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Teoria e prática no curso de pedagogia

Giseli Barreto da Cruz


Universidade Federal do Rio de Janeiro

Resumo

Este estudo discute a complexa relação entre teoria e prática no curso


de pedagogia a partir da visão de pedagogos primordiais. A pesquisa
realizada voltou-se para um grupo de dezessete pedagogos que teste-
munharam, como alunos, os tempos iniciais de implantação do curso
no Brasil e que se destacaram no campo acadêmico educacional como
referenciais de formação e de pesquisa. Dois objetivos orientaram o
estudo: levantar características do início do curso e das mutações
por ele sofridas para analisar as implicações, resistências e avanços
em sua trajetória, bem como sua importância no âmbito acadêmico;
e obter, junto aos participantes, suas opiniões acerca da pedagogia
como domínio de conhecimento e curso de graduação, para então
interpretar sua posição no contexto do campo educacional brasileiro.
Como principais interlocuções teóricas situam-se Dermeval Saviani
(2007) e Jean Houssaye (2004). Metodologicamente, trabalhou-se
com análise de depoimentos colhidos por meio de entrevistas semies-
truturadas. A investigação revelou aspectos que evidenciam como o
curso de pedagogia construiu-se entre nós e a posição conflituosa,
porém importante, que ele ocupa no espaço acadêmico da educação.
O trabalho apresenta uma análise parcial desses dados, abordando
especificamente o histórico embate entre a teoria e a prática no curso
em seus tempos iniciais e na atualidade, mediante as diretrizes curri-
culares de 2006.

Palavras-chave

Curso de pedagogia – Currículo – Teoria e prática.

Correspondência:
Giseli Barreto da Cruz
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Faculdade de Educação - Sala 242
Av. Pasteur, 250
22290-240 – Rio de Janeiro/RJ
cruz.giseli@gmail.com

Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 38, n. 1, p.149-164, 2012. 149


Theory and practice in the education undergraduate
course
Giseli Barreto da Cruz
Federal University of Rio de Janeiro

Abstract

This study discusses the complex relationship between theory and


practice in the Education undergraduate course, from the view of
primordial educators. The research has turned to a group of seven-
teen educators who witnessed the early days of the implementa-
tion of the Education course in Brazil as undergraduate students,
and who excelled in the academic field of education as benchmarks
for training and research. Two objectives have guided the study: to
research on the features of the beginning of the course and on the
changes it has gone through, to analyze the implications, resistances
and advances in its history and its importance in the academic field;
and to obtain from the participants their position on Education
as a knowledge field and as a course to interpret their position in
the context of the Brazilian educational field. The main theore-
tical dialogues were conducted with Saviani (2007) and Houssaye
(2004). Methodologically, we worked with analysis of testimonials,
collected through semi-structured interviews. The investigation reve-
aled aspects that evidence how the Education course was constructed
among us and the conflictive but important position which it occu-
pies in the academic space of education. This article presents a
partial analysis of these data, specifically addressing the historic
clash between theory and practice in education courses in their early
days and today, through the curriculum guidelines of 2006.

Keywords

Education course — Curriculum — Theory and practice.

Contact:
Giseli Barreto da Cruz
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Faculdade de Educação - Sala 242
Av. Pasteur, 250 - Praia Vermelha
22.290-240 - Rio de Janeiro/RJ
cruz.giseli@gmail.com

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Este texto discute a complexa relação os entrevistados percebem a pedagogia como
entre teoria e prática no curso de pedagogia campo de conhecimento, formação, atuação e
a partir da visão de um grupo de pedagogos intervenção social.
considerados primordiais. Trata-se de um O grupo de dezessete entrevistados é
trabalho elaborado com base em alguns dos formado por catorze mulheres e três homens.
dados construídos no âmbito de uma pesquisa Nove deles cursaram pedagogia na década de
de doutorado, cuja tese foi defendida em 2008. 1960; seis, na década de 1950; um, na década
A pesquisa voltou-se para pedagogos de 1940; e um, na década de 1930. Neste
que cursaram pedagogia nas décadas de 1940, último caso, trata-se de um egresso do curso de
1950 e 1960, vivenciando o curso seja em sua história e geografia da Faculdade de Filosofia,
gênese, seja nas fases em que os primeiros Ciências e Letras da Universidade de São Paulo
marcos legais imprimiram mudanças em sua (1937-1940). O curso de pedagogia, como
estrutura. Além disso, voltou-se também para graduação, não se encontra em sua trajetória,
pedagogos que ocupam posições dominantes o que ocasionou um desvio na composição do
no campo por deterem razoável capital cien- grupo de participantes da pesquisa. Todavia,
tífico (BOURDIEU, 1983). Por essa razão, tais seu percurso colocou-lhe na condição de quem
pedagogos são considerados primordiais, visto viveu, de fato, os primórdios do curso de peda-
que foram testemunhas dos tempos iniciais gogia no Brasil, posto que integrou o corpo
de implantação do curso no Brasil, como seus docente da Faculdade de Filosofia, Ciências e
alunos, e também porque se destacaram no Letras da Universidade de São Paulo quando
campo acadêmico da educação como referen- o curso ali teve início, sendo o primeiro do
ciais de formação e de pesquisa. Brasil. Por essa razão, entendeu-se que seu
Para trazer à baila a posição desses depoimento não poderia deixar de compor o
pedagogos a respeito do curso de pedagogia quadro pretendido com o estudo.
no Brasil, foram definidos dois objetivos para Nove entrevistados são egressos de
o estudo: levantar, junto aos investigados, cursos oferecidos por instituições públicas de
aspectos característicos do início do curso e das ensino superior e oito são egressos de insti-
mutações por ele sofridas, para analisar impli- tuições privadas. Do conjunto de instituições
cações, resistências e avanços em sua trajetória, públicas, quatro entrevistados fizeram o curso
bem como sua importância no âmbito acadê- de pedagogia na Universidade de São Paulo;
mico; e procurar obter qual é a concepção de dois, na Faculdade de Filosofia, Ciências e
tais profissionais acerca da pedagogia como Letras de Rio Claro/SP; um, na Faculdade de
domínio de conhecimento e como curso, a fim Filosofia, Ciências e Letras de Marília/SP; um,
de mapear e interpretar sua posição no contexto na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do
do campo educacional brasileiro. Maranhão; e um, na Faculdade de Educação
O objeto do estudo apontou para uma da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
definição intencional e proposital, com crité- Do conjunto de instituições privadas, dois
rios e perfis predefinidos, no sentido de asse- entrevistados fizeram o curso de pedagogia
gurar a composição de um grupo representativo na Pontifícia Universidade Católica do Rio
dos primórdios do curso e de seu campo. A de Janeiro; dois, na Pontifícia Universidade
abordagem metodológica foi a análise de Católica de São Paulo; um, na Pontifícia
depoimentos colhidos por meio de entrevistas Universidade Católica de Campinas; um, na
semiestruturadas. Buscou-se obter informações Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de
sobre o início do curso, a formação nele rece- Goiás; um, na Faculdade de Filosofia, Ciências
bida, as influências sentidas, as transformações e Letras de Lins/SP; e um, na Universidade
ocorridas ao longo do tempo e de que modo Sagrado Coração/SP.

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No que se refere à formação que precedeu A partir dessa descrição, salienta-se que
o curso de pedagogia, apenas dois não passaram os entrevistados constituem um grupo notada e
pela Escola Normal. Dentre os que passaram, propositalmente especial para atender aos obje-
seis alcançaram a cadeira prêmio, ingressando tivos do estudo, isto é, procurar saber como o
de imediato como professor primário efetivo curso de pedagogia é percebido por pedagogos
do sistema de ensino do seu Estado. Apenas que vivenciaram os primórdios do curso e que
três deles fizeram um curso de aperfeiçoa- se destacaram por uma longa e expressiva traje-
mento, complementar ao curso Normal, antes tória como formadores e pesquisadores.
de ingressar no curso de pedagogia. Da investigação emergiu uma série de
Boa parte do grupo reúne experiência aspectos que apontam para a forma como o
como professor primário e/ou secundário. curso veio se construindo entre nós e para a
Doze atuaram como professores do primário e posição conflituosa, porém importante, que ele
dez como professores do secundário na Escola foi ocupando no âmbito do espaço acadêmico
Normal. No que se refere à atuação como profes- da educação. Este trabalho propõe-se a apre-
sores do curso de pedagogia, todos trabalharam sentar uma análise parcial de tais dados, abor-
como formadores de pedagogos, oito deles dando especificamente aspectos que concernem
iniciando essa experiência tão logo concluído à problemática relação entre a teoria e a prática
o curso de pedagogia e um, em especial, como tanto no curso de ontem, quanto no de hoje,
já mencionado, começando no início da década sempre na visão dos entrevistados.
de 1940, quando o curso foi introduzido entre
nós por meio do Decreto-Lei nº 1.190, de 4 de A difusa relação entre a teoria e
abril de 1939. a prática: histórico embate refletido na
Quase todos os entrevistados exerceram, formação de professores
em algum momento de suas trajetórias, funções
referentes ao ofício de pedagogo: inspetor de Falar do início do curso de pedagogia
ensino no âmbito da esfera federal; técnico de sem falar do curso Normal parece ser algo
planejamento atuando em uma secretaria esta- difícil, visto que essa relação estabeleceu-se
dual de educação; curriculista no contexto dos em todos os depoimentos, mesmo no caso das
sistemas estadual e federal de educação; diretor, duas únicas entrevistadas que não ingressaram
coordenador pedagógico ou orientador educa- na Escola Normal. Ao serem interrogados sobre
cional de escola. como foi o curso de pedagogia que fizeram,
Todos os entrevistados fizeram algum os entrevistados, em sua totalidade, mencio-
tipo de curso de especialização no Brasil e/ou naram aspectos que focalizam diretamente o
no exterior. Onze passaram pelo mestrado em curso Normal, seja para explicar as motiva-
educação, catorze pelo doutorado e sete pelo ções em tornar-se pedagogo, para comentar
pós-doutorado, sendo que alguns fizeram mais comparativamente o curso de pedagogia no
de um programa de estudo de pós-doutorado. tocante às disciplinas, à metodologia das aulas,
Tal estudo foi desenvolvido no exterior, visto aos professores e à sua própria finalidade, ou,
que a sua realização antecedeu a instalação e ainda, para justificar a inserção como formador
ampliação da pós-graduação em educação no de professores primários, atividade cujo locus
Brasil. Alguns dos entrevistados, que não regis- preferencial – e até então exclusivo – era a
tram o título de mestre e o de doutor, alcan- Escola Normal.
çaram diretamente a condição de livre-docente Segundo a grande maioria dos entre-
pelo mérito de sua produção em uma época em vistados, a formação para se tornar professor
que a pós-graduação não apresentava a estru- foi obtida por meio da Escola Normal, cursada
tura que possui hoje. por quinze deles. O curso de pedagogia parece

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não ter explorado suficientemente a prática aprendizagem sobre como alfabetizar e ensinar
desse ofício. Entretanto, a pedagogia, prin- aritmética, entre outras, não foi explorada. A
cipalmente para aqueles que a cursaram nas fala dessa entrevistada merece atenção tanto
décadas de 1940 e 1950, favoreceu uma sólida pelo fato de ela ser dissidente, no sentido de que
formação teórica, condição necessária, na visão nenhum outro depoente focalizou essa dimensão
dos entrevistados, para o processo de pensar, da prática, como pelo fato de essa visão ter sido
refletir, pesquisar e construir conhecimentos apresentada por uma aluna do curso que, mais
sobre a educação. tarde, tornou-se pesquisadora da história do
A partir da análise dos depoimentos, ensino Normal. Vejamos o que ela própria diz:
dois fatores sobressaíram-se. Um deles diz
respeito ao modo diferenciado de relacionar a Eu lembro que o ensino Normal era meio
teoria e a prática. A afirmação Eu tive um curso formalista, como é que se faz um diário de
Normal muito forte apareceu de forma recor- classe, como é que se faz um plano de aula...
rente, estimulando a busca, nos depoimentos, Eu estudei história do ensino Normal, você
por possíveis indícios dessa força e por saber sabe disso. Essa parte metodológica de que
se esses indícios apareciam também quando tanto se fala, da prática de ensino, eu não
a fala se referia ao curso de pedagogia. De consigo ver nos antigos cursos Normais,
modo geral, os entrevistados consideram que nem naqueles que eu tomei como objeto de
fizeram um bom curso Normal, por meio do estudo. (Entrevistada déc. 1960)
qual aprenderam os fundamentos da educação
e as metodologias necessárias para a realização Ainda assim, no contexto do estudo reali-
do trabalho docente. Nessa mesma direção, zado, a ênfase na dimensão prática do curso
eles consideram que também fizeram um bom Normal constituiu-se como o principal indício
curso de pedagogia, tendo a oportunidade de da força desse curso para os entrevistados.
estudar em profundidade – expressão utilizada Mesmo que a prática tenha sido restrita, parece
por alguns deles – disciplinas de cunho predo- que ela não deixou de ser o mote principal do
minantemente teórico, ficando a prática restrita curso, para o qual convergiram todos os demais
às disciplinas de didática e metodologia. estudos de fundamentação que se tornaram deci-
Nota-se, assim, que o curso de pedagogia sivos no processo de fazer-se professor, tal como
assumiu, desde o início, uma feição bastante se pode depreender da fala a seguir:
parecida com a do curso Normal no que diz
respeito às disciplinas; no entanto, enfatizou A base de criação da minha cultura peda-
mais a dimensão teórica do que a prática. Talvez gógica se deu no curso Normal. Do ponto
essa difusa relação entre teoria e prática, no de vista estruturalmente pedagógico, as
tocante aos dois cursos em questão, possa questões de sala de aula, prática de ensino,
ser expressa da seguinte maneira: no curso didática foram trabalhadas no Normal. No
Normal, predominou a ênfase na prática com curso de pedagogia não houve nenhuma
muita teoria, ao passou que, no curso de peda- referência significativa a esse respeito.
gogia, predominou a ênfase na teoria com (Entrevistado déc. 1950)
pouca prática.
Entretanto, é importante destacar que um No caso do curso de pedagogia, a força
dos entrevistados chama atenção, em seu depoi- recaiu sobre os estudos teóricos. Porém, se,
mento, para o fato de que a prática predominante por um lado, essa força fez calar a prática, por
no curso Normal que frequentou mostrou-se outro, favoreceu uma compreensão mais crítica
demasiadamente formalista, centrando-se mais dos fatos sociais e, portanto, da prática pedagó-
em aspectos relativos à preparação de aula. A gica. Reside nesse ponto o outro fator destacado

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durante as análises, o qual diz respeito à força dade de ocupar cargos de técnicos de educação
dos estudos teóricos sobre a educação. do Ministério de Educação. Segundo Bissolli da
Do conjunto de depoimentos, chama Silva (1999), organizou-se um curso que não
atenção, inicialmente, a fala de duas entre- incluiu o mínimo de componentes curriculares
vistadas da década de 1950 que utilizaram a necessários para a formação de um profissional,
expressão pensador, deixando antever que o cujo perfil não estava claro.
foco principal do curso estava ajustado nessa Para um dos entrevistados da década
perspectiva. de 1950, os estudos desenvolvidos durante o
curso de pedagogia foram determinantes para
O bacharelado tinha a missão de formar a continuidade de sua trajetória, influenciando
o cientista, o pensador da educação. na definição de seu objeto de pesquisa e na
(Entrevistada déc. 1950) implementação do trabalho que empreendeu
para levá-la a efeito.
Qual foi o espírito do curso de pedagogia que
eu fiz naquela época? Era de um pensador Estudei muita teoria no curso de peda-
em educação. (Entrevistada déc. 1950) gogia. A começar por um curso de socio-
logia que fiz com o professor Antônio
As duas entrevistadas fizeram o curso Cândido. Foi com ele que eu li As regras
em fins dos anos 1950 e início dos anos 1960, do método sociológico, de Durkheim. [...]
quando vigorava o primeiro marco legal. Nesse O curso de pedagogia, com todos esses
período, a estrutura do curso considerava uma professores que eu indiquei (Antônio
série de disciplinas de fundamentos, predomi- Cândido, Fernando de Azevedo, Laerte
nando, de fato, a dimensão teórica. Entretanto, Ramos de Carvalho, Roque Spencer
no tocante à finalidade do curso, buscava-se Maciel de Barros...), me deu uma formação
formar, no bacharelado, o técnico de educação e, teórica muito sólida. [...] Quando fui pra
na licenciatura, o professor da Escola Normal. O Araraquara para dar aula de pedagogia
propósito de formar um pensador em educação, geral no curso de pedagogia, não sabia
capaz de teorizar sobre ela e propor ações refe- direito o que que era. Foi, então que
rentes aos processos por ela desencadeados, não comecei a pensar um esquema teórico de
se manifestou com muita clareza no contexto análise em três níveis: nível da sociedade,
da lei, mas parece ter encontrado alcance no nível do sistema escolar e nível técnico-
contexto do curso. -pedagógico. Eu tentei pensar cada um
Carmem Bissolli da Silva (1999) discute desses níveis com base no que havia estu-
essa questão, pontuando que, em sua orga- dado e articular um com o outro. [...] Qual
nização inicial, o curso de pedagogia previu era a minha preocupação? Na época, a
a formação do bacharel sem apresentar história da educação era mais ou menos
elementos que caracterizassem o trabalho a considerada como disciplina autônoma e
ser por ele exercido. A finalidade do bacha- era muito fraquinha ainda. Estava come-
relado era identificada no bojo daquelas defi- çando a se desenvolver. Então, eu pensei
nidas para a Faculdade Nacional de Filosofia, que não tinha sentido desligar educação,
que se dirigia ao preparo da intelectualidade história da educação escolar e sociedade.
que exerceria as altas atividades culturais no Por outro lado, eu considerava, também,
país. Porém, o diploma de bacharel em peda- que não adiantava você elaborar o que
gogia conferiria ao portador, a partir de 1º de se chama teoria, doutrina ou pensamento
janeiro de 1943 – quando, subentende-se, a educacional, se ele não tivesse condições
primeira turma estaria formada –, a possibili- de ser operado no chão da fábrica, ou

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seja, na sala de aula. Daí o nível técnico- Por último, o depoimento destacado
-pedagógico. [...] O que eu pretendia era deixa entrever um aspecto bastante importante
trabalhar com meus alunos no nível desse dessa dimensão teórica: a preocupação com
pensamento e no nível do que consegue a prática. Se, por um lado, a força teórica faz
realizar, na prática, esse pensamento. silenciar a prática, por outro, essa força adquire
(Entrevistado déc. 1950) mais sentido e, portanto, ainda mais força
quando se materializa no contexto da prática.
O primeiro aspecto que emerge desse Repetindo o que disse o entrevistado,
depoimento diz respeito aos professores. Uma
possível razão para a ênfase teórica do curso O que eu pretendia era trabalhar com meus
de pedagogia nessa época reside no perfil de alunos no nível desse pensamento e no
seu corpo docente. O entrevistado refere-se a nível do que consegue realizar, na prática,
grandes nomes da educação brasileira. Ele teve esse pensamento. (Entrevistado déc. 1950)
o privilégio, assim como boa parte dos demais,
de ser aluno de pessoas expoentes. É impor- Vemo-nos, então, diante do problema
tante atentar que muitos desses professores, fundamental da pedagogia (SAVIANI, 2007),
ainda que bem formados e bem situados no que, por definição, é, em si mesmo, constitu-
contexto acadêmico, não conheciam o chão da tivo dessa complexa relação: pensar e praticar
fábrica, expressão utilizada pelo entrevistado. a educação. Para Dermeval Saviani (2007), a
A falta de contato com o trabalho pedagó- pedagogia desenvolveu-se a partir da estreita
gico realizado na escola forçosamente destaca relação que estabeleceu com a prática educa-
a dimensão teórica, domínio de investimento tiva, ora sendo assumida como teoria dessa
desses professores. prática, ora sendo identificada como o modo
O segundo aspecto que merece conside- por meio do qual essa prática se estabeleceria.
ração no depoimento em análise tem relação Segundo o autor, da relação teoria-
com o modo como a teoria estudada trans- -prática derivam duas grandes tendências peda-
forma-se em uma importante ferramenta diante gógicas que podem ser assim sumariadas: de
de situações novas e desafiantes, tal qual um lado, a prática subordinada à teoria, em que
aquela que envolveu o entrevistado no início prevalecem as teorias do ensino (como ensinar)
de sua trajetória de formador de pedagogos. e incluem-se as diversas vertentes de pedagogia
Sem muita clareza acerca de como caminhar tradicional; de outro lado, a teoria subordinada
com uma disciplina intitulada teoria geral da à prática, em que predominam as teorias da
pedagogia, ele resolveu pensar um referencial aprendizagem (como aprender) e situam-se as
teórico próprio. Certamente, as condições para variadas experiências da pedagogia nova.
investir em tamanho desafio não se restringiram Saviani (2007), que se dedica a pesquisar
às leituras realizadas e às experiências obtidas as perspectivas históricas e teóricas do espaço
durante o curso de pedagogia, mas outras vivên- acadêmico da pedagogia no Brasil, sinaliza, com
cias também contribuíram para isso. O esquema base em Suchodolski (1978), que as concepções
teórico mencionado integra sua tese de livre- tradicionais, sustentadas em diferentes aportes,
-docência, cujo trabalho tornou-se um marco como os de Platão, Comênio, Kant, Fichte, Hegel
na história da educação brasileira. Todavia, ele e Herbart-Ziller, convergem para uma teorização
não deixou de ressaltar o lugar ocupado pelo sobre o ensino, assumindo a formação intelectual
curso de pedagogia em sua formação. Por essa como o objeto central do trabalho pedagógico.
via, parece mesmo que a força de seu curso As concepções renovadoras, fundamentadas
movia-se em torno do ato de pensar, teorizar e em Rousseau, Pestalozzi, Froebel, Kierkegaard,
refletir sobre o processo educacional. Stirner, Nietzsche e Bergson, chegando aos

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movimentos do escolanovismo, das pedagogias tanto, como o ponto de partida e o ponto
não diretivas, da pedagogia institucional e do de chegada da prática educativa. (p. 110)
construtivismo, em contraposição à tendência
anterior, assumem a aprendizagem como o Por esse caminho, a prática social cons-
objeto principal do trabalho pedagógico e, titui-se no principal mote do trabalho pedagó-
portanto, de suas teorizações. gico, do qual emergirão, teórica e praticamente,
As duas tendências mencionadas contri- as questões a serem problematizadas, os instru-
buem para reforçar o problema que envolve a mentos para seu estudo e elucidação, e as ideias
equação teoria-prática para a pedagogia, no para aplicação à própria vida dos sujeitos en-
sentido em que cada uma assume uma dimensão volvidos nesse processo, favorecendo, assim, a
desse binômio como nuclear de sua concepção unidade teoria-prática.
(tradicional — teoria / renovada — prática), A análise de Saviani leva-nos à de Jean
acentuando o fosso existente entre ambas, cuja Houssaye (2004). Esse autor defende que a pe-
superação representa condição para afirmação dagogia representa um saber específico, que
da própria pedagogia. pressupõe a reunião mútua e dialética da teoria
O trabalho pedagógico no contexto escolar e da prática educativas pela mesma pessoa. A
e fora dele é amplamente marcado pela influência articulação teoria-prática é de tal modo deter-
da visão tradicional e também pelo forte desejo de minante e constitutiva da pedagogia, que um
sua superação por meio da influência renovadora. prático por si só não é um pedagogo, mas um
Busca-se a superação da teoria pela prática, numa usuário de sistemas pedagógicos, assim como
perspectiva de oposição. Nesses termos, teoria e o teórico da educação também não se constitui
prática são historicamente construídas de forma em um pedagogo, porque pensa a ação peda-
dissociada e teoricamente consideradas partes in- gógica. Na definição de Houssaye (2004), peda-
dissociáveis da pedagogia, constituindo-se, para- gogo é um prático-teórico da ação educativa; é
doxalmente, no próprio dilema pedagógico. alguém que, ao teorizar sobre a educação, ana-
Para Saviani (2007), teoria e prática são as- lisa o fato educativo buscando formular propo-
pectos dialeticamente distintos e fundamentais da sições para sua prática.
experiência humana, definindo-se um em relação Considerar a relação teoria-prática como
ao outro: “a prática é a razão de ser da teoria, o pedra angular da construção da pedagogia, re-
que significa que a teoria só se constituiu e se conhecendo nela uma abordagem específica,
desenvolveu em função da prática que opera” (p. não significa desconsiderar que a prática está,
108). Nesse sentido, o autor defende que a prática de algum modo, presente entre os teóricos,
se tornará mais consistente quanto mais sólida for ou que o pensamento teórico baliza a prática.
a teoria que lhe serve de fundamento, sendo am- Significa, isto sim, reconhecer e defender que
bas, portanto, opostos que se incluem. a prática, constituindo a pedagogia, não pode
Para superar as divergências teórico-prá- ser algo meramente projetado, da mesma forma
ticas provocadas pelas duas grandes tendências que a teoria pedagógica não pode ser apenas
pedagógicas que trataram “teoria e prática como algo tomado de outros. Tal concepção pressu-
pólos opostos mutuamente excludentes” (p. 109), põe que a pedagogia se constrói a partir de
Saviani (2007) sugere a emergência de outra for- uma proposta prática e de uma teoria da situ-
mulação, centrada na unidade compreensiva da ação educativa referida a essa prática. Há sa-
teoria e da prática. ber nessa composição. Em outras palavras, se
a pedagogia for vista como assentada apenas
Nessa nova formulação a educação é en- no saber de outros campos, nutrindo-se ape-
tendida como mediação no seio da prática nas deles, ela renuncia a si mesma, recusando
social global. A prática social se põe, por- sua própria natureza.

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Historicamente, a pedagogia desfalece sobre a formação de professores e demais pro-
na medida em que é assumida como objeto de fissionais de educação, foi alvo de incontáveis
várias outras disciplinas. A princípio, a filosofia críticas, fazendo crescer o movimento em torno
coloca-se como a voz teórica da pedagogia. da reformulação de seu currículo. O processo de
Posteriormente, a psicologia fundamenta a peda- gestação das atuais diretrizes curriculares para
gogia, situando-a como ciência da educação. o curso de pedagogia foi bastante longo e di-
Em seguida, um conjunto de disciplinas firma- fícil, tal como discutem Aguiar e Melo (2005),
-se como a base teórica da pedagogia, anun- Kuenzer e Rodrigues (2006), Libâneo (2006),
ciando-se como ciências da educação. Esse Tanuri (2006), Franco, Libâneo e Pimenta
processo de recolocação da pedagogia dá-se (2007), Saviani (2007) e Sheibe (2007). Uma
em um contexto de desagregação, uma vez ideia, em especial, ganhou fôlego no debate tra-
que, de teoria prática, a pedagogia reduz-se a vado, principalmente pela posição das entida-
uma prática de aplicação de teorias empres- des e associações de docentes: a docência como
tadas. Todavia, é importante atentar que, de base da identidade nacional de todo educador.
início, a ciência e, posteriormente, as ciências Com a promulgação da Lei de Diretrizes
da educação justificam-se em grande parte para e Bases da Educação Nacional (Lei nº
favorecer a sistematização de saberes rigorosos 9.394/1996), várias reformas foram empreendi-
sobre a educação, o que, por mérito, representa das, tal como aconteceu em fins dos anos 1960
a própria especificidade da pedagogia. e início dos anos 1970; entre elas, a indicação
Houssaye (2004), no contexto de sua argu- para alteração dos currículos dos cursos de gra-
mentação, chama atenção para a necessidade de duação. Com a autorização do Conselho Federal
não se desqualificar a pedagogia pelo fato de sua de Educação, várias instituições passaram a
concepção pressupor uma indissolúvel ligação experimentar mudanças em seus cursos de pe-
com a prática. Para o autor, a pedagogia “produz dagogia, incorporando a formação do docente
incontestavelmente um saber pedagógico além para a primeira etapa do ensino fundamental,
dos saberes práticos” (p. 25). até então responsabilidade exclusiva do curso
O estudo realizado evidencia que a difusa Normal de nível médio, e atenuando a força das
relação entre a teoria e a prática manifesta-se habilitações dirigidas à formação do especia-
no curso de pedagogia desde seu início, refle- lista, independentemente do preconizado pelo
tindo-se na formação de professores e acentu- Parecer CNE nº 252/1969, ainda vigente. Nesse
ando uma questão fundamental para o campo: sentido, o curso de pedagogia, que ao longo de
se a prática é um elemento conceitual consti- sua trajetória esteve apartado da escola primá-
tuidor da pedagogia, conforme problematizam ria, passa a enfatizar essencialmente a docência
Saviani (2007) e Houssaye (2004), como não ter própria ao seu contexto.
encontrado entrada em seu próprio curso? Nesse cenário de disputas, o referido cur-
so viu-se bastante ameaçado, uma vez que a
Atuais diretrizes curriculares LDB introduziu o curso Normal Superior como
para o curso de pedagogia: instância responsável pela formação de docentes
possibilidades e limites teóricos e para a educação infantil e para a primeira etapa
práticos para a formação de professores do ensino fundamental, ênfase que a pedagogia
tentava tomar para si. A polarização estabelecida
Saltando dos anos iniciais do curso de dificultou a definição de uma proposta razoa-
pedagogia para um período mais recente, nota- velmente consensual entre os educadores no que
-se que a década de 1980 foi emblemática para tange às diretrizes curriculares.
o debate sobre a recontextualização da educa- No decorrer de uma caminhada bastante
ção brasileira. O curso, no âmbito das discussões longa de discussão sobre o que seriam as diretrizes

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curriculares para o curso de pedagogia, preva- 64 da LDB, sem, no entanto, apontar, no corpo
leceu o tom nada consensual, manifesto pelas do texto de fundamentação das diretrizes, indi-
posições divergentes em jogo. Paradoxalmente, cativos de estruturação do curso nessa direção.
a docência como base de formação fez emergir Em face dessa situação, fica patente, nas dire-
o consenso e o dissenso, sendo o próprio pomo trizes, a ambiguidade criada: uma proposta de
da discórdia. curso para formar essencialmente o pedagogo
O curso de pedagogia passa a ser um docente, com direito assegurado em lei de for-
curso de licenciatura com foco na formação mar também o pedagogo não docente, sem que
inicial para o exercício da docência na a base dessa formação esteja prevista.
educação infantil e nos anos iniciais do ensino E como se posicionaram os pedagogos
fundamental; nos cursos de ensino médio, na primordiais entrevistados sobre a nova confi-
modalidade Normal; em cursos de educação guração do curso de pedagogia, sobretudo no
profissional na área de serviços e apoio escolar; que diz respeito à complexa relação entre te-
e em áreas nas quais sejam previstos conheci- oria e prática? Dos entrevistados, quatro não
mentos pedagógicos. se manifestaram, alegando que se distanciaram
A formação por ele oferecida deve abran- das discussões a respeito desse tema e que não
ger, integradamente à docência, a participação conheciam o documento. Quanto aos demais, o
da gestão e avaliação de sistemas e instituições que é possível depreender de seus depoimentos
de ensino em geral, a elaboração, a execução e são posições que não podem ser simplesmen-
o acompanhamento de programas, bem como te enquadradas nos quesitos a favor ou contra,
de atividades educativas em contextos escola- pois deixaram entrever nuanças favoráveis a
res e não escolares, podendo contemplar uma determinados aspectos e contrárias a outros.
diversidade de temas. Da análise dos depoimentos, três aspec-
Quanto às habilitações responsáveis pela tos indicaram pontos de relevância, designados
formação de especialistas para as atividades de da seguinte forma: o afastamento da teoria, o
orientação educacional, administração escolar, não lugar das habilitações e a docência como
supervisão e inspeção de escolas e sistemas de base de formação.
ensino, o documento inicialmente previu, em
seu artigo 10 (Parecer CNE/CP nº 5/2005), que O afastamento da teoria
elas entrariam em regime de extinção a par-
tir do período letivo seguinte à publicação da Quase a totalidade dos entrevistados
Resolução, e, no artigo 14, que a formação dos manifestou preocupação com a formação a ser
demais profissionais da educação – no caso, pe- oferecida pelo curso, considerando a diversidade
dagogos não docentes ou especialistas – deveria de enfoques possíveis. No cerne dessa preocu-
ser realizada em cursos de pós-graduação, espe- pação situa-se a dificuldade em favorecer o
cialmente os estruturados para esse fim, abertos estudo teórico, condição essencial, na visão
a todos os licenciados e não só aos egressos do desses entrevistados, para pensar, propor, imple-
curso de pedagogia. No entanto, tal proposição mentar e avaliar o trabalho pedagógico. A fala a
contrariou o que dispõe a LDB em seu artigo seguir é representativa dessa visão:
64. Por conta da contraposição mencionada, o
Parecer CNE/CP nº 5/2005, apesar de aprovado, Como o pedagogo em formação aprenderá
foi reencaminhado pelo Ministério da Educação filosofia em 75 horas? Considero que as
ao Conselho Nacional de Educação para reexa- diretrizes empobreceram a formação do
me da matéria. Assim, o Parecer teve seu artigo pedagogo como aquele que precisa ter um
14 retificado e passou a assegurar a formação forte domínio dos conhecimentos pedagó-
de profissionais da educação prevista no artigo gicos. (Entrevistada déc. 1950)

158 Gisele Barreto da CRUZ. Teoria e prática no curso de pedagogia.


Pelo que se pode captar dos depoimentos, O não lugar das habilitações
parece que, para os entrevistados, o afastamento
da teoria é inevitável, visto que o curso ficou A análise dos depoimentos evidencia
sobrecarregado de ênfases formativas, de um que, para os entrevistados, ter ou não ter habi-
lado, acentuando a fragmentação já existente litação no curso de pedagogia não é o ponto
e, de outro, empobrecendo as possibilidades de crítico do problema, assim como o contexto
abordagem teórica. Segundo declararam os entre- mais adequado para formar o especialista
vistados, será preciso fazer muito com pouco, parece ser mesmo o da pós-graduação. Portanto,
tendendo a aligeirar ainda mais a formação, além se as habilitações irão acabar e se o peda-
do estilo enciclopédico que provavelmente domi- gogo deixará de ser chamado de especialista,
nará a organização dos cursos. isso representa, de alguma forma, um avanço.
Para eles, o problema é mais complexo, pois
Acho que a formação teórica, necessária diz respeito à base da formação. Ser professor
para pensar a educação e fazer avançar é ser professor; ser pedagogo é ser pedagogo.
o pensamento pedagógico, se perdeu, se Professor ensina; pedagogo faz pedagogia. Se
esfacelou com a fragmentação do curso. o curso de pedagogia forma o professor, quem
(Entrevistada déc. 1960) formará o pedagogo? Então, o curso deixará de
ser de pedagogia e passará a ser de formação
O afastamento da teoria faz avançar de professores? A fala, a seguir, focaliza essa
a prática? Seria o avesso dos primórdios do problemática:
curso? Uma das vantagens observadas nas
diretrizes por alguns dos entrevistados tem Se a pedagogia ficar reduzida à atividade
relação com a prática. Uma carga horária maior de formação do professor, perderá um
facilitaria um conhecimento mais apurado do espaço único na universidade de trabalhar
campo de atuação. Entretanto, a falta de funda- a educação como objeto de estudo. [...]
mentos teóricos para refletir sobre esse campo Quanto às habilitações, eu penso que elas
e sua prática pode comprometer o trabalho deveriam ter terminado mesmo, mas não o
pedagógico a ser desenvolvido. Trata-se de trabalho do pedagogo fora da sala de aula.
uma equação difícil de ser resolvida para os (Entrevistada déc. 1960)
entrevistados.
Sobre a relação entre habilitação e espe-
Eu acho que tem uma vantagem, que é a cialização, para alguns dos entrevistados, o
de ter ampliado um pouco mais a carga pedagogo habilitado, antes das diretrizes, como
horária para as atividades práticas, porém especialista para trabalhar com professores,
muita disciplina dificulta o estudo apro- concebendo e implementando processos de
fundado, necessário para pensar a prática. formação continuada no contexto do próprio
(Entrevistada déc. 1960) estabelecimento de ensino, deveria ser formado
no nível da pós-graduação.
Se antes prevaleceram poucas disci-
plinas, com carga horária ampliada, favore- O pedagogo que trabalha com os profes-
cendo o estudo aprofundado, agora prevalecem sores, como responsável pela sua formação
muitas disciplinas, com carga horária reduzida, continuada, que mobiliza os processos
viabilizando apenas uma visão geral sobre um pedagógicos da escola como um todo, deve
tema central, sem grandes aprofundamentos ser formado no nível da pós-graduação,
teóricos e com uma parte prática mal resolvida porque, assim, pressupõe que ele tenderia
pelos estágios propostos. a ter uma experiência mais consolidada na

Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 38, n. 1, p.149-164, 2012. 159


sala de aula. É muito difícil um pedagogo é mais do que professor, que o trabalho docente
ser orientador de professores sem nunca deve estar subordinado ao do pedagogo, ou,
ter passado pela experiência de professor. ainda, que o professor não pode desempenhar
Assim como é muito difícil um pedagogo as funções até então pensadas para o pedagogo
ser orientador de educadores populares no contexto da escola, do sistema e de outros
sem nunca ter sido um educador popular. espaços educativos.
(Entrevistada déc. 1950) Na visão dos entrevistados, a ideia de
docência como um dos princípios formativos do
A fala dessa entrevistada leva-nos ao pedagogo é, de modo geral, bastante razoável,
próximo eixo de discussão. Se o trabalho do representando um ponto consensual. Entretanto,
pedagogo volta-se essencialmente para a escola há variações nessa visão que merecem destaque
como um todo, isto é, para a concepção, imple- e que podem ajudar a entender os complica-
mentação e avaliação da prática pedagógica dores sinalizados.
por ela desenvolvida, para a articulação do Do grupo de entrevistados, cinco, em
currículo e sua materialização na sala de aula e especial, concordam, sem hesitação, com o
fora dela, para a formação em serviço de seus princípio da docência como base de formação
profissionais, para as parcerias estabelecidas e, do pedagogo. Vejamos o que alguns dizem a
enfim, para a organização e gestão articuladora esse respeito:
da ação educativa na escola, como também
em outros contextos educativos, parece que a Do meu ponto de vista a docência é funda-
docência representa uma condição imprescin- mental. Pedagogo que não é ou foi professor
dível. Tal como definido pelo movimento dos dificilmente conseguirá desenvolver com
educadores dirigido pela ANFOPE (Associação êxito seu trabalho na escola e fora dela.
Nacional pela Formação dos Profissionais (Entrevistada déc. 1960)
da Educação), a docência deve ser a base de
formação. Contudo, tomá-la como base significa Isso eu sempre defendi! Eu não sei até
fazer dela o início, o meio e o fim da formação que ponto eu fui uma das precursoras
do pedagogo? Saem as habilitações, responsá- de tentar colocar essa ideia na prática.
veis por conferir ao pedagogo credenciais para Quando participava do grupo de São
a realização desse trabalho mais abrangente, e Paulo que discutia e propunha altera-
fica a docência, entendida não no sentido de ções para o currículo do curso de peda-
desenvolvimento de aulas, mas no sentido de gogia, lembro-me de ter colocado essa
íntima relação com o trabalho pedagógico em ideia no papel, defendendo a formação
suas diferentes variações. Como se posicionam docente como base para depois chegar
os entrevistados acerca dessa perspectiva? na formação do especialista em outros
termos. (Entrevistada déc. 1960)
A docência como base de formação
Há entrevistados que, mesmo concor-
Esse foi um tema que mobilizou os dando com a ideia de a docência ser a base
entrevistados, não por eles discordarem que formativa do pedagogo, fazem questão de subli-
o pedagogo também precisa ser um professor, nhar que ela é necessária, mas não suficiente.
mas pelo fato de o pedagogo não poder ficar
subsumido no trabalho do professor. Há muitos Em todos os encontros sobre este assunto e
complicadores aqui, visto que um manifesto a em todos os textos que tenho escrito sobre
favor dos pedagogos (HOUSSAYE et al., 2004) isto, eu digo que não nego a importância
pode, nesse caso, dar a entender que pedagogo de que a pedagogia cuide da docência e

160 Gisele Barreto da CRUZ. Teoria e prática no curso de pedagogia.


forme para a docência, já que o campo contexto de onde emanam trabalhos pedagó-
da educação inclui o campo do ensino gicos. Ao conceituar a docência dessa forma,
e da aprendizagem, mas só isto não! o texto deixa entrever que a pedagogia ficou
(Entrevistada déc. 1960) restrita à docência, enquanto esta se ampliou,
abarcando a pedagogia. Tal concepção gera
Para outros entrevistados, a docência é imprecisão quanto ao objeto próprio da peda-
uma opção, mas não necessariamente a base de gogia, visto que a compreensão genérica da
formação. Tal posição é claramente exposta na docência permitiria assumir a pedagogia por
fala a seguir: dentro dela, e não o contrário.
Maria Amélia Franco, José Carlos Libâneo
A docência é uma das opções formativas, e Selma Garrido Pimenta (2007) posicionam-se
mas a base tem que estar voltada para a acerca dessa questão, defendendo que o curso
essência da pedagogia, enquanto ciência de pedagogia não pode ter a docência como
da educação. O curso é de pedagogia para base. Para eles, todo trabalho docente é trabalho
formar o pedagogo. Que o pedagogo deve pedagógico, mas nem todo trabalho pedagógico
saber sobre a docência é uma coisa, porque é trabalho docente (p. 84). A defesa em torno da
isto tem relação com a pedagogia. Agora, concepção de que o trabalho pedagógico incor-
que ela é sua base é outra, porque sendo pora a docência, porém vai além dela, encontra
ela sua base, a pedagogia propriamente entrada entre os pedagogos entrevistados. As
dita corre o risco de não ser considerada no controvérsias acentuam-se quando os autores
seu próprio curso. (Entrevistada déc. 1960) mencionados afirmam que “um professor é um
pedagogo, mas nem todo pedagogo precisa ser
Como se pode ver, a complexidade professor” (p. 84). Nesse caso, para os entre-
parece não residir na docência, mas no receio de vistados, em sua maioria, é fundamental que o
secundarização da própria pedagogia, uma vez pedagogo seja também um professor.
que a docência, como base, passa a ser o eixo A análise dos depoimentos, confron-
estruturante de todo o curso. Nesse sentido, um tada com a análise da literatura acadêmica a
aspecto focalizado pelos entrevistados, inclu- esse respeito e com a prática pedagógica cons-
sive por aqueles que não veem problema na truída ao longo de nossa trajetória, leva-nos à
docência como base de formação do pedagogo, seguinte posição: o trabalho docente é essen-
diz respeito ao conceito de docência subjacente cialmente um trabalho pedagógico, mas não
no texto das diretrizes curriculares para o curso só ele. Outros trabalhos também são essencial-
de pedagogia. mente pedagógicos, sem serem necessariamente
Segundo o que consta nos pareceres trabalhos de docentes. Entretanto, a docência,
e na resolução das diretrizes curriculares, a dada sua natureza estritamente pedagógica,
docência é compreendida como ação educativa desencadeia outras frentes de trabalho peda-
e processo pedagógico metódico e intencional, gógico (gestão, formação, pesquisa, teorização
desenvolvido nas diversas relações próprias sobre a educação etc.), devendo, então, ser
da pedagogia, por meio da articulação entre assumida como ponto de partida para sua reali-
conhecimentos científicos e culturais, e valores zação, e não como ponto final. Nessa perspec-
éticos e estéticos inerentes aos processos de tiva, é bom que o pedagogo seja um docente,
aprendizagem, socialização e construção de mas seu trabalho transcende o da docência,
conhecimentos. Em suma, trata-se de uma sem, por isso, ser superior a ela.
concepção bastante larga e ampliada de Ainda em relação à docência como base
docência, buscando não encerrá-la no contexto de formação do pedagogo, observa-se, na fala
da sala de aula, mas transcendê-la para todo o de alguns dos entrevistados, a preocupação com

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o destino do curso de pedagogia. As diretrizes, O descontentamento dos entrevistados
mais do que defenderem a docência como base, não recai sobre as habilitações ou os especia-
definem a docência como finalidade precípua do listas, questão que mobilizou tanta discussão ao
curso. Nessa direção, o curso de pedagogia tende longo do debate que acompanhou o processo
a assumir o perfil concebido para o curso Normal de elaboração do documento das diretrizes
Superior. Mais uma vez, a identidade sempre curriculares, mas sobre a ausência da própria
questionada da pedagogia se forjaria a partir da pedagogia. A docência como base de formação
identidade de outra entidade. Além disso, ressal- também não parece ser o grande problema. Este
ta-se o conflito entre as diretrizes curriculares do se revela no desaparecimento do conhecimento
curso de licenciatura em pedagogia e as dos cur- pedagógico do seu próprio curso. Os aspectos
sos de formação de professores. A fala adiante constitutivos do campo teórico-prático da
é bastante reveladora desse tipo de inquietação: pedagogia não foram suficientemente contem-
plados no documento, acentuando a complexa
A maioria dos cursos de pedagogia já se relação entre teoria e prática e seus efeitos para
transformou no que a gente poderia cha- a formação docente.
mar de um tipo de Escola Normal Superior.
[...] Se o pedagogo vai ser um professor de Conclusão
1a a 4a séries ou se ele vai ser um pensador
em educação, é diferente. Não que o pro- Olhar o curso de pedagogia no Brasil
fessor de 1a a 4a séries não pense educação, com a visão dos pedagogos entrevistados, aten-
mas ele precisa ter outro tipo de formação. tando para aspectos característicos dos tempos
Não dá pra você formar um cirurgião sem iniciais do curso e para as mudanças por ele
ensinar a ele a instrumentação. É a mesma sofridas, para analisar implicações, resistências
coisa com o professor, ele é um profissio- e avanços em sua trajetória, possibilitou captar
nal que precisa ser formado com a instru- aspectos, dilemas, desafios e possibilidades que
mentação devida para a sua prática. Então, certamente são contributivos ao processo mais
nós ficamos com uma coisa híbrida, que amplo de compreensão do papel da pedagogia
nem forma o professor, nem o pedagogo na formação de professores.
direito. [...] Eu não sei como vai ser, porque Neste artigo, a partir de uma pequena
quem forma o professor tem que obedecer porção dos dados obtidos com a pesquisa, a
às diretrizes para a formação de professo- ênfase da análise recaiu sobre a relação entre a
res, mas ao mesmo tempo você tem uma teoria e a prática. Buscou-se focalizar aspectos
diretriz específica para o curso de pedago- históricos da gênese do curso de pedagogia e de
gia, que basicamente só forma o professor. diferentes momentos que marcaram sua traje-
(Entrevistada déc. 1950) tória, a fim de favorecer o debate sobre os desa-
fios que espreitam os profissionais da área em
Pelo que se pode depreender dos dados relação à teoria e à prática, conexão bastante
apresentados e da análise desenvolvida, a for- problemática no campo da formação.
ma assumida pelo curso a partir de suas atuais As análises apresentadas evidenciam que
diretrizes curriculares é bastante controvertida. os fundamentos teóricos, em comparação com
A formação do professor passa a representar o a experiência prática, obtiveram maior peso na
eixo central do curso, enquanto as demais ati- estrutura e na prática curricular do curso. Situar
vidades atinentes ao pedagogo são insuficien- o papel da teoria no curso representou sublinhar
temente definidas. Os pedagogos entrevistados a multiplicidade de saberes que constituem a
percebem nas diretrizes um esvaziamento do pedagogia, dada sua estreita relação com dife-
que é próprio da pedagogia. rentes frentes disciplinares, sinalizando ora a

162 Gisele Barreto da CRUZ. Teoria e prática no curso de pedagogia.


força, ora a própria fraqueza da pedagogia. como um teórico, visto que ele se faz no entre-
Se a multiplicidade de estudos teóricos fez meio dessa relação. A conexão entre a teoria e a
crescer o seu domínio de conhecimento, igual- prática deve ser contínua e qualquer perspectiva
mente contribuiu para engendrar um quadro de de fosso entre as duas não deve subsistir. Assim,
dispersão da própria pedagogia, dificultando a é um equívoco considerar que um prático é um
afirmação de um estatuto teórico específico. pedagogo; ele nada mais é do que um usuário de
A travessia do passado para o presente, sistemas pedagógicos. Da mesma forma, também
de modo a focalizar o curso de hoje, com base é um engano tomar o teórico da educação como
nas diretrizes curriculares homologadas pelo um pedagogo, já que não basta pensar sobre o
Conselho Nacional de Educação (CNE) no ano processo pedagógico.
de 2006, permitiu ver que o problema entre a
teoria e a prática permanece em pauta, ainda Só será considerado pedagogo aquele
que com outras nuances. A multiplicidade de que fizer surgir um plus na e pela arti-
saberes que constituem a pedagogia correrá culação teoria-prática em educação.
o risco de dispersar-se ainda mais, enfraque- Esse é o caldeirão de fabricação peda-
cendo a formação teórico-prática em face da gógica. (p. 10)
diversidade de enfoques formativos que passou
a vigorar no curso. Diante do dilema historicamente cons-
Entendemos que a pedagogia requer for- truído em torno da teoria e da prática no curso de
mulações próprias a partir das diversas áreas que pedagogia, cabe, então, indagar: qual será a força
lhe são constitutivas. Dessa forma, nem só a teo- capaz de favorecer a ascensão do conhecimento
ria, nem só a prática, mas a reunião mútua e dia- próprio da pedagogia de modo que seu curso, ao
lética de ambas é o que faz emergir um pedagogo. privilegiar a teoria ou, pelo contrário, ao privile-
Segundo Houssaye (2004), um pedagogo giar a prática, não se restrinja apenas à formação
não pode ser compreendido como um prático ou de usuários de sistemas pedagógicos?

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Recebido em: 13.10.2010

Aprovado em: 18.03.2011

Giseli Barreto da Cruz é professora adjunta do Departamento de Didática da Faculdade de Educação da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ); pesquisadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Didática e Formação de Professores
(LEPED); pós-doutoranda em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a supervisão da professora
Marli André; mestre e doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro1, sob a orientação da
professora Menga Lüdke; professora e pedagoga com larga experiência na educação básica, principalmente na rede pública
de ensino.

1- ERRATA: A pedido da autora, fizemos a seguinte alteração no texto de sua biografia em 29.02.2012, deste modo, no arquivo publicado em ahead of
print e html:
Onde se lê: “...doutora em Educação pela Pontifícia Universidade de São Paulo do Rio de Janeiro, sob a orientação da professora Menga Lüdke;”
Leia-se: “... doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, sob a orientação da professora Menga Lüdke;”.

164 Gisele Barreto da CRUZ. Teoria e prática no curso de pedagogia.

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