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Tribunais da Consciência
Inquisidores, Confessares, Missionários

Adriano Prosperi
TRIBUNAIS

DA Consciência
dSP UNIVERSIDADE DE SAO PAIM-O

Rfitor João Grandino Rodas


Vice-reitor Hélio Nofíiieira da Cruz

|ed"sp EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SAo PAULO

Direior-presidente Plínio Martins Filho

COMISSÃO editorial
Presidente Rubens Ricupcro
Vice-presidente Carlos Alberto Barbosa Dantas
Antonio Penteado Mendonça
Chester Luiz Galvão César
Ivan Gilberto Sandt»val Falleiros
Mary Macedo de Camarfít» Neves Lafer
Sedi Hiranti

Editora-assistente Carla Fernanda Fontana


Chefe Tcc. Div. Editorial Crisriane Silvestrin
ADRIANO PROSPERI

TRIBUNAIS
DA Consciência
Inquisidores, Confessores, Missionários

Tradução de
Homero Freitas de Andrade

Apresentação de
Adone Agnolin

edusp
I
Cop^TÍght © 1996 Giulio HinauMi cditorc s.p.a., Torino

Titulo orÍRinal em uaiiano: Tribumíli JelLi (Totcteniii In»fMs»!ttn5. (. V


fesson, Mtssionan

Ficha cataio^rúrica clalx^rada pelo Departamento Tecmco Jo Sistema


Intcprado de Bibliotecas da DSP. Adaptada cottforme Normas da l:».lus|-«

Prospcri, Adriano.
Tribunais da con.sciOncia : inquisidores, confe.ssores. missionários
Adriano Prosperi; tradução de Homero Freitas de Andrade. - São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 201 ?.
704 p.; 26 cm.

Titulo orÍRÍnal : Tribunali dflUi coscienja. /nquniiun, lon/ejson. misuorniri.


Inclui Índice de luRar.
Inclui Índice onomástico.
ISBN 978^5-314-13704

1. Inquisiçãt). 2. Ctmtrarreforma - Itãlia. 3. Concilio. 1. Andrade,


Homero Freitas de. II. Titulo. III. Titulo: Inquisidores, confe.ssores, mi.s-
sionãrios.

CDD 272.2

Direitos em língua portuguesa reservados à

Edusp - Editora da Universidade de São Paulo


Rua da Praça do Relógio, 109-A, Cidade Universitária
05508-050 - Butantã - São Paulo - SP - Brasil
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www.edusp.com.br - e-mail: edusp@usp,br

Printed in Brazil 2013

Foi feito o depósito legal


Para Anna
Sumário

Brevk Apresentação lx^ autc:)R e ha Obra para a Ediçào Brasileira


(AJonc A^nolin) ^^
Prefácio

Premissa

Lista das Abreviações


ÍNDICE das Ilustrações

Primeira Parte: A Inquisição


Prõlogo - A Experiência calabresa 61
I - A FÉ Italiana

II - O Nascimento da nova inquisição 87


III - Inquisição Romana e Estados italianos 105
1. Milão e Nápoles. A Alternativa da Inquisição Espanhola na Itália 111
2. Florença
3. Veneza

4. Poderes Flexíveis: A Diplomacia, as Cartas 144


IV - concílio ou "Guerra espiritual" 157
1. o Processo Conciliar de Gionanni Grimani 167
2. O Caso de Agostino Centurione 169
V - O Desenvolvimento da congregação do Santo Ofício 173
VI - A cruel inquisição
VII - o ÂMBITO INQUISITORIAL: OS FUNCIONÃRIOS 213
VIII - O ÂMBITO INQUISITORIAL: AS REGRAS 225
10

Segunda Parte: a Coni-issAc^

Premissa - Questões de c:onsuihnc ia :4i


IX - Inquisidores e Cc^nfhssc^res: Presuriuões :47
X - Inquisidores e Coneessorks: ni;suRK. ôi;s
XI - A Confissão no conc:ílk^ df trfnto :si
XII - Bispos e Inquisidores para uma Souifdadf c:ristA
xiii - RITOS DE Passagem, Passacuíns c^brigatorias
XIV - Instrumentos e ObstAui ia^S: o c:i.fro dos c:on\ fntos
E das Paróquias ^^19
XV - Controle das Consc:iènc:ias f: c:ontrcm f ih^ Tfrritorio:
Redes episcopais e Redes Inquisitcm<iais
XVI - Bispos e Inqliisidores: Sobreposições e lx^nflitos 349
1. o Teatro
2. A Blasfêmia
xvii - Crer em Bruxas: Bispos e Inql isiix^res diante da "SuperstiuAc^" Ml
xviii - Pedagogia Inquisitorial 405
XIX - Uma Inquisição "Pastoral"? 415
XX - Inquisidores e Exorcistas 421
XXI - Santidade Verdadeira e Falsa 433
XXII - Obrigar à Confissão, Controlar os Confessores 453
XXIII - Foro Interior, foro exterior 473
XXIV - Confissão como Consolação e auxílio, a Obra dos Jesuítas... 481
XXV - INQUISIDORES E CONFESSORES: A SOLL/C/TAT/Ü AD TURPIA 501
XXVI - CONFESSORES E MULHERES 511
XXVII - "Acreditar com o Coração" 531

Terceira parte: Os Missionários

XXVIII - AS NOSSAS ÍNDIAS 539


1. Silvestro Landini e a Descoberta do "Exótico Interior" 539
2. Apóstolos e Missionários 548
3. A Defesa da Fé: O Missionário entre Bispos e Inquisidores 553
4. Indipetae: Mitos Exóticos e Propaganda 568

Tribunais da Consciência
XXIX - o MHTcMX^ missionário 581

1. Oartas Jc Países Distantes 581


2. Cultura 587
V Civili:a(;;u) ^15
4. C*ontunhãt> e Ct)inunidatle: As Pazes 616
XXX - RiTc:)S DE Passagem 623
1. O Matrimôniu 623
2. Nascimento e Morte 631
CA 637
XXXI - A VIAGEM DO PEREGRINO, A PROCISSÃO DO MISSIONÁRIO 649
Índice dos lugares 653
ÍNDICE Onomástico 659

Sumário
IV

CoNcíLio OU "Guerra espiritual"

Abula Licet ah IniUo rornt>u explícita uma fundamental,aquela entre concilio


e inquisição. Eram, naquela épiKa, duas idéias, duas imagens sugestivas, ainda não
incorporadas pelas instituições. Mas a oposição entre ambas era clara para todos. Eram
duas vias diametralmente opostas para fazer frente aos problemas da crise religiosa. Foram
percorridas em rápida sucessão: em 22 de maio de 1542 tinha sido lida em consistório
a bula papal de convocaçãt^ do concilio em Trento Initio nostri Pontificatus; em 29 de
junho, a bula fora publicada, numa situação internacional já agitada por incidentes que
prenunciavam o reinicio da guerra entre Francisco I e Carlos V. A declaração de guerra
situa-se entre a publicação da bula de convocação do concilio e a bula que instituiu a In
quisição romana. A seqüência das datas é por si só eloqüente, ainda que os historiadores
do concilio não a tenham evidenciado'. A via da guerra - a empreendida pelos exércitos
e a espiritual - era a alternativa ao concilio.
E no entanto, quando três anos mais tarde, encerrado o conflito militar, o con
cilio reuniu-se em Trento, nem por isso a Inquisição romana deixou de funcionar, pelo
contrário. Sinal de que o papado tinha razões profundas que o impediam de abraçar
sem reservas a via do concilio. Mas a alternativa entre concilio e inquisição formulada
na bula era bem fundada na realidade, ou pelo menos nas representações mentais. O
concilio que devia se tornar, como escreveu frei Paolo Sarpi em seguida, um instrumento
essencial para estabelecer e reforçar a autoridade papal era temido como o mais "eficaz
meio para moderar o exorbitante poder" do papado. O concilio reunido era a verdadeira
instância em questões concernentes à fé: ele era visto como a assembléia que resolveria
as controvérsias doutrinárias e restabeleceria a paz na cristandade. O concilio era o lugar
da paz, onde ninguém devia ter medo: exatamente o contrário do tribunal da Inquisição,
que era o lugar e o instrumento da guerra espiritual. Certamente, a morte de Huss na
fogueira em Costanza era um lúgubre aviso destinado a manter viva a desconfiança em
relação ao Concilio. Mas em Trento procurou-se fazer um caminho diferente: e assim,
no ato da convocação do concilio, um salvo-conduto garantiu a todos a possibilidade
de ir até lá e vir embora, sem ter que temer detenção ou qualquer processo por idéias

1. Nem Sarpi, por exemplo (cf. Istoria dei Concilio Tridentino, vol. I, 1.1, org. de Corrado Vivanti, Torino, 1974,1,
p. 172), e nem H. Jedin (Storia dei Concilio di Trento, vol. I, trad. it., Brescia, 1973, p. 510).
158

pessoais. E no entanto, mais que o salvo-cmiJuro toi .i t s|H r.uu .i «.le pinier expor
finalmente as próprias idéias à Igreja reunida com seu> hispo> qiK- lc\ou a Trento não
poucos espíritos inquietos: monges apóstatas ci>mo Ciit>rgio Siculo. I^spos c ptditicos ilus
tres como Pier Paolo Vergerio. Na primeira tase de sua ati\ idade. a assemideia conciliar
desiludiu essas esperanças com a definição da dt>utrina da jusiiíicasão. que estabeleceu
uma rígida fronteira entre verdade e erro e congelou com seu> an.uemas as esperanças
de conciliação que restavam. A polêmica ausência do cardeal legado Keginald Pole nessa
sessão reforçou o significado de reviravolta di> decreto si>bre a )ii.stiticaçãi>. Coube a
outro cardeal legado que também era membro tia ci>ngregaç."u> ri»mana da Inc^uisiçào,
Marcello Cervini, recolocar o concilio no sistema e na lógica tio t i>ntrt)le rtmiano em
matéria de fé: quando os bispos obedientes ao papa transteriram-se para Bt)lonha, vozes
insistentes demandaram um uso exemplar dos instrumentos int|uisitoriais. E dessa vez
o papa era chamado a dar um sinal evidente de seu poder tie soberam^: cimio e mais
que outros soberanos, devia eliminar a heresia de seu estado. Pevia tazê-lo justamente
na cidade onde se reunia a assembléia conciliar, antigo e tratlicional ptíder central da
cristandade em matéria de doutrina.
De dentro do próprio concilio, os expoentes do partido curial alçaram a voz para
pedir providências exemplares. Alvise Lippomano, bispo intransigente e inflamado
polemista antierasmiano e antiluterano, perguntava ao cardeal C^-rvini:

/ Por que em todas as terras da Igreja não se estabelece uma severíssima lnt]uisiçãt> ctmtra esses
tristes luteranos e não são castigados de acordo com seus méritos.^ No momento não quero falar de
Roma: falarei apenas de Bolonha. Não há ali um número infinito deles.'... l^izem que as inquisições
de Espanha e Portugal são demasiadamente severas, e eu replico que são muiti> úteis...-

E poucos dias depois, Tommaso Stella repisava o mesmo argumento: a inquisi


ção era necessária "principalmente em Bolonha, onde agora há o concilio"; mas era
necessária sobretudo para dar exemplo aos outros estados:

Quando acontecesse... a instituição de uma poderosa mas não menos caritativa inquisição
contra os hereges, de modo que nas outras terras da Igreja... creio que, além do exemplo que seria
para outros estados, arrancar-se-ia a raiz de tal pestilência em grande parte'.

O problema de Bolonha tinha um duplo aspecto para as autoridades romanas:


cidade universitária aberta à presença de estudantes e livros alemães, logo suscitara
2. A carta é datada de 16 de novembro de 1547(Gottfried Buschbell, Re/ormatíon wncl Iní/uisition in /talíen, op. ciL,
p. 289;é reproduzida também em M. Firpo e D. Marcatto (orgs.), II Processo Inquisitoriale dei Cardinal Giovonni
Morone, op. cie., U/l, pp. 247-248 nota).
3. Portanto, cinco anos após a bula de Paulo 111, a recém-nascida Inquisição romana não havia modificado subs
tancialmente os procedimentos e ordenações existentes, nem mesmo no estado da Igreja. A carta de Tommaso
Stella é datada de 10 de dezembro de 1547; é reproduzida por Buschbell, Reformation und /nquísítíon, op' ciL,
p. 67 nota. Cf. William Hudon, Marcello Cervini, op. cit., pp. 116 e ss.

A Inquisição
159

apreensões pela Jitiisão õe di>utrinas heréticas. Mas era também a segunda cidade do
Estado da Igreja e assumira uma tinirão de cenário solene para grandes representações
de poder ct)m a corDação de C^arlos V. Era uma função que não perdera mais; os festões,
as estátuas, os arcos do triunfo e as escritas celebrantes que foram preparadas para a
passagem de Paulo III em 1541 reproduziram no auge os cenários de 1530: seu autor,
Scipione Bianchini, era um homem intimamente ligado aos círculos que ele mesmo
chamava "esses nossos novos cristãos", onde se lia a literatura da Reforma e se esperavam
mudanças da Igreja"*. A entrada da cidade, a representação alegórica da fidelidade e da
obediência^ recordava o triste caso da dura punição de Perúgia de apenas um ano antes
e atribuía a Bolonha a função de filha exemplar de Roma. E se a obediência escancarava
a porta da cidade, dentro reinavam as imagens da religião, da fé e da caridade.
A realidade não correspondia a essas imagens de fachada: mesmo em Bolonha
novas inquietações religiosas agitavam círculos intelectuais e ambientes populares: o
herege siciliano Pat)h) Ricci, também conhecido como Lisia Fileno ou Camillo Rena
to, marcara com sua passagem o mundo citadino". Os fragmentos restantes do grande
arquivo bolonhês da Inquisiçãt) mostram que esses ecos permaneceram por muito
tempo. Não se tratou apenas de ecos: centros ativos de agitação e de organização da
dissensão comt)o que se percebe em torno do mercador Giovan Battista Scotti revelam
a importância cie Bolcmha na geografia da dissensão anticatólica na Itália'. A cidade
enchia-se de "livros proibidos luteranos e repletos de mil heresias"®. E essa notícia che
gava longe, se se pensa que Martin Butzer manteve uma série de contatos epistolares
com os grupos de Bolonha, de Mc')dena, de Ferrara e de Veneza^. Na Universidade de
Bolonha, a presença de Camillo Renato fomentava discussões sobre as "superstições"
a serem erradicadas e sobre a autoridade do papa: e na ação inquisitorial contra ele,
o conflito entre o inquisidor dominicano, o vigário do bispo e o legado papal abria
brechas para a fuga dc:) acusadc^'"^. Nas confrarias citadinas, onde a dimensão social da
vida religiosa continuava a se exprimir, a nova religiosidade cristocêntrica entrou em
clamoroso choque com as formas tradicionais de culto da Virgem e dos santos. Justa
mente no oratório de santa Maria delia Vita, em 14 de janeiro de 1543, o boticário

4. Carta de 30 dc dezembro de 1542, publicada por G. Fragnito,"Gli 'Spirituali' e Ia Fuga di Bernardino Ochi-
no", op. cit., p. 799. Bianchini é apontado como autor do programa por Leandro Alberti, Historie di Bologna,
ms. it. 97 da Biblioteca Universitária de Bolonha, vol. IV, c. 319r.
5. "Mais abaixo do Rheno havia uma grande mulher de veste longa com um cão aos pés e o letreiro Dum memor
ipsa mei. Chamavam-na fidelitas; Savena abaixo outra grande mulher que tinha a mão esquerda em cima do
buraco de uma colmeia de abelhas, e o letreiro:'Tu qui res hominunque deumque aeternis regis imperiis'",
foi denominada obedientia (carta de Marcantonio Gigli a Gian Battista Campeggi de Bolonha, 1° out. 1541,
em Archivio di Stato di Bologna, fundo Malvezzi-Campeggi, s. III f. 530, cc.n.n.).
6. Cf. Rotondò,"Per Ia Storia delFEresia a Bologna nel Secolo XVI", op. cit., pp. 107-154.
7. Firpo e Marcatto (orgs.), II Processo Inquisitoriale dei Cardinal Giovanni Morone, op. cit., passim.
8. Testemunho de Domenico Rocca, idem, IV, p. 466.
9. Cf. Paolo Simoncelli, "Inquisizione Romana e Riforma in Italia", Rivista Storica Italiana, C, 1988, pp. 1-125.
10. Cf. Camillo Renato, Opere. Documenti e Testemonianze, org. de Antonio Rotondò, Firenze/Chicago, 1968,
pp. 314 e ss.

Concilio ou "Guerra Espiritual"


160

bolonhês Girolamo Ranialdi (ou RinaiJi) tunitiii «.ic proposun na loitiira Ja matina a
passagem em que se invocava a aplicarão Ji>s mcnri»s Ja \ iriivui ai»s ticis. para grande
escândalo dos presentes. Detido e processadi> imedi.u.inu-nre. R.ini.ikii. apôs algumas
tentativas de defesa, declarou trancamcnte: "A minha intens.'ii> c viue se deve recorrer
a Cristo e não a outros"". Não eram problemas cjue diziam respeito .ipenas a Bolonha.
Em outra cidade, Siena, outra contraria dedicada á X iruem. jovem i>urives Pietro
Antonio devia escandalizar os presentes durante a oração n.i \ esper.i «.le rinh^s os santos
de 1544, sustentando que Cristo era o únict^ mediador e que '\>s s.uiri>s não deviam
ser invocados"'^. Mas as coisas bolonhesas ect>avam *.le torma bem vliferente em Roma.
De resto, parece que em fevereiro de 154^ - e portanto pouco api>s .i cri.tção do Santo
Ofício romano - havia justamente em Bolotiha "uma legião ^le luteramcs" nas prisões
do governador. "Qualquer trapeiro pretende falar da fé e tazer as interpretações a seu
modo - queixava-se um bolonhês - Se um nãt> ê castigado, a cois.i se espalha demais".
Mas quem e como devia puni-los.' Falava-se em peria de tm)rre. "mas nãi> sei - dizia o tal
bolonhês, aludindo à venalidade dos tutores da justiça - se a im>rte serã pelo pescoço
ou pela bolsa". O governador, Benedetto C^onversini, preparava-se porratittí para tirar
dinheiro deles. "Mas que seja o Senhor Deus a defender a santa té, jutiti^ com a santa
igreja romana". E se precisava invocar a prcueção divina, queria dizer cpie a Inquisição
não agia e não era visíveP'.
A vigilância em matéria de religião permatiecia etitregue - mesmi^ rio estado da
Igreja - à autoridade temporal, não à espiritual. A autoridade do papa era represen
tada ali por cardeais legados de grande prestígio e capacidade piilítica, como Gaspare
Contarini e Giovanni Morone:sobre as relações pessoais de ambt^s cotn idéias e grupos
heréticos devia recair dali a pouco uma carregada sombra de suspeita que, unida à dis
persão das fontes inquisitoriais, não nc^s auxilia a compreerider muito da situação que
se criara naqueles anos em Bolonha. E certo, no entarito, c]ue toi o governador a deter
e a processar os hereges, na cidade que possuia uma inquisições disminicana numa sede
antiga e prestigiosa com homens como Tommaso Maria Beccadelli e Leandro Alberti.
A autoridade episcopal estava nas mãos de Agostino Zanetti, homem pio e solícito no
governo da vida religiosa da diocese: mas a iniciativa na luta cesntra os "luteranos" e os

11. Dos fragmentos do processo(conservados no ms B 1927 da Biblioteca deirArchiginnasio) resulta que o inter
rogatório é conduzido pelo vigário do bispo. O episódio foi narrado em Rotondò, "Per Ia Storia delfEresia a
Bologna ,op. cit., pp. 137 e ss. Ver também as observações posteriores de Rotondò a esse respeito em "Anticristo
e Chiesa romana. Diffusione e metamorfosi d'un libello antiromano dei Cinquecento",em Fonne e Destinazione
dei Messaggio Religioso. Aspetti delia Propaganda Religiosa nel Cinquecento, org. de Rotondò, Firenze, 1991, pp.81,
86 e ss. Sobre a confraria bolonhesa, cf. M. Fanti, Lm Confratemitá di S. Maria delia Morte e Ia Conforteria dei
Condannati in Bologna nei Secoli XIV e XV, Perugia, 1978: um quadro do conjunto das contrarias bolonhesas é
oferecido por N. Terpstra, Lay Confratemities and Civic Religion in Renaissance Bologna, Cambridge U.P., 1995.
12. Dos depoimentos do processo citados por Valério Marchetti, Gruppi Ereticali St'ne.':i dei Cinquecento, Firenze,
1975, pp. 51 e ss.
13. A carta, de 2 de fevereiro de 1543, é dirigida a Gian Batti.sta Campeggi, bispo de Majorca, e está conservada
no Archivio di Stato di Bologna, fundo Malvezzi Campeggi, s. III, f. 531, cc. n. n. Sobre a situação bolonhesa
daqueles anos, cf. A. Battistella, II Santo Officio e Ia Riforma Religiosa in Bologna, BoKigna, 1905.

A Inquisição
161

hereges de ti)di) ripo tt)i deixada - at) que parece - nas mãos das autoridades temporais.
Leandro Alberti, contando as histórias desses anos, mencionou que fora o próprio go
vernador a tomar a iniciari\'a, "percebendo que muitos disputavam sobre assuntos da fé
católica, até os sapateiros e outros vis artesãos e diziam coisas heréticas"'^. Houve uma
intervenção da congregação romana, todavia, a respeito dt)campo delicado e urgente da
censura dos livros: entre t»s primeiros atos do Santo Oficio houve de fato o decreto de
12 de julho de 1543, datado de Bolonha, através do qual se aviava na cidade a vigilância
em matéria de publicações heréticas. Justamente por ser matéria difícil e os meios de
intervenção do Santt> C3ficio nã(.> permitirem fazer mais - como se lê no documento -
decidia-se partir da cidade de Bolonha e confiar a Beccadelli e a seu substituto Leandro
Alberti a tarefa de manter a vigilância sobre a difusão dos livros heréticos'^.
Mas foi sobretudo por ocasiãt) da transferência do concilio para Bolonha que a
questão assumiu caráter de emergência, como prova de que se exigia dessa cidade uma
função exemplar, de espelho; e por isso, urgiam medidas anti-heréticas em Bolonha,
para mostrar o que o papa sabia fazer em seu estado.
A denúncia não caiu no vazio. É certo que os protestos continuaram: ainda em
1549 o novo inquisidor Girolamo Muzzarelli, homem de confiança do cardeal legado
Dei Monte e mais tarde magister Sacri PaUitii, declarava ter encontrado em Bolonha "um
grande emaranhado de heresias""'. Mas durante todo o tempo em que o concilio - em
sua componente de obediência papal - continuava a reunir-se em Bolonha, a questão
não era de fácil solução: o papa era chamado a escolher entre o rosto doce do pai
comum dos cristãos e o duro e decidido do soberano de um estado que, como outros
e mais do que outros, devia afastar a mácula da heresia. Não que houvesse incertezas
a respeito: era uma questão de poder e como tal devia ser resolvida. A linguagem das
imagens demonstra-o, ainda que através do véu das fábulas pagãs: a praça Maggiore de
Bolonha,sob Pio IV, foi povoada por imagens de um poder soberano firme e inexorável'^.
Mas esse poder não estava em condições de manifestar-se abertamente na situação que
se criara durante o período bolonhês do concilio: a presença da assembléia conciliar
ao lado das instituições inquisitoriais criava uma possibilidade de conflitos que em
Trento - terra do Império e portanto desprovida de Inquisição - não havia. Conflitos

14. Leandro Alberti, Historie di Bologna, vol. IV, Biblioteca Universitária de Bolonha, ms 97/lV, c. 330v(retomo a
indicação do estudo ainda inédito de Guido DalLOlio, Eretici e Inquisitori a Bologna nel *500(1525-1580). Tese
de doutorado em História da sociedade europeia. Universidade de Estudos de Veneza, 1993-1994.
15. Rotondò ("Anticristo e Chiesa Romana", op. dt., p. 84)sublinhou a origem bolonhesa do decreto da Inqui
sição romana.
16. Carta do cardeal Dei Monte a Cervini, Bologna, 21 fev. 1549(em Concilium Tridentinum, XI, org. de Buschbell,
Freiburg I. B., 1937, p. 494). Cf. Rotondò, "Per Ia Storia deirEresia", op. dt., p. 136. A falta de clareza que
existe a respeito do titular do oficio inquisitorial em Bolonha naqueles anos foi ressaltada por Heinrich Lutz
(Nuntiaturberichte aus Deutschland nebst ergãnzenden Aktenstücke, vol. XIV, Nuntiatur des Girolamo Muzzcirelli. Sen-
dung des Antonio Augustin. Legation des Sdpione Rebiba[1554-1556],Tübingen, 1971, pp. X e ss.), que é eloqüente
quanto às condições em que se desenvolvia o trabalho do Santo Ofício.
17. A observação é de Irving Lavin, Passato e Presente nella Storia deWArte,(Princeton, 1993), trad. it., Torino, 1994,
cap. III: "Bologna è una Grande Intrecciatura di Eresie", pp. 93-124; em part. p. 118.

Concilio ou "Guerra Espiritual"


162

entre muitos e diversos poderes, nfu^ só entre eoneilii» e in^jiiisK .u >: i>no pôde ser visto
num episódio que teve como prí.>ta.m>nista o bispo de l.a\ elli>. dt>ininK ano Tommaso
Stella. A convite dos legados ao concilio, Steila - *.ienoniin.KÍt» i> "Alein."u>" - começou
a fazer sermões em San Petronio contra as di>utrinas Iteretuas. Mas v>utro d^uninicano,
Giovanni Battista de Crema, denominado de "Oem.isci»". subiu ai» |>ulpito e atacou-o
abertamente, contando com a proteçfu) do poderosi> con\enit> douunic.ino da cidade.
Era um confronto entre predadores, um episódio nada nv>\o no t,'vnvri>. M,is a liberdade
de discutir publicamente e de disputar os favores ».lo publico n.'u> era mais tolerável à
sombra de um concilio que devia se ocupar da definição e ».la *.lefesa «.Ia orti>doxia. De
resto, o concilio tinha baixado um decreto st)bre a pred.ição, .iprv»vav.lo h.ivia mais de um
ano: mas, como observou inci>modado o cardeal legado Pel Mi>nte, ninduvm parecia
ter se dado conta disso. Foi preciso o concilio pedir ao papa um breve «.pie obrigasse
ao cumprimento do decreto; deptus disso, o bispo de BoKmha Aless.indri> Campeggi
ordenou a Giovanni Battista que não pregasse mais sem su.i permissão. Resolvida a
questão de impor um mínimo de disciplina, rest;iv;i julgar o mérito das doutrinas
propostas e discutidas pelos dois pregadores. E para isso o cardeal legado "congregou
todo o Concilio... e propôs as heresias ditas pelo dominicano de Oema... E por decisão
unânime do Concilio foi proibido de pregar"''".
O episódio confirma o quanto a situação em Bolonha era confusa. Mas o conci
lio, ou pelo menos o que sobrara dele após a transferência determinada pelo papa, não
estava absolutamente em condições de impt>r a respeito de cjuestiães d<.> gênero uma
autoridade própria diferente dacjuela do papa. A solução foi iiiLluzir o concilio a tornar-
-se instrumento de práticas iiiquisitoriais giívernadas por Roma: e, se nãti o concilio
inteiro, ao menos seu secretário. O secretário do concilio, Ângelo Massarelli, seguia as
causas de heresia e transmitia ao inquisidor de Bolonha as ordens que recebia de Roma,
diretamente do cardeal Cervini: e Cervini, que era membro da congregação romana do
Santo Oficio, atuava como inquisidor, mas sob a cobertura do titulo de legado conciliar,
Um jogo de prestígios, graças ao qual nas correspondências conciliares encontram-se
histórias de interrogadores de hereges e deliberações do Santo Oficio'"^. São poucas
pistas, a partir das quais é difícil compreender qual tenha sido a ação empreendida
a época por Massarelli: quanto ao método, no caso dti livreiro Francesco Linguardo,
por exemplo, foi usada uma dosagem de severidade e de brandura. Pelas opiniões, foi

18. Das cartas de Girolamo Papino ao duque de Ferrara, carta de 14 de janeiro de 1548 (B. Fontana, Renata di
Francia Duchessa di Ferrara, vol. 11. Roma, 1893, p. 236). Cf. Filippo Valenti, "11 Cartefígio di Padre Girolamo
Papino Informatore Estense dal Concilio di Trento durante il Período Bolognese". em Archivio Storico Italiano,
CXXIV, 1966, pp. 303417, em part. p. 346. Giuseppe Alberigo (/ Vescovi Italiam al Concilio di Trento [1545-
■1547], Firenze, 1959, pp. 313-329) colocou acertadamente o episódio no contexto dos problemas da pregação
enfrentados pelo Concilio.
19. Uma carta de Cervini a Massarelli, de 17 de julho de 1548, a propósito de alguns "hereges encarcerados" em
Bolonha contém as diretrizes da congregação do Santo Ofício a serem transmitidas ao inquisidor de Bolonha;
está conservada em ASV, Concilio 139, e foi publicada por Alain Tallon, "Le Concile de Trente et Plnquisition
Romaine", Mélanges de í'École Française de Rome, CVl, 1994, pp. 129-159; em part. p. 132 nota.

A Inquisição
163

absolvido "sccrotaiiícnrc cni verdadeira coníissão" enquanto se procedia judicialmente,


acolhendo suas denúncias sobre a circulaç:u> dos livros prt)ibidos. Mas também nesse
caso, sobre um assunto cpie preocupava imensamente as autoridades inciuisitoriais,
tentou-se recolher intt)rmasões ('Mescobrir procedência"), de modo secreto, sem nada
transmitir à "corte secular" e prometendo servir-se daqueles depoimentos "para ganhar
aquelas almas com fraternas e cristãs admoestai;ões"''.
A suspensão do concilio deixou novamente o campo livre para a "guerra espi
ritual". E foi justamente em virtude da eficãcia ampliada e da dureza de métodos da
Inquisição romana que a questão se reapresentou, na última fase cU) concilio, em forma
de alternativa entre dureza romana e misericórdia conciliar. Porém, desde 1546, a rela
ção não era mais entre duas abstrações, mas entre dois poderes de traços institucionais
definidos: de um lado, a congregação romana do Santo Oficio, de outro o concilio (ao
menos durante t>s períodos em que estava em sessãi>). Foi dito com justiça que se tratou
de relações caracterizadas por inct^mpreensão e desconfiança*'. Não podia ser diferente:
não somente se tratava de instituições antitéticas por natureza, mas a própria definição
dos respectivos poderes em matéria de hereges a serem julgados criava zonas de atrito.
E foi justamente c]uanto a esse pimto que ocorreram confrontos e incompreensões.
Tratou-se de confrontos tãticos, de pequenas batalhas, visto c]ue no plano estratégico
a guerra já fora vencida pela Inquisição. Ao Concilio, que começou a funcionar numa
situação já comprometida pela existência do Santt) Oficio romano e ciue aceitou desde
o inicio a estratégia romana da definiçãt) das barreiras doutrinárias a serem erguidas
contra os hereges, restou apenas realizar escolhas caso por caso: ninguém no Concilio
discutiu sobre a Inquisição a não ser em termos cautelosos e defensivos, ninguém pôs
em discussão sua existência ou métodos. Foi a Inquisição romana a acusar os bispos e
cardeais; caso por caso, naturalmente, mas com o efeito de estender para todo o corpo
a suspeita relativa a alguns membros.
Alguns casos de bispos suspeitt)s e ás vezes processados por heresia lançaram
sombra sobre todo o episcopado. Uma teologia dominada pelo clero regular era o ins
trumento mais temível para um episcopado de formação cjuase exclusivamente jurídica e
literária. De resto, a partir das sessões do concilio línguas maléficas como a de Dionisio
Zannettini, o Grego, levantavam dúvidas e moviam acusações contra muitos bispos
italianos. Essas acusações encontravam ouvidos dispostos a acolhê-las e a submetê-las
a procedimentos judiciários. Não sabemos e talvez nunca saberemos quantos bispos
foram objeto de investigações inc^uisitoriais. O cjue deve ser evidenciado aqui é a dinâ
mica dos poderes, que mostra o envolvimento do concilio na organização inquisitorial.
No âmbito conciliar surgiu a suspeita de heresia em relação ao bispo dominicano
lacopo Nacchianti: em 5 de abril de 1546, discursando sobre a questão das fontes da reve-

20. Carta de Massarelli a Cervini, Bologna, 2 dez. 1548(Buschbell, Re/onnation und Inquisition, op. cit., pp. 308-309).
Luigi Carcereri ocupi)U-se dos casos dt>s livreiros investigados então,"Cristoforo Dossena, Francesco Linguardo
e un Giordano, Librai, Processati per Eresia a Bologna (1548)", em UArchiginnasio, V, 1910, pp. 177-192.
21. Tallon,"Le Concile de Trente et Tlnquisition Romaine", op. cit., p. 147.

Concilio ou "Guerra Espiritual"


164

lação, Nacchianti suscitou violentos clanu^rcs da scssfu» av> aliriuar ».jne era impio colocar
no mesmo plano a sagrada Escritura e as tradições - , Era uma lim^uauem que lembrava
a de Lutero"\ Nacchianti toi repreendido por Ri>ma. teve vle se lustitiear e suspendera
participação no Concilio. Não se dirigiu a Ri>ma. on*.le o processo o esperava; mas de
Roma partiu uma ordem secreta ao secretário di> concilu> para pri»ce».ler .i uma iriwsrigação
local. E Massarelli, em dezembro de 1548, dirigiu-se a Cduoggi.i e reuniu uma documen
tação processual que enviou a Roma no mês seguinte-^. Hr.i um.i ».loeumentação repleta,
segundo ele, de "coisas muito, muitt> teias e impias"-\ C')utr.» «.loeumentaçfuí, reunida no
outono de 1549 por dois comissários do Santo C^ticii> e cjue pi »de ser lida entre os papéis
venezianos, apresenta testemunhos de uma população ese.in«.l.ilizada: o bispo criticava
as indulgências - dizia: "por que tantos perdões.^ pt>r cjue tantos perdões.'" - implicava
com os cônegos que levavam em procissão um menino de carne e oss«.>. criticava» oculto
dos santos, mas dizia também que era impossivel Oisto estar na hóstia consagrada, pois
"seria preciso que a hóstia fosse de nosso tamanhi>"*'\
Não se conhece o êxito desse processo; de tato, lacopi> Nacchianti saiu livre das
acusações, visto que voltou anos mais tarde á cena do ctmcilio. Mas deve ter permane
cido por muito tempo dominado pelt) medtí, tendo em vista as exibições de ortodoxia
que forneceu nos escritos que publicou*'. As acusações cpie pesav am si^bre ele lembram
muito de perto as que tinham sido reunidas algum tempo antes a propósito de um
bispo que também entrara em conflito com as idéias tle seu clero e da população de
sua diocese: Píer Paolo Vergerio. Ora, foi justamente cast^ de Vergerio que as espe
ranças no concilio e a realidade das relações de força mostraram-se ct>m maior clareza.
Vergerio, que do concilio podia legitimamente sentir-se um promotor, chegara aTrento
em janeiro de 1546, perseguido por citações e denúncias, Não tora convidado para o
concilio, mas achava que sua condição de bispo lhe garantisse lí direito de participar.
Dirigia-se a ele "para submeter-se ao julgamento da igreja", como escreveu o cardeal
Gonzaga ao recomendá-lo ao poderoso cardeal Madruzzo, que em Trento era o anfi
trião. Devia ser protegido,segundo Gonzaga, até a ctmclusão da causa cjue pesava sobre
ele e que devia ser resolvida "ou pelo Concilio como um todo (como o tinham sido

22. Cf. Jedin, Storia dei Concilio di Trento, op. cit., vol. II, Brcscia, 1962, pp. 105-106.
23. "Parece que se está ouvindo Lutero falar", comentou Jedin (idem, p. 81).
24- Cf. Girolamo Carcereri,"Fra Giacomo Nacchianti Vescovo di Chioggia e Ira Girolamo da Siena Inquisiti per
Eresia (1548-1549)", em Nuovo Archivio Veneto, n. s. XI, 1911, pp. 468-495.
25. Carta a Cervini de 12 de janeiro de 1549; reproduzo a citação da monografia de Pietro Mozzato,Jacopo Nac
chianti un Vescovo Riformatore (Chioggia 1544-1569), Chioggia, 1993, p. 67.
26. Idem, p. 142(cost. 11 de octubre de 1549 do canônico Battista "de Epi.scopis").
27. Um violento ataque contra os "falsos evangelistas luteranos"("de lutheranis loquor, aliisque pestibus monstris-
que )pode ser lido na abertura de seu Opus Doctum ac Resolutum, in Quattuor Tracwtits, seu Quaestiones Dissectum,
Venetiis, apud losephum Vicentinum, 1557 (dedicado ao cardeal Antonio Trivulzio), onde polemiza contra as
teses de Pomponazzi sobre a mortalidade da alma. Na edição de suas obras publicada pelos Giunti em Veneza
(1567), a vontade de conformar-se "ad piae, atque ortodoxae fidei veritatem" é declarada já no título. Sobre os
escritos de Nacchianti cf. Friedrich Lauchert, Die Italienischen literaturiscen Gegner Luthers, Freiburg i. B., 1912,
pp. 584-612.

A Inquisição
165

tantas outras Jc bispos, acusaJt>s Jc vários pecados), ou por vós, cardeais, reunidos"^^.
Enfim, o processo devia ser conduzido em Trento e não em Roma. Se essas eram as
expectativas que até mesnn) um cardeal nutria em relação ao Concilio, a realidade não
demorou a desmenti-las. Verj,'erio não pôde fazer t)uvir sua voz aos padres conciliares,
mas apenas at) cardeal letrado Marcellií Cervini e a seus colegas Dei Monte e Pole; foi-
-Ihe dito que antes de ser admitido no concilie) devia submeter-se a processo senão em
Roma pelo menos em Veneza. Teve cjue se aiastar de Trento e, de sua estada forçada em
Riva, descreveu o concilie) ce)me)"uma criança que ainda não sabe andar nem falar"^^.
Mas essa frac^ueza, cpie Vergerie) ce)nsiderava apenas inicial, não foi mais superada: seu
processo - um de)s mais impe)nentes e ce)mplexe)s conservados no arquivo veneziano
da Inquisição - fe)i realizade) em Veneza e não em Trento, e enquanto os documentos
iam se acumulande) o acusade) amadureceu lentamente a decisão de abandonar a Itália
e a Igreja romana.
Perseguide) peir espie")es e pe>r incjuisidores, o inquieto bispo de Capodistria
tinha feito uma breve aparição na cena tridentina. Fora tratado com astuta gentileza:
era evidente que, se tosse empurrado para o caminho da apostasia, Roma teria um
adversário temível. Assim toi: sua fuga da Itália devia propiciar à Inquisição Romana
um de seus críticos mais ásperos; mas não houve alternativas reais. Aliás, o caso de
Vergerio serviu para confirmar a posteriori ciue o partido intransigente tinha conside
rado a questão corretamente. Com isso, as suspeitas contra as correntes mais abertas
do episcopado ciue já circulavam em Trento saíram reforçadas. Mas o caso de Vergerio
teve principalmente o significado de esclarecer em definitivo a quem cabia o poder de
julgar em causas de heresia. Dali em diante, ficou evidente que esse poder não estava
com o Concilio de Trento.

No caso do bispo de Bérgamo, Vittore Soranzo, a tempestade provocada pelo


Santo Ofício envolveu a diocese de Bérgamo: Soranzo atuou ali a partir de 1544,
primeiro com o título de coauditor do titular Pietro Bembo, depois como bispo. Sua
ação introduziu o que monsenhor Paschini denominou "um conjunto imponente de
reformas"^®. Um édito de 1544 foi destinado a restaurar a disciplina eclesiástica: os
clérigos foram advertidos quanto à obrigação da tonsura e do hábito, ao respeito do
celibato, aos deveres de residência; mas também foram proibidos os livros suspeitos
de heresia luterana, dando curso a uma ordem do Santo Ofício romano. Em sua ação,
Soranzo parece ter seguido modelos como aquele oferecido na vizinha diocese de Verona

28. A carta de Ercole Gonzaga foi publicada já à época por Vergerio, após sua fuga, de modo substancialmente
correto (cf. Anne Jacobson Schutte, Píer Paolo Vergerio e Ia Riforma a Venezia 1498-1549)(Pier Paolo Vergerio: The
Making of an halian Reformer, Genève, 1977), trad. it., Roma, 1988, p. 319 e nota 75).
29. Idem, p. 321.
30. P. Paschini,"Un Vescovo Disgraziato nel Cinquecento Italiano: Vittore Soranzo", em Tre Ricerciie sull« Storia
delia Chiesa nel Cinquecento, Roma, 1945, p. 126. Mas ver agora L. Chiodi,"Eresia Protestante a Bérgamo nella
Prima Metà dei' 500 e il vescovo Vittore Soranzo. Appunti per una Riconsiderazione Storica", Rivista di Storia
delia Chiesa in Italia, XXXV, 1981, pp. 456-485.

Concilio ou "Guerra Espiritual"


166

por Gian Matreo Gibcrti: rcsrauração Ja Jisciplina o». IcM.istu a. \ i^na pastoral à cidade
e à diocese (cujas atas se enciuirram reunidas eni n»»\e tunuis nu arv.jui\o da diocese),
reforma da vida relijíiosa no sentido de eliminar tiklo a^piili' que parecia supersticioso
ou ridículo: um édito de sua autoria é endereçadv> contra a tradu ao de citar os próprios
inimifíos in vallcm JosaphíU. Mas suri,Mram susjH-itas a seu respe!ii>; em abril de 1548
foram afixados manifestos pela cidade de Ber^amo em que era acusado de heresia.
Bérgamo foi então teatro de um duro contlito «.jue se desen\i»l\eu entre a Inquisição
romana e o bispo, apoiado por Veneza. Tornou-se celei^re ao menos um episódio desse
confronto, que teve como ator principal frei Michele Giuslu ri: o trade, na qualidade
de comissário do Santo Oficio, foi envia».lo a Bercaino por juiio 111 e pelos cardeais do
Santo Oficio e colheu informações a respeito de Sorann». Seus biocratos contam que
homens armados tentaram aj,'redi-lo t>u intimidã-lo. sem sucesso. Hscondido o dossiê
inquisitorial, Ghislieri fu^íiii ã noite do convento suburi\im) de Santo Stefano, graças
à ajuda do franciscano Aurélio Griani que lhe arranjou montaria. Parece que desse
episódio originou-se a estima particular que o cardeal c:arata teve por Ghisleri e daí
a rápida carreira que devia levar o frade ao cardinalato e. em seguida, ao pontificado.
E evidente que Ghislieri mostrou lembrar-se de bom grado do ejusódio: um de seus
primeiros atos logo que se torntni papa foi ct)nferir uma diocese a frei Aurélio, no
consistório de 8 de novembro de 1570. E Giulio Santoro. cjue conhecia bem a história
do Santo Oficio, anotou em seu diário que se tratava de um agradecimento a quem
lhe havia dado "montaria e ajuda" na missão empreendida contra Vittore Soranzo".
Gm eco das turbulências doutrinárias daqueles anos em Bérgamo pode ser en
contrado na crônica da cidade publicada em 155 5 por padre Barti>lomeo Pellegrini;
uma obra de celebração das glórias citadinas e dos ilustres pregadores do Evangelho,
que tinham tornado Bérgamo uma vinha fértil para os operários da palavra de Deus.
O concilio reunido em Trento não demorou a desenganar as esperanças de quem
esperava da assembléia suprema da cristandade uma franca assunção da tarefa de escutar
e julgar homens e doutrinas, de levar a paz às consciências, de escutar todos aqueles
que eram portadores de mensagens e de revelações. Um monge visionário, Giorgio
Siculo, esperou inutilmente ser ouvido pelo Concilio e acabou sendo condenado à
morte pela Inquisição. Mais afortunados, ct)mparativamente, um eclesiástico veneziano,
Giovanni Grimani, e um mercador genovês, Agostino Centurione, deveram ao poder
de seus estados o privilégio de serem julgados e absolvidos pelo concilio. Mas se tratou
de casos isolados, geridos na sombra por comissões complacentes, sem que jamais a
assembléia conciliar irradiasse aquela imagem de poder supremo que um século antes
fora sua característica. No entanto, vale a pena dar uma olhada nesses casos de processos
conciliares, para ver se a lógica que os guiava era diferente da cjue se estabeleceu nos
processos inquisitoriais.

31. Paschini, Tre Ricerche, op. cit., pp. 132-133. A anotação do cardeal de Santa Severina está no "Diário Concis-
toriale", ed. op. cit. De Tacchi Venturi, em Studí e Ducumenti di Storia c di Diriito, XXIII, 1902, p. 317.

A Inquisição
167

1. O PROCESSO CONC:iLIAR PE GlOVANNI GRIMANI

Giovanni Grimani, patriarca Jo Atjuilcia, tt>i objeto de acusações vagas de "lutera-


nismo" a partir de 1546 por suas ligações com personagens como Vergerio. O dele
é um caso menor que faz parte do grupo da caça ao herege no interior da hierarquia
eclesiástica italiana. C^>nvencido por Júlio íil, com a promessa de um cardinalato,
consentiu em lazer uma "purgação canõnica", que ocorreu diante do papa e de algu
mas testemunhas. Mas a prt)messa dt> cardinalato não toi cumprida; pelo contrário, a
oposição em relação a ele toi crescendo devido ã htístilidade pessoal de frei Michele
Ghislieri, guindadt> a altíssimos níveis de poder sob o papado de Gian Pietro Carafa.
Com o novo pontífice, Pio IV, as coisas não melhoraram: o embaixador veneziano que
fora solicitar a almejada eleição cardinalicia ouviu ã guisa de resposta que aparecera
um documento muitt> grave ci>ntra o patriarca. Caíra em mãos da Inquisição uma
longa instrução st)bre predestinação que Grimani tinha mandado a seu vigário em
1549^2 Um pregador tinha afirmado que os predestinados por Deus à salvação não
podiam de modo algum ser condenados ãs penas do interno nem podiam se salvar os
"precitos", ou seja, aqueles que, segundo a previsão divina, deviam se danar; o vigário,
preocupado com o escândalo, pedira esclarecimentos. E Grimani não só respondera
que "a conclusão do pregador... é verdadeira e católica", mas tinha sustentado por
escrito a validade da afirmação com longas argumentações. Agora aquela carta fora
entregue ao cardeal Ghislieri por "alguns inimigos dele", como foi dito ao embaixador
veneziano Da Mula (provavelmente, um cõnego de Cividale): e Ghislieri tirara essa
carta da manga justo na iminência das nomeações cardinalícias, para impedir a de Gri
mani. O papa, solicitado a tratar pessoalmente da questão, confessou sua impotência
com frases impressionantes pelo c]ue revelam do aumento do poder do Santo Ofício:
"Que podemos fazer.' - parece dizer chorando ao embaixador veneziano - Nós não
podemos cuidar de tudo sozinhos; são eles os encarregados da Inquisição" O que
aconteceu a Grimani nos meses seguintes mostrou que as coisas estavam exatamente
assim. Obrigacio a responder por escrito às objeções dos inquisidores, o patriarca de
Aquileia teve que sofrer os efeitos da hostilidade do poderoso cardeal Ghislieri. Em 16
de setembro de 1561, na congregação do Santo Ofício, na presença de Pio IV, foram
lidos pareceres e emitidos votos escritos de condenação: dizia-se ali que as proposi
ções de Grimani eram heréticas e que se devia chegar ao processo regular contra ele.
Diante dessa ameaça, Grimani partiu prontamente para Veneza (decisão que levou
seus inimigos a falarem em uma verdadeira fuga) e de lá interpôs apelo ao Concilio.
Iniciou-se uma difícil tratativa, na qual interveio o próprio cardeal sobrinho. Cario
Borromeo, para convencer Veneza a não apoiar Grimani; e seu argumento mais forte
foi que o julgamento do concilio só podia reiterar o ponto de vista do Santo Oficio:

32. A carta do embaixador veneziano Da Mula, datada de 21 de fevereiro de 1561, é reproduzida por P. Paschini,
"Giovanni Grimani Accusato d'Eresia", em Tre llliistri Prelati dei Rinasdmento, Roma, 1957, pp. 155-158.
33. Carta de 22 de fevereiro de 1561, icícm, p. 160.

Concilio ou "Guerra Espiritual"


168

Nem sua Serenidade (o di>j:e) deveria pois .icrci.lit.u ijuo este ^.intisNniu» Irilninal de Roma,
no qual estão tantas personalidades de muita virtude, inteurul.ivle e doutrina, tosse .Kiisari> Patriarca
de coisas das quais o concilio nãi> tosse ía:er *.> mesmo, e talve: tom rn.iuT se\eritl.ule e rigor^.

Em todo caso, decidiu-se lazer pesar suEre a cabeia tlc C inni.ini uma citação ad
comparendum diante do Santo Olicio, a ser cntrcuue apenas se tt)s>e visn^ de partida
para Trento. Foi imprescindível a habilidade de outra \ itim.i ilustre d.i Iriquisiçâo, o
cardeal Morone, para concluir a questão. O compromisso .i cjue se chefiou com dificul
dade, após meses de atentas manobras, consistiu em ct>níiar a (.juestão não ã assembléia
conciliar inteira, mas a uma comissãt> que reunia prel.KK>s (,le s-.irias "trações" junto
com alguns gerais das ordens religiosas presentes em Trento: .i comissãi>, designada
em 19 de julho de 1563, reuniu-se na casa de Mt>rone em 1 ^ v.le agosto. Cada um dos
membros emitiu oralmente seu parecer, que depois toi registrado por escrito, a pedido
de Morone. A sentença formal toi pronunciada em 5 de setembro e tornada piiblica
no dia 17; mas já em 26 de agosto uma carta de Trento relata o conteúdo do parecer
emitido pela comissão dos deputados, "os quais pronunciaram de comum acordo que
nos escritos de monsenhor Patriarca não haviam encontrado coisa alguma que não
estivesse conforme a verdade católica" Era uma coriclusão diametralmente oposta
àquela do Santo Ofício. E natural que se pergunte "por cjue a carta de Crimani,julgada
herética pelos teólogos de Roma em 1561, pôde ser considerada isenta de erro pelos
teólogos de Trento em 1563"^^. A leitura dt) ciue restou de ambos os processos pode
nos ajudar a entender melhor'^.
Diante de Pio IV, na sessão do Santo Ofício, tinham sidt> lidais t)s votos escritos
do geral dos jesuítas Laínez, do franciscano trei Felice Peretti (depiíis papa Sixto V), de
frei Cornelio Musso,do bispo de Lanciano Leonardo Marini, de Jact>pt) de Noguera,do
geral dos dominicanos frei Eustachio Locatelli. Laínez tinha antecipado considerar que
Grimani era pessoalmente um filho obediente da Igreja; e no entanto, tinha cometido
em boa-fé erros doutrinários graves, proferindo afirmações escandalosas e temerárias que
retomavam a heresia de Pelágio. Para Peretti, tratava-se contudo de erros já condenados
em Wyclif e Huss. Cornelio Musso observou que - após o esclarecimento prestado
pelo Concilio sobre essas questões - a carta parecia "de heresi lutherana vehementer
suspectam"; apenas Jacopo de Noguera não encontrou nada que não estivesse de acordo
com as idéias católicas, mas fez saber ainda que tinha conhecimento de uma anterior
abjuração de vehementi feita anteriormente por Crimani; a reunião foi encerrada como
voto do dominicano Locatelli, o mais duro, que se concluiu solicitando que se passasse

34. Carta de Borromeo ao núncio em Venezia, 21 mar. 1562, idem, pp. 178-179.
35. Carta de Muzio Calino, citada por Paschini,"Giovanni Grimani Accusato d'Eresia", op. cit., p. 189.
36. Idem, p. 193.
37. No arquivo romano da Companhia de Jesus é conservado um processo que reúne, em cópia e na ordem, as
atas da comissão de Trento de 1563 e os registros da congregação do Santo Oficio de 16 de setembro de 1561
(Processus S. Inquisitionis sub Pio IV 1563 contra errores Patriarchae Acjuileiensis in matéria iustificationis et votwm P.
lacobi Lainez circa eosdem errores, ARSl, Opp. NN. 207).

A Inquisição
169

ao processo formai. Rumo bem diferente tomaram os votos apresentados em Trento, na


reunião orj^anizada pi>r Morone: ausente o j^eral dt)s dominicanos, destituído na última
hora, tinham tomado a palav ra cardeal de Lorena, o cardeal Madruzzo - ou seja, os
chefes reconhecidos do partido francês e do imperial - e em seguida Stanislau Hosio,
Andreas Dudith, bispo de Pêcs, Pedro Cnierrero, bispo de Granada e influente porta-voz
do episcopado espanhol, Egidio boscarari, bispo de Módena, Martin de Córdoba, bispo
deTortosa, o abade beneditino Agostino Lt>schi. Ao contrário dos votos do Santo Ofício,
os votos desses últimos eram ti>dos concordes em julgar não herética a carta de Grimani,
aliás devia ser considerada lamquam caiholicam. Dudith acrescentou uma observação
curiosa: a carta de Círimani, escreveu ele, exprimia idéias ortodoxas, mas em tempos
tão infelizes como os que corriam era aconselhável não publicá-la para não encorajar os
homens a interpretarem as sagradas escrituras a seu bel-prazer. Se se levar em conta o fato
de que alguns anos antes, em 1556, Andreas Dudith tinha se dirigido a Célio Secondo
Curione,suplicandcvlhe ajuda para um arranjo que lhe permitisse deixar a igreja católica,
será possível compreender melhor essa leve esfumatura de nicoclemismo, que se enquadra
bem em sua complicada pt)sição pessoal de bispo secretamente dissidente'®. Mas todos
os demais votos expressaram franca aprovação das idéias de Grimani. O último voto,
o do beneditino Agostint) Loschi, declarou nada mais ciue um entusiástico consenso: o
abade de San Benedetto de Ferrara, membro da congregação de Montecassino que
criara a heresia "pelagiana" de Giorgio Siculo, elogiou o texto de Grimani pelo modo
como defendia a liberdade do arbítrio humano''^.
Trata-se de leituras todas discordantes entre si: aquele texto podia parecer pela-
giano ou luterano, conforme o leitor. Mas as leituras eram concordantes, no entanto,
no que concerne à disposição de fundo: absolutória a da comissão de Trento, conde-
natória a romana. Em suma, a sentença não depende tanto da análise feita pelos votos
individuais, mas pré-existe de certo modo ao julgamento dos indivíduos. E a tendência
dos prelados do concilio era diametralmente oposta àquela do Santo Ofício.

2. O CASO DE AGOSTINO CENTURIONE

Naquele mesmo ano de 1563, já próximo de seu encerramento, o concilio também


examinou o caso de Agostino Centurione. Esse rico e poderoso mercador genovês, que
vivera muito tempo em Lyon e em Genebra, acabara adquirindo opiniões "luteranas ,
isto é, calvinistas; citado pela inquisição de Gênova, decidira buscar caminhos mais
tranqüilos para "reconciliar-se" com a Igreja. Num primeiro momento, tinha tentado
o caminho de poderosas recomendações e pedira à irmã que escrevesse à mulher de

38. A carta a Curione,desconhecida por P. Costil(André Dudith Humaniste Hongrois, Paris, 1935)foi publicada por
Lech Szczucki e T. Szepessy(Andreas Dudithius, Epistulae, pars I, 1554-1567, Budapeste, 1992, pp. 55-61).
39. "!...] Non solum esse catholicum sed etiam catholico sensu scriptum. Confirmat enim Deum non esse malo-
rum causam, docet insuper ita arbitrii libertatem, ut et paedestinatus possit aliquando peccare et praescitus
ad tempus benefacere"(voto datado de 15 de agosto de 1563, Processos, op. cit., cc. 35v-36r).

Concilio ou "Guerra Espiritual"


170

Donato Matteo Minalc, tcsi>urcirc> papa; mas «.Icpois Jt culira JiriuMr-so a Trento. E
aqui considerações políticas de \ ãrit>s tipos - sobretudo. .» possihilui.i^ie «.Io reconduzir
à igreja, através de Centurione, alguns dos nulill>^ cai\ ini>t.»s cjiie tinham íi>rmado em
Gênova uma verdadeira igreja - toram alegadas peU)s lega^los p.»ra reforçar a oportu
nidade desse processo: mas também nesse caso tomou-se cuKÍado para ri;io lesar as
prerrogativas do poderoso organismo n>mani> do Santo C^f icio. Rect»rreu-se então a um
subterfúgio legal: Centurione foi julgado em Trenti>. m;is peK) ar«.ebispo de Gêno\'a,
Agostino Salvago, "juntamente com um par desses prela».K>s"^ . Gi>nu) t.lizer que se
tratava de um processo normal diante da autt>rid;Kle or«.hn.iria. e c|ue so o acaso fazia
com que se desenvolvesse em Trento? Essas e t>utr;is ct>nsiderações analogas chegaram
ao conhecimento do Santo Ofício, seja diretamente, seja ;itra\és ..l.i influente e hábil
mediação do cardeal sobrinho CarU) Borromeo. E naturalmente o processt> foi concluí
do do modo desejado por Centurione. Porém, mais do cjue a conclusão, o que parece
mais significativo é o confrt^nto c]ue ocorreu entàt^ entre o S;»nto C^ficio de R(.>ma e os
cardeais legados do concilio. Esses últimos, ao defenderem seu feiti>, não se referiram
à autoridade do Concilio, mas refugiaram-se atrãs da antiga oposição entre bispos e
frades: os quatro prelados responsáveis pelo processo,"não pt>demi>s negar - escreveram
os legados - que não sintam muito mal que os mencionados C?ardeais da Inquisição
demonstrem de certo modo (como eles dizem) confiar mais nt) frade inquisidor de
Gênova do que neles". Era uma defesa bastante frágil; mesmi> assim, os legados não
escondiam uma crítica substancial aos procedimenttxs do Santo C^fício, demasiadamente
duros e não adequados à época: estavam ct)nvencidos de "que nos tempos c]ue correm
não era conveniente usar de rigor, que, ao contrárit), era necessãriií cmn modos bran
dos e amáveis mostrar o desejo de c|ue t)s desviados voltassem ao bom caminho e se
juntassem à santa Igreja, fazendo com que soubessem que ela, como benigna e piedosa
mãe, estava de braços abertos para receber a todos com caridade"'^'.
Era uma oposição fundamental: mas o tom do protestt) era de cjuem devia su
portar um poder superior e temível, que não se podia nem sec]uer roçar com as críticas.
De resto, entre aqueles juizes conciliares havia alguns julgadt)s pela Inquisição (Egidio
Foscarari) e isso era suficiente para tornar claras as relações de poder.
Restou ao concilio apenas a possibilidade de estabelecer como proceder para
reconciliar aquele que, arrependido dos próprios erros, pedia para voltar à comu
nhão eclesiástica: após os rigores de Paulo IV e seu terrível fndcx dos Livros Proibidos,
eram muitos os que tinham sido atingidos pela excomunhão por heresia, mas que não
ousavam denunciar-se diretamente à Inquisição. Na retomada dos trabalhos em Trento,
foram os franciscanos observantes do convento local de San Bernardino, que conhe-

40. Carta dos legados a Borromeo,Trento,7 jan. 1563,citada por Liiígi CarcererI,"Agostino Centurione Mercante
Genovese Processato per Eresia e Assolto dal Concilio di Trento (a. 1563)", em Archivio Trentino, XXI, 1906,
p. 6 do extrato,
41. Carta de 8 de março de 1563, idem, pp. 15-17 do extrato. Cf. também A. Tallon, "Le Concile de Trente et
rinquisition Romaine", op. cit.

A Inquisição
171

ciam bem essas CDÍsas por meio tia contissfu), a ct)locar os le^atU)s diante do problema
da reconcilia<;ãt) dos arrependidos. C^s lej^ados, com cautelosas inda^íações a Roma,
obtiveram a licen(;a para uma al">solvi(,ão coletiva que foi dada no dia de Pentecostes de
1561^^ Mas que se devia recorrer a Roma - até mesmo quando o poder de absolver os
hereges estava olicialmente entre as faculdades dos legados - era evidente para todos; e
o comportamento cauto e desconfiadt) do papa Pio IV e de seu sobrinho não foi capaz
de apagar a lembrança recente de Paulo IV. A estrutura inquisitorial, fortalecida pelo
poder finalmente conquistado, chegou ao ponto de recusar qualquer colaboração com
Trento: o que pôde ser visto claramente cpiando um notãrio de Bérgamo, Vincenzo
Marchesi, herege relapso e fugido das prisões da inquisição milanesa, dirigiu-se a Trento
em 1563 e apresentou aos legadt)s uma comovente súplica -"levou-nos verdadeiramente
à piedade e ã compaixão por ele", escreveram a Borromeo''\ Foi necessária uma verda
deira obra de persuasão por parte de Pit) IV para convencer Michele Ghislieri a expedir
aos legados os autos em seu poder.
A esperança de um ct)ncilio capaz de sanar as fraturas religiosas e não de exacerbá-
-las demorou muito a morrer. Mas a alternativa entre inquisição e conciliei foi resolvida
rapidamente pelo papado a completo favor da inc]UÍsição. Aquela congregação cardi-
nalícia da Incjuisição ciue, em 1542, era oficialmente apresentada como uma medida
provisória à espera do concilio, vinte anos mais tarde era a titular de um poder que o
concilio mal ousava roçar.

42. A questão é tratada na correspondência dos legados com Cario Borromeo QosefSusta, Die Rômische Kurie und
das Konzil von Trient unter Pitis IV, Viena, 1904-1914,1, pp. 17 e 19. Cf. também Tallon,"Le Concile de Trente
et rinquisition Romaine", op. cit., p. 134).
43. L. Carcereri, "Appunti e Documenti suirOpera Inquisitoriale dei Concilio di Trento nelfUltimo Periodo
(1561-1563)", Rivistfl Trídentina, X, 1910, pp. 65-93; e Tallon,"Le Concile de Trente et Plnquisition Romaine ,
op. cit., pp. 142-143.

Concilio ou "Guerra Espiritual"


V

o Desenvolvimento da

Congregação do Santo Ofício

nquanto o concilio prosscK'iiia a ciisU) e com interrupções continuas seu caminho,


E a Inquisição romana tinha se tortalecido, Nos anos em torno da metade do século,
a instituição deitara raizes na realidade italiana e perdera suas caracteristicas de remédio
provisório de emer^ícMicia. Sohre os modos e os tempos desse enraizamento há muita coisa
que não sabemos; mas é certo que naqueles anos as instituições antigas da inquisição
foram submetidas a uma profunda reelahoração.
Ora, a questão é se o reordenamento da Inquisição e seu crescimento foram
devidos à urgência da batalha anti-herética ou se a relação não é inversa: a Inquisição
romana pôde empreender uma vasta ação de controle anti-herético por ter conquista
do por conta própria um poder extraordinário e deitara raízes estáveis no sistema de
governo eclesiástico.
É provável que a segunda seja a resposta correta. Não obstante o estado lacunoso de
nossos conhecimentos,sabemos o bastante para poder afirmar que a nova instituição teve
de combater em Roma a batalha mais áspera para afirmar-se e não nas várias províncias
italianas. Pode-se considerar emblemático o caso de um célebre documento, descoberto
e publicado há um século: uma longa lista de nomes e de acusações, que foi tomada
como um resumo de todos ou de muitos processos tratados pelo Santo Ofício desde sua
fundação até Paulo IV, e que, ao contrário, revelou-se rapidamente como o índice de
um único processo, aquele conduzido contra o cardeal Giovanni Morone por estímulo
de Gian Pietro Carafa'. Através da leitura da cópia dos autos processuais entregues a

1. A opinião de seu editor, C. Corvisieri, de que se tratava justamente de um "Compêndio dei processi dei Santo
Uffizio di Roma da Paolo III a Paolo IV"(em Anrhivio delia Società Romarm di Storia Patria, III, 1880, pp. 261-290 e
449-471) foi contestada lucidamente por Karl Benrath ("Das Compendium Inquisitorum", Historische Zeitschrift,
XLIV, 1880, pp.460475)que reconheceu a verdadeira natureza do documento.A leitura comparada do compendium
e da cópia ad defensionem do processo Morone(consultada graças à cortesia do prof. Nicola Raponi,junto ao arquivo
particular Gallarati Scotti de Milão)levou o autor a resultados que foram expostos numa comunicação,apresentada
no Congresso de Estudos sobre a Reforma,realizado em Torre Pellice(1972),que permaneceu inédita;surgiu então
o projeto - não realizado - de uma edição, pelo Cbrpus Re^nmatorum Italicorum,dos autos processuais de Morone que
utilizasse o Compendium para decifrar os nomes omitidos nos próprios autos. Seguiram esse caminho,com novas e
aprofundadas pesquisas e com excelentes resultados, os modernos editores do Compendium e do processo Morone,
M. Firpo e S. Marcatto, II Processo Inquisitoriale dei Cardinal Giovanni Morone, vol. I:"O(ü^mpendium", Roma, 1981.
174

Morone para preparar sua defesa foi possível ahrir uma l-Tceha na lura «.ientro do colégio
cardinalício em meados do século X\'l. Outros di>cumenti>s. talw: mais significativos,
quando se tornarem acessíveis enriquecerão a história do ci>ntlito cjuc i>pôs então, em
Roma, homens muito diferentes e concepções impostas sohre a Igreja e Si>hre a relação
com os "hereges" da Reforma. Desde jã, é possível entrever o diKumento-chave dessa
história naquele processo inquisitorial que foi construído a mandi> ».io cardeal e depois
papa Carafa contra o cardeal inglês Reginald Pole - i> homem cjue preferiu não participar
da sessão do concilio de Trento em que foi aprovadi» o decreti> st)hre a doutrina da jus
tificação, momento capital da ruptura teológica com a Reforma: o {triKesso contra Pole
existe e foi lido - no século XX - por um estudit>so ao menos (di>m Ciiuseppe De Luca^)
que, infelizmente, não teve tempo de deixar pistas dele. Provavelmente, as tensões e as
emoções que envolvem a ruptura da unidade religiosa da cristandade ocidental são ainda
extremamente fortes, para que a Igreja romana decida-se a tornar de dt>minio publico as
intensas lutas que, naquela época, opuseram cardeais pi>dertísos, candidatos ao papado;
mas é certo que esses cardeais dividiram-se não só em razão da aspiração à conquista
do poder papal, mas também do modo como pensavam usar esse poder voltado para o
mundo da Reforma.
Como evidenciou M. Firpo, reconstruindo a história do processo inquisitorial
contra o cardeal Morone, foi justamente no interior e na cúpula da Igreja que o Santo
Ofício revelou-se instrumento versátil de poder: a exclusãc^ do papado de Reginald Pole,
o cardeal inglês amigo de Michelangelo e de Vittoria Colonna, e a onda de processos
e de suspeitas contra membros do colégio de cardeais, ilustres prelados e homens de
cultura encontraram em primeiro plano a função da congregação do Santo Ofício. A
constituição de um centro de poder desligado das instituições do governo ordinário e
coberto pelo segredo modificou substancialmente as regras do jogo. E foi justamente
no conclave aberto em virtude da morte de Paulo 111 que Gian Pietro Carafa lançou a
acusação de heresia contra o rival inglês: Reginald Pole suportou-a,segundo ele mesmo,
com a paciência de uma besta de carga, tal era sua boa consciência'. A acusação de
heresia não era, por si só, mais eficaz do que a de simonia, que não impedira Rodrigo
Borgia de tornar-se papa e de permanecer como tal; o jogo dos conclaves continuou a ser
dominado pelo peso das grandes potências e dos partidos cardinalícios. Mas os mapas
de acesso ao colégio cardinalício tiveram que dar lugar a um novo percurso, aquele que
passava através da polícia da fé. E foi justamente Oiampietro Carafa, eleito papa, a ditar
a regra que excluía do direito de voto ativo e passivo em conclave os cardeais suspeitos
ou investigados por heresia: uma regra que atingia em cheio o cardeal Morone, mas que
também explicitava a nova identidade do papado da Contrarreforma''.

2. Algumas observações manuscritas de dom Giuseppe De Luca a esse propósito me foram dadas a ler pela
senhorita Maddalena De Luca, a quem muito agradeço.
3. Cf. Giuseppe De Leva,"La Elezione di Papa Giulio III", Rivista Storica Italiana, 1, 1884, pp. 22-38; ver p. 28.
4. A bula Cum ex Apostolatus Officio é de 15 de fevereiro de 1559(Buílarium Diplomatum et Privilegiorum Sanctonitn
Romanorum Pontificum, VI, AugustaeTaurinorum, 1860, pp. 551-556). Sobre o contexto e sobre as interpretações

A Inquisição
175

De tato, a tisiononiia ».lt) papaJo Ja sc^unJa metade do século XVI é dominada


por tal centro de poi.ler: tt)i somente por esse caminho que homens de origens humildes
como Michele Cdiislien ou í eliee Peretti puderam ascender ao cardinalato e depois ao
papado. Outras carreiras, aparentemente muito mais promissoras, como as de Pole e
Morone, atí ct)nrrário, foram idotjueatlas por meio de oportunos dossiês fornecidos pela
polícia secreta do Santo Oticio. filtrar os candidatos ao papadt), eliminar do círculo dos
elegíveis os concorrentes perigosos, não eram certamente coisas de pouca monta, visto
que - à diferença das tradicionais lutas pelo poder na Igreja - tudo isso podia acontecer sob
a égide da tutela da té em sua pureza. A história dos conclaves foi, durante muito tempo,
modificada pela existência cie uma estrutura central desse tipií. A ameaça do papa herege,
que nos séculos precedentes também tinha sido aventada no plano teórico por teólogos
e juristas, tornava-se instrumentt> eficaz, a ser usado contra este ou aciuele concorrente.
O modelo humani) no qual tiveram de se inspirar os candidatos ao poiitificado e, em
torno deles, toda a societlade eclesiástica tt)i influenciado por isso constantemente. A
vitória do sistema inquisitorial guindado ao trono de são Pedro por homens como Carafa
e Ghislieri não foi utna aventura individual: esses hi^mens promoveram todo um corpo
eclesiástico inspiradt) nesse tniKlelo. E <.) corpo tinha consciência disso: ciuandose tornava
papa um hometn da Itiquisição, "todos t)s inquisidores são particularmente obrigados
a render graças à sua Divina Majestade"\ Obviamente, os níveis inferiores da estrutura
eclesiástica foram submetidos ao mesmo proces.st): a garantia da pureza doutrinária do
corpo eclesiástico era fundamental numa igreja que vinha se identificando cada vez mais
decididamente com a componente clerical. Os catálogos de inquisidores publicados foram
um dos vestígios documentais deixados por aquele arraigado orgulho de corpo'. Mas
vestígios bem diferentes podem ser detectados nas carreiras que foram facilitadas pelos
vínculos de solidariedade construídos nas contingências comuns a essa polícia especial. O
episódio já lembrado do prêmio ciue Pit) V conferiu no consistório de 8 de novembro de
1570 ao frei Aurélio Griani cPUrcisoni possui um significado exemplar que vai além da
gratidão do papa por quem o ajudara num momento difícil. Toda a estrutura eclesiástica
viu emergirem então dominicanos e franciscanos cjue dos tribunais da Inquisição passaram
diretamente às sedes episcopais e ao pré^prio trono pontifício'. De todo modo,é fato que,
junto com a Inquisição, o conformismo doutrinário entrou constantemente na carreira e,
antes ainda, na antropologia eclesiástica, entendida como soma das regras de vida a que
era obrigatório uniformizar-se. O mundo eclesiástico foi consolidado por ele: o abismo

que foram dadas ao documento na época, cf. Firpo c Marcatto, II Processo Inquisitoriale dei Cardinal Giomnni
Morone, vol. I, op. cit., p. 139 e nota.
5. Carta circular ao inquisidor de Florença do cardeal de Santa Severina, 15 set. 1610, por ocasião da eleição de
Urbano Vil (Bruxelas, Archives ^êneralcs du Royaume, Archives ecclésiastiques, 1828 3ter, c. 31 Iv).
6. Cf. Cipriano Uberti, Tavola delli Inquisitori, Novara, Francesco Sesali, 1586.
7. P. Simoncelli("Inquisizione Romana",op. cit., pp. 74 e ss.)sublinhou,através da leitura da Tavola delli Inquisitori,
a função de promoção desenvolvida pelo oficio inquisitorial nas carreiras dominicanas do século XVI. Quanto
ao caso de frei Aurélio, cf. Pietro Tacchi Venturi S. I., "Diário Concistoriale di Giulio Antonio Santori , op.
cit., p. 317; Paschini, Tre Ricerche sulla Storia delia Chiesa nel Cinquecento, op. cit., pp. 132-133.

O Desenvolvimento da Congregação do Santo Oficio


176

social que até meados do século XVI separava os "priucipes da lereia" vlt» ultimo dos frades
ou dos curas foi, quando não eliminadt> na essência, mascaradt) na forma da obrigação
de conformar-se nos costumes e nas doutrinas a um umci> nuKÍeK> x-.iiido para todos.
E certo que isso não foi fruto apenas de um piKÍer >ecreri» concentrado nas mãos
de poucos homens. Esse poder existia e incutia terror: frei l elice Peretf 1. futuro Sixto V,
não era absolutamente um homem pãvidi>; e no entanti> foi tom.ido pela .mgústia quando
precisou comparecer diante de Michele Ghislieri, o onipotente "iir.inde inquisidor",
para justificar-se por suspeitas de heresia". Porém, no fundo, h.ivi.i sobretudo a ruptura
da unidade religiosa europeia, e a impt)rtãncia nova assumid.i pel.is diferenças de dou
trina nas relações sociais e políticas. O mundt) monástico, .1 tnitu/uíi çciis monachorum
insultada por Erasmo e pelos homens de cultura humanista, inicia\ a sua vingança. A
teologia das escolas, escarnecida por seu latim nada elegante, re\ igt»rava-se numa fase
dominada pelo problema da definição rigorosamente exata dos limites da ortodoxia.
A vontade feroz de isolar e destruir o herege pode ser vista nas imagens de fogueiras
chamejantes que dominam as escrituras monãsticas: cjuandt) o franciscano Giovanni
de Fano publicava seu Incêndio de Zizcinie Lutherane' distorcia t)s rermi>s da parábola
evangélica para expressar uma violenta carga de inttilerància. Se as fogueiras acesas até
então tinham sido sobretudo as das bruxas, agora eram preparadas as dos hereges. Ea
cultura monástica que dera à luz o Malleus hAaleficarum no século anterior adaptava-se
à nova situação: contra Bernardino Ochino, que acabara de fugir, o céniego regular la-
teranense Raffaele de Como publicou seu Malleus Hereticorum^^\ E ptnicos anos depois
saiu publicado o tratado do franciscano espanhol Alfonst) de Castro, cujo título era
um grito de guerra: De lusta Haereticorum Punitione^K
Fogueiras e punições não faltaram. Em troca, uma feroz aspiração à pureza da fé
penetrou as hierarquias eclesiásticas. A pureza doutrinária e a santidade de vida eram
as novas qualidades exigidas do chefe da Igreja, uma vez que era dever dele a vigilância
contra a heresia, para garantir a saúde das almas. Sem levar em conta a ferocidade do
conflito desencadeado na Europa daqueles anos não seria possível entender o sucesso
de protagonistas desse tipo na cúpula da Igreja.
Veremos mais adiante alguns exemplos das dinâmicas sociais ativadas pela pre
sença de uma polícia das idéias como a inquisitorial. Trata-se, no entanto, de entender
melhor como esse organismo veio a assumir suas características específicas na situação
italiana de meados do século XVI. Para isso, é preciso reconsiderar os elementos de
continuidade e os de ruptura entre velha e nova Inquisição.
Ora, o pouco que sabemos sobre o início do Santo Ofício é suficiente para
afirmar que houve, na cúpula da Igreja, uma solução de continuidade entre velhos e

8. O episódio é relatado por biógrafos de Sixto V; cf. L. von Pastor, Storia dei Papi, vol. X, Roma, 1928, pp. 25-26
e 649-650.
9. Publicado em Bolonha por Faello, em 1532.
10. Publicado em Veneza por Venturino Ruffinelli, em 1543.
11. Venezia, ad signum spei, 1549.

A Inquisição
177

novos direcionamentos sohre a tiiiestãt>: os anos de incuhação deixaram traços de uma


busca persistente de instriimenii>s extraordinários para uma situação de emergência.
Essa busca toi promovitla com insistência e convicção especiais pelo poderoso cardeal
Gian Pietro Carata: a nova instituição ganha corpo em torno dele.

A própria identidade histórica da Congregação ainda parece mal definida: e pro


vavelmente não só por talta de documentos t)u de provas seqüenciais de sua atividade.
O fato ê que a detiniçãi.) e o aperteiçoameiitt) desse instrumento foi produto de um
processo histórico que durt)u muito tempo. Os elementos fornecidos pelo primeiro
historiador da InLiuisiçãt), Luís de Pãramo, podem ajudara acompanhã-lo. Entretanto,
como sugere Pãramt>, a opção de confiar a cardeais a tarefa de coordenação suprema da
Inquisição encontrava precedentes na tradição medieval. Ora,já antes de 1542, Carafa
tinha sido o ponto de referência das iniciativas e dos procedimentos contra os hereges.
Como jã mencionado, no momento em que se aceitava intensificar a "guerra espiritual",
justamente o cardeal C^arafa era o destinatário natural de uma providência do gênero:
se outros cardeais juntaram-se a ele, foi por razões de prudência política, a fim de o
controlar melh(.)r. Sob sua presidência, reuniram-se então os membros da Congregação:
primeiro quatro(além de Carafa, Cuiidiccioni e os dominicanos Juan Alvarez de Toledo
e Tommaso Badia, esse último "Mestre do palácio sagrado"'" e como tal dotado de au
toridade específica em matéria de controle da ortodoxia), depois esse número oscilou
de seis a sete, até reduzir-se novamente a quatro sob Pio V. As reuniões da congregação
ocorriam todas as ciuintas-feiras, excluindo-se apenas a Quinta-feira Santa; o papa não
participava regularmente das reuniões. Somente a partir de 1556 o recém-eleito Paulo
IV introduziu a prãxis da presença constante do papa. Fiel à sua obsessiva preocupa
ção com a supremacia da luta contra a heresia, o papa Carafa decretou a supremacia
absoluta do Santo Ofício sobre qualc]uer outra magistratura romana (1® de outubro de
1555); concentrou também formalmente o funcionamento da Congregação nas mãos
de Michele Ghislieri, ao qual, antes ainda de se tornar cardeal, conferiu o mesmo poder
dos cardeais inquisidores na condução dos processos(1® de setembro de 1555); ampliou
extraordinariamente a jurisdição do Santo Ofício, submetendo-lhe, entre outros, os
blasfemos (17 de outubro de 1555), os judaizantes, ou seja, todos os judeus de origem
ibérica (30 de abril de 1556), os culpados de sodomia (25 de novembro de 1557), os
simoníacos (24 de março de 1558), os celebrantes não ordenados (16 de fevereiro de
1559); conferiu ao Santo Ofício ampla faculdade de recurso à tortura, isentando seus
membros do risco de irregularidade canônica referente ao sangue derramado (29 de
abril de 1557)'^ revogou todas as permissões de leitura de livros proibidos e impôs aos
confessores não absolverem quem não se denunciava ou não denunciava eventuais cul-

12. Ou "teólogo do papa", conforme denominação vigente a partir de Paulo VI(N. do T.).
13. Cf. Pastor,"Allgemeine Dekrete", op. cit., passim. Sobre a questão da simonia,foi Girolamo Sirleto quem reco
lheu material e levou Paulo IV a usar a segure da Inquisição contra o pestiferus fructus dessa erva daninha; um
tratado de sua autoria sobre o tema é mencionado por P. Paschini,"Guglielmo Sirleto Prima dei Cardinalato ,
em Tre Ricerche sulla Storia delia Chiesa nel Ciní|uecento, op. cit., pp. 230-231.

O Desenvolvimento da Congregação do Santo Ofício


178

pados (5 de janeiro de 1559); condeniui i\ inK-«.li.ua pcn.i v.ipn.d v.iilp;Kl<.>s de here


sias particularmente íjraves, como antirrinitarisnn^ - «.leciN.u> tt^rtemenie
a tradição inquisitorial do perdão aiís hercucs arrepen«.livl» o ..ia a(rilniiç;"u> ao braço
secular somente para os "relapsos"'"*. Foi uma ver..ladeira tenipest.ule: .» reação popular
que se desencadeou à morte de Paulo I\' transtormiui a travÍK.u> Ji> sacjue ritual em
uma agressão à sede do tribunal do Santo C^ticio.
Foi justamente para reduzir poder concentra..lo na C\»nerei:aç;u>, que Pio IV
aumentou para sete o número de seus membn>s e esíalH Íeeeii que .is ..lecisões tossem
tomadas por maioria dos votos, sem que ninguém tivesse mais auti»rKÍa..le que outros*^
Com Pio V, houve um retorno aos modelos do papa ('arata, ..pie triunfaram a partir
da reforma do sistema das Címgregações empreendida por Sixti^ \": a Caingreijaiio pw
sancta Inquisitione foi a privilegiada em tt)d(.> i> sistema, eom base nv> principio de que a
fé é o fundamenttim de todo o edifício espiritual. Pc^r isso, Sixto \' ci>níirmou todos os
privilégios de que a congregação fora deitada, rectmheceu e consolivK>u o h;ibito pelo
qual o próprio papa devia presidir as reuniões e ainda ..lefiniu num lecpie mais amplo
e preciso as matérias que lhe eram pertinentes: heresi;i manifesta, cisma, apostasia,
magia, sortilégios, adivinhações, abust)s de sacramentos e cjuakiuer outra matéria que
permitisse suspeitar ainda que longinquamente de heresia". Na realidade, o âmbito
das matérias tinha se tornado indefinido e ampliável ;i w^ntade pelo simples fato da
predominância formalmente reconhecida a essa congregação siíhre todas as (.nitras. No
plano territorial, as coisas eram mais complicadas: em termos de direito, Santo Ofício
não conhecia limites territoriais; e, ainda assim, declarava-se a \«.)ntade de não inovar
absolutamente nada nos privilégios da Inquisição espanluda.
Também no plano da organização interna da congregação nuiiana - da qual no
entanto sabemos muito pouco - alguns sinais fazem pensar tiue de\'iam transcorrer
anos antes que se chegasse a um ordenamento burocraticamente eficaz. A figura-chave,
nesse sentido, foi a do "comissário" ou subdelegado: cabia a ele instruir as práticas a
serem tratadas, informá-las ao papa e executar as decisões da Ctmgregação. Esse papel
foi desempenhado por membros da Ordem dominicana. O primeirc^ foi frei Teofilo
Scullica, calabrês, que ora assinou como "sub-inquisidor" ora ct>mt> "subdelegado". Foi
sucedido por Michele Ghislieri, que sobre a atividade anti-herética e sobre as provas
de eficiência que soube dar construiu sua ascensão ao cardinalato; e, apc^s sua eleição
cardinalícia, foi nomeado Tommaso Scotti. Entretantcí, as figuras dominantes do

14. Essa bula de Paulo IV foi modificada por Clemente Vill, que remeteu atí arbítrio dos inquisidores também os
casos mais graves (cf. Albizzi, Risposta ali'Historia, op. cii., p. 287).
15. Ainda Pàramo fornece também os elementos de documentação (breve de Pio IV Cum nos per nostrum)e sugere
a interpretação(De Origine et Progressu, op. cit., p. 126). Todavia, a documentação mais útil para reconstruir o
funcionamento do Santo Ofício é a editada por Pastt)r, "Allgemeine Dekrete", op. cit. (trata geralmente dos
mms. Barb. Lat. 1502 e 1503 da Biblioteca Apostólica Vaticana).
16. (...) Tam haeresim manifestam quam scismata, apostasiam a fidc, magiam, sortilegia, divinationes, sacra-
mentorum abusus et quaecumque alia quae etiam praesumptam haeresim sapere videntur"(const."Immensa
Aeterni Dei , Magnum Bullarium Romanum, t. IV/4, Romae, 1747, pp. 392-401.

A Inquisição
179

Santo Oficio não coincitlirain necessariamente com a do "comissário" dominicano. E


o caso, por exemplo, de Cniilio Antonio Santort>, esct)lhido por Pio V Ghislieri como
seu homem de contianva'". Oe resto, o estilo e as escolhas de cada um dos pontifices
podem ser percehidi>s também nos minimos aspectos da vida da nova instituição: e aqui
a nota dominante, no primeiri> periodo de vida da Congregação, foi dada por Gian
Pietro Carata. A presença assidua do papa, a regularidade e freqüência das reuniões
(estabelecida a partir da sessão de 18 de abril de 1556)"* foram os sinais externos de
um impulso sem precedentes da luta contra a heresia.
O local das reuniões era o palácio do Santo Oficio: se o papa presidia, então a
reunião ocorria no Vaticano. Um notário redigia t)s atos das congregações e conservava
suas atas; em caso de necessidade, concedia atestado regular do que fora deliberado.
Em 1566, o notário Cláudio de Valle entregou ao florentino Pietro di Ugolino de Vie-
ri, que o solicitara para anexá-lo a uma súplica ao duque, um resumo das atas de duas
reuniões em que se tratara de seu caso"'. Somente essas atas, quando forem conhecidas,
nos permitirão acompanhar internamente a atuação do Santo Oficio. Externamente, o
Santo Oficio estabelecia comunicação direta com os inquisidores ou através do núncio.
Mesmo nesse caso, é dificil hírnecer um esquema capaz de resumir situações diversas de
acordo com as épocas e os lugares; é certo que a correspondência entre o secretário do
Santo Oficio e os comissários locais foi o canal fundamental para o controle de cada caso
e para a imposição de uma linha comum. Mas também é verdade que a correspondência
diplomática com os núncios mantida pelos cardeais sobrinhos e, em seguida, pela secre
taria de Estado, teve nas questões inciuisitoriais um de seus temas fundamentais. Basta
dar uma olhada em ciualciuer um dos volumes que reúnem as correspondências romanas
com as nunciaturas estáveis italianas - Nápoles, Veneza, Turim, Florença - para neles
encontrar em abundância não sõ as linhas de gestão politica das questões inquisitoriais,
mas também intervenções no mérito de cada processo. A razão dessa escolha residia na
ductilidade do instrumento politico da nunciatura, em seu caráter original de servir
como instrumento de mediação e de tratativa direta entre papado e poderes estatais:
residia também na ausência de limites formais ao poder dos núncios aos quais o papa
podia delegar qualquer matéria, passando por cima dos outros poderes eclesiásticos com
a fórmula tamquam de latere legatus. No ato da nomeação, o núncio recebia o titulo de
comissário pontificio para as questões referentes à inquisição: e isso lhe permitia revestir
com a autoridade papal os procedimentos contra os hereges em situações de emergência
ou naquelas situações em que o tribunal romano da Inquisição não fora aceito: na Itália,

17. Sobre o cardeal de Santa Severina, Giulio Antonio Santoro, cf. Firpo e Marcatto, 11 Processo Inquisitoriale dei
Cardinal Giovanni Morone, op. cit., vol. I, pp. 39-49. Quanto à figura do comissário ou subdelegado, cf. Vincenzo
M. Fontana, Sacmm Theatnim Dotninkanum, Tinassi, Roma, 1666, pp. 540 e ss.; uma lista dos comissários
foi publicada: 1. Taurisano, "S. Congregatio S. Officii, Series Chronologica Commissariorum S. Romanae
Inquisitionis ab Anno 1542 ad Annum 1916", em Hierarchia Ordinis Praedicatorum, Roma, 1916. pp. 67-78.
18. São dados retirados das atas das congregações do Santo Ofício, publicadas por Pastor,"Allgemeine Dekrete ,
op. cit., pp. 15-18.
19. Archivio di Stato di Firenze, Tríbunale delia Nunziatura Apostólica, Atti criminali, f. 972, cc. 40v41r.

O Desenvolvimento da Congregação do Santo Ofício


180

como se viu, foram os núncios junti^ ai>s Jucjues Jc Sal^i>ia o v.io íi>scan.i cjiic exerceram
esse poder nas campanhas contra os valdenses lui na prmwira implantaçao de um sistema
centralizado de controle da ortodiíxia; h>ra via Iralia, ti>ram os núncios pontifícios na
França das guerras reiigic^sas a tt^rnecerem seus povieres vle mevliacâi» numa realidade
dilacerada, em c^ue a heresia era tratavla pelos tribunais reais címuo rebelião contra a
autoridade monárquica'*^. A lição aprendivla nos estavios italianos te\e serventia mais
tarde na relação com outros parcein.cs estatais. l\>litica e direito, relações reais de força
e tradições teológicas e jurídicas sãt> ingredientes vliticilmente sep.irawis vlessa história.
A observação vale em particular quanvli> se examina a relação entre Roma e
os outros estados italianos: e aqui a varievlade vias s(.>luções formais vjue compôs o
panorama italiano do século XVI avançado ti>i a abertura vle várias relações de força e
de conveniência recíproca. O tempo acabou por selecionar e orvlenar vle acordo com
linhas homogêneas o que fora tentado nos difíceis anos vio inicio: no fim, as redes
monástícas que cobriram boa parte da península acabou vlesenhanvlo uma estrutura
fortemente centralizada e passavelmente homcígênea. Mas no começo, a necessidade de
obter imediatamente resultados eficazes, de um lado, os obstáculos interpostos pelos
poderes estatais, do outro, levaram os responsáveis do Santo Ofício a se moverem para
diversas direções. Uma delas ao menos merece ser recorviada: trata-se via riomeação de
inquisidores laicos. E o biógrafo de Paulo IV Carafa viuem conta essa história:

O S. Oficio de Roma dispôs de valentes e zelosi>.s invjiiisivlores, servinvlo-se ainda por vezes
de seculares zelosos e doutos, para auxilio via fé, comt)ivrhi nriiiiíi vle Ovlescalco em Cv)mo, vlo conde
Albano em Bérgamo, de Muzio em Milão, Pesaro. Veneza e Captivlistria. Essa restduçãcí vle servir-se
de seculares foi tomada porque nãv)só muitos bispos e vigários, fravles e pavlres, mas também muitos
dos próprios Inquisidores eram hereges"'.

Não há dúvida de que a desconfiança de Carafa em relação at^s frades era enorme;
e, por outro lado, a maior parte dos casos de heresia tratadvís nas duas primeiras décadas
após o início do protesto luterano foi justamente de origem conventual e monástica.
Entretanto, também é verdade que a estrutura inc^uisitorial dispunha de homens bem
adestrados para decifrar as heresias e expor as astúcias dos hereges. O dominicano
Giovanni de Roma,que em 1532 processou o ancião valdense Pierre Griot em Apt,foi
extremamente hábil em extrair-lhe uma descrição precisa da organização e das idéias
valdenses no momento de passagem à confissão reformada^'. Mas, iiidependentemen-
te do fundamento do julgamento, ele nos restitui algo da sensação de perigo que foi
percebida à época por homens como Carafa; e confirma-nos cque, nacqueles primeiros

20. A bula de designação do núncio concedia-lhe os poderes de comissário pontifício para as viuestões referentes
à heresia nos domínios de Saboia; cf. De Simone, Tre Anni Decisivi di Storia Vuldese, op. cit., p. 274.
21. O trecho de Caracciolo é citado por C. Cantü, Gíi Eretici d'Italia. Discorsi Storid, Torino, 1865-1867, II, p. 339.
22. Cf. Gabriel Audisio, Le barbe et rinquisiteur. Procès du barbe vaudois Pierre Griot par l'inqiiisiteurjean de Roma(Apt,
1532), Aix-en-Provence, 1979.

A Inquisição
181

movimentos do Santo Otit lo romano, jirocedcu-sc sem nenhum respeito aos modelos
tradicionais, conterindi>-.se eiKart4t)s especiais para investigações secretas e recorrendose
até mesmo aos laicos. C^)mo em cjualquer polícia secreta, a figura do agente munido de
poderes especiais era prática ct)mum na estrutura inquisitorial. Sabe-se, por exemplo,
que os dominicanos mais hábeis e preparados - como Tommaso Scotti de Vigevano e
Matteo Lachi - loram destinados ao desempenho de missões especiais, para as quais
lhes foram conferidos poderes excepcionais (menos conhecidos, por enquanto, são
justamente os usos desses poderes e o desenvi>lvimento dessas missões secretas^'). Mas
os dominicanos pertenciam institucionalmente aos corpos especiais da Igreja destina
dos à luta contra a heresia. Mais surpreendente é o tato de c]ue se recorresse a alguns
laicos. Mas as provas disso, de resto, estão há tempo diante dos olhos de todos: aquele
que é mencionado aqui como o incjuisidor laico para Milão, Pesaro, Veneza e Capo-
distria, Girolann) Muzio, fez ele mesmt) publicar os documentos dessa sua atividade
inquisitorial. Suas Vergeríune referem-se ã luta contra o bispo de Capodistria Pier Paolo
Vergerio; e suas Lciicrc Catliolichc reúnem os testemunhos epistolares de uma assídua
atividade de organização ptdicial e de vigilância doutrinária sobre pregadores como Celso
Martinengo e Ippolito Chizzuola mxs anos em torno de meados do século^^. Emerge
claramente dessas cartas ciue o recurso a Muzio tornara-se oportuno não só por sua
argúcia policial, mas também porque podia garantir o favor das autoridades estatais
para providências que, entregues ãs autoridades eclesiásticas, podiam suscitar suspeitas
e repulsas. Havia outro aspecto relevante: os lugares da heresia coincidiam com os da
cultura laica e do saber livresco - os lugares do livro impresso, ou seja, as livrarias.
E quem melhor que um homem de letras para poder espionar o que se dizia nesses
lugares? Muzio, literato e amigo de literatos, prestava-se bem ao objetivo. Podia, desse
modo, espionar os discursos de Vergerio e combatê-los com os mesmos instrumentos:
a imprensa, as cartas. Eram cartas de delação pública, polêmicas literárias que tinham
por objeto a verdade doutrinária e cjue serviam ao duplo objetivo de auxiliar o trabalho
secreto da Inquisição e desenvolver uma propaganda pública como antídoto. E, como
bom literato, podia colorir com palavras e imagens as cenas do duelo, que se tornavam
selvagens provas de força contra a besta feroz do herege: "Ele IVergerio] permanecia na
livraria da insígnia de Erasmo, e (segundo o que diz o Salmo) qual leão em espelunca
estendia as garras a este e àquele"^^.

23. Tommaso Scotti esteve ao lado de frei Michele Ghislieri a partir de 1553 e sucedeu-o como comissário-geral da
Inquisição romana em março de 1557. Matteo Lichi foi nomeado "secretus e peculiaris nuncius"(com amplos
poderes) por Paulo IV em 25 de outubro de 1557, logo depois de ter deposto no processo contra o cardeal
Morone (cf. as fichas pontuais de Firpo e Marcatto, II Processo Inquisitoriale dei Cardinal Giovanni Morone, op.
cit., vol. 11, pp. 173, 260-261 e nota).
24. Cf. Lettere Catholiche dei Mutio lustinopolitano, Venezia, 1571, p. 103 (carta a dom Ferrante Gonzaga, de 16
de abril de 1551 sobre Celso Martinengo); p. 104(a Annibale Grisonio, de 18 de abril de 1551, ainda sobre
Martinengo); p. 145(a Camillo Olivo, de Venezia, 16 de fevereiro de 1552,sobre Ippolito Chizzuola); e passim.
25. G. Muzio, Le Vergeriane, por G. Giolito e Irmãos, Venezia, 1550, c. 34r. Cf. P. Paschini, Pier Paolo Vergerio il
Giovane e Ia sua Apostasia. Un Episodio delle Lotte Religiose nel Cinquecento, Roma, 1925, p. 137.

O Desenvolvimento da Congregação do Santo Oficio


182

Três homens marcaram o inicio da Inquisição romana o ct>nteriram-lhe os tra-


COS destinados a atingir a imaginação dos ci>ntcmporãncos c a memória dos pôsteres:
Gian Pietro Carafa, Michele Ghislieri, Felicc Peretti. primeiro, em 1 S42, presidiu ao
nascimento da congregação que toi ct>nsiderada sua criatura, o segundo íoi o temido
comissário-geral da instituição - o verdadeiro "Cirande Intjuisidtir" o terceiro con
sagrou a proeminência do órgão no sistema de gmerno romano, colocando o Santo
Ofício no vértice das congregações em 1588. C^ estili> ».ieles íicou impressi> na ação do
tribunal que presidiam. O mais célebre e mais temidi> toi o do Cbarata; a túria do povo
romano,que se desencadeou quando de sua morte em 1 559, destruindo os documentos
processuais e libertando os prisioneiros do Santo Gticiti, deu a medida do clima de
terror que se tinha instaurado. De resto, Carata não esperara o papado para mostrar
como os bereges deviam ser tratados em sua opinião. A durera com cpie exigira de
um hesitante duque de Ferrara a execução capital de Fanino Fanini, de Faenza, tinha
sido um sinal para todos: a imagem da Inc]uisição romana na Europa reformada ficou
gravada dali em diante nos traços do cruel tribunal descrito por Francescti Negri e por
Giulio de Milão em seus relatos da morte heróica de Faninti'".
Gian Pietro Carafa tentou livrar a si mesmi> e a seu tribunal da tama de crueldade
de que gozava pessoalmente. Em conversas com a enviad<.> veneziano em Roma, Ber
nardo Navagero, o papa declarou que na Inquisição procedia-se "com muita piedade e
misericórdia, e que se se pecava, pecava-se por serem excessivamente brandos"; ciuanto
a si mesmo, Carafa afirmava "que, particularmente,jamais tora ávido por sangue,e que
não fosse alguns excessos escandalosos pelo quais havia necessidade de dar satisfações a
algumas comunidades por meio da pena, ele nunca desejaria ver a morte de ninguém"".
Porém, nesse momento,o papa tentava atrair para a rede uma presa de primeira grandeza,
o bispo de Bérgamo, Vittore Soranzo. Devia demonstrar determinação bem mais cruel
ao falar com esse mesmo embaixador de outra "peste herética" a ser c]ueimada - por
exemplo, dos odiadíssimos Pole, Flaminio, Mort:>ne.
Dos três papas inquisidores, porém, somente um identifica-se perfeitamente
com a instituição, tendo sido ao mesmo tempo criador e criatura da mesma. Foi com
a implantação do Santo Oficio de Paulo IV que se construiu a carreira de um obscuro
frade piemontês; carreira fulminante, de frade a cardeal e a papa - e finalmente a san-
26. Cf. o verbete "Fanini" supracitado, cap. 3, nota 5.
27. Nós que somos o primeiro a receber o encargo de Paulo III, remos,de tempos em tempos,tomado conhecimento
de que se procede com muita piedade e misericórdia, e que se pecavam, pecavam por serem excessivamente
brandos. Eu respondi que imitavam Deus Nosso Senhor, o qual abundava em misericórdia. Acrescentou o
Papa, que, particularmente, jamais fora ávido por sangue, e que não fosse alguns excessos escandalosos pelo
quais havia necessidade de dar satisfações a algumas comunidades por meio da pena, ele nunca desejaria ver a
morte de ninguém e que em várias épocas haviam estado na inquisição pesso.as, que quando o povo pensava
que ia vê-las na fogueira, ele as via andarem livres após uma abjuração qualquer, porque sabe-se muito bem
o que rezam os cânones: e por isso fazem pior os que se ausentam". A conversa é referida em uma carta do
embabíador veneziano aos chefes do Conselho dos Dez, datada de Roma, 30 de outubro de 1557. ASVen.,
SantVfficio, b. 160, ff. 130r-131r. Sobre a importante correspondência de Navagero de Roma,cf. Pastor, Storia
dei Papi, vol. VI, Roma, 1922, pp. 670-672.

A Inquisição
183

to. Nomeadtí inciuisidor cm C\>mt) pelo capitulo p">rovincial da Lt)mbardia, segundo as


antigas regras, no primeiro ctmtliro com os poderosos cônegos da catedral de Como,
Ghislieri recorreu ao Santo Cticio rt)mam)*\ Ao chegar a Roma, na véspera de Natal
de 1550, tora precedido pela fama da coragem e da intransigência com que exercera o
oficio de inquisidor: enfrentara os perigos de agressão por parte dos hereges no país
dos Grisões, fora apedrejado e salvo a custo por seu protetor Bernardo Odescalchi.
Devia demonstrar a mesma determinavão dura e fanática na investigação que, como
inquisidor em Bérgamo, ci>ndu2iu contra o hispo Vittore Soranzo: somente a ajuda de
quem lhe colocou à disposição um cavaU) para fugir permitiu-lhe salvar a vida. Foram
essas qualidades que impressionaram Cuan Pietrt) Carafa: e por isso introduziu Ghislieri
em sua "familia" e, h>gt> cpue se tornou |">apa, conferiu-lhe a diocese de Nepi e Sutri,
para logo cm seguida nt)meã-lo cardeal (15 de março de 1557) e Grande Inquisidor''^
O estilo de frei Michele Cíhislieri está gravado nas frases de sua correspondência
oficial: duras e determinadas, sem incertezas, retrato de um homem que tinha um feroz
senso do dever e não tolerava compri>missos. Leia-se esta, c]ue foi mandada ao inquisidor
de Bérgamo, em 30 de novembro de 1555:

ReverencUí Padre, não sei que fé eu possa dar de V. R. P. ao escrever, tendcvme vós muitas
vezes escrito que encontrais os magníficos reitores e i> r. Vigário mui favoráveis, e por outro lado,
vós me escreveis terdes ctmdenado Lazarino d*Ardesio, herético relapso, ás galés por três anos... Não
sei de onde V. R. P. t)hteve autorização para poder formar tal sentença e quão ela esteja em confor
midade com os sagrados cânones. Quem vos deu autoridade para perdoar um relapso, cousa que
jamais pretendeu a Sé Apostólica, nem este sacrossanto tribunal tem autoridade para poder fazê-lo?

E se isso tinha acontecido por desejo dos reitores vênetos, então "eles são inqui
sidores e vós testemunha". Se era assim, a conclusão era uma só:"Este ofício não é para
V. R. e para descargo de vossa consciência será melhor escreverdes a vossos superiores
que lhe providenciem outro, do contrário ele será providenciado por cá."
Não era suficiente: segundo o estilo da Inquisição, a "culpa" jurídica era também
um pecado moral. O inquisidor de Bérgamo era convidado por Ghislieri a examinar
a própria consciência, por que se realmente tinha emitido uma sentença injusta para
"comprazer" às autoridades venezianas, então tinha incorrido também na excomunhão^®.
Restou-nos um dossiê epistolar de Ghislieri, o dos despachos enviados por ele ao
inquisidor de Gênova. Ao folheá-lo, tem-se uma forte impressão do estilo do homem''.
Encontramos ali ordens detalhadas, muito precisas, sobre o que ser feito com cada um
dos réus: da tortura (o "rigoroso exame") à transmissão dos documentos processuais,
os aspectos da práxis são tratados com grande nitidez. Mas não se trata de definições

28. Sobre o caso dos cônegos, cf. o memorial anônimo e s.d. publicado por F. Chabod, Lo Swto e Ia Vita Religiosa,
pp. 431e ss.
29. Cf. Nicole Lemaitre, Saínt Pie V, Paris, 1994, pp. 53 e ss.
30. Carta de 30 de novembro de 1555, conservada em cópia em ASVen., Sant'Ufficio, b. 160, cc. n.n.
31. Cf. Pastor, Storía dei Prtpí, op. cit., vol. VI, p. 486.

O Desenvolvimento da Congregação do Santo Oficio


184

abstratas: as regras gerais que pcidcm ser coIh iJas «.les>.is earr.is são pi>iicas. Somenteas
fundamentais: por exemplo, que o inquisi».ií>r deve iin esriLi.ir .ipen.is i>s vasos de suspeita
de heresia (quae sapiiint hacrcsim) "e nfu^ outrt>s *.ieliros. *.jiie ^e referem ad erimen lesae
maiestatis ou a outros erros" O que se evidenei.» e rralMllu> a ser íeiro em terreno
delimitado com tamanha clareza: e o trabalho *.li.iru> e o trabalho duro e odioso do
esbirro. E preciso arrancar a verdade das testemunhas, eom ameaças:

Que se lhes advirta que nfu^ faltem á vcr«.i.ule. p»>is m- f,.rrm .ip.iuh.ulos mentindo serão
castigados mais duramente dt> que se ti>ssom hereees; c ho)c. .uiui cm l\i»ma. esta sondo fustigado
um frei Gio. Antonio de Faenza, da i>rdem dt>s Servos, p«>r ter vlepost.» em taUo *.oittra um frade de
sua religião".

Quem não dá ouvidos aos convites dos incjuisidores é para ser punido, aliás,
"merece todo o mal"; e se há alguém que se gaba de ter "enganaslo i> C^ficio", Ghislieri
quer ter testemunhos precisos do fato, "pois faria ci>m c|ue t>utras vezes não tivesse do
que se vangloriar"^"*. O "Ofícití" sobrepõe-se, ciuno deve s<.>brepor-se, a todos os pen»
samentos do inquisidor: "Esperamos então servir ao Senhor neste santcí Oficio não
apreciando calúnias, porque convém pressupor cjue quem entra nesse Oficio torna-se
odioso ao mundo; mas tanto quanto o mundo tem õdit) dele, tanto i> Senhor haverá
de nos resguardar e seremos amados por ele"^^. Para servir ao era preciso co
nhecer e aplicar as leis; era preciso sobretudt) indagar, coiiecrar as pistas, desenvolver
um verdadeiro trabalho policial, de esbirro; Ghislieri t) fazia. Suas cartas mostram como
seguisse as pistas dos suspeitos, levando em conta cada indício e Lleterminando instruções
precisas para interrogar as testemunhas st^bre bem determinados pontos. Quando se
passava às punições, mostrava-se duro, inexorável: se um frade tinha sido herege durante
anos e ensinara coisas erradas, não se podia tolerar que lhe fosse ctuacedida permissão
para abjurar secretamente "por respeito a ele e à sua religião. Devia ele ter respeitado
a honra de Deus e a saúde do próximo". Por isso, abjuração pública e solene para o
frade; mas, ao mesmo tempo, broncas para o inquisidor que perdera tempo escrevendo
para Roma em busca de conselho e tentara ajudar o culpado*".
O Grande Inquisidor devia se tornar papa: mas sem esquecer nada do estilo e das
convicções amadurecidas nos anos anteriores. Seu dever de juiz supremo em matéria
de heresia absorveu-o mais do que tudo."Vê todos os processos e lê todos os escritos",

32. Carta de 3 de dezembro de 1552 a Girolamo Franchi, inquisidor de Gênova, em Biblioteca Universitária de
Gênova, ms. E. VII. 15, c. 6r.
33. Carta de 7 de novembro de 1554, idem, c. 13t.
34. Carta de 5 de março de 1556, idem, c. 40r. Que a coisa incomodasse Ghislieri pode ser visto na carta seguinte,
em que torna a pedir uma verificação testemunhai "das palavras com que ele maculou o Ofício" (carta de 2
de abril de 1556, idem, c. 41r).
35. Carta de 28 de maio de 1556, idem, c. 47r.
36. Carta de 20 de agosto de 1556, idem, c. 65r.

A Inquisição
185

escrevia o cardeal Cnroiaiin) de C^)rrej,'^i<> em 1567''. Se pensamos na quantidade de


documentos processuais cjue che^^aram entãt) a Roma de todos os terminais da estru
tura, podemos ter uma idéia do trabalho cjue o papa dominicano desempenhava. Ler
processos e escrever - ou mandar escrever - cartas sobre o modo de levá-los adiante
foi uma tareta ã qual se dedicou sem poupar seu tempo. Tamanho afã em relação aos
documentos pertencia ã dimensão dt) poder soberano assim como foi interpretado
naqueles anos pelo rei cjue toi sua encarnação mais conspícua, Felipe II de Habsburgo.
Mas para o papa cpie encarmíu então os ideais de guerra santa da Contrarreforma, o
empenho burocrático h>i dedicado sobretudo ã condução dos processos. O fluxo contí
nuo de cartas cjue de Roma guiaram os comportamentos dos comissários da Inquisição
em toda a Itália toi inspirado e ct)ntrolado pessoalmente por ele. Pelas poucas frestas
abertas em uma documentação cjue ainda permanece quanto muito inacessível, vê-se
que essa leitura encarniçada dos autos era guiada por convicções precisas e por antigos
e arraigados rancores e suspeitas. O estudit)so que do arquivo romano do Santo Ofício
trouxe à luz os materiais da dura ação romana contra a dissensão religiosa em Mântua
notou com justiça c]ue os interrogadores do antigo secretário do cardeal Ercole Gon
zaga, Endimio Calandra, insistiram sobretudo nos círculos dos "espirituais" italianos
da década de c]uarenta: eram essas "as sombras c^ue continuavam a perturbar os sonos
dos herdeiros do papa Carafa""^. Suspeitava-se c]ue Endimio Calandra soubesse "muita
coisa !...] principalmente de alguns altos prelados e cardeais mortos e vivos"'^. Morto
estava o cardeal Pole, mas o cardeal Morone estava vivo e vigoroso. Michele Ohislieri
tinha sofrido a absolvição do cardeal Morone e a do Carnesecchi quando era cardeal;
feito papa, conseguiu mandar Carnesecchi ao patíbulo e tentou inutilmente reabrir o
processo contra o cardeal Morone.
Fiel às suspeitas e às aversões amadurecidas durante anos de laboriosas e encarniça
das investigações policiais, como papa clevia incrementar o trabalho de polícia da fé que
lhe era familiar. Era um trabalho duro e arriscado: Ohislieri o conhecia bem. Salvara-se
por um fio no decorrer da investigação feita em Bérgamo contra Soranzo. Seus homens
corriam os mesmos riscos. A onda de ativismo que percorreu toda a estrutura a partir da
ascensão do Grande Inquisidor ao papado criou situações de grave tensão e perigo. Em
Mântua, na manhã do Natal de 1567, dois frades dominicanos foram mortos apunhala-
dos'*®. Mas enquanto os confrades dos assassinados, aterrorizados, armavam-se e projeta
vam deixar a cidade, o papa fez ao embaixador de Mântua declarações do seguinte teor:

Se considerássemos por bem fazer em pedaços todos os frades de são Domingos, nem por
isso teríamos medo nem deixaríamos de seguir com galhardia por esse bom caminho que tomamos

37. Carta à cunhada Chiara; reproduzo a citação de Sérgio Pagano, II Processo di Endimio Calandra, op. cit., p. 36.
38. Idem, p. 144.
39. Carta do cardeal Rebiba ao inquisidor Camillo Campeggi de 27 de março de 1568, citada em idem, pp. 144-
-145.
40. Idem, p. 54.

O Desenvolvimento da Congregação do Santo Ofício


186

de tentar debelar os here^es. Nós cstanaiís n«.i nnindo par.i i:iu.u »>s lu>iiu-n>. .itc o coii: tanto mais
nós também devemos tentar chefiar a cie: *.|uc >c t.i: por \ i.i ».!«.• m.irtirjos. lomo ii:cram esses dois
padres, cujas almas subiram diretamente aos ceus* .

O "martírio" dos inquisidi>rcs íoi copiosamcntc rccv>inpcos.ulo: o tcdi>r de carne


humana queimada era tanto - ct^nta uma testemunha - que rião se pi>dia sair de casa"'^
Tanta intransigência semeava ódit). Havia gente c|ue teria eolahi>rado de bom
grado para esse martírio; um mantuaiio exaspera«.K» exprimiu assim os sentimentos
citadinos contra o inquisidor: "Queira L^íeus cjue ele wi para o eeu. para libertar desse
inferno muitos pobres!"^^
Na sede de martírio do papa Pio V há a eonseciuèneia interna *.le sua assídua
caça ao herege e da violenta intolerância que demonstrou em relação aos judeus e não
cristãos em geral. Todas as torças da Igreja e todas as instituições disporiiveis foram
desviadas para essa direção. Até as instituições de natureza politico-*.lipKmiática, como
as nunciaturas, foram obrigadas a se adequar at> novo cursi>. Ao núricit> junto aos
duques de Saboia, Pio V mandou escrever cjual tosse sua interpreraçãi> das tunçõesda
nunciatura: "Sua Beatitude não vos taz residir ai para nenl^uma outra coisa que não
seja fazer continuamente com c]ue t>s hereges iião possam conversar nesses lugares e
que o S. Oficio seja apoiado""'"*.
As imagens com que seus representantes o definiram, colocaram em primeiro
plano justamente aquela santidade que em tempt)s vindouros devia ser sancionada
definitivamente com a beatificação: era um "padre simples de mente santa, de vida
inocentissima [...] um papa muito bom e mui santi/'"'\ A pureza da fé era componente
essencial dessa santidade que Michele Ghislieri reconduzia finalmente ao trono de Pe
dro: e a própria politica internacional do papado devia ser profundamente influenciada
pela preocupação com a defesa da fé. No momento mais alto e de maior sucesso da
iniciativa internacional do papado, ou seja, por ocasião da Liga C(.>ntra ixs turcos. Pio V-
no consistório convocado em 18 de junho de 1 571, para envio dos embaixadores aos
príncipes cristãos - contestou asperamente o cardeal Cristoforo Madruzzo que propunha
convocar para a Liga também os principes da Confissão Augustana: não era possível
haver acordo ou paz com os hereges, nem mesmo com os mais moderados entre eles;
aliás, os mais moderados eram os mais perigosos, por pt)derem seduzir melhor os fiéis
e confundir as idéias. Logo, nenhum acordo contra a pureza da fé. Os rumos da guerra

41. Idem, p. 56.


42. [...] Por causa do assado (de hereges na fogueira) ninguém naquele dia pôde sair de casa que não adoecesse,
tanto era o fedor"(carta de Ferrante Amigoni ao castelão de Mântua, 14 de abril de 1568, citada por Pagano,
II Processo di Endimio Calandra, op. cit., p. 162).
43. Idem, p. 10.
44. Carta de Scipione Rebiba a Vincenzo Lauro, 3 dez. 1569(Nun?:iature di Savoia, op. cit., 1, p. 225).
45. Memorial anexado por Facchinetti à carta de 20 de julho de 1566(Nun^iuturc di Vcne^ici, org. por Aldo Stella,
Roma, 1972, vol. VIII, p. 78).

A Inquisição
187

seriam resolviJos pelo neiis dos exércitos"". Era uma concepção da guerra santa mais
feroz e intransigente da cjue se atrihuia aos turcos. Tanta dureza e tão feroz fanatismo
suscitavam perplexidade e discussões nos próprios ambientes da Cúria romana. Pelo
menos,observaria alj,'uns anos mais tarde Alberico Gentili, os turcos combatiam apenas
os que consideravam infiéis e não faziam guerra contra seus hereges, os persas'*^
A pureza da fé tornou-se um traçt) essencial do poder papal,o próprio fundamento
da idéia do primado romano: foi essa a herança permanente que Pio V deixou a seus
sucessores. A tutela dessa interpretaçãt) do primado teve importantes conseqüências
politicas. O caso do processt> contra Bartolomé de Carranza, arcebispo de Toledo, detido
em 1559 pela lnciuisiçâi> espanhola e objeto de um longo conflito entre Madri e Roma,
foi o ponto de confronto da interpretaçãi^ romana das tarefas do tribunal da fé"*^. Pio V
inaugurou seu pt)ntificado com uma guinada significativa: Carranza devia ser transferido
para Roma para ser julgado. Nas doutrinas atribuídas a Carranza, processava-se todo
um período de incertezas dtíutrinárias e de evangelismo anti-institucional. Mas com a
instauração do processo de um arcebispo espanhol em um tribunal eclesiástico romano
e não no correspondente sujeito ao rei de Espanha, Pio V indicava a afirmação de um
princípio que, tendo Roma como capital supra-estatal do corpo eclesiástico, era assim
subtraído até do mais católico dos reis. Esse princípio esteve no centro da dura batalha
travada com os estados católicos para impor a publicação da bula In Coena Domini: hou
ve, para isso, tensões notáveis, c|ue ameaçaram prejudicar as alianças contra os turcos e
contra os huguenotes franceses, questões que no entanto interessavam ao papa. Entre
os estados italianos, Veneza conseguiu opor alguma resistência somente resguardando-
-se (como escreveu o núncio G. A. Facchinetti)"com o escudo do rei Felipe que porta
o nome Católico e possui teólogos mui eruditos junto de si""*^.
O papa era também soberano de um estado territorial: e aqui a música era
diferente. A branciura e os escrupulosos procedimentos judiciários acionados para
Carranza não encontram nenhuma correspondência com os procedimentos utilizados
para reprimir a dissensão herética e as autonomias citadinas no Estado pontifício: em
Faenza, o conselho citadino foi decapitado; seus membros mais importantes foram
processados e mandados ao patíbulo em Roma'®.
Dizia-se que a heresia minava o poder descie as bases: mas o único a ser verda
deiramente ameaçado com isso era o poder do papa, em sua dupla natureza. As "duas

46. A discussão é referida pelo cardeal Giiilio Santoro (Tacchi Venturi, "Diário Concistoriale di Giulio Antonio
Santori", op. cit., pp. 338-339; pp. 44-45 do extrato).
47. Veja-se do autor deste volume "La Guerra Giusta nel Pensiero Politico Italiano delia Controriforma , em
Odrodzenie i Reformacja u' Polsce, XXXIX, 1995, pp. 31-49.
48. Sobre o caso de Carranza,é obrigatório o recurso à imponente documentação publicada por Jgnacio 1. Tellechea
Idígoras; cf. particularmente Fray Bartolomé Carranza. Documentos Históricos, vol. 5, Madrid, 1962-1976; e para
a fase romana El Processo Romano dei Arzobispo Carranza (1567-1576), Roma, 1988.
49. Despacho a Michele Bonelli de 10 de dezembro de 1569, em Nunziature di Venezia, vol. IX, 26 mar. 1569 - 21
maio 1571, org. por Aldo Stella, Roma, 1972, p. 169.
50. Cf. Francesco Lanzoni, La Controriforma nella Città e Diocesi di Faenza, Faenza, 1925.

O Desenvolvimento da Congregação do Santo Oficio


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almas" que habitavam o corpo da autoridade papal eiKi>utra\.un-se ali^'. As togueiras


acesas pelo papa Pio V e sua política da guerra santa - mais contra i>s iiereges do que
contra os infiéis - estiveram estritamente ligadas a seu uso i.la Intiuisição ci^mo "santo
ofício" a predominar sobre todos os demais. Pepois dele. ninguém m.us interpretou em
termos tão absolutos e universalistas uma tal concej'»são d.i pureza ».l.i fe. Lhna herança
permanente que esse período de luta sem quartel contra v» erro ».loutrinãrio deixou ao
poder papal foi, c^uanto muito, a possibilidade de usar o argumento da heresia como
uma espada de dois gumes: podiam ser punidos t>s hereges como autores de atentado
contra a dignidade papal e os autores de atentado ci>nrra a pessoa do papa como hereges.
E ambos os usos encontram-se amplamente comprovados no decorrer ».lo século XVII.
Quando o cardeal Barberini teve de explicar às autoridades inglesas por que a Inqui
sição romana mantinha preso durante três décadas um pobre eclesiástictí anglicano,
culpado de ter chamado o papa "Anticristt)", atemni-se ao argumento de que o insulto
atingia sua Santidade como príncipe temporal, mesmo sem coiisiderar sua dignidade
de chefe da Igreja^'. E, por outro lado, quem organizava conjuras cimrra a pessoa do
papa era condenado à morte com o argumento tradicional da Incjuisição contra os
hereges, a acusação de lesa-majestade divina e humana'''. Mas era um uso estritamente
defensivo, que não tinha mais a grandeza do projeto de fanática e agressiva intolerância
do Grande Inquisidor.

51. A Imagem é de Paolo Prodi, II Sovrano Pontefice. Un Corpo e Due Anime, op. cit.
52. A carta do cardeal Barberini, de 26 de novembro de 1536, é citada por R. W. Lightbown, "The Protestant
Confessor, or the Tragic History of Mr. Molle", em England and the Continental Renaissance. Essays In Honour
odj. B. Trapp, org. por Edward Chaney e Peter Mack, Woodbridge, 1990, pp. 239-256; em part. p. 247. Molle
fora capturado enquanto acompanhava um nobre pupilo numa viagem educativa à Itália.
53. Cf. o caso descrito por Luigi Firpo, "Esecuzioni Capitali in Roma (1567-1671)", em Eresia e Riforma neiríwliü
dei Cinquecento, Miscellanea I, Firenze/Chicago, 1976, pp. 309-342; em part. p. 318.

A Inquisição

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