia do Corpo" 181

l. O Corpo, aquém da metapsicologia: a pulsão 181


2. A retórica do órgão 1 84
3. Do corpo-Narciso ao corpo-isso 185

m. O Corpo, "função" do inconsciente 187


1. O Eu-corpo 187
2. O Corpo-passagem 190
3. O Corpo e a Kultur 190
Corpo e Grund metapsicológico 192

Notas 192

CAPITUWIX

OATO.
Por uma pragmática metapsicológica . 194

Sobre a aporia do at<> e do insconsciente 194

Campo semântico da Ação em Freud 195

I. Princípios de uma meto.psicologia dos atos 197


1. No começo era a ação não-específica 197
2. Da inércia à ação 199
3. A função do Outro 200
4. A cena originária: ato e fantasia 202

II. Da metapsicologia à clínica da ação 204


1. Do princípio de realidade ao Eu ator 204
2. O ato-sintoma 206
3. A ação-compulsão ou a práxis obsessiva 208
4. Do ato falho à primeira mentira: o passo em falso histérico
211
5. Da renegação à prática da castração 212

III. Uma metapsicologia em ato: o agir no tratamento 214


1. A prática da recordação e da "atuação" 215
2. A dramatrugia do tratamento: ação e ab-reação 216

Conclusão: O Ato como equívoco metapsicológico 219


O momento faustiano da análise 219

O primitivo do ato 220

Notas 222

CAPÍTULO X

O RELATO.
Escrita do sintoma e escrita metapsicológica 226

I. Genealogia da Krankengeschíchte freudiana 228


1. Primum narrare 228
2. Da pintura à diegese 229
3. A emergência do gênero: o "romance do sintoma" 230
4. A Dichtung neurótica 232
5. O relato mnésico 235
6. Tipologia do relato: a narratividade freudiana 236

II. Morfologia da escrita freudiana do sintoma 237


1. O momento da escrita 237
2. A arte da "apresentação" 239
3. Os pródromos da história: os protocolos 240
4. A escrita da anamnese 242
5. O ato de nomeação 243
6. O sujeito, objeto do relato 245
7. A verdade da "pós-história" 247

· III . Metapsicologia da Krankengeschichte 249


1 . As aporias epicríticas 249
2. Temporalidade "histórica" e temporalidade metapsicológica
251
3. A metapsicologia como Nacherziihlung 251

Notas 252

CONCLUSÃO

O SUJEITO.
A função metapsicológica 257

O sujeito da psicanálise 257

O paradoxo do sujeito 258


1. Gênese metapsicológica do "sujeito" 259
2. A "palavra" e a "coisa": a gênese do "subjetivo" 261
3. O primeiro regime metapsicológico do "sujeito": sujeito da
"constituição" e objeto libidinal 263
4. O segundo regime metapsicológico do sujeito: o "sujeito
narcísico" 266
5. O terceiro regime metapsicológico do sujeito: do Eu
sedimentado ao Eu clivado 269
6. Do "Eu físsil" ao sujeito clivado 271
7. Da fenda do Eu: o sujeito e a estrutura 275

."Jetapsicologia e genealogia do sujeito:


o estranho sujeito freudiano 277
Notas 282

ÍNDICES
Apresentação 285

Índice de noções e de temas 287


Índice de termos alemães 289
Índice de nomes próprios 291
INTRODUÇÃO

PROLEGÔMENOS
a um
"Tratado de Metapsicologia"

"É preciso que você me diga seriamente se posso dar à minha


psicologia que vai além do consciente o nome de metapsicologia. " 1
Interrogando-se sobre a pertinência desse neologismo, no momento
em que sela o nascimento da psicanálise, Freud está ciente de engajar
seu próprio ato de fundação. É a " metapsicologia" que constitui a
superestrutura teórica da psicanálise, mas também sua identidade
epistêmica. Aí estão a cabeça e o coração do saber dos processos
inconscientes, " laboratório" que se construiu tratando o material
proveniente da observação e da escuta clínicas.
Logo, é pela metapsicologia que se pode introduzir à coisa psica­
nalítica, se quisermos compreender ta,nto seus fundamentos quanto o
lugar vivo do seu trabalho. É como metapsicologia que a psicanálise
se legitima nas fontes batismais do saber ou aí sela sua " ilegitimidade" .
Introduzir à metapsicologia freudiana é, por conseguinte, fazer entrar
nesse laboratório. É dessa maneira que a psicanálise realiza sua
ambição de ser uma " ciência" no sentido próprio2 e executar a ruptura
com a " opinião" . Mas esse também é o meio de avaliar a especificidade
desta episteme que deve estar à altura de seu objeto, o " inconsciente"
ao qual ela impõe uma desconstrução incansável - o que a fez merecer
seu título de Psychoanalysis.
É justamente por não existir uma estrada real para a verdade que
é necessário, na " ciência do inconsciente" também, esse trabalho
metapsicológico. É verdade que o próprio termo comporta uma
conotação iniciática: "que ninguém entre aqui (na psicanálise) se não

13
14 introdução

for 'metapsicólogo' !" Mas, precisamente, o melhor meio de se


participar desse trabalho é explorar o seu traçado. Como trabalho de
retomada, incessante e datado, a metapsicologia escapa à " monotonia"
da teoria, alimentando-se do verdor da experiência clínica, sempre
nova, mas trazendo a esta uma pontuação necessária. É por isso que
Freud sempre adiou a escrita do que seria um " Tratado de metapsi­
cologia" . Se chegou perto de lhe dar forma, por volta de 1 9 15,3 foi
também adiando-o sine die que melhor significou seu impossível
fechamento. Uma introdução à metapsicologia não poderia, portanto,
apresentar-se como o resumo de um tal Tratado - inexistente -,
nem mesmo como o plano de tal Tratado de metapsicologia -
indesejado. É preciso renunciar à ilusão " deduti vista" que ordenaria
uma "ordem das matérias" metapsicológicas; mas isso não quer dizer
que as profundas " percepções" (no sentido mais forte de Einsichten,
intrusões na própria coisa) sejam deixadas ao improviso. É necessário
confrontar-se com a lógica dos textos freudianos, em seus tempos
fortes de " metapsicologização" , para sentir seu suntuoso rigor, posto
à prova da lei da incerteza de seu objeto singular.
Um compromisso, ele próprio rigoroso, consiste, pois, em esboçar,
a igual distância do Tratado more geometrico e da " rapsódia" empírica,
essa rede temática que se une à lógica de emergência dos pontos de
cristalização meta-psico-lógica.
Essa viagem pela metapsicologia não é, portanto, uma deriva sem
bússola - o mínimo que se pode dizer é que Freud não a " perde"
diante de um objeto que a ela se presta -, mas tampouco confia em
qualquer porto de ancoragem para onde voltaria, a cada " tempestade" ,
com toda a segurança: ela assume o risco de configurar o litoral pelo
próprio trajeto que seu objeto, fundamentalmente in-esperado, lhe
impõe, sem no entanto se deixar levar por uma correnteza que a
impediria de pensar seu objeto.
Deve-se tomar ao pé da letra a noção de uma Darstellung meta­
psicológica: como " descrição" , ela é fundamentalmente " formaliza­
ção" (Gestaltung) e " pintura" (Schilderung). Existe, com efeito, uma
arte metapsicológica como existe uma arte pictórica: esse " quadro"
de três dimensões (tópico-econômico-dinâmica) evolui sem cessar
" por pinceladas" , buscando incansavelmente demarcar seu " objeto" .
Um " fato" bruscamente " salta aos olhos" , assume importância,
aproxima-se de outros, de sorte que a " paisagem" se vê modificada.
Freud nos advertiu: " a atividade psicanalítica ( ... ) não se deixa manejar
tão facilmente quanto os óculos que se colocam para ler e que se
prolegômenos 15

tiram para ir passear" .4 Mas, precisamente, a metapsicologia é essa


" lente" que permite dar relevo a elementos em constante desloca­
mento, cujas metamorfoses se trata de apreciar. Visão de um quadro
de conjunto, de tal modo tudo se mantém no afresco metapsicológico,
mas as modificações podem assinalar-se bruscamente, não importa de
que " lado" do quadro, e exigem então que se redesenhe o conjunto,
ou que se desloquem seus " painéis" em diversas articulações para
fazer justiça ao " detalhe" novo.
Assim, demarca-se progressivamente " o único ponto obscuro" , em
tomo do qual se trata, em dado momento, de se " concentrar" . É nesse
" ponto" que se trata de " concentrar toda a luz" , prestes a fazer
" artificialmente as trevas" em torno de si .5 Então, é em torno desse
centro que se recompõe o conjunto do quadro. A metapsicologia não
suporta o " claro-escuro" das " visões de mundo" e das sínteses
frouxas: ela é empreendimento incansável de clarificação, e por isso
mesmo prova desse ponto de obscurecimento que estrutura todo o
quadro. É com esse " realismo fantástico" que convém abordar a
composição desse quadro.
Desse quadro complexo, pode-se destacar um " motivo" central?
É oportuno dar a compreender aqui esta tese central: o " incons­
ciente" só tem efeito, em sua acepção psicanalítica, se for construído
como Objeto metapsicológico - o que explicaremos no capítulo
inicial, que supõe um traçado da construção freudiana.
Portanto, isso significa, se levarmos a sério a posição freudiana em
face da racionalidade filosófica6, por um lado, e a situação específica
da " epistemologia freudiana" ,1 por outro lado; se compreendermos,
enfim, que existe realmente um " entendimento freudiano" 8 para acusar
a recepção desse evento, que não há mais Discurso do Inconsciente
desde Freud: o inconsciente é este " sistema" dotado de propriedades
econômico-dinâmicas, cujo pensamento - refratado pelo saber psi­
canalítico - modifica, tão indireta quanto irreversivelmente, as
grandes entidades conceituais. O que faz do " freudismo" um evento
de racionalidade também.9
Isso só é possível, de início, a partir do que, justamente, não é de
início pensado, mas escutado: ou sej a, a mensagem da clínica, esse
real que requer um pensamento. A metapsicologia, com efeito, é
basicamente " pós-escritura" (Nacherziihlung) de algo que se anunciou
na escuta clínica (neurótica). Mas isso mesmo constitui um princípio
epistemológico, que o adágio freudiano " O exemplo é a própria coisa"
formula com provocação (capítulo li). Eis por que é necessário fazer
16 introdução

dele o limiar obrigatório da "viagem" pela metapsicologia freudiana,


cuja essência é o "ficcionamento" (capítulo III), mas cujo exemplo é
o lastro clínico.
A "coisa", certamente, mas qual? Não é por acaso que a vontade
freudiana de revelação do não-dito se cristaliza com o murmúrio
de Charcot: ''É a coisa, sempre." Mas essa coisa psicossexual requer
a explicitação eminentemente metapsicológica dessa instância ôn­
tica (que justamente recusa a ontologia). Daí a investigação sobre
essa instância da Coisa (capítulo III), verdadeira base de partida da
metapsicológica.
Mas a Coisa nos remete, por uma dialética da representação, a seu
avesso, a Palavra (capítulo v). Veremos assim como a função da
linguagem é, por sua vez, afetada pelo Objeto metapsicológico. Ela
é prolongada pela questão da leitura e da escrita, em suma, a questão
da Letra (capítulo VI). Ponto de problemática da Escrita em Freud,
mas o sismo metapsicológico comanda, não fortuitamente, a sua
releitura - no sentido mais ... literal.
Uma outra bifurcação necessária irá orientar-nos em direção à
ordem daquilo que resiste à representação - tanto "de palavra"
quanto "de coisa": ou seja, a instância do Corpo e do afeto - questão
que a metapsicológica encontra em seu avesso (capítulos VII e VIII),
por um lado; a questão do Ato - este elevado lugar de equívoco
metapsicológico, por outro lado; se é verdade que o Ato não é somente
ó "parente pobre" da representação, mas sua prova de verdade e de
realidade (capítulo IX), que mostra a solidariedade entre o ato clínico
e a cena metapsicológica.
Chegados a esse ponto do relato metapsicológico, poderemos voltar,
num "fecho de retroação", conforme seu movimento, àquilo de onde
saiu a metapsicologia e que ela, por sua vez, alimenta. Assim, será
tempo de compreender em que medida a Nacherziihlung metapsico­
lógica encontra seu respondente na criação de um verdadeiro "gênero"
inédito, o de uma escrita clínica do processo sintomático e do sujeito
- momento freudiano da diegese (capítulo X).
Isso nos fará esbarrar naquilo que é ao mesmo tempo a resultante
de todo o trajeto precedente, o ponto de articulação da clínica e da
teoria freudiana, mas também, paradoxalmente, seu ponto cego: a
noção de sujeito merece a atenção no capítulo final (Conclusão), na
medida em que ela jamais se objetiva, justamente, a título próprio,
mas atravessa de certa maneira todo o movimento de emergência da
matéria metapsicológica. A Metapsicologia, falando propriamente, só
prolegômenos 17

falaria desse sujeito aí funcionando in absentia o que nos leva a


-

um dos principais paradoxos desse discurso metapsicológico na busca,


de algum modo meta-fórica, de seu objeto.

*****

Este retrato da metapsicologia freudiana parte da dupla constatação


de que a psicanálise engaja toda a sua legitimidade epistêmica na
apresentação metapsicológica e que, segundo a fórmula de Freud, este
" ensaio permaneceu um torso, ( ... ) pois ainda não chegara o tempo
de uma fundação teórica" 10• Essa constatação de 1 925 leva a marca
de um luto e de uma sabedoria: do templo metapsicológico, só resta,
literalmente, essa estátua inacabada, esse fragmento de uma obra-prima
inacabada que adia sine die a realização de um Wunsch que só emerge
com mais força: a obra inacabada manifesta pateticamente o desejo
de acabamento; ela o manifesta de maneira mais intensa que as obras
aparentemente mais " acabadas" . Do corpo da metapsicologia, incan­
savelmente recolocada no suporte da origem ( 1 896) até seu último
alento ( 1 93 8)11, resta apenas " o torso" : mas essa magnífica carcaça
nos permite produzir o traçado desse monumento cuj a realização Freud
refere à reescrita indefinida da " coisa" clínica. É a essa arte rigorosa
do esboço que se trata de reintroduzir. A metapsicologia permanece
essa " criança-problema" 12 cujo pai se pergunta se ela realmente nasceu
e que, por isso mesmo, sobrevive à sua morte:

* Este Metapsicologia freudiana: uma introdução deve ser entendido como uma

iniciação a um procedimento de pesquisa, bem como um balanço fundamental


de " conhecimento". Logo, ela supõe, ao lado do esclarecimento de conceitos,
uma reconstituição. do encaminhamento do trabalho metapsicológico nas suas
complexidades. Compreender o que contém um" conceito" ou uma " problemática"
metapsicológicos é captar por que vias eles se impuseram em referência a um
questionamento clínico. O esforço de exegese tem, pois, como recompensa, o
ganho de inteligibilidade do próprio real clínico que ele revela. Portanto, seguimos
de perto o texto metapsicológico freudiano e retraduzimos, com esse fim, da
maneira mais literal possível, cada vez que necessário, as passagens envolvidas,
com uma referência aos termos alemães suscetíveis de atrair a atenção do leitor,
germanista ou não, para o conteúdo e as " conotações" do termo. Referimo-nos,
a partir de agora, à paginação das Gesammelte Werke, Fischer Verlag, seguida
pelo número do volume e da página, podendo o leitor remeter-se, a título de
apoio, às traduções disponíveis em francês.
18 introdução

Nota

O presente trabalho se organizou durante etapas marcadas por diversas publicações.


Assim, o capítulo I tem sua origem na nossa contribuição ao número da Revue
lnternationale de Philosophie consagrado ao cinqüentenário da morte de Freud,
pelo qual fomos responsáveis (4/1989, n. l 7 l ). O capítulo 11 remete a um artigo
publicado no Bulletin de Psychologie, 377, XXXIX, 1 6- 1 8, 1987, que fazia eco
ao colóquio " La rigueur, le contre-transfert du chercheur" , 1 6- 1 7 de janeiro de
1986 (Laboratoire Psychologie Clinique, Universidade de Paris VII).
O Capítulo III, inédito, teve seu primeiro estímulo no colóquio " Fictions et
statut des fictions en psychologie" (dezembro de 1984, Universidade de Paris
XII), que havia ocasionado uma contribuição na coletânea La fabrique, la figure
et la feinte (org. por Paul Mengal e Françoise Parot, Yrin, 1989).
Uma série de contribuições à Nouvelle Revue de Psychanalyse (NRP) (Galli­
mard) permitiu balizar este trajeto, pela consideração das " categorias metapsico­
lógicas" principais:
- sobre A Coisa sexual (NRP, n.29, primavera 1984), reproduzida no capítulo V;
- sobre A Leitura (NRP, n.37, primavera 1 988), reproduzida no capítulo VI;
- sobre Os Atos (NRP, n.3 1 , primavera 1 985), reproduzido no capítulo IX;
- Sobre Histórias de casos (NRP, n.42, outono 1 990), reproduzidas no
capítulo X.
Agradecemos a J.-B. Pontalis, diretor da Nouvelle Revue de Psychanalyse, a
autorização para a reprodução desses artigos.
A matéria do capítulo IV foi fornecida por uma apresentação no colóquio
" Opérations mentales et théories linguistiques" (Université de Paris VIl, CNRS,
junho de 1991 ). A do capítulo VIII provém de uma contribuição à jornada de
estudos do CERPP da Université de Picardie (abril de 1 983), que foi objeto de
uma nova versão publicada em Analyses et Réflexions sur le Corps (EIIipses/Mar­
keting, 199 1 ).
O restante dos capítulos é inédito.
prolegômenos 19

NOTAS À INTRODUÇÃO

1. Carta a Wilhelm Fliess de IO de março de 1898, in La naissance de la


psichyanalyse, carta 84, PUF, p.218.
2. Ver, sobre este ponto, nossa lntroduction à I'épistémologie freudienne, Payot,
1981, reed. 1990.
3. Sabe-se que a Metapsicologia publicada contém apenas quatro ensaios, o
conjunto devendo conter I 2. Freud destruiu os outros ensaios, com os quais estava
insatisfeito, uma vez que se assegurou de sobreviver à guerra (segundo E.Jones,
La vie et l 'oeuvre de Sigmund Freud, PUF, vol. 11, 1961).
Um " conceito" de ensaio foi encontrado em 1985 e publicado em 1986 sob
o título Vues d 'ensemble des névroses de transferi, Gallimard, 1986.
4. Novas conferências sobre psicanálise, GW XV, 204.
5. Carta a Lou Salomé de 25 de maio de 1916.
6. Cf. sobre essa dimensão nossos estudos Freud, la philosophie et les
philosophes, PUF, 1976; Freud et Nietzsche, 1980, 1982; Freud et Wittgenstein,
PUF, 1988.
7. Cf. nossa lntroduction à l 'épistémologiefreudienne (op. cit.), que faz conjunto
com a presente introdução: uma interroga os " modelos" do saber freudiano, a
outra examina suas modalidades internas de elaboração.
8. Noção que procuramos estabelecer em nossa obra L 'entendement freudien,
Logos et Ananke, Gallimard, 1984.
9. Cf. a primeira parte de nosso texto Le freudisme, PUF, 1990.
10. Selbstdarstellung (Estudo autobiográfico), cap. V, GW, Fischer Verlag, vol.
XIV, p.85.
11. É assim que se vê Freud, à época do exílio londrino, nos últimos meses
de sua vida, remanejar uma síntese que retoma o problema do " aparelho psíquico"
como se fosse novo, do tempo do " Projeto para uma psicologia científica" , 1896,
reunindo uma síntese de meio século numa nova " dedução" sob o título de...
" Esboço de Psicanálise" !
12. Essa é a expressão empregada por Freud na sua correspondência com
Fliess, no momento em que ele inventa o termo.
PRIMEIRA PARTE

OS FU1VDAMENTOS
Da forma metapsicológica

Nesta primeira parte, trata-se de tematizar o projeto metapsicológico


enquanto tal, isto é, abranger seu campo e extensão de maneira
"sinóptica " (tempo 1), antes de detalhar, ao longo da pesquisa, suas
componentes. Essa caracterização da identidade epistêmica, que é a
posição do Objeto metapsicológico, vai remeter-nos à localização de
seus dois "pólos ": referência ao "material ", ou posição do "exemplo "
como operador da "coisa em si ", por um lado (tempo 11); referência
ao trabalho da "ficção " e do "ficcionamento " metapsicológicos, por
outro lado (tempo 111).
Trata-se, portanto, de uma "doutrina dos fundamentos " da razão
metapsicológica, com base na qual o exame do trabalho metapsico­
lógico pode tornar-se legível. Em outras palavras, é a exposição da
"forma metapsicológica ", parte ''fundamental " que torna decifrável,
em seguida, o movimento do "conteúdo " .
CAPÍTULO I

O OBJETO METAPSICOLÓGICO
O evento freudiano

Não se trata em absoluto de admitir algo que seria


mais animador ou mais cômodo e mais vantajoso para
a vida, e sim o que mais se aproxima dessa misteriosa
realidade existente fora de nós.
Sigmund FREUD

1. Da matéria metapsicológica

"É de Freud, entre outros - mais que nos físicos -, que se deve
tomar emprestada uma representação da matéria ( . . . )." Talvez
devamos p artir desse paradoxo provocante enunciado por Georges
B atai lle1 p ara compreender o desafio que o freudismo dirige ao
entendimento filosófico, através do " entendimento" específico que
ele faz emergir.2
Que tem Freud a ver com o " materialismo" , ele que se recomenda
por um ideal cientista demarcado por Naturwissenschaften e por seu
" agnosticismo" correlativo? Existe realmente, a seus olhos, a exigên­
cia de uma ciência dos processos psíquicos inconscientes, à qual
convém fazer justiça. Em que essa psiquê inconsciente, ou melhor, o
conjunto do s processos pensáveis sob esse termo, seria matéria, ou
antes, a matéria?
O que nos desorienta nessa representação é o nosso próprio conceito
de materiali smo, que supõe uma subordinação de todos os fenômenos
à instância da " matéria morta" , de sorte que, como observa Bataille
nesse mesmo contexto, a doutrina materialista se apóia paradoxalmente
numa visão idealista: é um idealismo do princípio-matéria? É um
materialismo inteiramente outro que Freud torna possível, aquele
baseado numa " interpretação direta, excluindo todo idealismo, dos
fenômenos brutos" . Talvez fizéssemos melhor batizando isso de
" fenomenismo" , se, justamente, a ele não se acrescentasse uma de-

23
24 os fundamentos

cisão - de certa forma ética - de se ater a um bruto sem um mundo


além, nem profundidade, que no entanto não se dá como simples
superfície, com a certeza de que - como dizia Grabbe, citado de
bom grado por Freud - "jamais cairemos fora deste mundo" .
Do fato de que Freud tenha a ver com processos psíquicos de um
certo tipo não se deve, no entanto, inferir que ele se instale sem
problemas na racionalidade psico-lógica.
Tudo começa, com efeito, com esta afirmação: " Psicanálise é o
nome para: 12) um procedimento psicológico de investigação de
processos psíquicos quase inacessíveis de outra maneira... " 4
Reivindicação de um alcance incalculável, dissimulada por trás da
modéstia de um enunciado técnico. Freud, aqui, nomeia uma exigên­
cia. Ele chama por este nome aquilo que não é mais que um método
de investigação de um tipo de " processos" - nomeadamente " in­
conscientes" . Mas ele é formal: é i sso, exclusivamente, o que os torna
" acessíveis" . Impossível, pois, para quem quiser ter acesso aos
processos inconscientes, tomar um outro caminho - ainda que se
possa questionar essa reserva (esse " quase" é somente o desejo da
ciência analítica).
É por um " rebote" que a psicanálise chega a definir: " 212) um modo
de tratamento das desordens neuróticas, fundado, justamente, no
procedimento de investigação dos processos inconscientes. O que faz
com que Freud j amais separe, por um momento sequer, a pesquisa
da " terapia" . Não há diferença entre pesquisar o ser neurótico e
" tratá-lo" . Nada de fascinação, aqui , por uma clínica pura, que
desampare o saber. Conforme um procedimento que não deixa de ter
relação com a Naturphilosophie goethiana, é extraindo esse saber da
forma (aqui, neurótica) que se informa o próprio processo clínico.
É por um último rebote que a psicanálise serve para nomear: "32)
uma série de concepções psicológicas adquiridas por esse meio e que
se desenvolvem juntas para formar progressivamente uma nova
disciplina científica" . Eis portanto formulada, em assíntota, a ambição
de uma Scienzia nuova. A psicanálise é essa " ciência especializada"
(Spezialwissenschaft) que sorve em seu próprio movimento a ambição
de se tornar um dia " uma ciência" - aí está a forma íntima da sua
Wunscheifüllung ! Elaborando em cima de Bataille, que só cita Freud
como um exemplo desse materialismo, podemos perguntar-nos se a
originalidade de Freud não consiste em ter inventado, mais que
ilustrado, um materialismo capaz de fazer justiça aos fenômenos ditos
inconscientes.
o objeto 25

Nada pode ser mais distintivo do empreendimento freudiano que


essa determinação em restituir a seqüência dos fenômenos psicosse­
xuais em sua " realidade" . A densidade de sua escrita parece-nos
destinada a restituir um inconsciente sem frases - entendamos,
desprendido de toda retórica pseudometafísica - ou, como ele diz,
" uma constatação leal" . Por isso mesmo ele decide - aposta temível
- fazer o inconsciente ingressar na ciência, mas ingressa nela apenas
por romper com o próprio conceito de ciência. Eis por que Freud,
discípulo fiel de seus mestres e de seu ideal cientista, não cessa de
transgredi-lo fabricando os dispositivos de uma ciência inédita, que
faz da metafísica uma " sobrevivência" .5
Se é demais dizer que é do fundador da psicanálise que " convém
tomar emprestada uma representação da matéria", não é exagerado
expor o problema nestes termos : Freud esculpe sua ciência inédita,
modesta e ameaçada de uma ilegitimidade permanente, assim como
a estrutura antropológica. É realmente com a matéria psíquica que ele
tem a ver - a ser entendida sem metáforas e, principalmente, não
como uma psiquê, entidade que, ao contrário, ele contribui para
dissolver de maneira decisiva, como a inscrição - cronicamente
problemática - do homem na sua verdade. Consultar o oráculo
freudiano do inconsciente é mesmo, com efeito, aprender algo da
estrutura de uma " matéria" . O inconsciente não é um fato psicológico
- e sobretudo não o fato psicológico principal: é o acesso ao que
está sempre ali e sempre faltoso:. " a matéria" ! Não há materialismo
mais radical, nem mais afastado da noção comum do materialismo!
É por essa recusa de " toda tagarelice sobre o ideal" ,6 mas também
sem ceder "à obsessão de uma forma ideal da matéria" , que convém,
com efeito, penetrar no empreendimento freudiano. Essa referência
ao dado combina-se, entretanto, com a convicção de que é necessário
um saber da alteridade.
O que se segue, portanto, é um retrato da " racionalidade" a que
Freud dá forma. Mais que interpelá-la a partir do exterior e intimá-la,
de uma certa maneira a dar conta do que é recenseado como " ciência"
ou " teoria da cultura", mais, realmente, que avaliá-Ia pela medida da
" filosofia" , trata-se de ver desenhar-se cineticamente, de alguma
forma, os momentos dessa forma posicional de objetividade - " ordem
das razões" , mais que das " matérias" . De fato, é problematizando,
mais que tematizando, que se tem mais chances de revelar o sentido
do evento freudiano na ordem do saber - com o que isso supõe de
emergência.
26 os fundamentos

Este pode ser formulado contra aquele da (re)presentação - no


sentido do termo Darstellung - desse objeto tão singular que é " o
inconsciente" . Freud herda, aqui, o problema kantiano d a repre­
sentação transcendental: como apresentar o "X" com cara de sujeito,
essa " coisa em si" que só é abordável com o rosto do sintoma?
Mas, precisamente, se o " freudismo" está tão estreitamente, até
mesmo tiranicamente, ligado à " psicanálise" , é porque somos reme­
tidos sem cessar às condições de possibilidade da subjeti vidade
freudiana como " legislação" de seu objeto. A Darstellung da " obje­
tividade inconsciente" extrai seu sentido da Selbstdarstellung, a
apresentação de si freudiana. Tal é o sentido epistemológico, e não
somente existencial, das fórmulas em que o inventor da psicanálise
constata, quase que se desculpando, que seu " destino de vida" está
tão estreitamente ligado ao destino da psicanálise.7 Talvez ele o tenha
expressado da maneira mais patética nessa observação a Fliess, no
ano-charneira do " nascimento da psicanálise" : " Desde que estudo o
inconsciente, tornei-me eu mesmo muito interessante." 8 Para além da
frase espirituosa, existe aí a indicação de uma especificidade epistêmica
do objeto da psicanálise: o " inconsciente" tem essa virtude, única em
seu gênero, enquanto objeto de " estudo" , de interessar o sujeito em
si mesmo - o que contrasta, por sua radicalidade, com a categoria
frouxa do " interessante" . O " destino" de Freud é ter-se deixado
interessar por seu objeto, de onde ele retoma um interesse por si -
extrapolando-o, audaciosamente, para o sujeito do inconsciente. En­
quanto a ciência " normal" faz de um certo des-interesse pelo sujeito
a condição de sua validade, eis um saber que faz o sujeito se apaixonar,
legitimamente, por seu próprio traço no objeto. Só que ele não relança
a fascinação narcísica, ao contrário, perturba-a, recordando-lhe a lei
do Objeto não sabido. Eis o que requer, ao que nos parece, uma
reflexão epistemológica tão radical quanto singular.

2. Da exigência de real ao enunciado metapsicológico

Para entrar na atmosfera da operação freudiana, nada é mais decisivo


que esta decisão de dizer o real, expressa, não por acaso, a propósito
da pulsão de morte, coração do real clínico. " Não se trata, em absoluto,
de admitir algo que seria mais animador, ou mais cômodo e mais
vantajoso para a vida, e sim o que se aproxima ao máximo dessa
misteriosa realidade existente fora de nós" - o que distancia Freud
o objeto 27

de todo " ficcionalismo" . O próprio inconsciente é para Freud - que


reivindica ser seu " explorador" , mais que " pensador" - o que nos
confronta de dentro com esta " misteriosa realidade" que se trata de
enfrentar. Programa de Aujkliirung - Sapere aude - que renuncia
a todo ponto de vista, por mais difundido que seja, que filtre esse
real. Freud confessa assim, sem afetação, que " concluiu, com (suas)
teorias sombrias, um casamento ditado pela razão" , mais que pela
" inclinação" . 9 A psicanálise inaugura-se nessa atmosfera de frustração
que contrasta com seu objeto, e isso mesmo é uma posição de
racionalidade. A teoria deve deixar-se impor a lei de seu objeto, sem
metaforizá-lo. Nada mais afastado do propósito leniente que o projeto
freudiano.
Este começa, pois, com uma vontade de revelação de formas de
linguagem inconscientes - muito mais que como uma inspeção das
profundezas. É verdade que a psicanálise se deixa batizar de Tiefen­
psychologie, mas é no sentido em que quem quer o fim - a revelação
da própria realidade - deve querer o meio: a exploração das
" profundezas" pelas quais o mistério de sua estrutura é levado à
expressão. Nada de retórica nessa referência a essa " misteriosa
realidade", nada de vibração equívoca: o que é misterioso é o ponto
mais denso da realidade, seu excesso de real - e não o movimento
de esquiva pelo qual ela se furtaria ao conhecimento. É por isso que
Freud não aborda seu objeto numa atmosfera de estranheza cúmplice
- como nas práticas do charlatanismo do comércio de mistérios -,
mas com a postura decidida de quem está resolvido a portar o estandarte
da razão até o centro dessa realidade que zomba da razão.
Se abordarmos, de certa forma fenomenicamente, o conhecimento
analítico através da postura definida por Freud como que em ato de
fundação, destaca-se um sentimento notável: o de um excesso crônico
da objetividade a ser pensada - o que Freud caracteriza como Material
- com relação ao próprio conhecimento. Essa exuberância " material" ,
em vez de determinar algum empirismo, traduz-se por uma exigência
insistente de " racionalidade" : como manter o conhecimento no nível
dessa " injunção" do objeto? O próprio fato de " ir à frente" do objeto
se verifica suspeito nesse sentido, na medida em que ele deve interpelar
o logos, afetar sua receptividade. O " materialismo" em questão abre,
pois, o caminho para um ideal gnoseológico tirânico, como se,
justamente, estivesse em causa deixar-se " perseguir" por esse objeto
que exige reconhecimento. Isso deve relacionar-se com o fato de que
o saber analítico, confrontando-se com o material do recalcado, é
captado na suspensão do recalque do material !
28 os fundamentos

Logo, não poderíamos, aqui, querer a verdade pelo meio. Freud


ironiza, nesse sentido, aqueles que " fingem hesitar" para assumir um
ar " científico" .1 0 Isso é fazer bem pouco caso desse Material, que
não é apenas " um pouco verdadeiro" . Em outras palavras: esse
" escorregamento" (Kulanz) bem-vindo no comércio é uma falta
imperdoável na " empresa científica" (wissenschaftliche Betrieb)1 1 ;
uma forma de Schlamperei!
Freud necessita, paradoxalmente, de uma banalização epistemoló­
gica da psicanálise para melhor fazê-la desempenhar radicalmente sua
função. Basta-lhe, com efeito, recordar - lembrete que tem, de certa
forma, valor de "juramento" - a fidelidade da psicanálise ao ideal
da ciência - ou, para exprimir rigorosamente a mesma coisa sob
forma negativa, sua recusa de submissão ao que se chama " visão do
mundo" ( Weltanschauung), em sua pretensão totalizante: " uma cons­
trução intelectual que resolve de maneira homogênea todos os pro­
blemas de nossa existência a partir de uma hipótese que comanda o
todo, onde, em conseqüência, nenhum problema permanece em aberto,
e onde tudo aquilo por que nos interessamos encontra seu lugar
determinado" , é precisamente isso que a psicanálise não poderia ser:
é preciso falar aqui em inaptidão: " A psicanálise ( . . . ) é incapaz de
criar uma Weltanschauung que lhe seja particular." 1 2
Aí está, a ser bem entendido, o enunciado de um Jogos singularmente
árido: ele não lisonjeia nenhum instinto totalizante - por exemplo,
uma concepção " tropical" do instinto. 13 Ele não garante o acesso a
nenhum estilo particular de viver ou de habitar o sentido do mundo.
Não se deve " sobrecarregar a carroça da análise" com aparatos de
síntese. A psicanálise não cria nenhuma visão original nem nenhum
estilo de vida nesse sentido. Em suma, " ela é uma parte da ciência" .
Interrogada sobre seu documento de identidade, ela então remeterá à
ciência, da qual não passa de uma província: ela " pode ligar-se à
Weltanschauung científica" .
Tudo, então, está em seu lugar? Não exatamente, pois, por uma
ironia própria, justamente, a essa parte da ciência que é a psicanálise,
revela-se que o saber do inconsciente, votado a " adotar" a visão do
mundo científico, recusa a própria noção de tal visão do mundo ! Esta
não passa de um " nome pomposo" - cujo próprio sucesso é um
sintoma, pode-se acrescentar, da renegação do sujeito. A ciência, por
seu gosto pelo " unilateral" (Einseitigkeit), revela-se incompatível com
a noção mesma de " visão do mundo" . Era Freud quem observava -
o objeto 29

a propósito de Eros ! - que, cedendo quanto às palavras, logo se cede


quanto às coisas: assim, dizer que a ciência autoriza uma visão do
mundo é perder tudo de uma só vez . A ciência vive da frustração do
desejo que a " visão do mundo" , justamente, satisfaz demasiado bem.
Deve-se compreender bem a idéia de que a ciência é, em suma, o
princípio mais radical de renúncia... ao princípio de prazer. 14 A
psicanálise, ciência banal, é, poderíamos dizer, além disso, aquela que
menos defende a idéia de uma reconciliação, sob a égide da Wuns­
cherfüllung, entre a ciência e a visão do mundo. Ela leva, pois, ao
máximo, " a submissão à verdade" e a " recusa das ilusões" , acomo­
dando-se bastante bem ao caráter " negativo" de tais prescrições, até
mesmo de seu caráter enganador - com relação, justamente, à
necessidade de síntese que gratifica em demasia a Weltanschauung.
Logo, ela não poderia contentar-se com essa palavra, retórica de sábios
prenhes do remendo da imagem do mundo. Em suma, a unidade do
mundo nunca é tão evidente quanto para o apaixonado da análise: 15
é por isso que a psicanálise não está longe de desempenhar o papel
de supereu ... da ciência. Ela proíbe às ciências flertar com a idéia de
uma " visão de mundo" , tanto quanto o proíbe a si mesma. Ela está
bem situada para saber que " não é intenção da ciência assustar ou
consolar" , e sim compreender. Ora, tal é o drama histórico, aos olhos
ae Freud, que a psicanálise foi admirada por sua " influência sobre a
Weltanschauung da época" - como disse um certo Albert Einstein,16
antes mesmo de ser reconhecida pela " parte de verdade" que revela.
Se não se quer reduzi-la a uma Weltanschauung admirável, deve-se
pensá-la, resolutamente, do lado da instância científica da verdade,
pronta a assumir sua ilegitimidade.17
Ora, a forma mais comum de desvalorização do saber psicanalítico
é a imputação de uma Weltanschauung sexualista, que vem expres­
::;ar-se pelo neologismo Pansexualismus. É ao recusá-lo regularmente
que Freud sugere a que título a " sexualidade" serve à identificação
do objeto analítico. É nesses termos epistemológicos que se deve
formular o problema: a sexualidade cessa, com Freud, de ser um
" fat'l" para se tomar um problema. Isso se faz sensível no momento
em que Freud, partindo dos traços da sexualidade propriamente dita,
submete-se ao efeito de estranheza (Entfremdung)18 de uma certa
" sexualidade psíquica" - mais tarde batizada, pesadamente (mas a
ciência não põe " os pingos nos i i" ?), de " psicossexualidade" .
A psicanálise está supostamente apoiada num pansexualismo, isto
é, num " querer tudo explicar pela sexualidade" . Aí está uma dessas
30 os fundamentos

" palavras-choque ressonantes" ( voltonnenden Schlagworten).1 9 Entre­


gam-se, pois, ao velho conceito de sexualidade-fato e repreendem a
psicanálise por identificá-la ao " todo" , transformando Eros no deus
Pã. A verdade é justamente o contrário: o sexo-princípio - o das
" eróticas" filosóficas -, assim como o sexo-fato - o das sexologias
modemas20 -, cede lugar a essa falta preciosa, des-totalizante, que
obceca, de fato, a psiquê, assediando-a com sua inconsistência.
Essa dupla exigência - de revelação e de reconhecimento daquilo
que se furta ao conhecimento - é expressa na epopéia metapsicoló­
gica.
Tem-se aí, com efeito, o coração da " racionalidade" freudilma -
posta entre aspas menos para enfraquecê-la do que para sublinhar sua
especificidade. Ao forjar esse neologismo, a partir da década de 1 890,21
Freud está consciente de produzir um gesto que engaja sua relação
com sua própria objetividade. O " inconsciente" deve ser concebido
radicalmente como objeto metapsicológico, como Grundbegriff Essa
posição o faz sair ao mesmo tempo da posição psicológica e da
concepção filosófica tradicionais. Não é exagero dizer que o incons­
ciente é o que ocupa lugar de sintoma para a racionalidade psico-fi­
losófica, já que ele está condenado a ser renegado - pelo " conscien­
talismo" 22 - ou hipostasiado em princípio, logo, " mi stificado" . O
gesto que consiste em fazer o inconsciente voltar à racionalidade é,
portanto, mais complexo que a suspensão de um " esquecimento" , ou
melhor, obriga-nos a dirigir a esses tipos de racionalidade um ultimato:
que é que os votava ao esquecimento do inconsciente?
A metapsicologia é o dispositivo inédito fabricado por Freud para
dar forma de racionalidade ad hoc a esse imperativo de não esquecer
o inconsciente. Por esse imperativo, deve-se estar, frisa ele, disposto
a tudo: queimar a mobília ou mover o Aqueronte !23 - prova de que
a metapsicologia é essa racionalidade que comporta uma transgressão
secreta em relação às formas recenseadas de racionalidade. Mas ela
é também, e fundamentalmente, recusa de abandonar o inconsciente
à irracionalidade: trata-se de lhe fazer justiça, construindo-o como
trans-objetividade (meta-psicológica), bem designada pelo termo " pul­
são" (Trieb).
Se tentarmos " projetar" essa racionalidade metapsicológica sobre
algum mapa imaginário do saber, poderemos decifrá-Ia sem contra­
dição, ao mesmo tempo como momento metafísico interior ao saber
psicológico e momento científico antimetafísico.
o objeto 31

3. Metapsicologia e metafísica

A homologia provocante entre meta-psicologia e meta-física não é,


com certeza, fortuita. A teoria dos " processos inconscientes" se ela
rompe com toda filosofia do Inconsciente - na ordem do dia com
Eduard von Hartmann24 -, só vai experimentar, de modo mais cru,
o problema colocado à episteme por esse objeto que se furta à
fenomenalidade - a ponto de Freud assimilar, num momento de
audácia, o inconsciente à " coisa em si" 25 - e no entanto não se atesta
em nenhum outro lugar senão pela fenomenalidade. A metapsicologia,
nesse sentido, é o que apela, contra a " psicologia" , para a necessidade
de fazer justiça aos " processos que levam para além do consciente" .
Aonde isso nos vai levar, eis o que a metapsicologia enfrenta, com
essa mistura de necessidade e acaso - tanto é que Freud tem o
sentimento de que o inconsciente, tal como uma montaria, imperativa
e caprichosa26, leva o metapsicólogo como bem lhe apraz.
Mas, simultaneamente, o metapsicólogo entra em função nesse
lugar onde o metafísico falhou. Trata-se realmente, nesse sentido, de
conquistar o inconsciente para a " psicologia" , relançando a pretensão
desta de aceder ao estatuto de " ciência" - o que nos autoriza a
assumir a expressão " epistemologia freudiana" . Tal é o problema de
Freud que o obriga a tomar ao pé da letra a questão de um inconsciente
objeto de uma ciência e, ao fazê-lo, introduz uma vertigem nos confins
da " metafísica" e da " ciência" .
Essa operação argumenta sem cessar com as imposições de seu
objeto para reivindicar uma posição de exceção epistemológica. Existe
aí, realmente, " anomalia" , mas esta obriga, por via dos processos
inconscientes, a requestionar o estatuto desse " inconsciente" que
repugna à metafísica - embora imprima uma " torção" à objetividade
fenomênica - e é irredutível à objetividade científica comum -
embora seja acessível apenas a partir do imperativo da ciência.
A metapsicologia forma-se nesse ponto onde o Inconsciente se
esvazia de sua substância metafísica: não é por acaso que Freud fala
em " coordenadas" 27 (tópicas, econômicas, dinâmicas): é de um espaço
que se trata. O " inconsciente" constitui o objeto de uma observação.
Freud mobiliza tanto mais a massa de referências comportadas por
seu ideal de inteligibilidade fi sicalista quanto sabe da dificuldade de
lhe atribuir uma " natureza" . No mínimo, trata-se de uma " natureza
morta" de que se deve fazer a " autópsia" 28.
32 o s fundamentos

É preciso calar as Weltanschauungen que o Inconsciente de há


muito fazia cantar29 e, nesse sentido, dar a palavra à Wissenschaft,
esse lugar que desmonta a ilusão - porque seria uma ilusão " procurar
alhures o que ela não nos pode dar" .30 Mas aquela de que se tem
tudo a esperar - e de que Freud tem, decididamente, necessidade
para fechar seu discurso -, o que vem a ser sua identidade, a partir
do momento em que se lhe dá a pensar essa certeza de alteridade
imposta pelo inconsciente?
Percebe-se a ironia dessa fórmula, a de " uma ciência do incons­
ciente" , que Freud desdenha. Mesmo que aí houvesse uma alteridade
a ser pensada, é só pela ciência que se acederia a ela.
Dito em termos mitológicos: o Logos analítico deve enfrentar a
Ananke da alteridade.31 Daí o papel legítimo de uma forma de
Phantasieren que, longe de ser divagação do pensamento, verifica-se
requisitada para se unir à sua alteridade. Freud evoca então a " feiticeira
metapsicologia" 32 que se deve chamar em auxílio para avançar na
descrição do objeto metapsicológico.

4. A certeza da alteridade

Atingimos dessa maneira o nível da interpretação e de seu objeto.


Essa imposição, com efeito, não emana desse " material" acessível
através da " clínica" ? Não estaria aí o fundamento desse " materialis­
mo" do qual a teoria teria que dar conta? Passaríamos, assim, do
" material" (clínico) à teoria (metapsicológica) por meio da interpre­
tação (hermenêutica). A essa representação opõe-se um " detalhe" : a
recusa de Freud de subordinar a psicanálise a qualquer coisa que se
pareça com uma racionalidade hermenêutica - o que atesta sua
indiferença ao famoso Methodenstreit e sua fidelidade obstinada ao
ideal " explicativo" .33 Em resumo, o Verstehen só tem por efeito, em
Freud, engatar o saber do inconsciente numa lógica autônoma. O que
ele pratica é, realmente, uma Deutung, mas a ser entendida como
" explicação do sentido" .
O que distingue as " formações" ditas " inconscientes" é justamente
o que obriga a postular uma materialidade formal da produção do
sentido. É por isso que Freud acentua insistentemente o trabalho
inconsciente que regula essas " formas" : ponto de revelação de um
Inconsciente que estaria oculto em um sonho, um lapso ou um sintoma,
mas análise de um certo regime pelo qual o " pensamento latente" é
o objeto 33

tratado e convertido em " pensamento manifesto" . Esse trabalho não


deve ser concebido como a expressão de alguma essência, mas como
as modalidades segundo as quais essa essência se resolve de certa
maneira. O " inconsciente" não é inconsciente do texto (sonho ou
sintoma), mas o que regula a manifestação conflitual.
Talvez tenha sido insuficientemente sublinhado que esse modelo põe
a hermenêutica em crise, já que ela nem mesmo pode citar um modelo
de interpretação. O pensamento do sintoma leva a um lugar que não .é
sequer o da " suspeita" 34, ou seja, o de uma certeza de alteridade.
Se há uma convicção de Freud é a de que o saber do inconsciente
não tem seu lugar natural reservado numa antropologia. Esta encontra
sua expressão no enunciado " nada é menos conforme à organização
do homem" 35 que aquilo que a psicanálise tem a dizer. Que não nos
enganemos: é por isso que ela tem de dizê-lo a ele. Do imperativo
de dizer - essa coragem demarcada pela Aufkliirung - Freud faz
uma lei tanto mais despojada - e de certa forma depurada - quanto
não se pode contar, acredita ele, com nenhuma complacência de alguma
" faculdade" humana para sua " mensagem" .
Não é por afetação que Freud enfatiza sem cessar as " resistências"
à psicanálise. Isso significa que existe algo em sua mensagem que
toma a " organização" do homem num sentido inverso. Isso tampouco
quer dizer que a psicanálise " des-organize" a realidade do homem:
antes, ela desfia a trama desse tecido, dessa " organização" , e a coloca
em contradição - mesmo não dialética - consigo mesma.
É esse princípio de falta que a psicanálise reintroduz sem cessar
- é por isso que ela não poderia ser " popular" . Vai opor-se a isso
o seu " sucesso" , que contrasta com o pessimismo de Freud. Entretanto,
somente intermediada pelas " visões do mundo" que autoriza é que
ela atinge esse consenso. Tudo se fez, justamente, para torná-la
compatível com a organização do homem - fim a que se empregam
as formas variadas da psicologia do ego, em especial.
Vai objetar-se mais seriamente, com Wittgenstein, que, se Freud
explica por que se resiste à mensagem da psicanálise, ele silencia
quanto à atração que ela exerce.36

5. O sujeito, operador metapsicológico

Mais precisamente, o destinatário da verdade analítica só pode ser o


sujeito inconsciente - já que fazem parte do mesmo círculo. Afas-
34 os fundamentos

tando-se dele, ela tenta retomar; mas como a única mensagem é a de


um não-sabido do qual a sexualidade é o objeto crônico - o que é
articulado pela tese de uma sexualidade infantil -, os sujeitos devem
reconhecê-lo como a forma de sua verdade, um por um, � por sua
própria conta. É por isso que a análise não tem outro móvel além do
" amor da verdade" .
O mais notável é que esse termo-chave - Subjekt - é apenas
pontual no texto freudiano. Ele praticamente não o evoca senão para
elidi-lo - mais ainda que para recusá-lo - e introduzir uma
estratificação tópica.
O sujeito - o da cena primitiva ( Urszene) do encontro impossível
com o Outro - é realmente o pressuposto necessário da experiência
analítica, mas Freud o situa como série de emergências metapsicoló­
gicas: é no ponto onde a explicação objetai toca seus limites que se
deve introduzir, através do narcisismo, uma teoria renovada do Eu.37
É descobrindo uma outra lógica que não a do recalque que se deve
introduzir a noção de " clivagem" (Spaltung) e a instância do " sujeito"
que lhe corresponde.38
Portanto, se o " sujeito" não é uma categoria metapsicológica, ele
organiza efetivamente a experiência do inconsciente,39 à maneira de
um a priori induzido por essa experiência. Toca-se, aí, a versão do
mesmo círculo elaborado pelo saber metapsicológico. A Spaltung -

processo pelo qual o sujeito se cinde (Einriss) sob o efeito da


representação da " castração" 40 - obriga a pensar uma versão inédita
que constitui um desafio essencial à racionalidade do sujeito elaborada
pela tradição filosófica. Eis, com efeito, uma " experiência" que torna
precária toda forma de subjetividade transcendental, algo como um
entravamento da " função de síntese do Eu" .
O sujeito do sintoma instaura-se, portanto, nessa hiância estrutural
do saber - que ele pode, ainda que virtualmente, tomar de si mesmo
- e da verdade que o produz. Formulação que dá a medida da noção
de inconsciente e que é imposta pela própria noção de castração.
Não é exagero dizer que o próprio sujeito se apresenta como uma
verdadeira pequena teoria do conhecimento encarnada, já que, no
trabalho do inconsciente, é esta cisão que ele reproduz como sua
" história" , a de sua divisão.
Compreende-se que o sintoma nasce de algo inteiramente diverso
de um mal-entendido: é por haver entendido demasiado bem que o
sujeito, pela necessidade de uma lógica clivada, entra no conflito.
Aqui é a verdade que, subjetivada, torna-se causa do sintoma.
o objeto 35

Tal é a mensagem que Freud, seguindo os passos de Copérnico e


de Darwin, dirige sobre esse tema: não poder desconhecer a parte que
lhe cabe nesse objeto - .pulsional - que o estrutura à sua revelia
- o que faz com que ele não seja o senhor em sua própria casa.41
Onde o " isso" estava, o " eu" só pode advir enfrentando sua própria
divisão e reposicionando suas modalidades de idealização.42
Freud só faz ampliar a psicopatologia, integrando-lhe os processos
inconscientes: ele constrói um lagos a partir do pathos do sujeito. É
assim que se deve entender esta declaração: " Todas as impulsões vêm
de impressões que recebo no comércio com meus doentes."43 O
entendimento, nesse sentido, é posto em movimento pela clínica. Como
contrapartida, constitui-se a referência à neurose. Freud impõe uma
translação espantosa à própria noção de " doença" . O neurótico, muito
mais que objeto de estudo, é portador de uma exigência simbólica
estruturante do próprio saber clínico. Esta se vê expressa, com
freqüência, da maneira mais sugestiva, como uma situação portadora
de imposições próprias: " Temos a obrigação de nos servir da moeda
que, no país que estamos explorando, é a moeda dominante, em nosso
caso, a moeda neurótica" (neurotische Wiihrung).44
O que vem primeiro, pois, não é alguma pressuposição psico-pa­
tológica, e sim a exploração (Forschung) de um domínio, o dos
processos inconscientes: ora, aí é preciso servir-se da moeda em curso,
aí está um pressuposto simbólico, relativo à troca, algo como um a
priori inscrito no próprio real. Não há metalinguagem - não existe
valor-significado absoluto por trás da " moeda" , esta engendra o valor
por circular. Logo, deve-se pensar a neurose como língua e código
próprios. A psicanálise, portanto, não se aplica somente à neurose,
mas deriva dela - a prova é o nascimento da psicanálise junto com
o saber da histeria: não, decididamente, " a neurose não diz nada de
tolo" .
É preciso, por isso mesmo, reconhecer uma verdadeira " forma de
existência" (Existemform) neurótica, que consiste nesse modo de
realidade que Freud chama " psíquico" .

6. Metapsicologia do ideal: destinos da Kultur

O mais notável é que essa " visão" do sujeito inconsciente e seu


impasse próprio dão vistas ao " mal-estar na Kultur" . De onde vem
a possibilidade de uma metapsicologia da Kultur?
36 os fundamentos

É que, precisamente, a psicanálise não se aplica, tal corno urna


psicologia, a um campo exterior - sociocultural. Mas ela descobre
que a própria Kultur funciona no ideal e na pulsão de morte. Assim,
basta que " um número de indivíduos" coloque " um só e mesmo
objeto em lugar de seu ideal de eu e se identifiquem, conseqüentemente,
em seu eu, uns aos outros" ,45 e nasce um liame social, o da " multidão
primária" . Basta que urna liga de " pulsão de morte" venha trazer um
curto-circuito ao movimento de idealização e de sublimação, e nasce
este Unbehagen que é o sintoma da Kultur e vem contrariar o
movimento de aculturação tornado possível pelo assassinato do pai.46
Adernais, Totem e tabu marca o encontro da rnetapsicologia com
sua verdade social. A vestimenta mitológica só faz exprimir este
momento do risco metapsicológico: o de postular uma causalidade
desses processos que levam para além do consciente. É a esse lugar
que a lógica de ferro da Ananke inconsciente leva Freud: à tese de
uma homologia dos dois textos do sujeito inconsciente, que supera a
dualidade do " individual" e do " social" . É isso que permite a Freud
transportar as aquisições dessa teoria do simbólico para o plano
" psicossocial" - cujo equívoco é assim revelado e praticado - com
essa tese segundo a qual toda " multidão artificial" ou instituição deve
ser lida corno " a transposição idealista da horda primitiva" .
Será um acaso, com efeito, se cada uma das etapas da teoria
rnetapsicológica, cada uma de suas " escansões" encontram seu eco
na teoria sociocultural? Assim, a teoria da libido e do interdito
corresponde à gênese do desejo social pelo assassinato do pai. À
introdução do narcisismo responde o trabalho do ideal que permite
praticar, sob a referência ao " ideal coletivo" , o assassinato do pai.
Prova disso é a necessidade de ressuscitar a instância .paterna com
fins de liame social. Enfim, a introdução da pulsão de morte permite
pensar o mal-estar estrutural da Kultur a um ponto de " des-intrinca­
ção" de Eros e Tanatos.
Não existe aí nem construção artificial nem providência forçada:
antes, duplicação, de ponta a ponta, do objeto metapsicológico. Exi ste
mesmo tão pouca " harmonia" entre os dois " planos" que Freud refere
a " mutação" de seu interesse de saber do inconsciente à cultura a
" u ma parte de evolução regressiva" (regressiven Entwicklung):47 esse
" desvio" pela " ciência" e " retorno" à cultura é tornado, com efeito,
na lúgica de uma " regressão" . Retornar a seu objeto primitivo é

a s s u 1 1 1 i r o ri sco da regressão, de tal modo o primeiro objeto, o mais


o objeto 37

caro, tem poucas chances de ser de saída investido como o válido !


Suspeitaríamos, no entanto, de que há aí uma chave da fecundidade
do trajeto freudiano, o paradoxo da coesão: saber rentabilizar e
" negociar" heuristicamente suas " regressões" ! Isso manifesta-se por
uma relação cronicamente nova com seu objeto de pesquisa.

7. A ética do metapsicólogo

Deve registrar-se o aparente contraste entre a austeridade desse


programa de veracidade e seu objeto - ou seja, o que se organiza
em tomo do " princípio de prazer" . Freud coloca a exigência de
verdade e de dizer o real acima de todo ponto de vista do " vantajoso" .
Existe aí um verdadeiro imperativo categórico, que encara de frente
aquilo que, justamente, no sujeito, aguarda um embelezamento ou
uma maquilagem da verdade a seu respeito.
É a mesma recusa de " consolo" ou de profecia que se encontra
com relação àqueles que, no seio da Kultur, exigem da ciência analítica
que ela lhes dirija alguma promessa de redenção.
Mas, justamente, se ela é essa forma de saber que não pode
permitir-se transigir na sua relação com a verdade, é porque trabalha
com a cisão mais radical que existe, a de um sujeito fundado numa
Diskrepanz entre o saber e a verdade. Logo, ponha-se o mínimo
bálsamo de ilusão numa tal estrutura e tudo estará perdido. Basta
mentir-se " um pouco" - prolongando o saber do inconsciente com
uma onça de " visão do mundo" ou ideologia tranqüilizadora - e
estaremos mentindo em tudo, ou seja, quanto ao próprio sujeito ! A
psicanálise não se consome " em detalhe" ...
É desse modo, em suma, que a psicanálise, considerada " inimiga
dos ideais" da civilização,48 se situa o mais próximo de seu ideal. Se
Freud pode ao mesmo tempo afirmar: " os argumentos em favor dos
nossos ideais permanecem sem força para mim" 49, e professar, de sua
parte, " um ideal elevado" , cujos ideais conhecidos " se afastam da
maneira mais aflitiva" ,50 é que precisamente é necessário, em nome
do próprio sujeito, atestar o seu afastamento do ideal. É desse lugar
que o fundador da psicanálise adverte, na ocasião, " a humanidade"
- não para " moralizar" , mas para enunciar algo como " um ponto
de vista da lei" . Quem melhor que ele sabe a distância crônica entre
o sujeito e a lei, para falar desse " ponto de vista" ?
38 os fundamentos

Tocamos aí no que se deve, realmente, chamar de uma ética. Freud


dizia " não se preocupar com o bem e o mal" . E com razão: a ética
é da ordem do Selbstversdiindliches, aquilo que se concebe por si
mesmo. 51 Quem fala da ética já está fora do real que é a ética, aquela
a que o sujeito se apega sem dela poder dar conta.
Mas, igualmente, a experiência analítica mostra um sujeito exposto
ao interdito. A construção metapsicológica produz o saber dessa
relação.
Mas por i sso mesmo ela é elaboração dessas " coisas últimas da
vida'' 52 sobre as quais, à falta de saber metafísico, cada um só pode
argumentar a partir de suas " preferências profundamente enraizadas
internamente" (innerlich tief begründeten Vorlieben). Encontra-se aí,
de certa forma, tanto na subjetividade do metapsicólogo quanto em
seu " foro íntimo" , essa " mi steriosa realidade" de que partimos como
o real da experiência analítica, aquilo em que ela se engaja. Como
falar, pois, de forma senão objetiva, pelo menos legítima, sobre tais
Urdingen?
É aqui que se encontra a ética. Deve-se, com efeito, poder ser
afetado por uma " benevolência" entre os " esforços" de seu próprio
pensamento, de modo a avaliá-los à luz do próprio ideal do eu
convertido em pensamento.
Chegados ao termo desta travessia, podemos fazer ressoar o objeto
freudiano sob o choque do martelo filosófico (sem esmagar o objeto
nem quebrar o martelo)?
O próprio Freud nos desencoraja de confundi-los,53 mas ele faz
mais que se legitimar pelos filósofos:54 endossa, afinal, um certo " amor
pela v'"erdade" . Sendo este considerado indivisível, existirá outra
maneira de " amar a verdade" , conforme se passe pelo .desfiladeiro
do inconsciente ou pelo do saber?
Talvez isso se reduza a entender, mais que a interpretar a célebre
confissão a Fliess, a de realizar, pelo empreendimento " psicológico" ,
o objeto da Sehnsucht primitiva do " conhecimento filosófico" .55 Como
pode isso rimar com a legendária desconfiança contra os filósofos?
Para dizer a verdade, Freud dedica seu esforço de pensamento a
esse objeto, a esse exterior excessivo que põe em crise todos os
saberes. Desse modo, com efeito, ele permanece ligado a essa aporia
radical que define a filosofia, antes que ela seja instituída em gestão
de " problemas" . Quem iria questionar mais radicalmente o universal,
senão aquele que " espera que do fato brote o universal" ?56 Nesse
ponto de despojamento e de desconfiança do sistema, é o próprio
o objeto 39

logos que se vê desafiado. É o objeto vazio dessa Sehnsucht convertida


em coragem de pensamento que é mostrado pelo evento freudiano ...

NOTAS AO CAPÍTULO I

1 . " Matérialisme" , in Documents n.3, p. I 70, junho de 1 929. Reproduzido in


Georges B ataille, (Euvres completes I, Gallimard, I 970, p. I 80.
2. No sentido que definimos em L 'entendement freudien, Gallimard, I 984.
3. Pode-se pensar, nessa perspect,i va, no diagnóstico de B ataille: " A maioria
dos materialistas, embora tenha querido eliminar toda entidade espiritual, acaba
por descrever uma ordem de coisas que as relações hierárquicas caracterizam
como especificamente idealista. Eles situaram a matéria morta no alto de uma
hierarquia convencional de fatos de ordens diversas, sem perceber que cediam
assim à obsessão de uma forma ideal da matéria, de uma forma que se
aproximaria, mais que qualquer outra, daquilo que a matéria deveria ser (op.
cit., p. I 79).
4. Psicanálise e Teoria da libido, 1 923, Gesammelte Werke (GW), XIII, p.21 1 .
5. Cf. carta a Werner Achelis d e 3 0 de janeiro de 1 927: " Creio que um dia a
metafísica será condenada como uma nuisance, um abuso do pensamento, como
uma survival do período de uma concepção religiosa do Universo" (in Corres­
pondance, Gallimard, 1 966, p.407).
6. Termo que Freud utiliza em carta a Jung (I O de janeiro de I 9 I 2, a propósito
de uma teoria de Lou Salomé sobre a sublimação). Sobre a relação de Freud com
o ideal, cf. L 'entendement freudien, p. I 83s.
7. Pós-escrito da Selbstdarstellung, I 935.
8. Carta a Wilhelm Fliess de 3 de dezembro de 1 897, in Correspondance, p.
1 9 1 . Cf. infra, cap. III, p.53-9.
9. Carta a Otto Pfister de 7 de fevereiro de I 930.
I O. Tirada a propósito do sexólogo Moii.
I 1. XIV' Leçon d'introduction à la psychanalyse, GW XI, 228. Freud recorda
esse princípio a propósito do principal radical da Wunscherfüllung. Encontra-se
expresso a partir de GW X, 62.
1 2. Cf. a última (XXXV) das Novas conferências introdutórias à psicanálise,
GW XV, 1 70 e ss. [Ed. bras: ESB, vol. XXII, Rio de Janeiro, Imago, 1 976.]
I 3. Cf. sobre esse ponto nosso Freud et Nietzsche, PUF, I 980, I 982.
14. Cf. O futuro de uma ilusão e Contribuição à psicologia da vida amorosa,
GW VIII, p.67. [ESB vol. XXI]
15. Carta a Lou Salomé de 30 de julho de 1 9 1 5 , in Lou Andreas-Salomé,
Correspondance avec Sigmund Freud, Gallimard, I 970, p. 43-4. Cf. L 'entendement
freudien, p.25s.
40 os fundamentos

16. Cf. a troca de cartas de abril-maio de 1 936, in Jones, op. cit., vol. III, pp.
232-3. Nesse contexto, remetemos a nosso estudo crítico da correspondência
Freud/Einstein de 1932, in Hermes, CNRS, 1989.
1 7. Cf. nosso prefácio a L 'lnterêt de la psychanalyse (Retz, 1980) sobre a
estratégia sutil de Freud.
1 8. " Descoberta" perceptível desde 1 894 (manuscrito E de 21 de maio). Cf.
nosso artigo " Mystere de J'être-sexué et inconscient" , in Lumiere et vie, 1989.
19. Prefácio a "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" , 1920. [ESB voi.
VII]
20. Deve-se aí destacar a divergência radical entre psicanálise e sexologia,
como aquela que se dá entre o saber da sexualidade e sua ideologia.
2 1 . Freud pergunta a Fliess, em 1 896, se ele tem razão em chamar assim a
essa " transpsicologia" , já que ela incide sobre processos que levam " além do
consciente" . Cf. , nesse ponto, nosso Freud, la philosophie et les philosophes,
cap. n.
22. Op. cit., cap. I.
23. Como se sabe, Freud faz do Acheronta movebo a epígrafe da Traumdeutung,
enquanto evoca o gesto de Palissy como a prova que se deve dar da sua vontade
de sacrificar seu instinto de conservação à pulsão de saber - o que supõe que
esta, por si só, anime o sujeito . . .
24. Autor d e Philosophie de l 'inconscient, 1 869. Ver, sobre a s relações entre
Freud e von Hartmann, Freud, la philosophie et les philosophes.
25. Isso se faz pela i nterpelação de um filósofo (Hiiberlin): não é o que você,
filósofo, chama " coisa em si" que eu, Freud, chamo de " inconsciente" (cf. Freud,
la philosophie et les philosophes, sobre esse contexto).
26. Freud evoca com humor, no período de fundação da psicanálise, a situação
de Itzig, o cavaleiro do domingo, que o leva aonde quer. O saber metapsicológico
só serve para esporeá-lo...
27. Cf. lntroduction à l'épistémologie freudienne, i ntrodução, p.7s.
28. É esse o termo aplicado à investigação do inconsciente (Metapsicologia).
. 29. Esse é realmente um dos sentidos do termo empregado por Freud no início
de seu ensaio metapsicológico sobre o Inconsciente.
30. Conclusão de O futuro de uma ilusão, GW XIV, p.380. [ESB vol. XXI]
3 1 . Cf. L' entendement freudien. Lagos et Ananke, introdução, p. l 6s.
32. " Análise terminável e interminável" , GW XVI, p.69. [ESB vol. XXIII]
33. Cf. nosso esclarecimento em lntroduction à l 'épistémologie freudienne, p.
39s.
34. Cf. nossa contribuição in Encyclopédie philosophique universelle, vol. I,
" L'Univers philosophique" , PUF, 1989, " Crise du sujet et modernité philosophi­
que. Marx, Nietzsche, Freud" , p.73 1-8.
35. Carta a Ludwig Binswanger de 28 de maio de 1 9 1 1 .
36. Remetemos, neste ponto, à nossa confrontação, Freud et Wittgenstein, PUF,
1988, p.34s: " Com sua análise, Freud fornece explicações que numerosas pessoas
são inclinadas a aceitar" , embora ele " frise que as pessoas não estão inclinadas
a aceitá-lo" (Conversations sur Freud, Gallimard, p.90- 1).
37. Introdução ao narcisismo, 1 9 1 4 [ESB vol. XIV]
38. A clivagem do eu nos processos de defesa, 1938. [ESB vol. XXIII]
39. Ver. neste ponto a conclusão da presente pesquisa, infra, cap. X.
o objeto 41

40. A clivagem do e u nos processos de defesa, 1 938.


4 1 . " Uma dificuldade da psicanálise" . Sobre os bastidores dessa parábola das
três feridas do amor-próprio, cf. lntroduction à L' épistémologie freudienne, p . I 89s.
42. Cf. Novas conferências introdutórias à psicanálise, GW XV, p.86. [ESB
vol. XXII].
43. Carta a Jones de 22 de maio de 1 9 1 0.
':,� 44. Formulações sobre os dois princípios de funcionamento psíquico, GW VIII,
238. A expressão também se encontra em Totem e tabu, GW IX, p. 1 07. [ESB vol.
XIII).
45. Psicologia de grupo e análise do eu, GW XIII, p. l 28 [ESB vol. XVIII).
46. O mal-estar na civilização, 1 929. Cf. nossa contribuição, " Fonctions
freudiennes du Pere" , in Le Pere, Denoel, 1 989, p.25-5 1 , e Psychanalyse et culture,
Armand Colin, I 993.
47. Pós-escrito à Selbstdarstellung, I 935.
48. Cf. L 'entendement freudien, p.22 1 s.
49. Carta a Putnam de 8 de julho de 1 9 1 5, in L 'introduction de la psychanalyse
·

aux etats-Unis, Gallimard, p.2 l 9.


50. Carta a Pfister de 9 de outubro de 1 9 1 8, in Correspondance avec [e pasteur
Pjister, Gallimard, p. 1 03.
5 1 . Carta a Putnam de 8 de julho de 1 9 1 5, op. cit., p.2 1 9.
52. Além do princípio de prazer, cap. VI. [ESB vol. XVIII].
53. Exploramos essas imagens em Freud, la philosophie et les philosophes,
PUF, 1 976.
54. Op. cit., 21 parte.
55. Carta a Fliess de 2 de abril de 1 896.
56. Carta a Lou Salomé. Sobre o contexto, cf. introdução a L' entendement
freudien, op. cit., p.29s.
CAPÍTULO 11

0 EXEMPLO E A COISA
Clínica e metapsicologia

A primeira questão, quando se aborda o estatuto da pesquisa na clíni­


ca, é uma questão epistemológica ao mesmo tempo fundamental e
elementar: a de saber que gênero de objetividade ou de realidade se
encontra ali. É um caráter paradoxal e uma virtude estranha da
" psicologia clínica" confrontar-se sem cessar, novamente, com um
objeto ao mesmo tempo problemático e de uma imediatez ofuscante.
É por isso que se trata de partir, mais que de uma constatação de
incerteza, da constatação de um contraste entre o caráter de dado
incontestável da objetividade clínica e o caráter problemático do
dispositivo pelo qual essa objetividade é tratada.

I. O estatuto do saber clínico

O �· clínico" , com efeito, é que está ali, perceptível de algum modo


de visu • " no leito do doente" , como assinala a etimologia. 1 Isso é o
que o saber encontra, e o que o precede. Como se dá, então, que esse
real tão maciço, até mesmo esmagador, seja gerador de um " saber"
que não pode, de saída, dar conta de sua identidade própria? De fato,
a virtude da pesquisa clínica é o sentido do problemático - o que
não se reduz a alguma vaga hesitação.2 Este tem por móbil não reduzir

• Que diz respeito ao doente acamado; que se faz à cabeceira do doente. (N.RT.)

42
o exemplo 43

esse real que se impõe ao próprio saber. O contraste, pois, talvez


proceda realmente desse encontro frontal e incontornável do sintoma
- pelo que entendemos, para além da acepção estritamente " patolo­
gista" e médica, aquilo que designa um distúrbio do real, algo que
acontece e, ao sobrevir, " cai mal" .3 Ora, o sintoma é nesse sentido
algo inteiramente diverso de uma " mentira" ou uma disfunção: é um
certo aspecto do real, e precisamente aquele que se deve elaborar pelo
" saber clínico" . É só-depois, passado o tempo de se recuperar de
certa maneira desse encontro com o sintoma, que se pode e deve expor
a questão: que gênero de saber é esse, de que se tratava e de que deve
agora tratar-se, a se entender no sentido de: do que ali estava naquele
instante, que posso saber?
É pelo próprio fato de estar, por definição, nessa posição de
só-depois, nesse sentido preciso, que o saber clínico pode parecer
impuro, ou pelo menos suspeito, " sujeito a caução" , como se diz. O
erro seria querer regularizar à força, isto é, artificialmente, seu estatuto
epistêmico. Se partirmos, com efeito, de certas exigências gerais e
genéricas do conhecimento (episteme), uma epistemologia do clínico
bem poderia ser uma contradição em termos. Ao contrário, é essencial
assegurar-se da especificidade desse saber: então esse saber, ao mesmo
tempo problemático e singular, poderá revelar-se uma ocasião parti­
cularmente pertinente para retomar a questão epistemológica mais
elementar: a do encontro ao vivo de um saber com seu objeto.
É da sua prática, com suas imposições e seu rigor, que o saber
clínico retira seus " títulos de nobreza epístêmicos" . Há mais coisas
nesse mundo do sintoma do que poderia sonhar a mais audaciosa
fi1osofia da ciência. Mas isso não exclui o rigor: este é mesmo
requerido, tanto mais imperativamente quanto é verdade que, quando
não se tem uma lei explícita, é preciso dar-se regras, até mesmo uma
ética do método particularmente exigente, chegando a ser severa.
Talvez mesmo possa revelar-se que a pesquisa clínica não tem outra
lei senão a de seu objeto. Isso é precisamente o que se trata de
estabelecer com alguma precisão: um caminho estreito, certamente,
entre uma epistemologia rígida e o abandono à indecisão de um estatuto
incerto.
Ora, é aí que o exemplo freudiano nos parece particularmente
edificante. Isso não se reduz a acreditar na idéia de uma identidade
pura e simples entre o campo clínico e o domínio analítico. Mas, na
medida em que há interesse em observar ciosamente a especificidade
de cada uma das " disciplinas" , para a fecundidade e a legitimidade
de cada uma das abordagens, parece-nos que o movimento de pesquisa
44 os fundamentos

instituído por Freud enquanto tal encontrou uma questão que deve
fazer eco àquilo que toca, de certa forma, a intimidade mais dramática
da clínica: a psicanálise, portanto, vai interessar-nos aqui na medida
em que nos dá a pensar, de certa forma, um " entendimento clínico"
de seus próprios procedimentos de racionalidade. Através dessa
reflexão, poderá tornar-se visível a ruptura determinante que ela
promoveu, ou melhor, a " reforma do entendimento" que ela teve de
promover para aceder a sua própria identidade.
É esse advento à ordem da concepção pato-lógica- que escrevemos
em duas palavras para marcar a incidência de pensamento do objeto
clínico - que vamos procurar fazer compreender, para aí discernir o
que a pesquisa clínica pode obter por conta própria quanto à elucidação
de sua própria natureza, bem como de seu método, de resto insepa­
ráveis. Logo, o que se segue deve ser lido como o deciframento prévio
do lugar próprio onde se pode observar e enunciar, à luz da psicanálise,
a especificidade da abordagem clínica como atitude de pesquisa de
um gênero próprio. Revisão formal, que pode ela mesma verificar-se
na atuação da pesquisa e de seus considerandos metodológicos.

2. "0 exemplo é a própria coisa"

Ora, este efeito da psicanálise no plano da racionalidade clínica


parece-nos apreensível pelo comentário do que Freud expressou
indiretamente num relatório clínico. O que é mera fórmula de passagem
parece valer como o índice do modo de pensar psicanalítico no plano
da pesquisa clínica.
Mais precisamente, é em seu diário da análise do Homem dos Ratos
que Freud a introduziu: " o exemplo" - lemos aí - " é a própria
coisa" (Beispiel est die Sache selbst).4 Pareceu-nos que essa fórmula,
ao mesmo tempo límpida e paradoxal, revelava o cerne da questão
evocada acima, trazendo-lhe simultaneamente um paradoxo que, mesmo
soando abrupto, mereceria figurar como o adágio do trabalho clínico.
Portanto, mais que um relatório dedutivo do conjunto dos aspectos
epistemológicos que sustentam a concepção clínica,5 buscaremos
compreender o mais literalmente possível essa pequena frase, reunindo
em cinco palavras aquilo em tomo de que gira todo o problema do
saber clínico. Além disso, enumerando os pressupostos, e depois as
conseqüências dessa fórmula, seremos capazes de evocar a questão
em seu conjunto.
o exemplo 45

O melhor é partir do próprio contexto dessa fórmula. Se ela não


se encontra, infelizmente, na sua concisão estimulante, na redação da
própria história do caso, Freud, nesse texto, dá sua expressão desen­
volvida que explícita o que está em questão. O contexto imediato é
o da clínica da neurose obsessiva, e de uma característica de certo
modo lógica da formação do sintoma: " Chega-se a conhecer" , observa
Freud, " um exemplo preciso que a neurose obsessiva exprime por
generalidades vagas; pode-se estar certo de que este exemplo constitui
o pensamento primitivo e verdadeiro que aquela generalidade estava
destinada a ocultar." 6 Assim, encontrar o exemplo é, ipsofacto, nomear
a coisa.
O exemplo citado pelo Homem dos Ratos é - é o caso de dizê-lo
- esclarecedor. Ao seu desejo de ver jovens mulheres nuas, ele
associa " um sentimento de uma inquietadora apreensão como se
devesse acontecer alguma coisa se eu pensar nisso ( ... )" . E para ilustrar
esses primeiros temores - Freud diz, literalmente, " como prova"
destes - ele indica: " Por exemplo, que meu pai venha a morrer." 7
E a ironia freudiana, experimentada, acrescenta, entre parênteses: (o
exemplo é a própria coisa).
Devemos compreender que o sujeito, como todo locutor, faz uso
da fórmula que parece pô-lo ao abrigo de ser tomado ao pé da letra.
Ele cita a apreensão da morte do Pai acrescida dessa pequena locução
(zum Beispiel) que lhe permite mantê-la no elemento da generalidade.
O que ele disse se acompanha de uma restrição implícita: " era isso,
mas também poderia ter sido outra coisa" . O exemplo pretende, com
efeito, ilustrar, relatar uma espécie de enunciado: o que vamos chamar
de " exemplificação" faz parte dessa retórica quotidiana8 anódina que
permite apresentar uma asserção virtualizando-a, já que isso sub-en­
tende que, em lugar do enunciado-exemplo, outros seriam igualmente
possíveis. " Exemplificar" é, pois, enfraquecer o enunciado, fazendo-o
valer por outros, atualizando uma virtualidade positivada, mas não
exclusiva.
Ora, eis que se abrem parênteses no texto freudiano, menos um
comentário que uma constatação: um aviso e uma advertência no
sentido de tomar o exemplo ao pé da letra, isto é, à letra da coisa.
De repente o enunciado virtualizado - " estou dizendo isso, mas
poderia igualmente estar dizendo outra coisa" - é fixo num enun­
ciado: " eu disse o que estava em questão, e não outra coisa" . Logo,
é a coisa mesmo que ele tinha a dizer, e por " coisa" não se deve
entender nada além do conteúdo estrito do enunciado - "o pensa-
46 os fundamentos

mento primitivo e verdadeiro" - que foi dito. Freud devolve todo o


conteúdo de positividade ao enunciado. Por isso mesmo, observamos,
ele nada acrescenta, mas apenas o restitui ao locutor como seu bem
próprio.9
Isso, aliás, é uma espécie de vantagem para o intérprete, já que
este não tem que tratar esse pseudo-" exemplo" como índice da coisa:
basta-lhe extrair o exemplo da fala do locutor e afetá-lo por um
" coeficiente" suplementar: esse exemplo citado é a própria coisa. O
que o sujeito alega, com a maior boa fé, ser um exemplo é a própria
coisa. Assim, o conteúdo do temor relativo à morte do pai revela a
morte do Pai como conteúdo princeps do temor. Isso não exclui,
naturalmente, que outros traços do mesmo temor sejam observados,
mas esses exemplos serão outras tantas expressões laterais da mesma
coisa. Serão, literalmente, " sinônimos" no plano da linguagem do
sintoma.
Compreende-se, enfim, por que essa lei foi enunciada, não por
acaso, a propósito do obsessivo: este fornece, é ainda o caso de dizê-lo,
" um exemplo de ouro" , já que todo o seu regime de pensamento é
orientado para a produção de " generalidades" , logo, de pseudo-exem­
plos. A abstração retórica, especialidade obsessiva, faz assim uma tela
para a confissão do conteúdo desejante: ele passa seu tempo fingindo
" ilustrar" , ali onde, simplesmente, ele diz. O " pensamento primitivo"
não está, portanto, por trás dos exemplos, mas é o conteúdo literal e
reiterativo do exemplo. O pensamento obsessivo é um pensamento
que utiliza a precisão intelectual para manter vago o motivo pulsional:
é preciso, portanto, devolver-lhe a precisão para entender a mensagem
da pulsão.

3. A racionalidade clínica como "exemplificação"

É tempo de mostrar por que razão aquilo que Freud nos convida a
pensar sobre o poder constituinte do exemplo pode mostrar-se deter­
minante no problema exposto inicialmente, o da . " racionalidade
clínica" .
A racionalidade clínica encontra-se diante de um objeto que não
é, forçosamente, " irracional" , mas que apresenta o caráter de um real
singular. Ora, tradicionalmente, no enunciado do problema do conhe­
cimento em geral, gira-se em torno de dois modelos de deciframento
da relação entre esses dois termos que são o " saber" e o seu " objeto" .
o exemplo 47

Ou bem o objeto é concebido como devendo ser determinado por um


saber, que nele introduz uma generalidade - segundo o adágio " só
há ciência do geral" , 10 de sorte que o objeto é concebido como um
material de que se deve extrair uma generalidade conceitual, uma
" lei" explicativa dos " fenômenos" -, ou bem se concebe o objeto
como devendo ser reproduzido por um tipo de saber que seria apenas
a sua " imagem" , ou cópia, ao máximo de conformidade possível.
Poderíamos batizar esses dois modelos, respectivamente, de " deduti­
vo" ou " racional" e de " indutivo" ou " empírico" . A essas duas
soluções podemos acrescentar uma solução " pragmatista" , suspen­
dendo a escolha entre o ponto de vista da razão e o do objeto: trata-se,
então, de fazer como se o saber-instrumento concordasse com o
material. 1 1
Onde situar o gênero de " conhecimento" implicado pela pesquisa
clínica? A referência à experiência parece, por si só, desqualificar o
primeiro modelo: seríamos tentados a falar, aqui, em " empirismo
radical" para designar esse papel constituinte da referência ao empi­
rismo, essa fonte de onde o clínico retira sua única autoridade legítima
· em última instância. Freud; por sua vez, insiste no papel determinante
da referência ao " material" (Material), ao qual se deve voltar
incessantemente para julgar a credibilidade da menor asserção analí­
tica. Mas o material em questão requer uma formalização específica
(uma " in-formação" ): aí se situa a intervenção da teoria que Freud
batiza de " metapsicologia" . Ora, esta se traduz pela intervenção de
um verdadeiro " fantasiar" (Phantasieren), 12 que, como indica o nome,
supõe " deslocar" do material no momento em que a simples descrição
deste se revela insuficiente: Freud não hesita em compará-Ia à
intervenção da " feiticeira" . 13 É verdade que os " oráç:ulos" dessa
feiticeira metapsicologia são bem limitados: mas, precisamente, o
saber analítico é constituído pela tensão entre essa referência ao
imediato do real clínico e o recurso ao trabalho do conceito metapsi­
cológico.
O trabalho da interpretação é tomado, pois, entre os dois níveis, a
título de mediação. É isso que faz - vamos observar de passagem
- com que Freud não subscreva um modelo " hermenêutica" . 14 A
construção metapsicológica permanece essencialmente explicativa. Se,
todavia, um momento interpretativo se faz necessário, é no entre-dois
do material clínico e do c.onceito metapsicológico.
A pesquisa clínica poderia, portanto, remeter a um fantasiar
heurístico de um gênero bastante partic ular, aquele que separa a
posição empírica da posição racional. É com os olhos fixos no material
48 os fundamentos

que o operador produz suas " idéias" , mas estas funcionam simulta­
neamente para se antecipar ao material e " ficcioná-lo" .1 5 O cerne da
questão pode, pois, reformular-se como o das relações entre clínica e
metapsicologia.
Ora, Freud convida-nos a pensar, se prestarmos bastante atenção à
substância da sua trajetória, outra coisa que não a alternativa enunciada
acima. Isso é o que significa a idéia de uma congruência entre " o
exemplo" e " a coisa" , anunciada acima, no quadro d a sua pesquisa
clínica, precisamente.
Vamos traduzir, com efeito, o paradoxo do que ele nos fez pensar
naquela ocasião, no plano da concepção da episteme.
Na concepção corrente, " a exemplificação" serve para " ilustrar" ,
por um fato singular, uma generalidade conceitual, o que implica ao
mesmo tempo e inseparavelmente que ele a evoca e que ele não a
esgota. Se ele não pudesse exprimir suficientemente a " coisa" -refe­
rente, não poderia funcionar como exemplo pertinente. Mas, se a
ilustrasse totalmente, iria confundir-se por inteiro com ela, a ponto
de não ser mais um espécimen da coisa e sim ela mesma. Neste último
caso, deveríamos falar em " pleonasmo" ou, no plano lógico, em
" tautologia" .
Logo, a concepção corrente refere-se a uma retórica em que " o
exemplo" d á a ver e perceber sem mostrar inteiramente e sem esgotar
a concepção. É , pois, uma semi-experiência e um semiconceito.
Convocando-nos a pensar que, na ordem da experiência incons­
ciente, o exemplo pode valer como a própria coisa, Freud faz mais
que manejar um paradoxo brilhante. Ele sugere que o exemplo é um
verdadeiro esquema intermediário entre o dado clínico e a " coisa"
metapsicológica, o que remete à especificidade da esfera clínica.
Melhor: ele obriga a pensar que a " coisa" metapsicológica, tal como
" concebida" ou a conceber, é algo diverso de uma generalidade a se
" ilustrar" por exemplos-fatos: ela nada mais é que o avesso pensado"
da própria experiência clínica. É precisamente o exemplo-coisa,
surpreendido em plena massa da experiência dita clínica, que permite
ver a coisa na experiência, ou pensar a experiência. Isso recusa ao
mesmo tempo o platonismo de inteligível e o empirismo do fato bruto.
Entretanto, não se trata de uma posição filosófica a mais, e sim da
expressão do movimento mesmo do saber clínico, que requer um
modelo ad hoc.
O que assim é dado a pensar é um processo, do qual " a coisa" e
" o exemplo" são os dois momentos solidários. É isso que parece mais
o exemplo 49

característico da relação: o clínico não é somente aquele que se baseia


nos exemplos, mas aquele que faz do exemplo a própria manifestação
da coisa a pensar.
Poderíamos perguntar-nos, nessas condições, se é realmente útil,
ainda, referir-se à noção de " coisa" , que evoca por seu realismo literal
algo que tende a se hipostasiar. Em resumo, " a coisa" não é uma
espécie de pavimento no lamaçal da clínica? Ora, Freud emprega
mesmo esse termo (die Sache), ainda que como " correlato" do
exemplo e do fenômeno. Isso não se refere, em absoluto, a algum
" coisismo" : a referência ao exemplo constituinte prova que tudo se
dá na própria relação. Se, no entanto, uma problemática da coisa
permanece necessária na hermenêutica freudiana,16, é porque se trata,
a cada vez, de acertar exatamente a própria coisa em questão - como
no Enigma da Esfinge, trata-se de acertar, e não de compreender " de
que se trata" , como se diz quando se toma a expressão em seu mínimo
semântico.
Logo, a coisa nada mais é que outro nome do exemplo, mas ela é
também o próprio momento do pensamento, o que requer precisamente
uma posição metapsicológica sui generis. Na clínica, não se deve
pensar na coisa, e sim pensar a própria coisa, fenomenalizada, é
verdade, na rede de fenômenos e de relações em que ela " se
exemplifica" .
Em outras palavras, existe na experiência clínica a ser pensada uma
espécie de movimento espontâneo do objeto, a ser refletido pela
construção de um dispositivo ad hoc. Nesse quadro, o exemplo não
só faz ver o objeto a ser pensado: é a própria coisa que se mostra. E
essa " coisa" deve ser pensada de outro modo que o e idos fenomeno­
lógico, por exemplo - tão flagrantemente o mundo de pensamento
de Husserl é distinto do de Freud. O exemplo, aqui , é a reverberação
da coisa sem referência a qualquer " intencionalidade" . E esta não
passa de um " ponto de fuga" do processo clínico de formação do
sintoma. Logo, ela jamais se mostra. . . senão como " exemplos" . 1 7
Isso é tão verdadeiro que Freud se vê, ocasionalmente, na posição
de reproduzir, de repetir o exemplo fornecido por seu material à guisa
de explicação. Posição irônica e reveladora, certificado de autentici­
dade do conteúdo mesmo, do gênero: " é justamente i sso" . É isso que
dá uma forma tautológica reveladora ao estilo de interpretação
analítica. Mas a interpretação introduz com o mesmo gesto, de certa
maneira, uma dissimetria nessa experiência aparente: pois entre o
tempo I e o tempo 11 passa-se um efeito essencial: a adjudicação do
sentido. Aí está o momento propriamente dito da interpretação: menos
50 os fundamentos

descoberta de um significado secreto que reapropriação do exemplo


como a própria coisa Na efetuação da própria identidade se opera,
pois, o trabalho da interpretação. Isso é o que faz, precisamente, da
clínica uma prática.
Vê-se, pois, como o próprio esquema clássico é decididamente
subvertido pelo gênero de " lógica" que Freud deve nele introduzir,
sob a pressão de seu objeto. Vê-se mesmo como esse objeto constitui
em si uma verdadeira pequena lógica viva. Mas, precisamente, é tempo
de ir além e especificar positivamente esse modo de pesquisa.

4. O ''juízo clínico" como procedimento de reflexão

Se é verdade que a " palavra" de Freud, bem mais que um adágio, é


o índice de um gênero de racionalidade ad hoc, revelador do modo
de pensamento do objeto clínico, como se pode, pois, caracterizar
mais precisamente este último?
Aquilo a que se poderia chamar " a arte metapsicológica" -
construção desse pensamento clínico dos processos inconscientes -
pode servir-nos de baliza. Propomos chamar " reflexivo" esse proce­
dimento de pensamento.
É algo inteiramente diverso de uma " reflexão sobre" o objeto -
o que nos iria remeter a esse modelo de racionalidade externa que se
revelou insuficiente. O procedimento reflexivo deve ser entendido
aqui em oposição ao procedimento " determinante" . 18 Enquanto este
último se esforça para referir uma singularidade a uma lei, ou, como
se diz num certo Jargão que tem o mérito da precisão, para subsumir
casos sob uma " lei" ou generalidade, o procedimento reflexivo tende
a desenvolver a singularidade da experiência até um certo ponto de
cristalização de um saber ou . até que um certo " universal" se torne
visível ou legível.
Vamos observar que o procedimento reflexivo não deixa de
prescindir de toda referência a um " universal" - à falta do que, seria
preciso renunciar à intenção de fazer dessa pesquisa um saber, posição
que, em seu termo, seria " terrorista" 1 9• Mas ela busca a produção
desse " universal" unicamente no desenvolvimento de um nó de
singularidades.
A relação a ser pensada entre metapsicologia e clínica parece ser
da seguinte natureza: a arte metapsicológica nada mais é que a
reconstituição rigorosa dessa imagem reflexiva de um certo processo
clínico.
o exemplo 51

Ora, isso é precisamente o que articula o clínico a uma racionalidade


da pesquisa, no sentido forte e literal. Não pesquisa sobre o objeto,
e sim objeto problemático e real que coloca, necessariamente, em
posição de pesquisa. Isso talvez valesse mesmo como contribuição à
questão complexa do que vem a ser uma " vocação" de clínico ...
Não é por acaso, seja como for, que Freud sempre foi fascinado
pelo espírito goethiano: sabe-se que Goethe, botânico, sustentava que
o conceito da planta deveria ser construído na fenomenalização da
metamorfose da planta real.20 Existe aí como que uma imagem dessa
solidariedade a se pensar.
Logo, existe realmente um "juízo clínico" , e este deve ser concebido
como " reflexivo" . Para tal juízo, apenas o singular é dado. O clínico,
portanto, irá sempre desconfiar de um " entendimento determinante"
que ameace romper a singularidade da experiência para ali encontrar
uma legalidade que a destrói a pretexto de explicá-la. É esse mesmo
o terreno do que se chama " senso clínico" , termo de uso um pouco
pejorativo por seu caráter divinatório, mas que assim mesmo designa
a sua especificidade de exercício de uma certa posição judicativa: a
de discernir fragmentos de universal numa seqüência singular, que
não a deteriora, mas a reflete. Mas isso significa que a experiência
clínica tem a ver, realmente, com certos " universais reflexivos" .
É isso que permite situar a questão do caráter cumulativo ou não
desse saber. Por um lado, com efeito, a especificidade da atitude
clínica consiste nessa reapreensão crônica do novo, que Freud obser­
vava em Charcot antes de praticá-lo ele mesmo/1 o que supõe voltar
sempre, de certa forma, ao primeiro momento do olhar; o que impede
o ideal cumulativo de se exercer. Mas o que é possível reinvestir, até
mesmo transmitir, não é um desses " universais reflexivos" ? É como
um tesouro de tais esquemas que vale, a nosso ver, a obra do Freud
clínico: repensar e reexperimentar o que foi, num momento preciso,
experimentado e pensado. Tentamos mostrar em outra parte22 o papel
desempenhado nesse sentido pela escrita da clínica freudiana. O
romanesco inerente à escrita do sintoma não é somente um efeito de
estilo externo, mas a criação de um verdadeiro gênero literário inédito,
que se constrói na medida do amadurecimento da experiência clínica,
dos Estudos sobre a histeria às Cinco psicanálises. Recuperando,
como numa " história" , ao mesmo tempo o movimento do sujeito e
o da relação analítica, tomando-os assim solidários, Freud toma seu
leitor capaz de participar dela. Freud também toma o leitor de seus
" relatos de casos" espontaneamente clínico pela própria postura que
institui. Quanto ao próprio clínico, como leitor dessas histórias, ele é
52 os fundamentos

" de boa formação" , já que observa um certo movimento que está


livre para reefetuar.
Tal nos parece ser o duplo caráter de um saber autenticamente
clínico: por um lado, a produção de " esquemas" reefetuáveis -
portanto, tomando possível sua transmissão; por outro lado, a liberdade
de tornar a partir daí para estabelecer outras correlações e tecer outras
tramas. Isso é o que dá aos pacientes de Freud essa vida surpreendente,
como se eles ainda se ·oferecessem, graças ao texto freudiano, mas
também para além deste, como uma mina inesgotável de observações
clínicas. Freud oferece, em outras palavras, um modo de transmissão
que permite igualmente colocá-lo às vezes em contradição com seu
próprio sistema interpretativo.
Isso é o que se deveria pensar sob o título de " universal reflexivo" :
um pedaço de significação transmissível, mas não fixo, datável - tal
como um achado arqueológico -, mas capaz de ser novamente
exumado e efetuado de outra maneira. Não será esse, propriamente,
um " efeito estético" ?

5. Da "arte do sintoma" à referência transferencial

Não é por acaso que Freud evoca seu material - a própria neurose
- como " uma obra de arte da natureza psíquica" . 23 Isso bem poderia
fazer metáfora ao objeto clínico em geral.
Este é, de fato, aquilo que se mostra numa rede de fenômenos.
Assim como a " obra de arte" não é o exemplo de uma outra coisa,
mais abstrata ou geral, mas aquilo mesmo que se mostra, assim também
" a obra de arte da natureza psíquica" se descobre como tal. Mas
quando se consegue selar uma certa configuração, esta se torna, à sua
maneira, utilizável e transmissível. Isso é o que permite basear-se
nessa experiência sem cair no logro de sua imediatez. De resto, todo
o trabalho de constituição das relações e de modelização é tomado
entre estes dois aspectos: o do próprio processo, que é a forma mais
visível e cotidiana do trabalho clínico, e esses momentos, ao mesmo
tempo raros e precisos, em que se mostra um fragmento da objetividade
em construção. Não era esse prazer da descoberta que Freud já notava
em Charcot, no limiar da moderna pesquisa clínica? Como sublinha
Freud, o conhecimento é da ordem da " pulsão" , o momento " estético"
seria o do encontro da pulsão de saber (Erkenntnistrieb) com seu
objeto. O " exemplo" é, nesse sentido, " conteúdo-de-coisa" (Sachven­
halt).
o exemplo 53

Que não se veja, de resto, nenhum pathos romântico na concepção


freudiana, que se destaca assim: o momento estético não é algum
" suplemento de alma" do trabalho clínico. A clínica permanece na
ordem do empreendimento obstinado e modesto de saber, mas o que
tentamos assim demarcar é a sua estrutura própria.
Ora, existe um termo corrente para expressar esta especificidade:
" transferência" . Preferimos, por nosso lado, introduzi-lo ao fim do
percurso, e não como pressuposto que de saída tudo explicasse.
O saber reflexivo descrito começa com esse momento da " atestação
do sintoma" , do qual Freud registrou a figura pungente na de um
sujeito que demanda um " atestado de sintoma" . 24 Ali se nodula a
relação transferencia:l pelo fato de haver, com efeito, um respondente
dessa demanda.
Mas isso confere, de saída, sua especificidade ao saber clínico. Não
apenas no sentido em que a transferência lhe acrescentaria alguma
dimensão afetiva, mas porque esse saber se funda, a partir desse
momento preciso, neste pressuposto - diríamos quase que neste
preconceito - necessário: de que existe realmente um sujeito do
sintoma, que é necessário responder a ele e instruir, nesse ponto, um
processo. Vimos acima como o sujeito é registrado ao fim do
desenvolvimento do exemplo, mascarado pela " generalidade" .
Assim, tendo partido do próprio sintoma como objeto do saber
clínico, descobrimos, por efeito de retorno, ao fim dessa desconstrução,
o que é o seu pressuposto: ou sej a, a referência ao sujeito. Mas é
justamente no momento em que se ata a transferência que o sujeito,
encontrando seu respondente possível no saber clínico, pode advir
como sujeito do seu sintoma. O mais notável da experiência clínica
é que dela se pode tirar um saber singularmente rigoroso. Mas
piscernimos agora o seu caráter necessariamente problemático: não
há ·outro suporte desse " universal reflexivo" que nomeamos de
passagem senão a referência ao próprio sujeito. Saber que, por sua
vez, só se autentifica referido ao " interessado" : tal é o " círculo"
·
propriamente " clínico" .
Não é para tal sujeito que o exemplo vale como a coisa, de sorte
que Freud, formulando o adágio que comentamos, parece anular a
denegação do sujeito envolvido, este fundado no não-saber que o
exemplo, que no entanto ele mesmo citava, nada mais era que a coisa
de que falava?
Tal é, pois, o círculo que não cessa de ser trabalhado pela pesquisa
clínica: tudo parte do fato de que há sujeitos do sintoma, tudo deve
54 os fundamentos

voltar a isso. O saber propriamente clínico é produzido de passagem


e não tem outra legitimidade senão essa referência. Saber ao mesmo
tempo problemático e inalienável, já que limitado por essa referência
ao sujeito do sintoma que o torna, por isso mesmo, insubstituível.

NOTAS AO CAPÍTULO II

I . Da palavra grega que designa o " leito" onde se estende o doente. É num
sentido literal que abordaremos a racionalidade da clínica enquanto tal, que é o
horizonte de terrenos variados. Nesse sentido, falamos " do" clínico (e não da
clínica).
2. Freud denunciava espiritualmente aqueles que parecem hesitar para aparentar
um " estilo científico" - o que não é adequado quando se deve, como na
experiência clínica, saber cortar os nós górdios...
3. "Sun-piptein " (que conota a idéia de queda), diz a etimologia. Remetemos
a nosso artigo " La femme, symptôme de I ' organisation sociale" , in Le sexe du
pouvoir, Ed. de I'Epi, 1 986, para a análise de tal modelo, tomando o social pelo
sintoma, bem como a nossa obra Freud et la femme, Calmann-Lévy, 1 983.
4. S. Freud, L 'Homme aux rats. Journal d 'une analyse, PUF, 3a.ed., 1 99 1 .
Em suas notas, Freud emprega o termo francês ( est" ) que liga o s dois termos
"

alemães.
5. Sobre esses aspectos, permitimo-nos remeter a nosso trabalho " Réflexions
critiques sur !e normal et !e pathologique, in Anthropologie Médicale, n. l ,
1 978.
6. " Remarques sur un cas de névrose obsessionnelle (L'Homme aux rats)'.' ,
trad. francesa in Cinq psychanalyses, PUF, p.204. [ESB vol. X).
7. L 'Homme aux rats. Joumal d'une analyse, op. cit.
8. É sabido que, nesse caso, acontece de não se encontrar outro exemplo, o
que comprova, se acompanharmos Freud, que a coisa já foi dada sob esse disfarce
de exemplo ...
9. Estaríamos, assim, dando com uma variedade do fenômeno de "denegação"
estudado por Freud no curto escrito de 1 925 que leva esse nome. Ver, infra, nossa
conclusão sobre a referência ao sujeito locutor implicada por semelhante processo.
1 0. Atribuído a Aristóteles.
1 1 . Vamos assinalar que Freud nunca teve simpatia pelo " ficcionalismo"
sustentado no início do século por Vaíhinger. Cf. infra, cap. lll.
12. Sobre esse tema complexo que aqui só podemos evocar, referimos a nossa
pesquisa lntroduction à l 'épistémologiefreudienne, Payot, 1 98 1 , e L 'entendement
freudien, Gallímard, 1 984.
o exemplo 55

1 3. Cf. o texto de " Análise terminável e interminável" analisado em nossos


dois textos citados.
1 4. Freud permaneceu insensível sobretudo à querela dos métodos, e reivindica
a psicanálise como uma " ciência da natureza" (Naturwissenschaft) (op. cit.).
1 5. As pulsões e suas vicissitudes, texto igualmente comentado nas passagens
citadas.
1 6. Cf. infra, cap. V.
17. O que recusa, vamos observar, "a coisa em si" .
1 8. Utilizamos aqui, de maneira puramente operacional, uma distinção a que
Kant deu consistência em sua Critique de la faculté de juger, que, não por acaso,
procura fundar o "juízo estético" (ver infra).
1 9. Viu-se, com freqüência, a clínica servir a uma " mística do fato" , variante
de irracionalismo, o que Freud em momento algum autorizou.
20. Cf. L 'entendement freudien, introdução.
2 1 . Cf. o escrito necrológico sobre Charcot, que comentamos em nosso
estudo-prefácio à obra de Harry Stroeken En analyse avec Freud, Payot, 1 987.
22. " Freud, romancier du symptôme. Sur l'écriture clinique freudienne" ,
estudo-prefácio a Harry Stroeken, En analyse avec Freud, Payot, 1 987. Cf. também
infra, cap. X.
23. Carta a Jung de 30 de junho de 1 909, in Sigmund Freud, C.G. Jung,
correspondance, Gallimard, vol. I, carta 1 49 F, p.3 1 7. (Cf. Freud, romancier du
symptôme. Sur l 'écriture clinique freudienne para o comentário desse texto
consagrado à redação do caso do Homem dos Ratos.)
24. Encontra-se esse detalhe em L 'Homme aux rats. Journal d'une analyse,
p.60- 1 , 62-3. O paciente, para realizar um sintoma obsessivo, sai em busca de um
médico que lhe possa fornecer um atestado de que a realização é requerida por
seu estado. Cf. também Sur l' écriture cliniquefreudienne, op. cit., para a explicação
dessa anedota, e p. 1 42).
CAPÍTULO III

FICÇÃO E FICCIONAMENTO
METAPSICOLÓGICOS

A experimentação do exemplo como " coisa" remete-nos ao paradoxo


de um " saber" , este mais ou menos da ordem da " ficção" - a ser
entendida em primeiro lugar, na sua generalidade elementar, como
uma " representação" (nesse sentido, " não-coisa" ). Nesse recensea­
mento dos elementos da Darstellung metapsicológica, encontramo­
nos, pois, confrontados com a questão elementar: que gênero de
" ficção" é o conceito metapsicológico considerado enquanto tal?
Questão principal, que remete ao estatuto epistemológico desse
conceito forjado expressamente com o fim de fazer passar o " material"
clínico na ordem do discurso, saber e fala (logos). 1 Que gênero de
racionalidade é esse? Mesmo aquém da legitimidade de falar - a
propósito da metapsicologia - em " racionalidade" , convém voltar à
questão: se o conceito metapsicológico deve ser " forjado" , num dado
momento, para dar conta do " material" e elevar o exemplo ao estatuto
de um " universal" ou de uma generalidade, que gênero de ficção é
esse? A " ficção" não é mais nem menos, aqui , que o produto desse
" ficcionamento" que é o Phantasieren metapsicológico: logo, é sua
especificidade que se deve demarcar, através dos fins que a legitimam
e das moda]idades que exigem sua produção " em situação" .
Questão de " modo de emprego" que toca a questão epistemológica
desse gênero de " imagem" intelectual que é o conceito: como
" perfilar" , nesse sentido, a ficção conceitual original que é o Begriff
metapsicológico?

56
a ficção 57

Figuras da ficção

Que se deve entender por " ficção" em geral - e como situar sua
figura metapsicológica?
" De modo geral" , diz o Vocabulaire de Lalande, " o que é fingido
pelo espírito" - no sentido de Jictum.2 Esse truísmo especifica-se
por uma distinção que indica como a questão foi progressivamente
sobredeterminada.
- Em primeiro lugar, é " uma construção lógica ou . artística à qual
se sabe que nada corresponde na realidade; por exemplo, na matemá­
tica, no romance etc." . Uma ficção não é simplesmente o " não
verdadeiro" , semblante ou aparência, mas um constructo portador de
virtualidades de conhecimentos: se construímos alguma coisa de que
se sabe que " nada (lhe) corresponde na realidade" , é que, por uma
estratégia epistêmica deliberáda, esperamos tirar disso um efeito que,
sem esse " ficcionamento" , seria impossível. Há aí a idéia de uma
indiferença metodológica pela " realidade" objetiva da " imagem"
(fictícia).
- Logo, é também, pelo mesmo motivo, uma " hipótese útil para
representar a lei ou o mecanismo de um fenômeno, mas da qual nos
servimos sem afirmar sua realidade objetiva" . O exemplo citado é
desta vez o do " modelo físico" . Sob o efeito do debate epistemológico
do começo do século XX, precisamente contemporâneo da psicanálise,
o termo " ficção" assumiu, além de sua conotação lógico-matemática,
o sentido de modelo de inteligibilidade dos fenômenos físicos.
- Enfim - na medida mesma em que a questão da " crença" e
da " legitimidade" é engajada pela própria idéia da ficção -, o termo
ganhou o sentido de " enunciação falsa ou incerta que deve ser
igualmente considerada como verdadeira" : é nesse sentido que se fala
e m " ficção legal" . Aqui, vai suspeitar-se ainda de ser o exemplo a
própria coisa: " ninguém é suposto ignorar a lei" , ou ainda "pater est
quem nuptiae demonstrant" . O " pai" poderia ser, com efeito, o
paradigma da " ficção lega1" 3• Isso revela o avesso ético-religioso da
questão da ficção: questão do direito à enunciação e à designação
pela enunciação (Bezeichnung). A ficção é determinada, em seu
conteúdo, por um certo " coeficiente de incerteza" , que permite dar-se
o direito de considerá-la " verdadei ra" . " Valor de verdade" avali ado
na medida da crença e de seu reconhecimento pelo outro.
Tal é a herança da noção no momento em que Freud dela se
apropria:
58 os fundamentos

1 . A ficção remete a uma questão " gnoseológica" - tocando no


próprio problema do conhecimento: como é possível a um " sujeito
conhecedor" produzir uma " imagem" adequada do objeto que ele
visa - o que remete ao " momento ficcionante" do próprio processo
de conhecimento?
2. Ela remete em seguida à questão correlativa da construção
explicativa, no plano epistemológico: como pode o " sábio" dar conta
de um " fenômeno" por meio de uma " representação" , entre a hipótese
(legítima) e a especulação (quase mitológica)? .
3 . Ela toca na interrogação ético-jurídica o u ético-religiosa: a da
" crença" e do grau de " assentimento" que a ficção autoriza.
É através da questão central que o problema se formula com mais
facilidade no começo do século XX: no quadro, precisamente, dos
debates quanto ao sentido da " teoria física" (no sentido de Duhem).
A " galáxia" de posições desloca-se entre os dois pólos do " idea­
lismo" e do " realismo" em que a questão desaparece, uma vez que,
então, a " ficção" se evapora em " idéia" ou se identifica com a
" realidade" : entre uma posição que reduz a imagem conceitual a uma
simples " convenção" posta sobre o real ("convencionalismo" ) e
aquela que ainda vê nela uma " forma" - reflexo ou " conceito"
(" formalismo" ). Em segundo lugar, o " positivismo" acentua a ne­
cessidade de uma " ligação" fundada na experiência, ao passo que o
" pragmatismo" desloca a questão do . lado da validação " prática"
pelos " efeitos" obtidos4•
O procedimento de Freud, ao mesmo tempo determinado pelos
termos dessa ambiência epistemológica e intratavelmente emancipado ·

pelas imposições de seu objeto dos debates epistêmicos puramente


formais, vai consistir em determinar uma " postura" ao mesmo tempo
pragmática e rigorosa. Trata-se, pois, de compreender como a proble­
mática vai formular-se no terreno da codificação metapsicológica em
seus termos próprios. Mas uma " doutrina epistemológica" lhe dará
ocasião, pontual, mas muito reveladora, de se distinguir de uma
tendência do momento: é. o " ficcionalismo" de Hans Vaihinger
( 1 852- 1 933).
Consignada em sua obra A filosofia do como se (Die Philosophie
des Als-ob), cuja primeira edição data da primeira grande codificação
metapsico1ógica ( 1 9 1 1 ), Freud vai aguardar a sétima edição ( 1 922)
para reagir. Aí está mais que uma peripécia: o momento de verdade
de um trajeto.
a ficção 59

I. A ficção metapsicológica:
o aparelho psíquico e o "imaginário tópico"

Que a metapsicologia depende da " invenção" de uma " nova psico­


logia" é ressaltado na primeira grande exposição da obra freudiana.
No começo do Capítulo VII da Traumdeutung, consagrado à " psico­
logia dos processos do sonho" , Freud o expressa com c l areza e
simplicidade: "É para nós impossível explicar (aufkliiren) o sonho
como processo psíquico, pois explicar (erklãren) significa remeter ao
conhecido, e não existe atualmente nenhum conhecimento psicológico
(psychologische Kenntnis) a que possamos subordinar (unterord­
nen = subsumir sob uma ordem) aquilo que, a partir da experimentação
psicológica (psychologische Prüfung) dos sonhos, se deixa concluir
(erschliessen) como fundamento explicativo (Erklãrungsgrund)." 5 Im­
possível, portanto, depois de haver desenvolvido a formação onírica,
efetuar uma transcrição dessa " descrição" · nos termos de algum
" padrão explicativo" disponível: é preciso procurar outro " fundamen­
to explicativo" , não disponível no " armazém" científico.
É necessário, portanto, inventar: " Seríamos, ao contrário, obrigados
a dispor de uma série de novas hipóteses (eine Reihe neuen Annahmen)
que tocam o edifício (Bau) do aparelho psíquico e o jogo de forças
nele atuantes por meio de suposições ( Vermutungen)." É preciso ainda,
nessa passagem pelo vau da especulação, " prestar atenção para não
tecer (auspinnen) demais para além da primeira articulação (Anglie­
derung) lógica, pois de outra maneira seu valor se perderia no
indeterminado" .6 Tal é o móbil da invenção metapsicológica: requerida
como corpo de " suposições" para investir, por um saber inédito, um
material recém-revelado, mas devendo evitar o obstáculo do " inde­
terminado" , do apeiron ( Unbestimmbare), já que convém abranger,
por meio de generalidades conceituais, a singularidade do objeto-alvo.
A " invenção" deve, pois, combinar audácia e desconfiança do
" arbitrário" .
A ficção metapsicológica por excelência será, a partir dessa expo­
sição inaugural e, de uma vez por todas, o aparelho psíquico (seelischer
Apparat): " Logo, representamos o aparelho psíquico" , escreve Freud,
" como um instrumento composto, cujos elementos (Bestandteile)
vamos chamar de instâncias ou, com referência à sua visibilidade
(Anschaulichkeit), de sistemas" .1 O que é determinante nessa repre­
sentação tópica é a idéia de " uma orientação espacial constante" dos
sistemas, uns com relação aos outros, à maneira de " lentes de
60 os fundamentos

telescópio" . É nisso que se decide sua natureza ficcional: " Não


precisamos, estritamente falando, formular a hipótese (Annahme) de
um ordenamento verdadeiramente espacial dos sistemas psíquicos.
Basta�nos, se uma seqüência (Reihenfolge) estável for desse modo
realizada, que por ocasião dos processos psíquicos os sistemas possam
ser percorridos, numa série temporal determinada, pela excitação."
Logo, é o " trajeto" da excitação que desenha o aspecto (Ansehen) do
aparelho psíquico. Vê-se que o esquema espacial é determinante (de
maneira quase anatômica), mas as " instâncias" - " ficções legais" ,
é o caso de dizer -, ou melhor, os " si stemas" , são apenas " pontos"
do espaço psíquico que indicam a seqüência propriamente " temporal"
da excitação: é esta que determina as " instâncias" por sua passagem
e permite, em conseqüência, fazer-se aí representar.
Daí um esquema de duas extremidades (perceptiva e motriz) e o
princípio de um duplo funcionamento (com o sistema tampão pcs):
cs/ics. É essencial que a metapsicologia postule um " si stema Ubw"
(ics) que, como dirá um texto ulterior, faz o inconsciente sair de seu
simples estatuto descritivo.8
Tal é, de certo modo, o " ficcionamento" primitivo e fundamental
da metapsicologia: é o " trabalho do sonho" , dirá Freud, que " nos
permite efetuar uma articulação (Gliederung) do aparelho psíquico
em instâncias distintas e mostra que, no sistema dos processos da
atividade psíquica inconsciente, se desenvolvem processos de uma
espécie inteiramente outra que não aqueles que são percebidos na
consciência" . 9 Tudo começa com essa prega primitiva da geologia
psíquica em torno da qual se forma o aparelho psíquico.
Mas, como se sabe, a evolução da " tópica" vai impor variações
ao " desenho" dessa prega. Uma observação da última síntese assume,
então, todo o seu valor: evocando o interesse e os limites da primeira
distinção das " qualidades psíquicas" (consciente/pré-consciente/in­
consciente), Freud nota que, se essa distinção é tão esclarecedora
quanto enganosa, é porque " ela não é, falando propriamente, uma
teoria (Theorie), mas um primeiro relatório (Rechenschaftsbericht)
sobre os fatos de nossa observação, que se mantém o mais perto
possível desses fatos e não tenta esclarecê-los." 10 A mudança de tópica
significaria, portanto, uma promoção da " descrição" a um estado de
teorização mais próximo da " explicação" propriamente dita dos
conflitos atuantes. O objetivo essencial permanece, porém, quanto ao
fundamento da " ciência dos sonhos" , fornecer a imagem mais clara
e mais completa da " empresa psíquica" (" das Bild des seelischen
Betriebs" ) . 1 1
a ficção 61

Como toda " empresa" , esta tem um problema econômico a resolver,


que lhe determina sua " Íarefa" e sua " eficiência" (Leistung): " Po­
demos dizer que o aparelho psíquico serve à intenção de dominar e
eliminar as quantidades de excitação, as grandezas de excitações que
lhe chegam vindas do exterior e do interior." 12 Tal é a " finalidade"
de seu trabalho, o " aparelho" dando corpo a essa " função" princeps.

2. A "ficção originária": a "convenção metapsicológica"

Se o " aparelho psíquico" constitui a montagem ficcional fundamental


da explicação metapsicológica, como " discurso" a metapsicologia
deve apoiar-se num " conceito fundamental" ( Grundbegrifj): a " pu l ­
são" (Trieb) E m que medida existe também uma " ficção fundamen­
.

tal" ( Uifiktion, termo que, aliás, não é empregado por Freud)?


O problema é formulado na página, de uma densidade excepcional,
que abre o primeiro ensaio da Metapsicologia: " As pulsões e suas
vicissitudes" ( 1 9 15).
Freud começa por lembrar uma exigência (Forderung) corrente­
mente formulada, a de que " uma ciência deve ser construída sobre
c,mceitos fundamentais claros e definidos de forma decisiva (schaif)" 1 3,
mas só para constatar imediatamente que " na realidade nenhuma
ciência, nem mesmo a mais exata das ciências, começa por tais
definições" . E com razão: " O exato início da atividade científica
consiste, antes, na descrição dos fenômenos" : aí está a verdadeira di­
nâmica da ciência, e é só mais tarde que " eles são agrupados, ordenados
e inseridos em conjuntos" . Nesse nível de desenvolvimento, nada há,
pois, de " efetivo" além da descrição dos fenômenos (Erscheinungen),
c não existe um conceito originário (que seria menos que uma ficção,

um fantasma!).
Mas Freud observa logo depois que: " A partir da descrição, não
se pode deixar de aplicar certas idéias abstratas (abstrakte Ideen) ao
material que se vai buscar em alguma parte e não, certamente, apenas
na nova experiência." Essas " idéias" , germes dos " conceitos funda­
mentais" ulteriores da ciência, são " indispensáveis" como instrumen­
tos de elaboração (Verarbeitung) da matéria (Stoffes) - logo, são de
certa maneira " formas" . Iniciado sob o signo do " empirismo" , o
discurso freudiano reafirma, conforme um equilíbrio clássico na teoria
do conhecimento, uma espécie de " racionalismo" metodológico: não
62 os fundamentos

será deixando girar o moinho da experiência bruta que se vai " moer"
conhecimento !
Qual é, pois, o estatuto epistêmico dessas " idéias-conceitos" ? Como
compromisso entre a experiência e essa " outra coisa" da experiência,
" elas devem portar em si, em primeiro lugar, um certo grau de
indeterminação" , já que " não se pode falar numa clara delimitação
( Umzeichnung) de seu conteúdo" . Logo, são " formas" à espera, ou
melhor, na antecipação de conteúdo: deve-se então tentar, como Freud
tentará com o conceito de " pulsão" , " preencher diferentes lados com
conteúdo" (lnhalt)14• Existe aí um " círculo" : por um lado, sua
" significação" se adquire pela " referência repetida ao material da
experiência" ; por outro lado, aquilo de que " elas parecem ser tomadas
de empréstimo" lhes está, " na realidade, submetido" . S ão essas, em
suma, as " convenções" (Konventionen). Freud define aí uma forma
de " convencionalismo" , mas especificada por um " relacionismo"
cujas fontes mostramos, noutra parte, no " empirismo" de Ernst
Mach: 15 " Logo, elas têm, estritamente falando, o caráter de conven­
ções, mas nas quais se trata, antes de mais nada, de não serem
escolhidas arbitrariamente, e sim serem determinadas por relações
significativas à matéria empírica, que se presume ter adivinhado
(erraten) antes de podê-las reconhecer e demonstrar."
Esse " convencionalismo" , como se vê, faz parte de uma " decisão"
constante relativa ao grau de objetividade que se pode atribuir a esses
" constructos" : estes põem em movimento a faculdade de " adivinhar" ,
que Freud dizia, desde a origem, ser característica da atividade
metapsicológica.
Assim se inaugura o processo de " preenchimento" dos " conceitos
científicos fundamentais" , na medida mesma da " investigação (Er­
forschung) do domínio da experiência envolvida" . É só depois de se
atingir um ponto de determinação aceitável que pode soar, enfim, a
hora das " definições" , colocadas como " ponto de partida" , vamos
lembrar, pela concepção corrente aqui refutada; é só quando " utili­
záveis em seus grandes contornos" e relativamente desembaraçados
de suas contradições (widerspruchsfrei) que " os conceitos podem
encadear-se (bannen) em definições" . É claro, doravante, que um
" nominalismo" é exigido aqui, aliás proporcional à busca de objeti­
vação das " convenções" : não se poderá falar em " definições rígidas" ,
j á que é da essência desses conceitos, convenções especificadas,
abrigar " uma mudança constante de conteúdo" (lnhaltswandel).
a ficção 63

Tem-se aí um· retrato edificante do conceito metapsicológico:


compromisso estrito entre uma exigência de rigor formal - ele deve
conter a maior densidade possível de determinações em sua " com­
preensão" - e de " mobilidade de conteúdo" - pela multiplicação
em " extensão" das " relações" experienciais. Sob o primeiro ponto
de vista, o termo " ficção" não lhe convém, decididamente, na medida
em que acentua o caráter " irreal" , ao passo que o conceito metapsi­
cológico contém o reflexo mais fiel possível de determinações do
objeto descrito e restituído; sob o segundo ponto de vista, o termo
" conceito" deve ser manejado com prudência, na medida em que em
nenhum momento a experiência é submetida e de certa forma dominada
por um " a priori" : um conceito metapsicológico é feito " para viver" ,
e sente-se nele o próprio ciclo do "conteúdo" que faz a sua " carne" .
É nesse ponto lógico que o confronto do entendimento metapsico­
lógico com o ficcionalismo se toma compreensível.

3. Critica metapsicológica do "ficcionalismo":


Freud e a filosofr.a do "como se"

A referência à filosofia do " como se" somente intervém na obra de


Freud no período 1 925- 1 927.
É justamente na passagem de " A questão da análise leiga" ( 1 925)
que o terceiro imaginado como interlocutor pergunta, um pouco
ingenuamente, que se deve entender por " aparelho psíquico" - vamos
notar o realismo quase infantil da pergunta: " a partir de que ele é
construído?" 1 6 Freud responde que é possível deixar de lado o ponto
de vista da materialidade - isto é, do " material" - pata acentuar o
" ponto de vista tópico" : " Representamos o aparelho desconhecido
que serve às operações psíquicas ( . . . ) realmente como um instrumento,
constituído por diferentes partes - que chamamos de instâncias -
que preenchem, cada uma delas, uma função particular e que têm uma
relação espacial firme umas com as outras; ou seja, a relação espacial
- o 'na frente' e o 'atrás ' , o ' superficial' e o 'profundo' - tem para
nós, inicialmente, apenas o sentido de uma representação (Darstellung)
da sucessão regular das funções." Freud pede, então, que se deixe de
lado a questão de saber de que é feito o aparelho psíquico, assim
como é indiferente saber, na ciência ótica, se " as paredes do telescópio
são feitas de metal ou de cartolina" : o essencial é o caráter " extenso"
do instrumento: mas esse aparelho psíquico é dito " desconhecido"
64 os fundamentos

(unbekannt), o que confirma que essa " espacialidade" só pode ser


" simulada" : ela é da ordem da " representação" , mas esta é necessária
para figurar " a sucessão ( ... ) das funções" .
A seu interlocutor, que se espanta candidamente com essa " estranha
anatomia" · desconhecida dos biólogos (Naturforschern), o metapsicó­
logo responde que isso não passa de " uma representação auxiliar
(Hilfevorstellung) como há tantas nas ciências" , por essência " open
to revision" (para dizê-lo na língua do pragmatismo !). Por que então
não chamá-la " ficção" ? A resposta de Freud é clara: " Considero
supérfluo referir-me aqui ao 'como se' ( 'Als ob' ) tornado popular. O
valor de uma tal ( ... ) ' Fiction' , como diria o filósofo Vaihinger,
depende do que (literalmente: 'do quanto ' ) se pode realizar (ausrich­
ten) com ela" .
Vê-se o que está em jogo nessa recusa onomástica: no fundo, Freud
não teria maiores razões para recusar à sua Hilfevorstellung - aliás,
também utilizada por Vaihinger - este sinônimo aproximativo,
" ficção" , se isso não constituísse a seus olhos a tentação de " preguiça"
de um uso " popular" , de vulgarização suspeita. Conhece-se o perigo,
para Freud, de " ceder quanto às palavras" , o que incita a " ceder
quanto às coisas" . 1 7 Ora, há neste "Als ob" uma forma de favorecer
a irreal idade do conceito, " passagem ao limite" da " convenção"
passível de revisão à " ficção" sem vida: a metáfora espacial significava
essa necessidade de apoiar a representação, por mais provisória que
fosse, num substrato que o " como se" faz desaparecer. A recusa da
ficção de Vaihinger - e, por isso mesmo, do " ficcionalismo" doutrinai
que a autoriza - como " supérflua" permite então lembrar que a
representação suplementar tira seu " valor" (Wert) da soma dos
elementos e relações que ela permite pensar - de modo que sua
" objetividade" é ao mesmo tempo relativa e, de certa forma, " pesá­
vel" . Além disso, ela é feita para " funcionar" e se demonstra, pois,
pragmaticamente, pelo que pode " produzir" ou ordenar (com esta
nuança de " precisão" que contém o verbo empregado, ausrichten).
É fundamental destacar nesse contexto a vontade da terminologia
metapsicológica de permanecer próxima à maneira de pensar popular
(populiire Denkweise ) : 1 8 não por facilidade - já que também a
tecnicidade dos conceitos nunca é nivelada, com o risco de prejudicar
a compreensão da complexidade -, mas porque, fazendo uso de
termos como " isso" (Es) - o exemplo sendo ainda, aqui, a própria
coisa! -, o saber dos processos inconscientes manifesta sua preocu­
pação e m " permanecer em contato com a maneira de falar popular"
65

em que a " coisa" inconsciente já é dita, de certa forma. Desprezam-se,


pois, essas " palavras gregas sonoras" que exprimem a versão nominal
d(y ficcionalismo. A metapsicologia. apesar de seu "jargão" , marca,
portanto, devemos observar, um �freio" ao " furor neologista" , que
é um dos traços da modernidade científica e atinge seu ápice no século
XIX
Uma confirmação do realismo pragmático com que Freud concebe
o " objeto metapsicológico" , que é o aparelho psíquico, é que ele pode
pretender reconhecê-lo em tal " pequeno utensílio (Geriit) aparecido
no comércio" sob o nome de "bloco mágico" ( Wunderblock): 1 9 por
menos que o examine mais de perto. o metapsicólogo percebe, com
efeito, " na sua construção (Konstnlldio,n):, uma concordância notável"
com a " construção suposta (svpponierten Bau)" - por ele. Conhe­
cem-se os recursos que ele vai tirar da analogia para dar a razão desses
dois sistemas de " conservação'" (ics.) e de " reprodução" (pcs/cs).
Mas, precisamente, essa " metáfora" supõe que há, desde o fictum
meta-psicológico, um " realismo funcionar" que toma, em seguida,
pertinente a analogia com o aparelho real.
Nesse sentido, Freud nesse texto nada mais faz que comparar o
aparelho psíquico com esse outro aparelho que é o " bloco mágico" ;
ele encontra neste último uma espécie de " re spondente" in re do
primeiro. O que é " notável" é justamente o fato de esse pequeno
aparelho funcionar efetivamente como aquilo que ele portava em seu
" imaginário" há mais de um quarto de século r A " representação" da
" função do nosso aparelho psíquíco" parece. portanto, encarnar-se
numa espécie de visu: e squema sensível,.. vindo. nesse sentido, no
"

momento oportuno para atualizar" , Jogo, confirmar, a " viabilidade"


,.

de seu homólogo metapsicológico - e isso, vamos observar, no


momento em que Freud se afasta do " ficcionalismo" . Em favor de
seu homólogo real, o aparelho psíquico reveJa-se. afinal, uma ficção . . .
" mais verdadeira que a natureza" e até mesmo de uma sofisticação
superior.
Se essa primeira alu são à filosofia do " como se" contém uma
reserva (aliás, prenhe de significados). a segunda. que surge dois anos
depois em " O futuro de uma ilusão" ( 1 927), parece francamente
crítica.
Ela é mencionada c omo uma das tentativas: que " dão a impressão
de um esforço brutal para escapar ao problema" 20 espinhoso e
determinante da fundação da "credibilidade das proposições doutrinais
(Lehrsiitz-e) religiosas'" .21 O contexto, pois. é ético-religioso,, mas dessa
maneira se mostra o avesso da operação epistemológica propriamente
66 os fundamentos

dita. A crítica deve interessar-nos na medida em que Freud _ç_Qn_dena


um certo regime da noção de " ficção" .
A " Filosofia do 'Ais ob' " sustenta que " existe em nossa atividade
de pensamento (Denktiitigkeit) um número de hipóteses (Annahmen)
cuja ausência de fundamento (Grundlosigkeit) e mesmo o absurdo nos
é perceptível. Elas devem ser designadas como ficções, mas, por
motivos práticos diversos, deveríamos comportar-nos 'como se' acre­
ditássemos nessas ficções." 22 Desse raciocínio, que contém uma
passagem oorigatória do " conhecimento" à " ação" , Freud formula a
conseqüência - para seus fins no momento - justamente inaceitável:
" Isso concerne às doutrinas religiosas devido à sua incomparável
importância para a conservação da sociedade humana." Ele pretende
não ver nessa " argumentação" mais que uma variante do Credo quia
adsurdum evocado e recusado imediatamente antes: Vaihinger não
teria feito mais que " modernizar" e ornar com uma aparência de
racionalidade o velho argumento teológico.
Consciente de resumir sumariamente uma argumentação prolixa,
de uma obra de formato considerável, mas principalmente de se expor
a uma crítica filosófica, Freud cita uma frase da obra visada em que
Vaihinger, que aliás estava interessado nas controvérsias teológicas
sobre a eucaristia, admite essa distinção entre uma " verdade prática"
e uma " ficção teórica" .
A essa " exigência" (Forderung) " que só um filósofo pode formu­
lar" - reconhece-se aí a ironia de Freud contra os filósofos em quem
parece postular uma tendência " ficcionalista" , já que ele a observa,
além de seu teórico Vaihinger, em " outros pensadores" 23 -, Freud
opõe um realismo apoiado no mais robusto bom senso: " O homem
que não é influenciado em seu pensamento pelas artes da filosofia
não poderá jamais admiti-lo; para ele, tudo está regrado com o
reconhecimento do absurdo, da anti-racionalidade (Vernunftwidrigkeit).
Ele não pode ser levado a renunciar, precisamente, no tratamento de
seus mais importantes interesses, às certezas (Sicherheiten) às quais
aspira por suas atividades habituais." À " intercessão (Fürsprache)"
do como se " em favor da religião, o metapsicólogo opõe o apego
indefectível da criança à hi stória verdadeira" e desvaloriza esponta­
neamente a " ficção" . " 1st das eine wahre Geschichte ?" (" Isso é uma
história verdadeira?" ): aí está, igualmente, a questão prioritária para
a psicanálise.
Compreende-se que esse " transbordamento" da questão da " ficção"
no plano religioso revela o fundo do problema: o da " crença" . Não
a ficção 67

se encontrará na metapsicologia tendência a agravar de alguma forma


um " convencionalismo" - metodologicamente necessário - por um
" ficcionalismo" contra o qual se deve, em conseqüência, reafirmar
uma exigência de " realismo" . Tal é a " ficção metapsicológica" : uma
" convenção" lastreada de realidade (aí está seu " conteúdo" ) e não
renunciando j amais a " re-presentar" - no sentido próprio - aquilo
de que ela é a Darstellung. O fundador da metapsicologia j amais irá
jogar, por sua p arte, com a idéia de uma teoria como logro ou como
ficção: parece significar que a distância da realidade é, de fato, muito
importante para não " enriquecê-la" com um " hino" à Ficção ....
É claro que Freud, preocupado antes de mais nada em recusar as
facilidades do " ficcionalismo" vaihingeriano, não implica o contexto
dessa operação epistemológica. Através da filosofia do " como se" ,
era uma certa figura do rieokantismo que ele encontrava. Vaihinger
radicalizava de certa maneira, deslocando-a para outro terreno, a tese
kantiana da função reguladora da Idéia (transcendental) --em oposição
a um uso " constitutivo" : quer dizer que, se as Idéi as, produções da
Razão ( Vernunft), não são capazes de fundar um conhecimento - já
que lhes falta um enraizamento na experiência, bem como uma
capacidade de " ligação" dos fenômenos, reservada ao " entendimento"
( Verstand) -, é legítimo fazer delas um uso regulador como " fina­
lidade" do próprio processo de conhecimento. Logo, se não conhe­
cemos " mais" por meio das Idéias da Razão, estas são requeridas
para pensar a finalidade do Conhecimento enquanto tal. É de outra
coisa que se trata em Vaihinger: todo conceito é assimilado a uma
" ficção" , e a idéia de " finalidade" da Razão se vê " traduzida" no
registro da " utilidade" - daí uma espécie de união entre um
" neocriticismo" (gnoseológico) e um " pragmatismo" (epistemológi­
co) - este último elemento valendo-lhe o sucesso no contexto
" convencionalista" da física do começo do século XX. Não é por
acaso que aqui intervém a referência a Nietzsche, como fornecendo
o critério do " valor" vital que reduz, sob sua forma rebaixada
(ficcionalista), o pensamento a uma " ilusão útil" . Compreende-se
como isso poderia abrir caminho a uma espécie de neofideísmo,
devendo a " ficção" , baseada no " relativismo" , impor-se como o
último aspecto da verdade - o que resume, em suma, todo o título
completo da obra: " A filosofia do sistema do 'como se' : ficções
teóricas, práticas e religiosas da humanidade fundadas num positivismo
idealista" (Die Philosophie des Als-Ob-System der theoretischen,
praktischen und religiosen Fiktionen des Menschheit auf Grund e ines
idealistischen Positivismus).
68 os fundamentos

Isso caracteriza bem tudo o que Freud não quer - e sua crítica
de uma síntese aliás bastante pesada, por " expeditiva" que seja, visa
pontos precisos do projeto " ficcionalista" . É um " sistema" - tudo
se toma ficção, a Ficção é o nome do " Todo" paradoxalmente fundado
num relativismo subjetivista; é uma forma de " idealismo" , parado­
xalmente ligado a um " positivismo" que adia, sine die, a questão da
verdade; é, enfim, uma -teoria do conhecimento que autoriza uma
espécie de hiperpragmatísmo de tonalidade fideísta.
É nos antípÓdas do " ficcionalismo" assim concebido que se deverá
procurar a concepção metapsicológica da " ficção" : mas isso é também
um meio de compreender melhor o esforço próprio, entre Caribdes
empirista e Cila racionalista.
Vaihinger opunha à " hipótese" , " criadora do saber" , que pretendia
indicar " as reais coerências e causas" , pretendendo assim sua " com­
preensão" e a " explicação da realidade" , a " ficção" , pressuposição
arbitrária, produzida com a consciência do caráter subjetivo de " modo
de representação" . A hipótese (Annahme), constructo provisório ávido
de se verificar por uma objetividade: aí está precisamente o estatuto
da hipótese metapsicológica - demarcando-se, assim, esse caráter de
complacência subjetiva comportada pela ficção (no sentído ficciona­
lista); compreende-se melhor assim o peso de realidade e, de certa
maneira, de gravidade que convém dar ao termo metapsychologiscfie
Annahme.

4. O fantasiar metapsicológico

Entretanto, é no mesmo momento que Freud, numa passagem célebre,


parece reconhecer solenemente, de certa forma, a necessidade do
" ficcionamento" . Em " Análise terminável e interminável" , ele evoca
esse momento em que o próprio " material" se esgota. Momento
faustiano em que " é preciso pedir auxílio à feiticeira: a feiticeira
metapsicologia. Sem uma especulação e uma teorização, quase digo
sem um fantasiar (Phantasieren) metapsicológico, não se avança um
passo aqui." 24
Logo, não será ele capaz, em contraste com o " realismo" sublinhado
adma, de abrir de certa forma os painéis da ficção, a ponto de
apresentar a Phantasieren - termo-limite, mas provocador - como
um imperativo? Nesse sentido, ele não estaria indo além do " ficcio­
nalismo" mais audacioso? E, de fato, parece aqui estarmos numa outra
a ficção 69

atmosfera que não a do " convencionalismo" prudente expresso no


texto-programa de 1 9 1 5 analisado acima.
Não é assim que, confrontado com a " pulsão de morte" , esse
cúmulo do real clínico, Freud é levado a reivindicar o direito de
" abandonar-se a um encaminhamento de idéias, persegui-lo por mais
longe que ele leve" , e logo " combinar em conjunto, em diversas
vezes, o que pertence aos fatos e o que pertence à pura especulação" ?25
A frase inaugural do " Esboço de psicanálise" ressoa, de certa
forma, com esse " hipotetismo" , ao mesmo tempo " dedutivista" e
" pragmatista" : " A psicanálise faz · uma pressuposição fundamental
(Grundvoraussetzung), cuja discussão permanece reservada a um ·
pensamento filosófico, cuja justificativa (Rechtfertigung) reside em
seus resultados." 26 É preciso, pois, formular resolutamente (e sem
" estados d' alma" ficcionalistas) essa pressuposição, mas deixar seu
fundamento à curiosidade dos filósofos, dela recolhendo apenas -
" pragmaticamente" - os " resultados" . Ora, o conteúdo dessa " pres­
suposição" é que existe um " ponto" entre " o órgão corporal" e os
" atos de consciência" que, em " nossa vida psíquica" , é " desconhe­
cido" . Não há, pois, " relação direta entre as duas extremidades"
(Endpunkten) de nosso saber. A essa última versão metapsicológica
do lgnorabimus21 responde no entanto o imperativo de " localização" ,
que enuncia que " a vida psíquica é a função de um aparelho ao qual
atribuímos uma extensão espacial e uma composição em diversas
partes" (metáfora do " telescópio" e do " microscópio" , formulada
desde a Traumdeutung). É aí que Freud reafirma pela última vez que
" a edificação (Ausbau) conseqüente de tal representação ( Vorstellung)
é ( ... ) uma novidade científica (wissenschaftliche Neuheit)" . Mas o
que surpreende nesse " testamento metapsicológico" é a firmeza do
tom com que a metapsicologia desenvolve a estrutura desse " aparelho
psíquico" , colocado de saída em sua extremidade (o isso), em seguida
" engendrando" a doutrina pulsional, o desenvolvimento da função
sexual e as qualidades psíquicas e a " ciência dos sonhos" ; depois
unindo, para além da " prática psicanalítica" , a oposição entre o
" mundo exterior" e o " mundo interior" (Aussen-, lnnenwelt).
Uma nota tardia de Freud o reafirma: " A saúde ( ... ) não se deixa
descrever (beschreiben) de outra maneira que não metapsicológica,
em referência às, relações de força entre as instâncias do aparelho da
alma que reconhecemos (erkannt) ou, se quiserem, supomos (vermu­
tet), deduzimos (erschlossen)." 28 Essas " instâncias" que desempe-
70 os fundamentos

nham um papel determinante na explicação metapsicológica foram,


portanto, " reconhecidas" sob o modo " hipotético-dedutivo" , mas
também " induzidas" para dar conta, por suas " relações de força" ,
das " relações de força" conflituais que surgem na experiência clínica.

5. A "construção", a ficção e a história

Sob uma última forma, Freud vai sugerir uma pista para dar estatuto
à " atividade ficcionante" : é a introdução da teoria da " construção" .
Em " Construções em análise" ( 1 937), reconhecem-se, para além
da " interpretação" de um fragmento significante, o direito e a
necessidade para o analista de " adivinhar o que foi esquecido a partir
dos índícios (Anzeichen) deixados ou, expresso de modo mais exato,
de construir" .29 Ali onde é possível " adivinhar" (erraten), tem-se o
direito de reconhecer o trabalho do Phantasieren: a " construção" é,
pois, a forma de " fantasiar" necessária no processo analítico, e é
permissível considerar a Konstruktion como a forma adequada de
Fiktion. O analista " construtor" é apresentado igualmente como o
" pólo ativo" da relação.
Mas ainda aqui o virtual entusiasmo " ficcionalista" da ficção
interpretativa é prevenido, na medida em que esse " trabalho" é
subordinado à lógica de seu objeto. É assim que se deve entender a
famosa comparação arqueológica: se há " reconstrução" (Rekonstruk­
tion) é porque existe um objeto de origem que, tendo existido, a toma
possível. Lembrete de evidência que mostra que, se o objeto deve ser
de alguma forma " reinventado" - é realmente isso que faz da
arqueologia uma " arte" em seu gênero --:-. ele deve igualmente unir-se
" assintoticamente" ao objeto real de origem.
Ora, aqui o objeto é .. . o sujeito, ou seja, o " analisado" , que é o
único habilitado a legitimar as " ficções" interpretativas do intérprete.
Essa é a idéia de " processo" que ali ainda é determinante: com o
tempo, e " no decorrer dos eventos, tudo ficará claro" ! 30
Não é de surpreender, portanto, que se veja surgir, ao fim desse
escrito (simbolicamente inacabado), a referência a um " pedaço de
verdade histórica" 3 1 • A " sanção" da construção é o próprio evento
do retomo do passado reconstruído na cena do presente - o que se
produz ocasionalmente quando um surto de lembranças percebidas de
modo quase alucinatório (" ecmnésico" ) volta aos próprios olhos do
a ficção 71

suJeito como que para vir " confirmar" e m ato a veracidade da


construção. É daí que a " construção" colhe seu " poder de convicção" .
Se o próprio delírio tem um núcleo de verdade histórica, a construção
interpretativa conjura sua tentação " delirante" pela " resposta" do
sujeito.
Desse sujeito, cuj a normalidade, dizia Freud noutra parte, não passa
de uma " ficção de ideal" (ldealfiktion)32 - e que se atinge, como
veremos, por essa ficção narrativa que é a Dichtung clínica33 - antes
de se impor como " pressuposto necessário" , de certa forma " ficção
fundadora" da própria experiência analítica. Tudo se passa como se
Freud reencontrasse, in fine, a questão mesma que se colocava, na
origem da psicanálise, quanto à " cena originária" : " verdade" ou
" ficção investida de afeto" ( " die mit Affekt besetze Fiktion" )? A
hesitação primitiva, todavia, encontrou aqui seu estatuto de ambigüi­
dade, de certa forma estrutural, do saber metapsicológico: descoberta
de que o próprio sujeito do sintoma é estruturado como um "como
se " , que nada mais é que sua realidade psíquica . 34
..

6. O supereu metapsicológico

O que se esboça ao fim deste exame da " postura" metapsicológica


em face do objeto do saber é, no fundo, uma espécie de " pragmática"
fundada na convicção de uma (trans)objetividade a ser relevada. Esta
encontra sua última palavra na discreta e firme profissão de fé ética
da pesquisa das profundezas (Tiefenforschung ): diante das " coisas
últimas" , esses " grandes problemas da ciência e da vida" , não se
pode negar que "cada um está, nesses assuntos, sob o império de suas
preferências ( Vorlieben) íntimas, que são profundamente ancoradas
nele e por conta das quais toda sua especulação trabalha sem que ele
saiba" .3 5 Existe aí, inevitavelmente, um momento arbitrário da sub­
jetividade, uma vez esgotada a retirada dos fenômenos em sua
objetividade. Não se trata de reduzir essa " subjetividade" , nem de
exaltá-la por alguma " vertigem" ficcionalista: é preciso continuar a
" dizer" , e para esse fim é o " supereu metapsicológico" que está em
causa: só resta ao métapsicólogo ser afetado por uma benevolência
sem indulgência para com seus próprios " esforços de pensamento" .
Verdadeira " razão prática" , que a partir daí pode prosseguir rumo a
um " continente" em direção ao qual, aliás, já embarcou ...
72

NOTAS AO CAPÍTULO 111

1 . Sobre a explicação dessa noção, remetemos a nos sa obra L 'entendonent


freudien. Logos et Ananke, 1984.
2. A. Lalande, Vocabulaire technique et critújW! tk la philosophie, Alcan,
1 926, vol. I, p.348; coleção "Qu.adrige" , n. l 3 3/l34, l99 l .
3 . Ver , neste ponto, nossa contribuição "Fonctions freudiennes du Pere" , in
Le Pere, Denoel, 1989, p .25 5 l
- .

4. Vamos encontrar em Le roJionalis� applüpté, de Gaston Bache1ard, 1 949,


(PUF, " Quí.ldrige" n.82), urna representação elegante dessas diversas "posições"
. ou " ismos" .
5. GW II-III, p.5 15.
6. Op. cit., p.5 16.
7. Op. cit., p.542.
8. Cf. Algumas observações sobre o conceito de inconsciente em psicologia,
1 9 1 2, GW VIII, p .43 9.
9. GW VIII, p.397. Cf. nossa tradução e edição crítica desse artigo em L'lntérêt
de la psychanalyse, 1 9 1 3, Retz, 1980, p.63-4.
10. Esboço de psicanálise, 1938. GW XVII, p.83, cap. IV. (ESB vol. XXIII].
1 1 . Trata-se do prefácio à obra de Reik., Psychologie de la réligion, 1 919, GW
XII, p 3 26.
.

1 2. XXIIil Jição de Conferên,cias introdutórias sobre psicanálise, 1 9 1 7, GW XI,


p.370 [ESB vol. XVI].
1 3. GW X, 2 1 0.
14. Op. cit., p.2 1 1 .
15. Cf. nossa lntroduction à L 'épistémologie freudienne, 1 98 1 , 1 990, p.73-89.
1 6. GW XIV, p.22 1 .
1 7. É a propósito d e Eros que Freud faz essa observação e m " Psicologia de
grupo e análise do eu" , GW XIII, p.99.
1 8 . GW XIV, p.22.
19. " Nota sobre o bloco mágico" , 1925, GW XIV, p.5 [ESB vol. XX].
20. Cap. V, GW XIV, p.350.
2 1 . Op. cit., p.349.
22. Op. cit., p.35 1 .
23. Op. cit., ibid, nota 1 .
24. GW XVI, p.69.
25. GW XIII, p.64; "als man mehrmals nacheinander Tatsiichliches mil bloss
Erdachtem kombiniert".
26. GW XVII, p.67.
27. Foi o famoso discurso de Dubois-Reymond que lançou a palavra de ordem,
" agnóstico" , que marcou a ambiência científica da juventude de Freud. Ver, neste
ponto, nossa lntroduction à l'épistémologie freudienne, op. cit.
28. Análise terminável e interminável, 1 937, seção III, nota I, GW XVI, p .70.
[ESB vol. XXIII].
29. GW XVI, p.45.
30. Op. cit., p.52.
a ficção 73

31. Op. .cit., p.54.


32. Análise termiNíWt1 � inknnináve� GW XVI, p.80.
33. GW XIII, p.64.
34. Não é por acaso que Freud sublinha a realidade da cena originária, contra
Jung, ·e recusa o " Ficcionalismo" em Adler, verdadeiro Vaihinger da psiquê,
decifrando o inconsciente oomo ufingimenro" (KIUUtgriJJ) ou " artifício" (cf. a
teoria da "fiDÇão dirigente" ).
35. GW xm, p.64.
SEGUNDA PARTE

OS ELEMENTOS
Doutrina da representação:
da matéria metapsicológica

Esta segunda parte aborda o conteúdo propriamente dito do trabalho


metapsicológico em seu "núcleo ", ou seja, a "doutrina dos Elemen­
tos ": doutrina da "representação " (tempo I) em sua "dupla face ":
de "coisa " e de "palavra ". É a partir desse campo, o mais originário
da metapsicologia freudiana, que é possível situar aí a instância da
"Coisa " (propriamente sexual) (tempo II) e a instância da "Letra", por
onde se encontra indicada sua posição, tão indireta quanto específica,
S(>?re a problemática de leitura e da escrita (tempo III).
CAPÍTULO IV

REPRESENTAÇÃO DE COISA
E REPRESENTAÇÃO DE PALAVRA
Por uma metapsicologia da linguagem

A que título a psicanálise pode intervir numa reflexão global sobre


as " teorias mentais" e as " operações lingüísticas" ? Deve-se proble­
matizar de saída essa contribuição, tanto é verdade que a psicanálise,
essa teoria dos " processos psíquicos inconscientes" , 1 não poderia
enxertar-se tal e qual em uma problemática exógena ao seu próprio
" campo" . Trata-se, pois, de determinar cuidadosamente o ponto
preciso onde se legitima a contribuição da psicanálise e onde se esboça
a necessidade de implicá-la num debate cujos termos, de partida, ela
não define, mas cujas tramas ela reencontra por sua via própria.
Se a psicanálise não passasse de uma " psicologia" - mesmo que
" das profundezas" -, ela interessaria apenas um pouco, e indireta­
mente, à teoria lingüística e em nada, ou em muito pouco, à teoria
lógica! É verdade que desde então - e não se poderia ignorar o efeito
de releitura a posteriori que determina a condição atual da psicanálise
- não se cessou de implicar a psicanálise na revolução lingüística
- saussuriana - da qual ela é contemporânea. O " retorno a Freud" ,
como se sabe, ganha efeito, com Jacques Lacan, a partir de uma certa
conjugação epistemológica da teoria freudiana do inconsciente com
a teoria lingüística do significante. Resta-nos, entretanto - nem que
seja para " explicar" o silêncio soberano de Freud sobre sua própria
contemporaneidade lingüística -, voltar aos termos de origem do
problema: em que medida e em que a reflexão metapsicológica
encontrou a questão da " relação significante" ?
A metapsicologia, como se sabe, é a elaboração de uma certa
transobjetividade, a de processos que, por serem " psíquicos" , nem

77
78 os elementos

por isso se furtam à investigação do saber propriamente psicológico:


o " inconsciente" depende, nesse sentido, do metapsicológico.2 Temos
que fazer nosso luto - a não ser que desconheçamos a realidade da
posição freudiana - de uma Metapsicologia da Linguagem, ou mesmo
do Pensamento? Isso só faz relançar uma questão, mais modesta e
mais centrada - logo, mais promissora para a pesquisa: como a
" metapsicológica" - essa razão psicanalítica em gestação4 - reen­
contra a questão dos processos lógico-lingüísticos?
Ora, o sinal-testemunha dessa questão - que nos permite tomar
a cercá-la e capturá-la - é precisamente essa oposição semântica e
conceitual entre as " representações de coisa" e as " representações de
palavra" .
Devemos inicialmente fixar o quadro no qual essa oposição termi­
nológica foi posta em circulação por Freud. Para além da necessária
recordação cronológica, esse mapeamento revela um notável trabalho
de retomada de um mesmo tema em contextos variados, onde ele
reaparece como se fosse, a cada vez, " reinventado" . Tudo se passa
como se, através dessa distinção principal, Freud não cessasse de
reimplicar e reexplicar-se, de alguma forma, um modo de conceitua­
lização pertencente ao bloco primitivo da metapsicologia e que
atravessa, como um " fio condutor" , toda a elaboração ulterior.
É preciso sublinhar que a oposição entre Wortvorstellung (WV) e
Objektvorstellung (OV) ou Sachvorstellung (SV) pertence, propriamente
falando, a um período pré-analítico. Ela é, com efeito, anterior ao uso
do próprio termo " metapsicologia" , designando a identidade epistê­
mica da psicanálise: enquanto este último faz sua aparição em 1 895,5
Freud introduz seu par de representações desde 1 89 1 , em seu estudo
Contribuição à concepção das afasias (Zur Auffassung der Aphasien).
Apreende-se aí in statu nascendi, de tal modo que suas fontes ainda
se mostram ao vivo (ver abaixo): estas serão depois encobertas, quando
se reintroduzir a oposição, de maneira recorrente, como utensílio da
metapsicologia propriamente dita.
Escrito pré-psicanalítico da maior importância, o ensaio sobre as
afasias prepara, aliás, o terreno para o Projeto de uma psicologia
científica ( 1 895),6 texto prato-fundador da razão metapsicológica.
Pode-se, pois, pensar que essa oposição central . na concepção das
afasias constitui uma das " pontes" conceituais principais entre os dois
momentos e, como legado de um modo de pensar originário, um
instrumento privilegiado da arqueologia do pensamento freudiano.
Através da patologia afásica, foi realmente, de saída, a questão da
a representação 79

função da linguagem e do pensamento que o criador da psicanálise


encontrou.
É ainda mais revelador o fato de ser preciso es_ne.r2-..r_p_or 1 9 1 5 -
data da grande síntese da Metapsicologia da maturidade - para ver
reemergir essa referência - nesse ínterim, implicada e em seguida
reimplicada na Traumdeutung - sobre a qual se pode legitimamente
perguntar se conservou seu conteúdo conceitual de origem. A partir
daí ela permanece implicada na reflexão freudiana sobre o aparelho
psíquico - notadamente no ensaio O eu e o isso ( 1 923), onde se
elabora a " segunda tópica" . Por um efeito estranho, Freud parece,
como metapsicólogo, citar a si mesmo de certa forma clandestina­
mente, ao introduzir, como se fosse nova, uma distinção edificada
anteriormente num outro contexto. Existe aí um verdadeiro efeito de
" intratextualidade" , que nos vai obrigar a tratar tanto dafunção discur­
siva dessa oposição conceitual quanto de seu conteúdo conceitual.
Essas considerações ditam, de certa forma, nosso procedimento,
destinado a fazer justiça ao terreno de origem desse debate da
psicanálise com a questão da linguagem, na virada do século passado
e no começo deste, no momento em que se fixam as questões do
debate lógico-lingüístico.
Convém demarcar o valor de uso dessa oposição - designável
como oposição entre wv e sv - como operadora da teoria do
inconsciente - vendo-a destacar-se de uma reflexão de certa forma
técnica da neuropatologia.
Em seguida, vai-se tratar de mostrar como ela é posta a atuar como
operador metapsicológico através dos " objetos" que são as " formações
inconscientes" , do sonho ao sintoma - destacando-se o espaço de
uma clínica do pensamento e da linguagem.
Isso permitirá, enfim, destacar a contribuição propriamente freu­
di ana, tão indireta quanto precisa e original , à questão do sujeito da
linguagem e do pensamento.

I. DA PATOLOGIA DA LINGUAGEM
À LÓGICA DA REPRESENTAÇ ÃO

1. Afasia e patologia verbal


Devemos, pois, perscrutar o escrito sobre as afasias7 para ali ver surgir
a clivagem das representações segundo a ordem da " palavra" e a
ordem da " coisa" , ou do " objeto" .
80 os elementos

b contexto geral é uma tomada de posição situada ao máximo no


debate entre as teorias da localização das afasias - esses distúrbios
da linguagem e da memória -, em particular quanto à problemática
das lesões centrais e das redes de " condução" , e as teorias " funcionais"
que relativizam o papel do " órgão" em proveito do distúrbio propria­
mente funcional. O próprio Freud relativiza a idéia de um distúrbio
central, acentuando, na sua explicação do processo patológico, as
" conduções" ; por outro lado, ele adere à concepção j acksoniana da
dissolução ou des-involução funcional: o que se perde do arranjo
associativo corresponde a um certo grau da evolução atingido pelo
desenvolvimento da função (assim, o que se perde, inicialmente, de
capacidade lingüística ou memorizadora corresponde àquilo que foi
adquirido mais recentemente).
É na última parte que aparece nossa distinção. É depois de ter
· discutido - nos planos anatômico e tópico - a " estrutura do aparelho
de linguagem.. que Freud vai inquirir " o que nos ensina o estudo dos
distúrbios da linguagem quanto à função desse aparelho" 8 - o que
supõe um " exame das hipóteses a que recorremos para explicar os
distúrbios da linguagem" . Aí está o retomo das considerações da
" psicologia" no discurso neuropatológico, de que Freud faz, de alguma
forma, uma leitura " em segundo grau" , designando o seu " ponto
c�go" . Eis o momento inaugural do que será mais tarde da ordem
·

metapsicológica.
Ora, a " palavra" , " unidade de base da função de linguagem" , é
" uma representação complexa, composta de elementos acústicos,
visuais e cinestésicos" .9 Distinguem-se portanto, no seio dessa reali­
dade supostamente simples, um conglomerado de quatro elementos:
(a) a imagem sonora (verbal); (b) a imagem visual da letra; (c) a
imagem motora da linguagem e (d) a imagem motora da escrita.
Assim, " à palavra corresponde um processo associativo complicado,
em que os elementos enumerados de origem visual, acústica e
cinestésica entram em ligação uns com os outros" .10 Vemos esboçar-se,
f! O quadro associacionista, uma verdadeira " iconografia" da letra.
Ora: " A palavra (assim definida) requer ( ... ) sua significação por
sua ligação com a 'representação de objeto"' - ela mesma um
" complexo associativo constituído de representações as mais hetero­
gêneas, visuais, acústicas, táteis, cinestésicas e outras" . A união da
" palavra" com a " coisa" (ou, mais exatamente, com o objeto,
Objektvorstellung) remete, em Freud, ao encontro de duas " nebulosas"
complexuais 1 1 - donde uma notável consonância com a concepção
a representação 81

exposta por S aussure, por volta da mesma época, em seu Curso de


lingüística geral. Sob a condição de deixar provisoriamente de lado
as definições princeps do signo lingüístico, do significante e do
significado, vai-se observar a metáfora que parece atestar um para­
digma parcialmente comum entre Freud e Saussure.

2. O associacionismo lógico

. As " representações" (palavra/coisa) são, portanto, algo inteiramente


diverso das " essências psíquicas" ; são conglomerados tão complexos
que apontam para um " x" , como se se pudesse encontrar sempre
novas determinações para essas nebulosas significantes e significadas.
Resta determinar como se opera a ligação entre as duas " galáxias" .
É nesse ponto que se produz na teoria freudiana uma " derivação"
em direção a uma economia filosófica dos conceitos (e explicitamente
tirada da " filosofia" ). É J. S. Mill, o autor da Lógica e do Exame da
filosofia de sir William Hamilton - autor, como se sabe, traduzido
por Freud desde 1 88012 - quem dá a contribuição. O que ele lhe
toma de empréstimo é a idéia de que a " representação de objeto"
acrescenta, sem cessar, novas possibilidades, sendo constituída por
um " afluxo de impressões sensoriais" novas da " mesma cadeia
associativa" . Daí a oposição entre dois " conjuntos" : " A representação
de objeto aparece-nos, assim, não como uma representação fechada,
apenas capaz de sê-lo, ao passo que a representação de palavra nos
aparece como algo de fechado, mesmo que pareça capaz de exten­
são" .13 Há que se pensar, pois, no seio da relação lógico-lingüística,
no encontro e " casamento" da finitude da palavra (complexo repre­
sentativo fechado ou limitado) com a infinitude do objeto (complexo
representativo aberto ou ilimitado).
Ora, o ponto de interseção desses dois " conglomerados" é fornecido
pela parte acústica da WV: " A representação de palavra não está ligada
à representação de objeto por todas as suas partes constituintes, mas
apenas pela imagem sonora." Aí está a " extremidade sensível" -
sendo a palavra essencialmente escutada - que faz as vezes, de certa
forma, de " esquema" (para parafrasear o termo kantiano) : a " imagem
sonora" " tampona" , por assim dizer, significante (verbal) e significado
(objetai).
Assim s e situa a oposição entre " representações de palavras" ,
essencialmente acústicas, e " represyntações de objetos" , essencial-
82 os elementos

mente visuais: " Dentre as associações de objetos, são as visuais que


representam o objeto da mesma forma que a imagem sonora representa
a palavra." 14 Vamos observar que, nessa formulação originária, " acus­
ticidade" e " visualidade" são menos determinações das representações
enquanto tais do que magos de prevalência de seu funcionamento
associativo global e diversificado. Altamente " compostas" , uma e
outra, as galáxias wv e sv polarizam-se respectivamente sobre os
registros acústico - no que Freud encontra, uma segunda vez,
Saussure (ver abaixo) - e visual. Melhor: a moção psíquica wv é
" representada" na cadeia associativa por suas componentes acústicas,
a moção psíquica ov por suas componentes visuais. Mas esses
" representantes de representações" - termo que temos o direito de
utilizar antes que se fixe seu uso metapsicológico em Freud, o que
só vai ocorrer na Metapsicologia ( 1 9 1 5) - representam, como núcleos,
o conjunto das outras determinações (algumas das quais nem mesmo
atualmente estão recenseadas !).
Deve-se recordar, enfim, que toda essa construção - onde, pode-se
sentir, o futuro metapsicólogo se exercita - está destinada a produzir
uma tipologia das afasias: a originalidade de Freud é a de correlacionar
os diversos tipos de afasias às perturbações que afetam, respectiva­
mente, as wv e OV: assim, nas afasias puramente verbais, seria afetada
a economia interna das representações de palavra, enquanto nas
" afasias assimbólicas" a associação representações de palavra/objeto
seria perturbada - as " afasias agnósticas" devem ser consideradas
como distúrbios puramente funcionais, 1 5 sinal do " compromisso" de
Freud entre " funcionalismo" e uma espécie de " localizacionismo"
psíquico, ao qual ele permanecerá ligado em seu modo de pensar
tópico.

3. Lógica e patho-lógica: a função de nomeação

Devemos estar atentos à intervenção, no momento-chave de construção


freudiana da teoria da representação, de um modelo lógico determi­
nado, que sobredetermina de alguma forma a psicologia. Este é
importado da lógica de Mill. Freud, visivelmente, leu e meditou em
particular sobre o primeiro livro da Lógica de J. S. Mill e compreendeu
o partido que dela poderia tirar ocasionalmente.
A partir de sua definição da " lógica" , Mill introduziu, com efeito,
a referência à " Nomeação" . A lógica indutiva comporta como ato
a representação 83

primeiro a consideração dos " nomes" . Devemos sondar esse gesto,


pois ele contém em germe a teoria freudiana da " verbalização" . " A
lógica" , afirma Mill, " é a ciência das operações intelectuais que
servem à avaliação da prova, isto é ( ... ) do procedimento geral que
consiste em ir do conhecido ao desconhecido ( ... ). Ela encerra, por
conseguinte, a operação de Nomear; pois a linguagem é um instrumento
que nos serve tanto para pensar quanto para comunicar nossos
pensamentos." 1 6 O primeiro tempo de uma lógica da " inferência"
consiste, pois, num estudo dos " nomes" e " proposições" (livro I),
etapa obrigatória para o " raciocínio" (livro 11) e a " indução" (livro
111). Aí estão, no quadro de uma lógica da experiência, os fundamentos
de uma ôntica da linguagem: Freud toma emprestados os elementos
de um nominalismo - que fornece, via nomeação, a linhagem das,
Wortsvorstellungen - e de um realismo - que fornece, via objeto
da experiência, a linhagem das Objektvorstellungen.
O que constitui o objeto específico do interesse de Freud é o capítulo
sobre as " coisas designadas pelos nomes" Y Este trata " das Coisas
nomeadas ou nomeáveis, coisas que foram ou podem ser atributos de
outras coisas ou sujeitos de atributos" , 1 8 ou seja, os " sentimentos" ,
" substâncias" e " atributos" (qualidade, relação e quantidade). Mill
realiza assim uma releitura nominalista da doutrina aristotélica das
categorias e da sua " classificação abortada" . 1 9 Compreende-se por
que Freud conferiu atenção especial a esse momento da síntese de
Mill: trata-se, como diz o relatório similar da Filosofia de Hamilton,20
de " questões que fazem a transição da psicologia à lógica, da análise
e das leis das operações do espírito à teoria da constatação da verdade
objetiva" . 2 1 Em suma, " o elo natural que as une é a teoria das diversas
operações mentais que servem para constatar e legalizar a verdade" ,
concepção! julgamento e rªciocínio apóiam-se numa teoria da propo­
sição, ela própria sustentada numa doutrina da nomeação. Mill resume
assim sua posição, entre realismo e nominalismo: " Quando nós
referimos um objeto ou um sistema de objetos a uma classe, alguns
dos atributos encerrados no conceito estão presentes no espírito; sua
associação com o nome genérico remete-os à consciência, fixando-os
na atenção." 22 Tal é a justa apreciação da relação dos " conceitos"
com os " signos" . Isso permite, vamos observar, abordar a " objetivi­
dade" pela nomeação, pensando ao mesmo tempo no excesso de
objetividade que a nomeação deixa fora de si mesma, sendo ela própria
seletiva. É desse nominalismo experimental que Freud faz uso nessa
ocasião.
84 os elementos

li. A REPRESENTAÇÃO VERBO-COISAL,


OPERADOR METAPSICOLÓGICO

1. Metapsicologia e doutrina da representação

Freud instala-se, de certa forma, espontaneamente num quadro de


pensamento " representacional" . A Vorstellungslehre freudiana pro­
longa, nesse sentido, uma problemática cujos elementos foram situados
desde Reinhold, apoiando-se nas aquisições kantianas. Esse modelo,
forjado na virada dos séculos XVIII e XIX, encontrou sua utilização no
centro da constituição da " psicologia científica alemã" , da " mecânica
das representações" herbatiana ao projeto de " psicofisiologia" de
Wilhelm Wundt. Será suficiente, para situar aqui um contexto que
detalhamos noutra parte,23 recordar . que, formulando os fundamentos
de sua Metapsicologia, Freud parece parafrasear as Grundzüge de
Wundt. Ele expõe, com efeito, uma " pedra de toque" : a " pulsão"
(Trieb), impulso psíquico de origem somática que tende a se satisfazer
por meio de um objeto. Ela faz-se representar no psiquismo por dois
" representantes'.' , a representação propriamente dita e o afeto. A
representação é, pois, um dos dois modos de " representância" pul­
sional, o que leva a forjar o termo interessante " representante-repre­
sentação" .
Ora, a Vorstellung assim concebida distingue-se do afeto - o outro
" deputado" da pulsão - na medida em que esta realiza uma operação
econômica de " investimento" , sendo o afeto da ordem da descarga.
Freud associa assim a idéia de representação à de investimento, modo
de " criação" psíquica (enquanto que no afeto algo se perde, gastan­
do-se). Vamos então reencontrar, de alguma forma, a matéria verbal
e a matéria coisal como modos do investimento representacional.

2. Instituição do operador metapsicológico

Com a redação da Metapsicologia - que Freud concebia, vamos


lembrar, como seu testamento -, parece ter chegado a hora de fornecer
uma definição de nosso par de noções. Mas, na medida em que
passamos de um ponto de vista neuropatológico a um ponto de vista
propriamente metapsicológico, a " representação de objeto" é especi­
ficada como " representação de coisa" (Sachevorstellung) em face da
a representação 85

" representação de palavra" . O termo " Objekt" denotava o pólo


objetivo, correlato da idéia e da palavra; o termo Sache acentua a
" coisidade" do próprio processo representacional, conversão exigida,
como veremos, pela promoção do " inconsciente" ao estatuto de " coisa
interna" . É o pensamento do inconsciente que permite ultrapassar a
idéia ainda cerebralista de uma representação " reprodução do córtex" .
É na seção VII do �nsaio sobre " O inconsciente" que Freud fornece
a definição mais co'inpleta da sv: ela consiste " no investimento, senã'o
de imagens mnésicas de coisas diretas, pelo menos de t(a,çQS_ mné_sicos
mais distanciados e derivados delas" .24 Logo, estamos aqui no mais
próximo - o que não quer dizer, decerto, plenamente _:_ da apresen­
tação desse " X" nomeável " inconsciente" que Freud se comprazia
em identificar, a um interlocutor filósofo, a nada menos que " à coisa
em si" .25 A oposição wv/sv atravessa, pois, a oposição consciente/in­
consciente (Bw/Ubw), segundo uma torção designada pela fórmula
crucial: " A representação consciente compreende, portanto, a repre­
sentação de coisa mais a representação de palavra aferente, o incons­
ciente é a representação de coisa apenas." Tudo é dito, mas com a
espécie de clareza opaca comportada pelo enigma metapsicológico.
Essa definição abrangente apresenta o " sistema inconsciente" como
constituído de representações brutas, seqüela dos investimentos de
objetos originários, esconderijo dos " investimentos de objetos" ( Ob­
jektbesetzungen). O processo psicológico de tomar-consciente é, pois,
correlacionado à revivescência de concomitantes verbais da repre­
sentação-de-coisa. Freud não formula a equação brutal Inconsciente
= Coisa que nos remeteria aos metafísicos do Inconsciente,26 e que

ele recusa de uma vez por todas pela ruptura epistemológica que a
metapsicologia toma possível. Mas ele designa um ponto irredutível,
aquém da verbalização, lugar mesmo do inconsciente - · como
memória ou estoque de traços mnésicos.
O que o recalcamento neurótico realiza é a recusa da " tradução
em palavras que devem permanecer conectadas ao objeto" . Tal é o
neurótico, como " locutor inconsciente" : afastado de " suas palavras'' ,
na medida em que estas ficam " coladas" à sua " coisa" . Ausência de
distância que realiza o sintoma, a clínica neurótica mostra esse corte
entre palavra e coisa. Mas, precisamente, o destino das sv é aceder
à verbalização, logo, à " conscientização" : em conformidade com a
linha aberta desde a Traumdeutung, os " processos sem qualidade"
vêm a ser " providos de qualidades" . Tudo isso, deve-se lembrar,
desenrola-se no próprio interior de uma ordem da representação, que
86 os elementos

conjura toda tentativa de hipostasiar um Inconsciente a Imagem de


Coisa: mas uma certa instância dà Coisa como " ponto de fuga" da
dinâmica representacional se desenha em contraponto, o que nos
aproxima daquilo que poderia ser o cerne do enigma metapsicológico,
Janus com suas duas facés voltadas para a Palavra e a Coisa.

3. Psicose e razão lógica

Certamente, não é por acaso que Freud procede a essa explicitação


metapsicológica com referência à psicose esquizofrênica. O exemplo,
aqui, ainda é " a própria coisa" . 27 Tudo se passa como se se produzisse
no regime representacional esquizofrênico um " curto-circuito'' da
palavra e da coisa. Se o esquizofrênico mantém uma relação tão
" realista" com a palavra que ele toma ao pé da letra, a ponto de lhe
emprestar uma substância material - como se a palavra fosse uma
coisa, para dizer tudo -, é que a parte de representação de objeto
pertencente ao sistema pré-consciente sofreu um investimento " anor­
malmente" intenso, o que se traduz por um superinvestimento da
própria representação verbal. Paradoxo, sublinha Freud, já que essa
representação de palavra é que deveria " sofrer o primeiro choque do
recalque" 28 e ser, em conseqüência, desinvestida. O paradoxo se dissipa
se atentarmos para o fato de que esse superinvestimento da palavra
traduz " a primeira das tentativas de restabelecimento ou de cura" .
Depois da catástrofe de perda total primitiva, esboça-se uma tentativa
de retorno ao " objeto perdido" : é nesse caminho de volta que o sujeito
se choca com a " parte-palavra ( Wortanteil) deste" . É como se o resto
verbal do objeto " rejeitado" se oferecesse a essa tenta ti va de reparação.
É por isso que, no trabalho do delírio, o sujeito deve " contentar-se
com palavras em lugar de coisas" . Em outros termos, os esquizofrê­
nicos tratam " as coisas concretas como se fossem abstratas" .29
Isto nos lembra algo: o procedimento do pensamento filosófico
apóia-se num trabalho de realização da abstração que o colore de
uma aura esquizofrênica: " Quando pensamos abstratamente, corremos
o risco de negligenciar as relações das palavras com as representações
de coisas inconscientes, e não se pode negar que nosso filosofar
adquire então, em expressão e conteúdo, uma semelhança não desejada
com o modo de trabalho dos esquizofrênicos." Trata-se de uma espécie
de nominalismo invertido: o nome viria virtualmente no lugar da coisa.
No máximo, ele deixaria de representá-la para ocupar seu lugar. Perigo
a representação 87

que justifica sobretudo a desconfiança pessoal de Freud com relação


à razão filosófica30•
Vê-se que a esquizofrenia levanta uma lebre lógica de vulto:
" pensar" conteria, para o " pensador" , essa ameaça de substanciali­
zação de suas palavras. É verdade que, justamente, o filósofo não
cessa de se demarcar e despertar por suas palavras - em contraste
com a lógica do delírio. Ainda assim, Freud designa aqui o problema
da " língua cristalizada" - que se deveria considerar como um efeito
crônico da ideo-lógica. Armadilha crônica para um pensamento, ser
identificado a seu corpo verbal, cessar insensivelmente de pensar para
se fazer pensar por suas palavras !
No cerne mesmo da atividade onírica, revela-se uma tendência a
tratar as representações de palavra como representações de coisa:
Freud as designa nesse sentido, em seu Complemento metapsicológico
à interpretação dos sonhos ( 1 9 16), como Dingvorstellungen. As
palavras e falas do dia não são, de fato, neoformações: constituem a
retomada da fala do dia precedente (conforme o princípio geral da
elaboração dos " restos diurnos" ). Não seria isso uma forma de
" coisificação" esquizofrênica? De fato, precisa Freud, "é somente ali
onde as representações de palavras nos restos diurnos são restos de
percepções frescos e atuais, e não expressão de pensamentos, que elas
são tratadas como representações de coisa" .31
Diferença decisiva da esquizofrenia, pois aí " são as próprias
palavras, nas quais se exprimia o pensamento pré-consciente, que se
tornam objeto da elaboração pelo processo primário" . O sonhador
contenta-se, pois, em tratar pelo processo primário (livre circulação
de energia) as representações de coisas às quais as palavras foram
referidas. O comércio entre " investimentos de palavras" (pré-cons­
cientes) e " investimentos de coisas" (inconscientes) permanece livre
o bastante para que o sonhador esteja a cada instante prestes a (e
capaz de) trocar as palavras entre elas - ali onde o comércio, na
esquizofrenia, é ·� barrado" : aí as palavras se tornam coisas e a relação
palavras/coisas estanca.
Do esquizofrênico ao sonhador, passando pelo . . . filósofo, vê-se,
pois, desenhar-se uma dinâmica representacional que liga estreitamente
lógica e clínica, destinos do pensamento e destinos do sintoma -
sobre o qual mostramos, noutra parte, que ele torna possível uma
metapsicologia do " distúrbio do pensar" 3 2 Talvez seja em Antonin
.

Artaud que se encontra a expressão mais lúcida dessa falha tão


reveladora e desse impedimento de pensar no próprio cerne da psicose:
88 os elementos

" E eis ( . . . ) todo o problema: ter em si a realidade insecável e a clareza


material de um sentimento, tê-la a ponto de não ser possível deixar
de exprimi-la, ter uma riqueza de palavras, de volteios apreendidos e
que poderiam entrar na dança, servir ao jogo; e, no momento em que
a alma se apresta a organizar sua riqueza, suas descobertas, essa
revelação, nesse minuto inconsciente em que a coisa está a ponto de
emanar, uma vontade superior e maléfica ataca a alma como um
vitríolo, ataca a massa palavra-e-imagem, ataca a massa do sentimento,
e me deixa, a mim, ofegante como nos próprios portais da vida." 33

III. METAPSICOLOGIA DO SUJEITO FALANTE:


PSICANÁLISE E LINGÜÍSTICA

1. Da psicologia da lingut�gem à lógica do inconsciente

Pode-se agora compreender que o aprofundamento da relação wv/sv


tem como móbil considerável a questão da relação consciente/(pré­
consciente)/inconsciente e a do tomar-consciente, cuja importância
prática conhecemos.
Isso origina-se do último esclarecimento notável que a introdução
da " segunda tópica" proporciona. É em O eu e o isso ( 1 923) que
esse trajeto de uns 30. anos de uso do par nacional encontra sua
pontuação. Com efeito, é a introdução do ponto de vista do " eu"
como instância de recalque - eclipsado durante muito tempo pelo
do " recalcado" - que obriga a redescobrir a questão do tornar-cons­
ciente. Nosso par deveria, pois, ressurgir, na medida em que é na
diferenciação consciente/inconsciente que o aspecto intra-repre­
sentacional (verbaVcoisal) vem à expressão.
A recordação da hipótese de 1 9 15 dá lugar a uma ligeira modulação:
" A verdadeira diferença entre uma representação ics e uma repre­
sentação pcs (pensamento) consiste no fato de que a primeira se realiza
sobre um material qualquer que permanece desconhecido, enquanto
à segunda (a representação �s) vem acrescentar-se a conexão ( Ver­
bindung) com as representações de palavras." 34 Nessa formulação, a
oposição incide sobre a representação inconsciente como Vorstellung
pura e simples, de alguma forma, na medida em que o objeto é um
" X" não reconhecido (unerkannt) e o material-referência é uma espécie
a representação 89

de ule, matéria desqualificada e anônima. O ser da representação de


palavra é relaciona!, na medida em que ela nasce de uma conexão ou
ligação com a outra, a representação bruta, ou propriamente dita. Idéia
a ser posta em " consonância" com a natureza relaciona! do signo
lingüístico e, para além dele, com o ser relaciona) do próprio " signi­
ficante" ...
O (re)tornar-consciente só é possível porque as representações-de­
palavras devem conceber-se como " restos mnésicos" (Erinerrungs­
reste), que " outrora foram percepções e podem, como todos os restos
mnésicos, voltar a se tornar conscientes" . Confirma-se, portanto, que
" os restos verbais provêm essencialmente de percepções auditivas"
e que " a palavra é mesmo, falando propriamente, o resto mnésico da
palavra escutada" - a menos que se recorde a existência dos " restos
mnésicos óticos" , de ordem visual, relativamente negligenciáveis no
plano da lingua>•cm.
Que se comparem, para esclarecer tudo isso, a lembrança e a
alucinação: na primeira, o investimento é mantido no sistema mnésico,
ao pas:-X 1 que, na segunda, o investimento passa completamente do
traço mnésico ao elemento pré-consciente. Não é de surpreender que,
quando a lembrança retoma com intensidade até seu bordo perceptivo,
assume uma intensidade quase alucinatória. A alucinação seria, então,
no caso, a lembrança revivida, assumindo um valor de atualidade
histórico . . e delirante, na medida em que a " verdade histórica" do
.

passado invade o presente.35

2. Significância lingüística e significância inconsciente

Podemos agora recapturar o lugar preciso de cruzamento e de


divergência dos modelos freudiano e saussuriano da significação e da
representação.
1 . Para Saussure, " o signo lingüístico une ( . . . ) um conceito e uma
imagem acústica" . Jcfinida como " impressão psíquica" do som ou
" representação q u e ' dela· nos é dada pelo testemunho de nossos
sentidos" - o que faz do signo lingüístico . " uma entidade psíquica
de duas faces" 3 6. Estamos aí, realmente, como em Freud, numa
concepção da representação, e a determinação acústica é, num e noutro,
privilegiada. A diferença mais patente é que, precisamente, Saussure
engloba esses dois tipos de representações sob o termo " signo
lingüístico" , enquanto Freud os deixa, de certa forma, em liberdade
90 os elementos

e mantém a autonomia dos " registros" ; assim fazendo, ele reserva de


facto a qualidade " lingüística" ou semiótica a uma das duas classes
de representações, as Wortvorstellungen. Diferença ao mesmo tempo
pontual e determinante: Freud, a partir daí, só pode conceber a questão
do signo como a metade do problema global da " representação" . Para
Saussure, em compensação, a " coisa" - que em Freud tem seu
registro representativo próprio - é, como correlato do " conceito" , a
metade do " signo lingüístico" . É por isso que S aussure se decide a
rebatizar " conceito" e '' imagem acústica" como " significado" e
" significante" - ato de batismo da lingüística, de certa forma -,
enquanto Freud não sente em absoluto a necessidade de reabsorver a
coisa em " significado" , nem a palavra em significante (no interior
do registro da representação).
2. Compreende-se também por que o princípio do arbitrário do
signo é afirmado com tanta insistência por Saussure;37 é que ele
permite, paradoxalmente, fundar a noção de " signo lingüístico" : é
pelo arbitrár:o, verdadeira força de atração, que " significante" e
" significado" se encontram mantidos na mesma unidade convencional.
Em Freud, é evidente que nenhum laço de semelhança liga os dois
registros representacionais; mas isso só faz destacar mais ainda a
necessidade de formular uma ordem representativa " coisa!" que se
oponha à ordem representativa " verbal" (no sentido " convencional" ,
o que corresponde a uma concepção, em suma, pré-saussuriana).
3. A idéia de um " valor lingüístico" igualmente é afirmada por
Saussure como correlato (relaciona!) da autonomia do signo: o
" sistema lingüístico" aparece aí como " uma série de diferenças de
sons combinadas com uma série de diferenças de idéias" 38 - segundo
os eixos sintagmático e " associativo" . Em Freud, é segundo a ordem
da representação que se faz essa lógica associativa. É segundo a ordem
das representações - horizontalmente - que se opera em Freud o
funcionamento psíquico, ao passo que em Saussure ele se opera
lateralmente, de signo a signo, isto é, por " blocos" palavras/conceitos.
4. Enfim, no plano das relações linguagem/pensamento: Saussure
concebe o pensamento como devendo precisar-se como " pensamen­
to-som" - à maneira como a superfície da água deve decompor-se
em ondas sob o efeito da pressão ·atmosférica. Em Freud, a ordem do
pensamento, essencialmente representativa, especifica-se pelos dois
" atributos" : da " coisa" e da " palavra" . Mais que um pensamento
indeterminado sendo especificado pela articulação da linguagem,
a representação 91

estamos lidando com um pensamento atuante nas coisas, por um lado,


nas palavras, por outro, e definindo-se por esse vaivém.
5. Igualmente, ali onde Saussure experimenta a necessidade de
distinguir a língua da fala, 39 Freud concebe a linguagem, a das palavras
(o termo Sprache guarda em Freud seu sentido funcional de " lingua­
gem" ), corno atuante na fala e na língua. O ponto de vista neuropa­
tológico por si mesmo impõe essa relação ao plano do proferirnento,
em contraste com um ponto de vista " estrutural" que repousa sobre
o primado da língua. Antes, é por um ponto de vista tópico das
modalidades de inscrição do aparelho psíquico - com suas emergên­
cias representativas, ficando a " coisa" mais próxima do " traço
rnnésico" do que a " palavra" - que Freud reencontra preocupações
estruturais.
Esse simples traçado comparativo explica a dupla impressão de
urna proximidade constante dos " códigos" teóricos de Freud e de
Saussure, relativos ao pensamento e à língua, e de uma divergência
de seus " interesses" e de seus rnóbeis - que funda, de certa forma,
sua soberba ignorância recíproca, assim como o direito de interrogar
a poste riori seu " diálogo" secreto sobre a questão.
Pode-se, assim, ter o sentimento - tão ilusório quanto fundado -
de que Freud se apro�irna da idéia de materialidade do significante
quando se enfatiza a forma de expressão. É então que a distinção é
espontaneamente mobilizada. Assim, no escrito sobre Os chistes e sua
relação com o inconsciente ( 1 905) - que se mantém no horizonte
metapsicológico da Traumdeutung -, encontra-se uma observação
reveladora: " Num certo grupo desses chistes (Witze) (os jogos de
palavras) , a técnica consistiria em dirigir nossa atitude psíquica para
a sonoridade da palavra ( Wortklang), em lugar do sentido (Sinn) da
palavra, e a fazer aceder a representação (acústica) da própria palavra
(akustiche Wortvorstellung) à significação, em lugar das repre­
sentações de coisa (Dingvorstellungen)." 40 Esse sintoma anódino e
prazenteiro lembra os distúrbios da " atividade de pensamento" , ali
onde a " representação sonora da palavra" (Wortklangvorstellung) tem
prioridade sobre a " significação da palavra" (Wortbedeutung) - de
modo que esses sujeitos, associando em seus discursos, seguem o fio
de " associações" exteriores, e não interiores, da representação de
palavra (Wortvorstellung). Freud faz justiça, nesse contexto, a um
verdadeiro efeito de saliência do " significante" , com base, é verdade,
numa distinção que pertence a um outro quadro teórico (aquele mesmo
cujos elementos reconstituímos acima) .
92 os elementos

CONCLUSÃO: OBJETO METAPSICOLÓGICO


E SUJEITO DA REPRESENTAÇÃO

Através das tribulações desse par metapsicológico, vimos buscar-se


de alguma forma o Objeto metapsicológico. Não existe, com efeito,
problema mais fundamental que a maneira pela qual o " verbal" /cons­
ciente se refere a essa instância da " coisidade" . Vamos dizê-lo de
outro modo: é justamente porque o Inconsciente não é uma coisa que
ele permite designar o ponto cego contra o qual vem chocar-se a
" representatividade da representação" . A própria evolução da desig­
nação desse pólo - Objekt, depois Sache e Ding - denota uma
espécie de encaminhamento lógico que recorta, em parte, a evolução
cronológica.
Que se pode, então, dizer dessa instância da Ding, recaptada desde
os avatares significantes da representação?
O retomo ao Entwurf aqui é eloqüente. É a clivagem, sob o efeito
de rememoração da experiência desejante, dos " complexos" percep­
tivos em duas " partes" : " uma fração não-assimilável" (o " objeto" )
e uma outra fração revelada ao Eu por sua própria experiência (" as
propriedades" , ou atividades do objeto).41 Existe aí o esboço de uma
teoria da memória inconsciente engrenada pela experiência de sati s­
fação. Sabe-se que, no mesmo texto, Freud acentua a necessidade de
uma relação com o Outro, pessoa " bem-informada" das necessidades
da criança, para mediar sua relação com uma satisfação que ela não
pode obter por seus próprios meios.42 É por intermédio desse Neben­
mensch que começa a existir " a Coisa" ; é, com efeito, tomando-se
capaz, por esse intermédio, de dominar a excitação que o sujeito chega
a organizar uma " percepção de objeto" duradouro. Existe aí um elo
entre conhecimento e dependência - o que inaugura uma dimensão
propriamente ética: é porque o Outro está ali, na origem, para me
ajudar, que posso organizar uma percepção e pôr a excitação a distância.
Reformulada no plano metapsicológico, a Coisa tem, pois, a forma
de uma memória. Muda em si mesma, ela se exprime, pelos sinais que
deixa, esses " traços" ou " imagens mnésicas" que jamais se dissipam
inteiramente - com o que Freud não cessa de se maravilhar como o
" mistério da conservação do passado" .43 Os traços-lembranças são,
pois, literalmente " imagens-de-lembranças-de-coisas" (Sacherinne­
rungsbilder) mais ou menos distanciadas da Coisa, essa Ding an sich,
a representação 93

espécie de estoque de representações. Logo, não se pode chegar perto


de Das Ding a não ser através desses " ícones" .
A Urszene - cena originária - conserva em sua forma eminen­
temente visual (e até na sua " transferência" , na expressão onírica)
esse caráter da Coisa que se vê e ao mesmo tempo produz um fading
do olhar. Ela só p�de, pois, fundar uma relação tornando a passar
pelo ouvido, por assim dizer, seguindo o desfile de representações
verbais (pré-conscientes-conscientes). Na sua última teoria da " cons­
trução" , Freud mostra que tomou consciência da dificuldade de
rememoração, ao mesmo tempo conservando um ideal de reconstrução
da Cena - a metáfora arqueológica permanecendo espacial. O olhar
é anterior à lembrança, desde que se percebe de visu aquilo de que
se lembra!
Através do trabalho da denegação ( Verneinung) e do trabalho
complexo de juízo por ele organizado, é ainda a Coisa que se perfila:
correlato do juízo, na medida em que se trata de pronunciar que uma
propriedade está ou não está numa coisa, e de conceder ou contestar
a uma representação a existência na realidade.44 Essa coisa que fica
colocada ali, " não reconhecida" (unerkannt), organiza, entretanto, o
sujeito " como" lógica!
É por isso, contra a preocupação contemporânea ' de um certo
mais-além da representação, que Freud nunca abandonou a exigência
de uma Vorstellungslehre. Deve-se formular um sujeito da repre­
sentação, mas também enfrentar a sua divisão, segundo o eixo
linguagem/coisidade.
" Logo, é a coisa, sempre" :45 Freud meditou e radicalizou a
constatação de Charcot. Mas uma coisa que recruta um sujeito, de
certa forma, e nele inscreve a dualidade significante.
Impossível, portanto, sem prejuízos, enxertar artificialmentt;
psicanálise num debate lingüístico do qual ela não partilha nem a s
preocupações, nem os termos. Mas isso só faz destacar, ainda mais
cruamente, que a il)trodução do inconsciente - como objeto meta­
psico-lógico - tem efeitos da maior importância sobre o problema
tópico .do pensamento e da linguagem. Aqui, ainda, o inconsciente
seria o missing link,46 " elo" cronicamente " faltoso" que vota as
palavras e as coisas a se procurarem incessantemente - o que cria
o mais problemático e o mais forte dos laços ...
94 os elementos

NOTAS AO CAPÍTULO IV

I . " Psicanálise " e "teoria da libido ", 1 923: " Procedimento de investigação
de processos psíquicos inacessíveis de outra maneira" .
2. Cf., sobre esse ponto, nossos estudos L 'Entendement freudien. Logos et
Ananke, Gallimard, 1984, e Le freudisme, PUF, " Que sais-je?" , n.2563, 1 990,
cap. II, p.36s. [Ed. bras.: O freudismo, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1 99 1 .]
3. Vamos encontrar seus elementos em L 'Entendementfreudien, op. cit., livro
I, p.49- 1 00.
4. Destacamos sua evolução global em nosso texto "Les grandes découvertes
de la psychanalyse" , in Histoire de la psychanalyse, Hachette, 1 982, Le Livre de
Poche, 1 985.
5. Cf. La naissance de la psychanalyse, PUF (6ied., 1 99 1 ) , carta de 1 0 de
março de 1 898, p.21 8 - o termo estando confirmado desde a época do " Projeto
para uma psicologia científica" .
6. Reproduzido em seguida à correspondência de Freud in La naissance de la
psychanalyse, op. cit.
• 7. Zur Auffassung der Aphasien, eine kritische Studie, publicado em 1 89 1 , foi
traduzido para o francês por Roland Kuhn, PUF, 1 983. Citamos o texto segundo
essa tradução, Contribution à la conception des aphasies.
8. Op. cit., p. 1 22.
9. Op. cit., p. 1 23.
1 0. Op. cit., p. 1 27.
1 1 . Cours de linguistique générale. Sabe-se que este foi pronunciado em
1 907- 1 1 por Saussure e publicado em 1 9 1 6.
1 2. Cf. E. Jones, La vie et l 'oeuvre de Sigmund Freud, op. cit., vol. I, p.6 1 .
1 3. Op. cit., p. l 28.
1 4. Aí está o comentário do " esquema psicológico da representação de palavra"
(op. cit., p. l 27), que pode ser considerado um dos primeiros esboços tópicos de
Freud.
1 5 . Op. cit., p. 1 54.
1 6. Op. cit., introdução, §7, p. l l -2.
17. Esse é o título do capítulo III do livro I da Lógica a que Freud se refere
explicitamente em sua nota.
1 8. Op. cit., p.8 1 , seção VII da conclusão do capítulo.
19. Op. cit., p.83.
20. Encontrado no capítulo XVII, em que Freud parece estar pensando (embora
ele cite a obra sem maior precisão) em Doctrine des concepts ou notions générales,
trad. fr. E. Cazelles, Germer-Bailliere, 1 869.
2 1 . Op. cit., p.358.
22. Op. cit., p.387.
23. Introduction à I 'épistémologie freudienne, Payot, 198 1 , 2ied., 1 990.
24. GW X, p.300.
25. A Paul Hãberlin. Ver, nesse ponto, nosso Freud, la philosophie et les
philosophes, PUF, 1976. .
26. Freud, la philosophie et les philosophes.
a representação 95

27. Sobre a importância epistemológica desse " adágio" freudiano, ver supra,
p.35-45.
28. O inconsciente, op. cit., p.302 [ESB vol. XIV].
29. Op. cit., p.303.
30. Cf. Freud, la philosophie et les philosophes, op. cit.
3 1 . GW X, p.419.
32. Sobre essa categoria cf. L 'entendement freudien p.49-95.
33. Carta a Jacques Riviere de 6 de junho de 1 924, in L 'ombilic des rêves,
·

Gallimard, 1968, p.4 1 .


34. O eu e o isso, seção 11, GW XIII, 247.
35. Ver nesse ponto a conclusão de Construções em análise, 1 937, e nosso
comentário in Freud et Wittgenstein, PUF, 1 988.
36. Recordamos que o Cours de linguistique générale reagrupa as aulas dadas
por Saussure na Universidade de Genebra em 1 906-7, 1 908-9 e 1 9 1 0- 1 1 , mas só
foi publicado em 19 1 5, dois anos depois de sua morte, por C. Bally e A. Sechehaye,
ou seja, no mesmo ano da Metapsicologia. Citamos segundo a edição crítica de
Tulio de Mauro, Payot, 1972, p.97- 100.
37. Op.cit., p.I00-2.
38. Op. cit., p. 1 59-62.
39. Op. cit., p.419.
40. Os chistes e sua relação com o inconsciente, 1 905, GW VI. Sobre o contexto
dessa posição, remetemos à nossa síntese, " L' inconscient humoriste. Freud et
l'humour" , in Autrement, n. 1 3 1 , 1 992, p.5 1 -68.
4 1 . " Projeto para uma psicologia científica" , trad. fr. in La naissance de la
psychanalyse, op. cit., p.376.
42. Op. cit., introdução, § 1 1 , p.336.
43. Mal-estar na civilização. Cf. nosso comentário dessa passagem in "Le
sujet de l'oubli chez Freud" , in Communications.
44. A denegação, 1925, GW XIV.
45. Sabe-se que essa é a fórmula de Charcot, confessando que, nos casos de
histeria, é sempre a coisa genital que é a causa. Cf. p. 1 0 1 .
46. Numa carta a Groddeck d e 1 9 1 7, Freud se pergunta, com efeito, se o
inconsciente não seria "o elo perdido entre a alma e o corpo" - termo que,
conforme mostramos noutra parte, deve ser entendido ao pé da letra (" Freudisme
et darwinisme" in Dictionnaire du darwinisme et de l 'évolution, PUF, no prelo).
Cf. p. l 74.
CAPÍTULO V

A COISA
Metapsicologia e psicossexualidade

"Portanto, é sempre a coisa, "

A Coisa sexual é reputada definir a psicanálise. Por qualquer lado


que se tome a psicanálise, é a isso mesmo, com efeito, que se chega:
isso de que ela se ocupa, isso que ela trata, que ela freqüenta, é mesmo,
aparentemente, isso. Quer se a aborde por seu objeto, quer se a descreva
por seu trajeto, ou quer se a defina por seu projeto, a psicanálise
remete à Coisa sexual, como uma fatalidade. A ponto mesmo de que,
por um efeito de retorno, ela passa por ter transformado a própria
Coisa sexual em fatalidade.
Estranhos parceiros, esses dois: a psicanálise, que não cessa de
falar disso, a Coisa sexual, que não cessa de fazê-la falar. O bom
senso as considera tão estreitamente ligadas que falar da psicanálise
implica evocar " a coisa" , ao passo que a invocação da " coisa" deixa
supor que a psicanálise não está muito longe. É fato que elas caminham
juntas, a partir de agora, mas isso é o efeito de um nó muito singular
atado por um ato de fundação, ligado a um sujeito determinado, que
acabou dando a esse casamento seu próprio nome - o de Sigmund
Freud. É fato que a Coisa sexual se impõe desde a experiência instituída
por Freud como o pressuposto necessário da psicanálise.
Mas parece igualmente lícito jogar com esse nó, tentar desatá-lo.
Afinal, será realmente necessário que a Coisa seja sexual, como disse
Freud? Pergunta facilmente invertida: será preciso crer nessa neces­
sidade que Freud - e ,depois dele " os psicanalistas" - quer induzir,
que seja a Coisa sexual, e não qualquer outra coisa, o de que se trata
na experiência analítica?

96
a Coisa 97

Esse tipo de jogo pode desapontar e calar aqueles que se dedicaram,


justamente, à crença necessária de que testemunha toda a experiência
psicanalítica: a isso se poderia responder que esta é a " sina" que se
deve cumprir, a psicanálise e "a coisa" - o que é irrecusável, mas
expõe dessa maneira, justamente, o entendimento analítico a se isolar
do Entendimento. Alguns, com efeito, acreditam poder continuar
pensando sem a coisa (sexual), justamente porque Freud e seus
herdeiros se encarregaram disso. Mas esta é, em suma, uma questão
que é lícito formular, nem que seja para descansar de ter escutado o
inconsciente insistir em falar da Coisa sexual: por que, afinal, ele não
falaria de outra coisa?
Deixar-se perturbar por esse condicional implica descobrir uma
questão, esta verdadeira, que o bom senso contestatório da psicanálise
parece visar de maneira confusa: que gênero de necessidade liga,
então, o inconsciente e seu saber ad hoc, psicanalítico, à coisa sexual?
Pois esse bom senso, tão ocioso, ao que parece, com relação ao real
da experiência da coisa sexual no inconsciente que é vital na prática
analítica, tem razão, realmente, quando suspeita que o analista tenha
feito desde Freud, da Coisa sexual, sua superstição. Dentre a família
humana dos discursos, o do analista se reconhece, sem dúvida com
demasiada facilidade, na medida em que ele põe a coisa sexual em
todo lugar.
Resta a questão sobre o que o obriga a isso. Pois existe aí como
que um ponto cego: a Coisa é exposta ao mesmo tempo como uma
realidade e como o correlato do pensamento analítico, algo como o
seu " noema" . 1 Por um lado efetivamente, o freudismo é apresentado
como aquilo que " atualiza" a realidade psicossexual; por outro lado,
quem quer formar algum conceito dessa " coisa" , tão real, vê-se
remetido à própria psicanálise, como o que fala disso. A coisa sexual
só é ela mesma pelo que a psicanálise fala " disso" : ela é esse referente
material, o próprio " Material" que Freud evoca sem cessar em apoio
à menor de suas asserções.
Também o bom senso, que retoma sem cessar a dúvida quanto ao
caráter sexual disso q�;�e, no entanto, não cessa de reproduzir,2 ajuda
a lançar um olhar novo sobre o que vem a ser, em suma, o ser sexual
dessa coisa que fornece à psicanálise sua substância. Só que não se
deve apenas jogar com esse nó da psicanálise com a Coisa sexual:
convém desatá-lo para o experimentar, em suma, para esboçar sua
genealogia. Pode até ser, afinal, que o ser sexual sej a necessário à
psicanálise para que esta constitua sua coisa como a sua própria. O
98 os elementos

tom dogmático, deliberado, com o qual Freud reivindica o Credo


libidinal3 parece indicá-lo.
Mas o que vai nos interessar, nessa questão tão fundamental que
se pode considerar elementar, é justamente o seguinte: o que foi
preciso acontecer à " coisa" para que, estreitada pela psicanálise, ela
não consiga ser nada além de sexual? Essa formulação, de ressonância
mitológica, está destinada a abrir caminho noutra parte que não uma
exposição da noção de sexualidade em Freud. Da mesma forma,
estaríamos condenados a fazer como se Freud houvesse " descoberto"
a sexualidade, ou melhor, como se ele a houvesse " inventado" . É
verdade que, numa perspectiva semelhante, só se pode fazer o balanço
das razões que ele teria tido para sexualizar a psiquê.
É claro que o móbil do freudismo está alhures: não existe concepção
-. freudiana da sexualidade - entendida como nova apreensão do " fato
sexual" . Mas é a própria coisidade do sexual que a experiência do
inconsciente não cessa de experimentar. Toda essa experiência se de­
senvolve, portanto, a partir desse julgamento, que é de sexualidade
que se trata no inconsciente. Apenas, esse julgamento não é preci­
samente exterior ao desenvolvimento dessa experiência: Freud só
precisa articulá-lo, de tal modo sua experiência o significa.
Essa posição singular do saber analítico quanto a seu próprio objeto,
ao mesmo tempo tão opaca e tão onipresente, merece certamente algo
como uma teoria do conhecimento. Nao é Freud quem afirma, em sua
doxa, que a sexualidade é o texto único do inconsciente, é ela, a Coisa
que ele, bem ou mal, manipula, que não cessa de significá-lo. Mas
nem por isso é menos verdade que é preciso alguém para sabê-lo e
dizê-lo, e Freud se prestou como voluntário para isso.
O bom senso inimigo da análise que se instala diante da Coisa e
duvida de seu ser, bem como a ideologia, que sustenta que a Coisa
não teria mais que ser sexual, serão, pois, o desafio que permite
dirigir-se à Coisa analítica para lhe endereçar a questão de sua
legitimidade: " Que foi que te fez sexual?" Só que é preciso que
façamos algo como a metafísica dessa Coisa: começar por despojá-la
de todo predicado, e depois tentar compreender o que lhe acontece,
para que ela se vote ao sexual como o único ser atribuível. Essa bem
poderia ser a fórmula da questão mais decisiva da metapsicologia,
logo, nesse sentido, a mais singular (e não a mais geral).
Isso supõe contar a história da Coisa, na medida em que a
psicanálise é o seu próprio texto. Freud deve o caráter excepcional
de seu percurso ao fato de transformar a paixão da Coisa em saber.
a Coisa 99

Seu texto, portanto, vai servir-nos, paradoxalmente, como versão da


história que começa por " Era uma vez a Coisa" - uma qualquer,
igual a si mesma, muda - e se desenvolve a partir de uma outra:
" Que era preciso que acontecesse- para que ela admitisse como sexual
seu único ser possível?" Era necessária a intervenção freudiana,
decerto; mas esta não é uma resposta do tipo: " A coisa é sexual
porque Freud assim o disse." A questão reside muito mais em
compreender por que necessidade se cristaliza o ser sexual da Coisa,
isso a que Freud dá corpo.

I. GENEALOGIA DA COISA SEXUAL

1. O discurso dos Mestres, ou a Coisa mata

Suponhamos, pois, a. Coisa, fechada em si mesma, na sua igualdade


a si mesma, nesse ponto vertiginoso onde não se lhe supõe predicado
algum. Ding an sich, coisa em si, em sua acepção kantiana, ou seja:
� " Aquilo que subsiste em si mesmo sein supor outra coisa. " 4 Vamos
perguntar o que pode acontecer a uma tal Coisa. Será preciso dizê-la
opaca? Sim, na medida em que ela está encerrada na alcova de sua
autarquia: "A idéia de uma realidade encarada em estado estático e
como separada ou separável, constituída por um sistema suposto fixo
de qualidades e de propriedades." Mas, por esse próprio movimento,
parece-se atribuir-lhe uma perfeita translucidez: a coisa, de fato, é
evidente, no sentido em que se deve saber, sem ter que dizê-lo, o que
é uma coisa. " Essa coisa aí" , diz-se, como se nomeá-la como coisa
bastasse para designá-la em sua concretude singular.
A Coisa, pois, é ao mesmo tempo singularidade absoluta, a diferença
concretizada e individuada, e· o universal abstrato, essa " noite em que
todos os gatos são pardos'' , pela qual Hegel designa o Absoluto
objetivo.5
Diremos que ela é muda? Sim, no sentido em que parece não
requerer, por definição, nenhum suplemento de linguagem para sua
própria coisidade. Mas, quando se diz " a coisa" , se disse tudo, isto
é, justamente a medida necessária para nomeá-la.
Que será preciso então para que a diferença se introduza na Coisa,
de modo que dela se possa dizer. .. alguma coisa, vamos entender,
alguma coisa que se destaque da Coisa para que lhe faça questão? É
100 os elementos

necessária a repetição, e um juízo do tipo: " É sempre a mesma coisa."


Foi esta, precisamente, a fórmula que surpreendeu Freud, no início
de seu percurso, na boca de Charcot: " É sempre a coisa genital..."
Mas convém compreender bem o estranho carisma dessa reflexão:
ela enuncia a permanênçia da coisa, repetida incessantemente, mas ao
mesmo tempo a torna anódina - vamos entender que aqueles que
dizem a Coisa nomeando seu fUndamento sexual nada mais dizem. É
evidente que é sempre a coisa genital, ela mesma como um eco no
fundo de um poço. Isso não é um juízo, mas uma constatação.
Convém que nos aproximemos mais do que Freud "nos relata em
Contribuição à história do movimento psicanalítico ( 1 9 1 4), e que
adquiriu suficiente consistência para ser evocado na Selbstdarstellung
( 1925) como uma espécie de cena primária paradoxal do advento da
psicanálise a partir de um anúncio cego emanado de outros. Como
no teatro, aliás, esses anúncios são três, como as pancadas que
precedem o levantar das cortinas.
De fato, trata-se realmente de três cenas. Na primeira, o plano
principal é de Breuer. Durante um passeio com o amigo Freud, então
um jovem médico de hospitais, " ele foi abordado por um senhor que
pediu para lhe falar ( ... ), o marido de uma paciente que acabava de
lhe dar notícias desta ( ... ) que se comportava em sociedade de maneira
tão singular que se havia pensado útil, considerando-a uma nervosa,
confiá-la a seus cuidados" .6 Vem então a designação da Coisa pelo
Outro: " Trata-se sempre de segredos de alcova, disse ele à guisa de
conclusão." Observemos que a linguagem envolta em alusão, não sem
consonância libertina, é suficiente, para o locutor Breuer, para dar a
entender do que se trata. Entretanto, dada a insistência de seu
interlocutor, ele explícita, ou melhor, nomeia, a (mesma) coisa, em
outras palavras : " Espantado, perguntei-lhe o que queria dizer; ele
então me explicou do que se tratava exatamente, substituindo o termo
' alcova' pela expressão 'leito conjugal ' ."
Assim, a " coisa" , tão claramente nomeada que Breuer diz " não
compreender por que a coisa me parecia tão inaudita" , se vê, a partir
de sua nomeação, duas vezes nomeada. Vê-se o que daí deduziria,
legitimamente, um sofista: é a mesma coisa que é nomeada a primeira
e a segunda vez? Se é a mesma, por que será preciso nomeá-la duas
vezes, e esses dois nomes são sinônimos? Mas, então, outras nomea­
ções serão possíveis? A Coi sa excede, pois, o seu nome próprio?
Breuer, seja como for, encerra a discussão pela simples evocação-in-
a Coisa 1 01

vocação da coisa. Uma vez que ele a disse, para que continuar a falar
disso?
Mas é o caso de se dizer que esse dizer não caiu nos ouvidos de
um surdo. Esse ouvido vai, pelo menos, recolher o eco dessa estranha
história, encontrando-se numa situação análoga (sinal, sem dúvida, de
seu destino). Uma outra figura identificatória de mestre, dessa vez
chamado Charcot, que, ainda aí, fala a uma outra pessoa: Freud é a
testemunha, ao mesmo tempo um pouco excluído e atento; seu colega
Brouardel conta o caso de uma mulher neurótica, mais uma vez, cujo
" marido era impotente ou totalmente desajeitado" . Para espanto de
Brouardel, Charcot responde ... nomeando a Coisa: " Mas, em casos
semelhantes, é sempre a coisa genital, sempre, sempre, sempre." Eis,
portanto, a coisa nomeada solene e clandestinamente pela segunda
v�z: dessa feita, sob sua denominação mais determinada, que é também
a mais geral ou genética. É como se fossem progredindo: não é mais
,, a metáfora da " alcova" , nem a do " leito conjugal" , mas a coisa
genital em pessoa. Dessa vez, a testemunha, Freud, não interroga mais,
mas interroga a si mesmo e progride desta maneira: " Já que ele o
sabe, por que não o diz?" Questão, afinal, incongruente, j á que ele a
disse, maciçamente: é de se acreditar que, no espírito de Freud, ele,
no entanto, não a disse verdadeiramente. Isso nos sugere uma outra
formulação de nossa pergunta: como se pode nomear tão francamente
a realidade da Coisa genital sem enunciá-la verdadeiramente? Qual
deve ser a potência dessa Coisa para impor tal desdobramento da
realidade e da verdade?
Mas eis que j á ressoa o último anúncio, que é também a última
intimação da Coisa. Dessa vez, Freud é o interlocutor ativo do
" anunciador" , Chrobak: entre os dois, o corpo sofredor da paciente,
" doente que ( ... ) sendo casada há 1 8 anos, ( . .. ) ainda é virgem, sendo
seu marido impotente" . A Coisa será nomeada como aquilo que o
médico não pode tratar, mas cujo tratamento ele conhece: " Pp. Penis
normalisldosim/Repetatur" ! A Coisa é claramente dita de novo, como
o objeto inacessível de uma receita (médica) impossível.
A lição dessa estranha história, o " sempre" três vezes repetido de
Charcot dá a sua parábola. A " coisa" é o objeto de uma repetição
insistente, até mesmo exasperada, mas acontece que, precisamente,
ela nunca é dita de verdade. O que se repete de modo mais compulsivo
é j ustamente aquilo que não pode ser dito, de modo efetivo, uma
única vez. É por ser ela quem age " sempre" que não pode ser dita
de uma vez por todas. É o estribilho da canção, que se deve repetir
1 02 os elementos

uma, duas, três vezes .. . porque as quadras sucessivas não o esgotam,


reconduzindo a ele no fim. Vai ser preciso entendermos, justamente,
por que essa canção não tem sujeito, por que é que temos que retomá-la
sempre, sempre. Mas isso implica, em primeiro lugar, situar o próprio
Freud, essa testemunha do refrão, na canção.

.
I
2. Por que não o dizem? ou a Vrszene freudiana

Temos que produzir agora a teoria desse evento de que o próprio


Freud é o sujeito: esse dizer da " coisa" extraído do discurso dos
outros, mas não sabido por aqueles mesmos que o dizem. Que não
se enganem nisso: essa é uma forma de progredir na inteligibilidade
da " coisa" . Que deve ser ela para ser sempre dita e nunca articulada?
E que deve ser a psicanálise para ser aquilo que, enfim, pode abranger
alguma coisa disso?
Isso começa, como vimos, pela escuta de um - do qual Freud
assume o papel - que não cessa de escutá-lo no discurso dos Mestres,
que o esquece mesmo, entrementes: " A impressão" , diz ele depois
do episódio Charcot, " foi rapidamente esquecida." Portanto, ele
mesmo a esquece, mas, enquanto os Mestres a esquecem de uma vez
por todas, ele vai encontrar-se numa situação estranha e inaudita, onde
não lhe será mais possível " esquecê-la" , num dado momento.
O que vai nos interessar, pois, será a posição de Freud com relação
à " verdade" proferida pelos Mestres à revelia destes. Essa posição
lembra a ironia socrática. Assim, com referência a Breuer: " Espantado,
perguntei-lhe o que queria dizer." Como Sócrates, Freud força seu
interlocutor a reaj ustar sua fala ao seu conceito. Mas o mais notável
é que essa intervenção não tem nenhum efeito duradouro: a linguagem
se entreabre - Breuer diz " leito conjugal" em lugar de " segredos
de alcova" -, e depois a " coisa" volta a se fechar em si mesma.
Em si mesma e para todos, é verdade, mas não para um certo sujeito
que decidiu deixar-s� intrigar por ela, achá-la " inaudita" .
Não é por acaso que o espanto volta a surgir no episódio seguinte,
depois da " confissão" de Charcot: " Lembro-me de ter ficado estu­
pefato por alguns instantes e, voltando a mim, dirigi-me a questão."
Freud, aqui, sonha com a " coisa" que Charcot evocou, depois que
este tomou a encerrá-la em seu seio (" ele cruzou os braços sobre o
peito" ). Despertando desse sonho, a questão, com efeito, se impõe:
" Essa coisa que é sabida, por que ele não a diz?"
a Coisa 1 03

No episódio Chrobak, enfim, o espanto é evocado objetivamente:


" Jamais ouvira falar em semelhante prescrição" . Ele dá lugar até
mesmo a uma espécie de censura: " Estive pronto a censurar o cinismo
de meu protetor." O termo é interessante: o cínico é aquele que diz
a coisa cruamente, seni tolerar o véu das palavras. Mas o que mais
indigna Freud é que a Coisa seja assim jogada na cara sem que todavia
seja reconhecida como o objeto de um discurso lícito.
Para tal sujeito, a questão torna-se inevitável: que aconteceu então?
Que foi que, nesse dizer cínico insistente, foi tão certamente elidido?
Na primeira versão, Freud o diz lindamente: eles não faziam mais
que flertar com a verdade da coisa, ao passo que ele, a partir daquele
momento, estava a ponto de desposá-la: " Sei que exprimir uma idéia
uma ou várias vezes, sob a forma de um comentário rápido, é uma
coisa; e levá-la a sério, no seu sentido literal, desenvolvê-la através
de todas as espécies de detalhes, freqüentemente em oposição a ela,
conquistar-lhe um lugar entre as verdades reconhecidas, ' é outra.
Trata-se aí de uma diferença análoga àquela que existe entre um flerte
ligeiro e um casamento honesto, com todos os deveres e dificuldades
que este comporta." A imagem é menos anódina do que poderia
parecer a uma leitura rápida: os três Mestres não fizeram mais que
" tocar" a Coisa, gozar dela como de um signo vertiginoso, como de
uma imediatez sem futuro. Em suma, a " coisa sexual" antes de Freud
não funda nenhum pensamento: é por isso que basta nomeá-la.
Na segunda versão ( 1 925), Freud adivinha, no entanto, o que é
preciso compreender: por que a coisa não podia ser dita - enquanto,
na primeira, ele ainda fingia espanto: " Eu não havia compreendido,
então, o que aquelas autoridades pensavam: eles me haviam dito mais
do que eles próprios sabiam, e do que estavam preparados para
sustentar." 7 Esse mais é também o menos que falta ao discurso deles,
e sinaliza o excesso da Coisa com relação ao próprio dizer deles. À
fala das " autoridades" , era preciso acrescentar um saber e um
querer-dizer.8 " É sexual o que a coisa é."
Era preciso, no entanto, que a Coisa fosse escutada na fala das
" autoridades" para que ela se mostrasse. Isso lembra um silogismo
em forma de denegação: " É a coisa que é sexual ( 1 ) ; mas eu não a
disse (2)" - premissas que requerem uma conclusão que Freud vai
assumir daí por diante, até seus limites extremos: " se - negação da
negação, é realmente a verdade que você disse" (3). Ou ainda: " A
Coisa está claramente no seu discurso."
1 04 os elementos

Vê-se, ao mesmo tempo, por que os outros só podiam dizer dela


mais do que sabiam: a Coisa sexual não podia produzir até então
senão sujeitos divididos entre sua aderência à verdade da Coisa e seu
saber da Coisa. A questão só repercutiu na seguinte medida: que devia
acontecer para que surgisse um sujeito que deslocasse essa relação?
Dessà Coisa, Freud, com efeito, vai ocupar-se: ele vai fazer uma
ligação com ela, " levá-Ia a sério" , isto é, ao pé da sua letra (e não
de sua essência muda). A conseqüência disso é sugerida: a Coisa vai
poder entrar num sistema de verdades - quando ela não era mais
que um isso pontual -, ela poderá assim " dialetizar-se" a ponto de
entrar " em oposição consigo mesma" . Em suma, ela poderá ser o
objeto e o referente de uma discursividade, e não mais de uma simples
invocação.
Mas, para fundar um saber sobre a Coisa, será preciso uma espécie
de ética: comprometer-se com a Coisa. Breuer, Charcot e Chrobak.
podiam falar dela com distanciamento, pois não sentiam que tivessem
" deveres" para com ela; podiam falar dela facilmente, pois não sentiam
seu nó de dificuldades. A estranha vocação de Freud é tal que ele vai
sentir-se no dever de acolher a linguagem da Coisa, emprestar-lhe
linguagem, fazer-se seu oficial, até mesmo seu oficiante. Segundo sua
própria sugestão, ele vai desposar essa idéia, num contrato válido.
Mas se percebe até que ponto o negócio dessa coisa estranha que
é a sexualidade é complexo: nos outros (os mestres, como todos
aqueles que freqüentam a Coisa), é tão evidente que ela é sexual que
isso não se elabora em saber, nem mesmo em "juízo" , do tipo: " A
(essa) Coisa é sexual." É por isso que esses dizeres pré-freudianos
da Coisa sexual não têm o fôlego necessário para prolongar a Coisa
com seu predicado sexual pelo tempo (lógico) necessário da cópula
(é). É com o fôlego entrecortado, como se viu, por essa revelação que
Freud vai instituir um discurso para retomá-lo, isto é, inserir a coisa,
evocada até então de maneira sincopada, numa cadeia discursiva
própria. " Devo uma linguagem à Coisa" , eis o que confessa Freud
nesse momento preciso.
A Coisa genital é evocada pelas pessoas que, justamente, não a
dizem. O primeiro eco da sexuação da Coisa chega a Freud de maneira
notável, pelo viés desses oráculos cegos que compreenderam que a
Coisa era sexual, mas que pensavam que isso não valia a pena ser
dito. Mestres enfermos, de certa forma, que não puderam saber e
dizer ao mesmo tempo. Eles sabiam que a genitalidade era determi­
nante, mas só fizeram murmurá-lo; disseram que tudo era genital, mas
não souberam que a Coisa era sexuada.
a Coisa 1 05

Há, aí, como que a cena primitiva da descoberta freudiana: sempre


é preciso que um outro tenha dito sem o saber, ou sabido sem o dizer.
É preciso que ele, depois desse passo, caminhe em direção à verdade
da coisa, para ousar dizer a própria coisa. Mas isso é inteiramente
distinto de uma revelação ontológica. Não existe nada, nesse sentido,
de uma ontologia do sexo na psicanálise.
Que outra coisa existe então? Deve-se pensar em algo que sej a tão
fundamental a ponto de ser evidente. Algo que " salte aos olhos" , a
ponto de que não haja mais olhos para vê-lo. Que disseram os
" mestres" ? Que havia sexo na coisa. Isso lhes permitiu negar,
tranqüilamente, que a Coisa fosse sexuada - pelo próprio fato de se
haver reduzido o sexo a uma coisa.
O tempo da descoberta freudiana serve justamente para compreen­
der que a coisa é sexuada. Mas não basta confirmar que os outros
tinham razão sem o saber, ou mesmo que eles não queriam ter razão,
dizendo-o: é preciso reformar nada menos que um entendimento.
É preciso compreender que a sexualidade é aquilo que vale a pena
ser dito sobre a coisa. Sem dúvida, foi essa insistência de Freud em
fazer com que se admitisse isso que fez com que se lhe atribuísse um
pansexualismo tão estranho à sua trajetória. É, antes, o ontologismo
sexual, que põe o sexo em todo lugar, que é " pansexualista" : Breuer,
Charcot e Chrobak eram bem pansexualistas nesse sentido. Freud tenta
tirar justamente o sexual da Coisa, para dela extrair um saber.
Mas, para isso, deve-se também pensar a fatalidade, a Ananké da
Coisa sexual: cada vez que a Coisa mostra seu fundo, ela obriga o
discurso, o Jogos, a enunciar ali o sexual.9 A trajetória freudiana vai
consistir ao mesmo tempo em se confiar a essa fatalidade, assumi-la
- lá onde seus mestres a esqueciam, no fim do corredor onde a
tinham sussurrado - e a elaborá-la. Contra Breuer, Freud logo chega
a sustentar que a sexualidade é digna de um saber, que se pode
requerê-la para a racionalidade da explicação.
O procedimento é delicado: trata-se de não mais deixar-se aspirar
pela Coisa, como faz o bom senso que põe o sexo em todo lugar, mas
também de colocá-la diante de si, de não se apressar em esquecê-la.

3. A fala dos neuróticos, ou a Coisa dita

Isso torna-se possível porque a Coisa se trai. Não por si mesma: ela
pôde passar despercebida, como se viu, aos olhos daqueles que a
1 06 os elementos

reconheciam mais claramente. A sexualidade não se mostra, no sentido


em que a Coisa exibiria seu ser sexual. Mas, para dizê-lo da maneira
mais realista, é preciso haver sujeitos para a Coisa. É por meio da
fala neurótica que Freud descobre o tema sexual.
A maneira como ele acede a esse privilégio de tirar da Coisa um
saber é descrita de modo notavelmente semelhante ao efeito de
só-depois neurótico: " O que eu os tinha escutado dizer (o sexual da
Coisa, pois) dormitou inativo em mim até que isso ressurgisse como
um conhecimento aparentemente original por ocasião das investigações
catárticas." 1 0
Portanto, o que deu sangue novo a esta fala, o confirmou, é uma
outra fala, neurótica. É por conseguinte esse fio que a genealogia da
Coisa deve seguir agora. No discurso dos mestres, a Coisa tinha o
aspecto paradoxal de um gigantesco estilhaço: era a onipresença da
Coisa que era evocada, mas, pelo mesmo movimento, ela era suprimida
de si mesma. Agora é um chuva de estilhaços da Coisa que Freud vai
recolher, lá onde se mostram seus " resíduos nucleares" , na fala
neurótica.
O mais notável, de saída, é que o que Freud diz dessa descoberta
se apresenta, em sua versão oficiâl, como a confissão de um " erro" :
" Sob a pressão de meu procedimento técnico de então" , conta ele na
Selbstdarstellung, " a maioria de meus pacientes reproduziu cenas de
suas infâncias, cujo conteúdo era a sedução sexual por um adulto ( ... ).
Eu tinha fé nessas informações (Mitteilungen) e acreditei haver
descoberto nessas vivências da sedução sexual da infância as fontes
da neurose ulterior ( ... ). Quando, porém, tive que reconhecer que essas
cenas de sedução jamais haviam ocorrido, que não passavam de
fantasias imaginadas por meus pacientes, impostas a eles, talvez, por
mim mesmo, fiquei por algum tempo desamparado." 1 1 A celebridade
desse texto talvez tenha dissimulado o essencial de seu verdadeiro
conteúdo, como se a desmontagem por Freud de seu próprio mito
houvesse dissimulado o que se passa realmente, ou seja, o relato da
própria Coisa por intermédio do mito freudiano. 12
Tomado desse ponto de vista, o relato efetivamente se esclarece:
Freud nos conta ter escutado a Coisa (sexual) na confissão neurótica,
e em seguinda que acreditou tê-la escutado, quando nada mais havia
senão a miragem da fantasia. Em que incide, então, o erro (Irrtum)?
Pois a Coisa sexual estava realmente no relato da cena, como seu
conteúdo (lnhalt) próprio. A fala continha " substancialmente" a Coisa.
O erro consistia apenas em confundir a Coisa (Ding) com seu conteúdo
a Coisa 1 07

(lnhalt) - Freud, aqui , não escapa à metafísica. Seu erro consistia


em fazer da Coisa a própria causa da neurose, quando ela era apenas
o seu tema.
Tomar a palavra como signo imediato da Coisa, aí está realmente
um mecanismo paranóide. E o famoso desabafo a Fliess - " Não
acredito mais na minha neurótica" 1 3 -, levado ao desespero (" Por­
tanto, mentiram para mim ! " ), atesta o só-depois depressivo dessa
paranóia singular, que tem a Coisa sexual por causa. Nesse momento
preciso Freud está no desamparo específico que o texto de 1 9 1 4 evoca
com mais frescor: " No momento em que essa etiologia se desfez em
conseqüência de sua inverossimilhança e de sua incompatibilidade
com circunstâncias devidamente estabelecidas, resultou daí, a princí­
pio, um período de total desorientação." 14 O luto de Freud, que pensa
então em desistir de seu próprio destino,15 é aquele - mais real,
impossível - da própria Coisa. Nesse momento preciso ele se tomou,
falando propriamente, o sintoma vivo.
Pois a Coisa lhe havia sido escondida por seus mestres - um
pouco como se diz a uma criança: "A Coisa que eu sei, não vou dizer,
você vai saber quando for grande." 16 Ora, eis que os outros, os
neuróticos, a anunciam para ele por sua vez, mas são desmascarados
como mentirosos. De fato, é para desanimar. Vamos resumir: a Coisa
é Ama verdade que não deve ser dita (em sua versão I) e/ou uma
mentira que não pode ser sabida (em sua versão 11).
E no entanto, consola-se Freud, era mesmo verdade o que eles
diziam: o " conteúdo estava incontestavelmente relacionado com os
sintomas dos qtiais minha investigação partira" . Mas é preciso tirar
daí as " conclusões justas" : " Os sintomas neuróticos não se ligavam
diretamente a eventos reais, mas a fantasias de desejo." A imagem
de Freud é bastante pertinente: é como se, abrindo Tito Lívio, lendo
a história lendári� dos reis de Roma, ele houvesse tomado .esse relato
por " dinheiro vivo" da realidade. Em suma, a Coisa não está na
linguagem como um denotatum, algo que se mostra, que se designa.
Desfazendo-se de seu " etiologismo" radical, ele trocou, pois, a
ambição ontológica de dizer a Coisa por uma " formação reativa" -
no sentido mesmo em que a fantasia neurótica se apresenta como a
formação reativa a uma realidade miserável, ou as lendas de Tito
Lívio como " uma formação reativa elevada contra a lembrança de
situações e tempos miseráveis, sem dúvida nem sempre gloriosos" .
Vê-se ao fim de que troca derrisória Freud faz a aquisição do
desejo: é o que lhe resta em troca dessa Coisa inteiramente real que
1 08 os elementos

ele não pôde trazer à luz. Velada para sempre no discurso dos mestres,
metaforizada para sempre na fala dos neuróticos, ele requer, ainda
assim, os seus restos e funda com eles um saber novo, mas, afinal,
pouco " glorioso" .
Pouco glorioso, com efeito, pois ninguém quer a Coisa. Aqueles
que a sabem nada querem dizer dela, aqueles que a dizem nada querem
dela saber. Ao final desse silogismo, Freud vai encarnar uma estranha
síntese: ser aquele que, ao mesmo tempo, vai dizê-la e sabê-la, isto
é, vai tirar desse dizer mudo um saber eloqüente - o psicanalista é
a partir de então aquele que a Coisa faz falar - e fundará sobre esse
saber singular um dizer específico - o psicanalista será, com efeito,
aquele que considera a Coisa sexual digna de um saber.

4. Por que eles não o sabem? ou A Coisa nem sabida nem dita

Essa intervenção inaudita tem pelo menos dois efeitos: modificar de


maneira radical o teor do saber e do dizer, e o de sua articulação
própria; e por outro lado - e este é o cúmulo - mortificar a própria
Coisa, convertendo-a em saber e em dizer possíveis.
Os Mestres evasivos e os neuróticos ausentes simbolizam esse
caráter próprio da Coisa demarcada, a saber, que ela não pode ser
dita e sabida ao mesmo tempo pelo mesmo sujeito. É como que a
"
versão analítica do princípio chamado da não-contradição. 17 Em outras
palavras: quando é da Coisa sexual que se trata, não se pode encontrar
um sujeito para dizê-la e sabê-Ia ao mesmo tempo. Mas aí está
justamente o que impede a Coisa sexual de ser formulada sob o modo
da coisa, objeto de um dizer e de um saber integrados. No máximo,
concebe-se um sujeito, de certa forma inédito, que assume essa divisão
e tenta fundar ali um novo ponto de vista: este é o sujeito da análise,
como techne e episteme.
O que Freud compreendeu através da fala da Urszene é fundamental:
é que a Coisa sexual é o que faz incisão na fala dos sujeitos. Para
dizê-lo segundo o registro mitológico que escolhemos: para a Coisa
sexual, é preciso haver sujeitos falantes e divididos. Mas, contra um
ontologismo da linguagem, deve-se destacar que o inconsciente não
fornece à Coisa a sua linguagem. Antes, é a Coisa que, por não poder
ser dita, se constitui, numa espécie de sedimentação, em tema da fala.
A Urszene singular de um sujeito é como a forma reativa da Coisa
É a sua versão da Coisa, sua inscrição numa fala. Em outros termos,
a Coisa 1 09

é a sua negação, A Coisa é afirmada e negada tantas vezes quantos


sujeitos houver para viver sua cena primitiva.
Em cada Urszene, pois, é de alguma forma uma explosão da Urding
sexual que se exprime. Donde se conclui que cada cena primitiva se
apresenta ao mesmo tempo como " celebração" da Coisa sexual e
como sua renegação singular. Levaríamos o paradoxo a ponto de dizer
que a Urszene, inscrevendo o sujeito no sexual de seu desejo próprio,
invalida a universalidade da Coisa como Absoluto. Não existe, com
efeito, exterioridade à fantasia: o sujeito encontra na sua cena originária
sua origem desejante, choca-se com ela sem nada deixar de fora.
Igualmente, se quisermos uma imagem ela mesma fantasística, a Coisa
sexual se esvazia um pouco mais a cada extração que um sujeito faz
nela de seu próprio ser desejante.
Todavia existe aí como que um efeito de eco: " É sempre a coisa
genital, sempre, ( .. . ) sempre, ( . . . ) sempre." A fórmula, daqui por
diante, pode ressoar de outra maneira: a cada " ligação" de um sujeito
ao desejo do Outro, é a coisa que é re-dita. Que um filho dos homens
caia na órbita do Outro, e a Coisa, de alguma forma, marca pontos.
Foi isso, sem dúvida, que seduziu Freud nas metafísicas instintualistas
à la Schopenhauer,18 tão sensíveis ao domínio do " querer-viver" e à
manipulação das individualidades pela Coisa que as quer.
Só que, se a Coisa as quisesse tão infalivelmente quanto receia
Schopenhauer, a cena primitiva seria rigorosamente inútil. É preciso,
com efeito, que o sujeito se pergunte, singularmente - já que ninguém
pode fazer isso por ele - o que quer dele o Outro. Por aí se inaugura
a experiência edipiana constitutiva do desejo: apenas, esse tempo
necessitado pelo sujeito para se referir à Coisa é também o que
demonstra que ela não é evidente. A presença esmagadora da Coisa
sexual no inconsciente bem poderia, assim, proceder de qualquer outra
coisa que não daquilo que o bom senso designa como " a coisa" , ou
seja, o passo, sempre defasado e sempre a ser dado novamente, por
um sujeito em direção à sua Coisa.
É em algum lugar entre o sujeito e a Coisa que se situa o texto
sexual. Este se organizaria em torno da interrogação que dá seu pathos
à cena originária: que coisa é essa que o Outro quer de mim e da
qual faço parte? É nessa perplexidade básica que se forma toda intriga
no inconsciente. A Coisa sexual é justamente o seu móbil incontor­
nável, mas, como se vê, nada menos que um dado. É o hic do qual
a divisão dos sujeitos com relação ao seu ser sexual retoma sem cessar
seu impulso. Torna-se necessário, a partir daí, pensar uma instância
1 10 os elementos

cuj a complexidade se distingue do que sugere o realismo da Coisa:


uma Coisa que seria ao mesmo tempo causa crônica da divisão do
sujeito e tema reiterado de sua fala.
Um último fato do relato originário revela toda a sua importância
nessa nova perspectiva: é a implicação de uma mulher em cada um
dos cenários da revelação da Coisa que serviu de cena originária ao
encontro da psicanálise com a sexualidade. Para Breuer, é uma mu­
lher nervosa que se queixa de seu próprio marido; para Charcot, a
mulher de um marido impotente que dá ocasião ao seu tonitroante
hino à Coisa genital; é ainda a mulher de um homem impotente que
fornece oportunidade a Chrobak de enunciar sua panacéia. É como
se, fatalmente, a Coisa manifestasse sua potência através desse déficit
do gozo feminino. Se é um homem que, a cada vez, diz a Coisa, é
uma mulher que a mostra.
A histérica tem essa função particular de forçar a admitir a existência
da Coisa. Mas ela só a atesta na medida em que encarna o s�ntoma
vivo desta. Não nos apressemos ell! falar de frustração, ainda que seja
realmente, nos três casos, a imagem da mulher frustrada que dá motivos
para que se enuncie a pertinência da Coisa genital. É preciso ainda
que se interprete essa ligação de modo radical: como se dá que seja
precisamente na figura da falta que o clarão da Coisa se manifeste da
maneira mais imperativa?
Deve-se pensar aí num ligação determinante entre a mulher e a
Coisa: é porque uma falta que a outra deve ser dita. Foi nesse sentido
que a histérica pôs Freud na pista da Coisa, fornecendo-lhe o avesso
desta. O que nos vai interessar, em nosso propósito específico da
inteligibilidade da Coisa sexual, é o fato de que ela não possa ser
vista, ou pelo menos não deva ser vista eletivamente, a não ser pela
falta da mulher, no sentido em que se fala de um " ponto de vista" a
partir do qual algo se torna perceptível. A falta da mulher histérica,
nesse sentido, leva à Coisa sexual, tal como procuramos pensá-la: ela
oferece, de alguma forma, uma " visão garantida" 19 desta.

li. METAPSICOLOGIA DA COISA SEXUAL

Nossa genealogia da Coisa trouxe-nos até o ponto em que esta se


tornou incontornável. Vê-se que não se trata de um pré-julgamento
adquirido desde o início: é a genealogia acoplada da psicanálise e da
a Coisa 111

Coisa Sexual que revela como elas foram votadas uma à outra. Convém
agora compreender o que a psicanálise, em seu princípio mesmo, pode
dizer da Coisa sexual, em outras palavras, como ela exerce o ser
sexual que lhe passa a ser reconhecido.
Isso remete igualmente a uma outra espécie de relato, aquele da
relação do sujeito com a Coisa sexual que o inconsciente serve para
designar. Vamos organizá-lo a partir de um tipo de fenomenologia ­
como a Coisa aparece para um sujeito ou como ele aparece através
da Coisa -, o que vai desembocar numa verdadeira lógica da Coisa
atuando no inconsciente, em sua escansão singular. Dessa maneira, o
que vamos propor é uma demarcação do rastro metapsicológico da
Coisa sexual no inconsciente.

1. O afeto da Coisa: o Unheimliche

Que deve, pois, ocorrer quando o sujeito se encontra " em face" da


Coisa? Algo de muito particular, certamente, pois ele deve ao mesmo
tempo reconhecê-la e, sempre de novo, ignorá-la. É algo como a
perplexidade do poeta: " quem é essa desconhecida que conheço tão
bem?" A outra, pois, na sua coisidade opaca, mas que é infalivelmente
dada a ver. Freud tentou nomear essa mistura geradora de percepção
tão precisa e de alteridade pelo termo Unheimliche. A " inquietante
estranheza" é mesmo, efetivamente, algo como o Isto da Coisa,
apresentada-recusada ao sujeito. Aquilo que ele " sente" , em suma,
quando a Coisa está lá.
Essa é, igualmente, a causa da angústia. Desse modo, ele nos
fornece a mais preciosa fenomenologia da coisa, para uma consciência
justamente dividida. O próprio Freud, no momento de evocá-la,
desculpa-se por não ter encontrado antes a Coisa: ao menos, ele pode
" evocá-la em pensamento" , " despertá-la nele como a eventualidade"
( " Die Moglichkeit desselben in sich wachrufen" ) . 20 Para falar da
Coisa, deve-se pois estar pronto a despertar sua impressão (Eindruck).
Tal nos parece ser o sentido último desse texto: captar a marca da
Coisa e nomeá-la, Unheimliche. Essa também é a ocasião, para nós,
de " aprender a conhecê-la" .
Igualmente, vamos compreender por que o Unheimliche está tão
próximo do Heimliche: a invocação da Coisa opera-se nessa mistura
indecantável de familiaridade e estranheza. Como se o sujeito dissesse
a si mesmo que, ao se aproximar da Coisa, ele está realmente " em
1 12 os elementos

casa" - " Ela também é eu" -, mas é também o outro do Eu. A


Coisa é realmente da ordem do doméstico, do animal capturado, em
suma, do Heimlichkeit, mas também da ordem do segredo e da
discrição, em suma, do escondido e do perigoso. Freud nos fornece
seu esquema21 na imagem de um ser do qual não se sabe se é vivo
ou inanimado.
Isso deve ser entendido de modo radical: o de um sujeito que se
pergunta de que maneira essa Coisa vai animar-se para o seu próprio
desejo. É como se o desejo hesitasse diante da Coisa: qual de nós
dois vai animar o outro em primeiro lugar? Nesse jogo tragicômico,
a repetição desempenha um papel decisivo. Freud assinala-nos que a
repetição de um objeto ou signo qualquer22 é necessariamente geradora
de Unheimliche. É que o sujeito vê na reiteração de qualquer coisa
uma irresistível alusão à Coisa. O que insiste é Ela ...
Em suma, o Unheimliche sinaliza claramente o retorno da Coisa.
Mais ainda, oue o " retorno do recalcado" é o retorno do que deveria
ter permanecido recalcado e que, no entanto, se mostra, ou seja, a
coisa sexual. É realmente ali que está a Coisa: a " íntima da casa"
(das Heimliche-Heimische), a Heimat do sujeito com relação à qual,
porém, o sujeito fica necessariamente deslocado. Um pouco como o
hóspede com quem se esbarraria a toda hora, perguntando-nos quem
poderia ser ele. Que a íntima da casa seja, assim, a louca da casa, eis
o drama, de alguma forma, crônico das relações do sujeito com a
Coisa.
Sabemos agora, também, quando a Coisa se mostra: é também,
paradoxalmente, quando ela se esquiva. Isso é mais precisamente visto
do lado do sujeito, no momento em que este dá um passo em direção
à Coisa que é, ao mesmo tempo, um passo atrás: " A inquietante
estranheza do vivido (Erlebens) nasce quando os complexos infantis
recalcados são reanimados por uma i mpressão (Eindruck), ou quando
as convicções primitivas superadas (überwundene) parecem confir­
madas novamente." 23 Passagem capital, que mostra que a Coisa só se
mostra por meio de um balé estranho do sujeito.
Quando o sujeito acredita ver mais materialmente a Coisa, é .que
uma impressão externa o faz pensar, literalmente, em seu recalcado;
ou é porque ele se liga de novo a uma crença supostamente ultrapas­
sada. Isso se inscreve, portanto, como uma concessão: " Então, isso
talvez fosse mesmo verdade." A Coisa parece mostrar-se quando o
sujeito re-pensa (em) seu recalcado. Dispomos aí de todos os ingre­
dientes da nossa mecânica " transcendental" para uso do inconsciente;
a Coisa 1 13

tanto é que Freud, aí, fala como kantiano: a intuição sensível -


Eindruck desencadeando -, o " númeno" , isto é, o objeto do recalque,
enfim, a Ding an sich.
Mas vê-se também que a Cois11- se apresenta como a realidade
material que vela o logro do sujeito: o sujeito acredita ver a Coisa
em carne e osso, simultaneámente mascarada, mas só faz lembrar-se
de seu recalcado. Dessa maneira ele recai na órbita de uma crença
ultrapassada: a Coisa, então, era mesmo verdadeira! É essa vertigem
que assinala o Unheimliche, o " piscar de olhos" aterrorizante da Coisa
ao sujeito que ela abraça.

2. O odor do recalcado

O que o Unheimliche nos permitiu observar foi, falando propriamente,


o odor da Coisa. Não é por acaso que Freud, desde a origem - desde
sua primeira nomeação da Coisa no inconsciente - deu importância
a um modelo olfativo do recalque. A caracterização radical do ato do
recalque como ato de " manter a distância" teria sido imposta a Freud
pelos próprios neuróticos, sendo estes grandes farejadores.24 Ele
adivinha, desde então, que aquilo de que o neurótico se afasta tão
voluptuosamente é a Coisa outrora amada: " Para nos exprimirmos
mais cruamente, a lembrança exala agora o mesmo fedor de um objeto
atual." 25 A ponto de se perguntar se " a atrofia do olfato no homem,
consecutiva a sua postura ereta, e o recalcamento orgânico do prazer
daí resultante não desempenhariam um papel importante na faculdade
do homem em adquirir neuroses" .26
O que evoca essa imagem, quase demasiado realista, é esse ato
fundamental de afastamento da coisa pelo qual se organiza o psiquismo
inconsciente. Mas, se é fácil desviar-se da Coisa, seu odor permanece,
questionando o sujeito quanto a sua perplexidade. Pois o odor é uma
" qualidade secundária" , implicando estritamente o sujeito que cheira
e o_ objeto cheirado numa comunhão tal que o odor insistente da Coisa
se confunde com a afecção do sujeito. Assim, nada é mais real que
um odor, mas também nada é tão subjetivo. É uma questão de saber
o que respira o sujeito: os miasmas da Coisa ou o perfume do seu
desejo. Assim, Freud defendeu incessantemente a causa do recal­
cado e o trabalho da instância recalcadora27 - como para encontrar
a divisão entre os poderes da Coisa sexual e as potências do sujeito.
1 14 os elementos

3. Lógica da Coisa. Tempo 1: a representação

Remetemo-nos, assim, ao destino da Coisa no sujeito. Ora, a moda­


lidade segundo a qual a Coisa atinge um sujeito é a representação.
Isso supõe que a Coisa faça traço e se recolha a uma forma
representacional específica que Freud nomeia, com um realismo
fundamentado: Objektvorstellung, Dingvorstellung. Esta consiste num
" investimento, senão de imagens mnésicas diretas da Coisa, ao menos
de traços mnésicos mais ou menos distanciados, derivados destas" .28
A elaboração metapsicológica ulterior vai exprimi-lo sem rodeios: a ·

representação inconsciente é a " representação da coisa só" .


Toca-se aí, como se sabe, numa das discussões mais " escolásticas"
às quais a metapsicologia deu lugar. O mais desconcertante dessa
concepção é que a " coisa" seja evocada como uma mosca na sopa...
da psique. Que faz a Ding nessa história de psique? Seria de se
desconfiar, mesmo, que ela esteja sobrando aí, se justamente Freud
não definisse com insistência o inconsciente... pela própria Coisa.
Nossa mitografia da Coisa pode permitir-nos ver claramente aí, a
partir dessa consideração de que a metapsicologia não é mais que o
relato da Coisa. Do mesmo modo, Freud assinala claramente, na
ocasião, que aquilo que os filósofos chamam de " Ding an sich" (coisa
em si) é o que Cle chama de " inconsciente" .29 Mas isso deve ser lido
ao contrário: o inconsciente é o " objeto metapsicológico" mesmo.
Foi para dizer a coisa calada ou denegada pelas " autoridades" que
Freud instituiu a metapsicologia.
Nesse sentido, a coisa está presente com,o a própria " base" da
metapsicologia, a título de correlato objetai da representação. Deve-se
destacar uma curta passagem do Projeto para uma psicologia científica
em que a Coisa é posicionada com tal indeterminação precisa que
induz um afeto de Unheimliche: " O complexo de outrem divide-se,
pois, em duas partes, uma dando uma impressão de estrutura perma­
nente e permanecendo unido como uma coisa, ao passo que a outra
pode ser compreendida graças a uma atividade mnemônica, isto é,
atribuída a um aviso que o próprio corpo do sujeito faz chegar a
ele." 30 Logo, é sobre o fundo da invariante da Coisa que se destaca
a subjetividade, tomada aqui na sua massa corporal.
Mas a Coisa é também aquilo que a representação encontra diante
de si como sua própria coisidade, a res representativa. Isso quer dizer
que a Coisa não é o exterior da representação: é a sua própria
materialidade. É da Coisa que a representação é re-presentação. Não
a Coisa 1 15

poderíamos ter conhecimento de outra representação da coisidade se


não existisse um outro destino representativo, o das palavras ( Wort­
vorstellung). Logo, a palavra é a verdadeira alteridade da Coisa no
interior da representação. A dualidade do inconsciente e do consciente,
mais inteligível para nós, só se identifica em Freud por essa escansão
da representação: a Coisa, depois a Palavra.31
O inconsciente é, pois, o representado puro e simples: vamos
entender que o inconsciente é um pensamento puro da Coisa. É a isso
que se apega o consciente, como registro das representações de p alavra.

4. Lógica da Coisa. Tempo 1/: o (des)julgamento

Correlato da representação, a Coisa também é o móbil de um


julgamento, por onde progredimos na elucidação de sua lógica.32 Ora,
eis a notável constatação: a Coisa se mostra no des-julgamento
( Verurteilung). Eis, com efeito, o cúmulo por onde se verifica a
singularidade de sua lógica: longe de ser dada, como sua natureza
parece comportar, a Coisa nada mais é que o desjulgado.
Ainda aí, a denegação só nos vai interessar na medida em que se
apreende ao vivo como o sujeito se refere à sua Coisa. Perseguindo
a Coisa para saber o que ela quer do sujeito, vamos perguntar-nos,
então, como é que ela " cai" no julgamento para lhe imprimir essa
prodigiosa sacudidela que o faz desviar-se. Como é possível, com
efeito, que o sujeito da denegação possa designar a coisa, a materia­
lidade mesma de seu recalcado, sem pagar o preço do recalque? Como
p�de ele, assim, dizer a Coisa mantendo-se ao mesmo tempo a distância
- de sorte que do julgamento tipo: "O senhor agora vai pensar que
eu quero dizer algo de ofensivo, mas essa não é realmente a minha
intenção" ,33 se possa deduzir que esse " algo" (etwas) é mesmo o
objeto real da " intenção" ?
Freud, aqui, é forçado à lógica, quase escolástica, sob a pressão
da Coisa. Vamos compreender que ele não supõ�, a priori, que a
Coisa seja sexual, mas é justamente por ela insistir no sujeito em se
dizer tão inocentemente que impõe supor à Coisa, no sujeito, um
·

querer-se-dizer.
Vamos tentar, então, surpreender esse trabalho da Coisa em
flagrante delito. Inicialmente, temos que lidar de preferência com o
conteúdo (lnhalt) do julgamento, uma vez que " é a função da função
intelectual de julgamento afirmar ou negar os conteúdos do pensa-
1 16 os elementos

mento" (Gedankeninhalte). Conseqüência: " Denegar alguma coisa


(etwas) no julgamento significa, no fundo: esta é alguma coisa que
eu deveria ter recalcado." A emergência do condicional sinaliza a
aproximação da Coisa: ela manifesta, de fato, algo que deveria ter
permanecido oculto. Bela definição da Coisa: aquilo que não deveria
ter sido pensado, mas que no entanto está lá.34
A tarefa do julgamento é, pois, no fundo, lidar com a Coisa, virar-se
com ela. Quando Freud enumera as funções do julgamento, que
ninguém se engane: são os destinos da Coisa, isto é, do des-julgado,
que ele tenta situar. De fato, podem-se ler suas fórmulas nesse sentido:
a uma coisa (Ding), a função de julgamento pode atribuir ou recusar
uma propriedade (Eigenschaft), essa " propriedade podendo, original­
mente, ter sido boa ou má, útil ou nociva" . Essa relação primitiva
entre o dentro e o fora é, de alguma forma, o balé primitivo da Coisa,
a ser engolida como boa ou expulsa como má. Toda a dialética do
Eu-prazer e do Eu-realidade não é mais que o relato daquilo que
acontece ao Eu para viver sua relação bipolar com a Coisa. Com
efeito, este é o problema do Eu: " saber se algo percebido (uma coisa)
deve ou não ser admitido" em si mesmo.
O esforço se concretizará quando o sujeito puder passar à segunda
função de julgamento, a que incide sobre " a existência real de uma
coisa representada" (vorstellten Dinges). O Eu vai poder então
perguntar-se se o · que se passa nele como " representação" · pode ser
reencontrado na percepção (realidade). Passou-se, assim, do mundo
da Coisa (a conservar ou a expulsar) ao mundo menos arcaico das
coisas e das representações, no qual o sujeito pode doravante viver.
Afinal de contas, a denegação é ao mesmo tempo a modalidade
segundo a qual a Coisa se faz admitir, imperativamente, e a maneira
pela qual o julgamento, por meio do " simbolo" , retira seu poder. Em
suma, a denegação deve seu fascínio último ao fato de se ver, aí, o
Eu atuar na Coisa - atuação cômica e trágica ao mesmo tempo.
Cômica, na medida em que o sujeito aí demonstra sua desenvoltura
com relação à Coisa que tem mais perto de si, trágica também pelo
fato de a Coisa mostrar sua potência: ela pode estar no coração do
Eu e reinar à revelia deste.
Ora, não terá sido por uma magistral denegação que se significou
a Freud a potência da Coisa a pensar, a de seus três Mestres cegos?
Há razão em se suspeitar de que, experimentando a potência da Coisa
no inconsciente dos homens, pela denegação, Freud pôde fundamentar
as razões por que ela só poderia entrar no próprio saber analítico por
a Coisa 1 17

uma denegação. E tal é, de fato, o estatuto da sexualidade no


inconsciente: aquilo pelo que o sujeito é condenado a se desmentir.
Não é por mal-entendido que a sexualidade no homem pode se dizer
tão mal; acabamos de ver que ela se diz infalivelmente: é somente
pela denegação que o sujeito pode iniciar seu comércio com a Coisa
sexual.
Essa é também a ocasião privilegiada de apreender o " descolamen­
to" do sujeito a partir da Coisa. Freud é formal: " Em análise, não se
descobre um 'não' vindo do inconsciente." A Coisa, em outras
palavras, não diz " não" . Tampouco é um " sim" , apesar de sua
positividade maciça, uma vez que ela escapa a uma lógica da
contradição. Mas eis o mais notável: é por sua pressão que ela leva
o sujeito a se " desjulgar" . É nesse ponto preciso que, destacando-se
da Coisa, ele emerge: " O reconhecimento do inconsciente, por parte '
do Eu (von Seiten des lchs), se exprime numa forma negativa." Eis
aí, realmente, a grandeza e a derrisão do sujeito do inconsciente: o
tempo de " reconhecer" a Coisa e de (de)negá-la, ei-lo que emerge.
O " Eu" , com efeito, é aquele que diz que não é a Coisa. Igualmente,
essa " instância" é um evento da própria Coisa. O sujeito está doravante
condenado a ser a (de)negação da Coisa. Indicamos dessa maneira
uma genealogia do sujeito a partir da Coisa sexual: é essa própria
coisa, afetada por uma negação singular.
Vê-se que a Verneinung fornece, de certa forma, uma lógica
simétrica da Urszene: haverá tantos " sujeitos" inconscientes quantas
forem as formas determinadas de (de)negações da Coisa. Quantas
vezes a Coisa for denegada - isto é, reconhecida/desconhecida,
segundo a modalidade evocada acima -, tantas vezes um sujeito cairá
na órbita de seu próprio desejo. A Coisa sexual é assim, ao mesmo
tempo, a exterioridade de um desejo singular e sua reserva inesgotável.
É na energia da Coisa sexual que cada " filho dos homens" colhe a
força para denegá-la, a fim de advir à sua própria divisão.

5. Lógica da C�isa. Tempo Ill: a função Ver- ou o


(des)raciocínio

Tudo se passa, finalmente, como se a lógica da Coisa que se nomeia


inconsciente se comprazesse em refletir ao avesso a lógica consciente:
depois do momento da representação e daquele do julgamento,
chega-se a uma teoria do raciocínio. Ora, é um fato que aqui lo que
1 18 os elementos

Freud descreve o mais rigorosa e clinicamente, sob o termo de


processos inconscientes, nada mais é que uma ratío - o que ele
chama, de boa vontade, " série de pensamentos inconscientes" , e que
não é senão aquilo que um sujeito articula sobre a Coisa, o que ele
pensa dela. A Coisa sexual constitui-se para tal sujeito como o correlato
de uma cadeia de julgamentos ininterrupta da qual ele é, de certa
forma, a costura: em suma, aquilo que o pensa.
A denegação introduziu-nos a uma função geral segundo a qual o
sujeito se refere à sua Coisa, ou sej a, o des-julgamento ( Verurteílen).
Mas, precisamente, parece que só se pode dar, da Verurteilung, uma
definição diferencial, pela oposição recíproca dos atos nos quais ela
se exerce. Aí surge uma verdadeira lógica que vai nos interessar pelo
que revela das modalidades precisas pelas quais a coisa é sistemati­
camente " distorcida" ... A idéia de des-julgamento sugere precisamente
essa união paradoxal entre disfunção ( Ver-) e lógica.
Ora, sabe-se que a Verurteílung >. se ordena, em Freud, segundo
quatro dimensões: Verdriingung, Verneinung, Verleugnung, Verwer­
fung. O que vai nos interessar é o que aí se articula da lógica da
Coisa, ou seja, como ela intervém, respectivamente, como recalcada,
renegada35 ou " rejeitada" .36 Isso significa que é a cada vez sob uma
modalidade singular de des-julgamento que a Coisa é notificada ao
sujeito (e não numa função que seria universal), e que é possível,
todavia, captar uma espécie de " isomorfismo" : como se se mantivesse
ali o estilo genérico segundo o qual a Coisa é des-julgada no_
inconsciente, a cada vez do mesmo jeito e a cada vez de outra maneira.
É só tentar ordenar esses atos segundo sua lógica genérica e Jogo se
vê perfilar a coisa, através da elaboração que dela faz o sujeito.
A questão, no fundo, é elementar: quais são os objetos respectivos
desses " atos" , sobre os quais se exerce, falando propriamente, o
des-julgamento? Ao se formular essa questão, vê-se emergir, como
num tumulto regrado, as diversas instâncias de objetalidade evocadas
acima.37 Que está, com efeito, submetido ao recalque? São as repre­
sentações-pensamento"s, imagens, lembranças, ligadas a uma pulsão,
no objetivo de evitar o desprazer. O que está submetido à " renegação" ?
É a realidade exterior, a percepção de um fato - a existência do
pênis e, por extensão, a castração, como explicação da ausência da
existêncià do falo. É realmente a própria castração que é o objeto da
" foraclusão" , sem que isso implique um julgamento sobre a realidade
desta - compromisso fascinante entre a abominação da Coisa e seu
a Cotsa 1 19

deixar-estar. É , enfim, o próprio conteúdo do recalcado que é o objeto


da denegação, na medida em que ele é simultaneamente admitido e
mantido a distância.
A Coisa sexual é de alguma forma o correlato objetai de cada uma
dessas instâncias: mas ela revela precisamente sua natureza resistindo
a toda unificação. O exemplo mais edificante é o da diferença de
objeto entre renegação e recalque: " Se quisermos separar nele (o
recalque) mais nitidamente o destino da representação daquele do
afeto, e reservar a expressão 'recalque' para o afeto, para o destino·
da representação seria justo dizer em alemão Verleugnung" (renega­
ção).38 Fórmula estranha, já que Freud sempre afirmou que o afeto
não era submetido ao recalque, idéia que acabava de reafirmar.39
Prestando-se atenção ao contexto, vai-se observar que Freud con­
sidera aqui o recalque como um gênero que englobaria a renegação
como espécie - ao passo que, em outros contextos, ele considerava
cada um dos atos em si mesmo. Ele sugere então que, ampliando-se
o processo de " rejeição" , pode-se distinguir no interior do destino
global o destino do afeto, que se desenvolveria pelo lado do recalque
stricto sensu (forma 1), e o destino da representação, que agiria
seletivamente pelo lado da renegação. Recalcar seria, assim, manter
afastado o conteúdo do afeto exercido do lado da expressão qualitativa
da energia pulsional liberada, tendo como efeito expulsar a tonalidade
desagradável da representação. A renegação, em contrapartida, se
desinteressaria, por assim dizer, do afeto: ela visaria a repre­
sentatividade da representação, e nisso seria um recalque puro, sem
afeto.
Essa contradição de vocabulário, que não prejudica o rigor freu­
diano, deveria buscar-se do lado de uma teorià das afecções da coisa
sobre o inconsciente: seja como representação, seja como afeto, é, a
cada vez, a Coisa que se imprime sobre o sujeito, curvando-o num
lugar a cada vez defasado. O que Freud, pois, iria descrever em termos
diferentes seria um mesmo processo, pelo qual o sujeito se curva, em
afeto e representaÇão, sob a pressão da Coisa. O dualismo dos registros
" representacional" e " afetivo" seria apenas a expressão da dualida­
de de efeitos da coisa sexual" sobre o sujeito. Isso vale para a dualidade
da representação e da realidade, que serve a Freud para exprimir,
conforme as necessidades da explicação metapsicológica, o momento
do " sujeito" e o momento da " coisa" , no seio de um processo em si
mesmo insecável.
1 20 os elementos

Essa travessia da função Ver- contém um último ensinamento para


a inteligibilidade da Coisa: esse tema em tomo do qual o inconsciente
gravita sem cessar, do " fundo da Coisa" , vamos descobri-lo finalmente
sob a figura da falta. Dizer que a castração é o texto principal do
inconsciente equivale a dizer que o sujeito se explica sem cessar com
uma perda, e só pode aceder à coisa sexual por essa experiência
carencial. Compreende-se a amarga ironia de Freud, constatando que
o artigo mais patente da experiência analítica é também o mais
renegado. Isso deve ser interpretado como a constatação de que a
coisa se iguala à falta! É essa falta que fornece à atividade intensa
de des-julgamento sua energia secreta.
·

Compreende-se por que essa coisa sexual que a psicanálise maneja


é tão pouco tangível, em contraste com o " fato sexual" manejado por
um discurso completamente diferente. É dessa maneira, justamente,
que ela se singulariza de modo absoluto: recolher o resíduo de um
texto que não cessa de se reposicionar com relação a uma falta. Mas
isso, o inconsciente " faz" com o rigor de uma lógica do (des)
julgamento !
A dupla genealogia precedente vai permitir-nos situar com precisão
o saber propriamente analítico da coisa sexual com relação a seu
próprio objeto - que gênero de saber pode ele produzir como aquilo
que lhe é imposto por sua coisa? - e com relação aos outros discursos,
que parecem visar a mesma coisa (e no entanto falam de " outra
coisa" ).

III. A EPISTEME DA COISA

1. A arte da alusão: o exemplo como coisa

O modelo que temos para pensar é elementar em seu principiO e


complexo em seus efeitos: deve-se finalmente pensar que o sujeito
que fala, no inconsciente, é inteiramente estruturado em alusão à
Coisa. Com efeito, ele deve dizer a Coisa, mas não a pode nomear.
Sob essa forma do frescor da coisa e do véu da alusão, podemos
de fato redescobrir o móbil mais ingênuo de um saber do inconsciente.
A dificuldade começa naturalmente a partir do momento em que se
tem que determinar que gênero de alusividade muito específica " liga"
o sujeito com a Coisa sexual. A alusão é, com efeito, o dizer velado
da Coisa: como se uma metade da Coisa fosse dita e a outra, calada.
a Coisa 121

É bem assim, em suma, que o bom senso libertino concebe a


sexualidade: é por isso que ele não cessa de brincar com ela. Que se
diga a Coisa de uma vez por todas, e não haveria mais razão para
.brincar nem para rir dela. Mas justamente aquilo de que o bom senso
não poderia dar conta é o fato de que não se pode dizê-la uma única
vez, que seria " a boa" .
É verdade que o inconsciente é, por inteiro, alusão à Coisa, sexual:
mas justamente quando o inconsciente fala da Coisa, não é " pela
metade" . Ela é evocada por inteiro. Freud fornece um princípio
fundamental quando sublinha que " o exemplo é a própria Coisa" .40
O que equivale a dizer que a alusão em questão não é uma parte da
Coisa, é a Coisa mesma. Impossível, pois, tirar da Coisa um extrato
que ilustraria sua generalidade. É fato, aliás, que se nomeia facilmente
a Coisa acreditando dar um exemplo dela. Mas, no que concerne ao
inconsciente, é a toda hora que ele nomeia a Coisa. A Traumdeutung,
a Psicopatologia da vida cotidiana e Os chistes detalham suas
estratégias.
Não é por acaso que Freud evoca esse princípio em duas ocasiões
simétricas: a propósito do sintoma obsessivo e por ocasião do delírio
paranóico,41 E que o obsessivo é um campeão da metáfora: ele não
cessa de falar da Coisa, fingindo estar alhures. É uma vantagem para
o analista: basta tomá-lo ao pé da letra, substituir a generalidade por
seu exemplo, traduzir o universal no singular, e se vai entender o que
foi emitido a título de " exemplo de" , como a própria voz da Coisa.
No paranóico, a coisa é encenada no real do delírio. E com razão:
a " coisa" do paranóico é uma interpretação em ato. A Coisa é
mostrada, lançada no rosto do interpretador como a própria Coisa:
mas ainda é preciso um interpretador para aceitar tomá-la plenamente,
isto é, repetir o conteúdo do delírio como o que está em jogo para o
desejo do sujeito.
Quer se apresente como exemplo de si mesma, ou como ilustração
de si mesma, a Coisa é seu próprio exemplar. O que se deve fazer,
pois, é tudo, menos desmascará-la: frente à Coisa, o que se requer é
o contrário de uma " suspeita" , ou seja, de alguma forma, a crença
na coisa do sujeito.
Existe mesmo, de certa forma, " alusão" ; mas, em suma, ela acerta
na mosca a toda hora. Mas, então, se a Coisa não se vela, falando
propriamente, como é que ela se elude? Deve-se supor, realmente,
que é o próprio sujeito que dela se exclui. Este é mesmo o cúmulo,
que se deve, por fim, enunciar aqui: o inconsciente tratado pela análise
é um sujeito que falta ao encontro com a Coisa, mas que não cessa
1 22 os elementos

de faltar lá - o que supõe " fingir" ir até lá. É nesse sentido mesmo
que a Coisa é faltosa para um sujeito, sempre, sempre, sempre . . .
Apenas, por u m movimento contrastado, é também o psicanalista
que deve manter-se suficientemente a distância do inconsciente para
não fazer dele uma causa em si, para se desprender da superstição do
" misterioso inconsciente" .42 Deve recolher deste, exclusivamente, os
efeitos de fenômeno e ordenar aí o seu próprio saber. Em outras
palavras, os fatos inconscientes não são coisas.
No plano da episteme, é sempre a Coisa que se deve descoser -
para nela discernir a rede das relações -, ao passo que, na clínica,
é sempre com a Coisa que se deve brigar! É isso o que é conotado
pela ironia com a qual Freud maneja seu objeto: essa matéria-prima
de sua experiência e de seu saber jamais desemboca numa mística do
Inconsciente ou da Sexualidade.43
É por isso que a coisa sexual não é aquilo sobre o que a psicanálise
pode repousar: antes, é isso que a faz trabalhar e o que ela deve
trabalhar em retomo. É isso que demarca o freudismo do que se vê
com freqüência, a distância, a saber, uma Weltanschauung sexualista44

2. A ilusão sexológica

Isso permite-nos compreender o mal-entendido necessário de Freud,


promotor de um discurso sobre a coisa sexual, com o outro discurso
que parece atrelar-se a ele, a sexologia. Pois, no fundo, não falam
ambos da mesma coisa? Como se deve, a partir de então, interpretar
essa relação faltosa entre as duas abordagens, desde a origem?
É fato que Freud tem os sexólogos de seu tempo " em má estima"45.
É fato, sobretudo, que os sexólogos parecem, na sua opinião, prejudicar
a psicanálise, a ponto de merecerem um " processo de difamação" .46
O que é, então, ininteligível a Havelock Ellis ou a Moll naquilo que
a psicanálise diz sobre a sexualidade, quando eles são supostos falar
da mesma coisa, sexual? A resposta se impõe: o olhar do sexólogo
não vê tudo o que, da sexualidade, não é redutível à função sexual.
E é um fato que tudo isso parece " fora do tema" , a partir do momento
em que a sexuàlidade fica reduzida à função sexual.
A partir daí o que Charcot, Breuer e Chrobak murmuravam, os
sexólogos gritam, como um slogan, e cantam, como um hino. Eles
bradam alto e forte que " a coisa genital" é o nec plus· ultra
antropológico. Mas o mais notável é que isso, justamente, não é
problemático: isso não gera perplexidade nem questionamento. Tra-
a Coisa 1 23

ta-se apenas de desenvolver a função sexual, de expor seu modo de


produção. Dessa vez, existe decerto a crença na Coisa, e a sexologia
é a sua liturgia. Mas essa Coisa, se ela recruta agentes para exercer
sua função, faltam-lhe sujeitos: é por isso que a cena primitiva falta
aí, assim como a gramática inconsciente pela qual o sujeito se arti­
cula à sexualidade. É por isso também que a sexualidade infantil é o
que permanece mais radicalmente enigmático aos defensores da
sexologia.
Aí está, com efeito, o nó da questão: a sexologia não precisa de
outra coisa além da Coisa sexual, definida ela mesma como função
(funcionante ou disfuncionante): ela faz a economia do que seria da
ordem da falta ou da linguagem. Isso tem por efeito, muito bem
captado por Freud, o fato de a psicanálise ser demais para a sexologia.
Ela deveria ou bem ser absorvida por esta, detalhando suas funções
com certo " suplemento de alma" psicológico, ou bem desempenhar
o papel de um vasto resíduo. É que a psicanálise se ocupa de tudo
aquilo que implica a Coisa sexual, sem se reduzir à sua função.
A coisificação da sexualidade pela sexologia contrasta precisamente
com o pensamento analítico da coisa sexual, consecutivo à introdução
da dimensão infantil. Em parte alguma Freud o exprimiu melhor do
que quando ele se pergunta se tem realmente o direito de se obstinar
em " chamar de sexualidade essas manifestações da infância" que ele
próprio considera " como indefiníveis, e que só mais tarde se tomam
sexuais" .47 Aí está, pode-se dizer, a ·singular questão que inaugura o
questionamento analítico da sexualidade, e que a sexologia não saberia
nem mesmo conceber. É que, no fundo, a sexualidade dita infantil
tem por efeito embaralhar a identificação do " fato sexual" , muito
mais que ampliá-la. Se Freud argumenta sutilmente quanto à neces­
sidade de postular na própria origem do processo as características
presentes no final, é para situar a sexualidade no processo mesmo,
nessa tensão do " prazer de órgão" originário da genitalidade. É a
repetição da origem que notifica o caráter sexual do processo:
compreender como a coisa insiste em se notificar como o destino do
processo.

3. A Coisa-pretexto
Não é "o menor paradoxo da nossa genealogia poder formular, à guisa
de conclusão, que em suma a Coisa é inocente. Vamos entender que
o essencial daquilo que aí se passa é deslanchado pelo sujeito,
1 24 os elementos

petrificado como está na sua crença. Desjulgada, renegada, " desarra­


zoada" , a Coisa sexual é requerida como pretexto pelo sujeito para
aí organizar sua divisão. É o que não pode ser simbolizado de sua
coisa que constitui o sujeito como sintoma. Pretexto no sentido forte
e literal, na medida em que introduz ao texto e dá lugar para se
falar48• Mas para isso se deve pensar que o sujeito deve crer,
necessariamente, na Coisa, hipostasiá-la para encontrar uma causa
para seu desejo. Não se pode dizer ilusória essa causa, j á que é a
própria substância do desejo. Logo, se a Coisa é " inocente" , ela deve
também ser a ocasião - no sentido mais forte do termo - para o
sujeito, de atuar sua relação com a falta. Por onde o registro da culpa
introduz-se necessariamente.
Isso não quer dizer que o sujeito se sinta culpado da Coisa sexual
a ponto de que se possa curá-lo dela. Antes, ele não pode relacionar-se
com a Coisa sexual sem se colocar a questão da infração como
constituinte de seu próprio desejo. Pode-se compreender desse modo
que a sexualidade é uma coisa inteiramente distinta do conteúdo do
inconsciente - caso em que seria legítimo interrogar-se quanto ao
arbitrário da limitação a este conteúdo em particular. Ela é, em vez
disso, o lugar onde ele deve incessantemente reexperimentar sua
relação com o Outro e com o seu desejo. É a isso que a psicanálise
o remete obstinadamente, a ponto de parecer fazer da sexualidade
uma Causa - entendida como aquilo pelo que militamos e a que
filiamos nosso ideal. É que ela se apega a isso, tanto quanto o sujeito
do inconsciente, com a ressalva de que ele mesmo não pode confessá-Ia
como causa de seu desejo. Daí, a psicanálise deve reintroduzi-lo
sempre, sempre, sempre. ..

NOTAS AO CAPÍTULO V

1 . Designamos por esse termo, simplesmente, o próprio conteúdo da " inten­


ciol)alidade" psicanalítica (a " noese" analítica), isto é, aquilo que é " visado" por
esta, sem referência à legitimidade filosófica que seria implicada por este
vocabulário fenomenológico.
a Coisa 1 25

2. A Joseph Wortis, evocando incessantemente o bom senso contra as teorias


psicanalíticas. Freud lembrava, saborosamente, que a psicanálise deveria depois
curar as doenças causadas pelo bom senso.
3. Ver as adjurações de Freud a Jung no sentido de não abandonar a libido e
a afirmação desta como artigo obrigatório da psicanálise.
4. Cf. o Vocabulaire technique et critique de la philosophie, 1 926, Alcan, vol.
I, artigo " Chose" , B, p. l 07. Trata-se da definição da noção conforme sua dimensão
de teoria do conhecimento, inspirada por Kant.
5. Cf. a crítica de Schelling, prefácio à Fenomenologia do espírito.
6. GW X, p.Sl (seção 1).
7. GW XIV, p.48.
8. Tal poderia ser o fundamento real do Sapere aude freudiano.
9. Remetemos às instâncias mitológicas da racionalidade freudiana cuja
genealogia tentamos traçar em L 'entendement freudien. Logos et Ananke, Galli­
mard, "Connaissance de l 'inconscient" , 1984.
1 0. GW XIV, p.48-9.
1 1 . GW XIV, p.59-60.
1 2. Explicitemos, para evitar qualquer ambigüidade, que designamos -dessa
maneira a fala de Freud, não como ficção, mas como a área de subjetividade sobre
a qual se reflete a verdade que ele revela.
1 3 . Cf. carta a Fliess de setembro de 1 897.
14. GW X, p.55.
1 5. Ele confessa, com efeito, ter pensado em renunciar totalmente à psicanálise,
confissão que se deve levar pelo menos parcialmente a sério, pois ela expressa
realmente uma situação-limite.
1 6. Isso é o mesmo que apostar que o interlocutor deve saber também o que
está em jogo.
17. De acordo com esse princípio, uma mesma propriedade e seu contrário
não podem ser atribuídos ao mesmo tempo a um mesmo sujeito e sob o mesmo
ponto de vista.
1 8. Cf. a Metafísica do " Querer-viver" e a insistência sobre a sexualidade
como aquilo pelo que a individualidade é lograda pelo " Querer-viver" .
1 9. Procuramos registrá-lo na medida exata em Freud e a mulher, Rio de
Janeiro, Jorge Zahar, 1993.
20. GW XII, p.330.
2 1 . Ou seja, o que faz a mediação, em Kant, entre o conceito puro do
entendimento e a experii!ncia.
22. Por exemplo, o número " 62" !
23. GW XII, p.263.
24. Cf. a temática que se situa na correspondência com Fliess no ano de 1 895
e se e: .pande nas observações sobre o Homem dos Ratos.
25. Carta de 14 de novembro de 1 897.
26. Cf. O Homem dos Ratos, conclusão.
27. Cf. a passagem ao narcisismo e a argumentação de Freud, in " Freud aux
prises avec l'idéal" , in L' entendement freudien, op. cit.
28. Die Traumdeutung, ver p.85.
29. Cf. a interrogação ao filósofo Haberlin em nosso Freud, la philosophie et
les philosophes, PUF, 1. 976.
1 26 os elementos

30. " Projeto para uma psicologia científica" , in Naissance de la psychanalyse,


p.349.
3 1 . A representação consciente engloba, com efeito, a representação de coisa
mais a representação de palavra, enquanto a representação inconsciente contém
somente a representação de coisa.
32. Aludimos aqui à divisão da lógica clássica (por exemplo, de Port-Royal)
em três rubricas: teoria da representação, teoria do juízo - articulação de
representações - e teoria do raciocínio - articulação de juízos.
33. GW XIV.
34. Vê-se que a denegação é simétrica do Unheimliche, como desajuizado
perceptivo.
35. Correlativo da Verleugnung.
36. Correlativo da Verwerfung, para a qual se impôs a tradução de Jacques
Lacan, "forclusion " (foraclusão).
37. Cf. a propósito da dialética da representação, p.1 1 4-5.
38. "O fetichismo" , 1927.
39. In Inibição, sintoma e angústia, 1926.
40." No relato do caso do Homem dos Ratos. Ver p.44-6.
4 1 . Cf. o caso do presidente Schreber.
42. Cf. as Observações sobre a teoria e a prática tÚl interpretação dos sonhos,
GW XIII, p.304.
43. Cf. sobre esse ponto toda a fundamentação da episteme freúdiana em nossa
lntroduction à l'épistémologie freudienne, I Parte, Payot, 1 98 1 ; 1 990.
44. Cf. a crítica genérica da Weltanschauung como construção unificadora da
realidade em tomo de um princípio único, em nome de um ideal da Naturwis­
senschaft, por Freud (Freud, la philosophie et les philosophes). A sexualidade aí
não faz exceção.
45. Isso é o que ele diz a propósito de Moll, que ele " não tinha em grande
estima!' (Jones, 11, 49).
46. A propósito das críticas de Moll sobre a psicanálise. Freud acha sua Vida
sexual tÚl criança " tão lamentável quanto desonesta" , 1 2 de novembro de 1 908.
47. Por exemplo, na XXI das Conferências introdutórias à psicanálise, GW
XI, p.335.
48. É justamente em pensar isto que a sexologia falha. Freud chega a sustentar
que Havelock Ellis teria produzido sua teoria sob a pressão de seu próprio distúrbio
sexual (o que ele generaliza abrangendo os sexólogos), ao passo que ele, Freud,
só teria sabido a respeito da sexualidade através da fala dos neuróticos (a Joseph
Wortis, nos anos 30, quando ele ainda dá crédito à parábola dos três mestres).
CAPÍTULO VI

A LETRA
Por uma metapsicologia do ler

De onde partir para pôr em cena o teatro organizado pela leitura,


senão do encontro entre um sujeito e aquilo que oferece ao ler (um
lectum) - evento que se inscreve no leitor por um certo efeito?
Quando o examinamos bem, o texto freudiano tem essa virtude de
dar conta do efeito de leitura. O próprio Freud, como leitor, não
desdenhava nomear o efeito nele produzido por um livro. O afeto,
porém, freqüentemente, não é mais que o índice final de um processo:
ele oculta, tanto quanto revela, a dialética representativa atuante.

I. METAPSICOLOGIA DO LESEN

1. O laço oculto entre a representação e a Coisa

Em O eu e o isso, Freud fixa os termos dessa dialética: o " ler" (Lesen)


está situado do lado da Wortvorstellung (representação de palavra),
mais precisamente dos restos verbais. " Os restos de palavras ( Wort­
reste) provêm essencialmente de percepções acústicas, de tal modo
que simultaneamente, da mesma forma, se dá uma origem particular
do sentido para o sistema Ics. Os componentes visuais da representação
de palavra podem ser adquiridos secundariamente, pela leitura, e se
pode, por isso, negligenciá-los num primeiro tempo, assim como as
imagens de movimento da palavra, que além disso desempenham o

1 27
1 28 os elementos

papel, nos surdos-mudos, de signos de suporte." 1 Isso permite a Freud


concluir que " a palavra é, falando propriamente, o resíduo mnésico
da palavra escutada" .
Como se vê, o " ler" não poderia constituir um nível metapsicológico
específico: com efeito, ele é pensado por Freud no lado da aprendi­
zagem de memorização visual de uma representação verbal, esta, em
si, " acústica" . Ler, nesse sentido, nada mais é que " ver" aquilo que
num primeiro tempo foi, fundamentalmente, escutado. Se " a palavra
é, falando propriamente, o resto mnésico da palavra escutada" , a
função do ler é, pois, expressamente secundarizada - a ponto de
Freud parecer mencioná-la apenas para relativizar a sua importância
e sugerir que é possível, legitimamente, abstrair-se dela para definir
a essência (acústica) da representação (verbal) - da mesma forma
que os aspectos motores do proferir: ler é uma gesticulação interior
pela qual a palavra ouvida (gehortes Wort) é visualizada.
Na escala das " moções" , o ler deve ser, pois, situado no extremo
de uma linha que vai da coisa até a palavra, e que se pode representar
assim: traço mnésico � representação de coisa � representação de
palavra � representação visualizada = representação - adquirida
pela leitura - da representação de palavra.
Ler é a elaboração secundária da representação verbal: a elaboração
" trata" dos restos; ela está distanciada de um grau suplementar da
representação de coisa, é a elaboração " terciária" da coisa.
Mas, pelo fato de visualizar o resto verbal, a leitura não faz mais
que " subl imar" a representação de palavra, fazendo desta como que
o índice de uma coisa, na medida em que a submete à exigência de
visibilidade. Freud lhe atribui somente essa função de transição e de
perpetuação dos restos. No entanto pode-se suspeitar da existência,
aí, de um trabalho arcaico que, nos restos verbais, tem a intuição de
algo do " resto" . Talvez isso permita compreender que colocar diante
dos olhos as representações de palavras é realmente, de certa maneira,
colocar-se novamente diante da coisa - filtrada, é verdade, por essa
fábrica de escórias verbais que é a verbalização.
O Lesen é a atividade de contrabando que faz com que se troquem,
numa relação oculta, a representação de coisa e a representação de
palavra: atividade propriamente relacional, já que consiste apenas
nessa troca de duas " economias" . Aliás, é por isso que não existe
representação de leitura específica: antes, existe aquisição (Erwerbung)
da representação de palavra. Ler é o que acontece com a representação
de palavra: esta é a sua modalidade de aquisição. O que é preciso,
a letra 1 29

pois, que ocorra para que essa modesta função de aprendizado se torne
meio de acesso, por retroação, ao conteúdo da própria " coisa" ? Aí
começa o que se pode considerar como o " efeito mágico" da leitura.

2. O Lesen, operador mágico

Se não existe, em Freud, elaboração metapsicológica do Lesen, é que


não se poderia falar em representação de leitura (no sentido em que
se deve falar de representação de palavra ou representação de coisa),
pois isso significaria hipostasiar o texto, lá onde Freud vê apenas um
sub-tratamento da matéria verbal.
E, justamente, as modalidades e a função desse subtratamento
c hamam a atenção. Ler é tirar do fundo verbal acústico as letras * para
convertê-lo em imagens de um certo gênero. O ato de leitura, portanto,
deve ser situado resolutamente no sistema pré-consciente-consciente,
já que neste se somam a representação de coisa (visual) e a repre­
sentação de palavra (acústica).
Resta determinar a especificidade desse ato: como a leitura põe em
movimento esse laço entre dois tipos de representações, ilustrando,
mas também revelando, o efeito do " bloco mágico" ?
Se o " bloco mágico" é aquilo sobre o que se escreve/ é correla­
tivamente aquilo sobre o que se lê: o dispositivo da escrita se oferece
à leitura. Mas, simultaneamente, a leitura o mantém de modo incessante
" em estado de movimento" .
Sabemos que o bloco mágico é esse dispositivo estranho, composto
de dois elementos em contato precário: a " memória" de cera e a
" folha volante" . Nada se exprime se as duas partes cessam de estar
em contato; para que algo se exprima, é preciso que exista certa
relação de tensão. Por um lado, os traços duradouros; por outro, o
dispositivo que gera a função de atualização. O sistema duplo
mantém-se, pois, à beira de uma virtualidade incessantemente conju­
rada: a da desaparição pura e simples da escrita: " No bloco mágico,
a escrita desaparece cada vez que se rompe o contato estreito entre o
papel que recebe o estímulo e o quadro de cera que conserva sua
impressão" .3 É nessa estrutura sincopada que se inscreve a 'repre­
sentação do tempo' " 4•

* No original, tirer des traites (" descontar letras de câmbio" ). (N.T.)


1 30 os elementos

Temos aí, ao que nos parece, a contrario, a chave da função de


leitura do ponto de vista do inconsciente. Ler seria reatualizar essa
escrita, esclarecendo que, justamente, não basta fazê-la passar do
estado de dado (escriturai) ao de vivido (decifrado): o drama é que a
escrita é cronicamente ameaçada de apagamento. Ler seria, nesse
sentido muito preciso, conjurar o desaparecimento da escrita.
Se o texto existisse - como estrutura duradoura -, a sua leitura
seria apenas apropriação. Mas, justamente, é preciso a manutenção
incessantemente reefetuada, para e por um leitor, da adesão dos dois
sistemas. Ou melhor: a leitura seria definida pelo próprio movimento
de manutenção dos dois sistemas. Isso equivale a dizer que ela só se
sustenta pelo fio, frágil e misterioso, que os une.
Assim entendida, a representação freudiana oferece-nos uma fan­
tasia espantosa: a de um objeto de leitura como uma poeira de traços
mnésico-verbais suscetível de se volatilizar instantaneamente, por um
pouco que lhe falte de " contato" . Tal é uma biblioteca para o
inconsciente: uma massa de signos mnésicos que um único leitor ao
mesmo tempo reatualiza, mas que é suscetível de se reduzir a qualquer
momento à sua poeira primitiva (como se sabe, a poeira é um elemento
da maior importância numa biblioteca).

3. O Lesen, compilação fantasística

Existe aí somente efeito de metáfora: se o modelo metapsicológico


se presta tão bem ao deciframento da leitura, é porque o segredo da
participação da leitura está entregue à elaboração fantasística. Se a
leitura sustenta a fantasia, é porque ela se organiza em tomo desse
dispositivo pelo qual o traço mnésico se vê reatualizado para os fins
da economia fantasística do sujeito. Eis a função propriamente dita
do " operador mágico" .
A condição primitiva e paradoxal é que, para que um texto possa
ser lido, ele seja suscetível ao mesmo tempo de ser mantido aqui e
agora - no tempo da leitura - e de desaparecer - talvez para
sempre. Reconhecemos aí, exprimido em sua formalidade, o problema
da inscrição inconsciente: isso com que o sujeito mantém o contato,
isso cuja ausência ele realiza.
É por isso que a leitura é, para o interessado, um ato ao mesmo
tempo salutar e perigoso. Por um lado, ela sustenta a sublimação,
trabalhando os restos verbais; por outro, tende secretamente a reobter
a letra 131

a coisa outrora vista. Daí a móvel fixidez do leitor: se é o desfile dos


restos verbais que ele acompanha, tão literalmente, com o olhar, é a
coisa dita e jamais totalmente dita que ele fixa e que o obnubila -
evocação da " cena originária" .
O ter:mo Lesen significa também compilar: o que o leitor " compila" ,
com a lucidez seletiva do Wunsch, é o estoque de " situações e
instituições" necessárias ao seu " teatro privado" .
É preciso ainda situar a atividade de leitura com relação ao devaneio
com o qual ela está inteiramente de acordo. Esse sonho diurno encontra
na leitura mais ainda que um suporte material: uma verdadeira prática.
Pode-se mesmo suspeitar que a ritualização da leitura responde a essa
codificação da prática onírica diurna, que faz eco à prática do sonho
propriamente dito.
Talvez não exista ingresso no devaneio induzido pela leitura sem
uma condição secretamente regressiva, aquela que, análoga ao ador­
mecimento, desliga o sujeito dos investimentos de realidade para
orientá-lo em direção ao signo verbal. Mas esse desvio, que permite
um investimento narcísico - indispensável tanto ao sonho quanto à
leitura -, é acompanhado por uma vigilância particular, aquela que
supõe nada perder da letra. Deve-se saber, com o mesmo movimento,
ausentar-se (do real) e apresentar-se (à letra), o que é designado pelo
próprio movimento de abertura do livro. O sujeito deve fechar-se à
realidade para abrir-se à letra.
Entrevemos em que o neurótico está especialmente interessado
nesse entreabrir, que desestabiliza a relação intra-sistêmica, tanto
quanto a economia do prazer e da realidade. Essa " liberação" das
exigências do real é amplamente compensada por uma saturação do
campo da consciência: o sujeito se obriga a seguir o trem das
associações posto nos trilhos por um outro, o Erziihler (o " narrador" ,
a ser entendido aqui como aquele que dá a ler).
Acompanhando a questão que o " fantasista-leitor" faz emergir,
compreende-se sua cumplicidade com uma outra: aquela do que, no
lido, funciona como estrutura de acolhimento da fantasia. Se, com
efeito, a fantasia neurótica se aloja tão eletivamente no corpo da obra,
é que alguma coisa a atrai para lá. Essa forma particular de " sonho
acordado" que a obra lida lhe torna possível, que se destaca no ler,
não encontraria seu princípio no fato alegado por Freud de que a
própria " criação literária" 5 se enraíza no Phantasieren? Ora, este
impõe uma espécie de preconceito necessário sobre o qual Freud tem
o cuidado de nos dizer que caracteriza " aqueles autores de romances,
de novelas, de contos sem pretensão, que em contrapartida encontram
1 32 os elementos

os mais numerosos e mais atentos leitores e leitoras" .6 Nesse processo


de cruzamento fantasístico, forma-se um par entre o " narrador"
(Erziihler) e o " leitor" (Leser) - de resto, especificado pela diferença
sexual (tanto que Freud tem em mente o zelo da histérica pela Novelle).
O que surpreende é o traço seguinte, que não deixa de evocar o
traço único fundador da identificação: " Um herói que se encontra no
centro do interesses, para o qual o escritor tenta por todos os meios
conquistar nossa simpatia. " 7 Por trás dessa invariante banal, Freud
detecta o berço comum das duas máquinas fantasísticas, ou seja, " sua
Majestade o Eu, o herói de todos os devaneios, como de todos os
romances" . Tal é a leitura que permite soldar os dois Tagtriiume. Tal
é o princípio desse estranho contrato pelo qual o escritor se recorda
de " alguma coisa" , esse evento primitivo reatualizado, o que inva­
riavelmente " lembra alguma coisa" ao leitor.
É sob essa forma ao mesmo tempo atenuada e multiplicada pelo
prêmio de sedução e prazer preliminar que se opera essa reapropriação.
O que Freud indica aqui é nada menos que o gozo da obra. Este nasce
da trégua que permite " gozar de nossas próprias fantasias sem
reprovação nem vergonha" .
Ler é realmente, nesse sentido, subtratar a fantasia do " narrador"
pela própria fantasia. Longe de ser necessário postular uma transfe­
rência mecânica de fantasias, o que o autor efetua por sua própria
conta - a restituição, sob pressão, de sua fantasia - é que funciona
como distração para o leitor.
A operação de leitura tein, pois, isto de inesperado: ela deixa a
fantasia exposta. O que é simbolizado pelo gesto inaugural: na
esperança de um tal ganho, abre-se um livro, como sugere Freud. O
risco é do escritor, que se expõe à sua fantasia; o leitor, este só tem
a ganhar. É notável que Freud associe a leitura a uma distração, como
se ela fosse sempre satisfação e alívio - com as modalidades
erotizadas deste último. O que há de certo para o leitor é que é o
Outro quem fala - não apenas o autor, mas esse Outro a quem o
autor dá a palavra. Ao abrigo dessa palavra, ele pode entreter-se com
seu Outro mais íntimo. Mas a leitura pode igualmente despertar a
problemática reprimida da alteridade. É essa estranha relação de
adormecimento e despertar, de receptividade e hipervigilância, que
faz do ato de leitura a Leistung fantasística por excelência.
É notável que a metapsicologia dessa descrição funcional e formal
do Lesen dê ênfase à positividade e ao " ganho" do ler. Descobriu-se
uma espécie de atividade mercurial, pondo em relação, a cada vez,
as emergências da maquinaria inconsciente - a palavra e a coisa do
a letra 1 33

ponto de vista representacional, o pré-consciente-consciente e o


inconsciente do ponto de vista sistêmico, o Wunsch e seu objeto
dinâmico -, o que desemboca numa regulação econômica da função
de gozo.
Antes de tomar a medida dessa significação fantasística, 8 deve-se
inscrever aquilo que introduz, no seio dessa " função" , uma disfunção
(virtualmente) crônica.

li. DO LESEN AO VERLESEN:


DESTINOS INCONSCIENTES DO TEXTO

O que a gramática freudiana do inconsciente, da Psicopatologia da


vida cotidiana até a Traumdeutung, não cessa de mostrar é que o ler
é assombrado por um " de-lírio" * ( Verlesen), bem como por seu duplo.
Para além dos distúrbios sintomáticos da leitura designados pelo
termo Verlesen, 9 estão envolvidos aqui, mais genericamente, todos os
efeitos " demoníacos" a que o Lesen dá origem. Trata-se de fazer uso
dessa parasitagem do trabalho do ler e do trabalho do inconsciente
para compreender sua natureza própria: que deve ser o ler (metapsi­
cologicamente falando) para ocasionar tal " delírio" ?
Vamos observar que, seguindo nesse ponto a lógica indicada pelo
procedimento freudiano, não passamos do ler ao lido postulando a
equivalência, ao mesmo tempo natural e metafórica, entre " texto" e
" inconsciente" . Partimos da falha que surge no cerne do próprio
Lesen, sem a superstição de um Texto, grande Lectum por ele
postulado. Mas é também alargando essa falha que opera no próprio
cerne do ler que se vai encontrar a questão do inconsciente como
texto.

1. O Ler-sintoma

Eis o princípio do Verlesen, 10 esse distúrbio do ler que provém da


" reivindicação (Anspruch) de uma idéia (Gedanken) estranha" u. Não
é um simples erro de atenção, já que - Freud ressalta - se lê

* No original, " dé-lire" , ou " des-ler" , que soa como "délire," delírio. (N.T.)
1 34 os elementos

também, i nfalivelmente, quando a atenção se ausenta... O automatismo


não é senão um fenômeno episódico: ele é revelador desse efeito de
perseveração próprio do ler. Assim, uma vez que a " idéia estranha"
penetre no ler, ela será ipso facto assimilada: o mais notável no
Verlesen é que, no fundo, a substituição de · uma palavra por outra
não perturba o processo, de tal modo o ato da leitura é eficaz em
reabsorver o que lhe é estranho.
Nesse ponto, ainda, é preciso que a interpretação force a inércia
ativa da leitura, repita a violência da intrusão do pensamento estranho,
manifeste o escândalo do erro de leitura. É necessário desmascarar a
ilusão do texto: mostrar que o sujeito se engana pressupõe mostrar
que o texto é enganador. O Verlesen só faz exibir a patologia do
mal-ler: esta revela a cumplicidade entre o Lesen e o Verlesen, até
mesmo sua coincidência virtual.
Isso implica que, no próprio seio do Lesen, destinado a adquirir,
sob o modo visual, a representação-de-palavra, se produza um vela­
menta. Desler, * portanto, não é somente ler mal a letra (escrita), é ler
" bem" a letra que, por um efeito de desdobramento presente na
estrutura ótica do leitor, é evocada no truncamento da letra escrita
(oculta). A função do Lesen, dedicada em princípio à reprodução da
representação verbal, é aqui desviada. Mas seu momento de verdade
não está ali, no forçamento da letra escrita, onde emerge a relação
entre o leitor e seu sintoma?
É notável que Freud prefira um inventário dos " casos" de Verlesen
a um sistema das causas: uma causalidade iria subsumir a diversidade
deles, atenuando sua disparidade. Logo, é durante o inventário1 2 que
se introduz uma distinção que revela sua estrutura: " Na grande maioria
dos casos" - explícita-se -, " é a disposição do leitor que modifica
o texto, nele introduzindo algo que o interessa ou que o preocupa." 13
" Num segundo grupo de casos" , lê-se mais adiante, " o texto desem­
penha um papel muito mais importante na produção do erro de leitura.
Ele contém algo que desperta a repulsa (Abwehr) do leitor, uma
informação ou uma sugestão que lhe é penosa." 14
Logo, deve-se buscar o Verlesen nessa bipartição empírica, na
encruzilhada de um distúrbio subjetivo do Leser e de um efeito do
texto. Pode-se dizer que essa distinção metodológica comanda seu
ultrapassamento pelo fato de que o texto nunca é senão o pretexto de

* Ou " delirar" . Cf. nota à página anterior. (N.T.)


a letra 1 35

um distúrbio subjetivo. O Verlesen atua num ponto onde não é possí­


vel decidir, na confusão da leitura, o que vem do leitor e o que é
imputável ao texto.
Supondo-se que essas duas figuras sejam idealmente oponíveis,
percebe-se que sua lógica e suas modalidades são diferentes. Se
partirmos da vacilação do leitor, é a analogia que se impõe como
motor de confusão: " O erro de leitura sobrevém no texto apenas se
este oferece uma semelhança qualquer na imagem verbal (Wortbild)
que o leitor possa transformar no sentido que desejar" 15 (in seinem
Sinn, escreve Freud, o que pode ser entendido tanto no sentido que
lhe convém quanto " a seu gosto" ). Em suma, basta que o texto se
ofereça ao Verleser, a equivocidade da imagem - da palavra que lhe
faz as vezes de sinal -, para que ali se engolfe sua " disposição" ou
sua " preocupação" do momento.
No segundo caso, é o próprio texto que, por mostrar algo de
" repugnante" , " sofre, devido ao erro de leitura, uma: correção no
sentido da recusa ou da realização do desejo" . 1 6
O efeito é o mesmo: o Verlesen deve salvar o Wunsch. Mas a
espessura própria do texto se faz sentir em graus diversos. No último
caso, Freud chega a afirmar que " se pode, naturalmente, admitir como
um fato certo que o texto tenha sido inicialmente aceito e julgado
corretamente, antes de sofrer essa correção, mesmo que a consciência
dessa primeira leitura nada tenha aprendido" .
Em que cena, então, ocorreu essa " primeira leitura" ? Como pôde
ser lido o que o sujeito consciente não tinha registrado, falando
propriamente? Talvez seja esse o momento decisivo do Verlesen. Só
pode existir " erro de leitura" (termo, como se vê, bem fraco para dar
conta do desler) se este ocorrer no só-depois de uma leitura que
efetivamente se realizou mas sucumbiu ao recalque.
Ora, essa primeira leitura não é senão o encontro do Texto, no seu
caráter ao mesmo tempo bruto e alarmante. O Leser tomou-se Verleser
por ter provado o caráter mais efetivo e mais " repugnante" do texto.
A violência ulterior feita ao texto é uma " homenagem" ao que dele
foi demasiadamente bem entendido.
Em suma, o Verleser é t�do menos um leitor distraído: particular­
mente avisado e lúcido, ele sofre apenas de um " distúrbio de
acomodação" do texto ao seu Wunsch e se conduz de acordo. Logo,
não é paradoxal afirmar que a única verdadeira leitura é aquela revelada
pelo trabalho de desleitura. É através deste que o texto encontra seu
leitor.
1 36 os elementos

É mais notável que o terreno eletivo do Verlesen seja realmente


social: esta versão da psicopatologia da vida cotidiana traduz a
incidência social do sintoma. É . por isso que, da forma como se destaca
dos exemplos de Freud, o medium é menos o livro que o lectum social
- jornal, anúncio - ou de função social - um comunicado;17 enfim,
aquilo que vem trazer uma mensagem relativamente padronizada, na
qual se introduz a distorção inesperada. Assim, a guerra é uma fonte
particularmente fecunda de Verlesen. 18 O trabalho da renegação está
ali, com efeito, particularmente ativo, ao mesmo tempo que favorável
à revelação daquilo que, por trás da " hipocrisia" , se mostra como
" verdade psicológica." 19
Em outras palavras, a guerra deixa o inconsciente dos sujeitos, de
certa forma, por fora ao mesmo tempo: " Acredito" , confessa Freud,
" que o período da guerra, que em todos nós criou certas preocupações
fixas e de longa duração, mais do que qualquer outra coisa favoreceu
os atos falhos, bem como os erros de leitura." 20 A guerra sistematiza,
universaliza, por assim dizer, a prática da Fehlleistung e, particular­
mente, do Verlesen, uma vez que algo é distorcido na comunicação
social em suas regiões vitais.

2. O sonhador e o leitor

Quando alguma coisa que não se pode decidir e que é literalmente


ilegível ( Unleserliches) se esboça, o sonhador comporta-se como um
leitor.21 Num telegrama, uma palavra é indecifrável: o amigo da Itália
terá escrito via, villa ou casa? E aquele cartaz, visto na noite anterior
ao enterro do pai, que diz: " Pede-se fechar os olhos" , ou " É favor
fechar um olho?" 22
O sonhador disfarça-se de leitor. Para desarmar essa trama, Freud
recomenda um procedimento de alquimia gramatical: transformar a
alternativa em conjunção. É o ressentimento contra o amigo intrigante,
a ambivalência em direção ao pai morto que dão a chave do
antagonismo do pensamento do sonho.
Curiosamente, é, pois, o efeito visual da leitura que se deve
desmascarar. O que no texto se exibe sob as espécies do " ou ... ou" ,
ou de uma palavra dupla, reabsorve-se como expressão dos compo­
nentes de um conflito. Freud, aqui, recusa a ilusão do texto para tornar
possível a leitura do inconsciente. Acreditar-se um texto aberto,
oferecido à leitura, faz com que o sujeito se engane quanto ao
a letra 1 37

verdadeiro conteúdo de seu desejo. O desejo aqui perfura o texto, ao


mesmo tempo em que o texto tende a reabsorvê-lo.
O efeito intrigante do texto - alertando o leitor-sonhador - sugere
o trabalho do sintoma. Se a vista se turva - o que estou lendo ? ­
é que o trabalho do inconsciente fabrica, para uso de seus conflitos,
conjunções.
Freud não sinaliza aqui que só se pode ler porque há clivagem da
mensagem? Assim, no envelope, uma palavra deve estar " clara"
(sezerno) para que outra multiplique seu equívoco (via ou vil/a ou
casa). Isso mesmo constitui o momento de verdade da leitura: é porque
há o ilegível (e não o indizível) que há algo a se ler. Mas, justamente,
a leitura reabsorve por seu próprio movimento esse " ilegível" , pois
tende a salvar seu texto para reabsorver o " indizível" .
É por isso que Freud não define o inconsciente como um texto,
nesse sentido. O texto iria dirigir-se de preferência - enquanto objeto
de leitura - à reabsorção do conteúdo inconsciente. Embora o
inconsciente se manifeste melhor como inscrição na leitura, efeito de
interferência: há o ilegível. O que claudica é realmente o sujeito e
não o texto. O que é assim " visualizado" como texto é simultaneamente
exprimido e eludido. É por essa razão que não se lê no inconsciente
como num livro aberto.
O exemplo paterno nos dá a chave desse jogo do legível e do
ilegível, da palavra e da coisa, a se procurar na fábrica de estratégias
do sujeito, isto é, na investigação edipiana da qual se sabe ser o
verdadeiro trabalho de legitimação do " complexo" correspondente.23

3. Édipo leitor

O trabalho de leitura reúne-se à pesquisa edipiana (Sexualforschung)


no Lexicon, isto é, no dicionário. Desde a Traumdeutung, Freud
observa este fato fundamental: é em referência às seqüências léxicas
que se efetuam as " associações superficiais" , graças às quais se ope­
ram a censura e os deslocamentos correlativos. Observa-se, no caso,
que o sonhador segue, na seqüência dos episódios oníricos, a ordem
das palavras no dicionário:

Ele sonhou um dia que fazia uma peregrinação a Jerusalém ou a Meca; depois
de numerosas aventuras, encontrava-se na casa do químico Pelletier que, depois
de uma conversa, lhe dava uma pá de zinco; de outra vez, seguia em sonho
por uma estrada e lia as marcas dos quilômetros; encontrava-se em seguida
1 38 os elementos

numa mercearia onde havia uma grande balança, e um homem punha pesos
de um quilo sobre um prato da balança ( ... ). Seguiam-se diversas cenas onde
via a flor Lobelia, depois o general Lopez ( ... ) acordava, enfim, jogando na
loto." 24

O Lexicon é um objeto de leitura tão atraente - fazendo bater o


coração edipiano - que, no desfile linear que o constitui, o neurótico
acalenta a esperança de encontrar o lugar da palavra que forneceria
o segredo da coisa; daí sua vocação enciclopédica, seqüela de uma
intensa curiosidade edipiana:

Minhas obras sobre os neuropatas ensinaram-me qual é a espécie de reminis­


cências. Trata-se de pesquisas (Nachschlagen) numa enciclopédia (Konversa­
tionslexicon) (ou um dicionário em geral) nos quais a maioria tentou, na época
da curiosidade púbere, apaziguar sua necessidade de explicação do mistério
sexual. 25

Impulsionada por esta A ujkliirung, sua pulsão de saber orienta-se


para uma mina de palavras. Nada de espantoso, já que essas séries
de termos se encontram como infra-estrutura léxica na rede associa­
tiva: é nesses momentos que o conteúdo onírico manifesto assume a
forma mais literal de um texto.
Tal é também a via seguida pelo Witz, através dos Scherzjragen.
Dizer que se pode encontrar simpatia na letra " S" da enciclopédia26
é tomar a coisa ao pé da letra - do que o sonhador, como vimos, se
aproveita.
Esbarramos aí numa afinidade da pesquisa inconsciente com uma
paixão pela letra que abre caminho a uma teoria do inconsciente como
texto. Mas, para fazer justiça a essa questão final sem ficarmos tentados
a hipostasiá-la, devemos voltar, como desvio obrigatório, ao trabalho
do sujeito.

Ill. 0 SUJEITO DA LEITURA E O TRABALHO DA FANTASIA

1. A Trieb do leitor

Somos remetidos, tanto pela dialética da fantasia como pelo texto do


sintoma, ao sujeito da leitura - procedimento suscetível, vamos
observar, de nos poupar de uma " psicologia do leitor" (mesmo que
a Letra 1 39

autorizada por uma psicologia dita profunda). É que Freud não postula
nenhum inconsciente do qual o leitor seria o depositário ou o
proprietário. Trata-se, antes, de perceber que " ocorrência" capacita
o sujeito a manter, como leitor, uma relação com o objeto do Wunsch.
Existe aí uma verdadeira " pulsão" que coloca o sujeito diante da letra
de seu desejo e presentifica uma ausência que lhe é de interesse.
Devidamente " despsicologizada" , a questão pode articular-se com
sua brutalidade própria: que quer quem lê?

2. O leitor e o neurótico

Freud dêstaca esse caráter do neurótico e do perverso, cada um à sua


maneira, de serem grandes consumidores de leituras. Assim, fantasias
de fustigação procuram " novas fontes de estímulo" em A cabana do
pai Tomás, bem copio na " Biblioteca Rosa" .Z7 Assim, ainda, ele
reconstitui a galáxia literária a preços módicos que estrutura a
construção da fantasia do Homem dos Lobos, por um verdadeiro
trabalho de morfologia comparada. 28
·

Quanto a Dora, esta encontra fontes inesperadas de fantasias nos


" livros de anatomia escolar" , ou ainda nos preciosos Konversations­
le..-:icon, refúgio habitual, como vimos, da " curiosidade da juventu­
de" .29 Um de seus sonhos se organiza em torno de um livro proibido,
perseguido pela morte do pai : com o pai no cemitério (no dispositivo
onírico), " ela podia tranqüilamente ler o que lhe agradasse ou amar
a quem quisesse" 30 - numa quase equivalência. A metáfora disso,
por ser cômoda, não deixa de ser pertinente: o neurótico debruça-se
com decisão sobre seu desejo como se fosse um texto, e sobre de­
terminado texto como se nele lesse seu desejo.
Pode-se observar ao vivo o " momento estético" do sintoma,3 1 efeito
d.1 leitura de uma passagem de Dichtung und Wahrheit de Goethe
sobre o Homem dos Ratos.
Encontra-se sua versão bruta no " Di ário da análise" mantido por
Freud: " Outra vez,32 quando lia em Wahrheit und Dichtung como
Goet"e, num transporte de ternura, se havia libertado dos efeitos da
maldição que uma apaixonada sua havia proferido contra quem quer
que beijasse os lábios do poeta: durante muito tempo, como que
supersticiosamente, ele se havia deixado prender por essa maldição,
mas um dia, rompendo seus grilhões, ele cobriu de beijos a sua
bem-amada. Coisa inacreditável, naquele momento ele se mastur­
bou." 33 Portanto, é através do ditado do Homem dos Ratos, do qual
1 40 os elementos

se limita a transcrever a confissão, que Freud designa o efeito


auto-erótico determinado por uma leitura.
Segundo uma lógica obsessiva bem familiar, a passagem ao ato
auto-erótico, de outra maneira entravada, é, como diz o interessado,
provocada " por momentos particularmente belos (besonders schone
Momenten) ou por passagens bonitas (schõne Stellen) que lia" .34 O
significante léxico funciona aqui paralelamente à experiência musical:
não basta que ele escute, " numa bela tarde" , " um postilhão tocar
maravilhosamente (herrlich) a trompa" , para encontrar um caminho
de acesso ao gozo? O essencial para os nossos objetivos é que a
" passagem" de um texto possa adquirir o valor homólogo de um
" sinal" que parece uma ordem, determinando uma passagem ao ato.
Nesses " momentos privilegiados" , nosso leitor responde, com
efeito, a uma injunção que, partida de um texto, o de Goethe, é sentida
como que se dirigindo ao mais íntimo de si mesmo e de sua relação
com a lei. De modo que, através desse texto, é uma ordem de gazar
que ele dirige a si.
Que diz o Erzãhler no caso? Goethe conta, nessa passagem de suas
Memórias, como, encontrando sua querida Frédérique Brion, num
domingo em que tudo lhe parece sorrir, ele pensa poder conjurar o
anátema que lhe havia lançado outra mulher. É preciso, pois, ler a
cena com olhos atentos que aí encontraram uma semelhança inesperada
com seus próprios problemas:

" Em breve" - conta Goethe -, "o calor forçou-nos a parar num lugar à
sombra, onde começamos a nos divertir com pequenos jogos e, ao pagar as
prendas, os beijos não foram poupados. Desde que a filha do professor de
dança havia anatematizado meus lábios, um temor supersticioso me fizera evitar
com o maior cuidado a ocasião de desfrutar do prazer mais ou menos
significativo de um beijo de mulher; naquela tarde, esqueci todos os meus
escrúpulos e me entreguei sem reservas à felicidade de dar temos beijos em
minha querida Frédérique e de recebê-los, por minha vez." 35

Esse tipo de erotismo juvenil, com seus atrativos de "jogo de


prendas" , fala ao íntimo do Homem dos Ratos, pelo que comporta
de transgressão simulada que dá ao prazer sua verdadeira dimensão,
a de não poder ser provocado senão sob a capa de uma regra.
Lembrando o episódio da trompa, Freud escreve: " Fi-lo observar o
traço comum a esses dois exemplos: a proibição e o fato de agir de
encontro a uma ordem" 36 - que, devemos acrescentar, assume valor
de ordem.
a letra 141

O efeito mais material d a leitura tem aí livre curso, n o entreabrir


de um texto - e antes que " tudo volte a entrar em ordem" 37 - que
serve de " cobertura" para a resolução, por mais pontual que sej a esta,
de um conflito entre o desejo e a interdição. Sob o aguilhão do Lectum,
o sujeito, habitualmente bloqueado, se atira a uma satisfação miracu­
losa e inopinadamente inocentada, o tempo do encontro com um texto.
Tal é o poder mais manifesto do texto, legitimar o rapto aos olhos do
leitor. Logo, o texto é tal que oferece, como que à margem da relação
habitual do sujeito com seus interditos, uma excitação que o põe ao
abrigo da retaliação de seu Supereu, uma vez que aquilo que provém
do texto lhe ordena, da mesma forma estrita, seguir adiante, apoiado
apenas na fidelidade da letra cúmplice.

3. A excitação do escrito

Poderíamos ver naquilo que liga irrecusavelmente, segundo o autor


dos Três ensaios sobre a sexualidade, a leitura à " excitação sexual"
um efeito de evocação visual. Sob a proteção dessas " circunstâncias
particulares que lhe conferem o caráter de irrealidade" , é algo da
evocação da coisa que se toma possível. Logo, é de se pensar que,
quando se lê, a coisa está lá.38 A " cláusula de irrealidade" é feita
para favorecer a relação com um· real dos mais intrusivos que tem
domínio sobre o sujeito. Mas é também o que permite pôr a coisa a
distância, " freqüentando-a" ao mesmo tempo.
Vemos aí desenhar-se a significação desse gesto neurótico da
passagem à leitura. É possível que seja essa função de freqüentação
do recalcado primitivo, a partir de seus restos verbai s, que faz do
neurótico um grande leitor - ou, pelo menos, um leitor particular­
mente sagaz.
Mas e se o escrito for psicanalítico? Freud, então, distingue dois
leitores: aquele cuja resistência aumenta - e qüe faz parte do círculo
do paciente39 - e o próprio paciente: nada muda nele, a leitura
psicanalítica não lhe aumenta o saber.
Ele só " fica excitado" (aufgeregt), escreve Freud, pelas passagens
em que se sente atingido (getroffen), aquelas referentes aos conflitos
que nele atuam no momento. Tudo o mais o deixa frio.40 Em outros
termos, o neurótico leitor encontra espontaneamente, diante da Lektur
dos escritos analíticos, a atitude que tem frente ao lido em geral: vai
de saída em direção àquilo que o atinge. A leitura, decididamente, só
1 42 os elementos

atua excitando-o. Mas, ao mesmo tempo, o resto é letra morta - e


ele frio como mármore. O que não toca no nervo do conflito permanece
em estado de não-lido, ou melhor, de Verlesen: então, ele lê sem saber
o que lê. A aproximação de Freud com as explicações sexuais dadas
às crianças é explícita. Aqui como lá, o interessado é tentado a
continuar a " adorar em segredo seus velhos ídolos" .

4. O atestado do sintoma

A própria entrada em análise, no entanto, pode ser feita pelo livro,


ou seja, pelo texto freudiano: " Um acaso orientou sua escolha por
mim" , nota Freud no Diário sobre o Homem dos Ratos. " Um estudante
de filosofia, que morava na mesma casa e lhe havia emprestado uns
livros, pediu-os de volta. Ele ainda conseguiu folhear um deles: era
a Psicopatologia da vida cotidiana, em que se defrontou com coisas
que lhe recordavam suas próprias atitudes de pensamento e decidiu
vir ver-me." 41
Esse jogo com o acaso que parece necessário à revelação é, aqui,
particularmente refinado: o leitor é alguém que toma emprestado, que
toma de empréstimo o seu livro, aquele cuja letra lhe concerne,
" folheando" (bliitterte: quase como " desfolhando" ) o que lê errati­
camente em si mesmo, este livro dos sintomas que ele folheia
regularmente - e decide, como numa passagem ao ato, dirigir-se
àquele que ainda não vê exatamente como um psicanalista, mas como
um autor: " seu" autor, o autor do segredo de sua própria letra,
percebido no livro percorrido. Essa secreta palpitação deve ter sina­
lizado a presença entrevista da coisa. É verdade também que esse é
um livro bastante particular, o de Freud, talhado diretamente no modelo
das Gedankengiinge neuróticas que ele tenta escrever com rigor.
Há algo de mais preciso ainda: logo antes desse episódio da leitura,
Freud menciona um outro, que lhe está diretamente ligado, ainda que
de forma misteriosa. O Homem dos Ratos desej ava, para fundamentar
seu direito ao sintoma e poder oferecer argumentos de certa forma
científicos para seu dispositivo obsessivo de pagamento da dívida, " ir
procurar um médico" e " receber dele um atestado (Zeugnis) segundo
o qual sua cura exigiria o procedimento" em questão. Demanda tão
precisa quanto louca, que se retransfere, pela leitura do livro freudiano,
para o único " médico" suscetível de dar, então, um certificado de
autenticidade a seu sintoma.
a letra 143

Não se pode imaginar, vindo precisamente do neurótico, sintoma


mais belo daquilo que leva .o livro operar para o inconsciente, nesse
momento extremamente crítico em que o sujeito, faminto da verdade,
se defronta com a letra que faz signo para ele. O livro é esse Zeugnis
- o que mostra e testemunha em direção à coisa. É isso que deslancha
a análise, tomando o lugar do livro: mas essa leitura apressada e
lucidamente seletiva - o neurótico logo captou o essencial - é
propriamente o primeiro movimento em direção à letra. Reconhecendo
algo de seu pensamento desejante no livro tão oportunamente escolhido
(logo antes de devolvê-lo ao Outro), ele adivinha ter ali a primeira
palavra de seu próprio texto.
É isso o que faz do escrito freudiano - arquétipo e protótipo do
texto psicanalítico - o objeto de uma leitura bastante particular.

0 L IVRO INCONSCIENTE

Chegados ao final dessa reconstrução, é possível, no nó do ler, do


lido e do leitor, esboçar a forma do Livro, tal como a experiência
freudiana o destaca.
Forma tão errática - já que a psicanálise só tem efeito desligando-se
da crença, tipicamente pré-freudiana, em algum grande Livro do
Inconsciente - quanto precisa - de vez que é realmente uma nova
relação entre o saber da letra e o saber inconsciente que se situa como
efeito maior da intervenção freudiana.

I. O livro do sonho

Devemos, pois, atribuir a maior importância a esse momento em que


Freud é capaz de decifrar o texto da formação inconsciente " real"
através da metáfora do livro. A primeira fase da interpretação do
sonho - a da tradução ( Übersetzung) que precede a " avaliação"
(Beurteilung) ou " utilização" ( Verwertung) - impõe a analogia com
o texto que se oferece à translação semântica: " É como se estivéssemos
na presença de um capítulo de um autor de língua estrangeira, por
exemplo, Tito Lívio. " 42 Freud evoca aí o momento de epifania da
leitura: tem-se " diante de si" um texto que fala uma outra língua -
mas o livro se manifesta estruturalmente por essa língua outra, que é
1 44 os elementos

preciso investir -, choque que exige uma resposta: " Em primeiro


lugar, quer-se saber o que Tito Lívio conta nesse capítulo, e é só
depois que intervém a discussão, saber se o que se leu é um relato
hi stórico ou uma lenda, ou uma digressão do autor."
Esse lembrete banal é prenhe de importância: ler é querer-saber (a
ser entendido no registro da pulsão) o que " isso conta" . Essa pulsão
de ler é, em si, adiamento do juízo. O leitor, diante da língua
estrangeira, deve despojar-se de todo juízo: que seja " verdadeiro" ou
" não-verdadeiro" , discurso objetivo ou " digressão" , até mesmo lou­
cura do autor, isso deve vir depois. Quem começasse por perguntar
se é verdadeiro ou não jamais passaria à leitura. É esse ponto zero
de crença que designa o estado de espírito do leitor.
Ora, isso mesmo impõe referir-se, aquém de qualquer efeito ou
anterioridade, ou de qualquer juízo consecutivo, à literalidade de um
texto. Quando Freud se inclina a postular um texto, é justamente para
respeitar a letra, o que é uma regra de ouro da hermenêutica çmírica.
Essa regra da letra faz as vezes de advertênci a contra a superesti­
mação, pela prática analítica, do " mi sterioso inconsciente" . O meio
salutar de não tratar o documento inconsciente como reflexo desse
Inconsciente - inconsciente do texto - é justamente adotar a atitude,
tão positiva quanto modesta, do tradutor. Este não pode permitir-se
postular um significado refletido em seu texto: a letra é demasiado
impositiva para isso. É preciso, em primeiro lugar, compreender o
que " i sso conta" - como diz, trivialmente, quem ouve falar numa
língua estrangeira, perturbado por esse querer-dizer que não consegue
decifrar, com a suspeita insens �ta de que talvez " isso não queira dizer
nada" .
Ora, tal é o texto inconsciente: Fremdsprache, língua do Estranho,
linguagem do Outro. O melhor meio, justamente, é tratar o sonho
como " um pensamento como outro qualquer" que se dá a ler.

2. A censura, operador do livro inconsciente

Essa gramática das formações inconscientes não induz, entretanto, a


assimilação do inconsciente ao texto. Deve-se, de preferência, dizer
que é através da censura - motor do trabalho inconsciente - que a
formação inconsciente se dá a ler. Esse último enunciado engaja-nos
numa lógica inteiramente outra.
É bem revelador que a idéia de censura tenha surgido originalmente,
na célebr.e carta a Fliess, como metáfora no sentido mais material do
a letra 1 45

termo. Para exprimir o trabalho da linguagem do sonho e do sintoma,


vem-lhe à mente uma estranha experiência visual de leitor: " Você já
teve ocasião de ver um jornal estrangeiro censurado pelos russos, na'
passagem da fronteira? Palavras, frases, parágrafos inteiros são cor­
tados, de tal modo que o resto se torna ininteligível. É uma espécie
de 'censura russa' que aparece nas psicoses e dá lugar a delírios
aparent�mente desprovidos de sentido."43
Para quem dispõe do conceito de " censura" , a referência à metáfora
da leitura será apenas metáfora, no sentido mais trivial de comparação
destinada a dar a compreender um processo. Na verdade, a formação
inconsciente se constitui, aos olhos de Freud, como texto, pelo próprio
fato de que a censura a trabalha. Observemos, com efeito, a estranheza
significativa de um texto censurado: os " brancos" que tornam o texto
eventualmente ininteligível fazem com que se perceba imediatamente,
a contrario, que o texto deve ser lido. Uma leitura sem impedimento
pode alimentar a ilusão de uma mensagem evidente por si mesma,
tornando o próprio leitor supérfluo. É a censura do texto que nos
desperta dessa ilusão, pelo " corte" que introduz. Em suma, a censura
faz ver o texto como lectum.
Freud vai explicitá-lo num texto ulterior: " B asta tomar qualquer
jornal político" censurado para perceber que " o texto é cortado em
diferentes lugares, e em seu lugar aparece o branco do pape1." 44 A
censura, portanto, faz surgir, ao mesmo tempo que o " branco" , o
" lugar" (Stelle). Ler é jogar, nesse sentido, com o avesso e o direito,
numa alternância que supõe qUe o . texto possa a qualquer momento
faltar - o que torna secretamente fascinante a percepção de um texto
cortado, mais " textual" do que nunca.
Mas que designa esse " branco" senão o que, como falta, faz marca,
ou seja, aquilo que desagradou aos paladinos da censura? É aquilo
que des-agradou (missliebig) o Outro, o paladino da censura (Zensur­
behorde). Se lembrarmos que, no caso da censura inconsciente, o
censor não é outro senão o leitor, vamos apreciar ainda melhor a
observação irônica de Freud, de que as passagens que faltam num
texto censurado são precisamente as passagens melhores e mais
interessantes (ao gosto do leitor).
Em suma, só se lê na censura. Muito longe de impedir ou de
perturbar a leitura, ela a constitui . Tal é o leitor quanto à cena
inconsciente - essa outra cena que o define - que não se refere ao
seu texto senão na medida em que volta a se dirigir a ele - em nome
do Outro - pela censura. Simultaneamente, a leitura transgride, de
1 46 os elementos

modo que o leitor joga com aquilo que agrada ao " seu" Outro, ou
com aquilo que ele desaprova, " prêmio" do qual procede o prazer
de ler.45 Assim se esclarece a dialética cujas figuras destacamos.
O efeito cativante deste trabalho de troca ambíguo entre o incons­
ciente e o texto é essa impressão à qual Freud, escritor do caso clínico,
é tão sensível, a saber, que, retomadas no só-depois imediato, as
histórias neuróticas sejam " legíveis como romances" .46 De modo que
Freud, ele próprio um grande leitor,47 se encontra no dever de criar
um verdadeiro " gênero literário" ,48 para fazer justiça ao texto, ao qual
ele dá seus títulos de nobreza. Se é preciso escrever a neurose, obcecado
pela " bagunça" , é porque, realmente, ela se dá a ler como " obra de
arte da natureza psíquica" .49

NOTAS AO CAPÍTULO VI

1 . O ego e o id, cap. 11, GW XIII, p.248 [ESB vol. XIX].


2. Vamos recordar que o " bloco mágico" , " quadro para escrever sobre o qual
se podem apagar as notas por um simples gesto de mão" , é composto por " um
pedaço de resina ou de cera marrom-escuro" , " recoberto por uma folha fina e
translúcida fixada em sua borda superior e livre em seu bordo inferior" ,
comportando duas camadas, " uma folha de celulóide transparente" e um " papel
encerado fino e translúcido" . É isso que permite a Freud representar a (iupla
inscrição, efeito " mágico" do aparelho mnésico, graças a essa repartição das duas
funções entre dois sistemas interconectados; trad. fr. in ldées, résultats, problemes,
Il, p. 1 2 1 -2.
3. Op. cit., p. l 23.
4. Op. cit., p . 1 24.
5. " La création littéraire et le rêve eveillé" , 1 908, in Essais de psychanalyse
appliquée.
6. Op. cit., p.76
.

7. Op. cit., p.77.


8. Cf. infra, seção III.
9. Sabe-se que o prefixo Ver- designa em alemão uma noção semântica de
disfunção que se dá em francês [e em português] de maneira polissêmica: Verlesen
deve, pois, ser entendido no sentido de leitura atravessada, sem que a idéia de
" erro de leitura" conote exterioridade: é uma afecção do próprio ler, que entra
em contradição com a função da leitura, mas que a supõe (o que a noção do
des-ler traduz melhor).
a letra 147

1 O. O capítulo VI da Psicopatologia da vida quotidiana é consagrado à Verlesen


e ao Verschreiben (erros de leitura e de escrita).
1 1 . GW IV, p. 1 46; a tradução francesa, Payot, p. 1 42, desconhece a noção de
" reivindicação" (Anspruch) da idéia.
1 2. É preciso ir pescar essa distinção principal entre o oitavo e o décimo
exemplos da lista de casos, de tal modo Freud parece preocupado em inscrever
sua " regra" no próprio decorrer de seu desenvolvimento dos efeitos de distorção
particulares da letra, mais que como princípio explicativo global.
1 3 . GV IV, p. 1 25.
14. Op. cit., p. 1 26.
1-5. Op. cit., p. 1 25.
1 6. Op. cit., p. l 26
1 7. Ver exemplos 1 , 2 Uornais), 4 (anúncio).
1 8. Ver exemplos 9, 1 0.
1 9. Considerações sobre a guerra e a morte, 1 9 1 5 .
20. GW IV, p. l 25.
21. Essa aproximação fundamental encontra-se no capítulo VI da Traumdeutung
sobre o " trabalho do sonho" , na seção C, dedicada ao " meio de representação
do sonho" ou " procedimento de figuração" a propósito da expressão das relações
lógicas no sonho - o que impõe a aproximação entre essas duas " figuras" .
22. GW II-III, p.322
23. Freud não cessou de enfatizar a dimensão de " investigação" e de " pesquisa"
do desenvolvimento edipiano, cf. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade.
24. Esse fato é assinalado desde o primeiro capítulo da Traumdeutung, seção
E, GW II-III, p.62.
25. Cf. a nota da seção A do Capítulo VII da Traumdeutung, GW II-III, p.536.
26. Cf. O chiste nas suas relações com o inconsciente, II Parte, cap. V, in GW
VI, p. l 72, onde se dá um exemplo de "pergunta divertida" : " Que é um canibal
que devorou o pai e a mãe?" - Resposta: " Um órfão." "E se ele tiver comido,
além disso, seus outros parentes?" - " Um herdeiro universal." "E onde tal
indivíduo ainda encontra simpatia? No dicionário" (Konversationslexicon), na
·

letra S (unter S)."


27. " Bate-se numa criança, contribuição à gênese das perversões sexuais" , in
Névrose, psychose et perversion, PUF, p.220.
28. Cf. " História de uma neurose infantil - o Homem dos Lobos" , in Cinq
Psychanalyses, p.344, onde são tecidos, traço a traço, " Chapeuzinho Vermelho" ,
" O lobo e os sete cabritinhos" , e a " História do lenhador e do lobo" .
29. Fragmentos da análise de um caso de histeria, GW V, p.262 [ESB vol.
VII].
30. Op. cit., p.266.
3 1 . Para a elaboração temática detalhada dessa problemática, remetemos a
nosso texto " Le moment esthétique du symptôme. Le sujet de l'interprétation chez
Freud ", in Cahiers de psychologie de l'art et de la culture, n. l 2, École Nationale
·

Supérieure des Beaux-Arts, inverno de 1 986-7, p. l 4 1 -58.


32. O outro exemplo era a audição do som de trompa (analisado em nosso
artigo citado, p. l 54).
33. S. Freud, L 'Homme aux rats. Journal d 'une analyse, PUF, 1 974, p.36 (texto
alemão), p. l O l (texto francês). Como se vê, Freud comete um curioso lapso,
1 48 os elementos

escrevendo " Poesia e ficção" em vez de "Poesia e verdade" - erro que se repete
às p.42- 1 1 3 e é corrigido nas p.57- 1 43.
34. Op. cit., p.34-98.
35. Memórias de Goethe, I Parte, "Poesia e realidade" . Citamos de acordo
com a tradução publicada pela Bibliotheque Charpentier, p.252.
36. " Notas sobre um caso de neurose obsessiva" , in Cinq psychanalyses, p.232.
37. Observe-se que, por decreto municipal, invocava-se a proibição de tocar
trompa na cidade, o que tomava impossível a própria infração obsessiva! ...
38. É assim que situaríamos o " lido" na dialética da coisa restituída · supra,
cap. v.
39. Análise terminável e interminável, GW XVI, p.78, cap. IV. [ESB vol. XXIII].
40. Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise, in GW VIII, p.386
[ESB vol. XII).
4 1 . S. Freud, Diário de uma análise, op. cit., p.63.
42. GW XIII, p.304, Observações sobre a teoria e a prática da interpretação
de sonhos, 1 923, seção V.
43. Carta de 22 de dezembro de 1 897, in Naissance de Úl psychanalyse, p.213.
44. " Conferências introdutórias" , GW XI, p . l 39, IX Conferência.
45. Encontramos sua manifestação espetacular na emoção de Malebranche,
lendo o Tratado do homem de Descartes, com o objetivo primitivo de refutá-lo:
"A alegria de aprender um número tão grande de coisas novas causou-lhe
palpitações cardíacas tão violentas que era obrigado a largar o livro a cada instante
e interromper a leitura para respirar melhor" (segundo seu biógrafo, o padre
André). Existe aí como que uma parábola do evento de que reconstituímos a trama
metapsicológica: o do sujeito tocado em pleno coração pela letra da coisa tão
esperada e tão inesperada que lhe " tira o fôlego" .
46. Conhecem-se as desculpas dos Estudos sobre a histeria, em que Freud
opõe o prazer da leitura proporcionado pelos seus relatos de casos e o " carimbo
de cientificidade" , que se teria o direito de esperar delas e que ele relaciona com
o caráter da Novelle (relato romanceado) da história histérica, cf. infra, cap. X.
47. Vamos contentar-nos em observar que as leituras favoritas de Freud, tal
como se depreende do famoso questionário de 1 9 1 0, manifestam uma constante:
os autores, além da sua diversidade (G. Keller, C. F. Meyer, Multatuli, A. France,
Kipling, Zola, Merejkowski, Twain, Macaulay, Gomperz), apresentam uma visão
crítica e realista dô mundo social, ligada a um projeto ético e uma visão satírica:
a dimensão parabólica é sempre associada a um sentido propriamente histórico
do quadro (erudito ou romanceado). Tem-se aí como que um compromisso entre
a Phantasie e o sentido do real que se opõe ao mundo de satisfação neurótica do
livro ...
48. Sobre essa problemática, remetemos a nosso estudo " Freud, romancier du
symptôme" , prefácio de H. Stroeken, En analyse avec Freud, Payot, 1 987.
49. Conhece-se a queixa a Jung quando da redação do caso do Homem dos
Ratos: " Que desperdício, nossas reproduções, como fazemos em pedaços, lamen­
tavelmente, essas grandes obras de arte da natureza psíquica" , 30 de junho de
1 909, in Correspondance S. Freud, C.G. Jung, Gallimard, vol. I, p.3 1 7.
TERCEIRA PARTE

AS MARGENS
O aquém da representação:
da situação metapsicológica

A "doutrina dos Elementos " tendo demarcado o "núcleo " da meta­


psicologia, encontraremos situadas aqui as "margens ", ou seja, aquilo
a que a "doutrina da representação " ( Vorstellungslehre) dá acesso
como a seus próprios limites. Problemática que, longe de ser"mar­
ginal", assume ainda maior destaque como "teoria do evento ". É,
essencialmente, a "doutrina do afeto " (Affektlehre) (tempo I) que dá
acesso, em seus termos próprios, à problemática da corporeidade. É,
em segundo lugar, a questão do Ato, esse "outro " da representação
que permite a colocação em perspectiva metapsicológica da terapia
analítica (tempo ll). É, enfim, a questão da escrita clínica como
"epílogo " (Nacherziihlung) da metapsicologia (tempo lll). O móbil
desta parte é recapturar o registro do evento, em suas diversas figuras,
não como "ilhotas " - exigindo uma "emenda " (doutrinária ou
"técnica ") -, mas como a recaída, em sua própria complexidade,
do movimento de fundo da metapsicologia. Esta não é apenas
"superestrutura teórica " (como nas Partes I e ll), mas "espírito " de
rigor animador de uma prática (Parte lll).
CAPÍTULO VII

O AFETO

O evento metapsicológico

É sob o aspecto do afeto que se anuncia a borda do que designamos


como " forma metapsicológica" . Se é verdade que a metapsicologia
tem por núcleo uma certa Vorstellungslehre, coloca-se a questão do
papel que aí desempenha aquilo que não se reduz à representação, ou
seja, o registro da afetividade. Aborda-se, aí, a " doutrina do afeto"
(Affektlehre).
Encontramo-nos e m face de u ma dupla tendência. Por um lado,
Freud não opõe qualquer dificuldade ao reconhecimento de um papel
para o " afeto" , ao lado da representação - e portanto em igualdade
de direitos com esta, como " representante" da pulsão -, de modo
que a teoria do afeto mereceria figurar legitimamente no seio da
" doutrina" metapsicológica central. Mas, por outro lado, tudo se passa
como se o " representante-representação" fosse o representante " de­
finitivo" , o afeto designando uma " margem" que j amais deve ser
" esquecida" , mas não podendo reivindicar o mesmo estatuto de seu
" simétrico" representacional. Existe aí, logo se percebe, um terreno
propício para um dos debates metapsicológicos mais apaixonados da
era pós-freudiana. O mais prudente é restituir o momento do afeto ao
seu lugar próprio na construção do objeto metapsicológico, para lhe
reconhecer o lugar próprio em alguma parte entre os hinos à afetividade
que o " hipostasiam" e as intelectualizações que o desencarnam. Há
aí um " vadear" que decide a captação da metapsicologia no real do
sujeito. Por trás do afeto, suspeita-se, é a sombra do Corpo que vamos
encontrar, tanto é verdade que o afeto, sob um de seus aspectos, dá
para a psique, avesso da vida representativa, e evoca por outro lado
as potências do Corpo, verdadeiro desafio à metapsicologia.

151
! 52 as margens

Da afetividade ao afeto: a "doutrina do afeto"

O gesto metapsicológico tem por efeito patente fazer passar a noção


de " afeto" ao primeiro plano, relativizando a noção genérica de
" afetividade" . Isso não quer dizer que esta desapareça do texto
freudiano: existe realmente uma Affektivitiit .que remete a registros tão
diversos quanto a afetividade do analista, o " amor à primeira vista" ,
a dependênci a ou o sentimento social. Mais fundamentalmente, a teoria
da afetividade psicanalítica é assimilada explicitamente por Freud à
'
" teoria da libido" : 1 " a libido é uma expressão da doutrina da
afetividade" (Affektivitiitslehre).
Mas, precisamente, tudo se passa como se o interesse fosse
transferido desse registro do " afetivo" , definido classicamente como
o " caráter genérico do prazer, da dor e das emoções" - vasto domínio
englobando, para além das " emoções" , as " paixões" , " sentimentos"
e o " humor" 2 - , para o funcior·<lP1ento dessa pequena unidade que
é o " afeto" . Trata-se, portanto, de compreender a lógica pela qual
esse vasto continente da afetividade é subvertido: esta foi ancorada
na metafísica da alma e do corpo - depois, redefinida pela objetivi­
dade psicológica na " teoria das emoções" -, um momento decisivo
para isso foi a intervenção de William James, definindo a emoção
como o estado fi siológico que segue a percepção e se transforma em
estado de consciência emotivo (medo, por exemplo), quando ela havia
até então sido caracterizada como estado mental desencadeando
reações neurovegetativas.
É com a " psicologia científica alemã" que a noção de Affekt se vê
promovida. Do mesmo modo, a doutrina freudiana seria ininteligível
sem a grande inovação de Wundt: lá onde a psicologia clássica definia
a " afecção" como " todo movimento da sensibilidade, consistindo
numa mudança de estado gerada por uma causa exterior" ,3 Wundt
introduziu o " afeto" como " aquilo que coloca em movimento (móvel)
e vem da sensibilidade" . De imediato, o que a noção de " afetividade"
comporta de passividade e receptividade - " reação do ser que sente"
-, sem desaparecer, abre a via para que se leve em conta uma
dinâmica do afeto. Foi nos Princípios de psicologia fisiológica de
Wundt ( 1 874) que Freud pôde encontrar a idéia de um processo
psicofisiológico composto por um elemento " representacional" (" mo­
tivo" ) e um elemento " afetivo" (móvel), designado por Wundt como
Triebfeder.
o afeto 1 53

Se o afeto é realmente, em certo sentido, " sofrido" , ele serve


também para designar aquilo que, vindo da " sensibilidade" , põe em
movimento alguma coisa da dinâmica psíquica. Essa noção " psico­
motriz" vai passar, na metapsicologia freudiana, pela dupla idéia de
" moção pulsional" (Triebregung) e de descarga característica do afeto
- núcleo econômico-dinâmico que lhe assegura um estatuto na vida
psíquica -, e não somente como emanando do " fundo afetivo" . O
" afeto" vem mesmo do corpo - ele exprime, nesse sentido, como
veremos, algo do " fundo" corporal da " pulsão" ; mas é a título de
" móvel" que adquire uma significação psíquica de pleno direito.
Mas compreende-se, ao mesmo tempo, que o afeto é da ordem do
evento e que ele quase não se pode falar dele a não ser através do
elemento quantitativo que significa a sua emergência , - ou seja, a
descarga. Existe " afeto" quando alguma coisa se passa na vida
psíquica: mas essa trans-formação praticamente não se significa senão
por certo " dispêndio" energético. É por isso que é como " quantum
de afeto" (Affektbetrag) que Freud evoca o afeto, e somos referidos
à sua definição como esse " invariante" , espécie de quantidade (= X)
estável que se deve postular como substrato às transformações do
afeto. O " quantum de afeto" corresponde à " pulsão, na medida em
que esta se destacou da representação e encontra sua expressão
adequada à sua quantidade em processos que se nos tornam sensíveis
como afetos." 4
Como se vê, o afeto aproxima-nos da pulsão " bruta" - definida
como " descarga" . Mas seria mais justo dizer que o afeto é a
subjetivação da pulsão da qual se retirou a " representação" . O afeto
é, pois, sempre realmente " sentido" � e é contraditório falar em
" sentimentos inconscientes" , já que um sentimento, por definição, é
experimentado. Mas, quando o afeto chega a se tornar um estado
subjetivo, já se desenvolveu um processo de " descarga" que se reduz
a um dispêndio (virtualmente " mensurável" ) . Entre o processo e o
evento, o afeto preserva, portanto, seu mistério.
Haveria, portanto, pouco a se dizer sobre o afeto se não se pudesse
descrever seus " destinos" , seja na sua realidade clínica, seja na sua
fórmula metapsicológica.
- Do primeiro ponto de vista, parece que um afeto é suscetível
de " conversão" (somática) - como na histeria -, de " deslocamento"
(intelectual) - como nas obsessões -, de " transformação" (do
humor) - como na neurose de angústia ou na melancolia. O afeto
revela-se, assim, em sua alquimia sintomática: é preciso renunciar a
determinar o que ele " é" para compreender o que ele " se torna" .
1 54 as margens

- Do segundo ponto de vista, constata-se que " o afeto permanece


como tal (total ou parcialmente) ou sofre uma transformação num
quantum de afeto qualitativamente outro (angústia), ou é reprimido,
isto é, seu desenvolvimento é impedido em princípio" .5 O afeto quase
que só pode conhecer a " conversão" e a " repressão" : entre as duas,
abre-se a possibilidade de sua transformação em angústia.
Do afeto temos, pois, a fazer um " retrato metapsicológico" : trata-se,
com efeito, de desenhar seus contornos, com nuanças tanto quanto
com precisão. Não se poderia " tematizar" o afeto segundo o mesmo
modo que a representação, já que esse é um " evento" a se restituir.
A descrição precedente já deixa entrever os " traços" desse retrato.
Mas é na situação originária onde o " poder" do afeto, na sua própria
ambigüidade, se manifestou, ou seja, a histeria, " conjuntura" em que
se enraíza sua descoberta, que precisamos remeter-nos: ela absorve
aí seus limites próprios, antes de se especificar pela consideração das
configuraçõef; sintomáticas vizinhas.
É realmente por essa via que uma concepção do " afeto normal"
se esboça como " memória" sui generis - mas encontra no fenômeno
da angústia sua prova de verdade a contrario.

I. A CENA PRIMITIVA DO AFETO: A HISTERIA

1. O "afeto encurralado"

Foi pela histeria, como se sabe, que a psicanálise viu manifestar-se a


lógica singular do afeto. Logo, é a essa sede histérica do afeto que
se deve remontar, já que é em tomo dela que se constrói o " retrato
metapsicológico" do afeto, do qual Freud não cessa de aperfeiçoar
os " traços" .
Se, com efeito, " as histéricas sofrem essencialmente de reminis­
cências" ,6 elas atestam igualmente um certo " encurralamento" do
afeto. Isso basta para sublinhar a descoberta paradoxal de que, em
contraste com a exuberância afetiva pela qual se assinala a " afetivi­
dade" histérica, o recalcamento histérico se nodula em tomo de um
afeto que vem a ser " encurralado" (eingeklemmt = literalmente:
" apertado" , " estreitado" como entre duas " pinças" [Klemmen]). É a
partir dessa descarga impossível que se dá a " entrada na doença" : o
afeto leva a marca desse trauma primitivo, desde que " todo incidente
o afeto 1 55

capaz de provocar afetos penosos (medo, ansiedade, vergonha) pode


agir à maneira de um choque 'psicológico"' .7 Mas, igualmente, esse
afeto primitivo - ligado a alguma grande " cena" de humilhação ­
é acessível só-depois, pela vinda à luz da lembrança do incidente
desencadeador: é a partir da expressão verbal que esse enquistamento
afetivo primitivo se revela. A " ab-reação" permite, pois, medir, na
extremidade do percurso, o que se passou na outra extremidade: não
há mesmo outro acesso - não apenas de " cura" , mas de conhecimento
da " nodulação afetiva" -, senão essa expulsão do afeto primitivo.
Deve-se ressaltar que o destino do afeto é, para o autor dos Estudos
sobre a histeria, " o elemento determinante (das Massgebende) tanto
para o adoecer quanto para o restabelecimento" , " o adoecer" produ­
zindo-se " quando os afetos desenvolvidos em situações patógenas têm
barradas as vias de acesso normal" .8 Melhor: " a essência do adoecer
consiste no fato de que esses afetos 'bloqueados ' sofrem uma utilização
anormal" , seja como " cargas da vida psíquica" , sej a como " inervações
somáticas e inibições" . O processo histérico revela, pois, de uma vez
por todas, o modelo econômico da Affektlehre freudiana.
Mais precisamente, se o afeto acompanha o choque primitivo, ele
próprio nada mais é que o efeito de um " distúrbio" , este referente à
representação. É porque existe alguma coisa que vê recusado seu
acesso à consciência que o afeto é separado de " sua" representação.
Essa liberação do afeto é, portanto, o sinal de um " irrepresentável"
ativo. A labilidade afetiva da histérica não deve fazer crer numa
causalidade emocional (armadilha da histeria para toda teoria da
histeria!): os destinos do afeto devem ser ligados à dinâmica " repre­
sentacional" do recalcamento.
O momento de verdade espetacular desse " compromisso" é forne­
cido pelos famosos " choros histéricos" : num contexto de aparente
indiferença, aparece de improviso, diante do espectador surpreso, uma
secreção lacrimal que faz saltar aos olhos um mal-estar do interessado,
tempestade corporal que poderia passar por uma linguagem direta do
afeto. O que mostram as lágrimas, imotivadas para o(a) próprio(a)
interessado(a), é precisamente a " separação" (Trennung) entre a
representação e o afeto. O retomo inopinado do afeto - sofrimento
e gozo misturados - assinala a ação retroativa da " reminiscência" .
Sinal pontual do recalque: a crise de lágrimas histérica é, nesse sentido,
tristeza retroativa, comemoração dramatizada da " cena originária" .
Mas o que a tela das lágrimas oculta é essa representação que se vê
" evocada" enigmaticamente e da qual o sujeito se sente desconectado,
1 56 as margens

ao mesmo tempo em que experimenta, contra a sua vontade/consen­


tindo, a sua sedução.

2. Da emoção ao afeto: Freud com Darwin

A teoria freudiana da histeria, ao mesmo tempo em que se destaca


dos modelos da afetividade, sob a pressão da experiência clínica
singular da histeria, parece pagar um estranho tributo a certa concepção
do " comportamento emocional" : este se marca por certas referências
à concepção darwiniana de A expressão das emoções no homem e nos
animais ( 1 872).9 Sabe-se que, nesse terreno, Darwin busca verificar
a continuidade comportamental entre o animal e o homem estabelecida
em A descendência do homem ( 1 870). A noção de uma " linguagem ·
da emoções" dá ao evolucionismo sua caução psicológica, pela idéia
de uma derivação dos comportamentos de uma espécie a outra. É por
isso que Darwin se dedica a formular os " princípios" que regem a
expressão das emoções: " associação dos hábitos úteis" , " antítese" e
" ação direta do sistema nervoso" .10 O movimento afetivo surge como
a revivescência de uma situação que teve sua utilidade (no plano
filogenético), mesmo quando ela parece atualmente inútil ; a reação a
uma emoção oposta aparece como um motor da expressão; enfim, é
possível postular uma tendência involuntária para a descarga. Vê-se
como se esboça um modelo comportamental econômico-dinâmico que
explica o paradoxo da emoção, função de desordem aparente que
deve, no entanto, encontrar sua significação em sua " utilidade" ao
mesmo tempo real e mascarada. Melhor: uma dimensão " histórica"
faz sua aparição, as atitudes emocionais individuais atuais encontrando
seu sentido como " relíquias de comportamentos anteriores" 1 1 - idéia
que vai passar em Freud como idéia-força da explicação metapsico­
lógica.
Ora, a histérica ilustra à sua maneira, original como convém, as
leis darwinianas da expressão das emoções. Assim, quando Emmy V.
N . . . " brincava incansavelmente com seus dedos ( ... ) ou torcia as mãos
( . . . ) por não dever chorar" ,12 Freud conclui : " Essa motivação lembra
de maneira cativante um dos princípios darwinianos de explicação do
movimento de expressão (Ausdrucksbewegung), o princípio de deri­
vação da excitação (Ableitung der Erregung), pelo qual ele explica,
por exemplo, o movimento da cauda dos cães." Compreende-se aqui,
in statu nascendi, o sentido motor da expressão de afeto - que a
o afeto 1 57

metapsicologia vai tomar ao pé da letra, ao mesmo tempo integrando-o


à sua linguagem: a inervação motora deriva das excitações dolorosas
{aqui, os choros). O que cria um parentesco entre o comportamento
do cliente do dentista que, por não poder gritar e agitar-se, sapateia
para expressar, sob forma de descarga motora, a excitação entravada
e a histérica que dá livre curso ao seu sofrimento na efusão lacrimal
·
(a " dor de dentes" faria, assim, uma bela metáfora para o sofrimento
neurótico, ainda que sob forma trivial !).
Igualmente, observando o trajeto, em Elisabeth v.R . . . , dos " movi­
mentos de sentimentos" (Gemütsbewegungen) a partir do fato de
" engolir uma ofensa à qual não se pode responder" até a formação
do sintoma histérico, 13 Freud se recorda: " todas essas sensações e
inervações pertencem à expressão dos movimentos de sentimentos
que, como Darwin nos ensinou, consiste em ações (Leistungen)
originariamente significa11tes e úteis" : daí o " engolir" histérico do
afeto que sela sua saída patógena.
A teoria darwiniana apresenta o interesse de correlacionar o evento
motor à significação expressiva: aquilo que é aparentemente insig­
nificante se impõe como signo a se interpretar. Tal é o afeto: uma
expressão em movimento, tanto quanto um movimento expressivo,
que revela uma estratégia de derivação-diversão. É sob a édige do
princípio darwiniano psicobiológico de " utilidade" que Freud recolhe,
pois, a idéia de uma significação que deve, custe o que custar,
alcançar a expressão - se não expressis verbis, ao menos pelas
" vozes" do corpo. Aqui está a " derivação" (Ableitung) que funda
a interpretação (Deutung) - como na interpretação darwiniana do
riso que se realiza nas " ações musculares" , ou no sorriso de satisfação
do bebê saciado.14
É nos traços da histérica, deformados pelo terror e pela repulsa,
que Freud recolhe, como verdadeiro " observador" , esse trabalho do
sintoma em sua própria visibilidade - a náusea histérica formando,
de alguma forma, o seu paradigma, de vez que ali algo de irrepresen­
tável volta no " dejeto" corporal sob forma de evento revulsivo que
atinge o próprio corpo.
Vamos observar que Freud parece, sobretudo, utilizar o terceiro
princípio darwiniano evocado acima, propriamente "econômico" ,
m ai s que os dois primeiros, mai s �" dinâmicos" . É que, justamente, a
Affektlehre encontra o centro de gravidade no evento econômico: ele
só faz remeter " alusivamente" a uma dinâmica que encontra na
1 58 as margens

representação o seu lugar próprio. O afeto é, nem mais nem menos,


a " ponta" dessa dinâmica. Ele tolera, a esse título, uma descrição do
tipo " comportamental" , sem excluir a possibilidade de interrogar o
que esse " distúrbio" comportamental dissimula e de que conflito,
numa outra cena, ele " alivia" .
Desde que a " representação inconciliável" (unvertriiglich) se vê
submetida à evicção, o Eu deve então encarregar-se de um " símbolo
mnésico" que marca o próprio lugar do recalcado. O afeto também
deve ser colocado do lado dessa " simbolização" - Freud fala, nesse
sentido, de Affektsymbol. Desse modo, o afeto não fica limitado, na
histérica, à sua função de " descarga" : ele traduz uma atividade de
simbolização substitutiva.

3. Afeto e trauma

Um laço íntimo liga o sintoma histérico ao afeto como tal. Freud o


exprime apresentando os afetos como os paradigmas de normalidade
(Normalbilder) dos ataques histéricos. Isso significa muito: o que se
mostra no sismo afetivo da histérica é a própria realidade da situação
psíquica que é a Affektleben (vida afetiva) - o que associa a realidade
filogenética ao vivido ontogenético: " Os est�dos de afetos" , dirá
Freud em 1926, " são incorporados à vida psíquica como recaídas de
eventos traumáticos arcaicos (uralten) e são ressuscitados, em situa­
ções semelhantes, como símbolos mnésicos" ; 15 é sob esse título que
têm o valor de " equivalentes" (normais) do ataque histérico. O que
é um modo de significar que existe uma histeria c'rônica da espécie
humana, atestável pelo afeto em seu regime normal. Ser presa de um
afeto, por " normal" que seja, seria ao mesmo tempo fazer um
" pequeno ataque histérico" , comemorando um trauma de idade
canônica!
O afeto, pois, é mesmo da ordem da repetição traumática, e nesse
sentido " construído como um ataque histérico, sendo como este a
recaída de uma reminiscência" . O que especifica o afeto é essa
" captação" numa temporalidade antecedente que reenvia à pré-histó­
ria, a do indivíduo e aquela, propriamente dita, da espécie.
A neurose obsessiva, esse " dialeto da língua histérica" , mostra um
outro trabalho sobre o afeto. Na obsessão, " a separação entre a
representação irreconciliável e o afeto é operada" , mas, em contraste
com a conversão histérica, " o afeto deve necessariamente permanecer
o afeto 159

no domínio psíquico" 16 Assim, por um lado, a representação se vê


.

" enfraquecida" e isolada do resto das associações; por outro lado:


" Seu afeto tornado livre liga-se a outras representações, em si mesmas
não irreconciliáveis, que, por essa " falsa conexão" , se transformam
em representações obsessivas." Como se vê, uma representação
assume seu caráter obsessivo pela conexão do afeto desconectado da
representação recalcada com a primeira representação a aparecer que
é carregada de afeto (que aí se aloja, de certa forma, como o cuco no
ninho alheio!. .. ) .
Assim, está aberto o caminho para esse trabalho desmedido do
obsessivo sobre o afeto: capaz de verter lágrimas pelo desaparecimento
de um estranho depois de ter mantido os olhos secos na perda de
um próximo (de um pai), em suma, de " deslocar" o afeto e de afetar
assim o " distanciamento" . No mecanismo notável do " isolamento" ,
o evento desagradável vê-se despojado de seu afeto graças à inter­
posição de uma " pausa" � " durante a qual nada mais se pode
..

produzir, nenhuma percepção pode mais ocorrer nem qualquer ação


se efetuar" . 1 7
Mas se compreende que o afeto pode surgir, no obsessivo, com o
caráter pungente do in-esperado, lá onde menos se esperava - o que
compromete sua reputação legendária de " frieza" . Sabe-se que " obla­
tividade" o obsessivo pode testemunhar, pondo-se a serviço do desejo
do Outro, tornando-se, de alguma forma, afeto puro.

Il. 0 AFETO E SEU DESTINO INCONSCIENTE:


METAPSICOLOGIA DA ANGÚSTIA
E DOUTRINA DO AFETO

1. Um estranho afeto

Podemos agora perceber que a angústia designa o momento de verdade


da Affektlehre. Bem mais que um afeto, é um " destino" do afeto, do
qual se discerne que, ao lado da " conservação" e da " repressão" ,
esse é o destino por excelência, exemplar da dinâmica da defesa.
A angústia pode igualmente compreender-se pelo enigma que
coloca, se a considerarmos pelo que ela também é, um " estado de
afeto" (Affektzustand): ninguém mais que o sujeito angustiado se sente
presa de um certo afeto que tem " poder" sobre ele, mas sobre o qual ·
1 60 as margens

não pode dizer muito: é ao mesmo tempo um real acabrunhante e


irrecusável e um estado desqualificado. Mas por trás desse " estado" ,
tão pregnante que se impõe como um dado, existe precisamente certo
trabalho de " transformação" ( Verwandlung). Entre a conservação
bruta e a repressão cega, a angústia " sinaliza" a única " meta-morfose"
efetiva do afeto.
Igualmente, a " decomposição" desse algo muito " composto" que
é o afeto vale para a angústia. É possível discernir aí, por um lado,
" certas inervações motoras ou descargas" ; por outro lado, " certas
sensações" onde novamente se podem distinguir a " percepção de
ações motoras" e de " sensações de prazer-desprazer" , " sensações.
corporais" que dão " a tonalidade fundamental" (Grundton) do vivi­
do. 18 É esse coquetel sensório-motor que se torna sensível, eminente­
mente, na angústia, na sua mistura de passividade e atividade, de
desprazer e erotização.
É por seu caráter indeterminado que a angústia " destoa" no cortejo
dos afetos: afeto paradoxal, que é " sentido" sem ser identificado, mas
por isso mesmo, de certa forma, " afeto puro" , já que algo de sua
essência se desvela assim. O sujeito angustiado seria presa do afeto
em si !
E com razão: esse seria o momento em que ele esbarra nesse " ponto
cego" de disjunção entre a representação (" recalcada" ) e o afeto.
Encontra-se aí a forma endógena do medo, já que dirigida ao perigo
propriamente interno. O afeto, nesse sentido, seria esse vivido oriundo
da transformação da angústia, espécie de angústia subjetivada em
" percepção" . Nisso se avalia em que a angústia, longe de ser uma
" patologia" pura e simples, abre caminho para a essência do afeto.
Com efeito, pode-se entrever que a angústia é a " marca de fábrica"
inconsciente do afeto, e por isso mesmo o virtual " equivalente geral"
de todo afeto: " É possível que o desenvolvimento de afeto proceda
diretamente do sistema Ics, e nesse caso tem sempre o caráter de
angústia, contra a qual são trocados todos os afetos 'recalcados ' ." 19
Existe aí uma espécie de " valor" comum a todo afeto, de vez que
ele é suscetível, numa espécie de equivalente psíquico da " forma
de mercadoria" , de ser " trocado" por angústia. A angústia, nisso
tudo, é ao mesmo tempo o afeto menos específico e o que nos faz
tocar mais de perto essa " essência" não encontrável do afeto, j á
que é o " denominador comum" d e todo afeto, s u a realidade
inconsciente.
o afeto 161

2. O "sinal de angústia", o u a memória-de-afeto

A passagem determinante àquilo que é designado comumente como


sua " segunda teoria da angústia" permite a Freud distinguir a função
de " sinal" que distingue a postura do Eu diante desse perigo pulsional.
Deve-se compreender que o afeto está, de certa forma, presente duas
vezes: como afeto sofrido passivamente, retorno mecânico do passado
na forma " automática" de angústia, e como " sinal de angústia" que
faz disso um motivo de defesa do Eu.20 Por esse último aspecto, a
noção de " símbolo mnésico" , presente desde a concepção da histeria
originária (supra), assume sua dimensão própria. Dizer que o Eu é
alertado por meio da angústia diante da " escalada" de um perigo
pulsional é atribuir à angústia uma verdadeira função de memória e
reconhecer nesse sentido uma verdadeira memorização do afeto.
Freud descreve aí um verdadeiro " modo de emprego" do afeto, do
qual " o Eu se apropria" e que " reproduz como alerta" (Inibição,
sintoma e angústia).21 Graças a essa função de provocar o afeto de
angústia conforme suas necessidades, o Eu · se submete à angústia
como a uma vacinação, no objetivo de escapar, graças a um afeto
atenuado, a um ataque virulento. Forma de economia, ainda, mas
particularmente sofisticada, que remete a uma lógica de " antecipa­
ção" . Velha estratégia que faz do ataque o meio de prevenir um
rompimento da defesa e volta a ligar a angústia ao trabalho do
pensamento, sugerindo mesmo que há um " pensamento da angústia"
e uma " inteligência" do afeto.
Com essa noção de Affektsignal, Freud abre o caminho para uma
verdadeira " semi ótica do afeto" .
Dessa " memória-de-afeto" testemunha, à sua maneira, o Unheim­
fiche, " sentimento" (Gefühl ) ligado a certas situações que despertam
" a vivência de alguma coisa de aterrorizante que refere a alguma
coisa conhecida anteriormente, há muito tempo familiar" .22 Nesse
afeto contraditório, de novo e velho misturados, é uma verdadeira
" sensação" do recalcado que se anuncia. A " impressão" (Eindruck)
atual re-atualiza um recalcado por via desse afeto complexo: quando
o recalcado faz retorno, é por um afeto que ele se inscreve no sujeito.
O que faz signo, assim, é um certo contraste entre a insistência do
afeto e a indeterminação da representação. Nisso, vamos observar, o
afeto confirma sua função de " sinal" , como se o Eu percebesse que
" há recalcado no ar" !
1 62 as margens

3. O "luto" entre afeto e "trabalho "

É nesse terreno d a melancolia que Freud estabelece o trabalho que


o afeto propriamente dito exprime e dissimula.
Encontra-se realmente, em Freud, a expressão " afeto de luto" ;23 aí ·

está o sentido literal - o luto é " dor" - e comum: o luto designa


o estado afetivo consecutivo à perda real. Pode-se perceber melhor a
tese audaciosa de Freud em Luto e melancolia e seu caráter subversivo
com relação à concepção corrente de afeto. Apresentando o luto
(Trauer) como o " afeto normal" (Normalaffekt),Z4 do qual a melancolia
é o avesso patológico, esse " distúrbio" , de certa forma normal, que
é o luto, se vê suscetível de esclarecer, a título de " exemplo normal"
(Normalvorbild), esse desregramento profundo do afeto, que é a
melancolia. Todo o escrito apóia-se nessa " imagem comum" (Ge­
samtbild) dessas duas figuras da " vida afetiva" .
Ora, o que se revela pelo paralelismo entre essas duas " afecções"
é a reação à perda de uma pessoa amada que determina certo " humor
doloroso" (schmerzliche Stimmung). O que essa perda de objeto requer
é certo " trabalho de luto" (Trauerarbeit). A própria " alteração de
humor" ( Verstimmung) marca, pois, um certo trabalho psíquico,
realizado pelo luto e " fracassado" na melancolia. Introduzindo esse
" trabalho" , conjunto de procedimentos de realização psíquica da perda
e de elaboração do afeto doloroso, Freud rompe com a crença no afeto
como " estado" puro e simples: este nada mais é que a ponta aparente
de um processo de elaboração da separação do objeto. Essa " tristeza"
radical, que é o luto - normal ou patológico -, não passa do colorido
afetivo de uma elaboração subjacente.
Tal é, do ponto de vista que nos interessa - da elaboração
metapsicológica da Affektlehre -, a principal contribuição do escrito
sobre a melancolia.

4. Retrato metapsicológico do afeto

Podemos agora esboçar um modelo metapsicológico do afeto que


reconheça toda a sua significação, sem superestimar sua potência.
É na seção III do ensaio sobre O inconsciente que ele procede a
essa colocação em perspectiva. Afeto e representação são mesmo os
dois " representantes" da pulsão: são, mais preci s ::tmente, o duplo
modus cognoscendi da pulsão: " Se a pulsão não se ligasse a uma
o afeto 1 63

representação, ou se não viesse à luz como estado de afeto (Ajfekt­


zustaná), nada poderíamos saber sobre ela." 25 O afeto figura, pois,
como " manifestação" , ao lado do laço representacional, como acesso
à pulsão. Logo, o afeto é a pulsão na medida em que esta " emerge" .
É verdade também que Freud não dá crédito à idéia de uma simetria
entre os dois " deputados" da pulsão, já que, na ordem da Darstellung
metapsicológica, é, antes de mais nada, exclusivamente da repre­
sentação inconsciente que se trata. Não se deve concluir apressada­
mente que o afeto seja sacrificado ou desprezado: é necessário que
se vej a aí a sugestão de que, de alguma forma, é como " resto" da
representação que o afeto intervém. Ele remeteria, portanto, àquilo
que iria permanecer " no fundo" da pulsão, uma vez levada em conta
a representação.
Se é preciso começar pela Vorstellung é porque não há dificuldade
em se admitir a noção de uma " representação inconsciente" , distinta
da " representação consciente" . O mesmo não se dá com o afeto e a
afetividade. Não existe contradição nos termos, ao falar de um
sentimento ou de uma moção de afeto (Affektregung) inconscientes,
de vez que esta deve realmente ser percebida para existir (um afeto
" sente-se" , e é mesmo dessa maneira que ele se anuncia)? Fala-se,
então, impropriamente de " afeto inconsciente" (até mesmo de " sen­
timentos de culpa inconscientes" ) .
Isso deixa e m aberto a possibilidade de que o afeto sej a " desco­
nhecido" (verkannt), por deslocamento para uma outra representação.
É então que se torna legítimo, embora impróprio literalmente, falar
em " afeto inconsciente" , fazendo aqui, objetivamente, referência aos
" destinos do fator quantitativo" , do qual a sensação, como vimos,
não passa da " ponta" . Freud tem boas razões para relativizar a noção
de um afeto inconsciente - logo extrapolada em afetividade como
inconsciente - para voltar a atenção para essa " cinética" do afeto:
movimento de " migração" de um estado representacional a outro.
Seria abusivo, pela mesma razão subjacente, falar-se em " recalca­
mento do afeto" . É muito mais justo dizer que o afeto, ou melhor,
sua evolução, sofre uma " repressão" ( Unterdrückung), mas também
que aí está o objetivo do recalque propriamente dito. Com efeito, é
necessário que o afeto seja reprimido, i sto é, que ele não alcance a
expressão, para que o recalque seja efetivo. Aí está, pois, o " objetivo
da operação" (de recalcamento), a inibição do " desenvolvimento do
afeto" . 26
1 64 as margens

Entretanto, não se dá fim ao afeto tão facilmente (vamos observar


que, ao mesmo tempo em que pensa no aspecto " marginal" do afeto,
Freud só faz ressaltar seu poder de resistência): que se toma ele depois
do recalque? Se a representação, sobre a qual o recalque incide, falando
propriamente, é conservada como tal no " si stema inconsciente" , o
caso do afeto é mais delicado: é algo de reprimido, logo, que não tem
direito à expressão, mas que nem por isso é " francamente" assimilável
a uma " formação (Bildung) inconsciente" real. Devemos aqui prestar
atenção à precisão do termo escolhido pelo metapsicólogo, aqui em
pleno trabalho de identificação para fazer justiça a esse " ser" psíquico
de estatuto impreciso. O afeto é assimilável a uma " possibilidade de
rudimento (Ansatzmoglichkeit) que não conseguiu desenvolver-se" .
Se ousamos dizê-lo, portanto, ele não é " grande coisa" , mas " prenhe"
de possibilidades indefinidas, até mesmo infinitas - uma vez que, a
partir desse " começo" (tradução possível de Ansatz) ou " esboço" ,
pode desencadear-se uma rede de expressões inesperadas - o que
confirma a impressão sumária de que, com o afeto, " tudo é possível" .
É preciso ressaltar o espantoso estatuto metapsicológico desse ser
psíquico que é o afeto: nem francamente consciente - já que " candida­
to" à repressão -, nem nitidamente inconsciente - já que não
" reside" no sistema inconsciente de forma sedentária e estabelecida
- nele se deve reconhecer uma função " nômade" , até mesmo uma
" vocação" singular: a de " trocador" entre os " si stemas" . O afeto
conteria de alguma forma essa aptidão para " passar" do " consciente"
para o " inconsciente" de um momento para o outro - ainda que sob
condições estritas, que deveriam ser objeto de uma pesquisa clínica.
Freud situa o " afeto" , essa interessante formação anômica, do lado
de uma " luta" crônica entre os sistemas - consciente/inconsciente
- pelo reconhecimento e " domínio" . É i sso que lhe confere o caráter
inapreensível, mas também " estratégico" , na dinâmica psíquica,
dominada por esse antagonismo. Alguma coisa no próprio ser do afeto
" perturba" a diferença tópica e esclarece dessa maneira mesma, por
seus " destinos" , a tensão intersistêmica. Existe algo de " renitente" ,
de certa maneira estrutural, na afetividade que faz com que a
consciência só possa exercer sobre ela um " domínio relativo, perma­
necendo sempre menos eficaz do que sobre a " motilidade" , por
exemplo, esse outro registro " vizinho" . 27
Esta é a ocasião de lembrar que, se o recalque realiza a separação
entre o afeto e a representação, um afeto não se realiza enquanto " o
o afeto 1 65

trilhamento em direção a uma nova representação no sistema cons­


ciente" não for executado. Vamos entender que ele encontra aí uma
nova " representação substitutiva" .28 Compreende-se que o afeto se
define por essa pressão constante sobre o sistema consciente onde ele
se faz admitir sob a forma de um certo " vicariato" . Tal é o estatuto
" meta-psicológico" (e de certa forma " meta-físico" ) do afeto: estirado
entre a virtualidade inconsciente e o afloramento consciente. Em suma,
ele " não pára no lugar" (o " lugar" designando o lugar tópico).
O que mostra a " patologia" do afeto, portanto, é também uma
espécie de lei de " psicologia geral" : " No próprio quadro da vida
normal, revela-se uma luta constante entre os dois sistemas Cs e Ics
pelo primado da afetividade." Enquanto uma representação deve ser
consciente ou inconsciente - no sentido em que " uma porta deve
estar aberta ou fechada" -, um afeto contém a possibilidade de
" virar" do inconsciente para o consciente (e vice-versa) - numa
função de " entreabertura" que dá à vida psíquica seu elemento de
" fantasia" ffantaisie] dramática.
Esse esclarecimento de uma distinção dos registros (recalcamento
= representação/repressão = afeto) só permite que se aprecie ainda

melhor a " teatral idade" introduzida por Freud em 1 927 no ensaio


sobre O fetichismo: forçado, de certa maneira, a pensar o efeito de
" escotomização" determinado pela relação com uma percepção ao
mesmo tempo reconhecida e renegada, Freud vê-se obrigado a alterar
as definições anteriores: como se trata aqui, sob a pressão da
experiência clínica da perversão, de pensar uma lógica outra que não
a do recalque, no terreno da " percepção" ( Wahrnehmung ), é necessário
decidir-se a pensar uma bifurcação dos destinos do afeto:

" Se quisermos (no seio deste processo patológico) separar de maneira mais
clara o destino da representação daquele do afeto e reservar a expressão
'recalque' ( Verdriingung) para o destino do afeto, então a designação justa em
alemão para o destino da representação seria 'renegação' (Verleugnung)" .29

Captamos aí em pleno trabalho a elaboração metapsicológica.


Momento de verdade dramática: como pode o Metapsicólogo abalar,
assim, uma das distinções mais asseguradas, verdadeira " coluna
vertebral" do edifício. sob o risco de semear a dúvida em seus mais
atentos leitores? Como pode ele afirmar bruscamente que é preciso
" reservar" o termo recalque para o destino do afeto, depois de ter,
numa longa série de textos, sublinhado a necessidade de aplicá-lo
exclusivamente à " representação" ?
1 66 as margens .

De fato, o contexto indica que essa discussão terminológica foi


precipitada pela reivindicação de um texto estranho à metapsicologia
freudiana: o termo de René Laforgue, ao mesmo tempo sedutor e
equívoco - " escotomização" . Este sugere, com efeito, a idéia de
uma pura e simples supressão da percepção, ali onde se pode pensar
que, de certa forma, " a percepção permaneceu, e uma ação muito
enérgica foi empreendida para manter sua renegação" . A " escotomi­
zação" , seja qual for a sua sagacidade, é, pois, um neologismo
enganador: ela sugere um efeito estático e realizado, lá onde se deve
pensar a dinâmica de um compromisso por definição semi-realizado.
A escotomização seria uma renegação tão bem-sucedida que não teria
mais razão de ser!
Compreende-se então como, acuada por esse debate terminológico
cujo valor clínico é considerável, a metapsicologia deve deslocar o
eixo da representação para o lado dessa " ação psíquica" profunda­
mente original que é a Verleugnung: é o próprio núcleo da repre­
sentação, com efeito, que é submetido a esse " desmentido" , já que
se trata de não ver mais (ao mesmo tempo em que, mesmo assim, se
viu). Tendo, assim, " desligado" o recalque da ordem da representação
- j á que a " renegação" obriga a pensar um destino, de certa maneira,
" puro" de recusa da representação -, Freud deve abandonar o
registro do afeto ao campo do " recalque" , deixado mais ou menos
" tecnicamente desempregado" : logo, vai-se falar em " recalcamento
do afeto" .
Existe contradição nisso? Nos termos, certamente, mas o essencial
reside na dinâmica conceitual e clínica atuante. Vai-se observar a
forma condicional da fórmula precedente: " Se quisermos ( . . . ) separar
( . . . ) então a designação justa (Bezeichnung) seria ( . . . )." Não se trata
aí, porém, de uma simples hipótese, mais ou menos fugaz: uma nova
oposição efetivamente tomou forma - e a oposição semântica
recalque/repressão passa, nesse momento preciso, a um plano secun­
dário, em proveito da oposição recalque/renegação. Existe aí uma
conjuntura - no sentido forte - que exige esse reajuste corajoso. É
nisso, precisamente, que a metapsicologia nunca tentou firmar-se como
doutrina escolástica, o rigor conceitual só sendo experimentável por
sua " plasticidade" frente às vicissitudes clínicas .
. Isso nos reenvia, pois, ao ganho clínico dessa construção metapsi­
cológica.
o afeto 167

Ill. FIGURAS DO AFETO:


AFETOS E " DESTINOS DO AFETO"

O " modo de emprego" desse objeto metapsicológico muito particular


que é o afeto levou-nos a descrever seu " comportamento" a partir de
seus " destinos" (a partir da figura exemplar do afeto histérico).
Portanto, é possível agora vermos desenvolver-se as " figuras" do
afeto (sem " hipostasiar" sua natureza, o que é essencial no uso
freudiano da noção).
Isso supõe voltar às figuras clínicas inicialmente: parece, então,
que a noção de um " sinal de afeto" , adquirida no terreno da angústia
(supra), permite sugerir o papel do afeto como " indicador psicopato­
lógico" , segundo a função sintomática que lhe toca conforme as
síndromes, até mesmo conforme as " estruturas" .
Isso implica, em seguida, interrogar o destino social do afeto onde
se repete, de certa forma, sua confrontação com o registro da
" representação" , especificada como " ideal" .
Isso nos conduz, enfim, a recolocar a questão genérica do papel
do afeto na cura, sublinhando ao mesmo tempo a estreita interação
da questão dita " técnica" com a reflexão propriamente metapsicoló­
gica.

1. O afeto, indicador "semiótico" clínico

Depois que se renuncia à idéia de uma " causalidade afetiva" , parece


que o afeto retoma toda a sua função expressiva - aquela que Freud
apontava desde a Traumdeutung, observando que " o afeto tem sempre
razão" . Mas ele não dá " a razão" do sintoma - é por isso que não
podemos basear-nos no afeto para " explicar" o processo: ele o
esconde, tanto quanto o revela. Aí intervém sua função própria e
insubstituível de " trocador" de sistemas (supra) e de " pi sca-alerta"
(como " sinal" ) do processo patológico.
Para sugerir tal " semiótica" - a se tomar no sentido estrito de
teoria do " signo-sinal" -, vamos opor:
- um destino neurótico do afeto, onde, correlativamente ao
recalque da representação, ele se acha " reprimido" e reelaborado.
Isso é ilustrado pela conversão (histérica) do afeto, pelo deslocamento
(obsessivo) e, no seu bordo, pela projeção fóbica do afeto sobre o
objeto;
1 68 as margens

- um destino psicótico do afeto onde se efetua uma verdadeira


transformação (Affektverwandlung): isso é o que ilustram a Verstim­
mung - desnaturamento do humor melancólico - e a dissociação
afetiva esquizofrênica. Mas é sobretudo a trans-formação de senti­
mentos observável no delírio paranóico que ilustra melhor essa
" des(trans)formação" , onde o afeto atua sob forma desconhecida;
� um destino perverso - aquele mesmo que, como se viu, impôs
uma " reforma" terminológica: por efeito da " renegação" , o afeto
sofre um deslocamento acompanhado por uma " gelificação" - aquela
mesma que é atribuída, como indiferença emocional, ao suposto
" sujeito-limite" ou ao afeto anoréxico.
O afeto permite assim produzir, de certa maneira, uma fenomeno­
logia do " vivido" da castração (devidamente refratado conforme as
" estruturas" e seus jogos de fronteiras).

2. O "destino social" do afeto

O afeto é, com o ideal, o caminho " atravessado" que leva ao social.


Por dois motivos: por um l ado, na medida em que o fato fundamental
da " repressão do afeto" está no fundamento do liame social; por outro
lado, na medida em que a " psicologia coletiva" permite medir as
variações de afeto em sua economia: o " aumento de afeto" (Affekts­
teigerung) e seu correlato, a inibição do pensamento (Denkhemmung),30
são o traço marcante da " psicologia dos grupos" .
Tanto mais revelador é o fato de que o efeito de desconstrução da
afetividade volta a ser inscrito na teoria freudiana do liame social: à
crença numa " afetividade social" (perceptível em Le Bon e a
" psicologia social" , cujo nascimento é contemporâneo da psicanálise),
Freud opõe um questionamento do liame do afeto social à " idealiza­
ção" que reproduz, mutatis mutandis, o problema da relação entre o
afeto e a representação na economia do sujeito inconsciente.
O " pânico" que desfaz o liame no interior dos " grupos artificiais"
é, nesse sentido, o momento social da angústia. Ora, esse " afeto
social" crítico nasce do desaparecimento do suporte da idealização
(ou sej a, do líder). Momento em que " o trono e o altar estão em
perigo" : é no rompimento do véu da idealização que se libera a
angústia, revelando a contrario o " objeto" que sustentava o " liame"
pelo lado do sujeito inconsciente e sua " inserção" . Prova de que o
afeto brota da perda de objeto - reencontra-se o trabalho da
o afeto 1 69

" melancolia" ao termo de um processo que toca a Vorstellung.


Momento de " desvelamento" de um certo " segredo" - como na
" vergonha" , afeto social de base onde intervém a função da relação
com o ideal do Eu e com o " terceiro" testemunho.
O fenômeno de " enamoramento" ( Verliebtheit) atesta essa ligação
entre afeto e " ideal" . O " sentimento amoroso" , em sua forma
passional, testemunha, com efeito, essa confusão entre o " objeto"
amado e o ideal originário: o amante encontra o meio, na euforia da
paixão, de reativar, através do amor de objeto, o amor de essência
narcísica com o qual se amava outrora - verdadeiro " transbordamento
da libido do Eu sobre o objeto" .31 De resto, é isso que dá sua dupla
vivência, " maníaca" e " melancólica" , à relação passional. 32
Ora, a paixão em seus inícios se manifesta por um certo afeto
designado, numa metáfora próxima da onomatopéia, como " coup de
foudre" 33. Nesse " sinal" , estaria, pois, de alguma forma " presentifi­
cado" na atualidade o objeto ideal originário. O " recruta" · narcísico
seria assinalado pelo afeto siderante. Mas se confirma desse modo
mesmo que o afeto sinaliza, num momento " cego" , tanto quanto
pungente, o relacionamento com uma " representação" desconectada.
No " coup de foudre" , o sujeito reconheceria um objeto originário -
com o qual " bateria de frente" , permanecendo este, ao mesmo tempo,
" irrepresentável" . É isso que dá ao afeto seu valor de " gozo" , o
sujeito sendo " afetado" pelo ideal, aqui e agora " realizado" de visu,
sem saber que, fazendo isso, " ele se recorda" .
Um afeto tal como o ciúme permite atravessar, de certa forma, as
" camadas" que levam da normalidade à patologia. Não é inútil
observar que, no ensaio consagrado ao ciúme a propósito da paranóia
e da homossexualidade, Freud começa por lembrar que se trata, antes
de mais nada, de um " estado afetivo normal" , e que, onde se pode
acreditá-lo ausente, o ciúme deve ter sido " reprimido" , de tal modo
é ele inerente à relação de amor.
No outro extremo, para além do " ciúme de concorrência" e
" projetado" , o ciúme delirante mostra uma " inversão de afeto" , a
pessoa amada do mesmo sexo tornando-se o perseguidor, o amor
virando agressividade e " sentimentos hostis" .
Do mesmo modo, a ambivalência exibe, de alguma forma, o ser
dual do afeto, sua dupla face amor/ódio. Baseando-se no achado capital
de Bleuler,34 de decifrar os afetos por uma lógica da afirmação
(" sim"/" não" ) - presença simultânea na relação com um mesmo
objeto de sentimentos simetricamente opostos -, Freud põe em
1 70 as margens

evidência um verdadeiro " pensamento do afeto" atuante nas " direções


de sentimentos" ( Gefühlsrichtungen) , ou " direções afetivas" . 35
Compreende-se que todo o discurso de Freud sobre o afeto seja
marcado por uma espécie de " desconfiança" que, para além de
qualquer complexo pessoal, remete à própria ética - aquela, como
veremos, do tratamento, mas também da própria psicanálise.
A necessidade anunciada ao analista de ter que " deixar de lado
todos os seus afetos" 36 parece fazer eco à imagem, reconstruída
longamente, da postura do " Moisés" de Michelangelo, sobrepujando
num gesto decisivo a tentação do afeto. Não nos enganemos: não
existe ali renegação do afeto, e sim um traçado do evento do afeto
como esse momento de perturbação superado a que o símbolo mosaico
faz eco: " vitória" sobre " sua própria paixão em favor, e sob as ordens,
de um destino ao qual se foi consagrado" , em que consiste, na
linguagem da sublimação, " a mais alta prestação psíquica possível a
um homem" : " explosão de afeto" (Affektausbruch) conservado de
alguma forma em sua própria superação.37

3. O afeto no tratamento

Essa exploração dos paradoxos metapsicológicos do afeto nos conduz


a examinar, sem descontinuidade, a questão do estatuto do afeto na
terapia.
A passagem de um modelo da catarse hipnótica à " cura pela
palavra" manifesta essa metamorfose: de um afeto " bloqueado" a
desbloquear, passa-se à emergência de um trabalho da representação
verbalizada. Simultaneamente, devemos lembrar, são dois afetos que
passam ao primeiro plano na relação analítica: transferência de
" sentimentos ternos e amigáveis" (ziirtliche undfreundliche Gefühle),
por um lado, de " sentimentos hostis" (jeindselige Gefühle), por outro,
projetados sobre o analista - forma de " ambivalência" que vem a
ser reconhecida como a própria essência do processo. Ainda assim,
Freud postula, no próprio momento do reconhecimento da " transfe­
rência" , um " afeto de espera" (Erwartungsaffekt)38 que marca o tributo
a uma certa lógica da " sugestão" pago por toda terapia. Igualmente,
na tempestade passional que é o " amor de transferência" ,38 é a potência
do afeto que se recorda, como aquele real que, por ser previsível,
permanece fundamentalmente in-esperado !
o afeto 171

Não é por acaso que o debate aberto com Ferenczi sobre a " técnica
ativa" não cessa de reativar esse problema: é sob o signo da
" neocatarse" e da traumatologia realista que será reimplicado o afeto
- enquanto que, passo decisivo, não se hesitará mais em falar de um
" afeto recalcado" , logo em seguida à afirmação de Freud de que o
recalque incide eletivamente sobre a representação. Freud passa então
à resistência, de certo modo, recusando, juntamente com o furor
sanandi e seus excessos de afetos, e bem mais fundamentalmente, a
tese de uma verdade do afeto de certo modo intrínseca,39 - o que
legitima Ferenczi a falar sem rodeios de " recalque do afeto" ,40
transgredindo a útil distinção freudiana que ordena respeitar a " pauta"
metapsicológica !
Foi assim que, para além d a proveitosa contribuição d e Ferenczi à
questão da terapia analítica, autorizou-se um uso que, sob a aparência
de devolver ao afeto toda a sua potência e seus direitos, " desgasta"
todo o esforço metapsicológico para " seriar" os aspectos do processo.
Para Freud, é no momento em que se faz o trabalho de " levantamento
do recalque" pela prova da representação que o afeto pode ser dito,
propriamente falando, " inconsciente" .

O sujeito, o Outro e o afeto

Tudo o que descrevemos atesta o caráter de real do evento (psíquico)


do afeto. O " afeto" aponta para o fato de que alguma coisa está
acontecendo: nesse sentido, portanto, tem uma função de indicador
- de fora - de um processo.
O debate sobre a origem da linguagem e das paixões tinha, no
fundo, apontado para o caráter expressivo do afeto na sua dimensão
passional. A metapsicologia reencontra, em seu campo próprio, esse
<.-aráter do afeto, retorno da pulsão em " apelo" ao Outro - " sinal de
perigo" no sentido mais literal, do " grito" ao sintoma. Se, como
sustenta Rousseau, " a primeira invenção da fala não vem das neces­
sidades, mas das paixões" ,41 se " não é a fome nem a sede, mas o
amo. , o ódio, a piedade, a cólera que ( . . . ) arrancaram (aos homens)
as primeiras vozes" , esse paradoxo pode ser confirmado e ilustrado
pela clínica do afeto, " voz" , não do corpo, mas daquilo que cai no
corpo do que não pôde aceder à representação. É , nesse sentido, o
testemunho mais direto - e, literalmente, mais patético - dessa
relação com o Outro.
172 a s margens

Mas, precisamente, se a psicanálise toma este pathos como " ponto


de partida" , nem por isso louva seus " prestígios" . O afeto " diz a
verdade" mas não permite articular nenhuma verdade. Ele tem todas
as pretensões da " linguagem" e todas as equivocidades do " corpo" .
Mas, justamente por esse motivo, é uma das passagens obrigatórias
da experiência. Por trás do afeto, é a potência do Corpo que se
descobre, como prova da metapsicologia.

NOTAS AO CAPÍTULO VII

I. Psicologia de grupo e análise do eu, IV, GW XIII, p.98 [ESB vol. XVIII].
2. De acordo com o artigo " Affectif' , do Vocabulaire technique et critique
de la philosophie de André Lalande, Libraire Felix Alcan, 1926, vol. I, p.24.
3. Lalande, op. cit., artigo " Affection" , p.2S.
4. "O recalque" , in Metapsicologia GW X, p.2SS [ESB vol. XIV].
5. "O inconsciente" , in Metapsicologia, GW X, p.276-7 [ESB vol. XIV].
6. Estudos sobre a histeria, setor 2, GW I, p.86 [ESB vol. VII].
7. Op. cit.
8. Cinco lições sobre a psicanálise, I, GW VIII, p. 1 4.
9. Esse texto, publicado em 1 872, tinha por objetivo, com efeito, confirmar
no plano " psicológico" a teoria da evolução consignada em A origem das espécies
( 1 859) e atualizada em A descendência do homem ( 1 87 1 ), mostrando a ação de
leis semelhantes no animal e no homem. Sobre a influência geral de Darwin em
Freud, remetemos a nossa síntese " Freudisme et darwinisme" , in Dictionnaire du
darwinisme et de l 'évolution, PUF, 1 994. Cf. igualmente Lucile B. Ritvo,
L 'ascendant de Darwin sur Freud, 199 1 , trad. franc. Gallimard.
1 0. A associação de " hábitos úteis" enuncia que " todas as vezes que o mesmo
estado de espírito se reproduz, mesmo em baixo grau, a força do hábito e da
associação tende a gerar os mesmos atos, mesmo quando eles não podem ser de
nenhuma utilidade" ; a antítese assinala que, "quando se produz um estado
diretamente inverso, é-se, forte e involuntariamente, tentado a realizar movimen­
tos absolutamente opostos, por inúteis que sejam" ; enfim, " a ação direta do sis­
tema nervoso" postula um dispêndio da força nervosa engendrada em excesso
pela excitação do sensório. Cf. nossa contribuição " L' héritage darwinien de la
psychanalyse" , in Darwinisme et societé (PUF, 1 992), p.61 7-35, principalmente
p.623-4.
1 1 . Segundo a expressão de Henri Wallon resumindo a teoria darwiniana, Les
origines du caractere chez l 'enfant, PUF, 1949 (coleção " Quadrige" , n.53),
p.4S.
o afeto 1 73

1 2. Estudos sobre a histeria, GW I, p.l47.


13. Op. cit., p.25 1 .
1 4. Os chistes e sua relação com o inconsciente, GW VI, p. I 64. Isso se refere,
aliás, à economia do humor em seu conjunto.
1 5 . Inibição, sintoma e angústia, GW XIV, p. 1 20.
1 6. As psiconeuroses de defesa, 1 896.
17. Inibição, sintoma e angústia, GW XIV, p. l 50- l .
1 8. Conferências introdutórias, XXV, GW XI, p.41 0s.
19. O inconsciente, GW X.
20. GW XIV, 1 20- 1 .
2 1 . Setor X I b , GW XIV, p . l 95.
22. 0 Estranho ( 1 9 1 9), GW XII, p.23 1 [ESB. vol. XVII].
23. Na sua Contribuição para uma discussão acerca do suicídio, 1 9 1 2, GW
VIII, p.64; trata-se aí do " afeto de duração" (Daueraffekt) do luto.
24. Luto e melancolia. GW X, p.428.
25. O inconsciente, setor 111, GW X, p.276.
26. Op. cit., p.277.
27. Op. cit., p.278, n. l .
28. Op. cit. p.278.
29. GW XIV, p.3 1 3.
30. Psicolog ia de grupo e análise do eu, GW XIII, 94 (em referência à primary
induction do psicólogo social MacDougall).
3 1 . Sobre o narcisismo: uma introdução, GW X.
32. Sobre a explicitação desse ponto, referimos à nossa obra Le couple
inconscient. Amourfreudien et passion postcourtoise Anthropos/Economica 1 992.
,

33. Por ironia, Freud fala sobre isso para dizer que o " coup de foudre" (em
francês no seu texto) não é exigível na psicanálise do paciente (Introdução à
psicanálise, GW XI, p.250)!
34. Teoria elaborada a partir do escrito Sobre a ambivalência ( 1 9 1 0) com
relação à esquizofrenia em sua releitura à luz da psicanálise (1 926).
35. Sobre a dinâmica da transferência, 1 9 1 2, GW VIII, p.372-3.
36. Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise, " e" , GW VIII,
p.380- l .
37. O Moisés de Michelangelo, 1 9 1 0, setor III, GW X , 1 98.
38. Termo atual a partír do texto O tratamento psíquico (que se sabe agora
datar de 1 890).
39. Cf. Os novos caminhos da técnica psicanalítica, 1 9 1 8.
40. Cf. a expressão " afeto recalcado puro" , Journal Clinique, 30/1/1932.
4 1 . Ensaio sobre a origem das línguas.
CAPÍTULO VIII

O CORPO

O Outro metapsicológico

O incon sciente é certamente o verdadeiro interme­


diário entre o somático e o psíquico, tal vez sej a o missing
link tão procurado.
S. Freud, carta a Karl Groddeck,
5 de junho de 1 9 1 7.

A contribuição freudiana à problemática do Corpo parece anunciar-se


por uma esquiva de tudo o que se assemelha a uma " psicofilosofia"
do Corpo. Referir-se ao Corpo participaria, em maior ou menor escala,
de uma metafísica. É mesmo assim, com efeito, que o Corpo se
inscreve, no reverso da metafísica, como O outro do princípiofundador
(a Alma). Muito embora, a partir de Descartes, se tenha atribuído ao
Corpo, de facto, o papel de " recalcado" , reintroduzir o Corpo em
cena reduziu-se a conservar o modo de pensar metafísico, invertendo-o,
o que freqüentemente equivale apenas a um hino ao Corpo.
Não há metafísica do Corpo creditada pelo Inconsciente em Freud.
É notável que, em reação a alguns de seus contemporâneos, como
Eduard von Hartmann, 1 Freud jamais se tenha " aproveitado do Corpo" ,
como se diz, para fazer valer o inconsciente. Quando vê surgir essa
tentação utilizando-se do isso, indevidamente hipostasiado, para louvar
as virtudes e " potências" do Corpo, ele fica escabreado: é isso que
Freud rejeita, principalmente, em Groddeck.2 Seu modo de pensar
fisicalista3 o teria preservado de um biologismo que iria fiar-se -
através do prestígio da linguagem da ciência - numa explicação do
corpo pelo corpo (círculo que se verifica em todas as filosofias
neovitalistas).
Mas isso não impede que a psicanálise, esse saber dos processos
psíquicos inconscientes,4 intervenha no campo da problemática do
corpo. Freud o exprime de maneira sóbria quando inventaria o interesse
da psicanálise: " O relatório da atividade psíquica inconsciente deve

1 74
o Corpo 175

obrigar a filosofia a tomar partido e, no caso de uma concordância,


a modificar as hipóteses sobre a relação entre o psíquico e o somático,
até que estas fiquem em conformidade com o novo conhecimento." 5
Freud, aqui, ao mesmo tempo diz muito e não o bastante. Ele
designa formalmente a necessidade, caso se concordasse com a
experiência analítica, de se modificar radicalmente as hipóteses sobre
a relação entre o psíquico e o somático, e não, vamos observar, sobre
o Corpo em si, o que faz com que, nesse sentido, Freud esteja mais
próximo da problemática de Descartes que da de von Hartmann. Mas
ele, aqui, não nos diz mais: como saber quais as conseqüências a se
tirar dessa revolução, ao mesmo tempo discreta e decisiva, que
desestabilizou a relação entre o psíquico e o somático a partir do
saber freudiano sobre o inconsciente?
É como se Freud se contentasse em constatar esse deslizamento,
deixando aos cuidados de algum observador ou pensador externo
proceder a um reajuste que, no fundo, não lhe concerne diretamente:
não é da sua alçada, com efeito, falar da alma, do corpo e de seus
correlatos psicológicos ("psíquico" e " somático" ). Mas não se pode
escutar bem o que diz a psicanálise sem rever a visão do somático e
de sua posição própria.
Em suma, é porque não há Inconsciente do Corpo, mas sim um
saber sobre o saber inconsciente, que o saber do Corpo se encontra
(irreversivelmente) revisto.
Eis, pois, formulada a problemática de uma interrogação sobre a
corporeidade que seria baseada na experiência freudiana. Nossa
ambição é completar a alusão precedente de Freud, sugerindo como
e por que, em suma, a que título, o inconsciente, em seu regime
metapsicológico, impõe uma releitura dessa relação - mais que desse
princípio. Talvez seja, com efeito, principalmente a partir da psica­
nálise que o Corpo não pode mais ser colocado como princípio
autógeno, portador de seu sentido próprio. Mas, tirando-nos da
fascinação por esse Corpo auto-significante, Freud nos abre uma
carreira fascinante em seu gênero: o dos efeitos-de-corpo da linguagem
inconsciente.
Compreende-se, a partir daí, a relação do discurso psicanalítico
com o discurso biológico do corpo. Freud concede que, " para o
psíquico, o biológico desempenha o papel do rochedo de origem
subjacente" (literalmente: do rochedo que cresce e se encontra em
baixo, unterliegenden gewachsenen Felsens).6 Isso significa que o
" corporal" , longe de ser renegado, forma a materialidade subjacente
1 76 as margens

do " psíquico" . Da mesma forma, Freud reconheceu o futuro papel


da endocrinologia, e sempre constatou os pontos de "junção" das
aquisições psicanalíticas com a biologia. Mas o essencial é perceber
que o inconsciente não se confunde com " o Corpo" - espécie de
afetividade primitiva -, não mais que com uma espécie de " Alma"
que domina o corpo: ele lhe atribui, mais justamente, um lugar de
" elo perdido" (cf. a citação em epígrafe do presente texto): parafraseia
assim a linguagem darwiniana de modo um tanto irônico. Pois o
" inconsciente" não é, evidentemente, uma " fase" intermediária real
entre somático e psíquico: antes, é o lugar de passagem, ao mesmo
tempo necessário e misterioso, onde se toma, de alguma forma,
" indecidível" a relação entre a alma e o corpo.
Enquanto o " discurso psicossomático" postula, de um modo ou de
outro, uma ligação entre essas duas " ordens" , Freud designa, de
preferência, no " inconsciente" o lugar de " interferência" onde as
" vozes do corpo" se misturam aos efeitos significantes, de forma que
somos remetidos, para avaliar os efeitos corporais, ao vencimento do
" trabalho inconsciente" efetivo. Que tipo de " operador" é o Corpo
no trabalho de construção metapsicológica?

Campo semântico do Corpo freudiano

Já indicamos anteriormente que não se poderia tratar o Corpo como


um conceito psicanalítico específico. O que encontramos é, de certa
forma, um corpo esquematizado, decomposto em seus elementos:
- Por um lado, Freud emprega diversos termos, seguindo nisso o
uso semântico: assim, corpo, em alemão, remete a uma distinção que
o uso francês do termo mascara. O Corpo é, de fato, Korper, o corpo
real, objeto material e visível, estendido no espaço e designável por
'
certa coesão anatômica. Mas é também Leib, ou seja, o corpo captado
em seu enraizamento, na sua própria substância viva, o que não deixa
de ter uma conotação metafísica: não é somente um corpo, mas o
Corpo, princípio de vida e de individuação. Enfim, o Corpo remete
ao registro do somático (somatisches) adjetivo que permite, justamente,
evitar os efeitos dos dois outros substantivos, descrevendo os processos
determinados que se organizam segundo uma racionalidade, ela mesma
determinável. Tal é o leque revelador de registros, que vai dos
processos somáticos à corporeidade, passando pela referência aos
corpos.
o Corpo 1 77

- Por outro lado, Freud vai encontrando, gradualmente, os efeitos


e ocorrências desses diferentes registros. A cada vez que o Kiilper-Leib
ou Soma aponta na diacronia dos processos inconscientes, ele não
deixa de registrá-lo. Aliás, é por isso que o Corpo, sob uma ou outra
de suas emergências, não explica nada per se em Freud. Antes de se
falar em subestimação do Corpo, deve-se realmente verificar a
especificidade desse procedimento.
- Ora, dessa dupla esquematização - conceitual e temática -,
emerge no entanto uma nova imagem dessa corporeidade revista pelo
inconsciente. É esta última que se trata de sistematizar, respeitando-se
ao mesmo tempo o efeito de dispersão, não fortuito.
O Corpo se anuncia por um paradoxo: ele designa ao mesmo tempo
uma profundeza, um dentro insondável, e uma superfície, um
horizonte de visibilidade insuperável. No plano terminológico, essa
distinção recorta, em parte, a do Leib e do Korper. Não é por acaso
que Freud fala no Mutterleib (corpo materno), no Leib relativo aos
mitos do nasci mento, ou ainda no Leib como fonte das excitações
internas: existe na base a versão freudiana da carne, um princípio
do qual " saem" efeitos e sinais. O Korper, em contrapartida, vai
definir essa referência aos processos somáticos, ao próprio corporal.
Esse paradoxo se resolve por um meio-termo que relaciona a
profundeza, de certa forma, com a superfície, a saber, o sintoma:
aquilo que goza dos poderes do Leib e que modifica o Korper. Os
sintomas do corpo recaem, assim, na corporificação do sintoma,
processo de " encarnação" que a histeria descreve de maneira privi­
legiada.
O essencial é determinar de que maneira o corpo intervém nessa
dialética do sintoma, da qual o corpo é \lm momento necessário, mas
não um princípio constituinte - a ponto de Freud conservar em certa
medida a ligação a um princípio outro, Seele e Seelisches, que se
designa como psíquico, mas que poderia ser a alma a se decifrar no
corpo do sintoma!
É dessa incursão clínica ao corpo que partiremos para remontar à
elaboração metapsicológica da função-corpo no inconsciente. Assim,
poderemos fazer justiça ao efeito de dispersão calculado pela siste­
matização daquilo que distingue propriamente o corpo freudiano, a
ser entendido como o regime imprimido por Freud à corporeidade à
luz de seu campo próprio.
1 78 as margens

I . 0 CORPO CAPTADO PELA CLÍNICA

1. O corpo-sintoma: a histeria

A histeria nos designa, inegavelmente, a entrada do .corpo na expe­


riência analítica. Se, a esse título, a histérica merece ser associada à
fundação da psicanálise/ convém tirar daí todas as conseqüências,
pelo fato de aqui o corpo não ser apenas tema privilegiado dessa
neurose, pela qual Freud se põe, originalmente, na pista de um saber
do inconsciente, mas ainda aquilo que " dá corpo" ao próprio sjptoma.
O sintoma histérico tem seu caráter monstruoso pelo fato de que,
seguindo o jogo de palavras eloqüente, ele mostra.* Dessa maneira,
emblematiza de alguma forma o problema metafísico que, depois de
marcar passo durante séculos em face da histérica e do saber sobre a
histeria, balançava entre um modelo dualista e um modelo hilemorfista,
fazendo da alma a idéia do corpo.8 O que a histérica mostra, com
efeito, é realmente a sua alma, visível em seu corpo, mas isso se opera
pela via do sintoma. É o sintoma que, na histérica, faz ativamente
dialogar a alma e o corpo!
Não é de surpreender, a partir daí, que Freud reencontre nesse tema
o problema do somático. o caráter carregado do quadro somático
sugere que o corpo é o medium do sintoma. Mas aí começa a
ambigüidade: o corpo exprime o conflito tanto quanto o mascara, de
modo que a reminiscência recalcada se inscreve no corpo como um
traço que indica uma perda de consciência (a famosa dissociação de
consciência).
Freud não encontra termo melhor para designar essa relação de
expressão/máscara que o termo conversão: " Na histeria, a repre­
sentação inconciliável é tomada inofensiva pelo fato de que a soma
de excitação é referida ao corporal, processo para o qual vou propor
o nome de conversão." 9 A conversão é, pois, a mutação em corporal
(ins Korperliche umgesetzt) dessa soma de excitação que é liberada
de sua repressão e tem por efeito neutralizá-la: o dano corporal exprime
uma economia do dano da representação incompatível (die Unschiid­
lichmachung der unvertriiglichen Vorstellung). É nessa capacidade de

• No original, " il montre " - jogo de palavras com monstre, monstro. (N.T.)
o Corpo 1 79

conversão (Fiihigkeit zur Konversion)10 que Freud localiza " o fator


característico" da histeria.
O efeito corporal traduz, então, o destacamento de uma energia
oriunda da tensão representativa. Não é, pois, o corpo que fala, mas,
através dele, as representações recalcadas, de modo que se deve
traduzir literalmente essa língua imajadaY Mas Freud, a partir daí, é
levado a acentuar um registro da constitucionalidade (infra) para dar
conta da predisposição do corpo próprio a se ver delegada tal tarefa
expressiva.
Vamos compreender que é o Corpo constituído de órgãos que
emerge aqui como alvo do sintoma: o que dá " aos processos psíquicos
inconscientes uma saída no corporal" (einen Ausweg ins Korperliche)
é a complacência somática fornecida por " um processo normal ou
patológico em, ou relativo a, um órgão do corpo" .12 Essa palavra
complacência vem a propósito para denotar, talvez com um pouco de
insistência, o que Freud designa literalmente como o fato de vir q
frente de alguém (somatisches Entgegenkommen). Existe aí mais
amabilidade de que complacência; mais do que " comprazer-se" no
órgão erotizado, a " alma" do sintoma exprime sua " amabilidade"
para com o órgão. A alma histérica faz avanços no corpo, de modo
que o sintoma se aloja o mais perto possível do órgão. Assim como
a identificação trabalha no detalhe do traço, o sintoma trabalha no '
detalhe do órgão (e não no corpo global). Pode-se dizer, sem forçar
muito a expressão, que o sintoma trabalha o sujeito no corpo.
De resto, isso é menos uma escolha deliberada do que uma solução
de facilidade comandada pela urgência de encontrar uma saída: " A
complacência somática necessária à conversão é tão dificilmente obtida
que o impulso em direção à descarga da excitação proveniente do
inconsciente conduz a se contentar, se possível, com a via de descarga
que é praticável." 13 O primeiro órgão seduzido pelo recalcado serve !
Tal é a situação da histérica, que deve seduzir seus próprios órgãos
com a ajuda de seu próprio recalcado. Talvez esteja aí a chave da
sedução do corpo histérico, que só é mórbida por fazer do próprio
sintoma uma estratégia erótica para uso do corpo próprio e por fazer
do Outro parte integrante dessa auto-sedução.
Mas se vê também que Freud não entoa tão facilmente as trombetas
da " psicossomática" . Nada é mais difícil que somatizar, pela boa
razão de que, se " a produção de um sintoma desse tipo é tão difícil" ,
é que se trata da " transferência de uma excitação puramente psíquica
no domínio do corpo" . É com essa dificuldade que ele argumenta
1 80 as margens

para j ustificar que o sujeito não seja por demais econômico. Se isso
não for possível, o afeto estará condenado a permanecer no domínio
psíquico e seguir a via da obsessão (supra). A inervação somática
(somatische lnnervation) é ainda a via de trilhamento mais maciça­
mente eficaz.
Vamos observar que o corpo está colocado aí como o receptáculo
econômico de uma energia, cuja dinâmica representativa permanece
do lado do recalcado. O processo é, pois, representado como mecânico,
até mesmo automático e laborioso, pois abre caminho para a questão
complexa de uma dialética do recalcado, que atua ao mesmo tempo
no corpo e fora dele. Este último ponto é justamente requerido para
conjurar a crença, propriamente histérica, de que o Corpo " fala
sozinho" .

2. O corpo próprio e o desejo do Outro

Mas o mais importante ainda está por vir: destacando o corpo histérico
do corpo neurastênico, rejeitado com sua somatização difusa do lado
das " neuroses atuais" onde o Corpo fala só, Freud realiza uma
operação considerável: faz do Corpo o lugar de uma simbolização.
Se a histérica se seduz por seu próprio órgão, é que esse corpo foi
seduzido: é na experiência originária da sedução ( Veiführung) que se
produz essa entrada na neurose. Dizer que o sintoma toma corpo é
dizer, pois, que o sujeito volta a se endereçar a mensagem que lhe
veio do Outro. O corpo, portanto, é a engrenagem viva dessa ligação
pela qual a mensagem do Outro é literalmente incorporada. Mas,
como essa mensagem é problemática por definição - emanando do
que Freud designa por proton pseudos (primeira mentira) -, o corpo
será doravante o relé dessa mentira. Certamente muito particular, é
verdade, já que o sujeito mente para si mesmo, engana-se quanto ao
desejo do Outro (o pronome aqui é decisivo), urdindo seu sintoma.
É por essa via que o sintoma captura o corpo.
O corpo neurótico forma-se, então, no ponto de encontro do próprio
com o Outro. A histérica põe seu corpo à frente para (se) fazer crer
que nada tem a ver com o processo de sedução, mas ao mesmo tempo
exibe, sobre seu próprio corpo, ao mesm"o tempo que contra a sua
vontade [à son corps défendant], como se diz tão bem, 14 a marca
inesquecível do desejo do Outro. Logo, é essencial que o corpo, na
o Corpo 181

teoria analítica, traia o que está destinado, justamente, a ocultar pelo


sintoma: a relação do sujeito com o Outro que ele intermedeia e
comenta de modo tão obstinado.

li. POR UMA " METAPSICOLOGIA DO CORPO"

1. O Corpo, aquém da metapsicologia: a pu/são

Em simetria desse encontro com o corpo designado pela experiência


clínica originária, devemos situar a irrupção do corporal na síntese
própria à teoria psicanalítica, a saber, a metapsicologia. A simetria
reveladora do saber e do sintoma vai permitir-nos situar aí a função
do corpo de designar, não um originário, mas justamente algo que
está defasado com relação à origem e serve, no entanto, para situá-la.
Para fazer compreender essa idéia, é preciso partir do conceito
primeiro da metapsicologia freudiana, ou seja, a Trieb (pulsão). Freud
o designa explicitamente como o Grundbegriff (conceito fundamental)
da explicação metapsicológica, aquilo por onde se pode começar. Ora,
ele o define também como " um conceito-limite entre o psíquico e o
somático" (Abgrenzung des Seelischen vom Korperlichen) . 15 Portanto,
este é literalmente o marcador da linha-fronteira dos dois tipos de
processos.
De fato, a pulsão tem sua fonte num lugar somático, excitação
corporal localizada num órgão e traduzindo-se por uma tensão origi­
nária, mas é realmente como psíquica que se manifesta a moção
correspondente, que tende à supressão do mal-estar por meio de um
objeto. Em outras palavras: a pulsão converte, também aí, a excitação
(Reiz) em moção psíquica. Tudo começa com esse afluxo que vem
de dentro (de certa forma, a versão freudiana do Leib) e de que o
sujeito não pode escapar. É realmente, a esse título, " um conceito-li­
mite entre psíquico e somático" (Grenzbegriff zwischen Seelischen
und Somatischen) como representante psíquico das excitações saídas
do interior do corpo (aus dem Korperinnern) "e chegadas à psique
como uma medida da exigência de trabalho que é imposta no psíquico
em conseqüência de sua ligação com o corporal" . 1 6
A pulsão - pela qual tudo começa, tanto para a psicanálise quanto
para o sujeito do inconsciente - exterioriza, pois, no psiquismo (Freud
fala aqui da alma, Seele) aquilo que lhe é imposto por essa coerência
1 82 as margens

Zusammenhang) com o corporal, ou seja, cargas suplementares. Em


suma, o corpo, sob a forma de excitações internas, faz trabalhar a
alma, de onde nasce a pulsão.
Mas j ustamente, antes da pulsão, não há nada sobre o que a
metapsicologia se possa fundar. Devemos, pois, situar a excitação
antes da pulsão e o próprio corpo (Leib) como essa fonte cega de
excitações que pertence à pré-história da pulsão, de alguma forma. É,
num certo sentido, o aquém do objeto metapsicológico.
Cada vez que esbarra com essa coisa, Freud expressa o mesmo
agnosticismo. Da fonte da pulsão, desse " processo somático que está
localizado num órgão ou numa parte do corpo" , nada sabemos: seu
estudo " transborda o campo da psicologia" . Igualmente, o Organlust
(" prazer de órgão" ) para o qual tendem as pulsões é literalmente cego
e indefinível, a ponto de elas colocarem um indefinível no próprio
cerne da sexualidade infanti/.17
Em suma, tanto acima quanto abaixo do nível da pulsão - ali
onde o corpo parece falar sozinho -, há apenas um oceano ao qual
Freud impõe silêncio. Mas o essencial é que o componente corporal
está integrado ao processo pulsional, de modo que seus direitos de
participação no processo psicossexual sejam levados em conta. O
corpo não é causa de nada, nem da pulsão nem do prazer de órgão,
mas sem a corporeidade nada seria possível.
Seria tentador utilizar aí, genericamente, para definir essa relação
ao mesmo tempo necessária e contingente, o termo apoio (Anlehnung),
empregado por Freud no quadro de seu primeiro dualismo pulsional.
Não é por acaso que essa dualidade mitológica recebe uma ilustração
tão cativante no caso da cegueira histérica. Freud recorda, a propósito:
" De modo geral, são os mesmos órgãos e os mesmos sistemas de
órgãos que estão à disposição das pulsões sexuais e das pulsões do
eu." 1 8 Assim: " A boca serve ao beijo, tanto quanto para comer e para
se comunicar por palavras; os olhos não percebem apenas as modifi­
cações do mundo exterior, importantes para a conservação da vida,
mas também as propriedades dos objetos pelas quais estes são elevados
ao nível de objetos da escolha amorosa." Ora: " Quanto mais íntima
é a relação que um órgão dotado dessa função bilateral (doppelseitiger
Funktion) contrai com uma das funções, mais ele se recusa a outra."
Freud enuncia aí, literalmente, a idéia de uma relação metafórica entre
dois corpos. Assim, pode acontecer que o Eu perca " seu domínio
sobre o órgão que agora se mantém inteiramente à disposição da
pulsão sexual recalcada" Assim acontece com a histérica que nada
o Corpo 1 83

mais quer ver, tendo " abusado" do órgão orientado para a autocon­
servação.
Mas isso vale igualmente para " a mão que queria cometer uma
agressão sexual" e se vê " atingida por uma paralisia histérica" .
Adivinha-se que essa é uma ocasião privilegiada para Freud enfatizar
que " a psicanálise não esquece j amais que o psíquico repousa sobre
o orgânico, embora seu trabalho só possa acompanhar o psíquico até
este fundamento, e não além" . Ele chega, mesmo, a esta espantosa
concessão: " Se um orgão que serve às duas pulsões intensifica seu
papel erógeno, pode-se esperar, de modo absolutamente geral, que
isso não aconteça sem que sua excitabilidade e sua inervação sofram
modificações que se vão manifestar por distúrbios da função de órgão
que está a serviço do Eu" . Existe mesmo a possibilidade, para um
órgão sensorial qualquer, de " conduzir-se claramente como órgão
genital em conseqüência da elevação de seu papel erógeno" , o que
pode deixar supor " modificações tóxicas" . Em suma, o sintoma pode
reinventar uma fisiologia própria !
S e é possível " servir a dois senhores ao mesmo tempo" , o que d á
a chave d a estrutura conflitual correspondente, 1 8 deve-se notar aqui
que o corpo está associado a cada um desses dois senhores - mas
como o mesmo corpo ou um outro? Aí está a questão que revela seu
estatuto paradoxal na psicanálise.
Existe, de fato, o corpo suporte das " funções corporais importantes
para a vida" (lebenswichtigen Korperfunktionen) 1 9 no modelo das
quais se opera o apoio, corpo de necessidade, de certa forma. Mas,
pelo viés desse lucro obtido à margem (Lustnebengewinn), é realmente
um corpo erotizado que se situa - por onde reencontramos o corpo
do sintoma evocado na histeria.
Para além da vasta questão do apoio, parece-nos importante, para
nossos propósitos, registrar essa divisão que o corpo serve para
demarcar, na medida em que ela o atravessa.
Dizer que existem dois corpos é renegar o papel causador do corpo,
que se presta mais ao suporte como causa ocasional. Isso não significa
reduzir, de resto, sua importância, mas situá-la em seu verdadeiro
lugar, o de um mais além ou um mais aquém da pulsão que ele
inscreve numa defasagem estrutural.
Seja como uma fonte-pretexto (corpo de apoio), seja como mosaico
de zonas erógenas (corpo-fontes}, o corpo não pode fazer mais que
nomear a realidade de pulsão na sua ausência de fundação. Se pertence
à essência da pulsão reencontrar o impossível de satisfazer do objeto,
1 84 as margens

ela é tentada a se designar por sua fonte, mas só encontra ali o rumor
do corpo, o Órgão, depósito da excitação, que não revela nenhum
segredo do Lust. É a ilusão do perverso tentar assegurar o Lust
pelo domínio do órgão, o corpo da anatomia tentando tamponar a
Spaltung.

2. A retórica do órgão

A título de exemplo de um caso em que essa relação metafórica de


dois corpos pode revelar-se materialmente visível e atuante, pode-se
citar o fenômeno de modificação corporal (do corpo físico) pelo qual
se opera a entrada na doença, como se o corpo do sintoma fosse
despertado por ele: " Em pessoas que, embora predispostas à neurose,
não sofrem de nenhuma neurose declarada, acontece com freqüência
que uma alteração corporal (Korperveriinderung) mórbida, por infla­
mação ou lesão, desperta o trabalho de formação de sintomas, de tal
modo que o sintoma fornecido pela realidade se torna imediatamente
o representante de todas as fantasias inconscientes que espreitavam a
primeira ocasião para se manifestar" 20 - a ponto de Freud aconselhar
que se trate de um ou de outro corpo ! Em suma, um corpo pode
esconder outro, mas do mesmo modo um pode ser despertado no outro
por um simples piscar de olhos. Da lesão ou inflamação orgânica à
" inflamação" do corpo desej ante, existe apenas o espaço de um
deslizamento temporal pelo qual a ligação pode ser recordada. O
médico do corpo está condenado, portanto, a observar o outro corpo,
o do sintoma, que não é da ordem da disfunção. Existe aí como que
uma cacofonia dos sintomas, adverte-nos Freud. Se a passagem da
hipocondria à paranóia fornece o seu modelo extremo (cf. Schreber),
Freud nos alerta que se pode apontar aí, mais comumente, um aspecto
do trabalho da histericização do corpo próprio.
Mas no outro extremo da gama das estruturas, na esquizofrenia, é
uma verdadeira linguagem do órgão (Organsprache) o que Freud
observa. O discurso esquizofrênico contém o equivalente de um
discurso sobre o corpo que se torna discurso do próprio corpo, como
ilustra o exemplo famoso dos " olhos virados ... pelo avesso" .21 Essa
é uma das vias pelas quais a representação de coisa se destaca no
discurso, fazendo curto-circuito na representação de palavra, o que
dá a impressão de que a coisa fala, no próprio corpo.
o Corpo 185

3. Do corpo-Narciso ao corpo-isso

Pode-se dizer que o que precede vale para o primeiro estado da


metapsicologia, o da Trieblehre. Devemos perguntar-nos a que título
a introdução do narcisismo interessa à problemática do corpo
A resposta é, aparentemente, clara: " o sujeito começa por se tomar
a si mesmo, a seu próprio corpo, como objeto de amor." 22 O problema
começa por uma outra questão: que é esse " corpo próprio" que é
colocado em lugar do " si mesmo" (selbst)? Se é possível falar em
" libido do Eu" , deve-se supor que esse corpo que era o aquém da
pulsão sej a elevado ao nível de si. De fato, parece que o narcisismo
do Eu pode ser retirado dos objetos: a erotização do corpo próprio
faz nascer esse corpo-Narciso. A operação prolonga a do auto-erotis­
mo, pela qual "o objeto de pulsão se apaga em favor do órgão" .23 O
órgão toma o lugar do objeto pulsional e depois do corpo inteiro.
Para além da rica problemática levantada por essa mutação meta­
psicológica, vamos contentar-nos em constatar seu efeito sobre a
problemática do Corpo: este não é mais a base dos objetos pulsionais,
é o princípio de subjetivação da satisfação. Aqui começa uma teoria
da corporeidade (e não mais, somente, do corpo-objeto). A imagem
dos lábios que beijam a si mesmos basta para evocar esse círculo que
faz a abertura do corpo na sua própria aptidão para a erotização. Não
nos apressemos em falar do corpo narcísico: o problema é que o Eu
seja " encontrado" pela libido, de sorte que o Eu se torne o próprio
Objeto, algo como o Órgão libidinal. Isso é o que se pode designar
como " corpo-Narciso" . Não há em Freud uma teoria do esquema
corporal, pela boa razão de que o corpo não é uma função: ele é, no
mínimo, promovido como suporte da função narcísica.
Mas se pode pensar que a promoção do isso na segunda tópica
reintroduz e institucionaliza a objetalidade pulsional. Nada de sur­
preendente, portanto, que o isso seja representado como " aberto na
sua extremidade d o lado somático" .24 Logo, o isso não é o corpo, mas
o que desemboca, do corporal, no psiquismo.
Não é de espantar, pois, que Freud faça dele também o pólo pulsional
da mecânica psíquica. Mas é essencial notar que ele não " promove
qualquer vontade geral" , nem mesmo do Corpo. É por isso que em
momento algum o isso permite a idéia de um querer-viver, nem mesmo
de um querer-desejar embutido no corpo (embora Groddeck o tenha
entendido assim).
Isso não impede que, do ponto de vista da função-corpo, tenhamos
que localizar uma tensão no cerne da metapsicologia, entre o narci-
1 86 as margens

sismo e o isso. O corpo está imerso no fundo do ser vivo, ele materializa
o ser da pulsão, de alguma forma, mas a cada vez que se aproxima
da hipótese de uma teoria do arcaico25 Freud parece tomar um impulso
para voltar à superfície, ali onde o corpo nada mais é que o lugar de
afloramento de pulsões impalpáveis.
Encontra-se no relato mítico de Narciso em sua origem, nas
Metamorfoses de Ovídio26, uma descrição das mais precisas dessa
ligação entre imagem do corpo e miragem imaginária, de modo que
se é tentado a dizer que a psicanálise não fez mais que tomá-la ao pé
da letra e daí tirar conseqüências clínicas - com a introdução freudiana
do narcisismo -, ocasião de capturar, num exemplo privilegiado, o
efeito de paráfrase da " mitológica" pela " metapsicológica" , que a
reconverte em " psicologia" .
Desventura exemplar, com efeito, a do filho de Cefiso e Linope,
de beleza orgulhosa e cheia de desdém, o qual Tirésias havia
profetizado viveria muito tempo " se não se conhecesse" , e a quem
havia lançado a enigmática maldição: " Possa ele amar, ele também,
e jamais possuir o objeto de seu amor!"
De fato, Narciso não ama ninguém - nem mesmo a ninfa Eco,
tão fascinada por ele - até o momento em que percebe, na água de
uma fonte, o objeto por que fica, enfim, perdidamente apaixonado. A
desgraça é que ele faça apenas um com esse " objeto" , que não é
outro senão a imagem de seu próprio corpo: " Ele quer apaziguar sua
sede, mas sente nascer em si uma sede nova; enquanto bebe, capturado
por sua imagem, que vê refletida na água, apaixona-se por uma ilusão
sem corpo; toma por um corpo o que é apenas água" , " extasia-se
diante de si mesmo" . Eis a ironia que vai envolver a tragédia de
Narciso: essa " ilusão sem corpo" é seu próprio corpo, que ele toma
pelo de um outro: " Estendido no solo, ele contempla seus olhos, dois
astros, sua cabeleira digna de B aco, e não menos digna de Apolo,
suas faces lisas, seu pescoço de marfim, sua boca graciosa, sua tez,
que um fulgor rubro une à brancura da neve; enfim, ele admira tudo
o que o toma admirável. Sem suspeitar, deseja a si mesmo; ele é o
amante e o objeto amado, o alvo para o qual se dirigem seus votos
( . . . ) ."
Narciso não é tanto aquele que ama a si mesmo quanto aquele que
se apaixona por esse outro (esse " fantasma" ) que não é outro senão ...
ele mesmo (reflexo de sua própria imagem). Tem-se aí a " captação
imaginária" primitiva que estabelece sua confusão mortal: não po­
dendo, com efeito, capturar esse outro - e com razão, já que ele não
o Corpo 1 87

passa de sua " imagem fugidia" que lhe escapa assim que dela se
aproxima -, nem renunciar a ela - de tal modo está apaixonado -,
perde o sentido de sua própria autoconservação, renunciando a se
alimentar, e exala uma estranha declaração de amor: " Um ser me
encanta, e eu o vejo: mas esse ser que vejo e que me encanta, não
posso alcançá-lo ( . . . ). Ele também deseja meu abraço, mas cada vez
que estendo meus lábios para essas águas límpidas para um beijo,
cada vez ele se esforça por erguer em minha direção a sua boca ( . . . )."
Enfim, descobre o engano e seu impasse: " Ardo de amor por mim
mesmo, acendo a chama que trago em meu seio ( ... ). O que desejo
está em mim ( . . . ) Oh ! Por que não posso separar-me do meu corpo !"
Assim ele definha a olhos vistos, de modo que " em seu corpo nada
mais resta da beleza" . Ele deita raízes, de alguma forma, e se consome:
" O corpo havia desaparecido; em lugar do corpo, encontra-se uma
flor cor de açafrão, cujo centro é cercado de pétalas brancas."
Narciso, pois, amou-se até a morte - a história conta mesmo que,
" depois que entrou nos domínios infernais, mirava-se ainda nas águas
do Estige" . Imagem do laço entre o gozo auto-erótico e a prova da
morte . . .

ill . 0 CORPO, " FUNÇÃO" DO INCONSCIENTE

É aí que se deve situar a teoria que nos leva ao mais próximo da


teoria freudiana do corporal, e cuja importância talvez tenha sido
subestimada: aquela que compreende o próprio Eu - o da segunda
tópica, e não o Eu-Narciso - como um afloramento do próprio
corporal.

I. O Eu-corpo

Chegamos assim a um dos enunciados mais centrais que, em Freud,


designam o papel (literalmente) central do corpo: " O Eu é, antes de
tudo, um eu corporal" , diz " O Eu e o Isso" (Das ich ist vor allen
ein korperliches ich).27
Pode-se considerar semelhante afirmação, tomada enquanto tal,
como bastante sensacional, já que Freud, tardiamente (em 1 923 ,
188 a s margens

quando da formulação da segunda tópica), nos designa um eu que


seria literalmente do corpo. Para apreciar o que ali é dito, convém
registrar o contexto.
Freud, nessa segunda seção do ensaio metapsicológico mais im­
portante, está engajado numa reflexão sobre as relações entre o Eu e
o Isso. Sua fórmula é ainda mais notável na medida em que se
identificaria mais facilmente o pólo pulsional da " personalidade" com
o Corpo (Groddeck não estava afastado disso). Ora, é ao Eu, o pólo
voltado para a realidade, que se vê atribuída essa corporeidade!
Com efeito, trata-se aqui de dar conta do nascimento do Eu, pelo
qual ele se destaca do Isso a fim de cumprir sua função própria:
" comandar os acessos à motilidade" . Ora, paralelamente à influência
do sistema percepção-consciência, nos diz Freud, " o corpo próprio"
(der eigene Korper) desempenha um papel essencial, principalmente
sua superfície, como " lugar de onde podem provir simultaneamente
percepções externas e internas" . É nesse sentido que o Eu é funda­
mentalmente corporal, vamos entender, que " ele não é somente um
ser de superfície" ( Oberfliichenwesen), mas é ele mesmo " a projeção
de uma superfície" .
A analogia corporal atua aí em dois planos que importa distinguir,
embora Freud jogue com os dois, de maneira voluntariamente iden­
tificatória: o corpo intervém na gênese do Eu, e o Eu é estruturado
como o Corpo, a se entender aqui como superfície, isto é, ao mesmo
tempo como limite e extensão - e certamente não como profundidade
(o que, vamos observar, é uma das metáforas favoritas das filosofias
do Corpo que Freud, literalmente, reexamina com profundidade).
Desse modo, o Eu-Corpo desempenha seu papel relacional, a se
entender como uma relação entre o fora e o dentro: desse modo se
opera uma auto-representação, que supõe ao mesmo tempo presença
do exterior e separação desse exterior, pela qual o Eu se refere a si
mesmo. O Eu se define, portanto, como efeito projetivo (mais que
reflexivo).
Quando Freud diz que o Eu é corporal, deve-se, pois, compreender
algo como: o Eu e o Corpo estão estruturados segundo a lógica
homóloga das superfícies.
Isso equivale a dizer, não que o Eu é análogo ao Corpo, mas que
a emergência da subjetividade se faz segundo essa lógica corporal da
projeção. Logo, o corpo é o próprio, a primeira pessoa.
Sobre essa gênese determinante que liga o destino do Eu ao do
corpo próprio, Freud é, curiosamente, rriuito mais eloqüente em inglês
o Corpo 1 89

do que em alemão. Com efeito, é no texto da Standard Edition que


se encontram os seguintes esclarecimentos: " O Eu é finalmente
derivado das sensações corporais, principalmente daquelas que têm
sua fonte na superfície do Corpo. Ele pode, assim, ser considerado
como uma projeção mental da superfície do Corpo, e, além disso,
como vimos aéima, representa a superfície do aparelho mental." 28
Dessa vez se introduziu o termo sensation (em inglês), que designa
como literalmente sensível (até mesmo sensual) o estofo do Eu.
Poderíamos acreditar ouvir aqui um discurso empirista inspirado em
Hume, unindo empirismo e subjetividade, j á que está em jogo uma
derivação. (enquanto as outras fórmulas se contentavam em jogar com
uma metáfora, embora com um realismo fundamentado).
Mas além disso essa formulação introduz um dualismo da psique
e do soma, já que se trata de uma projeção mental da supeifície do
corpo e de um aparelho mental. Ora, parece-nos que as outras fórmulas,
ao mesmo tempo mais prudentes e mais ambíguas, poupavam tal
dualismo. É justamente porque Freud fazia do mental e do somático
os efeitos indivisíveis daquilo a que chamamos lógica das superfícies
que ele não precisava " mentalizar" seu modelo. Se Freud aprovou
essas últimas fórmulas, como afirmam os editores, parece-nos claro
que elas não pertenciam a seu estilo de escrita. De fato, elas têm o
ciefeito (assim como a vantagem, à primeira vista), de regrar demasiado
explicitamente o que está em causa: .ou seja, a natureza sutilmente
corporal do Eu próprio.
O Eu é menos a aparelhagem mental do corpo do que a subjetivação
da superfície corporal. Igualmente, o discurso freudiano reorganiza
seu espaço próprio mantendo-se à beira de uma leitura empirista (um
Eu nascido da sensação) que, paradoxalmente, reintroduziria um
·•mentalismo" matizado de corporeidade. O Eu é menos o produto de
uma experiência corporal do que o próprio evento da emergência do
Corpo como próprio.
Da mesma forma, Freud está longe de qualquer modelo fenome­
nológico do corpo próprio, pelo qual o sujeito reencontraria o sentido
do mundo e de sua subjetividade (pré-reflexiva).29 O corpo freudi�no
é a0 mesmo tempo mais complexo que um corpo empírico e menos
" rico" que um corpo doador de sentido: é o ser mesmo da projeção
elevado ao nível de para-si. Vamos entender que é como corpo que
o Eu se atinge. Mas justamente, por trás de uma projeção, nada há
que se pareça com uma substância. É a essa dialética da projeção que
somos, pois, remetidos para tentar ver mais claramente aí nesse evento
que tende a se tornar uma estrutura tópica.
1 90 as margens

2. O Corpo-passagem

Podemos agora avaliar o surpreendente trajeto que nos é imposto pela


travessia da corporeidade em Freud.
O corpo pulsiona:l como corpo-sintoma intermedeia a relação do
órgão do gozo com o Outro (o que demonstra o regime histérico). Na
outra extremidade do trajeto está o lugar onde se produz a gênese da
oposição principal entre o Eu e o mundo exterior. O Corpo é, pois,
por excelência, lugar da passagem do objeto e do Outro, de onde
nasce o sujeito.
Isso quer dizer que o Corpo desempenha o papel, a cada vez, de
pré-texto do inconsciente, no sentido forte e duplo do gue dá impulso
ao texto inconsciente e do que o precede e o excede. E nesse sentido
que o corpo nunca é exaltado por si mesmo: sabe-se que, na perversão,
onde a pulsão é idealizada, a fascinação pelo órgão faz papel de
religião do corpo. A experiência analítica refere o corpo a esse lugar
onde, sob todas as suas formas, a ameaça de castração pode surgir.
A castração é um limite crônico que impede o corpo de se fechar
sobre seu próprio Lust. Mas a ambigüidade do corpo se mede
justamente pelo fato de a castração ser irrealizável no corpo próprio:
a mutilação mesma só pode ser a sua materialização metafórica! Em
suma, a lesão do corpo próprio só pode fazer metáfora para aquilo
que atua fora do corpo - e, dessa maneira, ameaça atravessá-lo.
Resumindo, a ironia da castração é que o corpo falta sempre a si
mesmo, o que faz, ocasionalmente, sua obscenidade ! A fetichização
desenfreada do corpo, que é uma das características da modernidade,
não pode deixar de verificar essa cômica verdade da castração. Mesmo
perscrutado, paramentado, idealizado ou mutilado, o Corpo não vai
confessar nada. Nesse sentido, ele é uma " Esfinge sem segredo"
(vamos entender: segredos dele). Freud quase não dá crédito à idéia
de " sabedoria do corpo" ; o inconsciente iria curar mais de uma
semelhante ilusão: mas é por isso também que o corpo se deve ler.
É por isso também que ele comanda essa passagem ao simbólico e à
Kultur.

3. O Corpo e a Kultur

Se fosse necessário fornecer uma conclusão simbólica dessa posição


do Corpo, nesse ponto de junção do inconsciente e do processo
civilizador (Kultur), deveríamos referir-nos a esse pequeno mito de
o Corpo 191

origem que Freud produz para indicar as fontes inconscientes da


aquisição do fogo.
O mal-estar na civilização mencionava numa nota uma hipótese
de aparência " extravagante" ,30 à qual Freud deveria consagrar um
desenvolvimento mais conseqüente.31
A domesticação do fogo, tão importante para a entrada na Kultur,
teria sido tornada possível pela renúncia ao hábito de " apagá-lo com
um jato de urina" ,32 o que remete a " uma espécie de embate
homossexual" .
Encontra-se nesse pequeno mito como que um eco do grande, o
de Totem e tabu, mas enquanto no outro é a relação com o interdito
paterno que inaugura a Kultur, aqui a ênfase é dada ao que se poderia
chamar o momento do corpo na dialética da renúncia, e que remete
a um esforço propriamente prometéico. Roubar o fogo dos deuses
equivale, com efeito, a obter uma vitória sobre as vozes do corpo.
Freud, de fato, sublinha que o homem originário ( Urmensch) era
capaz de " compreender o mundo exterior com a ajuda de suas próprias
sensações e relações corporais" (Korperempfindungen und Korper­
verhiiltnisse).33 Era pelas mensagens do corpo que o " mundo exterior"
lhe falava. Ora, eis o momento decisivo: " Aquele que, em primeiro
lugar, renunciou a esse prazer e poupou o fogo era capaz de levá-lo
consigo e submetê-lo a seu serviço." 34 Eis, pois, uma " renúncia
pulsional" (Triebverzicht) que equivale a um domínio do corpo:
" Abafando o fogo de sua própria excitação sexual, ele havia domes­
ticado a força natural do fogo" .
Essa pequena cena corporal, no limiar entre a obscenidade e a
cultura, mostra bem o emblema do que está em questão. O corpo da
pulsão deve ser marcado pela renúncia, à falta do que o próprio objeto
de seu desejo não poderia arder! O retomo do sintoma atesta que essa
renúncia se inscreve como um custo do recalque. É nesse momento
de refluxo que se opera a inscrição sobre o corpo. É assim que o
corpo se deve ler: como lugar de intrincamento e de desintrincamento
da pulsão e do desejo. É por isso que ele é o próprio lugar da regressão
e o lugar de passagem à palavra e à cultura - do mesmo modo que
o afeto remete ao social (supra).
Se, como recorda Freud com o poeta, " estamos certos, pelo menos,
de que nunca cairemos fora do mundo" (Grabbe), estamos também
assegurados de que não sairemos de nosso corpo. Mas é também por
esse " pedaço de natureza" que o sujeito negocia sua relação com o
Outro e seu desejo.
1 92 as margens

Corpo e Grund metapsicológico

Compreende-se, ao fim desta desconstrução metapsicológica do Cor­


po, que Freud neutraliza, de alguma forma, a potência da " imagem" :
o Corpo não é um conceito metapsicológico. Ele é, muito mais, esse
" fundo" ( Grund) que é " tocado" pela exploração dos processos
psíquicos em rnoínentos determinantes - nos registros pulsional e
narcísico, principalmente. Não poderia, portanto, haver " metapsico­
logia do Corpo" , falando-se propriamente, justamente porque " o
Corpo" é esse ponto que designa o avesso do Objeto rnetapsicológico.
Não há " linguagem do corpo" - o freudismo recusa antecipadamente
a corrida para o Corpo como causalidade e finalidade que caracterizam
um certo movimento da modernidade - cujos efeitos veremos quanto
à terapêutica (infra). Mas, precisamente, longe de ser " intelectualiza­
ção" , a metapsicologia não cessa de fazer a teoria do evento corporal,
que só assume significação corno " sintoma" e contexto - no sentido
mais material - do trabalho propriamente psíquico. O Corpo, nesse
sentido, é realmente aquilo que, desafiando a explicação metapsico­
lógica, a faz trabalhar mais intensamente, figura nesse sentido da
Ananke. 35

NOTAS AO CAPÍTULO VIII

I . Ver sua Filosofia do inconsciente ( 1 873) que, pelo Inconsciente, realiza uma
verdadeira metafísica 4o corpo. Sobre as relaçpes com Freud, ver nosso Freud,
la philosophie et les philosophes, PUF, 1 976.
2. Ver a correspondência de Freud e Grocldeck, in Georg Groddeck, Ça et
Moi, Gallimard, 1977, e nosso comentário em L 'entendement freudien, Gallimard,
1 984.
3. Cf. lntroduction à L' épistémologie freudienne, Payot, 1 98 1 , cap. 11.
4. Esse é o primeiro elemento da definição dada por Freud, Psicanálise e teoria
da libido, 1 923.
5. L 'intérêt de la psychanalyse, B, L 'intérêt pour la philosophie, Retz, 1 980,
p.75.
6. Análise temlinável e interminável, GW XVI, p.99.
7. Ver, sobre esse ponto, nossa tese em Freud e a mulher, Jorge Zahar Editor,
1993.
o Corpo 193

8. É essencial destacar que a oposição entre um modelo dualista (cartesiano)


e um modelo hilemorfista (inspirado no animismo de Stahl no século XVIII) se
encontra entre a psicanálise e as modernas técnicas corporais. Referimos sobre
esse ponto nossa contribuição às 2e Assises nationales de sophro-relaxation
obstétricale, novembro de 1 984, in Recuei/ des rapports et communications, " Le
savoir et la mere" , Centro Hospitalar de Saint-Cloud, p.53s.
9. As neuropsicoses de defesa, 1 894, trad. fr. in Névrose, psychose et perversion,
PUF, p.4, GWI, p.63.
l O. Op. cit., GW I, p.5.
l l . Em L 'interêt de la psychanalyse, Freud chega a comparar " a língua gestual
na histeria" com " a língua ideográfica" (Bildersprache), op. cit., p.74.
1 2. Fragmentos da análise de um caso de histeria, GW V, p.200.
1 3 . Op. cit., GW V, p.2l 3.
14. Freud dá seu modelo no ataque histérico que reproduz a agressão sexual
desempenhando os dois papéis (cf. As fantasias histéricas e sua relação com a
bissexualidade).
1 5 . Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, GW V, p.67.
1 6. As pulsões e suas vicissitudes, GW X, p.2 l 4.
1 7 . Introdução à psicanálise.
1 8 . Cf. "A concepção psicanalítica da perturbação psicogênica da visão" , 1 9 10.
19. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, GW V, p.86.
20. Conferências introdutórias, GW XI, p.406 (XXIV}.
2 1 . O inconsciente, §VII. Exemplo tomado de Tausk, de uma psicótica que se
lamenta: " Os olhos não estão como devem, estão virados pelo avesso: a relação
com o órgão (o olho) arrogou-se a função de representar todo o conteúdo pela
intrusão do sedutor na imagem do corpo próprio."
22. GW VIII, p.296-7 (a propósito do caso Schreber).
23. Novas conferências introdutórias, GW XV, p.23.
24. As pulsões e suas vicissitudes, GW X, p.225.
25. Cf. L 'entendement freudien, op. cit.
26. Cf. o livro III, in Ovídio, As metamorfoses. Société des Belles Lettres, Le
Club français du Livre, 1 968, pp.84-90.
27. O eu e o isso, GW XIII, p.253.
28. Essa passagem foi acrescentada à Standard Edition, e diz-se ter sido
aprovada por Freud. Pode-se destacar o interesse de Freud pela Análise das
sensações de Emst Mach; ver, nesse ponto, lntroduction à l 'épistémologie
freudienne e nosso prefácio a Pour une évaluation des doctrines de Mach de
Robert Musil, PUF, 1 985.
29. Por exemplo, como em Maurice Merleau-Ponty, Fenomenologia da
percepção.
30. GW XIV, p.449.
3 1 . A aquisição e o controle do fogo, 1 932.
32. O mal-estar na civilização, op. cit.
33. A aquisição e o controle do fogo, GW XVI, p.9.
34. GW XIV, p.449.
35. No sentido delimitado em nossa obra L 'entendement freudien. Logos et
Ananke, op. cit.
CAPÍTULO IX

O ATO

Por uma pragmática metapsicológica

1
lm Anfang war die Tat

No começo era a ação, o apotegma goethiano seria igualmente a pri­


meira e a última palavra da psicanálise? Poderíamos crer nisso, a
julgar pela insistência com que Freud se designa, nesse ponto, como
êmulo de Goethe. Mas raramente se terá a impressão, mais que aqui,
de um divórcio entre a doxa que Freud parece anunciar, à margem
da teoria analítica, e o funcionamento da própria teoria. Pois a
problemática da " ação" - genericamente registrada por esse termo,
Tat - é notavelmente marginalizada na conceitualização freudiana.
Não é que, ao observá-la de perto, lhe faltem ocorrências: uma pesquisa
sistemática desse tema, tal como a propomos, fará aparecer veios
espantosamente fecundos.
Mas é inútil, ao que parece, buscar em Freud uma " psicologia da
ação" . Como fica, então, o adágio caro a Freud? Em que sentido a
psicanálise poderia afirmar, à sua maneira - já que, decididamente,
ela só pode abordar as " coisas últimas" 2 à sua maneira - essa
" prioridade" do Tat?

Sobre a aporia do ato e do inconsciente

Para responder a essa questão única e central, será preciso acompanhar


o trajeto dessas veias conceituais que se multiplicam no texto freu­
diano, com essa arte consumada do rigor tão atento à diferença que
às vezes ele confunde o olhar. Pois, se o poeta e o filósofo podem

1 94
o ato 1 95

permlttr-se nomear resolutamente a Ação e com ela atar laços


sistemáticos, o psicanalista parece condenado a freqüentar suas figuras,
gradualmente e com circunspecção, sem jamais institucionalizar essa
ligação, até mesmo obrigando-se a tornar a partir, a cada vez, da nova
malha da rede, como se ela não tivesse sido originalmente tecida.
Vamos procurar retramar o tecido, não sem buscar as razões da amnésia
de Freud.3
Existe algo ainda mais grave: à temática da " ação" , Freud impõe
uma espécie de dever de reserva, até mesmo de desconfiança. É que
o inconsciente, cuj as extravagâncias ele nos oferece tão magistral­
mente, quase não parece " agir" - mesmo que seja tão extraordina­
riamente " ativado" .
De saída, existem razões para essa pouca familiaridade entre o
inconsciente e a ação. A ação (Tat, Handlung) é, em psicologia, o
" movimento de conjunto, rápido demais para ser perceptível como
tal e adaptado a um fim."4 Portanto, fazer agir o inconsciente é
atribuir-lhe um fim ao qual ele seja adaptado. Ora, se ele é de fato
ativado para fins, está para isso, afinal, nada menos que " adaptado" .
A ação aponta em seguida, irresistivelmente, para a idéia da
" execução de uma volição" .5 De resto, é fato que a psicologia da
ação tem figurado principalmente nos manuais de psicologia, desde
a época de Freud, como ponto extremo da vontade, ou seja, passagem
à realidade. O inconsciente, a serviço do desejo, acomoda-se mal com
esse " voluntarismo" inerente à noção.6
Mas se a tomarmos em sua acepção metafísica, a ação designa a
" operação de um ser como produzida por esse próprio ser, e não por
uma causa exterior" .7 Dessa vez a problemática da ação tende para a
" autonomia" - motivo pelo qual as " filosofias da ação" sempre
foram " sobredeterminadas" por essa trama da autonomia.8 Pelo
inconsciente, Freud inscreve uma nova falha na problemática da
Handlung, na medida em que ele barra a " autonomia" em toda a sua
extensão. É essa mesma a principal " má notícia" dada pela psicanálise
à humanidade.9

Campo semântico da Ação em Freud

Assim, pelos fins, pela vontade e pela autonomia, o inconsciente


ameaça de um dano aparentemente irreparável a Tathandlungsphilo­
sojhie.10 Mas em compensação ele inscreve nela novas questões: a
1 96 as margens

que gênero de " fins" se pode realmente atribuir o inconsciente? Que


lhe é possível, à sua maneira, " querer" ? De que tipo de " autonomia"
se pode prevalecer o sujeito que se deve, afinal, postular no incons­
ciente? Desviadas pelas filosofias do Inconsciente, 1 1 essas questões
nem por isso se tornam letra morta para Freud: ele responde a elas
deslocando-as, para aí instruir seu " objeto metapsicológico" .
Mas nem isso mesmo esgota a problemática: por trás da Handlung,
encontra-se o " ato" - Actus, com seus derivados germânicos Agieren
etc. 1 2
Nessa problemática semântica, chega-se a enfatizar menos a essên­
cia do agir (o operari) - dotada de um fim e de uma certa autonomia
finalizada - do que o próprio processo: " Dado que toda mudança
pode ser: (a) possível; (b) em vias de se realizar; (c) realizada, a
expressão em ato se aplica em primeiro lugar ao momento b em
oposição a a, que designa a expressão em potencial; em seguida ao
momento c, isto é, ao ser realizado e duradouro que resulta dessa
mudança." 13 O formalismo de tal caracterização indica que não
postulamos mais aqui uma essência agente (psicológica ou metafísica):
temos que nos ocupar de um processo que se recorta cinematicamente
como passagem ou translação.
Parece que, nesse terreno, a experiência analítica fica mais à
vontade: ela requer mesmo teorizar essa " atuação" , ou seja, a passagem
do dentro ao fora no que se chama " atuação" 14• Mas, justamente, a
problemática do ato, ao contrário da temática da ação, neutraliza a
questão do dentro e do fora: ela aborda a questão na sua formalidade, 15
pensa em outros termos a atividade do ato, apreendida na ponta real
de seu efeito - ao passo que a " ação" (Handlung) só faz retornar
na realidade p ara aí inscrever seu efeito ( Wirkung).16
Essa segunda temática forma, porém, um desafio para a psicanálise:
articular um modelo da atuação inconsciente. Como, com efeito, pensar
essa " atuação" ? Será preciso postular, por trás do próprio ato, um
" motivo" oculto, ou pelo menos uma " moção" ? O ato deveria ser
pensado como atualizando um motivo, presente no ato como sua
" potência" ? Mas, então, onde estaria o inconsciente, no " motivo" ou
no próprio ato, na " matéria psíquica" ou em parte alguma que não
na atuação do ato?
Adivinha-se que, nesse terreno do ato, a psicanálise encontra o
ponto decisivo onde se conjugam ratio e techné para o inconsciente:
não como algum ponto de vista da " ação analítica" pelo qual se
prolongaria a " teoria" do inconsciente, mas como a dupla vertente
do ato.
o ato 1 97

Ora, nesse ponto preciso, é a nada menos que a questão ética


constituinte, a da relação com o Outro, que a problemática da ação/ato
nos reintroduz. Na ação, é, com efeito, a " influência exercida sobre
um outro ser" 17 que se vê pensada. E isso ainda é dizer pouco, pois
que é toda a dialética da ação e da paixão que se vê, assim, introduzida.
Nessa dialética, a psicanálise encontra-se especialmente interessada
pelo laço constituinte que ela estabelece entre o inconsciente e a
relação com o Outro. Ela reativa, assim, estranhamente, a oposição
originária entre a atividade (poiesis), que teria seu fim fora de si
mesma, no objeto a produzir, e a ação propriamente dita (praxis), que,
tal como a visão do olho, tem seu fim em si mesma18 - a se entender
aqui como aquilo que, do sujeito " atuante" , se refere ao Outro como
princípio puro de " atuação" . Essa dialética pode levar-nos mais
próximo da experiência propriamente analítica.
Tentaremos restituir essa dialética inerente ao registro da ação pela
retomada do próprio movimento da temática em Freud, que só a ilustra
refratando-a em sua matéria própria. Ora, acontece que a oposição
temática entre a ação e o ato parece encontrar na conceitualização
freudiana um respondente. Partindo de uma teoria de certa forma
originária da " ação específica" (Aktion), Freud elabora uma teoria da
ação (Handlung) antes de reencontrar a questão do estatuto do agir
(Agieren). É essa escansão que vamos acompanhar, para dar corpo a
essa temática, tão rigorosamente contraditória, verdadeira " racionali­
dade em ato" , experimentando e redefinindo o que obriga o saber do
inconsciente a experimentar a originalidade tão problemática do ato.
O que nos fará, enfim, aportar no " equívoco metapsicológico" que
ele exibe.

I. PRINCÍPIOS DE UMA METAPSICOLOGIA DOS ATOS

I. No começo era a ação não-específica

Para compreender o que vem a ser a ação específica, convém situá-la


com relação ao processo preciso que parte da excitação. É a propósito
da " neurose de angústia" 19 que Freud efetua esse esclarecimento. Aí,
com efeito, aparece a conseqüência patógena de uma " derivação da
excitação sexual somática a distância do psiquismo" , e de " uma
utilização anormal dessa excitação" .20
198 a s margens

Vamos lembrar que, para explicá-lo, Freud postula uma excitação


sexual som�tica (somatische Sexualerregung) que " periodicamente se
transforma num estímulo (Reiz) para a vida psíquica" .21 É quando
essa excitação pode transformar-se em excitação psíquica que " o
grupo de representações sexuais presente n a psique se vê aprovisionado
de energia" , de modo que " se produz o estado psíquico de tensão
(Spannung) libidinal, acompanhado pela pressão (Drang) tendente a
suprimir essa tensão" . Nesse momento preciso do esquema, intervém
o " momento" da ação: " Tal descarga psíquica só é possível pela via
daquilo que designarei como ação específica ou adequada. " 22 A ação,
pois, nada mais é que o resultado de uma seqüência: excitação
somática, exCitação psíquica, tensão-pressão - ou seja, Erregung -4
Reiz -4 Spannung/Drang: o ser da ação consiste na Entlastung,
descarga ou distensão.
A psique, com efeito, só " age" para suspender a excitação e aliviar
a tensão, mas, ao mesmo tempo, para assegurar um destino psíquico
à excitação. Pelo menos nesse sentido, ela pode ser dita " específica"
ou " adequada" . Freud atribui, de fato, duas componentes à ação
específica: além do " ato reflexo" tendente a " descarregar as termi­
nações nervosas" , " todos os preparati vos psíquicos que devem ser
postos em funcionamento para o desencadear (Auflosung) desse
reflexo" .
Isso não quer dizer que á ação seja indispensável para fazer aceder
a excitação ao psiquismo: " pois a excitação sexual somática, uma vez
tendo atingido o limiar, transforma-se continuamente em excitação
psíquica" . É para isso que serve a ação específica, isto é, " para liberar
as terminações nervosas da pressão que pesa sobre elas, suprimindo
assim a excitação somática existente" .
A partir daí se dá a realização, pelo objeto e pelas condições
externas, desse programa de " relaxamento" . À falta do que, ou bem
" a descarga (a ação) adequada é substituída por uma menos adequada"
(neurastenia),23 ou bem " a excitação sexual somática, derivada fora
do psiquismo, se despende de maneira subcortical em reações total­
mente inadequadas" (neurose de angústia). A angústia não passa do
dispêndio subcortical daquilo que não pôde ser descarregado ou atuado:
vai-se notar a sinonímia introduzida por Freud entre Aktion e Entlas­
tung.
A teoria da ação específica intervém, em suma, para explicar, bem
menos que o ser da própria ação, o que ocorre quando a ação-descarga
não se produz. É como se a ação, " solucionando" a questão econômica
principal do psiquismo, resolvesse ao mesmo tempo o problema
o ato 1 99

propriamente psico-lógico - passagem da excitação à satisfação, via


psique. À parte isso, não há muito o que se dizer sobre ela, a não ser
que " i sso aconteceu" , " isso se passou" ou " isso agiu" . O sintoma
inscreve-se, ao contrário, no eixo do que tornou impossível. . . a própria
ação adequada. Freud, na sua primeira nosografia, apreendeu o sintoma
por esse efeito maior de uma inadequação crônica e originária que
recairia na " ação" .

2. Da inércia à ação

É no Projeto para uma psicologia científica que se encontra algo


como uma " metapsicologia da ação" .24 Aí se acha assinalada, com o
rigor especulativo que Freud só se permitia em segredo, a razão última
dessa concepção " descimegadora" da ação. É da relação com o
" princípio de inércia" , segundo o qual " os neurônios tendem a se
desembaraçar das quantidades" 25 que se devem agora repartir. Ora,
esse " princípio de inércia se acha perturbado por outras circunstân­
cias" , principalmente pela complexificação do organismo, que atinge
a emergência das " grandes necessidades" : a sexualidade aí está
situada, ao lado da fome e da respiração. Tais " excitações só cessam
se condições bem determinadas se realizarem no mundo exterior ( ... ).
Para executar o ato (capaz de fornecer essas condições) e podendo
ser qualificado de específico,26 é necessário um esforço independente
das quantidades endógenas e geralmente maior que elas, já que o
indivíduo está submetido ao que se pode chamar de urgência da vida. "

Daí a agitação primitiva.


A esfera do " ato específico" surge, pois, a partir do momento
preciso em que a estratégia de inércia é contrariada, o que cria uma
espécie de elo de retroação com o exterior. Isso leva-nos a explicitar
que a ação se situa nesse registro metapsicológico originário, em
contrariedade à inércia. É como se a Ananke, carência ao mesmo
tempo interna (necessidades) e externa (urgência da vida), impusesse
ao sistema neuronal uma estratégia própria: a inércia (Tragheit) deve
assim especificar-se como tática da " descarga" (Entlastung).
Mas, simultaneamente, como " o sistema neuronal se vê obrigado
a renunciar à sua tendênci a original à inércia, isto é, à sua tendênci a
ao nível zero, ele deve aprender a suportar uma quantidade armazenada
que basta para satisfazer as exigências de um ato específico" . Há, aí,
a idéia essencial de um enquistamento da energia, o ato específico
200 as margens

sorvendo nesse fundo especial de reserva para responder às exigências


do real: Essa acumulação funcional não esquece, entretanto, a exigência
primitiva: ela se esforça por " manter a quantidade a um nível tão
baixo quanto possível" .
B asta dizer que o agir deve ser pensado sob a espécie dessa " função
secundária, imposta pelas exigências da vida" . É como se, se contasse
apenas consigo, o sistema psíquico niío agisse: mas a Ananke real
perturba esse programa " quietista" de maneira tão inelutável quanto,
no fundo, suspeita de " ilegitimidade" . É esse desvio radical que se
teria que pensar para conferir ao agir seu verdadeiro estatuto meta­
psicológico.

3. A função do Outro

O que encerra, aparentemente, a primeira problemática freudiana da


ação sobre si mesma é sem dúvida essa conotação " funcional" : em
tal perspectiva, e xistem dois termos apenas: adequado/não adequado,
específico/não específico. Mas parece que o essencial se passa entre
os dois, ou mais precisamente na possibilidade virtual, assim atribuída
à " ação" , quer se descarregue ou não. Por esse registro " funcional" ,
Freud abre o caminho de uma questão maior, a da realização da moção.
Mas " realização" não deve ser entendida como o que vai fazer passar
a psique na realidade: o próprio fato de que isso aja " adequadamente"
deve interpretar-se como o signo de que a elaboração psíquica teve
lugar (conforme o procedimento estudado acima). Logo, seria errôneo
pensar que a ação realiza o programa psíquico, no sentido em que ela
o faria passar " ao exterior" , onde iria " aplicá-lo" . Antes, é o fato de
que isso " passe ao exterior" - registro inerente à própria idéia de
agir - que assinala o " êxito" do processo com relação à psique, ou
seja, o fato de que ele tenha achado seu caminho.
Ora, esse " êxito" , essa felicidade da ação, que faz com que
simultaneamente se opere a inscrição psíquica e o encontro do real,
convoca um terceiro termo: o Outro. Não somente o " objeto" , pois,
mas aquele que, sendo o procurador do objeto, fornece ao processo
a mediação que lhe é necessária para " agir" especificamente. Este
Outro - que faz, assim, uma entrada ao mesmo tempo modesta e
pungente na cena do inconsciente - inscreve-se como " tapa-buraco"
no tempo de prorrogação suscetível de se estender entre a excitação
e a ação, na própria tensão. Compreende-se que, dessa maneira, o
o ato 201

registro funcional se veja subvertido por uma incidência " existencial"


maior: é preciso que haja .. outro" para que " isso aja" .
Assim, somos referidos, seguindo as condições desse registro da
ação no inconsciente, à situação primitiva, da qual o bebê em estado
de desamparo dá a imagem: o da demanda e da " prova de satisfação" .
Ou seja, então, " necessidade de descarga" ou " impulso que vai
realizar-se por meio da motricidade" : ou bem se vai produzir uma
" modificação interna" - manifestações emotivas, gritos, inervações
musculares, que não impedem novas excitações endógenas de afluir
- ou bem se abre uma modificação externa: " a intervenção capaz
de deter momentaneamente a liberação de quantidades no interior do
corpo" .
Com uma frieza técnica, Freud faz o inventário, nessa ocasião, dos
elementos necessários e suficientes para que se suscite esse Outro,
matemo, que vai assim mediar a necessidade e o agir: " Essa espécie
de intervenção exige que se produza uma certa modificaçã;o no exterior
(por exemplo, chegada do alimento, proximidade do objeto sexual),
modificação que, enquanto ação específica" , só se pode efetuar por
meios determinados. O organismo humano, em seus estádios precoces,
é incapaz de provocar essa ação específica que só pode ser realizada
com uma ajuda exterior e no momento em que " a atenção de uma
pessoa atenta se volta para o estado da criança" , pois que "já alertada"
pelo fato de " uma descarga que se produz no caminho aberto pelas
mudanças internas" .
Assim, basta que essa descarga interna, produzida pelo bebê,
encontre seu respondente, e o sujeito está no caminho, literalmente
inesquecível, da satisfação: " Quando a pessoa que socorre executou
pelo ser impotente a ação específica necessária, este se encontra então
capaz, graças às suas possibilidades reflexas, de realizar imediatamen­
te, no interior de seu corpo, o que é exigido pela supressão do estímulo
endógeno" - processo que merece ser definido em seu conjunto
como " fato de satisfação" .
Assim, o desamparo (Hilflosigkeit) original, ação específica entra­
vada, retomada pelo Outro - materno, que seria preciso " inventar"
com esse único fim -, é o que permite ao pequeno homem voltar
ao seu próprio agir, reflexo. A " pessoa que socorre" não é mais que
uma ajuda externa: ela medeia concretamente a relação de si a si e
toma a interessar a criança na sua própria satisfação.
Freud sente tão bem a importância desse momento que nele situa
a origem da moralidade: " A via de descarga adquire assim uma função
202 as margens

secundária de extrema importância: a da compreensão mútua. A


impotência original do ser humano torna-se assim a primeira fonte
de todos os motivos morais." Bela genealogia que indica que a
impotência para agir, partida da excitação, nos leva ao limiar da ética
própria ao inconsciente, aquela que liga, pela linguagem, o destino
do " pequeno homem" ao seu outro ... Momento de " laço" literalmente
" religioso" _27

4. A cena originária: ato e fantasia

É característico dessa teoria originária da ação que ela aproxime


estreitamente fome e sexualidade, que funcionam, de resto, como
pulsões " fundamentais" . 28 Isso não quer dizer apenas que a sexualidade
ainda é compreendida como o registro do " ato sexual" - o que a
teoria da " sexualidade infantil" vai derrubar:29 talvez seja preciso
tomar ao pé da letra a idéia de que o registro da " ação específica"
permite uma travessia radical que levaria à questão do próprio ser da
pulsão.
Pois essa relação de suporte do Outro materno vai repetir-se,
defasada, na " cena originária" , na qual, pela sedução, o Outro faz
sua entrada violenta na cena do desejo do sujeito.30 Esse é o principal
efeito da cena primitiva: provocar o terror (Schreck) que se traduz
pela impossibilidade de produzir uma reação motora apropriada.
Literalmente fi xada no lugar, a testemunha - ou alvo - da Urszene
parece aprisionada entre o afluxo das excitações endógenas produ­
zido pelo espetáculo do desejo do Outro suscitando seu próprio
desejo, por um lado, e a realidade acabrunhante do espetáculo, por
outro.
Esse " afeto concomitante" é prenhe de sentido, assim ressituado
na problemática do agir: ele assinala o retorno à impotência produzida
pelo desamparo. Mas é igualmente o avesso da outra cena, aquela
onde tomaria impulso a " moralidade" : se, através desta, " o entendi­
mento com outrem se vê assegurado" , 3 1 com aquela o divórcio do
outro é consumado. Mas é no entre-dois que a própria linguagem
do inconsciente toma seu impulso. Vamos guardar, sobre isso, a
importante observação de que é no momento crítico de cristalização
da relação com o Outro que parece (re)perfurar-se essa falha na
ação.
o ato 203

Talvez isso ocorra pela essência da pulsão, dividida entre a


impossibilidade primitiva de fuga da excitação intema32 e a expectativa
de " alguma coisa que não chega" : é aí que se perfura, numa espécie
de turbilhão inicial, o próprio sujeito da pulsão. Mas, justamente, essa
relação problematiza a realidade - como indica a maneira bem
conhecida como Freud suspende a questão da realidade da cena
originária.
Desse modo, ele toca realmente na questão da fantasia, que nasce
de certa forma da exasperação suscitada pela cena primitiva, por ser
ao mesmo tempo tão real e tão pouco atribuível à realidade. A ponto
de que, " quando nos encontramos na presença de desejos inconscientes
reduzidos à sua expressão última e mais verdadeira, somos bem
forçados a dizer que a realidade psíquica é uma forma de existência
particular que não se poderia confundir com a realidade material" .33
Se Freud chama, ocasionalmente, de " realidade prática" essa
" realidade material" , é porque ele não pode desconhecer que a fantasia,
à sua maneira, " se pratica" - o que não é mero jogo de palavras,
mas indica o caráter essencial da fantasia, de se recortar num " roteiro"
do qual Freud desmonta a cinemática.34 Se Freud não teoriza facilmente
essa relação da fantasia com o desejo, do qual ela é a " realização" ,
talvez seja para dissuadir da procura de sua " chave" noutra parte que
não no próprio trabalho da fantasia.35
Igualmente a fantasia jamais assume o aspecto de algum " devaneio"
preguiçoso, oponível à energia da ação: a fantasia demonstra que o
inconsciente trabalha. A única característica refere-se à posição do
sujeito com relação ao desejo, o interesse do Wunsch alternando-se
com o interesse do investimento da realidade pela ação. É por isso
que Freud não cessou de reafirmar, desde a Traumdeutung, a dualidade
dos dois pólos respectivamente conferidos à satisfação alucinatória e
au investimento motor.36
Mas, do mesmo modo, a pulsão, como " pedaço de atividade" ,
. tende a se satisfazer, verdadeira Aktivitiit a serviço da satisfação.
Talvez a pulsão dita de dominação não seja mais que o momento no
qual d pulsão, originariamente, exerce sua função de domínio do
objeto, a ponto de Freud fazer disso uma espécie de a priori da própria
pulsão sexual. A pulsão nomeia assim a instância de arbitramento da
alucinação e da ativação. É do lado das próprias condições desse
exercício, em suma, em seus " princípios" , que se deve procurar daqui
·

por diante.
204 as margens

11. D A METAPSICOLOGIA À CLÍNICA DA AÇÃO

1. Do princípio de realidade ao Eu ator

A problemática precedente, articulando a impossível ação específica


à experiência de satisfação, indica-nos onde buscar sua filiação, na
evolução da metapsicologia freudiana: ou seja, na teoria do princípio
de prazer e de realidade.
A descarga pulsional primitiva vai recobrir, doravante, a satisfação
alucinatória, enquanto que, com base na decepção, " o aparelho
psíquico teve que resolver-s6 a representar o estado real do mundo
exterior e buscar uma modificação real" .37 Reconhece-se o princípio
dito de realidade: " Desse modo, um novo princípio de atividade
psíquica era introduzido: o que se representava não era mais o que
era agradável, mas o que era real, mesmo que isso devesse ser
desagradável." 38
Dessa " dialética" bem conhecida dos dois princípios, o que nos
interessa é o motivo pelo qual a " ação" lhe é associada. Em 1 9 1 1 ,
no momento em que esse modelo funciona e em que a metapsicologia
encontrou novo alento, a teoria da " ação específica" parece ter sido
relegada ao nível de acessório. Mas, como Freud faz com freqüência,
ele reutiliza, para as necessidades da nova teoria, o antigo aparato
conceitual, atualizado para as novas necessidades.
O que nos pode alertar para compreender a nova teoria da ação é
que se vê reaparecer a idéia de " modificação externa" do Projeto de
1 895, aqui especificada em " modificação real" . É realmente uma
teoria da ação (Handeln) que vai, com efeito, tomar o lugar da teoria
das " ações específicas" , mas como que para exprimir a mesma
necessidade metapsicológica. Um trecho do artigo sobre Os dois
princípios permite medir com exatidão a transição de um modelo ao
outro: " O transporte motor, que durante o domínio do princípio de
prazer havia servido à descarga (Entlastung) pelo aparelho psíquico
dos excedentes de excitações (Reizzuwiichsen) e que se havia desin­
cumbido dessa tarefa pelas inervações inscritas no interior do corpo
(mímicas, expressões de afetos), incumbe-se agora de uma nova
função, aplicando-se à transformação eficaz da realidade. Ele se
transforma em Agir" (Handeln)39•
Pode-se apreender aí, em flagrante delito, a transposição das " ações
específicas" na teoria do Agir. A descarga (Entlastung) é realmente
o ato 205

o cerne do procedimento; é sempre de excitações que se trata, embora


o nível somático de Erregung tenha cedido lugar ao registro puramente
psíquico das Reizen; enfim, a realidade é o que está realmente em
jogo nessa passagem à ação. Mas tudo se passa como se, pela
especificação em " princípio de realidade" , a teoria das ações tivesse
podido desembocar numa teoria da ação. É por isso que o novo
relatório parece agora dar como tarefa ao aparelho psíquico essa
" transformação eficaz da realidade" .
Dessa vez, além disso, Freud emprega o termo clássico que enfatiza
o agir como atuação. Não se trata mais apenas de " atos" , mas de
uma função de agir. Portanto, seria errôneo fixá-la mais do que já o
está no texto: tudo o que se pode dizer do Handeln é que ele materializa,
pela emergência do princípio de realidade, o transporte motor (moto­
rische Abfuhr) primitivo em " ação" . Agir (handeln) significa, pois,
para o aparelho psíquico, esse fluxo motor que encontrou o caminho
da realidade. E isso significa nada mais que renunciar à satisfação
alucinatória primitiva, dar uma perspectiva real à tarefa de descarga
constitutiva.
Esse deslizamento dos " atos" à " ação" revela que uma instância
está sendo rei vindicada como " atriz" : é o Eu, ao qual essa função
será finalmente reconhecida na segunda tópica: " Ele é encarregado
de funções importantes, em virtude de sua relação com o sistema
percepção; ele estabelece o ordenamento temporal dos processos
psíquicos e os submete à prova de realidade. Isso se . faz na medida
em que, intercalando os processos de pensamento, ele chega a adiar
as descargas motoras e domina os acessos à motilidade."40 Eis, pois,
aparentemente, o Eu depositário dessa prorrogação da descarga (Auf­
schub der motorischen Entladungen), como se as descargas fossem
pluralizadas frente à unidade do Eu.
Mas essa " unidade em ato" que é o Eu é, examinando-se bem,
problemática. Freud o exprime por uma metáfora política muito
reveladora: " Esta última dominação (Herrschaft) é, porém, mais
formal que factual: o Eu, na relação com a ação (Handlung), tem por
assim dizer a posição de um monarca constitucional sem cuja sanção
nada pode tomar-se lei, mas que pensa muito antes de opor seu veto
a uma lei do Parlamento. " Ele fornece, assim, a imagem combinada
da dominação e da impotência: ponto de soberania do Eu, não mais
sobre a ação do que sobre o " isso" , essa potência que anima
eficazmente a oposição ao Eu.
206 as margens

A ação é, portanto, o que está em jogo na posição que o Eu negocia


com o Isso, sobre sua fronteira da realidade. A metáfora freudiana
pode, pois, inverter-se do mesmo modo: o Eu busca governar justa­
mente porque não reina. Nesse sentido, cada ato demanda ser rene­
gociado com o Isso, fracionando a pressão que tende à Entlastung,
ganhando assim uma porção de mestria sobre a realidade.
Freud não diz em momento algum que "o Eu age" , desesperando,
discretamente, toda leitura " behaviorista" . Antes, aparece como aquilo
que, obstinada e precariamente, transforma uma porção do " isso" e
inscreve uma saliência de " realidade" (motivo pelo qual ele também
jamais se " adapta" a ela). Tudo se passa, no fundo, como se a
problemática da " ação" não houvesse recalcado inteiramente a pro­
blemática das " ações" . É verdade que o processo encontrou " insti­
tuições" : para o Isso, a Entlastung vista pelo lado da pulsão; para o
Eu, a Entlastung inibida como " ação" ; para o Supereu, o próprio
princípio da inibição. Mas, sob o ordenamento tópico, ressurge sem
cessar a exigência do " ato" , a de ser (re)produzido passo a passo...
Igualmente, somos remetidos ao exame do trabalho específico a
que os atos estão singularmente associados, ao " passo a passo" do
sintoma, seja como ato-sintoma, seja como verdadeira promoção do
sintoma em práxis, seja ainda como aquilo que dá corpo ao avesso
do sintoma: a castração. No avesso da ação, função de realidade,
exercício da soberania tão equívoca do Eu, desenha-se o próprio
trabalho pelo qual um sujeito pratica sua divisão. É nesse leque de
figuras que Freud destaca peça por peça os seus efeitos. Esse é o
momento preciso em que o fato clínico revela o efeito metapsicológico;
e não é fortuito que o ato imponha tal efeito de retorno do próprio
clínico como real, a se pensar como uma práxis muito precisamente
codificada.

2. O ato-sintoma

Pode-se, com efeito, situar agora a própria ação (Handlung) na medida


em que ela " faz sintoma" . A " psicopatologia da vida cotidiana" , no
fundo, nada mais é que o que apreende a ação como sintoma, ou seja,
menos como expressão do sintoma do que como dando corpo " atuante"
ao sintoma. Do mesmo modo, Freud forja essa expressão, notável em
suma, " Symptomhandlungen" , junto com a expressão " Zufallshand­
lungen" .
o ato 207

Introduzindo-as, ele procede a uma distinção interessante: nos casos


de " equívocos" , (Vergreifen), as " ações" consistem na " realização
(Ausführung) de uma intenção inconsciente" e se apresentam como
" formas perturbadas de outras ações intencionais" , dissimulando-se
em desajeito. As " ações-acaso" não requerem nem " intenção cons­
ciente" nem " pretexto" : como " ações-sintomas" , " elas exprimem
algo de que o próprio ator (Tiiter) não suspeita e que, em geral, ele
não tem a intenção de comunicar, mas sim de guardar para si" .4 1
Nesse sentido, são " ações" puras. Ora, é nessa ausência de intenção,
ainda que consciente, que se revela mais cruamente o efeito da
" intenção inconsciente" . A progressão mesma das categorias na
Psicopatologia obedece, a um exame mais acurado, a esse princípio:
Freud encara inicialmente as ações que traduzem uma intenção
inconsciente em lugar da intenção admitida, antes de chegar às ações
mais despoj adas, de certa forma - até mesmo as mais pobres e
insignificantes em conteúdo psicológico -, pois ali se mostra,
literalmente, o real inconsciente que não só as " anima" , mas as " atua" .
Mas, assim desnudado, o núcleo do termo Handlung, ainda que
bem descritivo e finalizado, requer introduzir um termo mais neutro
que remete ao próprio procedimento, Leistung.
Aí está o objetivo da Psicopatologia: revelar " certas carências de
nossas atuações psíquicas (psychische Leistungen) ( ... ) e certas efe­
tuações (Verrichtungen) aparentemente desprovidas de intenção" .42
Essas mesmas ações, visíveis, não fazem mais, portanto, que dar corpo
às Leistungen e Verrichtungen; logo, trata-se de mostrar que elas são
" totalmente motivadas e determinadas por motivos desconhecidos da
consciência" .
Trata-se de bem avaliar a tese freudiana: ela não diz que existiriam
duas espécies de atos, de motivação consciente e de motivação
inconsciente, de modo que a Psicopatologia teria apenas recenseado
os atos da segunda categoria psicológica. A intenção inconsciente é
o real do ato dito falho, e sabe-se como pela teoria precedente: é uma
moção que se descarrega no e pelo próprio ato.
Nesse sentido, é um determinismo quase realista que Freud afirma
na conclusão de sua obra, isto é, não apenas certo " determinismo
psicológico" , mas um determinismo da atuação mesma do incons­
ciente: " Uma expressão não intencional da minha própria atividade
psíquica (Seelentiitigkeit) revela-me alguma coisa de oculto que, por
sua vez, pertence à minha vida psíquica (Seelenleben)."43 Vamos
observar a progressão: o inconsciente não é um motivo geral qualquer
208 as margens

da ação, pelo lado psicológico: parte-se do próprio ato para encontrar


essa " alguma coisa" (um " real oculto" ) que por sua vez permite
retomar-se à " vida psíquica" . Tal é o único credo analítico sobre a
questão: o resto não passa de " superstição" .
Isso quer dizer que a Psicopatologia é bem mais que uma psicologia
dos atos inconscientes: é uma teoria da própria " atuação" , como
colocação em ato - no sentido literal de Leistung/Verrichtung -

desse " real" que perturba a " intenção" (simplesmente, isto é, " cons­
ciente" ).
É por esse motivo que a ação é sintoma: vamos entender que é
somente no " passo em falso" que o real do ato se mostra, à luz do
saber do inconsciente. Vê-se o perigo que reside em apresentar os
atos falhos como expressão de uma intenção, como se o " ator" se
servisse deles para dizer alguma coisa que já teria sido enunciada por
" seu inconsciente" : é o ato que, enquanto ato, diz, o sujeito sendo
" atuado" e dito" ele mesmo, via " seu" ato.
•·

Mas, precisamente, pode-se perguntar o que isso tem a ver com a


teoria originária do " ato específico" . A Fehlleistung parece mesmo,
com efeito, o tipo do ato inadequado: o sujeito-ator vê-se subitamente
produtor de um ato que, sob a capa de uma ação finalizada em direção
a um fim determinado, revela-se o puro efeito do inconsciente. O
Outro nela está implicado como referente, às vezes testemunha de
uma mensagem onde o real, de repente, emergiu. Daí a curta aflição
produzida pelo ato falho - mesmo se o seu efeito tenha sido cômico
-, o sujeito descobrindo-se numa inocente passagem ao ato. Psico­
patologia da vida cotidiana, com efeito, nesse sentido em que o ato
é a versão social do sintoma.

3. A ação-compulsão ou a práxis obsessiva

Existe, porém, um caso em que Freud reconhece as ações como


encarnação do sintoma: é o das " ações compulsivas" (Zwangshan­
dlungen). Isso é tanto mais notável · quanto a neurose obsessiva se
distingue pelo trabalho da representação: a intemalização, em contraste
com a conversão histérica e com a extemalização perversa, é o caminho
real da Zwangsneurose. O registro da ação assume aí maior relevo.
Pois se Freud a relaciona, de fato, com uma lógica defensiva, nela
observa também um " momento da ação" tão articulado que faz pensar
o ato 209

num verdadeiro exercício ( Übung) ritualizado. A partir daí, não é por


acaso que na ocasião da aproximação com os " exercícios religiosos" 44
as ações compulsivas tomem sua consistência e revelem toda o seu
alcance inconsciente. O que nos :vai interessar nelas, portanto, é aquilo
que, na ação, se cristaliza por um bloqueio da representação, ao mesmo
tempo que por uma descarga.
Tais ações só têm um ser compulsivo: mas isso mesmo sublinha
seu caráter puro de ação, o sujeito não podendo, literalmente, fazer
diferente. Essa imposição dá aos atos seu valor de " cerimonial" : é,
pois, a sua solenidade litúrgica que impõe a aproximação religiosa.
Esse cerimonial distingue-se, no entanto, por seu caráter solitário.
Ele poupa a parte social da ação e se desenvolve num outro tempo,
nesse " número de horas" consagrado a " um fazer misterioso (ge­
heimnisvollen Tun) numa retirada melusinesca" .45 De resto, esses " atos
sagrados" desenrolam-se na esfera doméstica: " O cerimonial neurótico
consiste em pequenas ações ( Verrichtungen), ações complementares
(Zutaten), ações entravadas, arrumações."46 É essa cerimônia da vida
cotidiana, mecanicamente regulada, que atrai o obsessivo que a ela
acrescenta uma " consciência particular na execução e angústia no
caso de uma omissão" . Além disso, esse agir particular funciona como
autarquia, cuidadosamente isolado de " todo outro agir" . Vamos
observar que essa " caricatura meio cômica, meio lamentável de uma
religião particular" dá a impressão de uma verdadeira práxis no sentido
definido acima:47 ela não tem, com efeito, seu fim no seu objeto, como
o ato banal da vida cotidiana, mas parece tê-lo em si mesma. Agir
torna-se um fim em si : é precisamente a sua auto-suficiência que
confere à ação-compulsão sua aparência de absurdo.
O que dá seu sentido a tais ações é que elas estão " a serviço de
interesses importantes da personalidade" .48 S ão esses " interesses" que
vêm manifestar-se, tomar corpo no próprio ato. Devemos, aqui, pesar
os termos de Freud para compreender a função inconsciente desses
atos: eles " dão expressão a eventos de influência persistente, bem
como a pensamentos carregados de afetos" . Por trás da ação, é possível,
pois, observar o evento (Erlebnis) e o pensamento (Gedanke). Mas é
que, justamente, a ação tem por vocação transformar o evento em ato,
o pensamento em ato, logo, o pensamento em evento! O ato deve ser
lido segundo esse duplo registro da influência do evento (traumático)
que ele trai e traduz e do pensamento carregado de afeto que ele
exprime. Essas ações, explícita Freud, " fazem isso de duas maneiras,
210 as margens

seja como representação direta, seja como representação simbólica;


portanto, devem ser interpretadas, seja de maneira histórica, seja de
maneira simbólica" . Eis, portanto, toda uma hermenêutica encarnada
no ato.
Essa estranha práxis tem, assim, por função tanto defender de um
perigo quanto proteger de uma infelicidade entrevista. Ela se inscreve
numa espécie de futuro anterior: é como se o sujeito se apressasse
em agir, precipitando-se no ato para realizar aquilo que outrora havia
querido que fosse feito nele. Assim, Freud pensa realmente num
trabalho psíquico de deslocamento que dá ao ato seu sentido metafórico
(sobre o eixo da representação), mas também o ato " real" - objeto
do interdito - que simultaneamente se esconde no ato ritual e nele
se realiza. Prova disso é essa espantosa observação pela qual, " com
o progresso da enfermidade, as ações originalmente encarregadas da
defesa se aproximam cada vez mais das ações carregadas de opróbrio
( ve rponten Aktionen), pelas quais a pulsão ousava manifestar-se na
infância" 4 9
.

É revelador que Freud tenha. nesse trecho, mudado de termo: o


Handlung-sintoma é o equivalente da Aktion original. Isso significa
que a ação plenamente real que foi proibida - por exemplo, a
masturbação - transformou-se em manigância ou manipulação. Tal
é a ação compulsiva: a recolocação em ato, pela mediação simbólica.
da Ação primeira. É preciso, pois, de modo realista, buscar no
cerimonial simbólico o Ato que estava na origem ... A ponto de se
poder imaginar que eles se confundem, num ato final único, ao mesmo
tempo insensato e cheio de sentido, onde o interdito se confundiria
com sua transgressão. É realmente para esse ato impossível que
tenderia a ação obsessiva, como assíntota. É por não fazê-lo que o
obsessivo repete seu ato derrisório, mas é a esperança de fazê-lo um
dia que sustenta sua repetição sem fim.
O ato obsessivo é, pois, produzido em legítima defesa contra o Pai
castrador, mas é também desse Pai que ele emana, como uma ordem
de agir.
Vê-se a ambigüidade eloqüente da ação compulsiva: por um lado,
ela adia a atuação por sua própria reiteração; por outro, permite
praticar a defesa. No máximo o ato puro, o raptus obsessivo, confunde
a defesa, numa ordem brutal de transgredir.50 O resto do tempo,
poderíamos dizer, o obsessivo funciona como " praticante" de sua fé
no Pai, tão mesclada de ambivalência.
o ato 211

4. Do ato falho à primeira mentira: o passo em falso histérico

A ação revela, pois, sua significação na medida em que se liga


parcialmente à formação de sintoma. Se a neurose tem sua origem
num distúrbio radical da representação - ou seja, o sujeito não quer
saber da moção pulsional recalcada -, é interessante observar que
momento desse destino do recalcado interessa à ação.
Assim é com o " passo em falso" da histérica a ser tomado em seu
sentido quase motor. Se a histérica " sofre essencialmente de reminis­
cências" , estas encontram, num momento decisivo, uma cristalização
em atos que selam, de alguma forma, a relação renegada com o Outro.
Freud dá um exemplo esclarecedor quanto a isso através do caso
Emma, evocado no Projeto: " Emma é perseguida atualmente pela
idéia de que não pode entrar só numa loja. Atribui is-so a uma lembrança
que remonta aos seus 1 3 anos" : a dos dois vendedores gargalhando
quando ela entrava numa loj a e provocando sua confusão e fuga. Por
trás dessa lembrança consciente, Freud logo observou uma outra
recordação:

Na idade de oito anos, ela havia entrado duas vezes num armazém para comprar
doces, e o comerciante pusera a mão, através do seu vestido, em seus órgãos
genitais. Apesar desse primeiro incidente, voltara à loja, e depois parou de ir
lá. Mais tarde, reprovou-se por voltar à loja daquele homem, como se tivesse
querido provocar um novo atentado. E, de fato, a 'consciência pesada' que a
51
atormentava bem poderia derivar desse incidente.

É esse retorno ao " local do crime" que merece ser mencionado


para uma teoria do " passo em falso" histérico. A primeira vez, com
efeito, é a da Urszene, atentado onde o sujeito, inocente, recebe o
anúncio do desejo do Outro. Desse mesmo modo, ele é provocado
pelo Outro, submetendo-se ao seu anúncio com impotência. Mas esse
primeiro tempo é seguido por outro: o do ato propriamente dito, que
faz com que o sujeito seduzido retorne aos locais da sedução. Coloca-se
a questão do que Emma ia ali buscar e de que maneira essa atuação
está envolvida na formação do sintoma.
Dela, o sujeito dá sua própria versão, neurótica, através dessa
suspeita de si mesmo (" como se ela tivesse querido provocar um novo
atentado" ). Mas o efeito desejado de ação não nos dá seu sentido
inconsciente: é como se " a primeira vez" , precursora sombria da
neurose, permanecesse cega. É no segundo tempo que se estabelece
o trauma, no só-depois. É então, com efeito, que a vítima se sente
212 as margens

culpada, atribuindo-se uma parte importante na responsabilidade pelo


atentado. Mas o que Emma procurava confusamente nessa segunda
edição da cena originária é também o que se passara na primeira.
Pesquisa obscura sobre o desejo do Outro, isto é, sobre o que este
buscava no atentado sexual do qual ela era o alvo e do qual a castração
é o tema patente.
É nesse ato que se estabelece, propriamente, o nó patógeno da
reminiscência. Portanto, não é indiferente que a "prôton pseudos" , a
" primeira mentira histérica" ,52 seja produzida num ato. O vivido
fóbico ulterior tem sua origem na " ativação" da cena primitiva sofrida
passivamente:53 temor da repetição do ato de sedução que Emma
legitimou, de certa forma, com sua volta. Toda a estratégia de pro­
vocação e de fuga da histérica poderia ganhar sentido nessa tenta­
tiva derrisória de atuar o desejo do Outro, provocando o sedutor a se
descobrir, suscitando com esse fim o estranho balé do ato e da esquiva:
arte histérica bem conhecida do " mau passo" inocente.54

S. Da renegação à prática da castração

A ação-sintoma revela plenamente, com efeito, sua função como


prática da castração. É isso que Freud observa na mulher, em seu
ensaio sobre Algumas conseqüências psíquicas da diferença anatômica
entre os sexos, no momento de evocar o " complexo de masculinidade" .
Para a menina que de saída julgou e decidiu, que " o viu, sabe que
não o tem e quer tê-lo" - isso, o objeto. fálico -, dois caminhos
são possíveis (fora da assunção !) . Se a renegação é um deles - negar
pura e simplesmente a realidade da castração -, um outro consiste
em se sustentar pela esperança, literalmente, mais louca: " A esperança
de obter assim mesmo, algum dia, um pênis, e por isso mesmo tornar-se
semelhante ao homem, pode manter-se até épocas espantosamente
tardias e tornar-se o motivo de ações (Handlungen) estranhas, de outra
maneira incompreensíveis." 55
Freud, muito curiosamente, parece recuar diante dessa estranheza,
a ponto de não dar exemplos: mas é que ele designa ali o próprio
Unheimlich da castração, do lado da mulher. O mais importante é que
essa " estranheza" se pratica, se exprime em " ações" . Será isso a
" renegação" ? Freud parece hesitar, já que apresenta a renegação
propriamente dita como uma alternativa. Mas essa renegação da própria
realidade da castração praticamente só se manifesta sob a forma de
o ato 213

" ações" . D e fato, parece que a renegação propriamente dita concerne


ao eixo da representação no sentido amplo,56 mesmo· com " recaídas"
no plano do " agir" . Haveria, ao lado dessa renegação propriamente
· dita, " ações" produzidas à margem, ao mesmo tempo um meio de
praticar a renegação e de adiá-la. Observemos que é esse núcleo de
ações bizarras que dá margem à imagem ideológica do imprevisto
feminino.
Freud designa-nos, com essa observação, um ponto interessante: é
ali onde o sujeito parece agir de qualquer maneira - " fazer não
importa o que" , como se diz, para designar o ato julgado sem motivo
-, que é possível suspeitar de que a castração (renegada) fornece sua
energia.
Em suma, isso não nos afasta tanto quanto pode parecer do " ato
falho" : mas são os " atos falhos" que têm de singular o fato de terem
a " castração" por " motivo" . É isso, ainda mais radicalmente, que
põe a mulher em posição de atuar a renegação. ·Freud, sem dúvida,
não emprega este termo, Handlung, nesse contexto sem uma razão
precisa: deve-se pensar gue é para a mulher que a castração se torna
uma verdadeira práxis ! E a renegação que a faz " ativar-se" , a ponto
de se estruturar inteiramente em " ato falho" , como mostra o " em
falso" histérico. Seria quase possível definir tal " comportamento" da
castração como um ato cronicamente não específico, ausência de
objeto incessantemente reexperimentada . . .

Diante, pode-se dizer, d o outro lado, masculino, d a renegação, é a


perversão que se oferece como aquilo que assinala o ato enquanto
estratégia da castração.
É um dado bem conhecido da experiência clínica o fato de que o
perverso se impõe como o " ativista" do inconsciente, a ponto de
brilhar, na fantasia do neurótico, como o campeão da realização. Freud,
atribuindo-lhe o privilégio das " fantasias conscientes" ,57 situa-o nessa
linha de realização que faz, paradoxalmente, suspeitar de uma carência
do próprio fantasiar.
O Ato ocupa realmente, no perverso, o lugar da ética e do modo
de emprego de sua excitação e da do Outro: a ponto de a estratégia
de desafio e de provocação servir para lhe demarcar a estrutura. O
desafio, como ser-no-mundo do perverso, manifesta sua ambição de
" causar efeito" - especialmente para o Outro a quem se dirige o
desafio.
Daí o ativismo de linguagem que distingue o perverso, no sentido
próprio do speach act que engaja à ação.58 Pela " provocação" , o Outro
214 as margens

é convocado como testemunha de uma transgressão, que o solicita ao


mesmo tempo como cúmplice. Esse ativismo insensato do perverso
apóia-se no programa que tende a fazer saltar aos olhos a evidência
de que a Lei não existe, logo, existe ao menos um filho para quem a
interdição permanece letra morta. Mas o paradoxo é que é preciso
sempre agir novamente para remostrar que o Pai não tem força de
lei.
É por i sso que o Pai desafiado faz retorno, tal como a estátua do
Comendador,59 para impor ao sujeito o delito contra um Pai de pedra,
que permaneceu vivo justamente por não ter sido imolado numa
dialética edipiana. O que é revelado pelo delito, ponto extremo da
passagem ao ato perversa, e que era manifestado pelo desafio, postura
crônica do ser-para-o-Outro perverso, é mesmo a renegação primitiva,
aquela que incide sobre a castração e não cessa de fazer retorno no
próprio real. Se o perverso o conjura pelo fetiche, este é aprisionado
num dispositivo que associa o gozo a alguma seqüência de atos que
o condiciona estreitamente. É justamente esse ponto cego puro da
representação que é manifestado pela renegação que deve ser posta
em prática. Que se avaliem os " efeitos" do encontro entre o tipo
perverso masculino e a histérica, quando montam uma dessas " ma­
quinações" que marcaram a concepção ocidental de Eros: há, no casal
ilustre, alguma coisa que parece um inconsciente atuado, tragédia que
nasce do que acontece quando se pratica, a dois, a castração!60

III. UMA METAPSICOLOGIA EM ATO:


O AGIR NO TRATAMENTO

Seguindo essas linhas temáticas, somos remetidos, a cada vez, a uma


questão que se pode enunciar como sendo a da relação do ato com a
fantasia. É significativo que em Freud essa questão, longe de ser
formulada na sua centralidade, se impõe como uma recaída de uma
série de outras questões. O que se inscreve no fracasso do ato de
satisfação, no referente da Urszene, na ação-sintoma, não será esta
questão central da relação do desejo à sua " forma" e à sua " matéria" ?
Mas , justamente, Freud não faz funcionar Phantasie e Tat em
oposição semântica, em contraste com uma longa tradição filosófica:
é mais quanto às suas funções respectivas sobre a cena do desejo e
da realidade que eles se vêem confrontados nos seus " interesses"
o ato 215

respectivos. D e fato, é num terreno preciso que eles vêm separar-se:


o do " tratamento. É por isso que se vê surgir nos textos " técnicos"
de Freud o último registro do ato, aquele, decisivo, onde ele se
verbaliza em Agieren.
É como " problema técnico" - conservando essa expressão seu
sentido concreto e equívoco - que o Agieren se impõe à conceitua­
lização analítica. Nos registros precedentes, cruzava-se o ato: dora­
vante, ele vem à frente da cena analítica para animar sua dramaturgia.
Mais que reduzi-lo à sua função, convém abordá-lo fenomenolo­
gicamente, por seus efeitos, para determinar o que ele especifica da
problemática freudiana precedente, bem como o que, dela, ele " dra­
matiza" .

1. A prática da recordação e da "atuação"

O Agieren manifesta-se no tratamento pela repetição que toma, assim,


o lugar da lembrança. Devemos, realmente, levar em conta esse fato
da maior importância, que o sujeito " põe em ato" em lugar de se
lembrar. No caso extremo, " o paciente não tem nenhuma recordação
daquilo que esqueceu e recalcou, e só faz agir" .61 Se Freud evoca
esse caso extremo, é mesmo para manejar a noção de Agieren num
par de opostos - o que é, decididamente, o tipo da temática do ato.
O agir é, pois, repetição do recalcado, " sob forma de ação" , e não
" sob forma de recordação" . Assim, o denominador comum é o
conteúdo recalcado, apreendido aqui sob forma de rememoração, ali
sob forma de " ato" . Freud dá tanto crédito a esse modelo que propõe,
através de alguns exemplos, um modo bastante mecânico de tradução:
em lugar de dizer lembrar-se de " ter sido insolente e insubmisso à
autoridade paterna" , o paciente vai agir agressivamente em direção
ao analista; em lugar de se recordar de seus fracassos infantis vai agir
por uma neurose de fracasso; em lugar de se lembrar da culpa primitiva,
vai agir hic et nunc sob forma de " vergonha" .62 Mas, imediatamente,
a repetição perpetua o não sabido, ao mesmo tempo em que permite
praticá-lo.
Poderíamos pensar que o " ato" é, assim, um pensamento incons­
ciente concretizado e aplicado. Mas se deve dar atenção ao fato de
que é o não-sabido que é manifestado pelo ato: portanto, é o impossível
acesso à rememoração que é traduzido pelo ato, mas é dessa maneira
que ele entra na transferência, como indica o primeiro dos três
216 as margens

exemplos citados por Freud. Pois o ato tem, no fundo, um valor


" social" : ele é emitido diante de, se não para o outro, no caso, o
analista. Mas, justamente, é como se Freud procurasse avaliar com
muita prudência o ganho do ato: ou seja, o que é perdido quanto ao
conteúdo e ganho quanto à revelação.
Pode-se considerar o Agieren como um elemento determinante da
transferência. Mas, em seu relatório do Esboço de psicanálise, Freud
o apresenta mais modestamente como uma " vantagem" da transfe­
rência. A situação de transferência, em outras palavras, tem por efeito
dramatizar a relação, de maneira que o paciente " age" (agiert) para
nós, em vez de nos informar (berichten):63 toma-se, pois, " agente" !
O Agieren constitui, assim, a parte dramatúrgica da transferência.
A metáfora teatral indica bem: o paciente efetua uma verdadeira sessão
de representação (vorführt) diante do analista, assim situado como
espectador atento e interessado de " um importante trecho da história
de sua vida" , com " uma claridade plástica" . Vamos compreender
que, graças ao Agieren de sua história, o analisando pode dar a ver
(" plasticamente" , como no espaço) o que de outra maneira permane­
ceria em estado de " informação" .
É como se, em vez de narrar, o analisando pusesse seu relato " em
cena" . Vantagem do analista, que acolhe com prazer esse " psicodra­
ma" involuntário. Mas é n0tável que Freud só apresente o Agieren
como um suplemento de informação, certamente precioso, até mesmo
determinante na transferência, mas com certeza não como sua essência.
O inconsciente não está por inteiro no " ato transferencial" : é, antes,
como se o sujeito variasse os modos de expressão. O Agieren não é
mais nem menos que a sua versão dramática - a ser recenseada na
conta das principais " vantagens" da transferência.

2. A dramaturgia do tratamento: ação e ab-reação

Tudo se passa como se Freud apreendesse essa dramaturgia da


transferência que é o Agieren como um perigo virtual, tanto quanto
um momento precioso de verdade, insubstituível. É que nesse ato
teatral há um risco de teatralismo, algo como uma histericização do
processo de pesquisa da verdade histórica. Freud o expressa por esta
fórmula surpreendente: " Não nos parece absolutamente desejável que
o paciente, fora da transferência, aja (agiert) em vez de se lembrar;
o ato 217

o comportamento ( Verhalten) ideal para nossos fins seria que ele se


comportasse tão normalmente quanto possível fora do tratamento e
só exprimisse suas reações anormais na transferência." 64
Essa defesa apenas velada de pôr em ato os conflitos fora do
tratamento preserva assim o valor dramático do Agieren, fechando-o
no contexto sinérgico do próprio tratamento. Isso quer dizer que o
Agieren não poderia ser mais que momento de exceção, até mesmo
" perverso" , no processo orientado para a rememoração. Agir fora do
tratamento seria apenas " excitar-se" de modo estéril e retardar a
dialética da recordação. Mas justamente essa limitação devolve, afinal,
à atuação o seu pleno valor: o móbil da transferência é fazer agir, na
sua ponta de verdade, o conflito. A atuação do conflito no tratamento
encontra realmente aí seu pleno efeito sob a condição de não ser
reduzido a um " efeito de cena" . É por " representar a comédia" fora
da cena analítica que o paciente arrisca prejudicar sua entrada em
cena na análise ou sua saída da cena analítica. Desse modo se esclarece
a espantosa pertinência do " conselho" de Freud.
Onde situar precisamente o " perigo" do Agieren? Poderíamos
explicá-lo pelo que ele comemora da camada mais arcaic"a da relação
analítica, ou sej a, o Abreagieren. Um sintoma disso é que a evocação
histórica do Abreagieren nunca está longe quando Freud evoca o
Agieren.65
A principal tese das " reminiscências" patógenas devia, com efeito,
apoiar-se paradoxalmente numa teoria da ação ( Wirkung) que perdura
pelos próprios eventos (Erlebnisse) e a possibilidade de re-ação que
condiciona o desencadeamento do processo patógeno, conforme o
efeito "c atártico" tenha podido ou não se efetuar. Aí se vê que " na
linguagem o ser humano encontra um sucedâneo (Surrogat) da ação
(Tat), com a ajuda do qual o afeto pode ser 'ab-reagido' quase da
mesma forma" .66 Logo, é o impedimento da ação que vota o afeto à
lembrança e que tem como efeito paradoxal fazer agir a representação:
" As representações tornadas patógenas mantêm-se assim em todo o
seu frescor e sua carga afetiva, pois seu desgaste normal pela ab-reação
e a sua reprodução em estados em que as associações não estariam
prejudicadas lhes são proibidos." 67
Esse modelo de Ab-re-agieren, articulando as idéias de agir, de
reação e de separação, permite curiosamente levar em conta o trabalho
de rememoração no qual o sujeito se cristaliza; mas este só é abordado
nesse regi stro da ação entravada que atribui à linguagem o papel de
218 as margens

Surrogat em última instância. Apenas a passagem da hipnose à cura


pela linguagem vai permitir conjurar essa representação.
Esse lembrete permite compreender que, na nova problemática onde
a rememoração se torna constitutiva - e com ela o trabalho específico
da linguagem -, a temática do Agieren arrisca perigosamente rein­
troduzir o que havia sido abjurado, ou sej a, esse papel fundador do
Agieren. É por isso, parece-nos, que Freud não deixa de recordar o
papel de Ersatz incompleto do ato com relação à lembrança, cada vez
que a evoca: assim acontece com Dora, " atuando" uma parte impor­
tante de suas lembranças e de suas fantasias, em lugar de reproduzi-la
no tratamento.68
Isso dá conta desse outro efeito preci so, que o retorno vigoroso do
Agieren no tratamento contém em germe o risco de histericização da
própria relação analítica. Não é outra coisa que Freud descreve com
o termo " amor de transferência" ( Ubertriigungsliebe) . Não é por acaso
que a metáfora teatral se impõe novamente para descrever o deslan­
chamento da crise: " A cena mudou por completo, tudo se passa como
se alguma comédia fosse de súbito interrompida por um evento real,
por exemplo, quando irrompe um incêndio durante uma representação
teatral" 69 - o que coloca o analista-diretor de cena, ele mesmo, em
posição vacilante.
O mais grave é que o trabalho de rememoração é interrompido por
essa atuação da maior importância, que é o amor transferencial, a
analisanda não querendo " ouvir falar, nem falar ela mesma, senão de
seu amor, do qual demanda reciprocidade" , perdendo todo o interesse
pelo tratamento . . . e até por seus sintomas. Assim, encontra-se essa
bonita definição involuntária do ato como essa situação em que o
sujeito não faz mais que amar ou, bem mais justamente, erige seu
amor como tema exclusivo de sua fala. Sabe-se que Freud elabora aí
uma contra-estratégia tendente a transformar em " irreal" auto-eviden­
te esse amor, como que para interromper o ato e retomar a rememo­
ração.
Não é esse, justamente, o " momento de verdade" , de retorno da
histeria no tratamento - tanto é verdade que esse exemplo é a própria
coisa da transferência, assim designada? Essa exasperação da relação
atribuiria ao Agieren essa função " cômica" , rejeitando a " tragédia"
da rememoração para os bastidores: o que iria encarregar a ética do
analista de remeter o sujeito de seu ato à sua lembrança.
Isso não quer dizer que o Agieren perca sua importância: Freud
faz dele a instância de repetição, sem a qual a rememoração se
arriscaria a permanecer letra morta ou simples " experiência de
o ato 219

l aboratório" . Tal é , com efeito, a análise: u m laboratório e u m teatro.


Aqui, as moções pulsionais são isoladas e analisadas, ali são desem­
penhadas e atuadas. O essencial para Freud, ao que parece, é respeitar
a divisão de tarefas: não derramar as retortas por onde se filtra a
lembrança, mas saber tolerar a histericização sem a qual a própria
lembrança estaria ameaçada de se evaporar.
Não foi com esse único objetivo que ele forjou este termo,
Durcharbeiten, essa travessia da resistência que permitiria apropriar-se
da lembrança, atuá-la para um sujeito, mas justamente sob a forma
de " trabalho" ? É o prolongamento pelo Durcharbeiten que vai permitir
emancipar o Agieren de toda problemática da Abreagieren. O fato de
que a sua própria noção nunca tenha sido mais que evocada permite
suspeitar que pertenceria ao registro do ato jamais dissipar comple­
tamente essa ambigüidade, terreno natural da " ação analítica" .

CONCLUSÃO: O ATO COMO EQUÍVOCO


METAPSICOLÓGICO

O momento faustiano da análise

Portanto, coloca-se finalmente a questão de saber em que sentido pre­


ciso o adágio goethiano pode figurar como epígrafe da teoria freudiana
da ação.
No começo (Im Anfang), a ação o é, certamente, já que é pelo
registro da " ação específica" que Freud capta o que dá impulso ao
trabalho do inconsciente: é nessa impotência primitiva que a relação
com o Outro, constitutiva do inconsciente, encontra sua origem. Mas,
vamos observar, é por não poder agir que tudo começa para o
inconsciente.
Originária, a ação o é em segundo lugar na medida em que medeia
a relação do prazer com a realidade: mais uma vez, porém, o
inconsciente aí inscreve sua correção irônica, apoiando essa prática
no proton pseudos e naquilo que, simultaneamente, frustra e alimenta
toda prática inconsciente, ou seja, a castração.
Mas é capturada na sua mais extrema formalidade, a atuação, que
a ação anuncia sua originalidade. Nada de espantoso que aí se vej a
experimentada do modo mais radical a ambigüidade da temática do
Ato. O Ato enfrenta aqui, com sua potência própria, o poder da
Palavra, choque do qual nasce a experiência analítica.
220 as margens

Referindo-se ao adágio goethiano, Freud, com efeito, não pode


ignorar que ele parafraseia, invertendo-o, o princípio de S ão João:
" No começo era o Verbo" . Ora, não é do verbo que a experiência
analítica tira sua energia própria? Seria de se desconfiar que, nesse
sentido, Freud estivesse mais próximo de São João do que de Goethe.
Que última ironia se deve então ler na epígrafe que nos daria a chave
do estatuto freudiano do Agir?
Freud renova, pois, corrigindo-o grandemente, o credo faustiano.
Se afirmar a prioridade do Tat é " afirmar o caráter eterno e primitivo
do tornar-se" , identificando-o à força por excelência (Kraft)/° Freud
subscreve realmente esse mobilismo, sob a condição de não desem­
bocar num culto da Força e do inconsciente ato puro. Se é, também
dessa mesma forma, afirmar " a anterioridade do não-intelectual sobre
o intelectual" , Freud aí subscreve à sua maneira, pensando esse
curto-circuito da representação que constitui o lado obscuro e real da
relação analítica, mas sem inscrever nisso o além da representação:
apenas o avesso desse " intelecto desejante" que é o inconsciente ! O
Tat não substitui dramaticamente o morto ( Wort) e o sentido (Sinn),
senão para avivá-los. Se, enfim, a fórmula goethiana designa " a crença
animista de que o mundo inteiro repousa sobre um esforço análogo
ao desejo do qual temos consciência" , é realmente como texto do
próprio desejo que a fórmula assume sentido: Freud igualmente, num
mesmo movimento, faz dele o princípio motor do ser desejante e lhe
opõe o reconhecimento da Ananke, esse princípio antagonista inde­
pendente do desejo.

O primitivo do ato

É nesse nível que reencontramos as considerações finais de Totem e


tabu que conduziram à afirmação da originalidade da ação. Freud
relativiza aí a aproximação entre o neurótico e o " primitivo" ,
precisamente no plano das relações entre pensar (denken) e fazer (tun).
"Só o neurótico é totalmente inibido em seu agir (Handeln); nele o
pensamento é um puro e simples sucedâneo (Ersatz) do ato ( Tat). O
primitivo não é inibido, o pensamento transforma-se imediatamente
em ato, o ato é mesmo nele, por assim dizer, o sucedâneo do
pensamento ( . . . )" .71
Essa passagem encontra um eco inesperado quanto à questão do
Agieren: também aqui o pensamento (Gedanke) se transforma direta-
o ato 22 1

mente em ato. O que Freud diz aqui sobre o primitivo vale, aí, para
a encenação neurótica. Mas justamente nesse último caso é o conteúdo
do recalcamento, o " pensamento recalcado" , que é encenado. Com­
preende-se, portanto, ao mesmo tempo por que Freud mantém o ato
na sua função de Ersatz - de sorte que não se encontrará nele nem
" atualismo" nem o lirismo do Ato72 -, mas também porque o
momento do ato, por seu caráter regressivo mesmo, dá toda a sua
potência e seu valor de Agieren à moção recalcada.
E se precisamente, para pensar nos termos de Totem e tabu, o
Agieren fosse a expressão mais " primitiva" da transferência - o que
permitiria pensar ao mesmo tempo a regressão e a originalidade?
A ponta metapsicológica dessa equivocidade do ato deveria ser
buscada na terceira dimensão que o ato acrescenta à relação funda­
mental entre a " representação" e a " coisa" . Dimensão que o exprime
como a sua mediação cega.
Se o inconsciente se distingue, com efeito, do consciente em sua
elaboração metapsicológica mais central73 como a " representação de
coisa somente" que se opõe à " representação de coisa mais a
representação de palavra correspondente" , o processo deve poder
decifrar-se segundo as duas racionalidades : a da " verbalização" , que
designa a rememoração falada como a via real da análise, e aquela,
rr lis obscura e no entanto fundamental, do " dizer da Coisa" .
..

Relativizado e subordinado expressamente segundo a primeira


dimensão, o Ato - como Tat - bem poderia traduzir o que acontece
quando a própria Coisa se põe a " falar" na contravenção de sua
elaboração verbal. O momento do Ato só pode adquirir valor na
margem mística74 da elaboração da lembrança: desse ponto de vista,
Freud barra, resolutamente e de uma vez por todas, o caminho para
uma " psicagogia" do Ato pelo qual o Inconsciente tomaria corpo.
Existe, entretanto, algo que mimetiza tal encarnação do inconsciente:
é esse momento em que a coisa da representação fulgura no próprio
processo. Nesse momento, onde o próprio ideal do tratamento pode
crer na Coisa que ela " invoca" ,75 é realmente o inconsciente como
Ato oue se anuncia. Momento faustiano da análise em que o demônio
evocado se mostra, perfurando a cena, momento do encontro do qual
o analista só pode exorcizar os prestígios experimentando-lhes a vio­
lência. Momento a se reinserir o mais rapidamente possível no processo
de rememoração, justo o tempo de compreender que " a coisa" estava
ali . É para saber esse momento que o analista é pago e a análise,
instituída. De modo que, em suma, o adágio goethiano exprime a sua
222 as margens

ética de maneira bastante aceitável, à condiÇão de lhe acrescentar essa


cláusula que, desse começo, se deve proibir de fazer um fim.

NOTAS AO CAPÍTULO IX

1 . Essa é a última palavra (literalmente) de Totem e tabu, GW IX, p. l 94 -


citada sem referência explícita ao seu autor. Sobre o contexto, ver infra nossa
própria conclusão.
2. Além do princípio de prazer, cap. VI, GW XIII, p.64.
3. Ver infra, p. l 68s.
4. Artigo " Acte" do Vocabulaire technique et critique de la philosophie, de
André Lalande, sentido A, Felix Alcan, 1926, p. l 3-4.
5. Op. cit., ibid., p. l 4.
6. Ver observação elementar e tão pertinente para nosso propósito em Lalande:
" A palavra convoca ( ...) sempre a idéia de que o ato em questão, mesmo quando
não voluntário em sua causa, apresenta uma aparência semelhante, ou pelo menos
análoga, à dos atos voluntários." Cf. infra o singular problema levantado, nesse
sentido, pelo Agieren inconsciente.
7. Vamos observar que essa nova definição nos faz passar, no Lalande, de
" ato" a " ação" ; cf. o verbete " Action" , sentido A, p. l 6.
8. Recordamos simplesmente que a elaboração de uma " razão prática" , fundada
na autonomia da Vontade, marca em Kant a passagem de uma ética da sabedoria
a uma moral da lei, da qual a liberdade se toma " chave mestra" .
9. Cf. Uma dificuldade no caminho da psicanálise, 1 917.
1 0. No sentido em que é sistematizada por Fichte (Doutrina da ciência), em
oposição a todo " dogmatismo" do Fato (Tatsache).
1 1 . Em Eduard von Hartmann, autor da Filosofia do inconsciente (com
maiúscula), o Inconsciente é investido de sua própria autonomia, a ponto de se
eludir a questão do inconsciente do sujeito inconsciente.
1 2. Cf. a observação do verbete " Atuação" do Vocabulário de psicanálise de
J. Laplanche e J.B. Pontalis sobre o duplo registro, de raízes respectivamente
germânica e latina, dos termos freudianos que se referem à ação e ao ato. Esse
sentido teórico dessa dualidade é que tentaremos aqui fundamentar.
1 3. Verbete " Acte" do Vocabulaire de Lalande, 2, sentido D, p. l 4. Não é por
acaso que esse sentido é literalmente aristotélico. Cf. infra sobre o sentido de um
movimento aristotélico na dialética freudiana da ação, para levar em conta a
formalidade do ato, no sentido escolástico de Actus.
1 4. Estranho destino o dessa expressão, ao mesmo tempo tão ambígua e tão
indispensável, o de ser referido ao inglês acting out, reencontrando, por esse
desvio, a raiz latina Actus inscrita numa tradição greco-escolástica.
o ato 223

1 5 . No sentido aristotélico, em que o ato é a " forma" , por oposição à matéria.


Talvez seja pelo contato com Brentano, seu primeiro mestre de filosofia (cf. nosso
Freud, la philosophie et les philosophes, PUF, 1976}, que Freud se i mpregnou de
uma semântica aristotélica, sendo Brentano um especialista renomado em Aristó­
teles, p. l 3-5.
1 6. A Wirkung designa, de fato, a efetuação e a éfetividade da ação (como
Handlung).
1 7. Verbete citado do Vocabulaire sobre " Ação" , sentido B, p. l 7., onde se
lembra a definição cartesiana: "Tudo o que se faz ou que acontece de novo é
geralmente chamado pelos filósofos uma paixão com relação ao sujeito a quem
isso acontece, e uma ação em relação àquele que faz acontecer ( ... )" (Tratado
das paixões da alma, I Parte, Art. 1).
18. Cf. a Ética a Nicômaco.
19. Cf. o escrito "Sobre os critérios para destacar da neurastenia uma síndrome
particular intitulada neurose de angústia" , 1 895, trad. fr. in Névrose, psychose et
perversion, PUF, p. 15s.
20. GW I, p.334; trad . fr. op. cit., p.3 1 .
2 1 . Op. cit., ibid; trad. fr. , p.32.
22. Op. cit., p.335; trad. fr., p.32.
23. Op. cit., p.335; trad. fr., p.33
24. É principalmente a função do § 1 1 da I Parte, " A prova da satisfação" .
25. Cf. o § 1 do " Projeto" , in La naissance de la psychanalyse, p.3 1 6.
26. Op. cit., p.336.
27. Sob a condição de se basear na falsa etimologia que interpreta o religioso
como ligare (o fato de ligar). Lembremos que é do desamparo, Hilflosigkeit, que
Freud faz derivar a necessidade religiosa (em O futuro de uma ilusão).
28. A partir de 1 9 1 O (Cf. A concepção psicanalítica da perturbação psicogênica
da visão.)
29. De acordo com a observação do verbete " Ação específica" do Vocabulário
de Laplanche e Pontalis, op. cit., p.1 O.
30. Ver, sobre a questão global da cena primitiva, nosso esclarecimento em
Histoire de la psychanalyse, Hachette, vol. I, " Les grandes découvertes de la
psychanalyse" , e L 'entendement freudien. Logos et Ananke, Gallimard, 1 984,
p. l 42s.
3 1 . Texto citado acima do " Projeto" .
32. " Pulsões e suas vicissitudes" .
33. Traumdeutung, GW Il-111, p.625.
34. Cf. Bate-se numa criança, 1 9 1 9 .
3 5 . É possível transpor para a fantasia o que Freud diz a propósito d o sonho,
a saber, que ele não é causado por um " misterioso inconsciente" , mas consiste
num trabalho específico.
36. Cf. o esquema proposto no cap. VII da Traumdeutung, seção 11, " A
Regressão" .
37. GW VIII, p.23 1 .
38. Op. cit., p.232.
39. Op. cit., p.233.
40. GW XIII, p.285.
4 1 . GW IV, p.2 1 2 (cap. IX).
224 as margens

42. Op. cit., p.267 (cap. XII).


43. Op. cit., p.286 (cap. XII).
44. " Atos obsessivos e práticas religiosas" , 1908, ensaio publicado em francês
depois de O futuro de uma ilusão, PUF.
45. GW VIl, p. 1 3 1 .
46. Op. cit., p. l 30.
47. Ver acima, p. l 62, sobre a práxis aristotélica só encontrando seu fim em
si mesma.
48. Op. cit., p. l 32.
49. Op. cit., p. l. 37.
50. Será citada a famosa descrição do Journal de Salavin de Georges Duhamel
sobre o impulso de tocar a orelha do patrão erigida em verdadeiro objeto totêmico.
René Laforgue adivinhou, na época, o seu sentido analítico eminente (" Le cas
Salavin" , 1928, in Essais sur la Schizonoia, Ed. du Mont-Blanc, 1 965, p. l 66s.).
5 1 . Projeto para uma psicologia científica, 11 Parte, §4, trad. fr. in La naissance
de la psychanalyse, p.364. Isso será aproximado da temática dos atos específicos
(supra).
52. Esse é o título da seção citada, p.363; cf. também p.367.
53. Sabe-se que Freud opõe a cena primitiva histérica passivamente vivida à
cena obsessiva vivida ativamente.
54. Remetemos a nosso Freud et la femme (Calmann-Lévy, 1 983), sobre o
sentido último desse balé com relação ao " querer-feminino" .
55. GW XIV, p.24.
56. Sobre a diferença entre esse ato e os outros, referimos ao capítulo VII,
p. l 66.
57. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, GW V, p.65, n. l .
58. Sabe-se que, desde Austin, possuímos uma teorização lingüística de tais
atos de linguagem. A psicanálise pode referir o sentido de tais atos às estruturas
inconscientes, mais que como uma função geral da própria locução. Assim se dá
com o perverso, usuário eminente do speach act como estratégia inconsciente.
59. O exemplo aqui é a própria coisa, já que Don Juan exibe até o fim o impasse
perverso. Cf. nosso Le pervers et la femme, Anthropos/Economica, 1 989, cap. I .
60. Heloísa e Abelardo seriam o seu protótipo, par formado pelo douto
apaixonado pelo saber e a mulher, empuxo-ao-saber: o desenlace indica bem o
que está em jogo. Cf. nossa obra Le couple inconscient, op. cit.
6 1 . Recordar, repetir, elaborar, GW X, trad. fr. in La technique psychanalytique,
PUF, p.108.
62. Op. cit., p. 1 08-9.
63. GW XVII, p . I O I .
64. GW XVII, p. 1 03.
65. Cf. por exemplo em Esboço de psicanálise, op. cit.
66. Cf. O mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos, 1 893, GW I, p.87.
67. GW I, p.90.
68. In Cinq psychanalyses, p.89. Cf. Freud et la femme, p.74.
69. Observações sobre o amor de transferência, trad. fr. in La vie sexuelle,
PUF, p. 1 1 9.
70. Cf. o Vocabulaire de La1ande, op. cit., p. l 9, sobre as diversas interpretações
da fórmula goethiana.
o ato 225

7 1 . GW IX, p. l 94.
72. É notável que as filosofias do Ato o erijam como princípio puro de subversão
do conhecimento (Gentile), enquanto as filosofias da Ação se baseiam numa síntese
interna imediata contra uma concepção do conhecimento como representação
(Maurice Blondel); Freud experimenta, com efeito, a atuação como vacilação do
conhecimento e emergência imediata de um " dentro" do sujeito, mas sem
hipostasiá-lo como tal, remetendo-o obstinadamente a uma dialética da repre­
sentação.
73. Podemos encontrá-la, com efeito, a partir dos escritos sobre as afasias de
1 891 e da Traumdeutung; cf. GW 11-111, p.302.
74. Sobre o sentido preciso do termo, cf. L' entendement freudien, p. l 26s.
75. Sabe-se que Freud, no trabalho de "construção" , sublinha esses momentos
privilegiados de emergência histórica da própria coisa do recalcado.
CAPÍTULO X

O RELATO

Escrita do sintoma e escrita


metapsicológica

Dichtung und Wahrheit, Poesia e verdade: foi nesse par prestigioso


· que aconteceu a Freud de esbarrar, num lapso1 indicador de uma
trama: como pronunciar juntos esses dois termos de ligação complexa
- quem quer a poesia não se afasta da verdade, quem escolhe a
verdade tem o direito de se deixar capturar pela ficção? Fazendo dela
o título de suas Memórias, Goethe formula a questão por um desafio
que é caro ao fundador da psicanálise, à sua maneira: conjugar poesia
e verdade num destino de vida que mostra sua síntese feliz, a de sua
própria história.
Para o fundador da psicanálise, o imperativo da " verdade" é, de
fato, radical, ele é auto-evidente e faz calar qualquer outra conside­
ração.2 Apenas, ele passa por esse logro do sintoma, que exige que
sua " poesia" seja reconhecida. Se o metapsicólogo procura explicar
o processo, o clínico deve relatá-lo.
A psicanálise é abordada inicialmente como relato da neurose:
Freud remete a isso como a prova de verdade de todo juízo sobre o
conteúdo da sua " ciência" . É nesse ponto que se encontra a " história
do doente" (Krankengeschichte) - termo fri amente denotativo, mas
que se deve entender em sua sonoridade complexa: tudo começa, para
o saber do inconsciente, com histórias ... de " doentes" . Uma história
é realmente, no seu gênero, uma " ficção" , mas, na medida em que
aí se reflete a tragédia do " mal" neurótico, ela assume valor de
Dichtung. Como, além disso, ela quer " dizer a verdade" , reencontra
a exigência de Wahrheit.

226
o relato 227

Eis o que já nos dá a medida do problema em jogo: no legado


freudiano, encontram-se essas Krankengeschichten, fonte inesgotável
de referências, " bem" adquirido de alguma forma. Resta a questão
de redescobrir ab origine: como � que isso, uma " história de doente" ,
foi possível? O que está em jogo é a (re)descoberta do gesto pelo
qual Freud liga sua fundação a um relato.
Vamos destacar, primeiramente, a expressão que se inscreve num
campo semântico preciso.
Em primeiro lugar, é realmente de história-de-doente e não de
história da doença que se trata, dos Estudos sobre a histeria às Cinco
psicanálises. Logo, é a história de alguém, de Frau Emmy ou de
Fdiulein Elisabeth von R., de Dora ou de Hans: a nomeação aí é
essencial, ainda que - vamos observar - ela tenda à personalização
mais espontaneamente quando se trata de uma mulher, sendo o homem
distinguido por uma perífrase ou um atributo. É, pois, o Kranke, o
sujeito da doença, que é o alvo do relato. Revolução discreta que será
necessário avaliar: a doença está mesmo ali, no relato, mas na medida
em que o sujeito dela testemunha.
Em seguida, é uma história (Geschichte): em oposição à História
- a realidade dos fatos -, é do relato escrito (narratio rerum
gestarum) que se trata. Relato de quê? É essencial destacar a distinção
recordada regularmente por Freud entre a Krankengeschichte e a
Behandlungsgeschichte (" história do tratamento" )3 - e, eventual­
mente, da cura (Heilungsgeschichtel É verdade que o tratamento
fornece o quadro natural do qual o relato porta o eco inalienável, mas
a história do doente ultrapassa o processo verbal do tratamento: a
ordem do historisch não é redutível à ordem do pragmatisch.5 O ato
analítico (como ato-de-linguagem) se encontra realmente, por inteiro,
na " história" , mas esta não se reduz a ele em absoluto. No máximo,
uma deve ser gradativamente posicionada em relação ao outro.
Tomada ao pé da letra, a expressão Krankengeschichte anuncia,
pois, a originalidade freudiana: primado do " doente" sobre a " doen­
ça" , da " história" sobre a crônica, que obriga Freud a se instituir
como escritor de uma " história de vida" (Lebensgeschicfrte) revelada
pelo sintoma, verdadeira " história de sofrimento" (Leidensgeschich­
te)6 - como se o sintoma tivesse valor de verdade de uma vida.
A expressão refere-se com bastante peso a uma psicopatologia -
a história de doente é mesmo " história de caso" -, até mesmo a
uma medicalização - o " doente" é também o " paciente" (termo que
Freud não sente a necessidade de amenizar com " analisando" , assim
228 as margens

como não lhe repugna chamar de " doutor" o analista). Isso nos impõe
sondar as suas origens. Mas, ao manter a expressão bruta, Freud, como
de hábito, tem as mãos livres para a originalidade do emprego. A
Krankengeschichte, título comum, destaca-se do uso freudiano com a
dignidade de um verdadeiro gênero literário inédito. Para sustentar
essa afirmação, requer-se uma genealogia do escrito freudiano.
Isso supõe ver emergir o gênero in statu nascendi, num primeiro
tempo: é tomando a medida de suas fontes - na " história de caso ",
à qual Charcot deu seus títulos de nobreza - que se verá desprender
o princípio da escrita freudiana. Em seguida, uma análise estrutural
do modo de representação (Darstellungweise) se faz necessária: vai-se
compreender, pois, num segundo tempo, o trabalho de escrita do caso
em Freud, destacando-se seus momentos próprios. Então, será o tempo
de tirar as conclusões propriamente metapsicológicas.

I. GENEALOGIA DA KRANKENGESCHICHTE FREUDIANA

1. Primum narrare

Contar uma " história de doente" em vez de se fiar na espectroscopia


de uma doença é, em si, suspeito quanto à exigência de cientificidade.
É nesse sentido que se devem entender as desculpas de Freud, no
nascimento do gênero, nos Estudos sobre a histeria: " Eu mesmo me
surpreendo com o fato de as histórias de doentes que escrevo serem
legíveis como romances (Novellen) e de a elas faltar, por assim dizer,
o carimbo de sério da cientificidade. Devo consolar-me disso pelo
fato de esse resultado dever ser imputado à natureza do obj eto, mais
que à minha preferência. " 7 Inicialmente, é como leitor de seus próprios
relatos que Freud diz ser surpreendido (ele diz, literalmente, " emo­
cionado" ) por esse fato estranho da legibilidade romanesca. É quando
as histórias se vêem postas preto no branco, de certa maneira, que
elas revelam essa particularidade. Para evitar qualquer equívoco, ele
explica que é como " neuropatólogo" (ele mesmo, pois, ligado à
" ciência" ) que deve constatar essa idiossincrasia do tipo de escrita
que ele faz emergir. Vejam como estão as coisas: essas " histórias de
doentes" assumem apesar de mim, seu " escritor" , um aspecto literário.
O que lhes falta não é a seriedade do conteúdo, mas essa " impressão
de sério" (ernsthaften Gepriigtes) pela qual se deve entender uma
o relato 229

certa forma em que se reconhece a marca da " cientificidade" ( Wis­


senschaftlichkeit). Ora, não existe aí escolha pessoal, nem " preferên­
cia" : isso se deve à " natureza do objeto" . O objeto (Gegenstand) é
aqui o sujeito, ou sej a - pois Freud é avaro com o termo8 -, o
" doente" , aquele cuj a história se escreve e que rompe, pela discursi­
vidade que requer, com a norma do discurso científico. Igualmente,
assinala Freud, não se deve " exagerar" : por que " fazer literatura"
com a neurose,9 já que é ela que " faz isso" , sua sponte, poderíamos
dizer? É preciso, portanto, desposar esse objeto e tornar-se o escriba
dessa história, ousar contar, contra os hábitos da " cientificidade" : em
primeiro lugar, narrar a " ordem das razões" devendo brotar da
narração.

2. Da pintura à diegese

Foi de Charcot que Freud herdou a problemática da " história de caso"


que ele fez, aliás, evoluir de maneira radical.
Tudo parte, com efeito, do problema da " imagem da doença"
(Krankheitsbild) a se construir pelo olhar clínico. Problema visual e
quase de vidência clínica. Assim, frisa ele que o mestre da Salpêtriere
" não era nem um especulativo (Grübler), nem um pensador, mas uma
natureza artisticamente dotada, como ele chamava a si mesmo, um
visual, um Seher:" . 10 As Krankenbilder se formam, pois, progressiva­
mente, num " método de trabalho" que Freud não esquecerá mais:
" Ele tinha o hábito de contemplar as coisas que não conhecia como
se fossem uma novidade, de reforçar dia após dia as impressões, até
que de súbito a compreensão destas aparecesse." Vai-se notar essa
dimensão de " iluminação" que consiste em fazer brotar o novo do
olhar: " Diante de seu olho espiritual, ordenava-se então o caos que
era estimulado (vorgetiiucht) pelo retorno dos mesmos sintomas; as
novas imagens de doenças se apresentavam, caracterizadas pela
constante conexão de certos grupos de sintomas." Daí um " gozo
intelectual" ao ver " algo de novo" . Essas " novas coisas" a ver são
os "estados de doença" (Krankheitszustiinde), tão velhas quanto o
gênero humano, mas surgindo como novas para o observador.
Era isso o que Charcot também dava a ver através dos destinos
trágicos dos pacientes, comentados com os recursos de uma vasta
cultura clássica e com " descrições" (Schilderungen) de que Freud
sublinha a " plástica" 1 1 . Uma pintura sustentada por uma declamação
230 as margens

e uma " mostração" , tal é a chave de um " teatralismo clínico" 12 de


potentes recursos dramáticos.
Vemos esboçar-se o legado de Charcot e seus limites: na " apre­
sentação de doentes" , com sua dimensão " histórica" , é a imagem­
da-doença que se dá a ver em reflexo. Igualmente o encontro entre a
" síndrome" e o destino do doente se vê pintado em cores inesquecíveis:
Freud enfatiza a " obra-prima de construção e de articulação" consti­
tuída por seus relatos clínicos, de modo " que não se podia, durante
todo o dia, liberar os ouvidos da palavra escutada nem tirar do
pensamento o objeto demonstrado" 13• Essas características do " qua­
dro" charcotiano vão ser transpostas na Krankengeschichte freudiana.
Mas doravante o " doente" não é mais a ilustração, por mais pungente
que sej a, da doença; ele é o próprio lugar de realização da forma
clínica. Mudança de dispositivo de escuta clínica, certamente -
invenção do procedimento analítico em que o sujeito advém ao centro
pela livre associação. Mas, no plano discursivo, o saber clínico requer
a história do doente, não mais como ilustração da " doença" , mas
como " a própria coisa" 14 que se dá a ver.
É também no plano da história de doente que se produz essa
emergência de novo: a " natureza psíquica" é subjetivada. A eloqüência
teatral de Charcot, aedo do sintoma, passa, pois, para o estilo do relato
freudiano. Em lugar de um comentário referido à clínica, mas ainda
exterior a ela (daí a necessidade de um talento oratório de Charcot,
mostrador do sintoma), advém essa espécie de autocomentário do
sintoma por si mesmo, substituído pela mediação da construção. Por
um efeito fascinante, a impressionante " dicção" de Charcot passa na
elocução do sintoma: o discurso sobre torna-se o discurso do próprio
sintoma.

3. A emergência do gênero: o "romance do sintoma"

A história do próprio gênero, no trajeto freudiano, revela-se eloqüente:


a Krankengeschichte, apesar da imutabilidade de sua denominação,
muda de natureza e de função.
A estrutura discursiva do escrito é testemunha disso: nos Estudos
sobre a histeria, as Krankengeschichte�15 são claramente classificadas
entre a " comunicação preliminar" que estabelece " o mecanismo
psíquico dos fenômenos histéricos" , as " considerações teóricas" e a
" psicoterapia da histeria" . Elas têm, portanto, uma função de ilustração
o relato 23 1

- ponto de passagem obrigatório da hipótese à teoria e à terapia: no


centro do escrito, mas sabiamente agrupadas como documentos jus­
tificativos. Por outro lado, a história da doença mal se distingue, por
princípio, da " história do tratamento" : existe o processo verbal de
um encontro e de uma estratégia de tratamento, a hipnose sendo ali
o meio de intervenção; é reagindo a essa situação que a fala histérica
se destaca, através de pungentes irrupções, que Freud tem o cuidado
de registrar, embora sem sistematizar.
Estamos lidando com uma " crônica" destinada a pintar " uma
imagem expressiva (ein anschauliches Bild) do estado do doente" , 16
última homenagem à língua de Charcot. Esta é destinada a refletir a
história-gênese (Entstehungsgeschichte) da doença - o que supõe a
travessia da " história dos sofrimentos" (Schmerzengeschichte).
Tudo se passa como se Freud, sob a pressão da experiência
psicanalítica, rompesse esse quadro supondo a clivagem história/tra­
tamento, história/teoria.
Ainda no caso Dora, parte-se do estado patológico (Krankheitszu­
stand): a história reflete-se no relato dos sonhos e tribulações do
(curto) tratamento. Para o pequeno Hans, logo depois da introdução
que expõe a situação, a Krankengeschichte é introduzida e polariza
todo o texto, a " epicrise" tirando dele, em seguida, as conseqüências
teóricas . Com o caso do Homem dos Ratos, estamos no nível da
própria coisa: A us der Krankengeschichte, é a partir da própria história
que se fala; a história do tratamento é aí, de certo modo, incrustada,
e a parte teórica se reduz a " algumas indicações aforísticas sobre a
gênese e o mecanismo dos processos" . 17 O caso do Homem dos Lobos,
enfim, intitulado " História de uma Neurose Infantil" , é calcado
igualmente em torno da trama da (pré)história do sujeito, demarcando-a
pela história do tratamento. Tudo se passa como se a " historicidade"
se depurasse, num processo irresistível.
Comparem-se as silhuetas de Emmy ou de Elisabeth e a forte
estatura de Dora, e vai-se compreender o que se passou: " objeto de
estudo" perturbado por alguns sonoros repelões, a histérica tornou-se
atriz do discurso - a história de Dora, densa c curta, marca essa
verdadeira apropriação, pela histérica, de seu texto que, devendo
contê-la, lhe faz as vezes de teatro. Como no teatro familiar, ela faz
um curto-circuito em todos os papéis e arranca todas as máscaras, 18
transformando o próprio Freud em personagem de um melodrama ao
qual ele não cessa de voltar, reavaliando lucidamf·nte as ciladas, mas
só-depois ! 19
232 as margens

4. A Dichtung neurótica

De que maneira o narrador da Krankengeschichte se encontra em


posição de Dichter? Freud o exprime numa fórmula densa e um pouco
sibilina: " Uma apresentação detalhada dos processos psiquicos, como
se está habituado a obter do poeta (Dichter), permite-me, mediante o
emprego de um pequeno número de fórmulas psicológicas, obter uma
espécie de compreensão sobre a origem da histeria." 20 Assim, a
" apresentação" literária é aqui um meio no estudo da histeria. Freud
ali evoca um procedimento didático: o " hábito" , contraído ao contato
com as Novellen, de uma apresentação de certo modo intrusiva
(eingehende Darstellung) dos processos psíquicos. O escritor torna-se,
portanto, " psicólogo" . O redator dos Estudos sobre a histeria é, assim,
paradoxalmente capaz de imitar esse modo de escrita, utilizando
algumas fórmulas psicológicas (hei Anwendung eininger wenigen
psychologischen Formeln). O " psicólogo científico" deve copiar esse
" psicólogo amador" , que é o escritor, mas para atingir um objetivo
claramente " científico" , ou seja, uma etiologia do distúrbio histérico.
É isso mesmo que cria essa impressão de desvio do modelo
científico: pode-se pensar, afinal, que a história da Srta. Elisabeth von
R. ou de Emmy von N. seja um " romance psicológico" . Só existe aí
um meio exterior para fazer compreender: essa passagem pela escrita
literária: é requerida para a inteligibilidade (Einsicht, que contém a
idéia de um " olhar" lançado sobre uma coisa a se esclarecer) da
origem ou da proveniência (Hergang) da histeria. Ali onde a ciência
não é conveniente, deve-se, pois, passar pela escrita para ter uma
visão - cinética -- do movimento de desenvolvimento da forma
neurótica.
Dispomos de um exemplo privilegiado de tal Novelle que a
Krankengeschichte freudiana parece parodiar: é a Mademoiselle Else
de Arthur Schnitzler. 21
Não nos apressemos em dizer que se trata aí da versão romanceada
de um " caso de histeria" . Com uma característica notável, o autor
cede a palavra, logo de saída, a essa " Srta. Else" que, numa espécie
de monólogo dialogado, se põe em cena. Vemos assim, por pinceladas,
desenhar-se nessa moça, pobre mas " altiva" , então pensionista de um
hotel, certa posição na rede de relações intersubjetivas. Muito ciosa
da imagem que dá aos outros, ela reina no centro de um processo de
solicitações e de seduções que vai driblando, ao mesmo tempo que
as mantém sutilmente; fica claro que a sexualidade é o que está em
jogo nessas relações: ela se reproduz, assim, numa série de esquivas
o relato 233

que lhe permite fazer-se desejar, fingindo nada ter a ver com isso.
Irrepreensível, a não ser por umas poucas tentações obscuras, tira de
sua posição de parenta pobre, cobiçada por uma série de homens -
aos quais Else não cessa de se oferecer como atrativo -, um
nada-querer-saber sabiamente erotizado.
Não há " diagnóstico" em Schnitzler, nem mesmo semiologia.
Tampouco outra voz além daquela da moça que se distingue por não
ter outra história senão a de um certo segredo que alimenta seu pequeno
mundo. Até o momento em que se dá algo como um melodrama: uma
certa dívida, contraída por um pai " genial" mas desventurado que,
entre dois negócios " genialmente" planejados, se encontra com a faca
no pescoço. A mãe então lhe pede auxílio: tudo depende dela. Ela
precisa obter de um certo senhor idoso, de fortuna sólida e libido
equívoca, a soma que irá salvar seu pai da desonra. Aí começa a
segunda parte do relato, " tempestade mental" , onde a parte do fantasiar
é sutilmente bordada sobre a evocação realista de um drama. Pois,
solicitado, o empresário vai impor uma condição àquela a quem deseja:
vê-la nua. Nessa vertigem em que ela se envolve, por deslizamentos
que exacerbam a deliberação em delírio, Schnitzler oferece uma bela
fenomenologia da tragédia histérica: cedendo à atração de uma falta
que cativa seu desejo secreto, ao mesmo tempo em que se assinala
pela invasão de fantasias de morte. O desfecho é, ele próprio, digno
de uma imaginação histérica: já que é preciso, ela vai despir-se, de
fato, não na intimidade do espetáculo privado que lhe foi pedido, mas
aos olhos de todos, no salão do hotel, como que para pôr a nu, com
seu corpo, objeto de desejo exibido, o opróbrio de seu vil mestre-cantor.
É nessa passagem ao ato exibicionista, logo seguida por uma síncope,
que o sintoma, até então tecido num monólogo a que só o leitor tinha
acesso, passa à realidade. É somente então - quando se carrega o
corpo amortecido e inanimado para o seu quarto - que o diagnóstico
é proferido: " Uma crise de histeria ( . .. )" . 22
Todo o relato precedente assume, então, sentido como alguma
monografia de " um caso de histeria" ? Com efeito, tivemos uma fala,
a de uma jovem submetida à pressão conjugada de solicitações
exteriores (as menos imaginárias) e turbulências pulsionais as mais
inconfessáveis, cujo " sintoma" , quando surge na cena social, na sua
dramaturgia, é chamado " histeria" . Schnitzler não é apenas um médico
que, tornando-se escritor, romanceia seus casos: 23 ele é alguém que
faz surgir uma fala, por sua escrita, que concorre com o discurso da
" neuropatologia" .
234 as margens

Devemos compreender o ponto onde a Krankengeschichte freudiana


e a Novelle schnitzleriana se cruzam sem se confundir. Esse ponto
nada mais é que a fala histérica, que ali encontra eco. Momento em
que as aspas se abrem espontaneamente no texto freudiano e onde
alguma coisa do pensamento histérico, ou melhor, da seqüência de
pensamentos (Gedankengiing), abre caminho no texto. Logo, não há
nenhuma necessidade de um " prolongamento literário" para a escuta
clínica: é esta, justamente, que reclama um texto e dá a Freud, queira
ele ou não, uma vocação de Dichter. Talvez se encontre aqui o
verdadeiro alcance de sua confidência a Schnitzler: ele o considerou
seu próprio " duplo" , com um " estranho sentimento de familiarida­
de" .24
Enquanto as monografias clínicas, apesar de sua precisão, apagam
o ponto de vista do sujeito - basta reler a Psychopathia sexualis de
Krafft-Ebing -, o romancista Schnitzler faz justiça a esse ponto de
vista, a ponto de fazer emergir a histérica em apelo à histeria, que a
nomeia sem a definir. Mas o texto literário tem a " fraqueza" de cair
na captação do próprio relato histérico: a histérica, com efeito, conta
histórias a si mesma, como no exemplo freudiano em que, no tempo
de um passeio, ela reconstrói uma vida inteira: " Ela havia estabelecido
uma relação amorosa com um pianista virtuose bem conhecido, tivera
um filho com ele ( . . . ) depois·, juntamente com o filho, fora por ele
abandonada, ficando na miséria. Foi nesse ponto do romance que lhe
vieram as lágrimas." 25 Esse " mau romance" dá o exemplo sumário
do fantasiar de que participa o " romanesco" : é preciso achar um meio
de contar respeitando o ponto de vista do " fantasista" , sem recair na
cumplicidade que encerra o sujeito na sua ficção.
O que, para além de suas variantes refinadas, organiza o texto
histérico, protótipo da Krankengeschichte freudiana? Será possível
destacar um roteiro pelo qual a história se torne legível?
Este se revela pela referência ao famoso fio etiológico: " As
histéricas sofrem essencialmente de reminiscências." 26 A reminiscên­
cia distingue-se radicalmente da lembrança na medida em que faz o
sujeito lembrar-se à sua revelia. A partir do momento em que a
lembrança não é reconhecida como tal, ela organiza uma alternância
entre duas cenas. A partir do proton pseudos, a heroína vê-se presa
numa armadilha: ela é capturada por um certo " passado" que reencena
sem cessar num mal-entendido crônico com o seu mundo. Tal é o
" romance da falta" 27 histérica cujo escritor está bem situado para tirar
o relato 235

os recursos de uma intriga, como se vê numa tradição que remonta,


pelo menos, à Pamela de Richardson.
Compreende-se por que Freud tem necessidade desse momento
literário para fazerjustiça, fenomenologicamente, ao drama existencial.
Mas se vê também que, ao contrário do romancista, ele quer, no final,
revelar a chave do drama. Romance etiológico, de certo modo, que
não é, no entanto, um " romance de tese" !
Vamos observar o paradoxo do espaço-tempo implicado pelo relato
do sintoma histérico, com sua diacronia própria, quando o modelo da
psique é essencialmente sincrônico: seu ordenamento (Anordnung),
com efeito, é representado como " concêntrico" , já que disposto em
torno de um " núcleo patógeno" central.28 É verdade que esse modelo
é especificado por um arranjo em forma de " arquivos" bem conser­
vados, em conformidade, por um lado, a uma lógica cronológica e,
por outro lado, por um modelo dinâmico segundo " o conteúdo do
pensamento" .

5. O relato mnésico

É como se Freud combinasse o sentido do " quadro" tomado de


empréstimo a Charcot com a arte da intriga demarcada por Schnitzler
- através do que ele exerce a Krankengeschichte como um verdadeiro
" romancista do sintoma" .Z9 Vê-se como, partindo de um relato de
detetive em busca de um " segredo" , tendo experimentado o equívoco
da " falta" , ele chega a recapturar o conjunto da trama. Compreende-se
assim que Freud, tão incrédulo quanto a uma problemática da
emancipação da qual a análise se tornaria a sucursal,30 pinta um quadro
tão crítico da realidade familiar e social tomada pelo sintoma do
protagonista principal. O " espírito dos Penates" 31 estreita-se, então,
em torno do " furo" do sintoma. da " falta" (versão histérica) à " dí­
vida" (versão obsessiva). O essencial aqui é que é o relato que tem
a virtude de revelar o impasse do sintoma familiar, sem necessidade
de um prolongamento " psicossocial" . Basta, com efeito, seguir a
Erziihlung neurótica para captar um destaque dessa atmosfera familiar
irrespirável com relação à qual a história da doença faz sintoma. A
doença tem por efeito objetivar a impossível manutenção de um
" papel" que põe em crise o conjunto da " distribuição" que define o
espaço intersubjetivo da família. A estrutura do mal-entendido que
236 as margens

organiza a família brota, de fato, do relato daquilo que o neurótico,


herói da história, " compreendeu" demasiado bem. Compreende-se
por que Freud, sem problematizar o papel da família nem culpá-la,
faz surgir um cativante quadro da hipocrisia que dá a ambiência do
sintoma. Os pais de autoridade equívoca, as mães encarregadas - ao
mesmo tempo apagadas e onipresentes - dos Penates, os membros
cúmplices da irmandade, tudo isso emerge como cenário do " romance
familiar" , do traçado do sintoma. É por não dispor, felizmente, de
qualquer teoria prévia do quadro da " alienação familiar" que Freud
faz um uso tão revelador do relato.

6. Tipologia do relato: a narratividade freudiana

Entre os " relatos" e os " romances" , nossa tipologia do gênero32 deve


dar lugar a verdadeiras " novelas" clínicas. Trata-se de escritos que
requerem uma narração curta e centrada numa " cena" , enlace ou
desenlace de uma situação dramática onde o sintoma é levado ao seu
ápice, o que corresponde, bastante precisamen,te, à especificidade do
gênero lábil que é a " novela" . 33
Freud reserva essa fórmula a uma dessas situações marginais em
que uma configuração sintomática pouco explorada exige uma " in­
vestida" (como no escrito sobre " Um caso de homossexualidade
feminina" ),34 ou em que uma situação incongruente exige uma
consideração atenta (como em " Um caso de paranóia que contraria a
teoria psicanalítica" ). 35
Vê-se o ponto comum a essas situações aparentemente tão hetero­
gêneas: o momento do relato intervém para resolver um debate
(metapsicológico). É preciso, então, contar e mostrar, num " pedaço
de vida" , a cena de que vai nascer o esclarecimento esperado. O
" novelista" procura surpreender esse momento de verdade que não
necessita de relato detalhado do tratamento nem de reconstituição de
um longo período: a Erlebnis substitui aqui a Lebensgeschichte.
Assim, se a teoria analítica da homossexualidade feminina perma­
nece discreta, não é por acaso que Freud tenha fornecido um dos
quadros mais fascinantes do drama familiar que ela proporciona.
Crônica de um pequeno escândalo que precipita no canal uma jovem
que se exibira aos olhos de seu próprio pai e da opinião pública com
sua " bem-amada" . Interrompendo rapidamente qualquer longa dis­
cussão, por exemplo, sobre a simetria da homossexualidade feminina
o relato 237

com seu homólogo masculino, mais " ruidoso" , Freud conta. Ele põe
diante dos olhos o gesto sintomático, com um luxo de detalhes : e,
como espelho dessa " prolixa introdução" ( !),36 coloca " uma apresen­
tação precisa e sintética da história da libido desse caso" . Didática
exemplar: a Libidogeschichte deixa-se decifrar como re-Ieitura da
história, ou melhor, de sua crise historicamente datada. Esta a ilustra,
certamente, a posteriori, porém, mais que isso, a induz. É como se o
metapsicólogo devesse fazer-se o comentador de sua própria história.
Uma ocorrência particularmente interessante é aquela em que a
escuta da história serve de núcleo para sua reescritura. Esse é o caso,
eminente, da paranóia, estruturado como relato querelante sobre o
qual se escora a queixa. Assim é necessário, sobre o fundo de debate
jurídico,37 dar a palavra à narradora, que se diz perseguida por um
apaixonado. Então, é um certo ruído de pêndulo que, em meio a essa
cena de abraço, polariza a escuta e alerta o ouvinte, Freud. Este " pede
imediatamente" à narradora que volte para " contar a história de uma
forma mais detalhada e com todas as circunstâncias anexas (Nebe­
numstiinden) talvez omitidas dessa vez" . Assim, formulam-se para a
paciente as exigências que o narrador do caso deve satisfazer: o sentido
do detalhe.38 A interpretação aqui é ré-escritura da história com o grau
de verossimilhança exigível. Não é por acaso que o segundo relato é
que fornece esses " coadjuvantes" que levam à verdade da história.
Portanto, agora, é sobre o próprio dispositivo de escrita que devemos
voltar nossa atenção.

li. MORFOLOGIA DA ESCRITA FREUDIANA


DO SINTOMA

1. O momento da escrita

O momento de verdade do " historiador" do sintoma é o da Bearbei­


tung, que separa o fim da análise da passagem à escrita. Momento
em que Freud avalia a amplitude de sua tarefa: uma vez encerrada a
relação com o doente, deve-se transformar essa luxuriância tropical
do " material" e do evento num relato articulado. Intervalo mais ou
menos longo, em que o analista Freud deve se engajar corajosamente
como historiador (Krankengeschichtsschreiber).
238 as margens

É em tais momentos que se encontra a confi ssão mais pateticamente


reveladora. Assim, durante a escrita da história do Homem dos Ratos,
esta confissão dos transes do autor: " Que desordem reproduzimos,
como despedaçamos lamentavelmente essas grandes obras de arte da
natureza psíquica." 39 Com seu sentido seguro da fórmula, Freud
designa aqui, exatamente, o que está em jogo: a neurose apresenta-se
como este pedaço de natureza psíquica realizado, dotado de suas
articulações próprias, reveladas, é verdade, pelo processo da análise.
Agora que foi revelada, ela espera ser escrita. A Darstellung não é
somente apresentação, mas reprodução.
O pior desafio para o escultor é dominar uma matéria que " brota
em suas mãos" , ao mesmo tempo excessiva e ameaçada de uma
sanção: " falso por incompletude" . Não conseguindo restituir a forma
em sua " beleza" - é realmente de uma " obra de arte" que se trata
-, arrisca-se a Pfuscherei, estrago e " sabotagem" . A neurose, essa
" moça que veio de longe" ,40 demanda que se respeite seu e idos, sua
forma própria. Quando Freud se queixa a Jung de não estar à altura
- " Que miséri a ! " -, não está cedendo a um romantismo (que, aliás,
ridiculariza), mas se confrontando com um problema extremamente
positivo: o de aprender, através de um relato, com os recursos de um
" realismo fantástico" , a objetividade de uma psichische Natur.
Freud ali está diante da Dichtung neurótica, exigência de verdade:
como reproduzir, em sua bela objetividade, o desenho desse logro sui
gene ris? Como tirar uma " cópia" à altura do " original" , e não um
" falso por incompletude" , um torso? Isso não é tão diferente dos
transes da criação num artista, só que com a diferença, não negligen­
ciável, de que a " obra de arte" já está encarnada na " forma de
existência neurótica" .41
Se ele parece parafrasear Rodin nessa ocasião, é porque contempla,
então, seu objeto como " estendido" num espaço onde deve ser
projetado. Mas, de fato, ele deve dar-lhe essa forma temporàl pro­
priamente diegética.
É o retrato dessa diegese freudiana, nas suas exigências próprias,
e depois em suas etapas de constituição, que se deve captar para dar
conta dos transes desse momento da escrita. Devemos, para isso, partir
da questão, propriamente discursiva, da apresentação, de suas fontes
" documentais" e de seu objeto - escrita da memória - para chegar
ao momento da nomeação do sujeito e de sua identificação como
instância própria, antes de explorar a posteridade da história. Esta
o relato 239

" espectroscopia" do gênero vai levar, por regressão, ao seu centro


mesmo: o sujeito, na sua homonímia simbólica, sujeito do sintoma e
da história.

2. A arte da "apresentação"

Toca-se aí no problema da " apresentação" (Darstellung) da psicaná­


lise como processo: " Resta a deplorar que nenhuma apresentação de
uma psicanálise possa restituir as impressões (Eindrücke) que se
experimentam durante sua realização e que a convicção final não
possa ser comunicada pela leitura, mas pelo vivido" (Erleben).42 Existe
aí mais que o banal lembrete do desperdício do vivido pelo escrito
ou a ingênua lamentação de que mais valeria " estar ali" para se ter
uma idéia precisa do que se passou. A história do doente, ao passar
da Historie para a Geschichte, faz o processo de convicção mudar de
elemento: fica-se tentado a julgar como leitor, ao passo que a
convicção, por mais " intelectual" que seja, foi inicialmente experi­
mentada sobre o fundamento das " impressões" . Freud encontra-se,
em suma, na posição do viajante que narra o que vai sempre escapar
ao narrativo: um certo excesso de real, que o velho termo charcotiano,
" impressões" , ainda é o que serve menos mal para designar. Adver­
tência ao leitor das histórias de caso para tornar a escutar aquilo que,
do " vivido" , se reflete no relato. A verdade clínica é tal, com efeito,
que afeta de saída aquele que, mais tarde, como autor, só pode
" evocá-la" .
A objetividade da relação é enunciada como um dever: o leitor
deve ser completamente informado: " Considero uma falta (Mis­
sbrauch) deformar, por quaisquer razões que sej am, mesmo as me­
lhores, os traços (Züge) de uma história de doente, pois então fica
impossível saber que lado do caso um leitor julgando por si mesmo
(selbststiindig) vai apreender, e dessa forma se corre o risco de induzir
este último ao erro."43 Tanto quanto o respeito ao leitor, é pois a
exigência de completude do " quadro" que está em causa: o narrador
está a serviço do objeto que reconstrói. Cabe ao leitor usar de sua
" autonomia" para abordá-lo pelo lado que lhe convier. Princípio
precioso para o leitor da posteridade que, de fato, encontra sempre
algo a descobrir no quadro, inclusive aquilo que o autor, sem apreender
em todo o seu alcance, não deixou de informar a seu leitor.
240 as margens

3. Os pródromos da história: os protocolos

Os protocolos de sessões - ou sej a, as anotações tomadas na análise


- constituem o " precursor sombrio" da história. Essa é a primeira
aparição da escrita do sintoma (Niederschrift), a história avant la
lettre. É revelador que Freud a avalie em referência ao futuro leitor
(Leser) para relativizar sua utilidade: " A escrita durante a sessão com
o paciente poderia justificar-se pela intenção de fazer do caso tratado
o objeto de uma publicação científica. Sobre o princípio quase não
há o que criticar. Deve-se, todavia, não perder de vista que os processos
verbais (Protokolle) precisos têm menos efeito do que se poderia
esperar numa história de doente. Eles dependem, falando propriamente,
dessa exatidão de fachada (Scheinexaktheit) da qual a psiquiatria
'moderna' tem à nossa disposição numerosos exemplos patentes. São,
em geral, fatigantes para o leitor e apesar disso jamais chegam a
substituir, para ele, a presença na análise. " 44
É como se Freud evocasse o " rascunho" da história, essas notas
tomadas com vistas à transmissão ao leitor (e não prioritariamente
dirigidas ao analista, a não ser se o considerarmos como seu próprio
leitor). Não há uma concepção estritamente " realista" : é preciso deixar
ao escritor a liberdade da escrita. Ele reafirma que " registros proto­
colares exaustivos (erschopfende protokollarische Aufnahmen) não
asseguram nada" .45 Não há, portanto, uma tentação obsessiva " fono­
gráfica" a consignar " tudo" : semelhante trabalhador braçal daria um
autor desprezível.
É notável que a trama explícita dessa discussão seja a força de
convicção ( Überzeugung) destinada ao leitor. Se não há solução ideal
para restituir àquele que não estava presente a " convicção resultante
da análise" , nem por isso deixa de ser esse o objetivo didático: i sso
se dá pelo " crédito" atribuído ao analista-narrador: " Tivemos a
experiência geral de que o leitor, quando quer acreditar no analista,
atribui a este, igualmente, o crédito por um pouco de elaboração que
ele tenha em vista a partir de se� material; se, em contrapartida, não
quer levar a sério a análise e o analista, faz o mesmo com os processos
verbais de tratamentos fiéis. Esse não parece ser o meio de atenuar a
falta de evidência inerente às representações psicanalíticas."46
Esclarecimento lucidamente irônico: pouco importa ao leitor cético
a pseudo-objetividade de um relato. Não se trata de crer de olhos
fechados: mas, sem essa transferência mínima, que leitura é viável?
Esse é um meio, também, de se consolar do inevitável implícito na
o relato 24 1

" relação" : é preciso ousar passar do Material à sua Bearbeitung: é


nesse ponto que se tem que tornar escritor. Nem realista nem
" surrealista" , o escritor de casos fará passar, com seu estilo, a
representação do material.
Encontra-se aí, ainda assim, uma ambigüidade na identificação
desse leitor. Quem é ele? Certamente, é o " terceiro imparcial" , aquele
que não é a priori nem um inimigo decidido nem um partidário cego
da análise,47 aquele a quem Freud dá a palavra para formular suas
objeções. Aí está, sem dúvida, um parceiro privilegiado, o interlocutor
social do relato psicanalítico. Logo, a história é propriamente o
momento determinante do encontro com o leitor, a peça mestra da
" gramática do assentimento" 48 analítico.
Isso vale, mutatis mutandis, para a história de caso, que deve poder
ser lida por qualquer um. Não se pode desconhecer esse público dos
Estudos ou das Cinco psicanálises, no qual, contra o " mundo cientí­
fico" limitado, Freud busca uma legitimação. Se a " humanidade"
resiste à psicanálise, esta tem para ela uma certa " opinião pública" ,
já que se dirige a um certo universal do sujeito desconhecido
fundamentalmente pela " ciência oficial" .
Freud, no entanto, tem na ocasião uma versão diferente: " Logo,
não se publicam tais análises para suscitar a convicção daqueles que
até agora se comportaram de maneira negativa e incrédula. Só se
espera trazer algo de novo aos pesquisadores que, por suas próprias
experiências com os doentes (eigene Erfahrungen an Kranken), já
adquiriram convicções" .49 Isso significa que só se prega aos " con­
vertidos" ? De fato, Freud sublinha esta condição realista: para apreciar
o avanço realizado pela " história" , o melhor é ser pessoalmente
confrontado com esse material clínico em que se forjou a convicção.
Traço geral da transmissão: só existe o " novo" para quem já tem
familiaridade com a coisa. Nada de " tábula rasa" no assunto. Quanto
mais eu souber o que é uma neurose, mais tiver " familiaridade" com
ela, mais serei sensível ao " novo" da coisa narrada pela história
freudiana.
Com certeza, é aos " pesquisadores" que Freud se dirige aqui, mas
não necessariamente aos " experts" , os partidários da Scheinexaktheit:
antes, aos " bons entendedores" . A história não será fecunda nem se
se limitar a verificar algum saber adquirido, nem se pretender aprender
tudo: é assim que ele recorda que " uma história de doente única,
mesmo quando for completa e isenta de dúvida, não poderá dar resposta
a todas as perguntas" . 50 É justamente este limite da sua " unicidade"
242 as margens

que faz a riqueza de sua historicidade singular, aquela que inaugura


o incipt " Era uma vez" , promessa de inédito, do nunca até então
ouvido ...

4. A escrita da anamnese

A anamnese, esse núcleo primitivo da história, sua Urzelle, atesta a


deformação que a Krankengeschichte deve corrigir. Do mesmo modo,
a relação analítica se inaugura com essa demanda de contar a história
para restabelecer as lacunas da memória familiar: " O que os pais do
doente ( ... ) comunicam (berichten) dá, na maior parte do tempo, uma
imagem irreconhecível (unkenntliches Bild) do desenvolvimento da
moléstia (Krankheitsverlauj). Começo, pois, o tratamento com o
convite a me contar toda a história da vida e da doença (Lebens-und
Krankengeschichte)." 51 O (a) interessado( a) é então suposto( a) saber
ainda melhor - já que de " primeira mão" - o nervo da história.
Mas a narração é, por princípio, lacunar, e só pode servir de " primeira
orientação" . É significativo que Freud aí invista contra as histórias
de doentes demasiado completas: " Só posso surpreender-me com a
maneira pela qual histórias de doentes lisas e exatas de histéricas
nasceram nos autores." Belas demais para serem verdadeiras, devemos
compreender: são os maus historiadores, os Vertot da clínica para
quem " o cerco (já) está feito" - vamos entender, escrito antes de
ter acontecido. 52 Uma " história de doente sem lacuna e bem acabada"
(lückenlose und abgerundete Krankengeschichte) é aquela cujo prin­
cipal ator foi mais ou menos excluído.
A incapacidade para o neurótico de amarrar seu próprio relato é,
com efeito, essencial. Deve-se, pois, partir desse " primeiro escrito"
à maneira de " um rio não navegável, cheio de bancos de areia, onde
se tenta navegar afastando, um a um, os obstáculos" . Cativante imagem
da anamnesis, esta mnesis da reminiscência,53 relato ao mesmo tempo
luxuriante e cheio de lacunas. Estranho parceiro do narrador, o ator
do relato: ele não pode informar de modo coerente " tal episódio de
sua vida" . O que lhe falta é a trama do relato, sua estrutura de coerência
(Zusammenhang) que dá sua continuidade. Relato cheio de " lacunas
e mistérios" . Distúrbio da diacronia, isto é, da ordem de sucessão
(Aufeinandeifolge) dos eventos. No entanto ele é precioso para
recordar um " dado" isolado (Begebenheit), uma data, uma indicação:
é, pois, o corretor de seu próprio historiador. Como um personagem
que se tomasse o informante, competente, mas cego, de seu próprio
romancista!
o relato 243

Tal é o estatuto desse " saber anamnésico" . Freud expõe aqui uma
verdadeira lei de epistemologia clínica: " Tal estado das lembranças
que se referem à história da doença é o correlato, requerido teorica­
mente, dos sintomas de doença." 54 É na própria memória, em sua
arquitetura barroca de erros, amnésias, furos de memória, falsas
lembranças, ilusões mnêmicas, que o Dichter da neurose deve fazer
emergir a porção de verdade essencial.

5. O ato de nomeação

Nomear seu personagem: o escritor da Krankengeschichte experimenta


essa exigência ao mesmo tempo elementar e decisiva do romancista
à sua maneira, até mesmo às suas custas.
Assim, para o leitor de Fragmentos de um caso de histeria, o
personagem central se chama Dora, que sabemos ser um nome de
empréstimo. Mas devemos reportar-nos ao momento da escolha -
aquele que vai transformar Ida em Dora. Essa é a ocasião do sintoma
no autor, ou antes, da experiência de que essa escolha não poderia
ser feita ao acaso nem impunemente. Esse episódio tem seu lugar na
Psicopatologia da vida cotidiana.55
Somos referidos a essa temporalidade bem particular, onde, f' no
momento de entregar à publicação uma das (suas) pacientes" , o autor
delibera sobre os " nomes que lhe deve dar na obra" . Diríamos que
o problema é diferente, aqui e ali : para o autor do romance, não existe
nome original a disfarçar. E, de fato, começa aí a dificuldade: " A
escolha parece muito grande" : um oceano de nomes se apresenta, do
qual só se exclui "o nome verdadeiro, em primeiro lugar" , bem como
o nome dos próximos e os nomes rejeitados por motivos de eufonia.
Mas precisamente essa escolha quase ilimitada exige que um nome
particular se destaque de seu próprio movimento. Significativamente,
aquele que " decide" deve pôr-se em situação de " livre associação" ,
tal como um analisando. É sob a forma de Einfall que deve ter lugar a
" boa" escolha. É então que um nome emerge, imperiosamente: Dora.
O que se deve entender, senão que o personagem quer chamar-se
Dora? Antes de conceder-lhe o título, Freud interroga-se, no entanto,
quanto à sua " determinação" : Dora é o nome de uma criada de sua
própria irmã, uma certa Rosa que, por não poder conservar seu nome
- fazendo sombra ao imaginário de sua patroa -, teve de ser
rebatizada. Vamos observar que é ao ver o verdadeiro nome (Rosa)
escrito numa carta e buscando saber sua identidade que Freud aprende
a identidade verdadeira, condenada a permanecer encoberta, da " ver-
244 as margens

dadeira Dora" . Será então chamada Dora aquela que não pode
conservar seu nome próprio (por motivos ancilares . . . ou de sigilo
profissional !). Pelo fio da associação, descobre-se uma " definição"
imperativa: " uma Dora" é uma mulher cujo nome não deve ser
pronunciado.
Por um efeito surpreendente, Freud vai, pois, como autor, restituir
a Ida, a título fictício, o nome real do qual outra mulher, Rosa, foi
espoliada. Ele repara, à sua maneira, uma injustiça - uma doméstica
não tem nem mesmo o direito de conservar seu nome -, voltando a
dar vida a esse nome abandonado por sua proprietária, numa ficção.
" Dora" virá habitar e vestir Ida, que vai passar, sob esse nome
emprestado, à posteridade. Esse nome tem sua necessidade íntima:
ele designa alguém e retém, mesmo, certos traços identificatórios da
pessoa originalmente significada.
O autor Freud escolheu, pois, com conhecimento de causa: ele foi
escolhido por " Dora" que vem, em seu lugar e em seu momento,
fazer-se admitir na sua " ficção" . Ela vai absorver, com sua potência
evocatória, uma trinca de mulheres.
A partir do momento em que, de fato, cedeu à força sugestiva do
nome, Freud se viu presa de uma série de atos falhos, que confirmam
que a Krankengeschichte é um tema eletivo de " psicologia social" .
Pois esse nome, uma vez escolhido, deve realmente ser proferido: que
fazer, então, quando durante uma conferência deve-se chamar " Dora"
por seu nome (a expressão adquire aqui toda a sua literalidade) e uma
das ouvintes responde, ela mesma, pelo nome de Dora? Que fazer da
"jovem aqui chamada Dora" , aquela que habita seu texto a partir de
então publicado? " Licenciá-la" (não se sai da metáfora ancilar) pelo
tempo de uma conferência, para não constranger sua ouvinte ! Como
poderia esta escutar o conteúdo da história sem se sobressaltar a cada
instante?
Imediatamente desbatizada, " Dora" é, portanto, rebatizada como
" Ema" , subterfúgio graças ao qual o relato freudiano pode seguir seu
curso. " Dora" , pois, não é mais o nome da heroína. Entretanto, seria
ingênuo pensar que se possa assim desbatizar o sujeito da história
impunemente: " A eventualidade temida" tinha " conseguido realizar­
se ao menos em parte" , já que " outra ouvinte" se chamava, no
sobrenome, Lucerna, de que " eu havia tomado duas sílabas" ! Aí está
um emblema do poder do nome: expulso, exilado do relato, ele
consegue ainda, em seu novo aspecto, comprometer o autor, que
acreditou poder livrar-se da sua necessidade, enquanto, num efeito
bem-humorado de Unheimliche, o nome substituto encontra seu
o relato 245

correspondente numa mulher real. Através de Lucerna, é " Dora" , a


mulher-nome de batismo do relato, que ganha vida. Não se desnomeia
impunemente seu personagem: tal é a mensagem desse incidente.
Lição que se confirma por um incidente ignorado do próprio Freud:
ao nomear " Hans" o pequeno Herbert Graf, Freud não avaliava o
poder dessa inicial " H" : liga-se, com efeito, ao pai de Hans56 que,
apaixonado antes de seu casamento por uma certa Hedwige, fazendo
o luto desse amor impossível, obstinou-se em atribuir a sua prole
nomes começados pela letra aspirada (" H" como em " Hans" e como
em " Hannah" ). Assim, aquela cujo nome ele rabiscava por toda parte
se vê encarnada, com seu valor de Sehnsucht erotizado, na nomeação
de seus próprios filhos. Escolhendo o nome " Hans" para nomear o
personagem de sua história, nome em que o pai havia pensado na sua
" caça ao H" , o autor Freud retomava ainda a magia significante de
um nome que, antecipadamente, escolhe seu destinatário . . .
Nada d e surpreendente, então, que durante o relato d o sintoma
surgisse a referência ao texto literário propriamente dito como uma
espécie de " citação" cuja iniciativa cabe ao próprio neurótico. Um
exemplo disso é o efeito auto-erótico produzido sobre o Homem dos
Ratos por um trecho de Wahrheit und Dichtung, aquele em que o
jovem Goethe, pelo efeito desinibidor de um jogo de prendas, vê
suspender-se a interdição do beijo e, sob a forma de um rapto,
realizar-se o desejo contido.57 Aqui, é por afinidade obsessiva que a
fantasia de Goethe se comunica com a de seu leitor. Vamos destacar
apenas que o texto literário faz sua entrada no texto do sintoma, numa
espécie de jogo interdiscursi vo, até mesmo de " abismação" 58 de um
texto em outro.
Vamos lembrar-nos então de que o Homem dos Ratos entrou na
doença pelo efeito de um certo relato, Erziihlung do " capitão cruel" ,
de uma certa tortura da qual ele ficou prisioneiro. Assim, apanhado
na armadilha (como um rato !) pela história é que Lanzer · se tornou,
dotado desse epíteto, o personagem principal de seu relato. Isso
também é o que fazia o Homem dos Lobos, como que captado pela
dedicatória de sua própria história por seu autor, apresentar-se por
seu apelido, tornado mais real que o do registro civil !59

6. O sujeito, objeto do relato


Quem é, pois, der Kranke, " o Doente" , do qual se deve escrever a
história, designado explicitamente como " o objeto" da hi stória,60 o
referente real do " pseudônimo" ?
246 as margens

É-nos necessário, para aquém da massa de saber sobre a neurose,


redescobrir sua instância, situar o personagem cuj a Geschichte é
requerida. Ora, ele é atestado por um " traço" idiossincrásico banal:
o egoísmo. Freud evocando " o egoísmo bem conhecido do doente" ,61
faz dele um dos emblemas do narcisismo, aquele no qual os destinos
da libido e do " interesse do Eu" (lchinteresse) se tornam inseparáveis.
O Eu do doente é em si " apologia" e se torna o incipit de sua história:
" Para mim, a história de uma das minhas loucuras !" 62 O doente, cuj a
alma s e estreita e m torno d a cavidade d o sintoma, não pensa,
literalmente, mais que em si mesmo.
A história de doente é, pois, em si, as memórias de um egoísta. A
doença realiza um programa " egotista" : o " doente" leva seu egoísmo
até o ponto de ter uma história para si que, para além de algum destino
banal, porta a sua assinatura (aí está a fonte de atração dos " perso­
nagens" freudianos). À falta dessa cumplicidade com o egoísmo de
sua personagem principal, a história não pode ser escrita. Mas, além
disso, é preciso que o autor separe aquilo que vem, respectivamente,
do " preconceito" egoísta - preconceito contra si mesmo - e do
exterior, da Ananke:63 não existe, pois, um domínio sobre a história
do sujeito, que o próprio egoísta não pode escrever, senão tomando
o Eu "(assim concebido como crença em si) como ponto de partida e
resistindo a ele.
O próprio sintoma de sofrimento (Leidensymptom) testemunha esse
egoísmo primitivo, que vai tornar-se o " motor" do relato. Desse ato
primitivo de recepção, encontra-se um símbolo fascinante no proce­
dimento do Homem dos Ratos, buscando, como que às cegas, o homem
que lhe desse um " atestado" de que o estranho sofrimento que o
habitava - culpa absurda e demanda de encenação em torno de uma
dívida - provinha realmente da patologia, e não de um " capricho"
qualquer.64 É oferecendo tal certificado simbólico (Zeugnis) que Freud
ata, �om a transferência, a primeira palavra da história: esta começa,
com efeito, com a recepção dessa " certeza de culpa" que distingue
o neurótico. Mas, tornando-se o sujeito de sua própria história, reescrita
e reconstruída, o demandador de " atestado" deverá re-situar-se na
trama de uma ação (Handlung) - no sentido teatral - que tornará
essa posição " egoísta" insustentável. Tal é a virtude " didática" da
história: ela reintroduz o sujeito a uma temporalidade da alteridade,
no sentido literal em que ele consegue re-situar-se na interação
simbólica dos " papéis" .
o relato 247

7. A verdade da "pós-história"

A referência à " discrição médica" (iirtzliche Diskretion) não é apenas


aned�tica: ela recorda o limite da " representação" (Darstellung) que
se deve manter65 nos " contornos mais gerais dos eventos" . A expressão
Umrisse evoca um desenho do qual se tiraram as cores mais vistosas
e mais chocantes. A falta contrária seria aplicar ao próprio real, em
choque com a história, esse princípio de discrição. É um princípio,
em Freud, que o inconsciente não nos incita a " usar luvas de pelica"
ou " medir as palavras" . É por isso que a história freud�ana permanece
tão realista, mesmo quando certas asperezas são suavizadas. Uma
história sem referência à realidade só merece desprezo.66
Existe, entretanto, uma forma de discrição mais problemática:
aquela, involuntária, que incide sobre eventos talvez determinantes,
dos quais o narrador não tem conhecimento, e que chegam a nós
retroativamente, pela indiscrição deliberada do historiador da psica­
nálise. Isso não prejudicaria seriamente a credibilidade e o valor da
história? É notável que Freud, tão sensível, como vimos, à dificuldade
de narrar tudo o que viu e soube, não se aflija muito com tudo o que
não pôde aprender. Uma vez a análise terminada, o relato traz sua
própria justificativa intrínseca
Para dizê-lo brutalmente: à luz das lacunas de informações reveladas
" depois da batalha" , o relato freudiano ainda se sustenta?
À falta de uma resposta global, é o exemplo, aqui, que deve permitir
que se tenha alguma idéia, nem que seja apenas para testar essa
impressão de que o relato freudiano conserva seu peso de real para
além dos elementos de realidade que se acrescentaram à inteligibilidade
da história.
Sabe-se que a história do Homem dos Ratos é polarizada em tomo
do tema da dívida: aquela que ocasiona, pelo sintoma inaugurador da
análise, o famoso roteiro do reembolso impossível e de que Freud
nos dá o modelo na famosa dívida do pai . O que ele não nos diz é
que este pai tem o papel ingrato de " parente pobre" da família, devido
a essa circunstância espantosa de que sua esposa funciona como filha
adotiva, de certa forma, numa outra família, rica, geradora de " espe­
ranças" .67 Esse filho que anuncia, com seu sintoma, uma solidariedade
com um pai mais ou menos desprezado por sua esposa gera, portanto,
uma situação de fato impossível, numa família " satélite" de outra.
De maneira notável, Freud descreve o impasse do " devedor" no
plano da realidade psíquica, omitindo (voluntariamente ou não) essa
248 as margens

circunstância da realidade material que fornece, pelo menos, seu


pré-texto à história desse impasse. Entretanto ele não nos priva de
nenhum dos elementos que, na descrição do impasse intersubjetivo,
permitem pôr em perspectiva essa " circunstância" . Basta-nos, de certa
maneira, programá-la retroativamente para se ver organizar o contexto
material do impasse subjetivo.
Resta refletir sobre o que advém depoi s do tratamento, quando o
personagem, supostamente curado, sai da história.
Meditando sobre os avatares do " pós-tratamento" do Homem dos
Lobos, Freud emite um conceito que pode servir de avesso à noção
de " história de doente" . Ele acaba de detalhar o que se pode,
legitimamente, considerar como uma litania das " recaídas" do pa­
ciente, que são outros tantos sinais do fracasso do tratamento primitivo.
Freud, no entanto, não vê as coisas assim, já que nos confi a: " Achei
a história da cura (Heilungsgeschichte) desse paciente não menos
interessante que sua história de doente (Krankengeschichte).68" Sabo­
rosa pirueta, sem dúvida, que transforma o fracasso patente em
processo interessante.
Mas vamos tomar ao pé da letra esse par de noções: se o " doente"
" tem" uma história, a " cura" não seria apenas o limite desta, a saída
desejável? Podemos acreditar nisso, em especial nos casos em que,
justamente, ele não faz mais com que falem dele (por qualquer razão
que seja). Mas o caso espinhoso do Homem dos Lobos atesta que o
fim da história da doença pode fazer o sujeito ingressar numa outra
história, a de uma "cura" . . . interminável. Sem dúvida, não é sem
ironia que Freud coloca essa noção no limiar de um escrito que medita
sobre a ( Un)endlichkeit da análise. Observando-se melhor, a " cura"
contém a negação da historicidade da doença, já que ela a conduz a
" bom" termo. Mas se o próprio doente estiver " historicamente" ligado
a sua " doença" , não deveria ele ler essa história, retrospectivamente,
como a de uma cura (Heilungsgeschichte) que se prolonga para além
da história, propriamente dita, da doença? A " cura" traz um ponto
final à história da doença, mas ainda tem de encontrar seu sujeito: é
essa temporalidade que exige ser pensada. Existe aí a idéia de uma
convalescença: vamos observar que esta já não pertence à doença
propriamente dita, mas sim à história do doente, e trabalha num tempo
próprio.
Por sua astuciosa e provocante inovação retórica, Freud atrai nossa
atenção para a temporalidade do sintoma. Inadvertidamente, o Homem
dos Lobos parece prolongar sua doença para além do limite autorizado
o relato 249

ao sintoma: se o leão deu apenas um bote sobre sua presa, um fim


deveria ter sido colocado, foi colocado à história do doente. Que faz,
pois , o Homem dos Lobos, para além desse " fim" ? Dedica-se a curar.
Através desse caso extremo, não será possível situar a história da cura
como formação reativa a toda história de doente, algo como uma
elaboração pós-sincronizada?
No relato freudiano, nodula-se algo do destino ulterior do sujeito.
Assim, um olhar sobre a estrutura discursiva dialogada da história do
pequeno Hans - organizando o " coro familiar" em torno de um solo
progressivamente depurado à medida que se forma a fobia como
resposta à não-resposta dos pais ao enigma fálico - sugere algo da
vocação ulterior de Herbert Graf: aquela, então quase inédita, de
" diretor de ópera" . 69 Não será ao reconhecer seu papel no relato
freudiano que este, tomado adulto, se reconhece e vem apresentar-se
ao seu autor pelo nome de seu papel?

UI. METAPSICOLOGIA DA KRANKENGESCHICHTE

Encontramo-nos ao fim deste percurso, mutatis mutandis, na posição


de Freud, tendo contado a " história do doente" e reorganizando a sua
" análise crítica" (que ele designa por " Epikrisis" ).70 Aqui, é de
" considerandos" metapsicológicos sobre o próprio gênero - a história
do doente enquanto tal - que se trata. A metapsicologia está realmente
em seu lugar aqui: o da pós-história, da Nacherziihlung.71 Isso significa
que um comentário metapsicológico do gênero é bem necessário. Isso
sugere, além disso, que o relato da doença (e de seu sujeito) determina
o próprio relato metapsicológico.

I. As aporias epicríticas

Da pesquisa antecedente, destaca-se em primeiro lugar que a Kran­


kengeschichte não é uma simples " técnica" de relato exterior a seu
objeto (por onde se restabeleceria insidiosamente a subordinação
abstrata da " forma" ao " fundo" ). Freud não continua a contar, uma
vez o tratamento terminado ou o caso tratado e a teoria firmada. O
momento sintomático da angústia da escrita traduz a entrada numa
temporalidade própria em que se desenha uma rede de tramas que se
250 as margens

pode tentar ordenar aqui, numa " epicrítica" do gênero. Essas são
outras tantas aporias que a história deve enfrentar e elaborar.
- No eixo do ato: a história é ao mesmo tempo o traço de um ato
terapêutico e a restituição de uma memória que se destaca da
representação. A história se escreve, pois, no e pelo " tratamento" ,
mas impõe sua própria temporalidade.
Trata-se, com efeito, de remontar do último sintoma à " primeira
mentira" , por reversão da temporalidade. Logo, a história ganha forma
tal como um quebra-cabeças que acarreta um " processo de constru­
ção" . Vamos limitar-nos a recordar aqui o seu aspecto interdiscursivo:
o paciente conta, o analista comunica suas construções72 e é no
entre-dois que se constitui a história. O próprio " ato" deveria ser
apenas um suporte que desapareceria com o advento do relato na sua
autenticidade. Compreende-se por que Freud tem o cuidado de
distinguir a história do doente da história do tratamento, utilizando
ao mesmo tempo a memória do ato terapêutico como trama para
mostrar o surgimento da memória do sintoma.
- No eixo da realidade: a história é ao mesmo tempo uma ficção
útil e o modo de trilhamento de um real. Vimos com que rigor Freud
elabora essa questão central da Darstellung. O que se revela aqui nada
mais é que a " realidade psíquica" (distintiva do " mundo das neuro­
ses" ). A história dá corpo a essa realidade sui generis. A historicidade
fornece em outros termos o meio pelo qual essa realidade é abrangida
em suas modalidades de crise (conflitos).
- No eixo do sujeito: a história é ao mesmo tempo o modo de
" mascaramento" do sujeito e o desenvolvimento de sua " verdade" .
Logo, é estruturada em torno de um " ponto obscuro" central, situado
fora dela mesma; mas, simultaneamente, é o modo de acesso privile­
giado desse " recalcado" atemporal. Ela tem função de " revelação" . ·
É nesse sentido que escrever a história é o único meio de compreender
o sujeito. Dessa maneira, ela iria desatar a velha aporia sobriamente
apontada por Freud: " O Eu (lch) é, no entanto, o Sujeito em seu
sentido mais próprio (das eigentlichste Subjekt); como pode ele
tornar-se objeto ( Objekt)?" 73 Como sabemos, Freud traz nesse contexto
uma resposta estrutural - no registro da Spaltung. Mas, em contra­
partida, a referência à historicidade sublinha seu avesso " genético" :
a " história" , partindo da figura do Egoísta - " o Doente" -, o faz
advir como sujeito de sua própria história, em suas modalidades
objetivantes cujo retrato descrevemos.
o relato 25 1

2. Temporalidade "histórica" e temporalidade metapsicológica

A história do doente é portadora de uma tal dramaturgia que·se impõe


ainda a seu autor a posteriori. Assim, Freud, comentando num
" apêndice" à história do Homem dos Lobos a questão canônica da
realidade da cena primitiva, coloca-se a questão: " Deveria eu, po
intervalo entre a primeira redação (Niederschrift) da história do doente
e este apêndice, ter feito essas novas experiências que me impuseram
uma modificação de minha concepção de origem ( . . . )?"
Aí intervém o argumento do suspense: " Confesso ( . . . ) que tenho
a intenção de concluir desta vez a discussão sobre o valor real da
cena primitiva com um non liquet. Esta história do doente ainda não
chegou ao fim; em seu desenvolvimento ulterior vai emergir um
motivo (Moment) que perturba a certeza de que acreditamos agora
rejubilar-nos." 74
Existe aí mais que um procedimento retórico: a teoria da cena
primitiva insinua-se na trama do relato em que vai atuar, justamente,
esse evento que a " cena primitiva" nomeia. É próprio de um relato
que ali emerja o " novo" que perturba o outro relato (o da teoria). A
teoria abre-se como esse parêntese que, objetivando o evento, se expõe
a sua indeterminação. Freud, comentando seu próprio relato entregue
ao seu próprio " trem" , torna-se então, de certa forma, seu próprio
" passageiro" .
O exemplo aí ainda é " a própria coisa" : é sobre a questão da " cena
primitiva" que esse valor diegético da metapsicologia melhor se atesta.
É por acusar o recebimento desse relato que Freud faz justiça à
" realidade psíquica" . Mas é também por correlacionar a ontogênese
à filogênese - esse princípio do qual faz tanta questão - que ele
dá corpo a este relato de Totem e tabu, que bem poderia ser o coração
de sua originalidade como Dichter: o relato do assassinato do pai é
aquele que a psicanálise permite, pela primeira vez, contar. Verdadeiro
" Era uma vez . . " ,75 dizer da origem que reúne o " individual" e o
.

" social" num mesmo roteiro.

3. A metapsicologia como Nacherzãhlung

Que tipo de relação pensar entre historicidade e a ambição explicativa


da metapsicologia? Tocamos aí na aporia central e final: " explicar"
os processos inconscientes é referi-los a uma " racionalidade" -
252 as margens

tópico-econômico-dinâmica - que se apóia num imaginário epistê­


mico espacial, cena outra que não a da historicidade clínica.
No entanto, vista mai s de perto, a metapsicologia inscreve-se como
reflexão de e sobre um objeto " histórico" : ela não procura senão
compreender o que se passou. A psicanálise, nesse sentido, é o menos
" imaginativo" dos discursos. A metapsicologia seria, pois, a repetição,
sob o modo da " ciência" , do relato do sintoma. E mais: ela conserva,
por seu estilo " genético" /6 os traços dessa historicidade que ela
reflete. Daí essa impressão que Freud, no coração de sua Metapsico­
logia, continua a contar.
Aqui, trata-se apenas dos " roteiros" , cujas " unidades" são os
" lugares" - em seus " deslocamentos" -, as quantidades - em
seus " investimentos" -, e as " forças" - em seus enfrentamentos.
Freud metapsicólogo tomou-se mestre na arte desse relato. O Phan­
tasieren encontra aqui sua função de releitura das histórias. Não há
enunciado metapsicológico que não tenha sua fonte num evento,
fragmento de uma história. A Erlebnis, perdendo sua singularidade,
continua entretanto a animar a narração metapsicológica. É nisso que
a Dichtung neurótica fornece sua substância à exigência da Wahrheit
metapsicológica.

NOTAS AO CAPÍTULO X

1 . Cf. L 'Homme aux rats, Journal d 'une analyse, PVF, 1 974; Freud escreve
"Poesia e ficção" em vez de "Poesia e verdade" (p.35) - erro que se repete à
p.42- 1 1 3 e permanece no texto publicado (in Cinq psychanalyses, PVF, 1974,
p.232). Sobre o contexto desse erro, cf. acima.
2. Imperativo literalmente ético, sendo a ética " aquilo que é evidente por si" .
Sobre essa ligação ética/verdade, cf. nosso esclarecimento in L 'entendement
freudien. Lagos et Ananke, Gallimard, 1984.
3. Sobre a ocorrência mais significativa desse termo, ver p.227.
4. O termo é empregado principalmente a propósito do pequeno Hans: " A
história d o doente e da cura (Kranken-und Heilungsgeschichte), representada nas
páginas seguintes, de um paciente muito jovem." (Análise de uma fobia num
menino de cinco anos, GW VII, p.243), bem como a propósito do Homem dos
Lobos (num contexto interessante, analisado à p.248.).
o relato 253

5. Cf. a declaração a propósito da história do Homem dos Lobos: " Não posso
escrever a história de meu paciente nem de modo puramente histórico, nem
puramente pragmático; tampouco posso dar uma história de tratamento, nem uma
história de doente, mas vou ver-me obrigado a combinar as duas maneiras de
representação" (A partir da análise de uma neurose infantil, setor II, GW XII,
p.36).
6. Esse termo é empregado principalmente num contexto particular, no exame
de Uma neurose demoníaca do século XVII, GW XIII, p.353.
7. Essa reflexão situa-se no começo da "epicrise" da Srta. Elisabeth von R.,
GW I, p.227. A Novelle, " quadro" realista, deve ser distinta da " romança" (ver
infra).
8. Cf. a passagem das Novas conferências introdutórias comentada na p.250,
e Conclusão, p.27 1 .
9 . Daí o constrangimento suscitado pelas reencenações literárias dos casos
freudianos, que ressoam como uma redundância da clínica pelo pathos.
10. Homenagem a . Charcot publicada em 1 893 na Wiener Medizinische
Wochenschrift (n.37), GW I, p.22. Deve-se destacar que Freud tirou essa descrição
de seu " método de trabalho" (Arbeitsweise) do próprio Charcot. As futuras
" auto-apresentações" de Freud são calcadas nessa sintaxe. Cf. sobre esse ponto
nossa obra Le freudisme, PUF, " Que sais-je?" , n.2563, cap. IV, p.64-70.
1 1 . Charcot, op. cit., p.26.
12. Cf., para uma apresentação detalhada, nosso artigo " Charcot et !e théâtra-
lisme clinique" , in Le Scarabée lnternational, n.3-4, 1 983, p.25 1 -63.
13. Charcot, op. cit., p.28.
1 4. Sobre o balizamento metapsicológico da noção, remetemos ao capítulo V.
15. GW I, p.5 1-99. Elas tomam, de resto, a parte do leão.
16. Expressão empregada a propósitp de Emmy v. N., GW, p. l 30.
17. GW VII, p.38 1 .
18. Sabe-se que ela denuncia o adultério paterno a que põe fim, que ela culpa
a complacência materna e acusa com um olhar tão terrível o sedutor Sr. K. que
ele é quase atropelado por um carro...
19. Cf. os acréscimos de 1923.
20. Estudos sobre a histeria, GW I, p.2.
2 1 . Frdulein Else, 1 926; trad. fr. Stock, 1980.
22. É sua amiga Cissy que, curvada sobre o corpo letárgico, profere: " Uma
1..rise de histeria, dizem, eu não sei de nada" , op. cit., p. l 30.
23. Sabe-se que Schnitzler se volta para o teatro depois de ter começado a
estudar medicina e se revela, no mesmo ano dos Estudos sobre a histeria, como
autor dramático.
24. " Penso que o tenho evitado por uma espécie de temor de encontrar meu
dupk."' , confia Freud a Schnitzler em 1 4 de maio de 1 922. " Tive, assim, a
impressão de que o senhor sabia intuitivamente - ou antes, em conseqüência de
uma auto-observação sutil - tudo o que descobri com a ajuda de um laborioso
trabalho aplicado ( ...) Quanto a mim, dou preferência ao investigador" (Corres­
pondance, Gallimard, p.370- l ) .
25. Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade, GW VII, p. l 93
(grifos nossos).
26. GW I, p.86.
254 as margens

27. Cf. nossa análise " Le roman de la faute. Freud et la belle âme" , in Corps
Écrit, n. l 9, PUF, 1 987, p.89-96.
28. Estudos sobre a histeria, GW I, p.292.
29. Sobre a fundação dessa metáfora, referimos ao nosso estudo-prefácio a
Harry Stroeken, En analyse avec Freud, "Freud, romancier du symptôme. Sur
I' écriture clinique freudienne" , Payot, 1 987, p.7-4 1 .
30. Isso é o que ele lembra, incansavelmente, a Wilhelm Reich.
3 1 . Sob esse termo, Hegel designa a criança, encarnação da família, " substan­
cialidade imediata do Espírito" , que " se determina pelo amor" (Príncipes de la
philosophie du droit, § 1 73, Gallimard, p. l 47).
32. Segundo tal inventário dos casos tratados por Freud, o balanço se elevaria
a 1 33 casos, acrescentando-se a 1 2 grandes casos (B. Brody, " Freud' s Cases-Load" ,
in Ruitenbeek H.M., Freud as We Knew Him, Detroit, 1 973). Na obra de Freud,
destacam-se 36 fragmentos nos quais se descrevem as histórias de casos: 15
referem-se explicitamente a pacientes. Isso nos dá uma idéia do afresco que o
Relato freudiano representa.
33. Isso poderia exprimir a própria essência da " novela" que, mais que um
" romance curto" , faria surgir um momento de verdade que objetiva - sob a
forma de uma situação crítica - um " mundo" de outra maneira oculto...
34. Sobre a psicogênese de um caso de homossexualidade feminina ( 1 9 1 7),
GW XII, trad. fr., in Névrose, psychose et perversion, PUF, 1 973.
35. Um caso de paranóia que contraria a teoria psicanalítica da doença.
( 1 9 1 5) GW X, trad. fr. ibid.
36. Id., ibid.
37. É, com efeito, a pedido de um advogado, intrigado pelo conteúdo da queixa,
que Freud intervém como " expert" .
38. Regra lembrada a Pfister, inclinado a generalizações.
39. Carta a Jung de 30 de junho de 1909, in Sigmund Freud, C.G. Jung
Correspondance, carta 149 F, Gallimard, vol. r, p.3 1 7.
40. " Sobre o início do tratamento" , in La Technique psychanalytique, PUF,
1 972.
4 1 . Neurotische Existenl[orm.
42. Análise de uma fobia num menino de cinco anos, Ill, I . GW VII, p.338.
43. Um caso de paranóia que contraria a teoria psicanalítica da doença, GW
X p.234-5.
44. Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise, GW VIII, p.379.
45. História de uma neurose infantil, GW XII, p.36.
46. Recomendações aos médicos, op. cit.
47. Aquele que é evocado em A questão da análise leiga, cujo subtítulo é
" Conversação com um imparcial" .
48. No sentido em que o debate com Wittgenstein o explicita, cf. nosso Freud
et Wittgenstein, PUF, 1988, p.33-88.

49. História de uma neurose infantil, GW XII, p.36.


50. Fragmentos da análise de um caso de histeria, GW V, p. l 70. Deve-se
destacar que o caso Dora permite a Freud um esclarecimento " metodológico"
particularmente longo (que preenche a longa introdução) - o que poderia traduzir
o mai-"Cstar do locutor no limiar desse relato particular...
51. Op. cit., p. l 73.
o relato 255

52. A expressão nasceu, vamos recordar, da estranha reflexão do abade Vertot,


historiador que teve seu período de glória no século XVIII, respondendo a alguém
que lhe vinha trazer informações inéditas sobre o cerco de Rhodes, cujo relato o
abade acabara de fazer: " Meu cerco está feito." Cinismo, no fundo perdoável,
de quem quer proteger a bela retórica do relato, ainda que contra fatos constran­
gedores !
53. GW V, p. 1 73. Sabe-se que a reminiscência é a lembrança que se ignora
como tal.
54. Op. cit., p. l 75.
55. No Capítulo XII, dedicado à síntese geral, " Determinismo, acaso e
superstição. Pontos de vista" GW IV, p.268-70.
56. Será em 1943, depois da morte de Freud, que Herbert Graf vai fornecer
essa indicação, in " Reminiscences of Professor Sigmund Freud" , Psychoanalytic
Quarterly, li, p.465-76.
57. Cf. L 'Homme aux rats. Journal d'une analyse, PUF, 1 974, p.35-99. Trata-se
de uma passagem da I Parte de Poésie et verité, Bibliotheque Charpentier, p.232.
Sobre a análise desse episódio e seu contexto geral, referimos a nosso texto " Le
moment esthétique du symptôme. Le sujet de l' intérpretation chez Freud" , in
Cahiers de Psychologie de l 'Art et de la Culture, n. 1 2, Ecole Nationale Supérieure
des Beaux-Arts, inverno de 1 98617, p. l 4 l s., ein particular p . 1 55-6.
58. No sentido em que Gide a evocou a partir de 1 893, de reduplicação do
próprio relato no interior do relato.
59. Ver o início das Memórias do Homem dos Lobos, verdadeira auto-apre­
sentação pelo seu pseudônimo: " Fui um dos primeiros pacientes de Freud,
conhecido pelo nome de 'Homem dos Lobos ', e escrevo minhas recordações da
infância" , in L 'Homme aux loups par ses psychanalystes et par lui-même,
Gallimard, 1 98 1 , p.21 (grifos nossos).
60. Essa é a expressão empregada desde a primeira apresentação de caso, o
primeiro escrito reproduzido nas Gesammelte Werke, Um caso de cura pelo
hipnotismo (1 892), GW I, 4. Expressão retomada regularmente a partir daí.
6 1 . Introdução ao narcisismo, GW X, p. l 49.
62. Arthur Rimbaud marcaria assim, no dizer poético, o que Emmanuel Levinas
designa como a essência apologética do " eu" ...
63. No sentido delimitado em nosso estudo L 'Entendement freudien, Logos et
Ananke, Gallimard, 1 984, p. l 6-48.
64. O Homem dos Ratos só acalmou-se, conta Freud, com o pensamento
consolador de " ir procurar um médico e pedir dele um atestado (Zeugnis) segundo
o qual sua cura exigia a encenação com David, como ele havia imaginado" . Esse
detalhe não figura no relato do caso, mas no Diário da análise (op. cit., p.
60- 1162-3).
65. Sobre a psicogênese de um caso de homossexualidade feminina, GW XII,
p.27 1 .
66. Não por acaso, Freud cita o exemplo de seu próprio filho, ouvinte exigente
de " histórias" , que se afastava com desprezo quando ficava claro que a história
contada não tinha ocorrido na realidade - exigência teimosa de Wirklichkeit.
67. Sabe-se agora que Rosa Herlinger, mãe de Ernst Lanzer, fora criada como
filha adotiva da rica família Rubensky, de modo que representava, na sua própria
família, o prestígio social, mesmo quando parecia ser vista com pouca consideração
256 as margens

pela família adotiva. Sabe-se que ela sonhava com o casamento do filho com uma
moça daquele " clã" , que representava o sucesso social.
68. Análise terminável e interminável, setor I, GW XVI, p.62.
69. Cf. nosso texto " Opéra et mise-en-scene des voix du désir. Genese d'une
vocation" , in Corps/Écrit n.20, 1 987, p.69-76.
70. " Análise crítica" , nomeada como tal, dos Estudos sobre a histeria às
histórias de análises, GW I, p. 1 4 1 , 1 80, 194, 227; GW VII, p.336.
7 1 . O termo designa em alemão um " resumo" , a se entender literalmente como
só-depois do relato (pós-relato).
72. Construções em análise, 1 937.
73. Novas conferências introdutórias, GW XV, p.64.
74. GW XII, p.90.
75. GW IX, p. 1 7 1 : " Um dia ... " Vai-se notar a importância da " lei biogenética
fundamental" , relato acoplado da ontogênese e da filogênese.
76. Método reafirmado até no Esboço de psicanálise (segunda versão, 1 938):
o " método de apresentação genética" (genetische Darstellung) é aquele calcado
no relato da aquisição dos " resultados" pelo "pesquisador" (GW XVII, p. l 4 1 ).
CONCLUSÃO

O SUJEITO
A função metapsicológica

O sujeito da psicanálise

O que se vai tratar aqui, parcialmente ligado a uma elucidação


epistemológica do conceito de sujeito em psicanálise, já se deixa notar
pela ambigüidade reveladora da expressão: " sujeito da psicanálise" .
Como se deve entender o possessivo que liga o sujeito à psicanálise?
Deve-se entender isso no sentido em que a psicanálise fala de um
(certo) sujeito? Nesse caso, tratar-se-ia aqui do sujeito de que fala a
psicanálise e que ela " freqüenta" , em torno do qual ela organiza seu
" saber" e sua " prática" . A menos que se trate do sujeito que ela
postula, ou ainda, que comanda a racionalidade psicanalítica: caso em
que esse possessivo seria " de duplo corte" , uma vez que a psicanálise
não se limitaria apenas a " possuir" seu sujeito, ela seria literalmente
possuída por ele, já que seria atualizada unicamente pela sua existência.
É precisamente entre essas duas acepções que vamos nos deslocar.
Correlativamente, quanto a esse sujeito, deve-se escrevê-lo com
minúscula, como impõe o uso médico - como esse sujeito a que se
refere a psicanálise como toda prática ambiciosa, senão com finalidade
terapêutica - ou com a maiúscula que lhe conferiu a tradição filosófica
e metafísica?
O emprego do termo parece impor uma equivocidade inevitável,
como se o conteúdo do conceito fosse determinado pelo uso da noção.
A referência ao Sujeito garantiria à psicanálise uma legitimidade como
instância autônoma, ou a psicanálise deveria responsabilizar-se por

257
258 as margens

essa autonomia? Estaria ela, conforme o jogo de palavras revelador,


assujeitada a essa instância que, no entanto, ela postula com base na
autonomia e na especificidade de sua prática e de sua razão próprias?

O paradoxo do sujeito

O paradoxo é que a psicanálise testemunha que o SUJeito é o


" preconceito necessário" de sua teoria e de sua práxis. Mais precisa­
mente, " pressuposto" , esse ela produz desenvolvendo sua experiência
sui generis: ela define a categoria de sujeito através do uso que dele
faz e que exige, correlativamente, sua construção metapsicológica.
Logo, vamos partir de um paradoxo. Por um lado, a experiência e
a teoria analíticas parecem testemunhar uma referência ao sujeito
como suporte da teoria e da prática: vamos entender que é de um
sujeito que se trata aqui como ali , à falta do que teoria e prática
analíticas não se autorizariam por nada. Mas, por outro lado, esse
pressuposto parece distinguir-se por dever permanecer inexplicitado
e como que em " estado discreto" . E com razão: é somente no campo
da filosofia que o conceito poderia receber sua fundação propriamente
dita.
Tal é o paradoxo que faz trabalhar a metapsicologia: que deve ser
o " sujeito da psicanálise" para ser assim incessantemente postulado
- de modo que esta nos parece realmente a estrada real para pensar
a intervenção da psicanálise no campo do saber - e tão pouco
" fundado" ? Isso se atesta, em especial, por um fato de vulto: o caráter
inoperante da categoria de sujeito em Freud, que dela faz tão pouco
uso explicitado e normativizado quanto de qualquer outro instrumento
filosófico, mesmo quando a função " sujeito" atravessa toda a sua
teoria e sustenta sua práxis. Depois de Freud, se o conceito recebeu
um estatuto psicanalítico, a noção desenvolveu-se paralelamente sem
manter suas ambições de fundação: quem não encontrou em seu
caminho o famoso " sujeito do desejo" , ou desejante, que só se legitima
por um piscar de olhos à tradição filosófica e por um jogo sobre a
equivocidade do termo, do lagos filosófico ao vocabulário " médico" ?
Vai-nos ser preciso, pois, partir de uma genealogia do conceito de
sujeito no seu processo de engendramento metapsicológico. Esta nos
servirá para apreender, em seu caráter " indígena" , a "função sujeito"
em psicanálise. Assim poderá surgir o porquê de o uso do conceito
dever manter-se aparentemente nesse lugar movediço de necessidade
o sujeito 259

e de fundação adiada; o que permitirá ver como a revolução meta­


psicológica se inscreve, como efeito de retorno, na genealogia do
sujeito na tradição filosófica.

1. Gênese metapsicológica do "sujeito"

Ainda nos é necessário, para ver como Freud conquistou essa idéia,
partir de um traçado desse percurso onde três tempos se dão a
distinguir.
1 ) Na medida em que quer pensar em termos de processos, como
exige sua teoria da libido, Freud quer ao mesmo tempo fazer a
economia de todo conceito de " personalidade" .1 Isso é o que inaugura
a primeira fase de sua omissão expressa de um ponto de vista da
subjetividade. A " objetalidade" domina nesse primeiro tempo, a ponto
de excluir qualquer ponto de vista " subjetivo" (no qual ele só teria
visto uma retórica filosófica sofisticada e principalmente inútil). O
Eu, então, é concebido apenas como aquilo que " segue" o destino
do recalcamento do objeto libidinal: é nesse último plano que atua o
essencial.
2) Ora, a sombra do Eu começa a se estender sobre o objeto a
partir da introdução ao narcisismo, nos anos 1 9 1 0- 1 9 14. Introduzir o
narcisismo na teoria psicanalítica não será reconhecer, ao fim da
polêmica com Jung, que doravante é necessário um ponto de vista
" subjetivo" para a problemática do recalcamento? É verdade que Freud
nada mai s vê na instância ideal eu-óica do que uma " razão de recalcar" ,
mas esta é, justamente, a razão. O que assim " decide" que isso é
insuportável e aquilo insignificante, não será o que faz a divisão entre
um sujeito e outro?2 Paralelamente, o Eu é decifrado na " experiência
de satisfação" como desempate do prazer e da realidade.
Num desenvolvimento ulterior, o Eu se vê " instituído" pela segunda
tópica como instância própria (o que, em suma, chega tarde demais).
Sobretudo, o Eu só encontra seu reconhecimento acompanhado da sua
estrutura simbólica (supereu-óica), como se uma caminhasse neces­
sariamente ao lado da outra (veremos toda a verdadeira significação
desse fato conhecido). Por outro lado, justo no momento em que o
Eu é assim entronizado, ele vê se erguer diante de si a potência
considerável da " pulsão de morte" introduzida no mesmo momento:3
essa compulsão à repetição inscreve-se até o coração do sujeito que
aí se põe em jogo.
260 as margens

3) Resta um último tempo, o mais espetacular talvez: num de seus


últimos textos, Freud introduziu a noção de Spaltung (clivagem) do
Eu (A clivagem do Eu no processo de defesa, 1 938). O que Freud aí
descreve é uma possibilidade inédita - embora ele se questione quanto
a i sso: a possibilidade, para o Eu, de se cindir sob a pressão da ameaça
de castração (e não de se separar do " objeto" , como na figura anterior).
A renegação da realidade da ameaça inscreve-se no Eu por esse
" rasgão" (Einriss) no Eu, rasgão que nunca mais será curado, mas
que crescerá com o tempo...
De fato, é à origem da psicanálise que se deve remontar para
apreender o que está em causa. Sabe-se que é no encontro com a
" cena primitiva" (Urszene) do trauma sexual que se decide a relação
da psicanálise com a sua esfera de objetividade própria. Ora, foi ao
hesitar, como se sabe,4 sobre a realidade do testemunho dos próprios
neuróticos quanto ao conteúdo da cena primitiva que Freud se pôs a
caminho do verdadeiro problema.
Pois o sujeito da cena primitiva, exposto pela primeira vez ao apelo
do Outro, mas também à sua " primeira mentira" (proton pseudos), é
propriamente o sujeito da psicanálise que procuramos demarcar. É
nessa hesitação patética de Freud que ele se desenha: o sujeito não
disse a verdade, logo, devo escolher entre seu testemunho e a verdade.
Sim, o sujeito disse a verdade, mas ele próprio está capturado no
impasse de sua verdade e de seu não-sabido. Ali ganha forma o sujeito
visado pela psicanálise e cuja estrutura somente ela pode revelar, já
que ela o experimenta como tal em sua origem, através da ambigüidade
do saber a partir daí produzido.
Com efeito, depois de ter visto no trauma primitivo relatado a causa
real da neurose, Freud deve reportar-se ao sujeito do relato e ali
observar, aprisionado neste, o sujeito inconsciente. Nessa vacilação
dos modelos tradicionais da verdade, Freud compreende o que quer
dizer " tomar seu desejo pela realidade" . É nesse ponto que se instrui
o sujeito da psicanálise. Ele não mentiu, disse mesmo a verdade, mas,
como não sabe essa verdade como tal, esta não é a verdade do mundo.
É necessária a intervenção do saber analítico para constituir o sujeito
como lugar-tenente da sua verdade. Compreende-se que Freud tenha
abordado o sujeito como pseudo-unidade, mas que simultaneamente
o tenha devido postular como essa ambigüidade " primitiva" neces­
sária. A teoria do inconsciente, no fundo, não passa do desenvolvi­
mento das condições de possibilidade desse " falso testemunho"
originário e necessário.
o sujeito 26 1

Ora, na cena primitiva, é do Outro que fala o sujeito, do que o


Outro quer dele e, inextricavelmente, do que deve ser ele mesmo para
querer mal ao Outro. Revelação de uma mensagem desse outro no
qual ele está implicado para esse " prazer" , que vale ao mesmo tempo
como o pior e o melhor, e sem que o( a) interessado(a) possa encontrar
seu nó de articulação. A partir daí, é preciso, incessantemente, falar
dessa relação ao mesmo tempo impossível e necessária: reviver a cena
primitiva é reviver-se, aceder à " reflexividade" de seu próprio desejo.
A verdade foi realmente dita, mas quem sou eu, senão o sujeito dessa
relação dividida comigo mesmo? Tal é a et;:tranha sabedoria que a
psicanálise tira de seu sujeito.

2. A "palavra" e a "coisa": a gênese do "subjetivo"

A gênese precedente deve ser especificada por duas considerações:


- Uma constatação clínica, em primeiro lugar: a relativa raridade
do termo Subjekt no texto freudiano, bem como de seu derivado (o
adjetivo " subjektiv" , subjetivo). Fato tanto mais revelador quanto seu
" antônimo" natural, o termo Objekt, é objeto, precisamente, de um
uso freqüente e centraL Esse contraste contém um primeiro ensina­
mento: tudo se passa como se, justamente, a oposição semântica
sujeito/objeto não funcionasse como tal em Freud, o que se deve
entender em dois sentidos: por um lado, a " linhagem" do Objeto é
de certo modo " hipertrofiada" - a ponto de se poder falar de uma
" doutrina metapsicológica" do Objekt, que não encontra seu " respon­
dente" nem seu equivalente na " linhagem" do Subjekt; por outro
lado, na medida em que o Sujeito, todavia, vai introduzir-se, com
extrema parcimônia, e depois, irresistivelmente, em oposição ao
Objeto, como seu " avesso" .
Para exprimi-lo mais diretamente: tudo se passa como se a elabo­
ração metapsicológica devesse ou quisesse " fazer com o Objeto" , e
o mínimo possível " com o Sujeito" , pelo menos até o momento em
que sua (re)introdução se faz inevitável - o que, de resto, só dá mais
relevo, e portanto · mais alcance, ao evento metapsicológico que é o
uso do termo e a " colocação em função" da noção.
Precisamos, pois, assumir de alguma forma essa dissimetria, sem
nos apressar em " normalizar" essa espécie de " claudicação" , em si
mesma significativa. Mas isso impõe, correlativamente, observar com
cuidado as ocorrências em que, justamente, o Subjekt " emerge" no
262 as margens

texto freudiano e o que justifica sua intervenção, o que determina


simultaneamente seu conteúdo.
Não se encontra em Freud a preocupação de levar em conta, de
maneira complementar, " sujeito" e " objeto" - como no " utraquis­
mo" de Ferenczi :5 antes, é assumindo e " gerando" a dissimetria que
ele progride aqui.
- Daí o segundo ponto:
O ensaio sobre A denegação parece dar uma explicação para esse
efeito de " dissimetria" sublinhado acima: Freud nota ali, com efeito,
que " a oposição ( Gegensatz) entre subjetivo e objetivo não existe
inicialmente" :6 é essencial para a doutrina metapsicológica provar que
essa " oposição" não é originária e que deve, pois, surgir de um certo
processo de diferenciação. Observação capital, pois é precisamente
essa oposição que pode reivindicar a função de " pressuposição" lógica
e judicativa fundamental: a teoria do "juízo" inconsciente contida no
exame da Verneinung tem por trama, justamente, ver surgir de certa
maneira essa oposição.
Deve-se recordar, com efeito, que o "juízo" é definido por Freud
exclusivamente em referência à instância do objeto: " A função de
juízo ( Urteilfunktion) tem essencialmente duas decisões a tomar. Ela
deve atribuir ou recusar uma propriedade (Eingenschaft) a uma coisa
(Ding), e deve conceder ou contestar a uma representação (Vorstellung)
a existência na realidade.'' 7 Diríamos que a " representação" já supõe
o " subjetivo" : ora, Freud apresenta o "juízo" , antes, como um " ato"
ou " decisão" sobre o objeto de certa forma requerida pelo Objeto ou
pela Coisa, seja interno (propriedade), seja externo (existência). Esse
" primado" lógico do Objeto procede deste fato capital de que uma
" representação" ( Vorstellung) é derivada de uma " percepção" (Wahr­
nehmung): e é preci samente aí, nessa lógica " empirista" , de certa
maneira, que se vê surgir in statu nascendi a " oposição" entre o
" objetivo" e o " subjetivo" : " Ela só se realiza pelo fato de o
pensamento possuir a capacidade de tornar novamente presente, por
reprodução na representação, algo que foi uma vez percebido, mesmo
quando o objeto não tem mais necessidade de estar presente no
exterior." 8
Essa dupla consideração - contraste entre a necessidade implícita
de uma " função sujeito" e raridade léxica do termo, por um lado, e
o ponto de vista genético da oposição subjetivo/objetivo em relação
com uma concepção geral do juízo, por outro lado - obriga-nos a
" afinar" o traçado geral da gênese precedente. Trata-se, com efeito,
o sujeito 263

de determinar, para cada um dos regimes metapsicológicos dessa


" função sujeito" , como a " palavra" (Subjekt) é ou não utilizada para
designar a " coisa" . Trata-se, por outro lado, de restituir a gênese
dinâmica dessa teoria funcional da subjetividade, que se redefine a
cada momento-chave da metapsicologia.

3. O primeiro regime metapsicológico do "sujeito": sujeito da


"constituição" e objeto libidinal

Se o " subjetivo" não tem, por princípio mesmo, estatuto na teoria da


libido antes da introdução do narcisismo, é fundamental observar que
uma linha de reflexão assumiu continuamente a questão de um aquém
da realidade (histórico do vivido) e das tribulações - elas mesmas
" históricas" - do objeto: é a questão da " constituição" .
Designa-se, com efeito, sob esse termo Konstitution um " dado"
ou disposição (Anlage, Disposition) de natureza hereditária - que o
sujeito traz consigo ao nascer - e que se opõe, em conseqüência, ao
registro do " vivido" (Erleben), adquirido do próprio desenvolvimento.
É notável, por um lado, que Freud jamais tenha cessado, do começo
ao fim da metapsicologia, de mencionar esse " fator constitucional" ;
por outro lado, que, longe de seguir os passos da teoria da " degene­
ração" legada por Magnan à psiquiatria, ele tenha feito dela um uso
renovado na sua teoria da etiologia sexual da neurose.
A Konstitutionslehre freudiana interessa-nos aqui na medida em
que teve por função, se repararmos bem, pensar essa organização já
ali antes mesmo que se situasse uma relação com a realidade e com
o Outro: necessidade, igualmente, de abrir l ugar para algo que é, a
título de fator " endógeno" , preexistente à relação de objeto -
entendendo-se que isso abre o problema dessa própria " temporalida­
de" : como pensar esse " antes" que acompanha e " duplica" (na medida
em que a " precede" ) essa relação com o " fora" (como objeto e
realidade)? A questão da constituição está longe de esgotar a questão
do " sujeito" (sob um certo ponto de vista, ela iria, antes, fixá-la):
mesmo assim ela vai fornecer, ao que parece, o fundamento da metáfora
estrutural sobre o qual se recortará a questão do próprio sujeito, desde
antes que a terminologia mesma do " sujeito" se imponha.
É preciso, antes de mais nada, recordar o papel desempenhado pelo
fator constitucional na concepção da libido infanti l : se é verdade que
" a criança pode tornar-se um perverso polimorfo sob a influência da
264 ' as margens

sedução e ser conduzida a todas as transgressões possíveis" ,9 isso


supõe ao mesmo tempo que o evento (" histórico" ) da sedução pelo
Outro seja requerido - a criança não sendo " perversa" por natureza
-, mas também que o sedutor " mobilize" de certa forma algo que,
na criança, deve já estar presente, uma certa aptidão própria (Eignung)
que a criança " traz na sua disposição" (Anlage ). O que é assim
pensado é a necessidade, na experiência da sedução e da " mobilização"
da pulsão, de um sujeito " seduzível" . Vê-se em que a determinação
constitucional é " vetor" do " sujeito" (como função, o termo não
sendo, evidentemente, utilizado, já que não depende do mesmo
registro).
Assim fazendo, Freud nada concede à teoria da " degenerescência"
de Magnan, que criou o hábito de postular uma Degeneration, em
toda parte onde não é observável, num distúrbio, uma " origem
traumática ou infecciosa" . 10 Conceito tão amplo que é tão inútil quanto
perigoso. Freud vai ironizar o uso da palavra de ordem dos psiquiatras
que, quando encontram " os maus e spíritos da vida psíquica" que são
os sintomas neuróticos, exorcizam-nos com palavras mágicas: " De­
generescência, disposição hereditária, inferioridade constitucional." 1 1
Certamente, não é dessa constituição que s e trata n o emprego meta­
psicológico.
De que se trata então? Freud adverte de saída, num esclarecimento
essencial para seu discurso, que, nele, a " constituição sexual" subs­
tituiu a constituição como " disposição neuropátic a geral" 12 (com a
qual Charcot ainda atuava). Mas ele não fez apenas " sexualizar" a
" constituição" : inseriu-a numa dinâmica psicossexual.
Esse papel aparece no momento de verdade em que se renuncia à
realidade da " cena originária" : é muito revelador que Freud tire daí
a conseqüência no plano do papel respectivo do fator constitucional
e do fator " histórico" : tendo renunciado à " ênfase excessiva dada à
influência acidental da sexualidade" na " causação" da neurose13
(embora, Freud o sublinha, os " fatores constitucionais e hereditários
nunca tenham sido negados" ) a relativização desse elemento acidental
impõe uma espécie de retorno do " estabilizador" no eixo constitu­
cional: " Com a retirada das influências acidentais do vivido (Erleben),
os fatores da constituição e da hereditariedade deveriam novamente
afirmar sua dominação." Ora, isso se traduz pela ênfase recolocada
no lugar certo, o do próprio " sujeito" da sedução: se, com efeito, a
cena de sedução tem um efeito patógeno, sem relação direta mecânica
o sujeito 265

e universal com a realidade do vivido, é na " realidade psíquica" do


sujeito que se deve localizar o centro de gravidade de sua significação.
Mas existe uma precisão ainda maior: Freud não pode mais, desde
então, contentar-se com esse efeito de " rebate" do fora ao dentro: o
que se esboça é uma concepção da " série complementar" (Ergiinz­
ungsreihe = literalmente, série de complementação) entre os dois
" fatores" . Esta não é um simples compromisso com o fim de equilibrar
os fatores do " meio ambiente" e do s ujeito: é, observando melhor, o
esforço mais puxado para dar conta da articulação entre os fatores de
fixação do desenvolvimento de objeto e do evento subjetivo constituído
pela ''entrada na neurose" .
Não é, sem dúvida, por acaso, desse ponto de vista, que no momento
em que a introdução ao narcisismo se prepara é que Freud sistematiza
essa " montagem" .
Para dar conta das fixações patógenas, é necessário referir-se aos
dois fatores da vida infantil: " as direções pulsionais ( ... ) que a criança
trouxe na sua disposição inata" e as " influências exteriores, os eventos
acidentais" que " despertam e ativam" a pulsão. Não se trata de negar
o aspecto constitucional, mas " a experiênci a analítica nos obriga a
admitir que eventos puramente fortuitos da infância são capazes de
deixar como seqüela fixações da libido" , 14 Freud lembra aqui que,
afinal, essas " disposições constitucionais" foram adquiridas pelos
ancestrais, sendo, portanto, efeitos retroativos (Nachwirkungen). É
então que se produz um desdobramento decisivo: da " di sposição
herdada" (ererbte Anlage) se distingue uma " disposição adquirida"
(erworbene Disposition) na primeira infância.15 Essa " disposição"
chega, pois, a englobar, por um lado, " a constituição sexual" (ou
" vivido pré-histórico" ) e o " vivido infantil" .
Em outras palavras, entre os dois pólos da dualidade tradicional
da " constituição" e do " vivido acidental" abriu-se essa dimensão do
infantiles Erleben: esse fator é, vamos observar, " endógeno" - já
que distinto do vivido acidental (traumático) -, mas também distinto
da " constituição sexual" bruta. Esta forma, portanto, uma " série de
complementação" com o vivido infantil (do mesmo modo que a
disposição e o vivido acidental do adulto).
Seria preciso deter-se neste ponto, pois se sente aqui a necessidade
metapsicológica de encontrar uma espécie de a priori funcional que
torne possível o trauma, pelo lado do sujeito, sem reduzi-lo a um fato
constitucional bruto, espécie de upokeimenon. 1 6
266 as margens

Esse " sujeito da constituição" , portanto, deve ser finalmente situa­


do num ponto, por definição altamente equívoco, do " dentro" e do
" fora" . É algo que está na base, " à espera" do trauma, mas que
precisa ser " atualizado" . É por isso que Freud vai recordar, até o fim,
a importância desse dado constitucional, quando terá o cuidado de
notar que " um reforço pulsional intervindo mais tarde na vida pode
manifestar os mesmos efeitos" . 1 7 Portanto, existe realmente uma
" força pulsional" sempre já lá, mas que se mantém por inteiro na sua
" atuação" .
Restituído à gênese da " função sujeito" , esse momento " constitu­
cional" assume, pois, sua significação: tudo se passa como se a
necessidade de pensar uma " causa" subjetiva do sintoma, inicialmente
sem sujeito, se houvesse deslocado para o lado da " própria condição
do recalcamento" narcísico. A " costura" constitucional, sem jamais
desaparecer, toma-se, portanto, cada vez mais tênue.

4. O segundo regime metapsicológico do sujeito: o "sujeito


narcísico"

É muito curioso observar que Freud emprega o termo Subjekt no


momento em que descreve o duplo destino pulsional da " reversão em
seu contrário" e do " retomo sobre a própria pessoa" , para designar
a " pessoa estranha" encarregada de assumir o " papel do sujeito" :
assim, o " algoz" do masoquista ou a tercei ra testemunha a quem se
dirige o exibicionista.
Em que se baseia essa escolha do termo? Desta vez, é a simetria
com " o Objeto" que é mobilizada. Assim, a passagem do " sadismo
ao masoquismo" opera-se pela passagem da violência exercida " contra
uma outra pessoa como objeto" que, uma vez que esse objeto é
" abandonado" e substituído pela " pessoa própria" , busca uma " nova
pessoa estranha" como objeto; mas, dado que houve uma mudança
de objetivo - da " atividade" à " passividade" -, a esse terceiro
cabe o " papel do sujeito" . 1 8 Deve-se, poi s, entender que o masoquismo
lhe atribui um papel ativo: vamos observar, todavia, que este papel
é uma forma de utilizá-lo, ainda - fantasisticameme - como objeto.
Assim, a mulher-algoz é entronizada no papel de Sujeito - aliás,
com todas as suas prerrogativas de soberania -, mas ainda está ali
seu " modo de emprego" como objeto, levando-se em conta o " ganho
pulsional" que disso retira o sujeito (que se " sujeita" a isso !).
Do mesmo modo, a passagem do voyeurismo ao exibicionismo
descreve a passagem de uma ati vidade escópica dirigida para " um
o sujeito 267

objeto estranho" ao " abandono do objeto" e o retomo da " pulsão de


ver" para uma parte do corpo próprio, pela qual ela se toma passiva:
ao fim desse percurso, requer-se a " localização de um novo sujeito a
quem se mostrar para ser contemplado por ele" . 19 Chama-se, então,
" sujeito" aqui ao destinatário do espetáculo - sobre quem se confirma
que ele é convocado a se submeter aparentemente ao espetáculo: mas,
examinando-se com atenção, ele é posto no lugar, ainda que como
" vítima" , de um sujeito soberano do olhar, para o qual o exibicionista
se constitui em objeto e de quem exige, além disso, que faça o mesmo !
Esse uso do termo Subjekt é interessante na medida em que define
um " papel" , isto é, um modo de " entronização" que faz simetria com
o objeto. Logo, é uma espécie de soberania " administrada" . No caso,
esta não é nem uma instância eu-óica - é, ao contrário, o lugar do
Outro - nem uma marca de " autonomia" , já que é um lugar onde
esse Outro deve advir, à revelia! Mas nesse lugar ele é intimado, é
verdade, a exercer uma atividade, ele ocupa uma posição de " mestria"
- no quadro de manobras narcísicas do " encenador" , devemos
lembrar. Em resumo, o Subjekt designa aqui o " eu estranho" (jremdes
Ich) posto em situação de " objeto ativo" ! Retomo, sob a forma do
Outro real, da relação simultânea com o objeto e " consigo" !
Mas esse exame das tribulações pulsionais vai ter um segundo
ehito, decisivo: o de introduzir essa noção de " sujeito narcísico" (das
narzistische Subjekt):20 essa expressão que, é essencial destacar, parecia
supérflua no próprio momento da " introdução ao narcisismo" - onde
Freud se contentava com a oposição entre uma " libido de Objeto" e
uma " libido do Eu" , como se o Eu fosse um objeto auto-investido
- impõe-se aqui com todo o seu peso. E é essa expressão que vai
abrir caminho para um fato importante: a identificação do " eu" (lch)
ao " sujeito" (Subjekt) na terminologia metapsicológica.
Como esse " sujeito narcísico" surge no texto freudiano? Justamente
no comentário da alquimia pulsional anteriormente descrita. O " nar­
cisismo" é, com efeito, introduzido - pela primeira vez nesse ensaio
da Metapsicologia - para dar conta desse jogo de retomo/reversão
pulsional. O que é de fato determinante, no voyeurismo/exibicionismo,
tanto como no sadismo/masoquismo, é esse investimento narcísico
que busca sem cessar " escapar" numa série de " retornos" . Sob a
forma " passiva" , a pulsão de ver " mantém o objeto narcísico'' , assim
como o masoquismo marca " um retomo ao objeto narcísico" . É
essa última noção que vai " convocar" a expressão preciosa: " Em ambos
os casos" , constata Freud, " o sujeito narcísico é trocado, por identi-
268 as margens

ficação, com um outro Eu estranho." Momento particularmente difícil


da teorização metapsicológica, j á que nos coloca na encruzilhada de
múltiplas determinações: o " sujeito" dito " narcísico" opõe-se, por­
tanto, enquanto " narcísico" , ao " outro Eu estranho" (aquele mesmo,
vamos notar, que Freud qualificava acima de " sujeito" ) e - enquanto
" sujeito" - ao objeto (no interior do registro narcísico). Trata-se,
pois, de uma " troca" - do Narciso-sujeito pelo Narciso-outro - que
se produz por " identificação" (a do exibicionista com sua " vítima"
ou do masoquista com seu " algoz" ) . Mas, precisamente, é essa " troca"
que permite compreender essa subjetivação narcísíca. Em outras
palavras, o narzistische Subjekt não é uma " essência psíquica" e
menos ainda " transcendental" : nós o vemos surgir como " parceiro"
dessa troca: com efeito, é apanhado em flagrante delito de " identifi­
cação" que ele revela sua função " subjetiva" . A " subjetividade
narcísica" não é outra senão a que é posta em jogo na relação de
desinvestimento (do objeto) e de identificação (com o outro Eu) -
o que Freud chama, com uma insistência que confina com o pleonasmo,
" o outro Eu estranho" (para distingui-lo do " eu próprio ou indígena" ! )
É nesse sentido também que Freud vai designar o hipnotizado como
" o sujeito" .
Logo, o caminho está livre para se assimilar o Sujeito ao Eu, o
que se escreve em Freud " Subjekt (lch)" .21 Convém não ver aí uma
simples homonímia (Sujeito = Eu), mas o resultado de um processo
em que os dois termos se deixam distinguir por seu valor de uso
respectivo.
Com efeito, é inserido numa " polaridade" que o lch é assim
identificado ao Sujeito. Polaridade com o " mundo exterior" , que faz
parte, ela mesma, das três polaridades ou " oposições" requeridas para
se pensar essa " polarização" fundamental do amar/ser amado (com
as polaridades " prazer/desprazer" e " ativo/passivo" ).
Assiste-se, com efeito, a u m redeciframento do princípio de " vasos
comunicantes" , narcisismo/objeto, em termos de " troca" : " Conforme
o objeto ou o sujeito (das Objekt oder das Subjekt) venha a ser trocado
por um (objeto ou um sujeito) estranho, produz-se o esforço de fim
ativo do amar, ou o esforço de fim passivo do ser amado."
Vê-se a complexidade da referência ao Subjekt: por um lado, ele
serve para decifrar a fórmula genérica do amor - em simetria com
o Objeto; por outro lado, ele figura como uma das três polaridades
(a primeira mencionada, é verdade) em oposição ao " mundo exterior" .
Trata-se, neste último caso, de uma oposição (de tonalidade quase
fichteana)22 entre " Eu" e " Não-Eu" (exterior) (lch - Nicht-lch
v sujeito 269

(Aussen)), ou então " Sujeito-Objeto" (Subjekt-Objekt). Oposição entre


o " dentro pulsional" e o fora (no sentido " motor" ), bem conhecida.23
O que se perfila, então, é uma " situação originária" ( Ursituation),
na qual " o Eu se encontra originariamente, no início da vida psíquica,
pulsionalmente investido ( . . . ) nessa época, o Eu-sujeito (lch-Subjekt)
coincide com o prazeroso (Lustvoll)" ,24 em oposição ao " desprazero­
so" ou o " indiferente" , que permanece fora. O que se delineia, pois,
é o " recobrimento das duas polaridades" , de onde emerge " o Eu-su­
jeito - com prazer" (em oposição ao " mundo exterior com despra­
zer" )/5 em suma, um " Eu-prazer purificado" .
- Podemos avaliar agora o caminho percorrido, neste momento
impressionante da metapsicologia freudiana.
O Subjekt fez sua aparição de início no quadro de uma concepção
literalmente " intersubjetiva" , para designar o uso " funcional" do " Eu
estranho" - numa estratégia narcísica, é certo, mas como " outro-Eu" .
Em um segundo tempo, impõe-se a idéia de uma instância do
" sujeito narcísico" para fundar precisamente o fenômeno capital da
" identificação narcísica" (com esse " outro Eu" ): Narciso toma-se
então " sujeito" !
Enfim, a " função sujeito" se impôs, como polaiidade principal -
a partir do vaivém sujeito/objeto -, remetendo a uma " situação
originária" , a do " Eu-prazer" (demarcado da realidade).
O conjunto dessa " seqüência" desenvDlve-se no interior do mo­
mento narcísico da elaboração do conceito de sujeito em Freud. Mas
vemos precisamente que:
a) por um lado, o " Eu" é promovido inegavelmente como " Sujeito"
- sob a condição de se ver nele uma " função" (segundo as diversas
" figuras" restituídas) e não uma " natureza" ;
b) por outro lado, o termo " sujeito" permanece presente, de maneira
infinitamente mais parcimoniosa, que o " eu" , justamente porque o
" eu" designa uma instância metapsicológica de pleno direito (tópica),
enquanto o " sujeito" designa uma " função" que é endossada, neces­
sária mas pontualmente, pelo " eu" .

5. O terceiro regime metapsicológico do sujeito:


do Eu sedimentado ao Eu clivado

As relações entre o conceito de " eu" e o de " sujeito" são portanto


complexas, e Freud parece ter querido conservar de certo modo sua
dose de equívoco necessária para pensar duas coisas ao mesmo tempo:
270 as margens

por um lado, que é inteiramente legítimo, e mesmo necessano,


considerar o " eu" como sujeito, o " eu" enquanto sujeito; por outro
lado, não se poderia induzir daí que o " eu" seja simplesmente o
sujeito. É mais exato considerar que existe " uma parte objeto" e uma
" parte sujeito" do " eu" .
Isso fundamenta o metapsicólogo para falar em " objeto do eu" (o
que é natural), mas também em " sujeito do Eu" , o que é menos
concebível: se podemos imaginar que o Eu " é" ou funciona como
sujeito, como imaginar que o Eu " tenha" um sujeito? O contexto
desse tipo de uso é fornecido justamente pelo exame da " identifica­
ção" , no capítulo de seu ensaio " Psicologia de grupo e análise do
Eu" , onde ele procede a uma retificação maior - e isso, não por
acaso, no momento de destacar as conseqüências da identificação
narcísica no plano do laço social. Distinguindo " a identificação com
o pai" ( Vateridentifizierung) e a " escolha do objeto paterno" ( Vate­
robjektwahl), ele escreve: " No primeiro caso, o pai é o que se gostaria
de ser, no segundo, o que se quereria ter. Logo, a diferença é que a
ligação (Bindung) incide sobre o sujeito ou o objeto do Eu (am Subjekt
oder am Objekt des Ichs). " 26 Portanto, tudo se passa, nessa formulação
realista preocupada em descrever uma situação diferencial, como se
o Eu fosse " dotado" de um objeto e ... de um sujeito - de sorte que
querer ter o pai seria fazer um laço com ele enquanto objeto e querer
ser como ele - identificar-se com ele - seria fazer uma ligação com
o Outro paterno enquanto sujeito. Tal é, aliás, a definição mais concreta
da identificação paterna: ela dá ocasião ao " eu" de exercer e endossar
sua função de " sujeito" . O Pai é o que permite ao Eu exercer sua
" parte-sujeito" (em que há uma função paterna insubstituível).
O caminho para um pensamento da sedimentação do Eu, aberto
desde a introdução ao narcisismo, revela-se em toda a sua importância
no terreno das tribulações identificatórias, mas também ideal-eu-óicas
(tão importantes para a " socialização" do sujeito). O que se deve
pensar é, com efeito, " uma fase (Stufe) no Eu" 27, verdadeira prega
geológica numa instância supostamente " indivisível" : a " di stinção
entre o Eu e o ideal do Eu" , o pensamento de uma posição de um
objeto no lugar desse ideal do Eu confirmam o que se havia destacado
da teoria das neuroses, ou seja, as " ações recíprocas" (Wechselwir­
kungen) entre " objeto exterior" e " Eu global" (Gesamtich).
Trata-se aí de um " momento" na gênese do Eu ou de uma verdadeira
sedimentação (o termo Stufe empregado acima suporta o segundo
sentido, ao lado do primeiro)? É com a sua última teoria do sujeito
o sujeito 27 1

que Freud vai tomar, mais resolutamente, um caminho estrutural de


interpretação.

6. Do "Eu físsil" ao sujeito clivado

O rastreamento, com uma certa " acribia" , qas apançoes do termo


Subjekt nesse período intermediário decisivo permite-nos perceber a
continuidade com a última fase, aquela em que Freud, no contexto
da sua teoria da " personalidade psíquica" - em sua dimensão
" estrutural" - e da " clivagem do Eu" (lchspaltung), vai produzir
de certa forma o último " paradigma metapsicológico" do Sujeito ­
o mais explícito, em aparência, já que, por um lado, o termo Subjekt
faz uma entrada bastante espetacular nas Novas conferências ( 1 933),
em que introduz a noção do " Eu físsil" ; por outro lado, porque o
fenômeno da clivagem-do-Eu parece implicar dessa vez, " definitiva­
mente" , o reconhecimento de um estatuto metapsicológico da noção.
Para esclarecer a questão, devemos reportar-nos inicialmente ao
contexto em que o Subjekt faz sua entrada no texto freudiano, nesse
momento decisivo. É sob a forma de uma reflexão, afinal, elementar,
sobre a própria condição de um " saber psicológico" , no momento da
apresentação da " composição da personalidade psíquica" (no sentido
da " segunda tópica" ) . Existe aí, de alguma forma, uma precaução
metodológica prévia: " Queremos fazer do Eu (das /ch) o objeto
(Gegenstand) dessa pesquisa, do nosso Eu mais próprio (unser
eigenstes Ich). Mas será isso possível? O Eu é mesmo assim,
certamente, o sujeito no sentido mais próprio (das eigentlichste
Subjekt), como pode ele tornar-se o Objeto ( Objekt)?" 28 Note-se a
progressão das noções: o " Eu" é proposto como " Objeto" (de
conhecimento = Gegenstand) da pesquisa (metapsicológica), mas aí
está o que nos é " mais próprio" (eigen parece contrastar, aqui, com
o que ele conota de " subjetividade" , com as exigências de objetividade
da pesquisa): poderia ele, pois, pretender ser atingível como " objeto"
(dessa vez no sentido do Objekt, não somente objeto de um conheci­
mento " objetivado" , mas como objeto real, efetivamente conhecido),
quando é o próprio Sujeito, espécie de superlativo de " propriedade"
(eigentlichste Subjekt)?
Aí está, condensada em duas frases de grande densidade conceitual,
a própria questão com a qual se chocou a psicologia no limiar de sua
reivindicação à cientificidade. Mas Freud, sobre ela, dá uma versão
sutil, que aparece melhor à luz da complexa gênese do problema,
272 a s margens

reconstituída anteriormente. Sabemos, com efeito, que " o Eu" é esse


Janus bifrontc que comporta um " rosto de sujeito" e um " rosto de
objeto" , de certa forma. Se o primeiro o define com propriedade -
o que, aqui, é não apenas lembrado, mas afirmado com uma clareza
sem precedentes -, o segundo vai fazê-lo " cair" , de certa maneira,
na esfera " objetai" (devidamente alternado pelo narcisismo, por um
lado, em oposição à realidade - " fora" -, por outro).
A resposta que segue não vai surpreender-nos, já que acompanha­
mos a sedimentação do Eu-sujeito (principalmente através dos destinos
pulsionais, dinâmica das " polaridades" e transformação do ideal):
" Pois bem, não há dúvidas de que isso é possível. O Eu pode tomar
a si mesmo como objeto (Objekt), tratar-se como aos outros objetos,
observar-se, criticar-se c fazer sabe Deus o que mais consigo mesmo.
Por i sso mesmo, uma parte do Eu (ein Teil des lchs) se coloca diante
da outra. O Eu é, pois, físsil (spaltbar), ele se cliva (es paltet sich)
em muitas dl! sua� funções, ou pelo menos passa adiante" . Momento
fundamental, supõe-se, da metapsicologia freudiana em que se admite
a Spaltbarkeit básica do Eu, que nos vai abrir caminho ao pensamento
de um " sujeito clivado" .
Freud não fala aqui de " sujeito clivado" , mas de " Eu clivável" ,
atestando a possibilidade, baseado nos fenômenos clínicos precisos,
de uma ( des)articulação do Eu. O gesto audacioso consiste em ligar
esse fenômeno clínico a uma reflexão sobre a teoria do conhecimento:
com efeito, é porque o Eu é " físsil" que ele pode advir como objeto,
ao mesmo tempo para si mesmo e para o conhecimento. Logo, existe
uma possibilidade para o Sujeito de se constituir em Objeto de
conhecimento. O problema geral de princípio é resolvido de facto, o
Eu sendo atestado como " clivável" .
Entretanto, não se poderia desconhecer o alcance dessa constatação
de que as " partes" do Eu, bem como as suas " funções" , podem
separar-se - provisoriamente - 1 "já que os pedaços (Teilstücke)

podem depois reunir-se novamente" . Será isso uma " novidade" ou


simples " acentuação de coisas geralmente conhecidas" ? Essa é a
hesitação demonstrada por Freud a cada vez que, daí por diante,
introduzir a idéia da lchspaltung: ela testemunha, no fundo, sua vontade
de manter o desenvolvimento em estado virtual de constatação, de
não " solenizar" em excesso as suas conseqüências - sob a promul­
gação de uma " revolução epistemológica" qualquer da função sujeito,
que, no entanto, está sendo claramente promovida. Cada um é livre
para avaliar as conseqüências desse " fato" , parece ele dizer.
o sujeito 273

Mas o último rel ato, o do Esboço de psicanálise, vai sublinhar o


seu caráter inaudito: se " os fatos da cli vagem do Eu que aqui
descrevemos não são tão novos nem estranhos quanto poderiam p arecer
inicialmente" , já que parecem ate stados como " característica geral
das neuroses" , o " inédito consiste em que isso não acon teç a mais
entre o Eu e o isso" , mas " pertença ao eu" , passando de certa forma
entre o Eu e si-mesmo!29 É isso que contém a re vi s ão das evidênci as
mais sólidas relativas ao " suj eito " , como reação às transformações
- e quase dos " desvios " e " contorções " - desse Eu que pode fazer
" Deus sabe o que" dele mes mo ! - : que pode " objeti v ar" a si mesmo
colocando a di st ânci a uma parte de sua " estrutura" - de fato, a
metáfora da Spaltung vai introduzir a famosa comparação com a
estrutura do cristal.
Em que " o sujei to" está interessado nessa con stataç ão da " fissi­
bilidade'' do Eu? Sendo " o Eu mais próprio" , ele deve ser rec onhecido
como " clivável" , ou melhor - já que o " sujeito" é a função princeps
do Eu , majs que o próprio Eu, que também tem uma " face" voltada
para o Objeto -, é preciso resolver-se a tirar as conseqüências, do
lado do Eu-sujeito (lch-Subjekt), dessa propriedade. Eis abalada a
crença mais sólida na " identidade" , quando ela é a própri a base do
" sujeito" como tal: o sujei to não é " homogêne o" nem " liso" , ele
deve tolerar a possibilidade de " cisão" . Nesse momento se põe em
marcha a discreta " re voluç ão " que a metapsicologia, em debate com
o " sujeito"' , vai in troduzir no campo da teoria do conhecimento e até
mesmo " em seu coração" .
Destacamos· assim os termos do problema: a " cli vagem do Eu" é
observada enquanto fenômeno sui gene ris, antes ck encontrar a q uestão
do sujeito. Os dois estão, portanto, estreitamente ligados, -mas foi
preciso um tempo - decisivo na elaboração metapsicológica - para
se verem destacar todas as conseqüências da clivagem do Eu--para a
concepção do sujeito . É isso, aliás, que explica que o termo Subjekt
não surja necessariamente nos textos de Freud consagrados à lch­
Spalt�mg, mesmo nos últimos, em que o de s tino dos dois registros é
enlaçado.
É necessário observar que é no ensaio sobre o Unheimliche ( 1 919)
que Freud, que utilizava há muito tempo o tenno clivagem, vai
aplicá-lo ao Eu: com efeito, é ao examinar o tema hoffmanniano do
" duplo" (Doppelgiiftger) que ele se refere a uma certa intuição dos
" psicólogos populares" ( !): " Acredito que quando , os poetas se
queixam de que duas almas habitam o coração humano e quando os
psicólogos populares (Populãrpsychologen) falam na cUvagem do Eu
274 as margens

no homem, o que flutua diante deles é essa cisão (Entzweiung) que


concerne à psicologia do eu (lch-psychologie) en.tre a instância crítica
e o resto-do-eu (lch-rest), que não recobre a oposição entre o Eu e o
recalcado inconsciente." 30 Aí está, formulada pela primeira vez, a
noção de uma " clivagem" interna do Eu - distinta da oposição
clássica admitida em psicanálise entre " Eu" e " recalcado" : e onde
Freud encontra a intuição - confusa e " flutuante" - dessa futura
revolução metapsicológica? Nas espécies de vulgarizadores da psico­
logia que, fundamentados nos " poetas" , autorizam o " lugar comum"
de um despedaçamento do Eu, espécie de " duplo Eu" : nisso, eles
dizem a verdade e atraem a atenção da ciência analítica para a
possibilidade de uma tal Entzweiung. Entrada extremamente discreta
da noção de cli vagem-do-Eu, pois essa nota acaba com uma relativi­
zação dessa observação: "A diferença apaga-se, no entanto, pelo fato
de que por trás do que é rejeitado (verworfenen) pela crítica do Eu
(Ich-kritik) se encontram primeiramente os rebentos do recalcado."
Em outras palavras, essa clivagem do eu recobriria, grosso modo, a
divisão clássica entre Eu e recalcado. Ainda não há amadurecimento,
em 1 9 1 9 , para compreender que precisamente essas duas diferenças
não se recobrem, e Freud vai terminar - em 1 937-8 - por reconhecer
a sua originalidade. Nessa " observação" precoce, todavia, ele marca
a data dessa idéia de um " resto-de-Eu" e de uma " cisão" interna da
instância eu-óica .. que não cessará de aumentar, no seio da própria
metapsicologia !
O que vai permitir que s e faça justiça a essa idéia é o reconhecimento
da importância dos fenômenos de " clivagem" no desenvolvimento
estrutural do Eu: Mais além do princípio de prazer reconhece " os
conflitos e clivagens (Konflikten und Spaltungen) no aparelho psíquico,
ao passo que o Eu prossegue sua evolução rumo a organizações de
complexidade mais elevada" , como uma " fonte de liberação de
desprazer." 31 Psicologia de grupo e análise do Eu, reevocando a
melancolia, apresenta o Eu como " di vi di do (geteilt), decomposto em
duas partes, uma das quais desencadeia sua cólera contra a outra" .32
O Eu e o Isso, enfim, fala de um rompimento (Aufsplitterung) do Eu,
quando " as identificações particulares se isolam umas das outras pelas
resistências" , o que fornece " talvez o segredo dos casos do que se
chama personalidade múltipla" , na qual " as identificações particulares
se apoderam alternativamente da consciência" .33
Assim aclimatada à metapsicologia, a noção de /chspaltung, que
não cessou de aumentar em importância, enfim se verá reconhecida
o sujeito 275

na sua importância estrutural: essa é a função do ensaio que lhe foi


explicitamente consagrado, A clivagem do Eu no processo de defesa.

7. Da fenda do Eu: o sujeito e a estrutura

Esta é a ocasião, a exemplo da criança em debate com a ameaça de


castração sob a forma mais explícita, de compreender de certa forma
o evento da clivagem-do-Eu como compromisso entre a satisfação
pulsional e o respeito devido à " realidade" . Sabe-se o resultado: " O
resultado foi atingido ao preço de uma fenda no Eu (ein Spalt im Ich)
que nunca mais será curada, mas aumentará com o tempo." 34 Essa
" fenda" instala-se na clivagem: " As duas reações opostas ao conflito
permanecem como núcleo de uma clivagem do Eu . "
Mas vemos que é preciso, mais uma vez, tirar as conseqüências
disso, e é paradoxalmente recordando que isso não é tão paradoxal
quanto parece que Freud introduz.um outro pensamento sobre o sujeito:
" O processo inteiro só nos parece tão estranho porque consideramos
a síntese dos processos do Eu (die Synthese der Ichvorgiinge) como
uma coisa evidente. Mas nisso -estamos manifestamente errados. A
função sintética do Eu (die synthetische Funktion des Ichs), tão
extraordinariamente importante, tem suas condições particulares e está
submetida a toda uma série de perturbações." Não adianta recolocar
em causa, devemos frisar, a função sintética constitutiva do " Eu" : é
preciso apenas reconhecer que ela é tudo menos algo " auto-evidente"
(selbstverstiindlich): é um processo submetido a " condições" tão
estritas que a todo momento a síntese pode ser " perturbada" (é o
mínimo que se pode dizer !).
O exemplo confirma-se aqui como a própria coisa: é justamente a
prova do objeto da castração que desregula a sacrossanta função
sintética do Eu, de modo que é nessa ocasião que ela se revela
eminentemente frágil - o que nos obriga a fazer emergir a questão:
logo, que deve ser o "sujeito" � com suas prerrogativas funcionais
- para experimentar e tolerar tal "cisão " (Entzweiung)?
É na famosa metáfora cristalográfica que o longo " rastreamento"
freudiano do sujeito chega a seu termo. O que se vê aí representado,
de maneira tão realista quanto formal, é essa relação de antecedênci a
d a condição estrutural sobre o sintoma efetivo, mas simultaneamente
o efeito de revelação só-depois da estrutura pelo sintoma: " Lá onde
276 as margens

ela (a patologia) nos mostra uma quebra (Bruch) ou uma fenda (Spalt),
uma articulação (Gliederung) pode normalmente estar presente. Quan­
do jogamos um ctistal ao chão, ele se quebra, mas não de qualquer
maneira (willkiitlich), ele se parte segundo suas direções de clivagem
(Spaltrichtungen} em pedaços cuja delimitação (Abgrenzung), embora
invisível, já estava no entanto determinada previamente pela estrutura
(Struktur) do cristal. De tais estruturas fissuradas e partidas (rissige
und gesprungene Strukturen), tais são igualmente os doentes do espírito
(Geisteskranken)."
A " estrutura" encontrou aqui seu " sujeito" - é verdade que sob
a capa de uma metáfora: mas toda a gênese precedente mostrou como
a origem sinuosa, tanto quanto rigorosa, da função sujeito conduzia
a isso.
- Que se constatou, com efeito? Que, seja como sujeito-da-cons­
tituição (libidinal) (forma 1), seja como sujeito narcísico (da identifi­
cação/idealização) (forma 11), seja como sujeito da cli vagem, o
'' sujeito" - essa " ausência" tomada presença discreta - " cristali­
za-se" - no sentido literal - como este elemento " invisível" , já lá
" antes" (vorher), como delimitação - pensemos nas '' arestas" de
um cristal - do evento da " fissão" . Essa estrutura-sujeito só se revela
no momento da " quebra" , mas tal é o " círculo" do sujeito: a " quebra"
- a formação do sintoma - só tem efeito na revelação da e strutura
fissurada (rissige Struktur) que a tornou virtualmente possível.
Texto fundamental em que se vê, de certa forma, desenhar-se um
sujeito " recortado" pela estrutura - o que só é possível no horizonte
de uma problemática da Spaltung. Esse gespaltener Subjekt constituí
aquilo que a psicanálise tem como contribuição mais específica - e
no fundo inaudita - à questão principal do sujeito. Vê-se também
por que o sujeito da psicanálise só existe objetivado pelo sintoma,
mas que o próprio sintoma traduz a preexistência de uma estrutura
assim revelada: existe aí uma forma de " reflexividade" complexa que
é uma das maiores conclusões da metapsicologia.
O sujeito torna-se objeto de um saber metapsicológico a partir do
sintoma: mas ele porta a marca de uma divisão cujo próprio " desenho"
é estrutural. Essa é, pois, realmente uma forma de a priori da
experiência analítica, menos como " portador" de sintoma(s) que como
modo de atualização singular de " direções de clivagem" da estrutura.
A diacronia sintomática deixa toda sua importância à historicidade
- o que demonstra toda a clínica analítica. Mas nesta retoma a
o sujeito 277

presença ativa de uma estrutura singular que se pode postular inces­


santemente à história e que se (re)produz sem cessar pela história:
não existe. justamente, melhor definição do que vem a ser um
" sujeito'' . Freud acrescenta a ironia de que ele só é atingido pela
destituição de sua autonomia e reconhecimento de seu ser-dividido.
Podemos agora colocar o sujeito; função metapsicológica; em
perspectiva, recordando o conteúdo da noção e o que dela se vê
" alterado" , tanto quanto " confinnado" .

Metapsit:ologia e genealogia do sujeito:


o estnJnho suje#o freudiano

Quais os elementos necessários e suficientes para se pensar em ttnno s


de sujeito?
A primeira condição é a reflexividade: ou seja, que existe referência
a um .. quanto-a-si" ou um " para-si" . Essa é a postulação de um ponto
de vista do " dentro" que destaca o momento da subjetividade.
É precisamente com Descartes q1,1e o Eu pensante se vê erigido em
substância metafísica. É como sújeito de pensamento que o Eu acede
a sua função de subjetividade constituinte. Tal é o sentido do Cogito,
sum. Mas, paradoxalmente, é mesmo no momento em que o Eu
pensante é despossufdo de sua substância racional - o que se opera
com a crítica kantiana dos " paralogismos da psicologia racional" -
que a noção de sujeito aparece pelo que ela é: irredutível a uma
substância, mas se impondo como função-referência incontornável.
Como " representação que acompanha todas as representações" ,3s o
sujeito acede a sua função própria sacudindo sua ganga metafísica, o
que constitui a operação propriamente " transcendental" .
É ainda mais revelador o fato de o momento kantiano de destituição
do Eu metafísico e de ereção do sujeito transcendental acompanhar-s�
pelo acesso a uma soberania ética. Alguma coisa liberta-se do peso
metafísico que não é senão a ética de uma " razão prática" . A moral
deixa de ser ontológica para organizar a ética em tomo desse sujeito,
referente da lei moral, articulado à liberdade e respondendo ao
imperativo categórico. O sujeito não tem outra substância que não a
ética: na ruptura do ideal de sabedoria (harmonia postulada entre . a
individualidade e o Summum Bonum), nasce o sujeito da ética,
respondente da lei, unicamente pelos recursos da " razão prática" .
278 as margens

Compreende-se ao mesmo tempo que as problemáticas da crise do


sujeito estejam ligadas à demonstração desse elo supostamente inde­
satável entre a Representação princeps e a rede representacional,
denunciando o Eu como superstição última. Mais que uma crítica da
metafísica, vamos observar, é uma crítica daquilo que, sobrevivendo
à substância metafísica, trairia ainda uma concessão metafísica. Isso
se presta à meditação: a referência ao sujeito não traduz sempre uma
metafísica, orgulhosa ou envergonhada? Isso pelo menos se decifra à
luz de uma abordagem genealógica: para uma abordagem nietzschiana,
a refutação da ética da " má consciência" e da responsabilidade tem
por pré-requisito solene a imolação do ídolo do sujeito. Assim
destituído de sua eminência metafísica, o upokeimenon é reduzido ao
que ele designava curiosamente no vocabulário médico, um cadáver...
- Este lembrete do traçado genealógico d o sujeito permite nele
situar a figura metapsicológica.
O sujeito não cessa de se reintroduzir como essa necessidade
mínima, vamos entender, a necessidade desse " mínimo" irredutível
sem o qual a razão ficaria " no ar" . Vê-se o círculo: sem referência
ao suposto " sujeito" , nada se pode dizer ao sujeito . . . do sujeito. O
círculo parece imposto pela própria natureza de sua função, como
aquilo que, expulso de suas posições, se define por se reintroduzir
sem cessar. Pode ser que o sujeito se defina menos por sua natureza
própria e mais pelo movimento indefinido da sua reintrodução no jogo
racional (como sujeito de direito, de conhecimento ou de propriedade
de essência, de dever ou de discurso): isso mesmo que insiste é a
função que a teoria do sujeito nos convoca a pensar.
Para que eu possa me considerar e me re-presentar ao Outro com
esse estatuto de " sujeito" , devo operar duas coisas: por um lado,
certamente, referir-me à minha própria reflexividade como aderência
àquilo que eu penso, faço, quero, digo etc . , mas devo simultaneamente
tomar a consistência de uma certa alteridade simbólica. Devo, em
outras palavras, reportar-me ao Outro, função que me " visa" pessoal­
mente e que, longe de se acrescentar à subj etividade, determina-a e
me constitui como tal. Isso é que dá à idéia de sujeito essa mistura
característica de subjetividade e de anonimidade: pois dizer que sou
" considerável" como sujeito é dizer ao mesmo tempo que é " como
pessoa" (por mim e por um outro) que sou visado por essa " consi­
deração" ; mas isso é dizer, simultaneamente, que isso me torna
suscetível de ser· tomado em alguma legalidade estatutária que faz
com que eu intervenha como qualquer um, só que com a restrição de
o sujeito 279

ser creditado, como " ipseidade" , da qualidade de sujeito. O sujeito,


portan_to, é .. o Eu enquanto Outro, capturado pela alteridade.
Compreende-se que, por isso mesmo, por um lado, a noção de
sujeito se baseia numa teoria do conhecimento, mais que numa
psicologia, mas que, por outro lado, ela aponta para uma função ética
da qual assinala a irredutibilidade. O sujeito, pois, seria a subjetividade
enquanto constituída pela alteridade.
Não é, em absoluto, corrente, e não é de modo algum evidente por
si mesmo, para uma psicologia, referir-se ao " sujeito" . Quer ela se
articule à subjetividade, quer pretenda economizá-la através daquilo
a que chama " psicologia sem alma" ,36 a psicologia gira em outra cena
que não a do sujeito; sej a " a interioridade" e a consciência, seja o
fora da consciência (o " comportamento" ) .
Isso vai permitir-nos abordar o evento constituído pela psicanálise
no campo do conhecimento e da psique em seu lugar próprio, afinal,
notável: se há retomada de uma problemática do sujeito, como vemos,
que advém da função de conhecimento, por um lado, e da função
simbólica, por outro?
É aqui que reencontramos nosso paradoxo: tudo se passa como se
Freud partilhasse a desconfiança de uma " psicologia sem alma" quanto
à oportunidade de uma referência a algum " ídolo" desse gênero. Mas
o �róprio movimento de sua teoria (metapsicologia) e de" sua clínica
parece obrigá-lo a levar em conta um ponto de vista do sujeito sem
recusar sua natureza própria. Daí a questão, ao mesmo tempo decisiva
e incongruente: como Freud pensou o sujeito sem o instaurar como
tal? E como essa estranha posição pode inscrever-se nesse movimento?
Que não nos apressemos, com efeito, por tapar esse furo e suspender
esse paradoxo, falando em " sujeito desejante" . De fato, a expressão
não diz literalmente nada, a não ser que se devem conjugar " sujeito" ,
com todo o seu aparato metafísico, e " desejo" , dotado de todo o seu
carisma ambíguo. A questão está realmente num sentido: que gênero
de " sujeito" se deve supor ao movi mento do desejo enquanto este se
insc!"eve no inconsciente? Mas do próprio desejo não se tem conhe­
cimento direto (isso é mesmo tudo o que distingue a psicanálise de
qualquer metafísica do Desejo). Da psicanálise, só há o saber dos
" processos inconscientes" : a qUestão incide sobre o que liga o desejo
a esses processos e que " imagem" do sujeito resulta daí.
Embora não repugne a Freud refehr a psicanálise à psicologia, ele
neutraliza, de fato, o " psicologismo" ; já nesse sentido ele deixa o
plano do " vivido" para reativar o problema do sujeito em seus termos
280 as margens

próprios, que concemem � conhecimento. Mas, pelo mesmo movi·


mento, ele rompe o esqúema clássico do conhecimento .

. Vamos dizê-lo para fazer sentir esse efeito: o inconsciente nunca


é o Inconsciente maiúsculo em Freud. mas inconsciente do sujeito,
no máximo, sujeito ... de inconsciente. Só que, quando o sujeito, como
fiça bem claro a partir de nossa recordação genealógica, é requerido
para g arantir a unidade do saber e da verdade - isto é, do para-si e
da alteridade no seio de um princípio reitor - , esse sujeito, o do
inconsciente, se distingue na medida em que não garante mais nada,
ou antes (essa última fórmula se apl icaria mais à crítica oietzschiana),
porque ele se inscreve na própria fenda que separa o " saber" da
.. verdade" , que o Cogito cartesiano soldava ...
O mais notável é que ele não se volatiliza, na medida em que, em
vez de se pulverizar, se estrutura em tomo desse choque formidável
(identificável como prova da castração). O sujeito inconsciente dis­
tingue-se na medida em que sustenta essa divisão entre o que ele sabe
(de si) e o que ele é (na verdade) por sua própria conta. É mesmo
essa aptidão para sustentar isso que forma o seu mais " inalienável" ,
a ser entendido como aquilo que não se pode economizar.
Vê�se o que há de muito particular a ser pensado aí: por um lado,
que é preciso " guardar" o sujeito para sustentar o Inconsciente - à
falta dele, o Inconsciente se poria a viver a própria vida, fora do
sujeito, e então sairíamos da psicanálise para reinve stir as metafísicas
e as poesias do Inconsciente; por outro lado, o conceito, pela primeira
vez. pode não mais servir . . . àquilo para o qual era requerido na tradição
fil�sófic�. Tal é a ironia do sujeito inconsciente que ele se instale
,

nessa PQsição inexpugnáyel da incompati bi lidade entre .. saber" e


" verc;l�" Ele tem, além c;lisso, sua própri a maneira de " assQmi-lo" :
.

pelo silltomq. Mas, enfi m aU ele está " para ficar" .


, . .

Eis .aí. decerto, um a ideqt.dade bem curiosa a se pensar. muito


" "

apegac;Ja à sua divisão, mas não tirando dela nenhum prindpio de ·

síntesé interna .

Se nps referirmos agora à outra eJttremidade do trajeto retraçado


acima;' vamos poder apreciar a conquis�a que a idéi a de Spqltung do
sujei� representa.
Embora um pouco conhecedQr de Kantn, Fre ud talvez o�o tenha
ele mesmô avaliado toda .a Jmportância, nessa vertente de sua ,

observação pela qual a síntese d� Eu não é tão auto·evidente quanto


se po4e pensar. É mesmo nes se ponto da síntese, altamente probl e -
o sujeito 281

mático, que o suJeito recebe seu lugar propno. É por isso que,
decididamente, o sujeito não é uma " personalidade" , mas também
não é " qualquer um" ; esse é o ponto de referência de seu próprio
dilaceramento. Lá onde o Outro fez traço, forma-se um sujeito.
Da cena primitiva ao sujeito clivado, esta é mesmo, de certa maneira,
a saga do sujeito freudiano que se vê terminada. O ponto de chegada,
ou melhor, de interrupção, é este sujeito que emerge do cruzamento
de duas " reações" igualmente insuficientes para a revelação da falta,
essa " ameaça" que entrava uma satisfação que tenderia a se tornar
hábito. Não está aí o Cogito do impossível, emergindo da representação
da Falta, mas tornando a se fechar em si mesmo pela renegação?
Somente que, como " só a morte é para nada" , a perpetuação da
satisfação deve pagar o dízimo do " dilaceramento" . Prêmio do
" sucesso" , mas também " cicatriz" sobre a qual virá se agarrar e se
" encastoar" um sujeito, como se vê, todo particular e mesmo único
na história. Não é esse dilaceramento transcendental que Freud
descreve quando lembra que " o conjunto do processo" só parece " tão
estranho porque consideramos a síntese dos processos do Eu como
auto-evidentes" - em suma, se não se está emancipado do modo de
pensar kantiano? É a essa revisão que Freud incita, de modo ao mesmo
tempo modesto e radical.
Entre esse sujeito e a castração, impossível, com efeito, encontrar
a " determinante transcendental" .
Fato curioso: a referência à instância da verdade surte seu efeito
por menos que a combinem com a referência a este sujeito. Modelo
que se mostra bastante bem no fenômeno da " denegação" , pelo qual
o sujeito encontra meios de atestar que ele não deixa de saber a sua
verdade, mas que ele a aborda por essa colocação a distância do
recalcado. Acreditar que a verdade possa falar diante do sujeito,
funcionando apenas como porta-voz destacado de seu desejo.
Tal é, em suma, toda a bela racionalidade promovida pelo " enten­
dimento freudiano" : retomar a racionalidade pelo que a faz, necessa­
riamente, " claudicar" , ou seja, o afastamento ali introduzido pelo
sintoma. Que um sujeito seja lugar-tenente dessa carga, apesar de
tudo, de sua própria verdade que ele sabe tão mal e que diz tão bem,
isso é o que dá alguma razão a que se tome em consideração esse
sujeito que apenas a psicanálise pode nomear. E esse sujeito, já lá
para ele e para o Outro, é o sujeito da metapsicologia.
282 as margens

NOTAS À CONCLUSÃO

1. Assim, ele observa a Karl Abraham que a palavra " personalidade" não
explica nada.
2. " A diferença entre esses dois (homens) pode exprimir-se facilmente: ( ... )
um estabeleceu em si um ideal com o qual mede seu eu atual, enquanto no outro
tal formação de ideal está ausente" (Introdução ao narcisismo, GW X, 1 60- l ).
3. Além do princípio de prazer ( 1920).
4. Ver sobre esse ponto L'Entendement freudien, op. cit., p. l 42-4.
5. Neologismo forjado por Ferenczi a partir do latim uterque (um e outro),
para designar a necessidade de consideração complementar do " subjetivo" e do
"objetivo" (aplicado principalmente em Thalassa).
6. GW XIV, p. 1 4.
7. Op. cit., p. l 3.
8. Op. cit., p. 1 4.
9. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, GW V, p.9 1 .
10. Op. cit., p.36.
1 1 . Uma dificuldade no caminho da psicanálise, 1 9 1 7, GW XII, p.9.
1 2. In Meus pontos de vista sobre o papel desempenhado pela sexualidade na
etiologia das neuroses, 1 905-6 (texto decisivo para nosso propósito), GW V,
p. 1 54-5.
1 3 . Op. cit., p. 1 54.
14. XXIII lição de Introdução à psicanálise, 1 9 1 7, GW XI, p.375.
1 5 . Op. cit., p.376.
1 6. Termo empregado por Aristóteles para designar a " substância" .
1 7. Análise terminável e interminável, GW XVI.
1 8. As pulsões e suas vicissitudes, GW X, p.220.
19. Op. cit., p.222.
20. Op. cit., p.224.
2 1 . Op. cit., p.226.
22. Ver a Doutrina da ciência (Wissenschaftslehre) cujo universo de pensamento
é, aliás, estranho a Freud (mas ele o pôde " absorver" indiretamente através da
dialética herbartiana da representação).
23. Ver a Traumdeutung, cap. VII.
24. As pulsões e suas vicissitudes, GW X, p.227.
25. Op. cit., p.228.
26. GW XIII, p. 1 16.
27. Op. cit., cap. XI, p. 144.
28. GW XV, p.63/4.
29. Cap. VIII, GW XVII, p. l 35.
30. GW XII, p.248.
3 1 . GW XIII, p.6.
32. GW XIII, p. 1 20.
33. GW XIII, p.259.
34. GW XVII, p.60.
o sujeito 283

35. " Die Vorstellung !ch denke ( ... ) die alie anderen müssen begleiten konnen "
Crítica da razão pura. Dedução transcendental.
36. Essa é, como se sabe, a expressão de Friedrich Lange, Histoire du
matérialisme.
37. Ver nosso Freud, la philosophie et les philosophes, PUF, 1976, n Parte,
cap. III, p. l 59.
ÍNDICES

Apresentação

Esta Metapsicologia freudiana: uma introdução, apresentando, de


certa forma, a estrutura lógica e " heurística" da teoria psicanalítica
em suas articulações fundamentais, é levada a definir, em cada um
dos níveis de emergência distintos, os " conceitos fundamentais" da
metapsicologia e a rede de noções e temas que gravitam em torno
desse " núcleo conceitual" . Assim, vemos reemergir as noções-chaves
da teoria psicanalítica, nos diversos " estágios" do edifício metapsi­
cológico, com um conteúdo homogêneo, mas também com um
esclarecimento diferente em cada um desses " níveis" lógicos e
heurísticos. Trabalho de repetição e de aprofundamento, revelador do
movimento de descoberta.
O Índice de Noções e de Temas que se segue apresenta-se, pois,
como um instrumento de trabalho que permite apreender o trabalho
de definição e de " aproximação" das diversas noções, conceitos e
temas. Vamos encontrá-los, nas " entradas" indicadas, ao mesmo
tempo definidos e efetivamente re-situados nos diversos níveis de
pesquisa em que estão implicados: assim, é possível acompanhar, de
alguma forma, as linhas mestras da " hi stória" do conceito e do tema
considerado (proporcionalmente à sua importância na conceitualização
metapsicológica). Este índice ocupa a função, ao mesmo tempo que
de fonte de informação, de " espectroscopia" , de certa maneira, da
" linha conceitual" concernida.
Um Índice dos Termos Alemães permite observar os principais
conceitos utilizados na elaboração metapsicológica. Vamos encontrar
nas passagens citadas as traduções dos termos. É evidente que levar

285
286 as margens

em conta a terminologia de origem faz parte da compreensão do


trabalho do conceito metapsicológico, de modo que esse índice técnico
pode permitir familiarizar-se com a questão complexa da tradução
dos termos freudianos e da consideração de sua polissemia no uso
metapsicológico. Existe aí, com efeito, um trabalho vivo da língua
buscando situar o objeto móvel da pesquisa.
Um Índice de Nomes permite julgar as " galáxias" de referências
diversas implicadas na elaboração da teoria metapsicológica - nos
planos epistemológico, filosófico, psicopatológico e literário.
"'

Indice de noções e de temas

ab-reação, 216, 217 conversão, 154, 1 67, 178-9, 208


�� � 1 � 1� 1� 1� 1� 1� 1� corpo, 16, 1 7 1 -2, 1 74-92, 201 , 204
200, 201 , 202-3, 204, 205, 206, 207, 208, culpa, 1 24, 246
209, 2 1 2-3, 21 6-7, 219, 220, 246 cultura, 1 92
afetividade, 152, 164, 176
afeto, 8, 16, 7 1 , 84, 1 1 1 , 1 19, 127, 149, defesa, 159, 1 6 1 , 210
151 -72, 180, 202, 204, 209, 217 demanda, 20I
agressividade, 1 69 denegação, 46, 93, 115-8, 1 19, 281
alma, 174, 176, 177, 178, 179, 1 8 1 desamparo, 201-2, 208
ambivalência, 1 69, 1 70, 2 1 0 descarga, 153, 198, 201 , 204, 205, 207
amor, 169, 170, 185, 2 1 8, 268 desejo, 1 07-9, 1 1 3, 1 17, 1 2 1 , 1 24, 1 37, 139,
angústia, I l i , 1 54, 159-61, 168, 1 98, 249 1 4 1 , 180, 1 9 1 , 1 95, 202, 203, 2 1 2, 2 1 4,
angústia (neurose de), 197-8 220, 233, 245, 247, 260- 1 , 279, 28 1
aparelho psíquico, 59-60, 63, 65, 69, 9 1 , deslocamento, 163, 1 67-8, 2 1 0
204-5, 274 dinâmica, 1 4-5, 3 1 , 1 57-8, 164, 166, 180,
apoio, 1 82, 183, 1 84 252, 263-4
atividade, 1 1 2-3, 197, 204, 266 dissociação, 178
ato, 9, 1 6, 1 1 8, 129-30, 1 34, 140, 1 42, 149, dominação (pulsão de), 203
1 94-222, 227, 233, 246, 250, 262
ato falho, 207, 208, 2 1 1 , 2 1 3, 244 econômico, 1 4-5, 3 1 , 6 1 , 155, 1 57, 1 6 1 , 168,
180, 198, 252
castração, 35, 1 18, 1 20, 1 68, 1 90, 206, 2 1 2-3, elaboração, 249
2 1 4, 2 1 9, 260, 275, 280, 281 eros, 29, 36, 2 1 4
cena originária, 34, 7 1 , 93, 1 00, 102, 105-7, escotomização, 1 66
1 09, 1 17, 1 20- 1 , 1 23, 1 24, 1 27, 1 30- 1 , estrutura, 213, 260, 273, 274-5, 276
1 36-7, 138, 1 54, 1 55, 1 71 , 1 89-90, 202-3, eu, 34-5, 88, 1 16-7, 1 32, 158, 1 6 1 , 1 82-3,
2 1 1-2, 251 , 260, 261 , 264, 28 1 185, 187, 1 88, 189, 1 90, 204-6, 246, 250,
censura, 1 37, 144, 145 259-6 1 , 267, 268-79, 280, 281
chiste, 9 1 , 157-8 excitação, 141, 178-9, 1 8 1 -2, 1 84, 197, 198-
clivagem, 34, 35, 273-6 9, 200, 202, 205, 2 1 3
coisa, 5, 15-16, 26, 44-6, 48-50, 56, 64-5,
exibicionismo, 266
85-6, 92-3, 96-124, 1 4 1 , 221 , 229-30,
241 , 262
falo, 1 19
complacência (somática), 1 79
fantasia, 1 06, 107, 109, 130- 1 , 132-3, 1 38-9,
compulsão, 208, 209
conflito, 34, 1 38, 1 4 1-2, 178, 217, 250, 274 202-3, 213-4, 218, 220, 234
consciência, 1 55, 1 64, 178, 274, 279 fantasiar, 47, 68
consciente, 3 1 , 60, 89, 93, 164-5, 221 ficção, 6, 56, 7 1 , 226, 234, 244, 250
constituição, 263-6, 276 formação reativa, 1 07, 249
construção, 47, 57, 65, 70- 1 , 89, 93, 230- 1,
250, 258 gozo, 132, 133, 1 40, 1 55, 229

287
288 índices

histeria (ica), l i O, 1 54-5, 177, 1 78-80, 1 82- realidade, 27, 58, 203, 204-6, 250, 259-60,
3, 218, 230-2, 234-5 262-3, 275
recalcado, 1 1 2, 1 1 3, 1 79-80, 221 , 250, 274,
ideal, 25, 35-7, 1 67-9, 272 28 1
ideal do eu, 259, 270 recalcarnento, 27, 85, 1 12-3, 1 18-9, 1 35, 154,
idealização, 35, 1 68, 276 1 6 1 , 163, 1 65, 1 66, 221 , 259
identificação, 179, 267-8, 274, 276 regressão, 36-7, 221
inconsciente, 15, 24-7, 30-6, 60- 1 , 77-9, reminiscência, 1 58, 178, 2 1 1 , 2 1 7, 234, 242
85-6, 88-9, 92, 93, 98, 109, 1 l l, 1 1 2-5, renegação, 1 18-9, 1 36, 166, 2 1 2
l 16-7, l 19-22, 1 30, 132-3, 1 36-7, 1 38-9, representação, 6 , 1 6 , 26, 77-93, 1 14-5, 1 16,
1 43-4, 1 60, 1 62-3, 163-5, 168, 1 7 1 -80, l 19, 127, 149, 1 5 1 , 1 53, 155, 158, 158-9,
1 94-7, 201-3, 207-8, 2 1 1 , 2 1 3, 2 16, 2 1 9, 1 60, 1 62-5, 1 66-7, 168-72, 1 78, 208- 1 1 ,
222, 247, 251 , 260, 262, 274, 279-80
213, 2 1 4, 2 1 7-8, 220-1 , 250, 262, 277-8,
inervação, 180, 183
281
inquietante estranheza, 1 1 I
representação de coisa, 78-93, 1 27-8
interpretação, 32, 47, 49, 52, 237
representação de palavra, 78-93, 1 27-8
investimento, 84, 86, 1 3 1 , 1 32
isso, 35, 64, 69, 88, 1 74, 185-6, 1 87, 205-6, repressão, 154, 160, 1 63-5, 178
2 1 2, 264, 274
sadismo, 266, 267
libido, 1 52, 169, 246, 259, 263, 265 satisfação, 201 , 203-5, 214, 275, 28 1
luto, 162, 163 sedução, 1 79-80, 202, 2 1 2, 264
sexualidade, 29-30, 34, 98, 1 04-6, 1 2 1 , 1 22-
masoquismo, 266, 267 3, 1 24, 1 99, 202
melancolia, 162, 168, 269, 274 sintoma, 32-3, 43, 45, 52-4, 7 1 , 87, 1 07, 1 24,
memória, 1 6 1 , 238, 243, 250 1 34, 1 36, 1 42-3, 1 45, 1 57-8, 1 67, 1 77-8 1 ,
metapsicologia, passim 183-4, 199, 206-8, 2 1 1 -2, 2 1 4, 2 18, 226,
morte, 233 227, 229-30, 233, 235-6, 237, 239-40,
morte (pulsão de), 36, 259 243, 245-6, 247-52, 264, 266, 275, 276,
mulher, 1 10, 2 12, 213 280-1
sistema, 15, 60, 1 30, 1 64-5
narcisismo, 34, 131, 169, 185, 246, 259, 263, só-depois, 146, 2 1 1 , 275
. 265-9, 272 sonho, 32-3, 79, 143
sublimação, 1 30
obsessão, 1 58, 180
sujeito, 1 1 , 26, 33-4, 36-7, 45, 53, 70- 1 , 79,
outro, 34, 92, 1 09, 1 32, 144, 145, 1 7 1 , 174,
92-3, 1 08-9, l l l-4, 1 15-8, 1 21-3, 1 24,
1 79-8 1 , 1 90, 1 9 1 , 199-202, 208, 2 1 1,
1 30, 1 34, 1 35, 1 4 1 , 1 5 1 , 179-8 1 , 196,
2 1 2, 21 3-4, 219, 260- 1 , 263-4, 267, 278-
201-3, 206, 208, 2 1 1 , 213, 2 1 5, 2 1 7, 227,
9, 281
229-30, 234, 239, 244, 245-6, 248-50,
257-81
paranóia, 236, 237
pensamento, 45-6, 87, 88, 90, 168, 209, supereu, 7 1 , 1 4 1 , 206, 259
220- 1 , 230, 234, 235, 262, 277
percepção, 89, 160, 165-6, 205, 262 tanatos, 36
perversão, 1 66, 190, 213 terror, 202
prazer, 1 3 1 , 132, 140, 160, 204, 2 19, 259, tópica, 14, 3 1, 34, 60, 63, 79, 80, 82, 88,
261 , 269 9 1 , 93, 165, 205, 252, 259, 269, 271
pressão, 198, 206 transferência, 52-3, 170, 2 1 6-8, 22 1
pré-consciente, 93, 1 29, 1 33 trauma, 1 54, 158, 260
projeção, 167, 188-9
psicose, 86, 144
pulsão, 30, 52, 61-2, 84, 139, 144, 153, utraquismo, 262
1 62-3, 1 7 1 , 1 8 1 , 181-2, 183, 186, 191,
202, 203, 204, 265 visão do mundo, 28, 29, 37
,

Indice de termos alemães

Abfuhr, 205 Entfremdung, 29


Ableitung, 1 56, 157 Entlastung, 198, 199, 204, 206
Abreagieren, 2 1 7 Entwicklung, 36
Abwehr, 134 Ergiinzungsreihe, 265
Affektbetrag, 1 53 Erleben, 263, 264, 265
Affektivitiit, 1 52 Erlebnis, 252
Affektivitiitslehre, 152 Erregung, 156, 198
Affekt/eben, 158 Es, 64
Affektlehre, 1 5 1 , 155, 1 57, 1 59, 1 62
Affektregung, 163 Fehlleistung, 136, 208
Affektsigna/, 161 Fiktion, 70, 7 1
Affektsteigerung, 168
Affektsymbo/, 158 Gedankengiinge, 234
Affektverwandlung, 168 Gedanken, 133
Affektzustand, 153, 163 Gefühle, 170
Agieren, 196, 215, 216, 217, 2 1 8, 221 , 222 Grundbegriff, 30, 6 1 , 1 8 1
Aktion, 197, 198, 210
Aktivitiit, 203 Handeln, 204, 205
Ais ob, 58, 64, 66, 67 Handlung, 195, 196, 197, 205, 206, 2 1 2,
Anlehnung, 1 82 213, 246
Annahme, 59, 60, 66, 68 Hiljlosigkeit, 201
Aphasie, 78
Aujkliirung, 27, 33, 1 28 lch, 256, 267, 268, 269, 270, 27 1 , 272, 273,
274, 275
Bau, 59, 65 lnhalt, 106, 107
Bild, 60, 242 Innervation, 1 80
Bildung, 164
Konflikt, 274
Darstellung, 14, 26, 56, 63, 163, 228, 232, Konversion, 179
238, 239, 247, 250, 256 Konstitution, 263
Deutung, 32, 157 Konstruktion, 65, 70
Dichtung, 71, 139, 226, 238, 245, 252 Konvention, 62
Ding, 92, 93, 106, 1 1 3, 1 14, 1 16, 262 Korper, 176, 177, 1 8 1 , 1 87, 1 88
Dingvorstellung, 87, 9 1 , 1 14 Krankengeschichte, 226, 227, 230, 23 1 , 232,
Drang, 198 234, 235, 242, 243, 244, 248
Kultur, 35, 36, 37
Eigenschaft, 1 16, 262
Einfall, 243 Leib, 176, 177
Einriss, 34, 260 Leistung, 6 1 , 132, 1 57, 207, 208

289
290 índices .

Lesen, 1 27, 1 28, 1 29, 1 30, 1 3 1 , 1 32, 1 33, · Subjekt, 34, 250, 261 , 266, 267, 268, 269,
1 34 270, 27 1 , 273, 276
Lektur, 1 4 1
Lust, 1 84, 1 90 Tat, 194, 1 95, 217, 220, 221
Tiefenpsychologie, 27
Material, 27, 47, 241 Tragheit, 199
Methodenstreit, 32 Trauer, 1 62
Trieb, 30, 6 1 , 84, 1 38, 1 8 1
Nebenmensch, 92 Triebverzicht, 1 9 1
Nacherziihlung, 15, 149, 249
Naturwissenschaft, 23 Unbehagen, 36
Naturphilosophie, 24 Unheimliche, 1 1 1 , 1 12, 1 1 3, 1 14, 1 6 1 , 244
Novel/e, 132, 228, 232
Urmensch, 1 9 1
Objekt, 78, 80, 83, 92, 1 14, 250, 261 , 268, Ursz.ene, 34, 93, 108, 109, 1 17, 202, 2 1 1 ,
269, 270, 27 1 , 272 260
Organsprache, 1 84
Verdriingung, 1 1 8, 165
Pansexualismus, 29 Veiführung, 1 80
Phantasieren, 68 Verlesen, 133, 1 34, 1 35
Psychoanalysis, 13 Verleugnung, 1 1 8, 1 19, 165, 166
Verliebtheit, 163
Reiz, 181, 198, 205 Vemeinung, 93, 1 1 8, 262
Verweifung, 1 1 8
Sache, 78, 84, 92 Vorstel/ung, 69, 84, 88, 163, 1 78, 262, 283
Schreck, 202
Schlamperei, 28 Wahrheit, 226, 245, 252
Seele (isch), 1 77, 1 8 1 Wahrnehmung, 165, 262
Sehnsucht, 38, 245 Weltanschauung, 28, 29, 32, 1 22
Somatisch, 176, 1 8 1 , 199 Witz, 91
Spaltung, 34, 1 84, 250, 260, 27 1 , 272, 273, Wortvorstel/ung, 78, 83, 90, 9 1 , 1 1 5
274, 276 Wunderb/ock, 65
Spannung, 198 Wunsch, 1 3 1 , 133, 135, 203
Struktur, 276 Wunscheifüllung, 24, 29, 39
,

Indice de nomes próprios

Abelardo, 224 Gide, 255


Abraharn, 282 Goethe, 24, 5 1 , 1 39, 140, 1 94, 226, 245
Achelis, 39 Gomperz, 148
Adler, 73 Grabbe, 24, 1 9 1
André, 148 Graf, 245
Aristóteles, 54, 223, 282 Groddeck, 174, 1 85, 1 88
Artaud, 87
Austin, 224 Haberlin, 40, 94, 1 25
Hamilton, 8 1
Bachelard, 72 Hartmann von, 3 1 , 1 74, 1 75, 222
Bataille, 24, 39 Hegel, 99, 254
Binswanger, 40 Heloisa, 224
Bleuler, 1 69 Hurne, 189
Blondel, 225 Husser1, 49
Brentano, 223
Breuer, 100, 102, 104, 105, 1 10, 122 Jarnes, 1 52
Brion, 140 Jones, 13, 40, 41
Brouardel, 101 Jung, 39, 55, 73, 125, 148, 254, 259

Charcot, 52, 53, 93, 100, 101, 102, 104, 105, Kant, 55, 1 25, 222, 280
1 10, 1 22, 228, 229, 230, 231 , 235, 264 Keller, 148
Chrobak. 101, 103, 104, 105, 1 1 0, 1 22 Kipling, 148
Copémico, 35 Krafft-ebing, 234

Darwin, 35, 1 56, 1 57 Lacan, 77, 1 26


�artes, 148, 174, 1 75, 277 La1ande, 57, 1 72, 222, 225
Dubois-reyrnond. 72 Laforgue, 166, 224
Duharnel, 224 Lange, 283
Duhem, 58 Lanzer, 255
Laplanche, 222, 223
Einstein, 29 Le Bon, 1 68
Ellis, 122, 1 26
Macaulay, 1 48
Ferenczi, 1 7 1 , 262 Mac Dougall, 173
Fichte, 222 Mach, 62, 1 93
Fliess, 19, 39, 40, 41, 1 07, 144 Magnan, 263, 264
France, 148 Malebranche, 148
Freud, passim Marx, 40
Merejkowski, 1 48
Gentile, 225 Merleau-Ponty, 193

29 1
292 índices

Meyer, 1 48 Rodin, 238


Mill, 8 1 , 82, 83 Rousseau, 1 7 1
Moisés, 173
Moll, 39, 1 26 Salomé, 19, 39, 40, 41
Multatuli, 148 Saussure, 8 1 , 82, 90, 9 1 , 95
Musil, 193 Schelling, 1 25
Schnitzler, 232, 233, 234, 235
Schreber, 1 84
Nietzsche, 39, 40
Sócrates, 1 02
Stahl, 193
Ovídio, 1 86
Tausk, 193
Palissy, 40 Tito Lívio, 107, 143
Pfister, 39, 4 1 , 254 Twain, 148
Pontalis, 1 8, 222, 223
Putnam, 41 Vaihinger, 54, 58, 64, 66, 67, 68, 73
Vertot, 242
Reich, 254
Wallon, 172
Reik, 72
Wittgenstein, 40, 95, 254
Reinhold, 84
Wortis, 1 25, 126
Richardson, 235 Wundt, 95, 152
Rimbaud, 255
Riviere, 95 Zola, 148
Livros incluídos na coleção
Transmissão da Psicanálise

1 A exceção feminina, Gérard Pommier


2 Gradiva, Wilhelm Iensen

3 Lacan, Bertrand Ogilvie

4 A criança magnífica da psicanálise, J. -D. Nasio


5 Fantasia originária, fantasias das origens, origens da fantasia,
Jean Laplanche e 1. -B. Pontalis

6 Inconsciente freudiano e transmissão da psicanálise, Alain Didier- Weill


7 Sexo e discurso em Freuo e Lacan, Marco A ntonio Coutinho Jorge
8 O umbigo do sonho, Laurence Bataille
9 Psicossomática na clfnica lacaniana, Jean Guir
· 10 Nobodaddy - a histeria no século, Catherine Millot

11 Lições sobre os 7 conceitos cruciais da psicanálise, 1. -D. Nasio


12 Da paixão do ser à "loucura" do saber, Maud Mannoni
13 Psicanálise e medicina, Pierre Benolt
14 A topologia de Jacques Lacan, ]eannc Granon-Lafont
15 A psicose, Alphonse de Waelhens

16 O desenlace de uma análise, Gérard Pommier


17 O coração e a razão, Léon Chertok e /sabelle Stengers
18 O mais sublime dos histéricos, Slavoj Zizek
19 Para que serve uma análise?, Jean-Jacques Moscovitz
20 Introdução à obra de Françoise Dolto, Michel H. Ledoux
21 O conceito de renegação em Freud; André Bourguignon
22 Repressão e subversão em psicossomática, Christophe Dejours
23 O pai e sua função em psicanálise, .loel Dor
24 A histeria, 1. -D. Nasio
25 HOiderlin e a questão do pai, Jean Laplanche
26 Eles não sabem o que fazem, Slavoj Zizek
27 A ordem sexual, Gérard Pommier
28 A neurose infantil da psicanálise, Gérard Pommier
29 Pulsão e inconsciente, Noga Wine
30 Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan, 1. -D. Nasio
3 1 Psicossomática, 1.-D. Nasio
32 Fim de uma análise, finalidade da psicanálise, Alain Didier- Weill
33 Freud e a mulher, Paul-Laurent Assoun
34 Conversas com o Homem dos Lobos, Karin Obholzer
35 Eros e verdade, 1ohn Rajchnu:m
36 Leitura das perversões, Georges Lanteri-Laura
37 O olhar em psicanálise, 1.-D. Nasio
38 Amor, ódio, separação, Maud Mannoni
39 O homem diante da morte, Maud Mannoni
40 O real e o sexual, Claude Conté
41 Introdução às obras de Freud, Ferenczi, Groddeck, Klein,
Winnicott, Dolto, Lacan,J. -D. Nasio

42 Metapsicologia freudiana, Paul-Laurent Assoun


43 A obra clara, 1ean-Claude Milner
44 O gozo do trágico, Patrick Guyomard
Este livro foi composto pela TopTex­
tos Edições Gráficas Ltda., em Times
New Roman, e impresso por Tavares
e Tristão Ltda., em fevereiro de 1 996.
I\ Transmissão da Psicanálise
V diretor: Marco Antonio Coutinho Jorge

23 O pai e sua função em psicanálise 34 Conversas com o Homem

1oel Dor dos Lobos


Karin Obholzer
24 A histeria
1. -D. Nasio 35 Eros e verdade
1ohn Rajchman
25 Holderlin e a questão do pai
'Jean La.planche 36 Leitura das perversões
Georges La.nteri-La.ura
26 Eles nã,o sabem o que fazem
Slavdj Zizek
37 O olhar em psicanálise
1. -D. Nasio
27 A ordem sexual
38 Amor, ódio, separação
Gérard Pommier
Maud Mannoni
28 A neurose infantil da psicanálise
39 O homem diante da morte
Gérard Pommier
Maud Mannoni
. 29 Pulsão e inconsciente
40 O real e o sexual
Noga Wine
Claude Conté
30 Cinco lições sobre a teoria
41 Introdução às obras de
de Jacques Laean

Freud Ferenczi, Groddeck,
1. -D. Nasio Klein, Winnicott, Dolto, Lacan

31 Psicossomática 1.-D. Nasio

1. -D. Nasio 42 Metapsicologia freudiana

32 Fim de uma análise, Paul-La.urent Assoun

finalidade da psicanálise 43 A obra clara


A la in Didier- Weill 1ean- Claude Milner

33 Freud e a mulher 44 O gozo do trágico


Paul-La.urent Assoun Patrick Guyomard

I SBN 85 - 71 1 0-346- 1

9
111 1 1 1 111 1 11 1 11 11
788571 1 03467

IJ·Z·EI Jorge Zahar Editor

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