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32º Encontro Anual da Anpocs

GT 10
CULTURA, ECONOMIA E POLÍTICA

Bens e serviços culturais:


o lugar do Brasil na cena internacional (2001-2006)
Mônica Leite Lessa
2

Bens e serviços culturais:


o lugar do Brasil na cena internacional (2001-2006)

RESUMO

A partir do final dos anos 1990, as indústrias culturais e as indústrias criativas


ampliaram sua participação na economia mundial ao mesmo tempo em que o
debate sobre a liberalização de bens e serviços culturais lançou a UNESCO em
uma grande batalha política. A defesa pela “exceção cultural”, centro propulsor
desse debate, resultou na adoção da Convenção Internacional para a Proteção e
Promoção das Diversidades das Expressões Culturais e Artísticas pela 33ª
Conferência Geral da UNESCO. Signatário dessa Convenção, o Brasil tem
envidado esforços para dotar-se de uma estrutura minimamente compatível com os
desafios e possibilidades de um setor que representou, em 2005, 7% do PIB
mundial. A proposta deste artigo é analisar a situação brasileira no cenário em tela,
sob a perspectiva da política externa brasileira, sendo o Departamento Cultural
(DC) do Itamaraty e o Ministério da Cultura (MinC) os principais fios condutores da
pesquisa.

INTRODUÇÃO
Segundo dados da UNESCO, o comércio de bens culturais passou de US$
39,3 bilhões em 1994 para US$ 59,2 bilhões em 2002. Sendo que em 2002 a
União Européia (UE) continuava como principal exportador controlando 51,8% do
mercado, em decréscimo, no entanto, em relação a 1994, quando detinha 54,3%;
seguida da Ásia com 20,6%; dos Estados Unidos (EUA), que caiu de 25%, em
1994, para 16,9% em 2002; da América do Sul e das Caraíbas, que subiram de
0,8% em 1994 para 3% em 2002; da África e Oceania, com apenas 1%. As
mesmas análises destacam ainda que do ponto de vista das importações os
países com altos índices de desenvolvimento são responsáveis por 90% do
mercado consumidor: os EUA arvorando US$ 15,3 bilhões, seguidos do Reino
Unido com US$ 7,8 bilhões e da Alemanha com US$ 4,1 bilhões1.

1
Echanges internationaux d’une sélection des biens et services culturels, 1994-2003. L’Institut de Statisque de l’UNESCO.
Paris: UNESCO, 2005, p. 9.

o comércio de bens culturais aumentou da década de 90


para os anos 2000, mas os países com altos índices de
desenvolvimento ainda eram responsáveis pela maior
porcentagem de importações pelo mercado consumidor.
3

Tais números podem nos confundir e surpreender mas, adverte-nos o


Embaixador Rubens Ricupero, John Kenneth Galbraith, em dois de seus livros,
The Affluent Society e The Culture of Contentment, havia previsto que em futuro
próximo “o motor da economia seria a produção e o consumo de bens culturais”,
embora com “concentração na sua produção e consumo” e, portanto, com
“divisões e exclusões”, a exemplo do que ocorre nos demais setores da economia
mundial2.
Diante das estatísticas aqui recolhidas, a importância do fator cultural no
cenário internacional torna-se inegável. Ele emerge com força demonstrando não
estar mais circunscrito a um apêndice das políticas e economias dos países mas
afirma-se como uma parte relevante de ambas. No entanto, a importância do fator
cultural não é percebida com a mesma intensidade, ou da mesma forma, pelos
países.
Pode ser possível que a despeito da importância da cultura para a sociedade
brasileira, ela ainda não possua a centralidade que ocupa em outras sociedades ?
Ou, a cultura é um dos pilares da política de Estado do país3 ? Por outro lado, deve
ser considerado, como todo país periférico o Brasil tem outras prioridades que não
apenas canalizam recursos e esforços como, ainda, ofuscam a visibilidade e a
importância da cultura. Esses fatores internos repercutem, naturalmente, na política
externa brasileira e, conseqüentemente, na sua diplomacia cultural que se impõe
com menos vigor no cenário político internacional4.
Mas, acreditamos, a economia da cultura em tempos de globalização irá
impor mudanças inelutáveis: o Estado deverá adotar uma política mais proativa
neste setor, os entraves e indiossincrasias da legislação nacional de Direitos
Autorais deverá ser revisto, bem como as “eficiências” das Lei Rouanet e do

2
RICUPERO, Rubens apud REIS, Ana Carla Fonseca. Economia da cultura e desenvolvimento sustentável. Barueri: Manole,
2007, pp, XIX e XX.
3
Mônica Velloso, por exemplo, considera que é a partir de 1930 que, pela primeira, "A questão da cultura passa a ser
concebida em termos de organização política, ou seja, o Estado cria aparatos culturais próprios, destinados a produzir e a
difundir sua concepção de mundo para o conjunto da sociedade." Cultura e poder político: uma configuração do campo
intelectual. In VELOSO, OLIVEIRA, Lippi Lucia, GOMES, Ângela Maria de Castro (Org.). Estado Novo: Ideologia e Poder. Rio
de Janeiro:Zahar Editores, 1982, p. 72.
4
LESSA, Mônica Leite. A política cultural brasileira e a Sociedade das Nações. In: Anais da XXII Reunião da SBPH. Curitiba:
2002, v. 1, pp. 89-97.
4

Audiovisual deverão ser reavaliadas. Não há outra saída possível. Se o país


pretende assegurar o crescimento sustentável de um setor promissor de múltiplas
riquezas, materiais e imateriais, ele tem que promovê-lo e impulsioná-lo como fez
com o setor energético, por exemplo.
Sistema de valores estruturante da identidade dos povos e do
comportamento dos Estados, segundo a definição de Jean Freymond5, a cultura é
igualmente “inextricável e central” ao desenvolvimento econômico, “oferecendo
tanto o contexto no qual o progresso econômico ocorre, quanto o próprio objeto de
desenvolvimento, quando vista sob a perspectiva das necessidades individuais.”6
Nesse sentido, o dado novo a ser considerado é o processo de globalização
e as mudanças daí advindas:como fenômeno do multiculturalismo e do
interculturalismo, o avanço tecnológico das comunicações (internet, televisão e
telefonia), dos transportes, o incremento das relações econômicas e comerciais, a
ampliação e a mudança de consumo das mídias, o aumento da circulação de bens
e de serviços, de pessoas e de capitais, que impulsionaram e alargaram
extraordinariamente as possibilidades da cultura do ponto de vista da economia.
Desde a década de 1980, bens e serviços culturais atendem a uma demanda
crescente de consumo a ponto do setor representar, em 2005, 7% do PIB mundial7.
Todo esse processo, contudo, tem dividido os estudiosos entre “céticos” e
“globalistas” acerca dos prós e contras da globalização8, e o debate sobre seu
fracasso em diminuir as desigualdades econômicas e sociais no mundo é
acompanhado do debate sobre seu poder, ou não, em promover a
homogeneização cultural dos povos. Alguns especialistas, entretanto, oferecem

5
"Enquanto sistema de referência coletiva, a cultura própria à cada Estado/sociedade constitui um dos fundamentos da
política externa dos Estados, que ela contribui a influenciar. Da mesma maneira, ela orienta as relações transnacionais. Ela
modela, em grande parte, a paisagem onde as políticas são elaboradas e executadas. Ela influencia a visão, a percepção e o
comportamento dos atores, sejam eles governamentais ou não. Ela condiciona o modo deles analisarem uma situação e
determina, em parte, a maneira como reagem. Vista sob este ângulo, a cultura é uma força profunda no sentido interpretado
por Pierre Renouvin. A cultura constitui também um dos elementos da conjuntura, segundo a definição de Fernand Braudel.
Todo sistema cultural é complexo e possui vários componentes. Todos os aspectos de um determinado sistema não
influenciam, sem dúvida, de forma idêntica, as relações exteriores de um Estado. Alguns aspectos pesam mais que outros.
Assim, muito provavelmente, acontece com o sistema de valores e o conjunto das normas que formam as mentalidades
coletivas e governam os comportamentos.” FREYMOND, Jean F. Rencontres de cultures et relations internationales. In :
Relations Internationales n° 24, hiver 1980, p. 405. Tradução nossa.
6
THROSBY, David apud REIS, Ana Carla Fonseca. Op. cit., p. 6.
7
Échanges internationaux d’une sélection des biens e services culturels, 1994-2003. Institut de statisque de l’UNESCO, 2005,
p. 12.
8
HELD, David & McGREW, Anthony. Prós e contras da globalização. [Trad.]. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
5

uma terceira abordagem sobre a questão:


a globalização não é um simples processo de homogeinização, mas de
reordenamento das diferenças e desigualdades sem suprimi-las: por isso,
a multiculturalidade é um tema indissociável dos movimentos
globalizadores. [...] Alguns interpretam este fato como o triunfo do
“pensamento único” e o fim da diversidade ideológica. Da minha parte,
prefiro considerar esta situação como um horizonte globalizante, mas
aberto, relativamente indeterminado. [... e isto porque] A cultura é um
processo de montagem multinacional, uma articulação flexível de partes,
uma colagem de traços que qualquer cidadão de qualquer país, religião e
9
ideologia pode ler e utilizar.

Nas páginas a seguir, propusemos uma discussão introdutória acerca dos


projetos, possibilidades e desafios que se perfilam para o Brasil diante desse
“horizonte” que pode ser representado pelo binômio globalização e cultura. O
marco cronológico fixado se impôs pelas importantes mudanças internacionais no
cenário das políticas culturais, como veremos mais adiante. A partir de uma
pesquisa empírica, buscou-se traçar um balanço do comportamento do País face
ao universo da economia da cultura sob uma perspectiva das relações
internacionais, considerando que essa nova realidade exige, cada vez mais, que os
especialistas das Relações Internacionais superem a visão tradicional acerca do
que avaliam como os únicos fatores constitutivos do núcleo central da área: o
político, o econômico e o militar, denominados de high politics.
Do ponto de vista teórico, a estrutura deste artigo repousa sobre três
pressupostos principais que guiaram nossa reflexão10: a interação entre a política
interna e externa11, a pertinência da dimensão nacionalista nos assuntos culturais, a
emergência do fator cultural nas relações internacionais12.

9
CANCLINI, Néstor García. Consumidores e cidadãos. Conflitos multiculturais da globalização. [Trad.]. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ, 4ª ed., 1999, pp. 11, 12 e 41.
10
LESSA, Mônica Leite e SUPPO, Hugo. O estudo da dimensão cultural nas Relações Internacionais: contribuições teóricas e
metodológicas In LESSA, Mônica Leite e GONÇALVES, Williams da Silva História das Relações Internacionais: teoria e
processos. Rio de Janeiro: EdUerj, 2007, pp. 223-250.
11
MERLE, Marcel. La politique étrangère. Paris: PUF, 1984.
12
MERLE, Marcel. Forces et enjeux dans les relations internationales. Paris: Economica, 1985.
6

Cultura e Globalização
Desde a rodada do Uruguai (1986-1994) instalou-se o debate acerca da
incorporação dos bens culturais aos acordos que constituiriam a OMC. Naquela
ocasião, a França liderou a oposição a essa proposta argumentando que a cultura
não era um produto, mas um bem, o principal elemento constitutivo da identidade e
dos valores da nação e, como tal, não deveria ser equiparada aos demais produtos
comercializáveis. As nações, defendia a França, deveriam manter a autonomia de exception
culturrelle
suas políticas públicas a fim de garantirem o acesso à maior diversidade cultural ou
diversidade
possível, seja de origem nacional ou estrangeira. Tal posição se chocava cultural

frontalmente com a proposta norte-americana de considerar os bens culturais


produtos, mercadorias como outras quaisquer e, portanto, passíveis de serem
reguladas pelas regras estipuladas pelo GATT e pela futura OMC. Ao fim da rodada
do Uruguai, a União Européia (UE) adotou as teses francesas e um compromisso
foi firmado: cada país decidiria sobre a liberalização, ou não, de seu mercado
cultural. Essa posição permitiu à UE conservar suas políticas nacionais e européias
de cotas de transmissão, na televisão e no rádio, e de financiamentos, para a
produção e a distribuição, sobretudo para a indústria cinematográfica. A “exception
culturelle”, como ficou então conhecida a discussão em torno do status da cultura
na futura OMC, foi posteriormente sucedida pela expressão “diversidade cultural”.
Com o surgimento da OMC, em 1994, foi instituído o Tratado Internacional
sobre Propriedade Intelectual (TRIPs)13, também chamado de Acordo Relativo aos
Aspectos do Direito à Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio
(ADPIC)14 Por esse acordo, pela primeira vez na história da humanidade, foram
introduzidas regras relativas à propriedade intelectual no sistema multilateral de
comércio, como havia sido proposto pelos EUA ao longo da rodada do Uruguai.
Instituiu-se, no âmbito dos TRIPs/ADPIC, a divisão da propriedade
intelectual em duas grandes categorias: propriedade industrial (patentes,
“trademarks”, desenhos industriais, indicações geográficas de origem) e direitos
autorais (criações estéticas em suporte físico ou digital: trabalhos artísticos e/ou
13
TRIPs: Trade Related Aspects of Intellectual Property.
14
ADPIC: Aspects des Droits de Propriété Intellectuelle qui touchent au Commerce.
7

literários, como romances, poemas, peças, filmes, trabalhos musicais, desenhos,


pinturas, fotografias, esculturas, desenhos arquitetônicos, e os direitos conexos: as
apresentações teatrais, musicais, danças, gravações e programas de rádios e
televisão). Ambas as categorias estando “submetidas” e “protegidas” pelo
TRIPs/ADPIC que estabelece as regras de comercialização para autores e
consumidores (países)15.
Esse cenário é mais antigo do que imaginamos, vem sendo montado desde
o final do século XIX, observa Pedro Paranaguá, quando um movimento liderado
por economistas europeus propôs a eliminação do sistema de patentes,
considerado então pouco “benéfico”, e a reação fundou o Escritório Internacional
Reunido para a Proteção da Propriedade Intelectual (BIRP, na sigla em francês).
Na década de 1950, novo movimento anti-sistema de patentes gerou, sem
resultados, audiências públicas no Congresso norte-americano. E novamente o
tema ressurgiu, em 1961, quando o Brasil apresentou à ONU, sem sucesso, uma
solicitação de revisão do controverso sistema de patentes.
Todavia, as fortes críticas ao sistema acabaram por se tornar, mais de 10
anos mais tarde, num relatório feito pela UNCTAD em prol do sistema de
patentes. De novo, no início da década de 1980 países em
desenvolvimento tentaram revisar o tratado internacional sobre patentes,
à época a Convenção da União de Paris. E o resultado foi: não houve
revisão. Muito pelo contrário, iniciou-se um contra-movimento vindo de
países desenvolvidos, que veio culminar na Rodada do Uruguai de 1986-
94, do GATT, que criou a OMC e seu anexo 1C, o TRIPs [...]. E foi uma
grande jogada dos países que mais se utilizam do sistema de
propriedade intelectual (segundo o Programa da ONU para o
Desenvolvimento – PNUD, menos de 1% das patentes do mundo são
realmente dos países em desenvolvimento) [...]. Todos que quisessem se
beneficiar do comércio global, incluindo exportação de produtos da
agropecuária, levavam junto o pacote chamado TRIPs.16

15
http://www.wto.org/french/thewto_f/whatis_f/tif_f/agrm7_f.htm
16
Entrevista de Paulo Paranaguá, coordenador no Brasil do Programa A2K (Access to Knowledge), em português Acesso ao
Conhecimento, publicada no site do MinC, http://www.cultura.gov.br, em 20/9/2006. No site httpp://www.culturalivre.org.br,
Paranaguá escreve ainda: “O termo "acesso a conhecimento" […] vem sendo amplamente utilizado por aqueles que
defendem um maior equilíbrio entre a proteção dos direitos de propriedade intelectual e o acesso à informação,
conhecimento, tecnologia, educação, medicamentos etc ... Assim, como podemos ver, apesar de as discussões relativas a
um Tratado sobre Acesso a Conhecimento receberem grande apoio de países do Grupo Africano, do Grupo Asiático, do
Grupo de países da América Latina e do Caribe (GRULAC) e do Grupo de Amigos do Desenvolvimento, o Grupo B, formado
por países ricos (principalmente União Européia, Estados Unidos, Canadá e Japão), tem exercido fortíssima pressão contra
tais discussões, tanto é que sequer o termo "acesso a conhecimento" eles querem que seja mencionado na minuta das
recomendações do PCDA para a Assembléia Geral.”
8

No século XX, a despeito da arqueologia do sistema de patentes evocada


por Paranaguá, os organismos internacionais que normatizam e administram essas
questões ganham realmente impulso a partir da década de 1960. A despeito de
todas os debates e polêmicas, em 1967 a Convenção de Estocolmo criou a
Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), órgão vinculado à ONU. A
OMPI, contudo, “não tinha por função acompanhar os cumprimentos dos acordos
firmados e nem possuía poderes para impor sanções aos países que os
desrespeitassem”. Devido ao seu formato, ela mostrou-se incapaz de garantir a
padronização internacional no tocante à propriedade intelectual e os países
passaram a adotar um protecionismo à la carte, segundo suas necessidades e
interesses. Diante das constantes pressões das grandes multinacionais de diversos
setores industriais, em prol da proteção de suas patentes, a OMPI passou a ter
seu campo de ação fixado na promoção do uso e na proteção da propriedade
intelectual, administrando 23 tratados internacionais sobre o assunto, mas deixando
os aspectos comerciais para a competência exclusiva da OMC17.
Na época da criação da OMPI, uma das dificuldades que se apresentava era
o fácil acesso a dados estatísticos sistemáticos e confiáveis que cobrissem os
assuntos culturais. A criação do Instituto de Estatística da UNESCO, em 1965, tinha
por função preencher essa lacuna. Mas inúmeros problemas impediram o pleno
desenvolvimento do organismo, o que sem dúvida comprometia qualquer iniciativa
de uma pesquisa de base empírica sobre a economia da cultura em escala
internacional. Segundo Benoît Godin, toda sorte de problemas teve de ser
enfrentado pela UNESCO neste projeto de criação de um serviço de estatística
próprio: rivalidades entre os organismos internacionais; resistências dos países
Membros em fornecer as informações solicitadas; falta de recursos para arcar com
as estruturas necessárias; ausência de metodologia e padronização na coleta e
análise dos dados, entre outros. Porém, Godin destaca principalmente três fatores
que explicam a pobreza dos índices estatísticos desses primeiros anos do Instituto:

17
No Brasil, a propriedade intelectual está disciplinada pelas leis 9279/96 (Marcas e Patentes), 9456/97 (Cultivares), 9609/98
(Software) e 9610/98 (Direitos Autorais), além de tratados internacionais, como as Convenções de Berna, (Direitos Autorais),
e de Paris, (Propriedade Industrial), e outros acordos como o TRIPs (Trade Related Intelectual Property Rights).
9

a disputa da OECD, líder na divulgação de indicadores de desenvolvimento, em


partilhar metodologia e informações; diferentes níveis de competência e estrutura
entre os países Membros; por fim, em 1984, a saída do principal contribuinte da
UNESCO, os EUA, sob a alegação da forte ideologização da Agência, gerou uma
sensível escassez de recursos18. Esse conjunto de fatores, durante muitos anos,
resultou em relatórios erráticos, de difícil circulação e com índices lacunares. O
primeiro relatório importante, mais completo e de fácil acesso foi publicado em
2005, do qual extraímos os dados aqui apresentados.
Esse instrumento estatístico revela claramente a concentração da produção
e do consumo de bens culturais em mãos dos países desenvolvidos; a supremacia
dos produtos norte-americanos na América do Sul em geral; a emergência da
China e a mudança dos padrões de consumo no mundo. Ora, podemos nos
perguntar, o quê explica o baixo índice de bens culturais sul-americanos nesse
mercado internacional? O quê tem sido feito para reverter essa situação ? Qual é a
situação do Brasil ?

Figura 1. Exportações de bens culturais de base por região, 2002.

Fonte: Echanges internationaux d’une sélection des biens et services culturels, 1994-2003. L’Institut de
Statisque de l’UNESCO. Paris: UNESCO, 2005, p. 21.

18
GODIN, Benoît. What’s so difficult about international statiscs. UNESCO and measerument of scientific and technological
activities. Project on the History and Sociology of S & T statistics. Working Paper Nº 13, 2001. http://www.csiic.ca/.
10

Mais uma vez, na década de 1960, mais precisamente em 1969, outro passo
importante foi dado pela UNESCO. Sob influência do ambiente político-cultural
francês19, que desde 1962, com André Malraux no Ministério da Cultura, havia
inaugurado uma nova era na política cultural da França, na qual a cultura passou a
ser um affaire d’Etat, a UNESCO propôs que os governos reconhecessem
explicitamente as ações culturais como intrínsecas às suas políticas públicas20.
Observa-se que desde essa época as atividade culturais21 passaram a receber
maior atenção e apoio por meio de políticas culturais mais elaboradas e
sistemáticas, até certo ponto amparadas em formulações e ações concertadas no
âmbito da própria agência da ONU.
É interessante registrar que desde os anos 1930 surgem os primeiros
estudos sobre os “descaminhos” da cultura no capitalismo industrial, mas essas
críticas aos diversos rumos e aspectos que assume a cultura nesse cenário não
detiveram o desenvolvimento de nenhuma de suas expressões e somente após a
Segunda Guerra, em 1947, foi publicado um texto seminal, e polêmico, A indústria
cultural – o esclarecimento como mistificação das massas22, e que a despeito das
críticas reinou soberano no cenário dos estudos de mass media até a década de
1980. Os dois conceitos centrais do texto de Adorno e Horkheimer, indústria cultural
e cultura de massa, serviram tanto para nomear esse setor da economia e,
genéricamente, seus “produtos”, quanto para oferecer o conceito operatório-chave
para a análise dessa realidade, ou dessa relação, arte-capitalismo, considerada
espúria pelos filósofos da Escola de Frankfurt23.

19
A sede da UNESCO, e de sua predecessora ao tempo da Liga das Nações, localiza-se em Paris.
20
REIS, Ana Carla Fonseca. Op. cit., pp. 139-140.
21
Teixeira Coelho define por política cultural “[...] uma ciência da organização das estruturas culturais, a política cultural é
entendida habitualmente como programa de intervenções realizadas pelo Estado, instituições civis, entidades privadas ou
grupos comunitários com o objetivo de satisfazer as necessidades culturais da população e promover o desenvolvimento de
suas representações simbólicas. Sob este entendimento imediato, a política cultural apresenta-se assim como o conjunto de
iniciativas, tomadas por esses agentes, visando promover a produção, a distribuição e o uso da cultura, a preservação e
divulgação do patrimônio histórico e o ordenamento do aparelho burocrático por elas responsável. Essas intervenções
assumem a forma de: 1. Normas jurídicas, no caso do Estado, ou procedimentos tipificados, em relação aos demais agentes,
que regem as relações entre os diversos sujeitos e objetos culturais; e
2. intervenções diretas de ação cultural no processo cultural propriamente dito (construção de centros de cultura, apoio a
manifestações culturais específicas, etc.) [...]. TEIXEIRA COELHO, José. Dicionário crítico de política cultural. São Paulo:
Iluminuras/FAPESP, 1997, p. 293.
22
ADORNO, Thodor W. E HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Fragmentos Filosóficos. [Trad.]. 1ª edição em
1947. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
23
Sem querer nos atardarmos sobre a polêmica em torno da visão de Adorno e Horkheimer sobre arte, alta cultura e cultura
popular, buscamos reter o que a proposta tem de original mas, também, polêmico: a afirmação da unidade do sistema. No
11

Em um outro registro, menos conhecido mas igualmente importante, tem-se


a publicação, também em 1947, do primeiro estudo consagrado à análise do papel
da cultura nas relações internacionais. Essa obra estabeleceu a existência, com
gradientes segundo os países, de insuspeitas políticas culturais externas e
demonstrou como a dimensão cultural é um elemento constitutivo da política
externa dos Estados e que, por sua vez, essa dimensão cultural representa, ao
mesmo tempo, um terreno de cooperação, de propaganda nacional, disputas,
rivalidades, afrontamentos. Isto é, a cultura passa a ser percebida, também, como
um vetor de penetração estrangeira e/ou de dominação24. Como ? Por meio das
políticas culturais dos Estados, da difusão de suas culturas nacionais que, ao fim,
beneficiaria a produção e venda de seus bens e serviços culturais, assim como a
política externa dos paises mais atuantes.
Figura 2. Importações de bens culturais de base, por região, 2002.

Fonte: Echanges internationaux d’une sélection des biens et services culturels, 1994-2003. L’Institut de
Statisque de l’UNESCO. Paris: UNESCO, 2005, p. 22.

entanto, a visão de Adorno e Horhkeimer é confrontada à de Benjamim que, ao contrário dos primeiros, pensa o “popular na
cultura não como a negação da cultura mas como experiência e produção”. Cf. A obra de arte na época de sua
reproductibilidade técnica, de Walter Bejamim IN LIMA, Luiz Costa (Org.). Teoria da cultura de massa. São Paulo: Paz e
Terra, 5ª edição, 2000, pp. 221-2256.
24
MCMURRY, Ruth Emily & LEE, Muna. The cultural approach- An other way in international relations. North Carolina: The
University Press of North Carolina, 1947.
12

A partir dos anos 1980, assiste-se ao gradual esgotamento do modelo


soviético, acompanhado do crescente triunfalismo do modelo liberal, e à expansão
e complexidade que adquire a economia da cultura. Surgem novas práticas que
englobam as atividades culturais e conexas, que operam como atividades
comerciais, mas, igualmente, novas categorias e novos conceitos em uma tentativa
de se redefinir e representar os aspectos e componentes desse universo em
formação. É nessa mouvance que desponta o conceito de indústrias criativas25,
surgido primeiramente na Austrália, inserido na condução das políticas definidas
pelo Department for Culture, Media and Sport (DCMS), do Reino Unido. Com a
criação do Creative Industries Unit and Task Force, em 1997, o Creative Industries
Mapping Document define as indústrias criativas como “atividades originadas da
criatividade, competências e talento individual, com potêncial para a criação de
trabalho e riqueza através da geração e exploração da propriedade intellectual”26.
Paradoxalmente, ou não, nos últimos anos, na Inglaterra, assistiu-se ainda a
um outro fenômeno: o surgimento do Creative Commons (CC). Os CC são licenças
de propriedade intelectual alternativas, pelas quais os autores de bens culturais
abdicam totalmente de seus direitos autorais ao optarem por um registro que
autoriza diferentes possibilidades de utilização de sua obra - desde as mais livres,
como a recriação total do que foi produzido, até possibilidades mais restritas, como
a simples liberação para uso não-comercial, significando assim uma reação às
práticas das grandes corporações da indústria cultural, notadamente da mídia.
Segundo Lawrence Lessig, um dos idealizadores das licenças CC, o crescimento
dessa nova modalidade de propriedade intelectual tem sido um sucesso mundial:
25
As indústrias criativas são definidas pelos formuladores de política cultural do MinC como: “As indústrias criativas,
independentemente de terem ou não finalidade cultural, colocam a criatividade e a cultura em seu processo de produção e
trabalho. São, por exemplo, as indústrias da moda, da música, do audiovisual, do design, da web, do software, da fotografia,
dos diversos conteúdos culturais, do lazer e do entretenimento, entre outras, que hoje representam aproximadamente 7% do
PIB mundial e que, em 2005, poderão movimentar até U$ 1,3 trilhão no mundo, segundo dados da ONU. Em 2000, esse valor
foi de U$ 831 bilhões. Documento sobre o Forum Internacional das Indústrias Criativas, realizado em Salvador (Bahia), em
2005, por iniciativa do Ministério da Cultura e da UNCTAD, disponível no site http://www.wooz.org.br/culturacriativas.htm.
Trata-se de uma transformação radical que o universo cultural vem realizando dentro da economia do mundo e que hoje é
pauta de grandes discussões internacionais. O conceito das Indústrias Criativas parte do princípio de que a integração da
cultura no processo produtivo gera inovação e diferenciação dos bens e serviços gerados, que terão maior valor quanto maior
for sua relação com a cultura local.”
26
“The creative industries are those that are based on individual creativity, skill and talent. They also have the potential to
create wealth and jobs through developing and exploiting intellectual property.”
http://www.culture.gov.uk/about_us/creative_industries/default.aspx. Ver também CAVES, Richard. Creative Industries.
Cambridge: Harward University Press, 2000.
13

em 2006 havia 12 milhões de “produtos” com licenças desse tipo e em 2008 esse
número subiu para 140 milhões27.
Atualmente, as licenças CC possuem representantes em mais de 60 países,
responsáveis por adaptar as formas da legislação formulada por Lessig para o
Direito local. No Brasil, Ronaldo Lemos, do Centro de Tecnologia e Sociedade da
Escola de Direito da FGV, é o responsável pela tradução das CC28, uma idéia,
segundo ele, que “busca flexibilizar os direitos autorais para produtos culturais” e
que nasceu da experiência dos "softwares livres", em que os criadores dos
programas "diziam para a sociedade que não se importavam que eles fossem
copiados e distribuídos". As CC, podem ser definidas como uma espécie de
“comunidade aberta que tomou a iniciativa de criar um arcabouço jurídico
alternativo pelo qual os produtores culturais, por iniciativa própria, disponibilizam
suas criações e realizam suas trocas e reapropriações”29. Porém, as licenças CC
não são consensuais nem entre os artistas, sofrem inúmeras pressões por parte
das grandes empresas multinacionais, da OMC e dos países de economia central.
Nesse sentido, o MinC deu um passo importante ao recepcionar o iSummit
06 Rio, em 2006. Na ocasião, o Ministro Gilberto Gil declarou em seu discurso de
abertura:
Ingenuidade minha? Sei muito bem do outro lado da moeda, das terríveis
relações de poder que fazem desaparecer originalidades culturais todos
os dias e impõem padrões de consumo em escala planetária visando
apenas o lucro fácil. Mas quero encarar de frente o desafio que a
indústria cultural global nos propõe, tanto que até hoje também trabalhei
dentro dessa indústria, tentando usar seu poder para meus objetivos
artísticos. Não sei se consegui criar o meu espaço dentro de suas leis.
Mesmo assim continuo cultivando esse estranho e provocador gosto de
juntar conceitos que pareciam estar destinados ficarem eternamente
separados. Como parabólica e camará. Gosto de ver o mundo ecoando
como uma cabaça de berimbau. Gosto de juntar diferenças.30

27
Entre os precursores desse movimento, destacam-se Jimmy Wales, criador da Wikipedia, Joi Ito, Jonathan Zittrain e, entre
outros, Lawrence Lessig, professor de Direito da Universidade de Stanford, e responsável pela formulação juridica das CC,
autor, entre outras obras, de Cultura Livre [Trad.]. São Paulo: Ed. Francis/Trama Universitário, 2005.
28
No Brasil, o site do CC encontra-se abrigado no
http://www.creativecommons.org.br/index.php?option=com_frontpage&Itemid=1.
29
http://jornalismo-onlinenp.blogspot.com/2006/11/o-que-creative-commons.html
30
http://www.cultura.gov.br/site/2006/06/22/isummit-06-gilberto-gil-reune-microsoft-e-creative-commons/
14

Com certeza, em sua justificativa pela defesa das licenças CC, o Ministro se
pautava no fato de que o Brasil sempre foi um grande importador de bens culturais:
em 1994 essas importações foram calculadas em US$ 165,9 milhões, enquanto as
exportações não passaram de US$ 56,9 milhões. Em 2003, a balança comercial
permanecia negativa mas com uma redução, devido sobretudo à perda de 1/3 do
valor das importações, que totalizaram US$ 105,7 milhões, enquanto o valor das
exportações permanecia nos mesmos patamares de 1994. Duas explicações são
avançadas para essa mudança: a diminuição do preço dos jogos eletrônicos (video
– games, sobretudo) em 50% do valor, entre 1994-2002; e a criação da zona livre
de Manaus, nos anos 1990, que aumentou a capacidade produtiva do país e
reduziu as importações. Contudo, cabe registrar, em toda a América do Sul,
segundo os dados da UNESCO, o México é o único país da região a figurar entre
os primeiros 20 importadores/exportadores de bens culturais em 2003. Ou seja, o
mercado da cultura, na América do Sul, continua pouco expressivo no cenário
internacional. Por que ?

Figura 3. Mercado de entretenimento e midias, por região, em milhões de dólares, em 2003.

Fonte: Echanges internationaux d’une sélection des biens et services culturels, 1994-2003. L’Institut de
Statisque de l’UNESCO. Paris: UNESCO, 2005, p. 23.
15

A concentração nos Estados Unidos, Europa e Japão da pesquisa


científica e das inovações em informações e entretenimento aumenta a
distância entre o Primeiro Mundo e a produção raquítica e desatualizada
das nações periféricas. Mesmo em relação à Europa, tem-se agravado a
desvantagem da América Latina, como se verifica em relação ao
desenvolvimento demográfico: nosso continente é responsável por 0,8%
das exportações mundiais de bens culturais tendo 9% da população do
planeta, ao passo que a União Européia, com 7% da população mundial,
exporta 37,5% e importa 43,6% de todos os bens culturais
comercializados (Garretón, 1994).31

Em 2003, 45,1% das importações brasileiras estavam concentradas em dois


países: EUA (28,8%) e Inglaterra (16,3%), os países da ex futura ALCA eram
responsáveis por apenas 14%. Porém, a posição dos EUA, que detinha 41,3% das
importações brasileiras em 1994, havia caido para 28,8% em 2003. No mesmo
período, o Japão caiu de 10,9% para 3,6%. Enquanto países como Argentina,
Chile, China, Inglaterra e Espanha tiveram maior participação.

Figura 4. Parceiros comerciais de importações de bens culturais de base do Brasil, 2003.

Fonte: Echanges internationaux d’une sélection des biens et services culturels, 1994-2003.
L’Institut de Statisque de l’UNESCO. Paris: UNESCO, 2005, p. 34.

Mas qual é a situação das exportações de bens culturais brasileiros ? Os


dados da UNESCO mostram que em 1994 a tendência das exportações brasileiras
se dirigia aos mercados regionais, 37% dos bens culturais brasileiros se digiam
para os países da ex futura ALCA, mas em 2002 esse índice caiu para 21%. Entre

31
CANCLINI, Nestor Garcia. A globalização imaginada. São Paulo: Iluminuras, 2003, p. 22.
16

1994 e 2003, o Japão cedeu a condição de primeiro exportador de bens culturais


dos produtos brasileiros (de 28,8% para 11,9%) para Portugal, e os EUA passaram
a ser o segundo consumidor desses produtos.

Figura 5. Parceiros comerciais de exportações de bens culturais de base do Brasil, 2003.

Fonte: Echanges internationaux d’une sélection des biens et services culturels, 1994-2003.
L’Institut de Statisque de l’UNESCO. Paris: UNESCO, 2005, p. 34.

Impasses da inserção do Brasil na indústria cultural (2001-2006)


Ausentes da UNESCO desde 1984, ao retornarem em 2003 os EUA se
depararam com a aprovação, ocorrida em novembro de 2001, da Declaração
Universal da UNESCO Sobre A Diversidade Cultural. Esse documento reconheceu,
pela primeira vez desde a criação da ONU, a diversidade cultural como “patrimônio
comum da humanidade” e sua “defesa como um imperativo ético concreto,
inseparável do respeito à dignidade do ser humano”. Em outubro de 2005, após
uma das maiores batalhas políticas de sua história, na 33ª Sessão da Conferência
Geral da UNESCO, foi aprovada a Convenção Sobre a Proteção e Promoção das
Diversidades das Expressões Culturais e Artísticas, que os EUA não assinaram.
Signatário da Convenção de 2005, o Brasil, no entanto, havia apoioado a Brasil foi contra
a Convenção
posição dos EUA ao ingressar para o Conselho de Serviços da OMC, em 2001, Sobre a
Proteção e
como determinou o Itamaraty. Dessa forma, o país acatou a visão de que certos Promoção das
Diversidades
bens culturais, mais precisamente as obras audiovisuais, são produtos das expressões
Culturais e
Artísticas da
UNESCO
17

comercializáveis e portanto devem ser submetidos às regras gerais vigentes na


OMC, que tratam da circulação de mercadorias.
Desde então, o Brasil tem sido demandado por uma série de parceiros a
respeito da compatibilidade entre duas posições vistas por muitos como
distintas. De um lado, a defesa, junto aos foro como a UNESCO, a rede
internacional dos Ministros da Cultura e a reunião de Ministros da Cultura
do Mercosul, do princípio da diversidade cultural; e, de outro, a atuação
no Conselho de Serviços da OMC, na qual fazemos pedidos para que
países outros permitam que suas populações tenham acesso à produção
audiovisual brasileira. Essas duas posturas seriam, como alguns vêem,
distintas ? O Ministério das Relações Exteriores do Brasil crê que podem
ser complementares. [... por acreditar que] não é possível adotar uma
posição que ignora o caráter de mercadoria da obra cultural. [...] O
produto audiovisual é visto pelo Brasil também como um bem
comercializável, inevitavelmente ele será discutido, de alguma forma, na
OMC. […] o princípio da liberalização progressiva (um dos princípios
básicos da OMC, bem mais lento e gradual do que a liberalização
indiscriminada propugnada pelos Estados Unidos) e com a autonomia
dos países para desenvolverem a diversidade cultural (com subsídios,
incentivos fiscais, leis anti-dumping e outras providências para impedir
homogeinizações). As posições brasileira e francesa nascem da mesma
inspiração, mas é necessário acordar pontos de identificação na forma de
materializar uma solução justa, que atenda concomitantemente a
legítimos interesses comerciais (como a exportação das telenovelas
brasileiras) e a de intercâmbio de culturas.32

Ao ratificar o reconhecimento da OMC como foro privilegiado para


normatização e regulamentação do comércio de bens culturais do país, sobretudo
do setor audiovisual, a galinha dos ovos de ouro da indústria cinematográfica
liderada pelos EUA, o atual governo brasileiro reafirmou sua expectativa de que a
OMC estabeleceria “regras supra-nacionais que permitam a real defesa da
diversidade cultural.” Todavia, para enfrentar o desafio da construção “de uma
estratégia correta para esse embate”, uma real batalha de “Davi frente a Golias”,
nas palavras de Orlando Senna, os países membros da OEA participaram, desde
1996, da elaboração de um Programa Interamericano de Cultura (PIC), nos marcos
da OEA. Posteriormente, foi criado o Processo de Reuniões Interamericanas de
Ministros e Máximas Autoridades da Cultura, órgão fundado em 2002 e vinculado
ao Departamento de Educação e Cultura da Organização. Naquela ocasião, foi

32
Pronunciamento do secretário Orlando Senna na XII Reunião da Conferência de Autoridades Cinematográficas de
Iberoamérica (CACI), em Óbidos (Portugal), em 22/6/2003: http://www.cultura.gov.br/politicas/identidades.
18

também criada a Comissão Interamericana de Cultura (CIC), um organismo


técnico-político de discussão, formado por representantes dos Ministérios da
Cultura e pelas Altas Autoridades de Cultura33. Para garantir a execução dos
projetos elaborados e aprovados dentro do espírito da CIC, e com base nas
propostas apresentadas pela Unidade do Desenvolvimento Social, da Educação e
da Cultura da OEA, foi criado um Forum Virtual para a comunicação dos delegados
dos países membros, e foi aprovada a criação de um fundo de US$190,833.3334.
Com o desenvolvimento dos trabalhos dos grupos envolvidos nas reuniões
ministeriais, uma segunda reunião do Processo de Reuniões Interamericanas de
Ministros e Máximas Autoridades da Cultura foi realizada no México, em 2004,
ocasião em que se estabeleceu três temas fundamentais de debate: a cultura como
geradora de crescimento econômico, emprego e desenvolvimento; desafios das
indústrias culturais; a cultura como instrumento de coesão social e combate contra
a pobreza. A terceira reunião, realizada em 2006, no Canadá, fixou quatro temas
para discussão: preservação e apresentação do patrimônio cultural; cultura e
criação de trabalho decente e superação da pobreza; cultura e realce da dignidade
e da identidade; a cultura e o papel dos povos indígenas.
Dessa forma, paralelamente à OMC, os países organizaram-se em blocos
regionais, abrindo outras vias de discussão e ação acerca do futuro da economia
da cultura. Por sua vez, o governo brasileiro afirmou reiteradas vezes que a sua
qualidade de membro da OMC e Parte do Acordo de Serviços não o impediu de
manter sua liberdade para alterar a legislação relativa à cultura, criar novos
organismos estruturais para o setor, como a ANCINAV35, ou alterar a cota de tela
reservada ao cinema nacional. Não obstante declarações tão encorajadoras por
parte do MinC, os especialistas têm alertado para os desafios e riscos em jogo:
A princípio a Assembléia Geral [da OMPI] deste ano deveria decidir
33
A CIC foi criada para garantir a cooperação horizontal entre os Estados, de forma a promover as relações culturais entre os
países participantes, contribuir para a proteção e desenvolvimento da diversidade cultural sustentável e informar, qualitativa e
quantitativamente, o Observatório Interamericano de Políticas Culturais de forma subsidiar as Reuniões Interamericanas dos
Ministros da Cultura e das Altas Autoridades da Cultura do Conselho Interamericano de Desenvolvimento Integral (CIDI), bem
como a Comissão Executiva Permanente do Conselho Interamericano do Desenvolvimento Integral (CEPCIDI). Desde 2002,
encontra-se também em estudo estratégias para a construção dos Sistemas de Informação Cultural (CIS), com atividades
compartilhadas entre os países.
34
http://www.sedi.oas.org/dec/espanol/.
35
Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual.
19

baseada em propostas feitas ao longo dos últimas dois anos, mas na


última reunião, de junho, houve tentativa dos EUA, em conjunto com a
União Européia, o Grupo B (de países desenvolvidos) [...] de tirar da
agenda vários itens propostos pelo Grupo de Amigos do
Desenvolvimento, que inclui o Brasil, Argentina, África do Sul, Egito, Irã,
dentre outros, e que recebem maciço apoio do Chile e da Índia. Por
conseqüência, o último grupo mencionado se negou a continuar nas
discussões, argumentando que havia tentativa de se esvaziar a Agenda.
Muitos outros assuntos serão tratados na Assembléia, tais como o
Tratado sobre Patentes (SPLT), a questão dos conhecimentos
tradicionais e proteção a material genético, dentre outros. [...] Muito
provavelmente deverá haver barganha entre as áreas em discussão. Ou
até mesmo a utilização de um assunto para bloquear o outro. Talvez a
própria Agenda possa ser utilizada para bloquear assuntos que
confrontam os interesses dos países em desenvolvimento. [...] O
Broadcasting Treaty, ou Tratado sobre Radiodifusão, do jeito como está
proposto, prevê a proteção dos “sinais” de transmissão, ou seja, a
transmissão será protegida, independentemente do conteúdo transmitido.
[...] Por exemplo, caso um filme seja licenciado por uma licença Creative
Commons que permite a cópia e a divulgação, desde que para fins não
comerciais, com a existência do Tratado a transmissora passará a ter
direito sobre o sinal transmitido; passará a controlar o sinal, mesmo o
conteúdo sendo livre para divulgação, ou seja, os filmes que estiverem
licenciados por licenças Creative Commons, bem como todas as obras
que estiverem em domínio público, não poderão ser transmitidas sem
autorização da Radiodifusora.36

Por outro lado, do ponto de vista da política cultural do Brasil, somente


recentemente, a partir de 1995, um acordo firmado entre o MinC e o Ministério das
Comunicações passou a destinar grandes verbas publicitárias das empresas
públicas de telecomunicações a projetos culturais. Da mesma forma, o BNDES
também passou a apoiar o setor cultural por meio de patrocínio com recursos
incentivados a projetos nas áreas do patrimônio histórico, por exemplo. Entre 1995
e 2005 um investimento de cerca de R$100 milhões possibilitou a revitalização de
97 monumentos tombados em todo o país, além de acervos, cinema e música.
Segundo dados do banco, de 1995 a 2005, no âmbito da Lei do Audiovisual, o
BNDES apoiou 304 filmes com recursos que atingiram mais de R$ 106 milhões,
fazendo do banco o segundo maior patrocinador do cinema nacional. Sem contar o
apoio financeiro reembossável, outra modalidade de incentivo, destinado às
editoras (entre 20 a 40 milhões de reais anuais), ao setor de software (94 milhões)
36
PARANAGUÁ, Pedro. Op. cit.
20

e salas de projeção cinematográficas37.


Evidentemente, a Lei Rouanet (1991) e a Lei de Audiovisual (1993), ambas
de incentivo fiscal, destinadas a promover o desenvolvimento do setor cultural que,
a despeito de algumas projeções pessimistas, tem oferecido uma razoável taxa de
retorno, não solucionam todos os problemas ligados ao acesso à cultura. Alguns
desafios nacionais devem ser enfrentados para que se possa atingir índices mais
expressivos e mais de acordo com o número populacional do Brasil. Nesse sentido,
dados do MinC revelaram números espantosos sobre o consumo da cultura no brasileiros não
consumem
país: apenas 13% dos brasileiros freqüentam alguma vez no ano uma sala de cultura

cinema; 92% nunca freqüentaram um museu; 93,4% jamais freqüentaram uma


exposição de arte; 78% nunca assistiram a um espetáculo de dança; mais de 98%
dos municípios não possuem salas de cinema, teatros, museus ou espaços
culturais multiuso; o brasileiro lê em média 1,8 livros per capita/ano (contra 2,4 na
Colômbia e 7 na França, por exemplo); 73% dos livros estão concentrados nas
mãos de apenas 16% da população nacional; dos cerca de 600 municípios que
nunca receberam uma biblioteca, 405 estão no Nordeste e apenas 2 no Sudeste38.
No entanto, se bem planificada, a política cultural do segundo país mais populoso
do continente poderá contribuir para o desenvolvimento sustentável de um
promissor mercado sul-americano:
Uma pesquisa da PricewaterhouseCoopers, por exemplo, aponta a
emergência do mercado latino-americano. Em 2005, cerca de U$71
bilhões foram gastos com entretenimento, contra os U$39 bilhões
registrados em 2000. [..] o setor cresce a uma taxa superior a 12% ao
ano, bem acima dos 7% registrados nos Estados Unidos. Em suma, o
mercado de entretenimento é um fato econômico relevante, uma vez que
dita as regras do funcionamento da economia na atualidade.39

Embora deva ser destacado aqui que certas características relevantes da


política cultural brasileira representem um asfixiante gargalo para o crescimento do
setor em tela: por exemplo, os altos preços cobrados ao público consumidor de
entretenimento cultural; a lógica dos investimentos públicos para o setor, que

37
http://www.bndes.gov.br/cultura.
38
Dados disponíveis no aplicativo Mais Cultura/MinC. httpp//:www.cultura.gov.br.
39
BERTINI, Alfredo. Economia da cultura. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 11.
21

diminuem o montante total do orçamento do MinC para drenar recursos para as


empresas privadas por meio da Lei Rouanet ou da Lei do Audiovisual, sem
qualquer diminuição dos preços praticados para o público pagante:
Do modo como as leis foram elaboradas, é permitida a dedução de 100%
do calor investido no projeto cultural. Em alguns casos, a empresa pode,
até mesmo, obter 125% de ressarcimento do valor investido; no pior
deles, recebe 100% do valor, constituindo um investimento a risco zero.
Adicionalmente, tem a certeza de obter benefícios de ganho de imagem e
divulgação na mídia. Sem contrapartida privada, a verba disponível aos
projetos culturais é aquela que já pertencia aos cofres do erário e que,
portanto, poderia ser aplicada na realização desses projetos, sem fazer
propaganda gratuita do nome das empresas. Moralmente, a questão é
ainda mais insustentável, visto que, em última instância, por trás da verba
aplicada está o contribuinte comum. Em uma situação extrema, esse
contribuinte estará pagando para viabilizar uma peça de teatro que será
divulgada como tendo sido realizadas graças à participação de um
consórcio de empresas, apesar de seus custos terem recaído
essencialmente sobre o contribuinte. O Estado reconhece não ser sua
atribuição definir o que é interesse da sociedade, mas delega
completamente essa decisão aos sabores do mercado.40

Se, além dos problemas internos, considerarmos os embates mundiais em


torno da economia da cultura, devemos considerar mais seriamente os desafios
denunciados pela França, nas décadas de 1980-1990:
Para o South Center, organização intergovernamental dos países em
desenvolvimento, dois fatores principais levaram os países
industrializados a conduzir as negociações sobre a propriedade
intelectual no âmbito de uma organização de comércio. Primeiramente,
enquanto os países em desenvolvimento se comprometem com a OMC a
liberalizar o comércio, os países desenvolvidos conseguem se valer, por
meio de patentes e outros instrumentos protecionistas, da exportação de
produtos que incorporam inovações, agindo de modo monopolista. Em
segundo lugar, um acordo referendado pela OMC prevê a retaliação
comercial por rompimento de cláusula. Em outras palavras, embora a
OMC se considere uma organização que leva em conta a situação
específica dos países em desenvolvimento, o TRIPs acaba por refletir os
padrões de propriedade intelectual dos países industrializados, inclusive
na definição das formas de expressão cultural passíveis de proteção de
direitos autorais, sugerindo uma visão monolítica de cultura. Assim, as
normas de leis de direitos autorais estabelecidas baseiam-se fortemente
na criatividade individual, em detrimento das produções culturais de
comunidades que favorecem a criação coletiva ou que tradicionalmente
realizam trabalhos anônimos.41

40
REIS, Ana Carla Fonseca. Op. cit., pp. 179-180.
41
REIS, Ana Cristina Fonseca. Op. cit., p. 193.
22

Uma das lutas do MinC é justamente democratizar o acesso à cultura. Para


isso, o Ministério considera imprescendível aumentar seu orçamento anual para,
pelo menos, 1% da arrecadação fiscal federal, patamar indicado pela UNESCO
como minimamente necessário para viabilizar o acesso ao conhecimento, à
informação e ao entretenimento cultural às populações pobres dos países em
desenvolvimento. Essa orientação, destacam os responsáveis do MinC, reconhece
a centralidade da cultura no processo de desenvolvimento social. Contundo, em
2002, o orçamento do Ministério foi fixado em 0,36% da arrecadação federal,
evoluindo, em 2008, para apenas 0,52%. Aliado ao seu modesto orçamento, que
poderia ser minimizado se a Lei Rouanet e a Lei do Audiovisual fossem
reformuladas de forma a garantir o barateamento do acesso aos entretenimentos
culturais que o Estado financia, o MinC deve ainda fazer face aos imperativos da
Lei de Direitos Autorais, por vezes mais draconianos que os condicionantes da
TRIPs42.
Por outro lado, ao analisar o consumo da cultura na América do Sul, Néstor
Canclini aponta cinco grandes questões a serem consideradas na formulação das
políticas culturais dos países da região: a maioria das mensagens e bens culturais
recebidos pelas nações não é mais produzida em território nacional; a maioria dos
investimentos dos Estados no setor ainda concentra-se na tradicional tríade: artes
cultas, preservação de patrimônios monumentais e preservação do folclore, com
poucos investimentos nas indústrias culturais de massa; as grandes empresas
privadas transnacionais são as principais detentoras dos grandes meios de
comunicação de massa, influindo assim na alienação cultural e política do público;
as ações culturais dos organismos internacionais e aquelas originadas das reuniões
dos ministros da cultura reproduzem a visão da tradicional tríade cultural a ser
priorizada. Canclini assinala ainda que o consumo cultural, nas grandes cidades
sul-americanas, da alta cultura escrita, das artes plásticas e de música erudita

42
A lei de Direitos Autorais 9610, de 10/2/1998, no capítulo referente aos Direitos Conexos, estipula em 70 anos após a morte
do autor o prazo legal para que sua obra seja considerada de domínio público. Enquanto o prazo exigido pela TRIPs é de 50
anos. No Brasil, ainda que um livro esteja esgotado por 30 anos é proibida a sua reprografia. Em outros países, como a
Alemanha, por exemplo, basta que um livro esteja esgotado por 2 anos para que sua reprografia seja legalmente possível.
23

atinge apenas 10% da população43.


Como vimos, não basta a aprovação da Convenção sobre a Diversidade
Cultural, que indubitavelmente significa “um belo golpe na reificação capitalista”, por
representar um instrumento jurídico internacional contra a liberalização “selvagem”
dos bens e serviços culturais, para garantir-se o desenvolvimento sustentável da
economia da cultura. No caso do Brasil, a complexidade da relação nacional com
sua cultura é o primeiro e principal desafio a ser enfrentado pela sociedade e pelos
responsáveis pela política cultural para que o setor garanta, efetivamente, um
desenvolvimento sustentável e à altura de suas possibilidades. É necessário que
todos os atores nacionais representem plenamente, e em harmonia entre si, os
interesses nacionais, como fez no passado o Itamaraty por meio de sua diplomacia
cultural, que apostou na música popular para promover a imagem do país44. Porque
em tempos de globalização, a cultura não apenas permanece como estruturante da
identidade dos povos mas é, também, a área da indústria que mais cresce no
mundo:
A pergunta que nos movimenta hoje é saber como a cultura pode
colaborar no crescimento econômico e num novo padrão de
desenvolvimento. No fim do ano passado, o IBGE apresentou ao Brasil
como as atividades culturais movimentam hoje uma receita líquida de
R$156 bilhões de reais o que indica uma participação do setor cultural de
7,9% na receita líquida total do país. O IBGE revela com esse estudo que
a cultura corresponde ao quarto ítem de consumo das famílias brasileiras,
superando os gastos com educação e abaixo apenas da habitação,
alimentação e transporte. Existem cerca de 290 mil empresas culturais no
Brasil responsáveis por uma massa salarial de R$17,8 bilhões de reais.
[…] O Brasil é o 10º maior mercado consumidor de música do mundo
tendo movimentado a cifra de US$ 265 milhões no ano de 2005. É
importante frisar que 76% desse valor foi despertado por conteúdos
brasileiros e por músicas nacionais. O disco, como mercadoria, chega a
55% dos mais de 5.550 municípios brasileiros que possuem lojas de
disco e vendem Cds e Dvds. A força deste mercado interno repercute na
inserção da música brasileira em outros países. No ano de 2005,
exportamos R$ 28 milhões em vendas de discos e R$ 5 bilhões em
aparelhos de áudio, fonográficos e de vídeo. Essas cifras tornariam-se
mais expressivas e detalhadas caso contabilizássemos a renda auferida
em shows e espetáculos dos músicos brasileiros em outros países. No

43
CANCLINI, Nestor Garcia. Op. cit., pp. 235-237.
44
CRESPO, Flávia Ribeiro. O Itamaraty e a cultura brasileira: 1945-1964. Dissertação de mestrado, UERJ, 2006. Orientador:
Mônica Leite Lessa.
24

caso do Brasil, esse poder é parte realidade, e outra parte dele é ainda
potência, é devir.45

CONCLUSÃO

No início deste trabalho, que é parte de uma pesquisa iniciada em junho


passado com previsão de conclusão para março de 2011, formulamos uma
hipótese, precária, sobre a centralidade da cultura na política de Estado do Brasil.
Acreditamos que aí se encontre um ponto importante da intersecção entre a política
interna e externa que esclarece a pouca inserção do País na economia da cultura
internacional. Nesse sentido, duas constatações, aparentemente paradoxais, se
evidenciaram sobre o estado da cultura no Brasil: primeiramente, a deficiência das
estruturas e equipamentos públicos e o baixo consumo dos bens e serviços
culturais; em segundo lugar, o potencial de um mercado que os dados do próprio
MinC, acima referidos, representa como o quarto índice de consumo dos
brasileiros. Mas que consumo é esse?
O consumo de livros pelas famílias brasileiras concentra-se na classe
alta: 90% das classes A e B têm mais de 10 livros em casa, enquanto na
classe C essa quantidade corresponde a 66% e, nas classes D e E, a
42%. […] Os gastos com cultura, revela a pesquisa, são maiores para
atividades “dentro de casa” – 85% dos brasileiros preferem atividades
caseiras de música, vídeo, televisão e leitura do que gastar com
atividades “fora do domicílio”. Apenas 17,8% das pessoas destinam
gastos para práticas culturais (teatro, cinemas, circos, shows e museus,
por exemplo) e divertimento (zoológicos, discotecas, etc). Na avaliação
do Ipea, audiovisuais como cinema, TV a cabo e equipamentos
consomem mais o dinheiro das famílias brasileiras do que atividades
relacionadas à leitura e à escrita. Em 2002 […] elas destinaram à cultura
R$ 31,9 bilhões, ou 3% do seu total de gastos.
Entre esses gastos, as despesas anuais com audiovisuais lideram e
chegam a R$ 13 bilhões, ou 41,2%. A compra de televisores consome R$
4 bilhões, ou 33,3%: A televisão é a rainha dos consumos de lazer, com
presença quase universal em casa […]. Cerca de 85% das pessoas das
classes A e B dizem sempre assistir à TV, acompanhados por 88% da
classe C e 75% das classes D e E.
Já as despesas relacionadas à leitura, como livros e imprensa,
representam 15,6% do total e ocupam a segunda posição. Os gastos com
revistas e jornais representam 68,8%, contra 11,2% com os livros.46

45
Discurso do ministro da Cultura, Gilberto Gil, em 02/10/2007: httpp//:www.cultura.gov.br
46
CRUZ, Eliane Patricia. http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2007/06/24/materia.2007-06-24.6708591146/view.
25

E como entender a idéia de que a cultura é “inextricável e central” ao


desenvolvimento econômico face aos números fornecidos pelos organismos
públicos brasileiros ?
Em vez de focalizar o conteúdo da cultura – ou seja, o modelo de
melhoria (segundo Schiller ou Arnold) ou da distinção (segundo
Bourdieu), tradicionalmente aceitos, ou a sua antropologização mais
recente, como todo um meio de vida (Williams), segundo o qual
reconhece-se que a cultura de qualquer um tem valor – talvez seja melhor
fazer uma abordagem da cultura do nosso tempo, caracterizada como
uma cultura de globalização acelerada, como um recurso. [...] uma
reserva disponível (Bestand) [...] dirigida para a melhoria sociopolítica e
econômica, ou seja, para aumentar sua participação nessa era de
envolvimento político decadente, de conflitos acerca da cidadania [...] e
do surgimento daquilo que Jeremy Rifkin [...] chamou de “capitalismo
cultural47.

A partir da proposta de Yúdice se pode repensar a razão dos diferentes usos


(econômico, político, sociológico ou terapêutico) que adquiriu a cultura nos últimos
tempos, mas, também, melhor entender as razões do baixo grau de investimentos
públicos que favorece às atividades artísticas e culturais sem “fins lucrativos”, e
assegura, assim, sua “condição de possibilidade continuada”:
O setor das artes e da cultura alega que pode resolver os problemas dos
Estados Unidos: melhorar a educação, abrandar a rixa racial, ajudar a
reverter a deterioração urbana através do turismo cultural, criar
empregos, diminuir a criminalidade, e talvez até tirar algum lucro. Essa
reorientação das artes está sendo realizada por seus administradores.48

A perspectiva acima evocada, não é exclusiva dos EUA mas seu resultado
não responde, contudo, com o mesmo grau de eficiência nos diferentes países 49.
Ao contrário, ela tende a refletir, também nesse setor da economia, o fenômeno da
“concentração na sua produção e consumo”, reproduzindo as “divisões e

47
YÚDICE, George. A conveniência da cultura. Usos da cultura na era global. Belo Horizonte: Humanitas, 2004, pp. 25-26.
48
Ibid., pp. 29-30.
49
O administrador cultural Alfredo Bertini, é contundente ao escrever: “Afinal, do ponto de vista econômico, o que está sendo
gerado na realização de cada jogo das diversas competições esportivas ? E o que dizer a respeito da produção de livros,
filmes, Cds, peças teatrais, exposições de arte e outras manifestações artístico-culturais ? Será que uma atividade que
movimenta cerca de US$ 4 trilhões, dos quais aproximadamente 20% são decorrentes de mais de 700 milhões de
viagens/ano, não tem expressão econômica suficiente para merecer a devida atenção da sociedade ? De fato, se essa
sociedade for analisada com as lentes das políticas públicas, por exemplo, basta observar o enorme desprezo político em
relação à cultura, ao turismo e ao esporte, muito bem visualizado pelos seus quinhões orçamentários, em qualquer que seja a
esfera governamental. Eis aí um aspecto de demérito econômico ao qual são submetidos esses setores.” BERTINI, Alfredo.
Op. cit., pp. 9-10.
26

exclusões”, próprias da economia capitalista. Gráficamente a situação pode ser


resumida da seguinte forma:
Figura 6. Exportações de bens culturais de base, em milhões de dólares, 2002.

Fonte: Echanges internationaux d’une sélection des biens et services culturels, 1994-2003. L’Institut de
Statisque de l’UNESCO. Paris: UNESCO, 2005, p. 20.

Figura 7. Importações de bens culturais de base, em milhões de dólares, 2002.

Fonte: Echanges internationaux d’une sélection des biens et services culturels, 1994-2003. L’Institut de
Statisque de l’UNESCO. Paris: UNESCO, 2005, p. 20.

Para terminar, cabe reler o alerta proferido por Canclini, ao final de Cidadãos
e Consumidores, publicado em 1995:
27

Segundo um registro do Instituto para a América Latina, há mais de cinco


mil grupos de educação, produção cultural e comunicação independentes
em nossa região. Louvamos a sua ajuda na formação e organização de
setores populares em defesa dos seus direitos, na documentação das
suas condições de vida e de sua produção cultural. Mas suas ações são
de alcance local e não podem atuar como sucedâneos do que os Estados
deixam de fazer. Estes grupos independentes quase nunca chegam aos
cenários de comunicação de massa, não influindo nos hábitos culturais e
no pensamento da maioria.
A desarticulação entre os Estados, as empresas e os organismos
independentes faz com que, em vez de um desenvolvimento multicultural
representativo dos paises latino-americanos, a segmentação e a
desigualdade nos consumos se acentue, e a produção endógena e seu
papel na integração internacional se empobreçam. Nos últimos anos, a
redução dos investimentos públicos e as fracas iniciativas privadas nos
colocam diante de um paradoxo: promove-se um maior comércio entre os
paises da América Latina, e destes com as metrópoles, justamente
quando produzimos menos livros, menos filmes e menos discos.
Impulsiona-se a integração no momento em que temos menos para
trocar, quando a pauperização dos salários diminui o consumo das
maiorias.
A situação é ainda mais dramática no campo das tecnologias avançadas
e das auto-estradas da comunicação: satélites, computadores, fax e os
demais meios que administram a informação e as tomadas de decisão e
inovações. A subordinação dos países latino-americanos se tornará mais
aguda com a eliminação dos poucos subsídios ao desenvolvimento
tecnológico local e das tarifas para a produção estrangeira pelos acordos
de livre comércio. Uma maior dependência cultural e científica das
tecnologias comunicacionais de ponta, que demandam altos
investimentos financeiros mas ao mesmo tempo geram inovações mais
velozes, nos tornará mais vulneráveis aos capitais transnacionais e a
50
orientações culturais geradas fora da região.

50
CANCLINI, Nestor Garcia. Op. cit., pp. 236-237.

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