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Gênese Social da Palavra e da

Idéia de Cultura

As palavras"têm"~uma história e, de certa


maneira também, as palavras fazem a história. Se
isto é verdadeiro para todas as palavras, é parti-
cularmente verificável no caso do termo "cultu-
ra". O "peso das palavras", para retomar uma ex-
pressão da mídia, é grandemente influenciado
por esta relação com a história, a história que as
fez e a história para a qual elas contribuem.
S^-'

í As palavras aparecem para responder a al-


fíumas interrogações, a certos problemas que se
Y colocam em períodos históricos determinados
C_Ê em contextos sociais e políticos específicos.
Nomear é ao mesmo tempo colocar o problema
e, de certa maneira, já resolvê-lo.
A invenção da noção de cultura é em si
mesma reveladora de um aspecto fundamental
da cultura no seio da qual pôde ser feita esta in-
venção e que chamaremos, por falta de um ter-
mo mais adequado, a cultura ocidental. Inversa-
mente, é significativo que a palavra "cultura"não
tenha equivalente,na maior parte das línguas
orais das sociedades quedos etnólogos estudam
habitualmentejlsto não implica, evidentemente
(ainda que esta evidência não seja universalmen-
te compartilhada!) que estas sociedades não te-
nham cultura, mas que elas não se colocam a
questão de saber se têm ou não uma cultura e - que permitirá em seguida a invenção do con-
ajnclâ menos de clêhnir suã^áaria cultura,^ ceito - sejjroduziu na língua francesa do século
Por esta razão, se quisermos compreender das Luzes, antes de se difundir por empréstimo
o sentido atual do conceito de cultura e seu uso lingüístico em outras línguas vizinhas (inglês,
nas ciências sociais, é indispensável que se re- alemão).
constitua sua gênese social, sua genealogia. Isto Se o século XVIII pode ser considerado
é, trata-se de examinar como foi formada a pala- como o período de formação do sentido moder-
vra, e em seguida, o conceito científico que dela i
no dajgalavra, cm 1700. no entanto, "culturã"já
depende, logo, localizar sua origem e sua evolu- é uma palavra antiga no vocabulário francês. \
ção semântica. Não se trata de se entregar aqui a jo latim cultura que ^
uma análise lingüística, mas de evidenciar os la- dispensado ao campo ou ao ^agp^cla aparece
ços que existem entre a história da palavra "cul- nos fins do século XIII para designar uma parcc-
tura" e a história das idéias. A evolução de uma la_dg_terra cultivada (sobre este ponto e os se-
palavra deve-se, de fato, a inúmeros fatores que guintes, ver Bénéton, [1975]).
não são todos de ordem lingüística. Sua herança No começo do século XVI, ela não signifi-
semântica cria uma certa dependência em rela- ca mais um estado (da coisa cultivada), mas uma
ção ao passado nos seus usos contemporâneos. ação, ou seja o fato de cultivar a terra. Somente
Do itinerário da palavra "cultura" tomare- no meio do século XVI se forma o_ sentido fígu-
mos apenas os aspectos que esclareçam a for- :-radg e_"cultura" pode designar então a cultura
mação do conceito tal como é utilizado nas de uma faculdade, isto é, o fato de trabalhar para
ciências sociais. A palavra foi, e continua a ser, ..desenvolvê-la., Mas este sentido figurado será
aplicada a realidades tão diversas (cultura da ter- pouco conhecido até a metade do século XVII,
ra, cultura microbiana, cultura física...) e com obtendo pouco reconhecimento acadêmico e
tantos sentidos diferentes que é quase impossí- não figurando na maior parte dos dicionários
vel rctraçar-^aqui sua história completa. da época.
Até o século XVIILa evolução do conte-
Evolução da palavra na língua francesa údo semântico da palavra se deve principalmen-
da Idade Mgjlia^ aoseculo X1X_ te,^ movimento natural da língua e não ao mo-
vjmentQ das idéias, taue procede, por um lado
É legítimo analisarmos particularmente o a cultura como estado à cul-
exemplo francês do uso de "cultura", pois pare- tura como ação), por outro lado
ce que a evolução semântica decisiva da palavra Cda cultura da terra à cultura do espírito'), imi-

síntese da evolução da cultura


tando nisso seu modelt Cultura, consa- jque concebem a cultura como um Caráter distin-
grado pelo latim clásgiçpjlQ-gentido figurado^ 1 tiro da espécieihumana. A_cultura, para eles, é a
O termo "cultura" no sentido figurado J soma dos saberes acumulados e transmitidos
meça a se imporjiojéculo XVIII. Ele faz sua en- | pela humanidade, considerada como totalidade,
trada com-este sentido no Dicionário da Acade- ão, longo de sua história.
mia Frahcesa (edição de 1718) e é então quase Nojréculo XVHI." cultura" é sempre empre-
sempre seguido de um complemento: fala-se da gada no singular, o que reflete o universalismo e
"cultura das artes" , da "cultura das letras" , da "cul- o humanismo dos filósofos: a cultura é própria
tura das ciências", como se fosse preciso que a do Homem (com maiúscula), além de toda_dis-
coisa cultivada estivesse explicitada. tinção de povos ou de classes. "CultunTse ins-
A palavra faz parte do vocabulário dajm- creve então plenamente na ideologia do Ilumi-
gua doL-Duminismo^ sern^ser, no entanto, muito nismo: aj)a^waéa^s^aad^àsjdéias de progres-
utUJzada_Rglos fílósofos^A Enciclopédia, que re- so, de evolução, de educação, de razão que estão
serva um longo artigo para a "cultura das terras", no centro_doj?ensamento da érjoça. gg_Q_movi-
não dedica nenhum artigo específico ao sentido mento Uurainista nasceu na Inglaterra, ele j?n-
figurado de "cultura". Entretanto, ela não o igno- controu sua língua e seu vocabulário^ na Francai,
ra, pois o utiliza em outros artigos ("Educação", ele terá uma grande repercussão em toda a Eu-
"Espírito", "Letras", "Filosofia", "Ciências") . ropa Ocidental, sobretudo nas grandes metró-
Progressivamente, "cultura" se libera de poles como Amsterdam, Berlim, Milão, Madri,
jeus complementos e acaba por ser empregada Lisboa e até São Petersburgo.A idéia de cultura
só. para designar a "formação ", a. " educação " do participa do otimismo do momento, baseado na
^espírito. fòepois, em um movimento inverso ao confiança no futuro perfeito do ser humano. O^
observado anteriormente; pjagsa-se de "cultura" progrejSj^aacc^ajnstmcãG.isto ê. da cultura,
_ como ação (ação dejnstruir) a"cultura" comc^es- cada vezm^s_abrangente.
tadojestado do espírito^ cultivado ggbjnstru- "£ü!íjjra^_jgstá então muito gróxima de
cão^estado do indivíduo "que tem cultura^ Este uma palavra que vai ter um grande sucesso (até
uso é consagrado, no fim do século, pelo Dici- maior que o de "cultura") no vocabuláríojran-
onário da Academia (edição de 1798) que estig- cês do século XVIII: "civilização"4As duas pala-
matiza "um vras pertencem ao mesmo campo semântico^rei
nhando com esta expressão a oposição concei- fletem osjTiesmas cgn^epcõgsjiindamentaisj Às
tuai entre "natureza" e "cultura.". Esta oposição é vezes associadas, elas não são, no entanto, equi-
rfundamental para ojsjjensadores do Iluminismo" valentes. "Cultura" evoca príncipalmcntejjs pró

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gressos individuais, "civilização", osprogressos "Civilização" é tão ligada a esta concepção pro-
coletivos. Como sua homóloga "cultura c pelas gressista da história que os que se mostram cé-
mesmas razões, "civilização" é um conceito uni- •tícos^com relação a ela, como Rousseau ou
tário .e só é usado então no singular. Ela sejibc- Voltaire, evitarão utilizar este termo por serem
rajapidamente, junto aos filósofos reformistas, jmnoritâriÕs^fe não estarem em condições de im-
de seu sentido original recente (a palavra apare- por uma outra concepção mais relativista.
ce somente no século XVlII)^quedes^gna^^afl.- OJJSQ de "cultura"c de "civilizaçâo"no sé-
namento^dos costumes, e sjgnjflãrpara elesjx culcOCVIII marca
processo nova concepção(^sga^cralizâ3ãida
cia" e da irracionalidade. preconizando esta nova 3í>fía-(daJiistQriaj-se-libera._dajeologia (da histó-
acepção de "civilização", os pensadores burgue- ria). As idéias otimistas de progresso, inscritas
ses reformadores, utilizando-se de sua influência nas noções de "cultura" e "civilização" podem ser
política, impõem seu conceito de governo da consideradas como uma forma deCsucedâneo* de
sociedade quê, segundo eles, deve se apoiar na esperança religiosa. A partir de então, o homem
razão e nos conhecimentos. está colocado no centro da reflexão e no centro
A civilização é então definida_çQrnp um do universo. Aparece a idéia da possi5iir3ãgê~ae
processo de melhoria das, instituições, dajegis- jjma^ciencia do homem"; a expressão é empre-
"Jação, da educação. A civilização é ummovimen- gada pela primeira vez por Diderot ern^l755 (no
to longe de j^star_acabadp^q.ue_e.preciso apoiar artigo "Enciclopédia" da Encyclopédié). E, em
e que afeta a socidade comojum todo, começan>
* ___ -^ * ~ - " " - •—n---— __ i^l "^
1 787, Alexandre de Chavannes cria o termo "et-
do pelo Estado, que deve se liberaf_dc tudo o nologia" ,
j]ue é áínclâ" irracional em seu funcionamentOj ^estuda a "história dos progressos dos povos cm
Finalmente, a civilização r>odc c deve se esten- direção à
der a todos os povos que compõem a humani-
dade. Se alguns povos estão mais avançados-que O debate francoaleniíio sobre a cultura
Doutros neste movimento, se alguns (a França ou a imtíteseVcultura" - "civilização"
particularmente) estão tão avançados que já po- (século XIX - início do século XX)
dem ser considerados como "civilizados", todos
os povos, mesmo os mais "selvagens", têm voca- Kulturno sentido figurado aparece na lín-
ção para entrar no mesmo movimento de civili- gua alemã no século XVIII e parece ser a trans-
zação, e os mais avançados têm o dever de aju- posiçãoexãta da palavra francesa.;O prestígio
dar os mais atrasados a diminuir esta defasagem. da língua francesa - o uso do francês é então a

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marca distintiva das classes superiores na Ale- abandonar as artes e a literatura e consagrar a
manha - e a influência do pensamento Iluminis- maior parte de seu tempo ao cerimonial da cor-
ta são muito grandes na época e explicam este te, preocupados demais em imitar as maneiras
empréstimo lingüístico. "civilizadas" da corte francesa. Duas palavras
No entanto, Kultur vai evoluir muito rapi- vão lhes pmTiitirLrlffinir esta-ftj^-^ão"cIÕTjnteis
damente em um sentido mais restritivo que sua sistemas de valores: tudo o que é autêntico e
homóloga francesa e vai obter, desde a segunda que Contribui "pãrao enriquecimento intelec-
metade do século XVIII, um sucesso de público tual e espiritual será considerado como vindo
que "cultura" não teria ainda, já que "civilização" dã~cültUfa; ao contrário, OTjue é somente ãpa"-
era a preferida no vocabulário dos pensadores TéncJa"brilhante, leviandade, refinamento super-
franceses. Conforme explica Norbert Elias ficial, pertence a civilização* A cultura se opõe
[19391, este sucesso c deyjdQ_à_adQcão do ter- então ã civilização corno a profundidade se
mo pela burgucsiaintelectual alemã e ao uso opõe à superfícialidade. Para a intelligentsia
la faz delc^nasua oposição à aristocracia burguesa alemã, a nobreza da corte, se ela é ci-
^dacorte^De'iato, contrariamente à situação fran- vilizada, tem singularmente uma grande falta de
cesa, burguesia e aristocracia não têm laços es- cultura. Como o povo simples também não tem
treitos na Alemanha. A nobreza é relativamente esta cultura, a intelligentsia se considera de cer-
isolada em relação às classes médias, as cortes ta maneira investida da missão de desenvolver e
principescas são muito fechadas, a burguesia é fazer irradiar a cultura alemã.
afastada, em certa medida, da qualquer ação po- Por esta tomada de consciência, a ênfase
lítica. Esta distância social alimenta um certo da antítese cultura"^- "civilizacãõ^se desfocar
ressentimento, sobretudo entre muitos intelec- pouco a pouco da oposição social paraaoposf-
tuais que, na segunda metade do século, vão ção nacional [Elias, 1939]^Diversos fatos con-
opor os valores chamados "espirituais", ba- vergentes vão permitir este deslocamento. De
seados na ciência, na arte, na filosofia e também um lado, reforça-se a convicção dos laços estrei-
na religião, aos valores "corteses" da aristocracia. tos que unem os costumes civilizados das cor-
A seus olhos, somente os primeiros são valores tes alemãs à vida de corte francesa, e isto será
autênticos, profundos; os outros são superficiais denunciado como urna forma de alienação. Por
e desprovidos de sinceridade. outro lado, aparece cada vez mais a vontade de
Estes intelectuais, freqüentemente saídos reabilitar a língua alemã (a vanguarda intelec-
do meio universitário, criticam os príncipes que tual se expressa somente nesta língua) e de de-
governam os diferentes Estados alemães, por finir, no domínio do espírito, o que é especifica-
mente alemão. Como a unidade nacional alemã certeza, ela é a expressão de uma consciência
não estava ainda realizada e não parecia possível nacional que se questiona sobre o caráter espe-
então no plano político, a intelligentsia que cífico do povo alemão que não conseguiu ainda
tem uma idéia cada vez mais forte de "missão na- sua unificação política. Diante do poder dos Es-
cional", vai procurar esta unidade no plano da tados vizinhos, a França e a Inglaterra em parti-
cultura. cular, a "nação"alemã, enfraquecida pelas divi-
A ascensão progressiva desta camada so- sões políticas, esfacelada em múltiplos principa-
cial anteriormente sem influência que conse- dos, procura afirmar sua existência glorificando
guiu fazer-se reconhecer como porta-voz da sua cultura.
consciência nacional alemã transforma então os Estaca razão pela qual a noção alemã de
dados e a escala do problema da antítese "cultu- Kultur^yaLtender, cada yezmais, a partir do"gé-
ra" - "civilização". Na Alemanha, às vésperas da culo XIX, para a delimitação e a consolidação
Revolução Francesa, o lei das diferenças nacionajs^rata-se então de uma
sua conotação aristocrática alemã e passa a evo- noção particularista que_s_e opõe à noção fran-
car a França e "de uma mãheira~geral, as potên- cesa universalista de "civilização", que é a ex-
cias ocidentais .Da mesma maneira, a "cultura", pressão de uma nação cuja unidade nacional
de marca distintiva da burguesia intelectual ale- aparece como conquistada há muito tempo.
mã no século XVIII, vai jscr" convertida, no sécu- Já em 1774, mas de maneira ainda relativa-
lo XIX, ejfrTinarca distintiva da nação alemã intei- mente isolada, Johann Gottfried Herder, em um
"rãTNps texto polêmico fundamental, em nome do "gê-
^-<j traços s carãcterístSõT da classe intelêc-
tual, que manifestavam sua cultura, como a sin- nio nacional" de cada povo(yolksgeisf), tomava
ceridade, a profundidade, a espiritualidade, vão pãTtidó pelã~dÍversKlãdc dê~culturas, riqueza dlT
ser a partir de então considerados como especi- humãniSãde e contra o universalismo uniformi-
ficamente alemães. ^zante do Iluminismotque ele considerava empo-
Atrás desta evolução se esconde, segundo brecedor. Diante do que ele via como um impe-
Elias, um mesmo mecanismÕ^ícõloglco~Kgado rialismo intelectual da filosofia
a um sentimento de inferioridade ffiinHalilelmh Tninismo, Herder pretendia devolver a cada
de cultura é criada pela classe média que duvi- povo seu orgulho, começando pelo povo ale-
dajiela mesma, que se sente maisTm menos aff- mão. Para Herder, na realidade, çada,GQvo, atra-
jada_do pòdèr^_das honras e que procura para yès de sua cultuia.própria, tem um destino^espe-
jsi_umaoutra^rrnT3è~lSglHmíarãdie social'.-^Êsten- cífico ajgalizar. Pois cada cultura exprime à sua
dida à "nação" alemã, ela participa da mesma in- maneira um aspecto da humanidade .^ua coh-

X,
f"-.
T

cepção de cultura caracterizada pela desconti- Estas conquistas do espírito não devem ser
nmdade^que não cxcluíaT^oentantõ, iimjTpõs^ confundidas com as realizações técnicas, ligadas
sível__c_omunicação_entre-Qsw£ovos, era baseada ao progresso industrial e emanadas de um raci-
em Uma outra filosofia da história (título de onalismo sem alma. De maneira cada vez mais
seu livro de 1774). dife_rent_e,da_filpsofía. do Ilu- marcada ao longo do século XIX, os autores ro-
minismoyigpr isso,Herder pode ser considerà3õ7 mânticos alemães opõem a cultura, expressão
comj ustiça, prccursõTdõ conceito relatívistai de da alma profunda de um povo, à civilização de-
"cultura"; "Foi Herder quem nos abriu os olhos finida a partir de então pelo progresso material
sobre as culturas" [Dumont, 1986,p. 134]. ligado ao desenvolvimento econômico e técni-
Depois da derrota na batalha de lena, em co. Esta idéia essencialista e particularista da
1806, e a ocupação das tropas de Napoleão, a cultura está em perfeita adequação com o con-
consciência alemã vai conhecer uma renovação ceito étnico-racial de nação - comunidade de in-
do nacionalismo que se expressará através de divíduos de mesma origem - que se desenvolve
uma acentuação da jnterpretação particularista- no mesmo momento na Alemanha e que servirá
da cjuitucLalerfla.jp esforço para definir o "cará- de fundamento à constituição do Estado-nação
ter alemão"se intensifica. Não_é_somente a origi- alemão [Dumont, 1991].
nalidade, na_singularidade absoluta, da cultura -—~ Na França, a evolução da palavra no sécu-
alemã que é afirmada, mas também sua supe-
_ L*___ __ „ '—'— . - . _*_
lo XDÍ e um pouco diferente. Um certo interes-
rioridadex Desta afirmação, certos ideólogos se nos círculos cultos pela filosofia e as letras
concluem que existe uma missão específica do alemãsÃêm pleno desenvolvimento contfíEüíli
povo alemão com relação à humanidade. talvez para ampliar a acepção da palavra france-
A idéia alemã de cultura evolui então pou- sa. "Cultura" se enriqueceu com uma dimensão
co no século XEK sob a influência do nacionalis- colejtivacnã^ej;eferiajnais^somente aocíesen-
mo. Ela se liga cada vez mais ao conceito de "na- jTOtvimgnto intelectual do ^indivíduo. Passou a
_ção". A cultura vem da alma, do gênio de um designar também um conjunto decaracteres
povo. A nação cultural precede e chama a nação próprios de um'ã~cl>mumdade, mas em um sen-
política. A-^eultura. aparece como unLcontunto tidoj»ej*almente vasto e impreciso. Encontra-se
de^conquistas Artísticas, intelectuais e morais expressões como "cultura francesa" (ou alemã)
que^ constituem o patrimônio" de uma .nação, ou "cultura da humanidade". ^Cultura" está mui-
considerado coriífi^dquirido definitivamente e to próxima da palavra "civilização' e às vezes é
fundador de sua unmacle. "X substituível por ela. ' " ~" --'
O conceito francês continua
-B«HSa335S™S?' -———~
marcado pela
---—a., i .^ franceses replicam pretendendo ser os cam-
idéia d e d f e dogênero humano,, Entre os explica' ò ^ "
séculos XVin e XIX na França, há a cpntinuida- clínio, no iníciõ^dõséculo XX, na França, do uso
de do pensamento universalista.iA cultura, no de "cultura" na sua acepção coletiva, pois a ide-
sentido coletivo, é antes de tudo a "cultura da ologia nacionalista francesa deveria se diferen-
humanidade". Apesar da influência alemã, a ciar claramente, até em seu vocabulário, de sua
idéia de unidade suplantada consciência_da_di- rival alemã. No entanto, o conflito das palavras
versidade: além das diferenças que sepodeobT se prolongará até depois do fim do conflito das
" ™ ^-""""""
jiervar entr^cultura alemã" e "cultura francesa^, armas, revelando uma oposição ideológica pro-
^há a unidade da "cultura humana".Em uma céle- funda que não se pode reduzir a uma simples
bre conferência ]pro1runciã!3ãnnãsorbonne em propaganda de guerra.
1882, O que é uma nação?, Ernest Renan afir- O debate íranco-alemão do século XVIII
mava sua convicção: "Antes da cultura francesa, ao século XX é /arquetípicoNdas duas concep-
da cultura alemã, da cultura italiana, existe a cul- ções de cultura, uma^parfJtTtfarista, a outra uni-
tura humana." versalista^que estão na base das duas maneiras
Os particularismos culturais são minimiza- de definir o conceito de cultura nas ciências so-
dos. Oslntelectuais nãp^^m^nr^cõncepção ciais contemporâneas.
defuma cultura nacional antes de tudo, assim
como recusam a
enjr£^cujtura[^eji^ ___ __
tá francj^^da-cultura-acompanha a concepção
,jelejtiva^de_naçãqí surgida na Revolução: perten-
cem à nação francesa, explicará Renan, todos os
que se reconhecem nela, quaisquer que sejam
suas origens.
No sécuÍQ_-XX,AJivalÍdade dos nacionalis-
_mos francês^e alemão^e^seujenfrentament^Bru^
talna gi^rlfS^delpl^^-S vão exacerbar o de-
^
bate ideológico £ntre as duas~íõlíÕêpcoêT^è
,_., ^._~n!-C'"~-í^»~ ... ,^ ^ f
* _

"cultura. As_i*--—~
palavras tornam-se^slògãns_utili?ados
—t—-— ~—*
como armas. Aos alemães, que dizem defender a
cultura (no sentido em que eles a entendem), os
pretensas "subculturas" de um mesmo conjunto
social. Estas "subculturas" funcionariam como O Estudo das Relações entre
culturas inteiras, isto é, como sistemas de valo- as Culturas e a Renovação do
res, de representações e de comportamentos Conceito de Cultura
que permitem a cada grupo identificar-se, loca-
lizar-se e agir em um espaço social que o cerca.
Para os interacionistas, o termo "subcultura" é
então inapropríado. É inegável que a reflexão sobre a noção de
cultura se aprofundou ao se concentrar no estu-
do das culturas singulares e no estudo dos prin-
cípios universais da cultura. Mas seria preciso a
abertura de um novo campo de pesquisa sobre
os processos da chamada "aculturação" para que
um novo avanço teórico se produzisse. Ainda
que os fatos de contatos culturais não tenham
sido completamente ignorados, curiosamente,
até uma data bastante tardia, poucos trabalhos
foram dedicados ao processo de mudança cultu-
ral ligado a esses contatos culturais. Os antropó-
logos difusionistas se interessaram bastante pe-
los fenômenos dos empréstimos e da repartição
dos "traços" culturais a partir de um suposto
"lar" cultural. Mas seus trabalhos tratavam do re-
sultado da difusão cultural e descreviam somen-
te o estado terminal de uma troca concebida em
um sentido único. Além disso, a difusão, com-
preendida deste modo, não implicava necessa-
riamente o contato entre a cultura que recebia
e a cultura que dava.
Como foi observado por Melville J.
Herskovits, antropólogo americano, pioneiro na
matéria, foi preciso esperar os estudos sobre os
fenômenos da "aculturação" para compreender Por outro lado, as culturas primitivas eram
melhor os mecanismos da cultura: percebidas como culturas pouco ou não modifi-
cadas pelo contato, supostamente muito limita-
pois Quando as tradições estão em conflito, os re- do, com as outras culturas. A etnologia não so- etnologia:
ciência que
ajustes no interior de uma cultura mostram a mente cultivou a obsessão da busca do aspecto analisa
várias etnias
maneira como os elementos da cultura se ligam original de cada cultura, mas também a da pro- e/ou cultura de
um povo, a fim
uns aos outros e como funciona o todo [1937, cura do caráter absolutamente original de cada de propor uma
comparação
p. 263]. cultura. Nesta perspectiva, toda mestiçagem das entre as
culturas era vista como um fenômeno que alte- culturas
Um aspecto que provoca interrogações é o rava sua "pufeza" original e que atrapalhava_o
atraso entre as pesquisas sobre o entrecruzamen- trabalho ~do pesquisadorjembaraíhando_as^pis-
to das culturas em relação aos trabalhos realiza- tas. O pesquisador não deveria, então, privilegiar
dos sobre as culturas tomadas isoladamente. o estudo deste fenômeno, ao menos em um pri-
meiro momento.
"A superstição do primitivo" Nestas condições, não é surpreendente
que um dos principais "inventores"-do conceito
É provável, como observa Roger Bastide de aculturação seja Herskovits que se desviou
[1968], que a orientação original da etnologia, desde 1928 dos estudos sobre os índios, então
voltada para as culturas chamadas "primitivas", objeto quase exclusivo da antropologia nos Es-
seja a causa principal deste atraso. Os etnólogos tados Unidos, para se dedicar à análise da cultu-
cederam por muito tempo ao que se denomina ra das Negros descendentes dos escravos africa-
a "superstição do primitivo" ou ainda o "mito do nos. Certamente, como bom discípulo de Boas,
primitivo". O importante para eles era estudar Herskovits continuaria muito preocupado em
prioritariamente as culturas mais"arcaicas",pois buscar as "origens" africanas das culturas negras
eles partiam do postulado que estas culturas for- do continente americano. Mas seu objeto de es-
neciam para a analise as formas elementares da evolução vs. tudo o levaria a colocar no centro de suas pre-
transformação
vida social e cultural que se tornariam necessa- = diferente ocupações os fenômenos de sincretismo cultu-
riamente mais complexas à medida que a socie- ral. Criando um novo campo de pesquisa, a afro-
fusão de
dade se desenvolvesse. Se, por definição, o que americanologia, ele contribuiu para o reconhe- culturas
é simples é mais fácil de aprender do aquilo que cimento dos fatos da aculturação como fatos diferentes
é complexo, era preciso começar por aí o estu- "autênticos"e tão dignos de interesse científico
do das culturas. quanto os fatos culturais supostamente "puros".

eram vistos como


Por razões idênticas, Roger Bastide, que de- sa e, além disso, sua influência só pode se fazer
dicou importantes trabalhos sobre a cultura sentir através do meio social interno [(1895)
afro-brasileira, seria o pesquisador que, nos anos 1983, p-111 e p. 115-116].
cinqüenta, introduziria na França as pesquisas
sobre o processo de aculturação e, ao mesmo Além disso, Durkheim considerava que se
tempo, quem abriria a etnologia francesa para dois sistemas sociais e culturais são diferentes
as Américas negras, formidável "laboratório" um do outro, não pode haver interpenetração
para o estudo dos fenômenos de interpenetra- entre eles. A probabilidade de se produzir um
ção das culturas. Ele se oporá à abordagem de sistema sincrético é fraca:
-Durkheim jsobre a formação e a evolução das
culturas, que teria sido responsável, segundo É verdade que em geral, a distância entre as so-
ele, pelo atraso da pesquisa francesa no campo ciedades componentes não poderia ser muito
da aculturação (Bastide, 1956]. grande; de outra forma, não poderia haver entre
Apesar de sua preocupação em ultrapassar elas nenhuma comunidade moral [(1895)
o organicismo que comparava a sociedade a um 1983, p. 85]-
organismo vivo, Emile Durkheim continuou a
pensar que o desenvolvimento de uma socieda- As posições teóricas de Durkheim distan-
de humana se faz a partir de si mesma. Segundo ciaram talvez por longo tempo a pesquisa fran-
ele, a mudança social e cultural é essencialmen- cesa da questão da confrontação das culturas.
te produzida pela evolução interna da socieda- Seria necessário o encontro de um Roger
de. O elemento determinante de explicação Bastide com o mundo negro brasileiro ou de um
continua a ser o meio interno. São as dinâmicas Georges Balandier com a sociedade colonial na
culturais internas que importam então e devem África, para que esta questão fosse enfim tratada
toda a atenção do pesquisador: com a atenção que ela merecia, mas isto se deu
apenas depois da Segunda Guerra Mundial.
A primeira origem de todo processo social de aculturação só teve destaque depois da segunda guerra

alguma importância deve ser procurada na  invenção do conceito de aculturação


constituição do meto social interno, [...j Pois
se o meio social externo, isto é, o que é forma- A observação dos fatos de contato entre
do pelas sociedades ambientes, é sucetível de as culturas evidentemente não data do momen-
ter alguma ação, esta ação ocorre apenas nas to da invenção do conceito de aculturação. Mas
funções que têm por objeto o ataque e a defe- esta observação era feita freqüentemente sem
aculturação já existia sem ter um nome próprio e era vista como algo negativo

teoria explicativa e impregnada de julgamentos ração de que se está tratando, como ela é produ-
de valor quanto aos efeitos destes contatos cul- zida, que fatores intervieram ,etc.Y"
turais. Um certo número de observadores con-
siderava a mestiçagem cultural, a exemplo da O memorando paris o estudo da
mestiçagem, biológica, como um fenômeno ne- aculturação
gativo e até mais ou menos patológico. Ainda
hoje,xisa-se a expressão "indivíduo (ou socieda- Diante do volume dos dados empíricos já
de) aculturado(a)" para exprimir um pesar e de- recolhidos sobre o tema, o Conselho de pesqui-
signar uma perda irreparável. A antropologia sa em ciências sociais dos Estados Unidos criou
pretende se distanciar destas acepções, negati- em 1936 um comitê encarregado de organizar a
va ou positiva, de aculturação. Ela dá ao termo pesquisa sobre os fatos de aculturação. O comi-
um conteúdo puramente descritivo que não tê, composto por Robert Redfield, Ralph Linton
implica uma posição de principio sobre o e Melville Herskovits, em seu célebre Memoran-
fenômeno. do para o Estudo da Aculturação de 1936, co-
"O substantivo "aculturação" parece ter meça por fazer um esclarecimento semântico. A
sido criado desde 1880 por J. W. Powell, antropó- definição que ele enuncia será a partir de então
logo americano, que denominava assim a trans- a regra:
formação dos modos de vida e de pensamento
dos imigrantes ao contato com a sociedade ame- A aculturação é o conjunto de fenômenos que
ricana. A palavra não designa uma pura e sim- resultam de um contato contínuo e direto en-
ples "deculturação". Em "aculturação", o prefixo tre grupos de indivíduos de culturas diferentes
"a"não significa privação; ele vem do etimologi- e que provocam mudanças nos modelos
camente do latim ad e indica um movimento de (patterns) culturais iniciais de um ou dos dois
aproximação. Será, no entanto, necessário espe- grupos.
rar pelos anos trinta para que uma reflexão sis-
temática sobre os fenômenos de encontro das Segundo o Memorando, a aculturação deve
culturas leve os antropólogos americanos a pro- ser distinguida da "mudança cultural", expressão
por uma definição conceituai do termo. A par- utilizada sobretudo pelos antropólogos britâni-
tir de então não será mais possível utilizá-lo de cos, pois esta expressão é apenas um dos aspec-
uma maneira menos rigorosa. Para a antropolo- tos da aculturação: de fato, a mudança cultural
gia cultural, evocar um processo de aculturação pode também resultar de causas internas. Utilizar
leva necessariamente a definir o tipo de acultu- o mesmo termo para designar dois fenômenos, a

aculturação: mudança exógina vs. mudança cultural: mudança endógena


mudança endógena e a mudança exógena, seria ® se eles se produzem entre grupos de cul-
pretender que estas duas mudanças obedeçam às turas de mesmo nível de complexidade ou não;
mesmas leis, o que parece pouco provável. » se os contatos resultam da colonização
Por outro lado, não se pode confundir ou da imigração.
aculturação e "assimilação". A assimilação deve Em seguida são examinadas sucessiva-
ser compreendida como a última fase da acultu- mente as situações de dominação e de subordi-
ração,fase aliás raramente atingida. Ela implica o nação nas quais a aculturação pode se produ-
desaparecimento total da cultura de origem de zir; os processos de aculturação, isto é, os mo-
um grupo e na interiorização completa da cul- dos de "seleção" dos elementos emprestados ou
tura do grupo dominante. de "resistência" ao empréstimo; os mecanismos
Enfim, a aculturação não pode ser confun- psicológicos que favorecem ou não a acultura-
dida com a "difusão", pois, por um lado, mesmo ção; enfim, os principais efeitos possíveis da
que haja sempre difusão quando há acultura- aculturação, inclusive as reações negativas que
ção, pode haver difusão sem contato "contínuo podem gerar às vezes movimentos de "contra-
e direto"; por outro lado, a difusão é apenas um aculturação".
dos aspectos do processo de aculturação, que é Herskovits, Linton e Redfield souberam
um processo bem mais complexo. mostrar a complexidade dos fenômenos de
O Memorando constitui uma contribui- aculturação. Por seu prefixo e seu sufixo, o ter-
ção decisiva e preciosa. Ele cria um campo de mo "aculturação" designa claramente um fenô-
pesquisa específico e se esforça para organizá- meno dinâmico, um processo em vias de realiza-
lo, dotando-o de instrumentos teóricos adequa- ção. O que deve ser analisado é precisamente
dos. Ele propõe uma classificação dos materiais este processo em andamento e não somente os
disponíveis devido às pesquisas já efetuadas. Ele resultados do contato cultural.
elabora uma tipologia dos contatos culturais:
® se os contatos se produzem entre grupos amento teórico
inteiros ou entre uma população inteira e gru-
pos particulares de uma outra população (por Contra a idéia simplista e etnocentrista de
exemplo, missionários, colonos, imigrantes...); uma aculturação pesando necessariamente "a fa-
© se os contatos são amigáveis ou hostis; vor" da cultura ocidental, supostamente mais
e se eles se produzem entre grupos de ta- avançada, os antropólogos americanos introduzi-
manhos aproximativamente iguais ou entre gru- rão em suas análises a noção de "tendência", to-
pos de tamanhos notavelmente diferentes; mada da lingüística por Sapir para explicar que a
aculturação não é uma pura e simples conversão vés de usar o futebol para afirmar um espírito
a uma outra cultura. A transformação da cultura de competição, eles transformam este jogo em
inicial se efetua por "seleção" de elementos cul- um ritual destinado a reforçar a solidariedade
turais emprestados e esta seleção se faz por si entre eles (K. E. Reach, citado por Lévi-Strauss
mesma segundo a "tendência" profunda da cultu- [1963, p. 10]).
ra que recebe. A aculturação não provoca neces- O esforço de teorização da antropologia
sariamente o desaparecimento da cultura que re- americana permitiu determinar que as mudan-
cebe, nem a modificação de sua lógica interna ças culturais ligadas à aculturação não se fazem
que pode permanecer dominante. ao acaso. Uma lei geral pode até ser enunciada:
Indo mais longe nesta análise, Herskovits os elementos não simbólicos (técnicos e mate-
proporá um novo conceito para dar conta de di- riais) de uma cultura são mais facilmente trans-
ferentes níveis de aculturação, o conceito de feríveis que os elementos simbólicos (religi-
"reinterpretação", definido como sendo osos, ideológicos, etc.).
Para dar conta da complexidade do proces-
o processo pelo qual antigas significações são so de aculturação, H. G. Barnett, que cita Bastide
atribuídas a elementos novos ou pelo qual no- [1971, p.51], distinguia a "forma" (a expressão
vos valores mudam a significação cultural de manifesta), a "função" e a "significação" dos tra-
formas antigas [1948]. ços culturais.A partir desta distinção, três regula-
ridades complementares podem ser enunciadas:
O conceito será amplamente adotado pela s quanto mais "estranha" for a forma (isto
antropologia cultural. No entanto, a maioria dos é, mais distante da cultura que recebe), mais di-
pesquisadores, como o próprio Herskovits, ilus- fícil será sua aceitação;
trarão sobretudo a primeira parte da definição * as formas são mais facilmente transferí-
pois, como herdeiros do culturalismo, dedica- veis que as funções. Contrariamente ao pensa-
vam-se a demonstrar a continuidade semântica mento de Malinovski, Barnett afirma que os su-
das culturas, inclusive na mudança. Pode-se ver postos equivalentes funcionais introduzidos em
uma ilustração do conceito na maneira particu- uma cultura raramente podem substituir com
lar dos Gahaku-Kama da Nova Guiné jogarem eficácia as antigas instituições;
futebol. Iniciados neste esporte pelos missioná- 0 um traço cultural, qualquer que seja a
rios, eles só aceitam acabar o jogo quando os sua forma, será mais bem aceito e integrado se
dois times estão empatados no número de par- puder adotar uma significação de acordo com a
tidas ganhas, o que pode levar vários dias. Ao in- cultura que recebe. Encontramos aqui a idéia
de reinterpretação, idéia que Herskovits tanto levar a uma certa "naturalização" da cultura, por
prezava. tentarem provar a qualquer preço a continuida-
de da cultura apesar das mudanças aparentes.
Teoria da aculturação c cultiiralismo De fato, a cultura parece então ser entendi-
da como uma "segunda natureza" do indivíduo
A teoria da aculturação nasceu de certas da qual ele tinha tão poucas chances de escapar
questões do cultimilismo americano. Por esta ra- quanto da sua natureza biológica. O maior inte-
zão não é surpreendente que em sua elaboração resse dos estudos posteriores sobre o processo
reencontremos as mesmas limitações e até os de aculturação será precisamente a relativização
mesmos impasses que no culturalismo. Por isso, desta analogia entre cultura e natureza, fazendo
às vezes, a análise se concentra demais sobre aparecer a importância dos fenômenos de des-
certos "traços"culturais tomados isoladamente e continuidade no processo de aculturação.
parece esquecer o que os antropólogos da esco- Além do mais, certos estudos antropológi-
la "cultura e personalidade" estabeleceram, ou cos sobre estes processos apresentam o proble-
seja, que uma cultura é um todo, um sistema. ma que Bastide chama de "psicologismo". Os an-
Como toda cultura é uma unidade organizada e tropólogos tiveram razão de insistir no fato que
estruturada, na qual todos os elementos são in- são os indivíduos que entram em contato uns
terdependentes, é ilusório pretender selecionar com os outros e não as culturas. Na realidade,
os aspectos supostamente "positivos"de uma não se pode reificar a cultura que é apenas uma
cultura para combiná-los com os aspectos "posi- abstração. Mas os indivíduos pertencem a gru-
tivos" de uma outra com o objetivo de chegar as- pos sociais, grupos de sexo, de idade, de status,
sim a um sistema cultural "melhor", como pre- etc. Eles não existem nunca e em lugar nenhum
tendia um certo humanismo. Independente- de maneira totalmente autônoma. Não se pode,
mente dos julgamentos de valor que contém, então, compreender sua implicação no proces-
julgamentos que por si só colocam toda uma sé- so de aculturação referindo-nos unicamente à
rie de problemas, esta proposta mostra-se sim- sua psicologia individual. É preciso levar em
plesmente irreaüzável. conta também as obrigações sociais que pesam
Por outro lado, uma grande insistência de sobre eles. E se desejamos a qualquer preço,
certos autores, entre eles Herskovits, no que ater-nos a uma análise em termos de personali-
eles chamam de "sobrevivências" culturais, ou dade, não podemos esquecer o contexto social
seja, nos elementos da antiga cultura conserva- e histórico que influi sobre as personalidades
dos idênticos na nova cultura sincrética, pode individuais [Bastide, 1960, p. 318].
são semântica entre etnocídio e genocídio
Etnocídio eram freqüentes.
"Etnocídio" remete à realidade de operações
O termo "etnocídio" apareceu recentemente. sistemáticas de erradicação cultural e religiosa
Foi criado nos anos sessenta por etnologos nas populações indígenas para fins de assimila-
americanistas, entre os quais Robert Jaulin que ção na cultura e na religião dos conquistadores,
contribuiu mais do que qualquer outro para a realidade atestada pelos historiadores e pelos
sua divulgação [Jaulin, 1970]. Os pesquisadores etnologos. E extensão do uso do termo em ou-
assistiam impotentes à transformação forçada, tras situações mais complexas de contatos cul-
extremamente rápida, de sociedades amerín- turais assimétricos enfraqueceu o valor heurís-
dias da Amazônia confrontadas brutalmente tico do conceito.
com uma exploração industrial da floresta que Confundir, por exemplo "etnocídio" com "acul-
ameaçava os próprios fundamentos de seu sis- turação" ou "assimilação" leva a um contra-sen-
tema social e econômico. Estas sociedades não so.A aculturação, mesmo forçada ou planejada,
estavam mais em condições de manter suas cul- não se reduz jamais a uma simples deculturação
turas e pareciam condenadas à assimilação. desaparecimento total e não leva necessariamente à assimilação que,
da cultura original
Construído sobre o modelo da palavra "genocí- de todo modo, quando se produz, não é neces-
dio", que designa a exterminação física de um sariamente a conseqüência de um etnocídio e
povo, o conceito de etnocídio significa a des- pode resultar de uma escolha voluntária dos "as-
truição sistemática da cultura de um grupo, isto similados". Se o etnocídio é um fenômeno limi-
é, a eliminação por todos os meios não somen- tado, não se pode dizer o mesmo da acultura-
te de seus modos de vida, mas também de seus ção, fenômeno normal da vida das sociedades.
modos de pensamento. O etnocídio é então Um determinado uso da conceito de etnocídio
uma deculturação deliberada e programada. limita seu alcance. A denúncia do etnocídio é
O contexto das décadas de sessenta e setenta, impregnado às vezes de um relativismo cultu-
marcado pela denúncia do imperialismo oci- ral radical que não concebe que as relações en-
dental, e, nas sociedades avançadas, sobretudo tre as culturas sejam freqüentemente relações
na França, pela exaltação do pluralismo cultu- de força. Este radicalismo mantém a ilusão de
ral, criou um clima favorável à vulgarização des- que as diferentes culturas poderiam existir in-
te conceito. No entanto, esta vulgarização se dependentemente umas das outras em uma es-
realizou com muita ambigüidade, pois a confu- pécie de "pureza" original.
Para conferir um valor operatório ao conceito A relação do social com
de etnocídío, é preciso então se ater a uma de- o cultural
finição rigorosa e localizar as situações socio-
históricas concretas nas quais foram produzi- Formado em sociologia e em antropolo-
dos etnocídios no seu sentido estrito. Somente gia, Bastide parte da idéia que o cultural não
desta maneira se poderá progredir no conheci- pode ser estudado independentemente do so-
mento do fenômeno. Este foi o procedimento cial. Para ele, o grande limite do culturalismo
adotado por Pierre Clastres tentando elucidar americano nos trabalhos sobre a aculturação é a
por que o espírito e a prática "etnocidas" se de-
senvolveram particularmente no interior da ci- !!!!!! ausência de relação do cultural com o social
[1960, p.317]. No culturalismo há um risco de
vilização ocidental. Segundo ele, a emergência redução dos fatos sociais a fatos culturais (inver-
do Estado e mais especificamente do Estado- crítica ao samente, pode-se dizer que existe o que se po-
Nação, no Ocidente estaria na origem do fenô- culturalismo
deria chamar de "sociologismo", um risco de re-
meno do etnocídio [Clastres, 1973]. dução dos fatos culturais a fatos sociais). pois juntas

As relações culturais devem então ser estu-


dadas no interior dos diferentes quadros de re-
lações sociais que podem favorecer relações de
Roger Bastide c os quudros sociais integração, de competição, de conflito, etc. Os
da aculturação fatos de sincretismo, de mestiçagem cultural e
até de assimilação, devem ser recolocados em
Na França, não é possível se interessar pelos seu contexto de estruturação ou de desestrutu-
fenômenos da aculturação sem se referir, de um ração sociais.
modo ou de outro, a Roger Bastide (1898 -1974), Bastide critica, no culturalismo, uma certa
pesquisador afro-americanista e professor da Sor- confusão entre os diferentes níveis da realidade
bonne. Foi ele, em grande parte, que revelou para e um desconhecimento da dialética que vai das
a França a antropologia americana da acultura- se refere à
américa EUA superestruturas para as infra-estruturas e reci-
ção e contribuiu, mais do que ninguém para que ou à América
Latina?
procamente. Ora, é precisamente esta dialética
este campo de pesquisas fosse reconhecido que permite explicar o fenômeno de reações
como um domínio capital da disciplina. Apesar em cadeia, muito conhecido no processo de
de enfatizar o grande mérito dos iniciadores ame- aculturação.Toda mudança cultural produz efei-
ricanos, Bastide tentará nos seus diferentes traba- tos secundários não previstos que, mesmo que
lhos renovar a abordagem da aculturação. não sejam simultâneos não podem ser evitados.
Para tomar apenas um exemplo, com a co- das funções da compensação matrimonial tradi-
lonização, a introdução da moeda nas socieda- cional era precisamente assegurar a estabilidade
des tradicionais africanas não teve como único da união). Diante do que eles consideram um
efeito a transformação dos sistemas econômicos duplo atentado aos princípios da moralidade (a
baseados na reciprocidade e na redistribuição. "compra da noiva" e a instabilidade conjugai),
Ela provocou mudanças em outros planos, em missionários tentaram suprimir o costume da
particular no sistema das trocas matrimoniais. compensação matrimonial. O resultado não cor-
Segundo a regra costumeira, para obter uma es- respondeu à sua expectativa: por um lado, os
posa, era necessário pagar à família da noiva cônjuges se consideraram casados superficial-
uma compensação matrimonial (um certo nú- mente; por outro lado, as mulheres, liberadas da
mero de cabeças de gado, por exemplo, em cer- obrigação de restituir a compensação, tiveram
tas sociedades), segundo a lógica que para cada ainda mais facilidade para se divorciar e mudar
dádiva deve corresponder uma retribuição. O freqüentemente de parceiros.
dinheiro, ao substituir a retribuição em natura, Os fatos de aculturação formam um "fenô-
vai modificar profundamente a estrutura da tro- meno social total", segundo a expressão de
ca: a reunião da soma necessária para o "preço Mareei Mauss, que Bastide retoma por sua vez.
da noiva" não exige mais a colaboração do con- Eles atingem todos os níveis da realidade social e
junto do grupo de parentesco (ao contrário do cultural, por isso, a mudança cultural não pode
que se passava para a constituição de um reba- ser limitada a priori, nem horizontalmente no
nho). O casamento tende então a se tornar uma interior do mesmo nível, nem verticalmente en-
questão individual e toma cada vez mais a forma tre diferentes níveis. Isto explica certas ilusões
de um arranjo exclusivamente econômico e não dos missionários, no passado, que desejavam
mais essencialmente social (tradicionalmente a apenas uma culturação parcial dos indígenas ou
troca matrimonial tinha como finalidade princi- ainda dos agentes de desenvolvimento econômi-
pal a aliança entre dois grupos de parentesco). co de hoje: encorajar, por exemplo, a transferên-
Em certos casos, como as próprias esposas ga- cia das chamadas tecnologias "doces", para "res-
nham dinheiro, como comerciantes ou assala- peitar" a cultura de um país subdesenvolvido
riadas, elas podem deixar mais facilmente seus pode ter a longo prazo, efeitos tão desestrutura-
maridos, pois estão em condições de reembol- dores quanto a transferência de tecnologias "pe-
sar a compensação matrimonial. As separações sadas", supostamente mais devastadoras, pois é
tendem, então, a se multiplicar (enquanto uma toda a cadeia operatória tradicional que corre o
risco de ser modificada e, conseqüentemente, as Na análise de toda situação de acultura-
relações sociais que a ela estão ligadas. ção, é preciso levar em conta tanto o grupo que
dá quanto o grupo que recebe. Se respeitarmos
Uma tipologia das situações ele este princípio, descobriremos rapidamente que
contatos culturais não há cultura unicamente "doadora"nem cultu-
ra unicamente "receptora", propriamente dita.A
Retomando a idéia norte-americana de aculturação não se produz jamais em mão úni-
uma classificação necessária dos diferentes ti- ca. Por esta razão, Bastide propõe os termos "in-
pos de aculturação para evitar a descrição pura terpenetraçao"ou 11entrecruzamento"das cultu-
ou escapar da generalização abusiva, diante de ras, em lugar do termo aculturação que não in-
um processo extraordinariamente complexo, dica claramente esta reciprocidade de influên-
Bastide, por sua vez, vai criar uma tipologia. Fiel cia que, no entanto, raramente será simétrica.
ao princípio fixado por ele mesmo, ele integra Bastide constrói então sua tipologia a par-
em sua tipologia os quadros sociais nos quais se tir de três critérios fundamentais, um geral, o se-
efetua a aculturação. gundo cultural e o terceiro social [19660, p.
Ele define então diversas "situações" de 325]. O primeiro critério é a presença ou ausên-
contato, entre as quais, a "situação colonial", de- cia de manipulações das realidades culturais e
finida por Georges Balandier [1955]. Para se sociais. Três situações-tipos podem existir.
opor a Balandier, que afirmava, um pouco preci- s A situação de uma aculturação "espon-
pitadamente que a antropologia cultural não tânea", "natural", "livre" (na realidade, jamais
dava conta das situações sociais, Bastide lembra completamente). Trata-se de uma aculturação
que no Memorando, a questão foi abordada en- nem dirigida nem controlada. Neste caso, a mu-
quanto tal [1968,p. 106]. Mas esta parte do pro- dança decorre do simples jogo do contato e se
grama de pesquisa que o Memorando previa, faz, para cada uma das duas culturas presentes,
continuaria efetivamente sem grande desenvol- segundo sua lógica interna própria.
vimento nos Estados Unidos. Levar em conta as e A situação de uma aculturação organi-
diversas situações possíveis é importante em zada, mas forçada, em benefício de um só gru-
um plano metodológico, pois a concepção que po, como no caso da escravidão ou da coloniza-
se faz da aculturação (como fenômeno geral) ção. Há, então, vontade de modificar em curto
depende freqüentemente da "situação" particu- prazo a cultura do grupo dominado para subme-
lar na qual ela é estudada. tê-lo aos interesses do grupo dominante. A acul-
turação é, neste caso, parcial, fragmentária. Fre- Uma tentativa de explicação dos
qüentemente, ela é um fracasso (do ponto de fenômenos de aculturação
vista dos dominantes), pois há desconhecimen-
to dos determinismos culturais. Há freqüente- Bastide não se restringe à classificação dos
mente deculturação sem aculturação. fenômenos de aculturação. Ele procura também
& A situação da aculturação planejada, explicá-los analisando os diferentes fatores que
controlada, que se pretende sistemática e visa o podem desempenhar um papel no processo de
longo prazo. O planejamento se faz a partir do aculturação, sem esquecer os fatores não cultu-
suposto conhecimento dos determinismos so- rais [1960, p.326]. Os diferentes fatores podem
ciais e culturais. No regime capitalista, ela pode se reforçar mutuamente ou se neutralizar. Aten-
levar ao "neo-colonialismo". No regime comu- do-nos às variáveis mais determinantes, teremos
nista, ela pretende construir uma "sociedade o seguinte:
proletária" que ultrapasse e englobe as "culturas a O fator demográfico: qual dos grupos
nacionais". A aculturação planejada pode resul- em contato é majoritário numericamente e qual
tar de uma demanda de um grupo que deseja dos dois é minoritário? Mas a maioria estatística
ver evoluir seu modo de vida, por exemplo para não pode ser confundida com a maioria políti-
favorecer seu desenvolvemento econômico. ca. Na situação colonial, por exemplo, a maioria
O segundo critério, de ordem cultural, é a estatística é minoritária no plano político.
relativa homogeneidade ou heterogeneidade Um outro aspecto do fator demográfico é
das culturas presentes. a estrutura das populações em contato: sex
Enfim, o terceiro critério, de ordem social, ratio, pirâmide de idades, população composta
é a relativa abertura ou o fechamento das socie- sobretudo de solteiros (como na conquista das
dades em contato. As sociedades que têm um Américas ou em certos tipos de imigração) ou
caráter mais comunitário, e são pouco diferen- de famílias já constituídas, etc,
ciadas socialmente são mais permeáveis às in- ® O fator ecológico: onde se dá o contato?
fluências culturais externas, ao contrário das so- Nas colônias ou na metrópole? No meio rural
ciedades mais individualizadas e diferenciadas. ou no meio urbano?
Combinando os três critérios, obtém-se * O fator étnico ou "racial", enfim: qual é
doze tipos de situações de contatos culturais, a estrutura das relações interétnicas? Existem
cada um apresentando um aspecto geral, quase relações de dominação/subordinação? De que
político, um aspecto cultural e um aspecto so- tipo:"paternalista" ou "concorrencial" (os efeitos
cial próprios. são opostos)?
O que importa, no exame dos diversos fa- pel do meio externo e sobretudo sua relação
tores, é considerar o maior número de diferen- dialética com o meio interno. Esta dialética das
tes estruturas possíveis de relações sociais pois dinâmicas internas e externas leva a uma nova
é através delas que estes fatores agem. estruturação cultural na qual a causalidade in-
Situando-se em outro nível de explicação terna pode predominar quando a mudança é su-
mais abstrato, Bastide introduzira anteriormente perficial, ou na qual a causalidade externa pode
[1956] a idéia de duas causalidades que entram vencer se houver imitação cultural.
em relação dialética em todo processo de acul-
turação: a causalidade interna e a causalidade
externa. Ele não foi o primeiro a evocar estas
duas causalidades, mas sua contribuição pessoal
consistiu na insistência em provar a interação Apesar de ser muito atento aos detertninismos
constante entre elas. A causalidade interna de sociais, Koger Bastide não negligenciou o pon-
uma cultura é seu modo de funcionamento par- to de vista do sujeito. Retomando por sua con-
ticular, sua lógica própria. Ela pode favorecer ou influenciar ta a idéia de que são os indivíduos que se en-
ao contrário, freiar e até impedir as mudanças contram c não as culturas, ele tentava com-
culturais exógenas. Reciprocamente, a causali- preender o que se passava com os indivíduos
dade externa, ligada à mudança exógena, age so- em um processo de aculturação. Uma parte de
mente através da causalidade interna. sua obra é dedicada à explicação, a partir da an-
Esta dupla causalidade explica o fenôme- tropologia, da patologia de certos indivíduos vi-
no das reações em cadeia, citado anteriormente. vendo em contradições culturais insuperáveis.
Uma causa externa provoca uma mudança em No entanto, ele tinha sobretudo a preocupação
um ponto de uma cultura. Esta mudança vai ser de demonstrar que a aculturação não produz
"absorvida" por esta cultura em função de sua necessariamente seres híbridos, inadaptados e
lógica própria e vai provocar uma série de infelizes.
reajustes sucessivos. Em outras palavras, a causa- Para dar conta de um aspecto essencial da per-
lidade externa estimula a causalidade interna: sonalidade do homem em situação de acultura-
todo sistema cultural atingido em um ponto vai ção, Bastide criou o conceito de "princípio de
reagir para reencontrar uma certa coerência. corte" [1955],essencial na sua obra. Na origem
Bastide reconhece que Durkheim estava do conceito, há a descoberta do universo reli-
correto ao insistir na importância do meio inter- gioso afro-brasileiro.Ao longo de suas pesquisas
no. Mas ele se distancia dele ao evidenciar o pa-
na Bahia, ele constatou que os Negros podiam "cortado cm dois", contra a sua vontade, mas é
ser ao mesmo tempo e com toda a serenidade, ele que introduz os cortes entre seus diferentes
fervorosos adeptos do culto do Camdomblc e engajamentos.
agentes econômicos perfeitamente adaptados à O princípio do corte pode deste modo, agir no
racionalidade moderna, diferentemente de ou- nível das "formas" inconscientes do psiquismo,
tros analistas, ele não via nisso a marca de uma isto é, das estruturas perceptivas, mncmônicas,
contradição fundamental ou de uma conduta lógicas e afetivas, podem também aparecer
incoerente. Segundo ele, os Negros que vivem "cortes que tornam a inteligência ocidentaliza-
em uma sociedade pluricultural cortam o uni- da enquanto a afetividade continua indígena ou
verso social em um certo número dc"compar- vice-versa" [1970a, p.144].
timentos isolados" nos quais eles têm "partici- Dependendo das situações e particularmente
pações" de ordem diferente que, por isso mes- do tipo de relações entre os grupos de culturas
mo, não lhes parecem contraditórias. diferentes, o corte pode ou não se impor. O
Por esta analise, estendida em seguida a outras princípio do corte é sobretudo característico
situações, Roger Bastide renovou a abordagem de grupos minoritários, para os quais ele cons-
da questão da marginalidade, tal como havia titui um mecanismo de defesa da identidade
sido colocada pelos sociólogos da Escola de cultural. Pode-se observar atualmente todos os
Chicago. Para ele, o "homem marginal" não é al- tipos de exemplos no contexto da imigração,
guém que vive entre dois universos sociais e na França. Desde os anos setenta, por exemplo,
culturais, mas no interior dos dois universos, os imigrantes africanos, Soninké e Toucouleur.
sem que eles se comuniquem. Não é necessa- na maioria, vindos de sociedades muçulmanas
riamente um ser ambivalente ou infeliz, diferen- rigoristas, trabalham como operários em um
temente do homem psicologicamente margi- dos maiores abatedouros de carne de porco da
nal:"[...] oAfro-brasileiro escapa, pelo princípio Europa, em Collinée, na Bretanha, Apreciados
do corte, à desgraça da marginalidade (psíqui- por suas qualidades profissionais, eles se esta-
ca). O que se denuncia as vezes como a dupli- beleceram no local e trouxeram suas famílias e
cidade do Negro é o sinal de sua maior sinceri- amigos, constuindo progressivamente uma co-
dade; se ele joga em dois campos, é porque ele munidade no vilarejo. O contato cotidiano com
está realmente em dois campos" [1955, p. 498]. a carne de porco, para eles, pertence às neces-
Se a marginalidade cultural não se transforma sidades do trabalho industrial, considerado
em marginalidade psicológica, é devido ao como estritamente instrumental, como um sim-
princípio do corte. Não é o indivíduo que é ples ganha-pão e não altera em nada sua identi-
dade muçulmana, preservada aliás [Renault, a mínima influência externa. O processo de acul-
1992]. turação é um fenômeno universal, mesmo que
Continuando sua reflexão, Bastide chega a opor ele tenha formas e graus muito diversos.
uma concepção otimista da marginalidade cul- O processo que cada cultura sofre em si-
tural à concepção pessimista dominante. Se- tuação de contato cultural, processo de deses-
gundo ele, os homens em situação de margina- truturação e depois de reestruturação, é em
lidade cultural são particularmente criativos, realidade o próprio princípio da evolução de
adaptáveis e podem se tornar os líderes da mu- qualquer sistema cultural. Toda cultura é um
dança social e cultural. Pelo jogo dos cortes, processo permanente de construção, descons-
eles tiram partido da complexidade do sistema trução e reconstrução. O que varia é a importân-
social e cultural [1971, cap. 6]. cia de cada fase, segundo as situações .Talvez fos-
Definitivamente, o conceito tio princípio do se melhor substituir a palavra "cultura" por "cul-
corte apresenta a vantagem de permitir que se turação" (já contido em "aculturação") para su-
pense a mutação cultural, a descontinuidade e blinhar esta dimensão dinâmica da cultura.
não somente a mudança na continuidade como Por esta razão, como mostrou Bastide, o es-
tentaram fazer os culturalistas. tudo da fase de desconstrução é tão importante
do ponto de vista científico quanto a fase de re-
construção, pois é igualmente rica em ensina-
mentos. Ela revela que a deculturacão não é ne-
cessariamente um fenômeno negativo que re-
sulta na decomposição da cultura. Se por um
As pesquisas sobre o processo de acultura- lado, a deculturacão pode ser o efeito do encon-
ção renovaram profundamente a concepção tro das culturas, ela pode também agir, por ou-
que os pesquisadores tinham da cultura. Consi- tro lado, como causa de reconstrução cultural.
derar a relação íntercultural e as situações nas Bastide se apoia no caso exemplar (porque ex-
quais ela se efetua levou a uma definição dinâ- tremo) das culturas afro-americanas: apesar ou
mica da cultura. talvez por causa dos séculos de escravidão, ou
A perspectiva se inverteu: não se parte seja, de desestruturação social e cultural quase
mais da cultura para compreender a acultura- absoluta, os Negros das Américas criaram cultu-
ção, mas da aculturação para compreender a cul- ras originais e dinâmicas.
tura. Nenhuma cultura existe em "estado puro", Assim Bastide se opõe a Lévi-Strauss e sua
sempre igual a si mesma, sem ter jamais sofrido concepção da noção de estrutura que ele consi-

_L
dera estática demais. Ao invés de "estrutura", se- dutas delinqüentes. No entanto, na maior parte
ria preciso falar de "estruturação", "desestrutu- do tempo, a desestruturação é somente a pri-
ração"e "reestruturação". A cultura é uma cons- meira fase de uma recomposição cultural que
trução "sincrônica"que se elabora a todo instan- será mais ou menos importante. Às vezes, pode-
te através deste triplo movimento. Lévi-Strauss, se assistir a uma verdadeira "mutação" cultural,
de acordo com sua teoria estruturalista, tem ou seja, a descontinuidade vence a continuida-
uma visão muito pessimista dos fenômenos de de. Neste caso, Bastide fala de "aculturação for-
deculturação nas sociedades submetidas à colo- mal" porque ela atinge as próprias "formas" (as
nização. Para ele, esta deculturação só pode le- Gestalt) do psiquismo, isto é, as estruturas do in-
var à "decadência" cultural, "sintoma" de uma consciente "informadas" pela cultura. No outro
"doença que é comum a todas elas" [às socieda- caso, a aculturação é chamada de "material", ou
des deculturadas]: seja, atinge apenas os conteúdos da consciência
psíquica, o que faz a sua "matéria" (por exem-
No momento em que se desfazem, todas as so- plo, os valores, as representações) e que se ins-
ciedades convergem, por mais diferentes que creve nos fatos perceptíveis: difusão de um tra-
elas possam ter sido em seu estado original. Ha ço cultural, mudança de um ritual, propagação
culturas melasianas, africanas, americanas; mas de um mito,etc. [Bastide].
a decadência tem apenas um rosto (citado in Esta distinção permite que se apreenda
Bastide 11956, p. 85]). melhor um certo número de fenômenos, espe-
cialmente os chamados da"contra-aculturação",
Em certos casos, os fatores de decultura- por exemplo os movimentos messiânicos, os
ção podem dominar, a ponto de impedir qual- movimentos fundamentalistas e, de uma manei-
quer reestruturação cultural. Restos fragmentá- ra geral, todas as tentativas de "retorno às ori-
rios da cultura de origem podem coexistir com gens".A análise mostra que a contra-aculturação
contribuições fragmentárias da cultura vence- se produz somente quando a deculturação é su-
dora, mas não há ligação entre eles e as signifi- ficientemente profunda para impedir qualquer
cações profundas destes elementos estão perdi- recriação pura e simples da cultura original. E
das. Este conjunto heteróclito não constitui um ainda, muito freqüentemente, os movimentos
sistema. Esta desestruturação sem reestrutura- de contra-aculturação tomam emprestado, sem
ção possível provoca uma desorientação dos in- se dar conta, os modelos de organização e até os
divíduos, no sentido próprio de perda de rumo, sistemas inconscientes de representações da
que se traduz em patologias mentais ou em con- cultura dominante que eles pretendem comba-
ter. A contra-aculturação é quase sempre uma prolongado do que entre os diferentes estados
reação desesperada à aculturação formal. Pode- de um mesmo sistema cultural tomado em mo-
se tentar"africanizar","arabizar>>, voltar à"auten- mentos distintos de sua evolução histórica. Em
ticidade" original, mas o que se consegue é so- outras palavras, como foi mostrado por Bastide,
mente a limitação dos efeitos da aculturação a descontinuidade cultural é talvez mais presen-
material,*A contra-aculturação formal é, por sua te na ordem temporal do que na ordem espa-
vez, impossível. Ela não pode ser decretada, ela cial.A continuidade afirmada de uma dada cultu-
não vem de uma vontade consciente. A contra- ra depende geralmente bem mais da ideologia
aculturação, longe de ser uma volta às origens - do que da realidade. E esta pretensa continuida-
o que ela gostaria de ser - é apenas um tipo, en- de será tão mais afirmada quanto mais a descon-
tre outros, de uma nova estruturação cultura). tinuidade aparecer nos fatos: nos momentos de
Ela não produz o antigo, mas o novo. ruptura, o discurso da continuidade é uma
O desenvolvimento dos estudos sobre os "ideologia da compensação" [Bastide, 1970c].
fatos da aculturação levaram a um reexame do Esforçar-se para diferenciar as culturas,
conceito de cultura. A cultura é compreendida considerando-as como entidades separadas
a partir de então como um conjunto dinâmico, pode ser útil metodologicamente e teve um
mais ou menos homogêneo. Os elementos que grande valor heurístico na história da etnologia
compõem uma cultura não são jamais integra- para pensar a diversidade cultural. Onde come-
dos uns aos outros pois provêm de fontes diver- ça e onde acaba tal cultura particular? Interro-
sas no espaço e no tempo. Em outras palavras, gar-se sobre esta questão é interrogar-se sobre a
ha um "jogo" no sistema, especialmente porque "escala" apropriada no estudo e na descrição
se trata de um sistema extremamente comple- das culturas, responde Lévi-Strauss:
xo. Este jogo esta no interstício no qual a liber-
dade dos indivíduos e dos grupos se instala para Nós chamamos cultura todo conjunto etnográ-
"manipular" a cultura. fico que apresenta, em relação a outros, diferen-
Não existem, conseqüentemente, de um ças significativas, do ponto de vista da pesqui-
lado as culturas "puras" e de outro, as culturas sa. Se procurarmos determinar diferenças signi-
"mestiças". Todas, devido ao fato universal dos ficativas entre a América do Norte e a Europa,
contatos culturais, são, em diferentes graus, cul- nós as trataremos como culturas diferentes;
turas "mistas", feitas de continuidades e de des- mas, supondo que o interesse se volte para as
continuidades. Há geralmente mais continuida- diferenças significativas entre - digamos - Paris
de entre duas culturas que estão em contato e Marselha, estes dois conjuntos urbanos pode-
rão ser provisoriamente vistos como duas uni-
dades culturais. [...]Uma mesma coleção de in- Hierarquias Sociais e
divíduos, desde que ela seja objetivamente Hierarquias Culturais
dada no tempo e no espaço, depende simulta-
neamente de vários sistemas de cultura: univer-
sal, continental, nacional, provincial, local, etc. e
familiar, profissional, confessional, político, etc. Se a cultura não é um dado, uma herança
[1958, p. 325]. que se transmite imutável de geração em gera-
çãoré" porque ela é uma produção histórica, isto
Não há verdadeira descontinuidade entre é, uma construção que se inscreve na história e
as culturas que, pouco a pouco, estão em comu- mais precisamente na história das relações dos
nicação umas com as outras, ao menos no inte- grupos sociais entre si. Para analisar um sistema
rior de um dado espaço social. As culturas par- cultural, é então necessário analisar a situação so-
ticulares não são totalmente estranhas umas às ciohistórica que o produz como ele é (Balandier,
outras, mesmo quando elas acentuam suas dife- 1955].
renças para melhor se afirmar e se distinguir. O contato vem em primeiro lugar, histori-
Esta constatação deve levar o pesquisador a camente. Em seguida, há o jogo de distinção que
adotar um procedimento "continuísta" que pri- produz as diferenças culturais. Cada coletivida-
vilegie a dimensão racional interna e externa, de, no interior de uma situação dada, pode ter a
dos sistemas culturais em contato [Amselle, tentação de defender sua especificidade, fazen-
1990]. do um esforço através de diversos artifícios para
convencer (e se convencer) que seu modelo
cultural é original e lhe pertence. O caráter da
situação determinará se o jogo de distinção le-
vará a valorizar e a acentuar tal conjunto de di-
ferenças culturais mais do que outro.
As culturas nascem de relações sociais que
são sempre relações desiguais. Desde o início,
existe então uma hierarquia de fato entre as cul-
turas que resulta da hierarquia social. Pensar
que não há hierarquia entre as culturas seria su-
por que as culturas existem independentemen-
quais se revela"a singularidade da posição no in-
terior da classe e da trajetória" [íbid.,p. 101]. Cultura e Identidade
A noção de "trajetória social" permite que
Bourdieu escape de uma concepção fixista do
habitus. Para ele, o habitus não é um sistema rí-
gido de disposições que determinariam de ma- O conceito de cultura obteve, há algum
neira mecânica as representações e as ações dos tempo, um, grande sucesso fora do círculo es-
indivíduos e que garantiria a reprodução social treito das ciências sociais, há, no entanto, um ou-
pura e simpIes.As condições sociais do momen- tro termo que é freqüentemente associado a ele
to não explicam totalmente o habitus, que é su- - a "identidade" - cujo uso é cada vez mais fre-
cetível de modificações. A trajetória social do qüente, levando certos analistas a verem neste
grupo ou do indivíduo, ou seja, a experiência de uso o efeito de uma verdadeira moda [Galissot,
mobilidade social (ascensão ou queda de nível 1987]. Resta saber o que se entende por "identi-
social, ou ainda a estagnação) acumulada por vá- dade" e que significa esta "moda" das identida-
rias gerações e interiorizada, deve ser levada em des, alias, em grande parte alheia ao desenvolvi-
conta para analisar as variações do habitus. mento da pesquisa científica.
Atualmente, as grandes interrogações so-
bre a identidade remetem freqüentemente à
questão da cultura. Há o desejo de se ver cultu-
ra em tudo, de encontrar identidade para todos.
Vêem-se as crises culturais como crises de iden-
tidade. Chega-se a situar o desenvolvimento des-
ta problemática no contexto do enfraquecimen-
to do modelo de Estado-nação, da extensão da
integração política supranacional e de certa for-
ma da globalização da economia. De maneira
mais precisa, a recente moda da identidade é o
prolongamento do fenômeno da exaltação da
diferença que surgiu nos anos setenta e que le-
vou tendências ideológicas muito diversas e até
opostas a fazer a apologia da sociedade multi-
cultural, por um lado, ou, por outro lado, a exal-
tação da idéia de "cada um por si para manter dos componentes. Para a psicologia social, a
sua identidade". identidade é um instrumento que permite pen-
Não se pode, pura e simplesmente confun- sar a articulação do psicológico e do social em
dir as noções de cultura e de identidade cultural um indivíduo. Ela exprime a resultante das diver-
ainda que as duas tenham uma grande ligação. sas interações entre o indivíduo e seu ambiente
Em última instância, a cultura pode existir sem social, próximo ou distante. A identidade social
consciência de identidade, ao passo que as es- de um indivíduo se caracteriza pelo conjunto de
tratégias de identidade podem manipular e até suas vinculações em um sistema social: vincula-
modificar uma cultura que não terá então quase ção a uma classe sexual, a uma classe de idade, a
nada em comum com o que ela era anterior- uma classe social, a uma nação, etc. A identidade
mente. A cultura depende em grande parte de permite que o indivíduo se localize em um siste-
processos inconscientes. A identidade remete a ma social e seja localizado socialmente.
uma norma de vinculação, necessariamente Mas a identidade social não diz respeito
consciente, baseada em oposições simbólicas. unicamente aos indivíduos. Todo grupo é dota-
No âmbito das ciências sociais, o conceito do de uma identidade que corresponde à sua
de identidade cultural se caracteriza por sua po- definição social, definição que permite situá-lo
lissemia e sua fluidez. Apesar de seu surgimento no conjunto sociaLA identidade social é ao mes-
recente, este conceito teve diversas definições e mo tempo inclusão e exclusão: ela identifica o
reinterpretações. Nos Estados Unidos, na década grupo (são membros do grupo os que são idên-
de cinqüenta, conceituou-se a idéia de identida- ticos sob um certo ponto de vista) e o distingue
de cultural. Equipes de pesquisa em psicologia dos outros grupos (cujos membros são diferen-
social buscavam então um instrumento adequa- tes dos primeiros sob o mesmo ponto de vista).
do para analisar os problemas de integração dos Nesta perspectiva, a identidade cultural aparece
imigrantes. Esta abordagem que concebia a iden- como uma modalidade de categorização da dis-
tidade cultural como praticamente imutável e tinção nós/eles, baseada na diferença cultural.
determinando a conduta dos indivíduos, seria
em seguida ultrapassada por concepções mais As concepções objetivistus e
dinâmicas que não vêem a identidade como um subjetivistas da identidade cultural
dado independente do contexto relacionai.
A questão da identidade cultural remete, Há uma estreita relação entre a concepção
em um primeiro momento, à questão mais que se faz de cultura e a concepção que se tem
abrangente da identidade social, da qual ela é um de identidade cultural. Aqueles que integram a
cultura a uma "segunda natureza", que recebe- próprio do povo ao qual ele pertence. A identi-
mos como herança e da qual não podemos esca- dade repousa então em um sentimento de "fazer
par, concebem a identidade como um dado que parte" de certa forma inato. A identidade é vista
definiria de uma vez por todas o indivíduo e como uma condição imanente do indivíduo, de-
que o marcaria de maneira quase indelével. Nes- finindo-o de maneira estável e definitiva.
ta perspectiva, a identidade cultural remeteria Em uma abordagem culturalista, a ênfase
necessariamente ao grupo original de vincula- não é colocada sobre a herança biológica, não
ção do indivíduo. Á origem, as "raízes" segundo mais considerada como determinante, mas, na
a imagem comum, seriam o fundamento de toda herança cultural, ligada à socialização do indiví-
identidade cultural, isto é, aquilo que definiria o duo no interior de seu grupo cultural. Entretan-
indivíduo de maneira autêntica. Esta representa- to, o resultado é quase o mesmo, pois segundo
ção quase genética da identidade que serve de esta abordagem, o indivíduo é levado a interiori-
apoio para ideologias do enraizamento, leva à zar os modelos culturais que lhe são impostos,
"naturalização77 da vinculação cultural. Em ou- até o ponto de se identificar com seu grupo de
tras palavras, a identidade seria preexistente ao origem. Ainda assim a identidade é definida
indivíduo que não teria alternativa senão aderir como preexistente ao indivíduo. Toda identida-
a ela, sob o risco de se tornar um marginal, um de cultural é vista como consubstanciai com
Mesenraizado". Vista desta maneira, a identida- uma cultura particular. Os pesquisadores tenta-
de é uma essência impossibilitada de evoluir e rão então fazer a lista dos atributos culturais que
sobre a qual o indivíduo ou o grupo não tem ne- deveriam servir de base à identidade coletiva,
nhuma influência. Procurarão determinar as invariantes culturais
Em última instância, a problemática da ori- que permitem definir a essência do grupo, ou
gem aplicada à identidade cultural pode levar a seja, sua identidade "essencial", praticamente
uma racialização dos indivíduos e dos grupos, invariável.
pois para algumas teses radicais, a identidade Outras teorias de identidade cultural, cha-
está praticamente inscrita no patrimônio genéti- madas de "primordialistas", consideram que a
co (ver, sobretudo, Van den Berghe [1981J). O identidade etno-cultural é primordial porque
indivíduo, devido a sua hereditariedade biológi- a vinculação ao grupo étnico é a primeira e a
ca, nasce com os elementos constitutivos da mais fundamental de dotas as vinculaçÕes so-
identidade étnica e cultural, entre os quais os ca- ciais. É onde se estabelecem os vínculos mais
racteres fenotípicos e as qualidades psicológi- determinantes porque se trata de vínculos ba-
cas que dependem da "mentalidade", do "gênio" seados em uma genealogia comum (ver, sobre-

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tudo Geetz [1963]). É no grupo étnico que se Ora, para os "subjetivístas", a identidade etno-
partilham as emoções e as solidariedades mais cultural não é nada além de um sentimento de
profundas e mais estruturantes. Definida deste vinculaçao ou uma identificação a uma coletivi-
modo, a identidade cultural é vista como uma dade imaginária em maior ou menor grau. Para
propriedade essencial inerente ao grupo por- estes analistas, o importante são então as repre-
que é transmitida por ele e no seu interior, sem sentações que os indivíduos fazem da realidade
referências aos outros grupos. A identificação é social e de suas divisões.
automática, pois tudo está definido desde seu Mas o ponto de vista subjetivista levado ao
começo. extremo leva à redução da identidade a uma
O que une estas duas teorias é uma mesma questão de escolha individual arbitrária, em que
concepção objetivista da identidade cultural. cada um seria livre para escolher suas identifica-
Trata-se em todos os casos da definição e da des- ções. Em última instância, segundo este ponto
crição da identidade a partir de um certo núme- de vista, tal identidade particular poderia ser
ro de critérios determinantes, considerados analisada como uma elaboração puramente fan-
como "objetivos", como a origem comum (a he- tasiosa, nascida da imaginação de alguns ideólo-
reditariedade, a genealogia), a língua, a cultura, a gos que manipulam as massas crédulas, buscan-
religião, a psicologia coletiva (a "personalidade do objetivos nem sempre confessãveis. A abor-
básica"), o vínculo com um território, etc. Para dagem subjetivista tem o mérito de considerar o
os objetivistas, um grupo sem língua própria, caráter variável da identidade, apesar de ter a
sem cultura própria, sem território próprio, e tendência a enfatizar excessivamente o aspecto
mesmo, sem fenótipo próprio, não pode preten- efêmero da identidade. Não é raro, no entanto,
der constituir um grupo etno-cultural. Não pode que as identidades sejam relativamente estáveis.
reivindicar uma identidade cultural autêntica.
Estas definições são muito criticadas pelos A concepção relacionai e situacional
que defendem uma concepção subjetivista do
fenômeno de identidade. A identidade cultural, Adotar uma abordagem puramente objetiva
segundo eles, não pode ser reduzida à sua di- ou puramente subjetiva para abordar a questão
mensão atributíva: não é uma identidade recebi- da identidade seria se colocar em um impasse. Se-
da definitivamente. Encarar o fenômeno desta ria raciocinar fazendo a abstração do contexto re-
forma é considerá-lo como um fenômeno estáti- lacionai. Somente este contexto poderia explicar
co, que remete a uma coletividade definida de porque, por exemplo, em dado momento tal
maneira invariável, ela também quase imutável. identidade é afirmada ou, ao contrário, reprimida.
Se a identidade é uma construção social e Em conseqüência disto, para Barth, os
não um dado, se ela é do âmbito da representa- membros de um grupo não são vistos como de-
ção, isto não significa que ela seja uma ilusão finitivamente determinados por sua vinculação
que dependeria da subjetividade dos agentes so- etno-cultural, pois eles são os próprios atores
ciais. A construção da identidade se faz no inte- que atribuem uma significação a esta vincula-
rior de contextos sociais que determinam a po- ção, em função da situação relacionai em que
sição dos agentes e por isso mesmo orientam eles se encontram. Deve-se considerar que a
suas representações e suas escolhas. Além dis- identidade se constrói e se reconstrói constan-
so, a construção da identidade não é uma ilusão, indentidade temente no interior das trocas sociais. Esta con-
pois é dotada de eficácia social, produzindo efei- está smp cepção dinâmica se opõe àquela que vê a iden-
tos sociais reais. em evolução tidade como um atributo original e permanente
A identidade é uma construção que se ela- que não poderia evoluir. Trata-se então de uma
bora em uma relação que opõe um grupo aos mudança radical de problemática que coloca o
outros grupos com os quais está em contato. estudo da relação no centro da análise e não
Deve-se esta concepção de identidade como ma- mais a pesquisa de uma suposta essência que
nifestação relacionai à obra pioneira de Frederik definiria a identidade.
Barth [19691- Esta concepção permite ultrapas- Não há identidade em si, nem mesmo uni-
sar a alternativa objetivismo/subjetivismo. Para camente para si.A identidade existe sempre em
Barth, deve-se tentar entender o fenômeno da relação a uma outra. Ou seja, identidade e alteri-
identidade através da ordem das relações entre dade são ligadas e estão em uma relação dialéti-
os grupos sociais. Para ele, a identidade é um ca. A identificação acompanha a diferenciação.
modo de categorização utilizado pelos grupos Na medida em que a identidade é sempre a re-
para organizar suas trocas.Também, para definir sultante de um processo de identificação no in-
a identidade de um grupo, o importante não é in- terior de uma situação relacionai, na medida
ventariar seus traços culturais distintivos, mas lo- também em que ela é relativa, pois pode evoluir
calizar aqueles que são utilizados pelos mem- se a situação relacionai mudar, seria talvez prefe-
bros do grupo para afirmar e manter uma distin- rível adotar como conceito operatório para a
ção cultural. Uma cultura particular não produz análise o conceito de "identificação" do que a
por si só uma identidade diferenciada: esta iden- "identidade" [Galissot, 1987].
tidade resulta unicamente das interações entre A identificação pode funcionar como afir-
os grupos e os procedimentos de diferenciação mação ou como imposição de identidade. A
que eles utilizam em suas relações. identidade é sempre uma concessão, uma nego-
ciação entre uma "auto-identidade" definida por aparece então como uma identidade vergonhosa
si mesmo e uma "hetero-identidade" ou uma e rejeitada em maior ou menor grau, o que se tra-
"exo-ídentidade" definida pelos outros [Simon, duzirá muitas vezes como uma tentativa para eli-
1979, p. 24]. A "hetero-identidade" pode levar a minar, na medida do possível, os sinais exteri-
identificações paradoxais: por exemplo, na Amé- ores da diferença negativa.
rica Latina, no fim do século XIX e no começo No entanto, uma mudança da situação de
do século XX, os imigrantes sírio-libaneses, em relações interétnicas pode modificar profunda-
geral cristãos, que fugiam do Império Otomano, mente a imagem negativa de um grupo. Isto
foram chamados (e continuam a sê-lo) de Tur- aconteceu com os Hmong, refugiados do Laos
cos, porque chegavam com um passaporte tur- na França nos anos setenta. No Laos, onde eles
co, ao passo que eles não desejavam justamente constituíam uma minoria étnica muito margina-
se reconhecer como turcos. O mesmo aconte- lizada, eram conhecidos pela denominação de
ceu com os Judeus orientais que emigraram "Méo", que lhes fora atribuída pelos Lao, grupo
para a América Latina na mesma época. majoritário. Para eles, o termo era sinônimo de
A auto-identídade terá maior ou menor le- "selvagem", de "retardado". Na França, eles pu-
gitimidade que a hetero-identidade, dependendo deram impor seu próprio etnônimo, "Hmong",
da situação relacionai, isto é, em particular da re- que significa simplesmente "homem" em sua lín-
lação de força entre os grupos de contato - que gua. Impuseram sobretudo uma representação
pode ser uma relação de forças simbólicas . Em muito mais positiva de si mesmos, participando,
uma situação de dominação caracterizada, a he- como a maioria dos refugiados do Sudeste
tero-identidade se traduz pela estigmatização Asiático, da imagem do "bom estrangeiro", adap-
dos grupos minoritários. Ela leva freqüentemen- tável e trabalhador. Outro benefício simbólico
te neste caso ao que chamamos uma "identidade deste exílio que é uma realidade, no entanto,
negativa". Definidos como diferentes em relação fundamentalmente dolorosa: os Hmong gozam
à referência que os majoritários constituem, os de um nivelamento interétnico no interior do
minoritários reconhecem para si apenas uma di- conjunto dos refugiados do Laos e se encon-
ferença negativa. Também pode-se ver o desen- tram, na França, classificados socialmente no
volvimento entre eles dos fenômenos de despre- mesmo nível que os Lao e os Sino-Laosenses
zo por si mesmos. Estes fenômenos são freqüen- que os desprezavam no Laos [Hassoun, 1988].
tes entre os dominados e são ligados à aceitação A identidade é então o que está em jogo
e à interiorização de uma imagem de si mesmos nas lutas sociais. Nem todos os grupos têm o
construída pelos outros. A identidade negativa mesmo "poder de identificação", pois esse
poder depende da posição que se ocupa no sis- O poder de classificar leva à "etnicização"
tema de relações que liga os grupos. Nem todos dos grupos subalternos. Eles são identificados a
os grupos têm o poder de nomear e de se no- partir de características culturais exteriores que
mear. Bourdieu explica no clássico artigo "A são consideradas como sendo consubstanciais a
identidade e a representação" [1980] que so- eles e logo, quase imutáveis. O argumento de
mente os que dispõem de autoridade legítima, sua marginalização e até de sua transformação
ou seja, de autoridade conferida pelo poder, po- em minoria vem do fato de que eles são muito
dem impor suas próprias definições de si mes- diferentes para serem plenamente associados à
mos e dos outros. O conjunto das definições de direção da sociedade. Pode-se ver que a imposi-
identidade funciona como um sistema de classi- ção de diferenças significa mais a afirmação da
ficação que fixa as respectivas posições de cada única identidade legítima, a do grupo dominan-
grupo. A autoridade legítima tem o poder sim- te, do que o reconhecimento das especificida-
bólico de fazer reconhecer como fundamenta- des culturais. Ela pode se prolongar em uma po-
das as suas categorias de representação da reali- lítica de segregação dos grupos minoritários,
dade social e seus próprios princípios de divi- obrigados de certa maneira a ficar em seu lugar,
são do mundo social. Por isso mesmo, esta auto- no lugar que lhes foi destinado em função de
ridade pode fazer e desfazer os grupos. sua classificação.
Deste modo, nos Estados Unidos, o grupo do- Compreendida deste modo, como um mo-
minante WASP (White Anglo-Saxon Protestanf) tivo de lutas, a identidade parece problemática.
classifica os outros americanos na categoria de Não se pode então esperar das ciências sociais
"grupos étnicos" ou na categoria de "grupos ra- uma definição justa e irrefutável de tal ou tal
ciais". Ao primeiro grupo pertencem os descen- identidade cultural. Não é a sociologia ou a an-
dentes de imigrantes europeus não WASP; ao se- tropologia, nem a história ou outra disciplina
gundo grupo, os americanos chamados "de cor" que deverá dizer qual seria a definição exata da
(Negros, Chineses Japoneses, Portoriquenhos, Me- identidade bretã ou da identidade kabyla, por
xicanos. ..). Segundo esta definição, os "étnicos" são exemplo. Não é a sociologia que deve se pro-
os outros, os que se afastam de uma maneira ou de nunciar sobre o caráter autêntico ou abusivo de
outra da referência de identidade americana. Os tal identidade particular (em nome de que prin-
WASP escapam por um passe de mágica social a cípio ela faria isto?). Não é o cientista que deve
esta identificação étnica e racial. Eles estão fora de fazer"controles de identidade". O papel do cien-
qualquer classificação, por estarem evidentemente tista é outro: ele tem o dever de explicar os pro-
muito "acima" dos classificados. cessos de identificação sem julgá-los. Ele deve
elucidar as lógicas sociais que levam os indiví- etno-cultural ou confessional em sua carteira de
duos e os grupos a identificar, a rotular, a catego- identidade, mesmo que alguns deles não sç re-
rizar, a classificar e a fazê-lo de uma certa manei- conheçam nesta identificação. Em caso de con-
ra ao invés de outra. flito entre diferentes componentes da nação,
esta rotulação pode ter conseqüências dramáti-
A identidade, um assunto de Estado cas, como se viram no conflito libanês ou no
conflito em Ruanda.
Com a edificação dos Estados-Nações mo- A tendência à mono-identificação, à identi-
dernos, a identidade tornou-se um assunto de dade exclusiva, ganha terreno em muitas socie-
Estado. O Estado torna-se o gerente da identida- dades contemporâneas. A identidade coletiva é
de para a qual ele instaura regulamentos e con- apresentada no singular, seja para si ou para os
troles. A lógica do modelo do Estado-Nação o outros. Quando se trata dos outros, isto permite
leva a ser cada vez mais rígido em matéria de todas as generalizações abusivas. O artigo defini-
identidade. O Estado moderno tende à mono- do identificador permite reduzir um conjunto
identificação, seja por reconhecer apenas uma coletivo a uma pesonalidade cultural única,
identidade cultural para definir a identidade na- apresentada geralmente de forma depreciativa:
cional (é o caso da França), seja por definir uma "O Árabe é assim...""Os Africanos são assiru...".
identidade de referência, a única verdadei- O Estado-Nação moderno se mostra infi-
ramente legítima (como no caso dos Estados nitamente mais rígido em sua concepção e em
Unidos), apesar de admitir um certo pluralismo seu controle da identidade que as sociedades
cultural no interior de sua nação.A ideologia na- tradicionais. Ao contrário da idéia preconcebi-
cionalista é uma ideologia de exclusão das dife- da, as identidades elno-culturais nestas socie-
renças culturais. Sua lógica radical é a da "purifi- dades não eram definidas de uma vez por to-
cação étnica". das. Deste modo, pode-se chamá-las de "socie-
Nas sociedades modernas, o Estado regis- dades com identidade flexível" [Amselle,
tra de maneira cada vez mais minuciosa a iden- 1990], Estas sociedades deixam um grande es-
tidade dos cidadãos, chegando em certos casos paço para a novidade e para a inovação social.
a fabricar carteiras de identidade "infalsifícá- Nelas, os fenômenos de fusão ou cisão étnicas
veis". Os indivíduos e os grupos são cada vez são comuns e não implicam necessariarnente
menos livres para definir suas próprias identida- conflitos agudos.
des. Alguns Estados pluriétnicos impõem aos Não se pode, no entanto acreditar que a
seus cidadãos a menção de uma identidade ação do Estado não provoque nenhuma
por parte dos grupos minoritários cuja identida- em impor uma definição tão autônoma quanto
de é negada ou desvalorizada. O aumento das possível de identidade (para retomar o exemplo
reivindicações de identidade que se pode obser- dos negros americanos, pode-se observar o sur-
var em muitos Estados contemporâneos é a con- gimento da reivindicação de uma identidade
seqüência da centralização e da burocratização "afro-americana" ou de Black Muslims ou ainda
do poder. A exaltação da identidade nacional de Black Hebrews).
pode levar somente a uma tentativa de subver- O sentimento de uma injustiça coletiva-
são simbólica contra a afimaçao da identidade. mente sofrida provoca nos membros do grupo
Segundo o enunciado de Pierre Bourdieu: vítima de uma discriminação um forte senti-
mento de vinculação à coletividade. Quanto
[...] os indivíduos e os grupos investem nas lu- maior for a necessidade da solidariedade de to-
tas de classificação todo o seu ser social, tudo dos na luta pelo reconhecimento, maior será a
o que define a idéia que eles fazem de si mes- identificação com a coletividade. O risco é no
mos, tudo o que os constitui como "nós" em entanto, de sair de uma identidade negada ou
oposição a "eles"e aos "outros"e tudo ao que desacreditada para cair, por sua vez, em uma
eles têm um apreço e uma adesão quase cor- identidade que seria exclusiva, análoga à identi-
poral. O que explica a força mobilizadora ex- dade dos que pertencem ao grupo dominante, e
cepcional de tudo o que toca a identidade na qual todo indivíduo considerado como mem-
[1980b,p.69,nota20] bro do grupo minoritário deveria se reconhe-
cer, sob pena de ser tratado como traidor. Este
Todo o esforço das minorias consiste em fechamento em uma identidade etno-cultural,
se reapropriar dos meios de definir sua identida- que em certos casos apaga todas as outras iden-
de, segundo seus próprios critérios, e não ape- tidades sociais de um indivíduo, será mutilante
nas em se reapropriar de uma identidade, em para ele, na medida em que ela leva à negação
muitos casos, concedida pelo grupo dominante. de sua individualidade, como foi explicado por
Trata-se então da transformação da hetero-iden- Georges Devereux:
tidade que é freqüentemente uma identidade
negativa em uma identidade positiva. Em um [...] quando uma identidade étnica biperinves-
primeiro momento, a revolta contra a estigmati- tida oblitera todas as outras identidades de
zação se traduzirá pela reviravolta do estigma, classe, ela deixa de ser uma ferramenta ou uma
como no caso exemplar do black is beautilful. caixa de ferramentas; ela se torna [...] uma ca-
Em um segundo momento, o esforço consistirá misa de força. Na realidade, a realização de uma
diferenciahüidade coletiva por meio de uma sociedade. A pretensa "dupla identidade" dos jo-
identidade hiperinvestida e hiperatualizada vens de origem imigrante está ligada, na realida-
pode [...] levar a uma obliteração da diferen- de, a uma identidade mista [Giraud, 1987). Ao
ciabilidaáe individual. [...] contrário do que afirmam certas análises, estes
Atualizando sua identidade étnica hiperinvesti- jovens não têm duas identidades opostas entre
da, tende-se cada vez mais a minimizar e até a as quais eles se sentiriam divididos, o que expli-
negar sua própria identidade individual. E no caria sua perturbação de identidade e sua insta-
entanto, é a dissimilaridade, funcionalmente bilidade psicológica e/ou social. Esta representa-
pertinente, de um homem em relação a todos ção nitidamente desqualificante vem da incapa-
os outros que o torna humano: semelhante aos cidade de pensar o misto cultural. Ela é explica-
outros precisamente pelo seu alto grau de dife- da também pelo medo obsessivo de uma dupla
renciação. É isto que lhe permite atribuir a si lealdade que é veiculada pela ideologia nacio-
mesmo"uma identidade humana"e,conseqüen- nal. Na realidade, como cada um faz a partir de
temente, também uma identidade pessoal suas diversas vinculações sociais (de sexo, de
[1972, p.162-1631. idade.de classe social,de grupo cultural.,.),o in-
divíduo que faz parte de várias culturas fabrica
A identidade multidimensional sua própria identidade fazendo uma síntese ori-
ginal a partir destes diferentes materiais. O re-
Na medida em que a identidade resulta de sultado é, então, uma identidade sincrética e
uma construção social, ela faz parte da comple- não dupla, se entendermos por isso uma adição
xidade do social. Querer reduzir cada identida- de duas identidades para uma só pessoa. Como
de cultural a uma definição simples^pura", seria já foi dito, esta "fabricação" se faz somente em
não levar em conta a heterogeneidade de todo função de um contexto de relação específico a
grupo social. Nenhum grupo, nenhum indivíduo uma situação particular.
está fechado a priori em uma identidade unidi- O recurso à noção de "dupla identidade"
mensiònal. O caráter flutuante que se presta a está ligado às lutas de classificação evocadas an-
diversas interpretações ou manipulações é ca- teriormente. A concepção negativa da "dupla
racterístico da identidade. É isto que dificulta a identidade" permite que se desqualifiquem so-
definição desta identidade. cialmente certos grupos, principalmente as po-
Querer considerar a identidade como mo- pulações vindas da imigração. Num sentido in-
nolítica impede a compreensão dos fenômenos verso, será elaborado um discurso para reabili-
de identidade mista que são freqüentes em toda tar estes grupos, fazendo a apologia da "dupla
identidade" como algo que representa um enri- catórias que estão ligadas à sua história. A iden-
quecimento . Mas qualquer que seja a represen- tidade cultural remete a grupos culturais de re-
tação da suposta "dupla identidade", positiva ou ferência cujos limites não são coincidentes.
negativa, ambas estão ligadas ao mesmo erro Cada indivíduo tem consciência de ter uma
analítico. identidade de forma variável, de acordo com as
Os encontros dos povos, as migrações in- dimensões do grupo ao qual ele faz referência
ternacionais multiplicaram estes fenômenos de em tal ou tal situação relacionai. Um mesmo in-
identidade sincrética cujo resultado desafia as divíduo, por exemplo, pode se definir, segundo
expectativas, sobretudo quando elas são base- o caso, como natural de Rennes, como bretão,
adas em uma concepção exclusiva da identida- como francês, como europeu e talvez até como
de. Para tomar um exemplo, no Maghreb (norte ocidental. A identidade funciona, por assim di-
da África) tradicional não é raro que os mem- zer, como as bonecas russas, encaixadas umas
bros das velhas famílias judias presentes há sé- nas outras [Simon, 1979, p. 31]. Mas, apesar de
culos sejam chamados de "Judeus árabes", dois ser multidimensional, a identidade não perde
termos que parecem hoje pouco conciliáveis sua unidade.
desde o crescimento dos nacionalismos. Esta identidade com múltiplas dimensões
Em um contexto completamente diferen- em geral não causa problema e é bem aceita. O
te, o cio Peru contemporâneo, existem peruanos que causa problema para alguns é a "dupla iden-
chamados de Chinos que se reconhecem como tidade"cujos pólos de referência estariam si-
tais. São os descendentes dos imigrantes chine- tuados no mesmo nível. No entanto, não se sabe
ses, chegados ao Peru no século XIX, após a abo- por que a capacidade de integrar várias referên-
lição da escravatura. Eles se sentem hoje total- cias identificatórias em uma só identidade não
mente peruanos mas continuam muito ligados a funcionaria, a menos que uma autoridade domi-
sua identidade chinesa. Isto não choca no Peru, nadora a proibisse em nome da identidade
país que elegeu e reelegeu recentemente um fi- exclusiva.
lho de imigrantes japoneses para a presidência É verdade que, mesmo no caso de uma in-
da República, sem que a maioria dos peruanos tegração de duas referências de mesmo nível
(mesmo dos que não votaram nele) considere em uma só identidade, os dois níveis raramente
esta eleição uma ameaça para a identidade são equivalentes, pois remetem a grupos que
nacional. não estão quase nunca em uma posição de equi-
De fato, cada indivíduo integra, de maneira valência no contexto de uma dada situação.
sintética, a pluralidade das referências identifi-
Asuestratégiíis de identidade mo que a identidade se preste à instrumentaliza-
ção por sua plasticidade - segundo Devereux ela
A identidade é tão difícil de se delimitar e seria uma "ferramenta" e até uma "caixa de ferra-
de se definir, precisamente em razão de seu ca- mentas" - não é possível aos grupos e aos indiví-
ráter multidimensional e dinâmico. É isto que duos fazer o que quer que desejem em matéria
lhe confere sua complexidade mas também o de identidade: a identidade é sempre a resultante
que lhe dá sua flexibilidade .A identidade conhe- da identificação imposta pelos outros e da que o
ce variações, presta-se a reformulações e até a grupo ou o indivíduo afirma por si mesmo.
manipulações. Um tipo extremo de estratégia de identifi-
Para sublinhar esta dimensão mutável da cação consiste em ocultar a identidade preten-
identidade que não chega jamais a uma solução dida para escapar à discriminação, ao exílio ou
definitiva, certos autores utilizam o conceito de até ao massacre. Um caso histórico exemplar
"estratégia de identidade". Nesta perspectiva, a desta estratégia é o dos Marranos. Os Marranos
identidade é vista como um meio para atingir são os judeus da Península Ibérica que se con-
um objetivo. Logo, a identidade não é absoluta, verteram exteriormente ao catolicismo no sécu-
mas relativa. O conceito de estratégia indica lo XV para escapar à perseguição e à expulsão,
também que o indivíduo, enquanto ator social, continuando fiéis à sua fé ancestral e mantendo
não é desprovido de uma certa margem de ma- secretamente um certo número de ritos tradi-
nobra. Em função de sua avaliação da situação, cionais. A identidade judaica pôde assim ser
ele utiliza seus recursos de identidade de manei- transmitida clandestinamente no seio de cada
ra estratégica. Na medida em que ela é um mo- família durante séculos, de geração em geração,
tivo de lutas sociais de classificação que buscam até poder se afirmar novamente em público.
a reprodução ou a reviravolta das relações de Emblema ou estigma, a identidade pode
dominação, a identidade se constrói através das então ser instrumentalizada nas relações entre
estratégias dos atores sociais. os grupos sociais.A identidade não existe em si
No entanto, recorrer ao conceito de estraté- mesma, independentemente das estratégias de
gia não deve levar a pensar que os atores sociais afirmação dos atores sociais que são ao mesmo
são totalmente livres para definir sua identidade tempo o produto e o suporte das lutas sociais e
segundo interesses materiais e simbólicos do mo- políticas '[Bell, 19751-Ao se enfatizar o caráter
mento. As estratégias devem necessariamente le- estratégico da identidade, pode-se ultrapassar o
var em conta a situação social, a relação de força falso problema da veracidade científica das afir-
entre os grupos, as manobras dos outros, etc. Mes- mações de identidade.
Segundo Bourdieu, o caráter estratégico da dos haitianos imigrados para Nova York. A pri-
identidade não implica necessariamente uma meira geração da primeira grande onda migrató-
perfeita consciência dos objetivos buscados pe- ria (década de sessenta), vinda da elite mulata
los indivíduos e tem a vantagem de dar conta do Haiti, optará pela assimilação à nação ameri-
dos fenômenos de eclipse ou de despertar de cana, mas acentuando tudo o que pudesse evo-
identidade. Esses fenômenos suscitam muitos car uma certa "brancura"e a "distinção" para se
comentários contestáveis, pois são marcados na diferenciar dos Negros americanos e escapar da
maior parte das vezes por um certo essencialis- relegação social.A segunda onda migratória (dé-
mo. Por exemplo, o que foi chamado nos anos cada de setenta), composta essencialmente de
setenta, na América do Norte e na América do famílias da classe média (de cor negra), diante
Sul, de "despertar índio" não pode ser considera- das dificuldades de integração, escolherá uma
do como a ressurreição pura e simples de uma outra estratégia, a da afirmação da identidade
identidade que teria conhecido um eclipse e haitiana, para evitar qualquer risco de confusão
que teria se mantido invariável (certos autores com os negros dos Estados Unidos; a utilização
evocam de maneira inapropriada um "estado de sistemática da língua francesa, inclusive em pú-
hibernação" para descrever tal fenômeno).Trata- blico, e o esforço para se fazer reconhecer
se na realidade da retnvencão estratégica de uma como grupo étnico específico serão os instru-
identidade coletiva em um contexto completa- mentos privilegiados desta estratégia. Quanto
mente novo: o contexto do aumento dos movi- aos jovens haitianos, sobretudo os da "segunda
mentos de reivindicação das minorias étnicas geração", sensíveis à desvalorização social cada
nos Estados-nações contemporâneas. vez maior da identidade haitiana nos anos oiten-
De uma maneira mais geral, o conceito de ta nos Estados Unidos, devido ao drama dos
estratégia pode explicar as variações de identi- boat people naufragados na costa da Flórida e
dade, que poderiam ser chamadas de desloca- da classificação de sua comunidade como "gru-
mentos de identidade: Ele faz aparecer a relativi- po de risco" no desenvolvimento da Aids, eles
dade dos fenômenos de identificação. A identi- rejeitam esta identidade e reivindicam uma
dade se constrói, se desconstrói e se reconstrói identidade transnacional caribenha, aproveitan-
segundo as situações. Ela está sem cessar em do o fato de Nova York ter se transformado, de-
movimento; cada mudança social leva-a a se re- vido à imigração, na primeira cidade caribenha
formular de modo diferente. do mundo.
Em um estudo sugestivo, Françoise Morin
[1990] analisa as recomposições da identidade
As "fronteiras" tia identidade particular.A identidade etno-cultural usa a cultu-
ra, mas raramente toda a cultura. Uma mesma
O exemplo anterior mostra claramente cultura pode ser instrumentalizada de modo di-
que toda identificação é ao mesmo tempo dife- ferente e até oposto nas diversas estratégias de
renciação. Para Barth [1969J, no processo de identificação.
identificação o principal é a vontade de marcar Segundo Barth, a etnicidade que é o pro-
os limites entre "eles" e "nós" e logo, de estabele- duto do processo de identificação, pode ser de-
cer e manter o que chamamos de "fronteira". finida como a organização social da diferença
Mais precisamente, a fronteira estabelecida re- cultural. Para explicar a etnicidade o importante
sulta de um compromisso entre a que o grupo não é estudar o conteúdo cultural da identidade
pretende marcar e a que os outros querem lhe mas os mecanismos de interação que, utilizando
designar. Trata-se, evidentemente de uma fron- a cultura de maneira estratégica e seletiva man-
teira social, simbólica. Ela pode, em certos ca- têm ou questionam as "fronteiras" coletivas.
sos, ter compensações territoriais, mas isto não Contrariamente a uma convicção larga-
é o essencial. mente difundida, as relações contínuas de longa
O que separa dois grupos etno-culturais duração entre grupos étnicos não levam neces-
não é em princípio a diferença cultural, como sariamente ao desaparecimento progressivo das
imaginam erroneamente os culturalistas. Uma diferenças culturais. Freqüentemente, ao contrá-
coletividade pode perfeitamente funcionar ad- rio, estas relações são organizadas para manter a
mitindo em seu seio uma certa pluralidade cul- diferença cultural. Às vezes, elas provocam até
tural. O que cria a separação, a "fronteira", é a uma acentuação desta diferença através do jogo
vontade de se diferenciar e o uso de certos tra- da defesa (simbólica) das fronteiras de identida-
ços culturais como marcadores de sua identida- de. Entretanto, as "fronteiras" não são imutáveis.
de específica. Grupos muito próximos cultural- [pUra Barth, todas as fronteiras são concebidas
mente podem se considerar completamente es- como uma demarcação social suscetível de ser
tranhos uns em relação aos outros e até total- constantemente renovada pelas trocas. Qual-
mente hostis, opondo-se sobre um elemento quer mudança na situação social, econômica ou
isolado do conjuto cultural. política pode provocar deslocamentos de fron-
A análise de Barth permite escapar à con- teiras. O estudo destes deslocamentos é neces-
fusão tão freqüente entre "cultura" e "identida- sário se quisermos explicar as variações de
de". Participar de certa cultura particular não identidade. A análise da identidade não pode
implica automaticamente ter certa identidade então se contentar com uma abordagem sincró-
nica e deve ser feita também em um plano
diacrônico. Conteúdos e Usos Sociais da
Logo, não existe identidade cultural em si Noção da Cultura
mesma, definível de uma vez por todas. A análi-
se científica não deve pretender achar a verda-
deira definição das identidades particulares que
ela estuda. A questão não é saber, por exemplo, Há algumas décadas, a noção de cultura
quem são "verdadeiramente" os Corsos, mas o obtém um sucesso crescente. A palavra tende a
que significa recorrer à identificação "corsa1'. Se suplantar outros termos que haviam sido mais
admitirmos que a identidade é uma construção usados anteriormente, como "mentalidade", "es-
social, a única questão pertinente é: "Como, por pírito", "tradiçao"e até "ideologia". Este sucesso
que e por quem, em que momento e em que é devido em parte a uma certa vulgarização da
contexto é produzida, mantida ou questionada antropologia cultural, vulgarização que não
certa identidade particular?" acontece sem certas interpretações errôneas ou
sem simplificação excessiva; desta disciplina re-
tomam-se, freqüentemente as teses mais discutí-
veis de seu início, já abandonadas pela maior
parte dos antropólogos.
"Cultura" foi introduzida recentemente em
campos semânticos que ela não freqüentava an-
teriormente. A palavra é correntemente utiliza-
da nos dias de hoje pelo vocabulário político:
evoca-se assim a "cultura de governo" à qual se
compara a "cultura de oposição". Um dirigente
do partido socialista se referia, em outubro de
1995, no jornal Lê Monde, à "cultura de decen-
tralizacão" (que se opõe implicitamente à "cultu-
ra de centralização"). Outro exemplo: durante o
jornal radiofônico das 13 horas da emissora
France Inter do dia 11 de setembro de 1995, foi
citada a seguinte declaração cie um alto funcio-
nário da ONU a respeito do conflito militar na

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