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Economia da

cultura e
indústrias
criativas
––
Políticas públicas,
evidências e modelos
A política pública de economia da cultura é cheia
de nuances, digressões, caminhos percorridos, re-
tornos estratégicos e, sobretudo, diferenças glo-
bais que esbarram em desafios similares.
Política pública é feita, entre outras coisas, de
um conjunto de decisões articuladas que visam a
um objetivo comum, isto é, socialmente pactuado,
a partir de estratégias bem definidas. Esses ele-
mentos devem ser construídos com base em narra-
tivas e valores claros; daí então devem ser tomadas
decisões pautadas em caminhos ditados pelos seus
beneficiários dentro de um projeto. O momento
brasileiro atual no campo da cultura é ímpar, dado
que se verifique um processo histórico de pouca
estabilidade no domínio das políticas de economia
da cultura.
A estabilidade e a refundação da política de eco-
nomia da cultura e indústrias criativas no Brasil
são a tônica do segundo tomo desta coleção. Pela
primeira vez traduzido para o português, você
encontrará um conjunto de obras selecionadas de
autores paradigmáticos do campo e uma extensiva
revisão teórica representativa sobre a massa crí-
tica formadora das políticas públicas de economia
da cultura em diversos países, além de reflexões
estruturantes sobre a América Latina, com enfo-
que no Brasil.
Políticas públicas, impacto, novos modelos, po-
líticas culturais globais e indicadores de bem-estar
são palavras-chave do presente volume. Este tomo
(assim como os outros dois que completam a série)
representa uma leitura importante e esclarecedora
para estudantes, professores, profissionais de arte
e de cultura e formuladores de políticas públicas.
LEANDRO VALIATI
organizador e editor
Economia
da cultura
e indústrias
criativas
Tomo 2
––
Políticas
públicas,
evidências
e modelos
9 Introdução
LEANDRO VALIATI

13 Capítulo 1
Um “acordo setorial” e um precariado
criativo: moldando a política de economia
criativa no Reino Unido desde 2010
MORAG SHIACH

33 Capítulo 2
Inovações na política cultural e no
desenvolvimento na América Latina
GEORGE YÚDICE

61 Capítulo 3
A reforma do sistema cultural: cultura,
criatividade e inovação na China
MICHAEL KEANE E ELAINE JING ZHAO

83 Capítulo 4
Arquétipos de política cultural:
o lado ruim e o lado bom
CAROLE ROSENSTEIN

109 Capítulo 5
Quatro modelos de indústrias criativas
JASON POTTS E STUART CUNNINGHAM
131 Capítulo 6
Economias criativas na África:
compreensão e apoio
ROBERTA COMUNIAN, BRIAN J. HRACS
E LAUREN ENGLAND

159 Capítulo 7
A cidade criativa sob as lentes da pandemia:
o (in)sustentável valor da cultura
VALENTINA MONTALTO

171 Capítulo 8
Que indicadores são necessários para incluir
a cultura na agenda político-econômica?
HASAN BAKHSHI

183 A história recente da política brasileira


de economia da cultura revisitada
ENTREVISTA DE CLÁUDIA LEITÃO,
GUILHERME VARELLA, CLÁUDIO LINS
DE VASCONCELOS, MANSUR BASSIT E
ALDO VALENTIM A LEANDRO VALIATI
LEANDRO VALIATI é professor e pesquisador na área de Eco-
nomia da Cultura e Indústrias Culturais no Brasil e no Reino
Unido. Por intermédio de sua posição acadêmica, teve a opor-
tunidade de desempenhar papel importante na construção e
execução da política para a economia da cultura e indústrias
criativas de todas as gestões do Ministério da Cultura entre
2010 e 2018.
Introdução
LEANDRO VALIATI

Este tomo aborda casos clássicos e inovadores de políticas públicas


de economia da cultura em um momento bastante desafiador para
a atuação do Estado na promoção do desenvolvimento mundial em
setores variados.
Especificamente com relação aos setores cultural e criativo, após
uma intensa crise e a desarticulação de formatos conhecidos causa-
das pela pandemia, é hora de reorganizar o sistema para um novo
normal que dependa fortemente de indução via políticas públicas.
O mundo está enfrentando algo ainda mais vigoroso que o choque de
consumo pós-fordista ou o modelo de indústrias criativas do Reino
Unido no final dos anos 2000, dado que, além da profusão de novos
modelos, experimenta-se o aumento drástico no uso de tecnologias
de informação e comunicação para o consumo de práticas culturais.
Mais do que isso, o planeta passou a reconfigurar (ainda que por um
curto período) elementos centrais do motor do consumo capitalista.
Durante os meses de isolamento social, percebemos que a ciência e
a cultura são fatores que proporcionam saúde mental e física, bem-
-estar, liberdade e, portanto, desenvolvimento.
O tomo 2 de Economia da cultura e indústrias criativas, através do
conjunto diverso de seus autores, tem por objetivo promover uma
visão histórica, processual e voltada para o futuro sobre escolhas e
direções da política pública de cultura contemporânea.
Para repensar a construção da política econômica da cultura, é
necessário visão ampla e estruturante sobre grandes segmentos
teóricos em política cultural. Nessa linha, Jason Potts e Stuart
Cunningham (Queensland University of Technology) revelam
quatro importantes modelos que podem descrever e orientar as

Introdução 9
políticas de indústrias criativas; Carole Rosenstein (George Ma-
son University) trata de arquétipos da política cultural enfatizando
suas facetas positivas e negativas; e George Yúdice (University of
Miami) aborda inovações na política cultural e no desenvolvimento
na América Latina.
Uma política cultural depende de tempo, espaço e local. Não
parece haver reprodução pura e simples de modelos, mas casos de
outros países podem nos fazer refletir sobre quais rotas assumire-
mos para o nosso próprio país. Nesse sentido, Morag Shiach (Queen
Mary University of London) trata de impactos da conhecida polí-
tica para indústrias criativas na Inglaterra em seu texto “Um ‘acordo
setorial’ e um precariado criativo: moldando a política de economia
criativa no Reino Unido desde 2010”; abordando o continente afri-
cano, Roberta Comunian (King’s College London), Brian J. Hracs
(University of Southampton) e Lauren England (King’s College
London) escrevem o capítulo “Economias criativas na África: com-
preensão e apoio”; e Michael Keane (Curtin University) e Elaine
Jing Zhao (University of New South Wales) discorrem sobre a
China em “A reforma do sistema cultural: cultura, criatividade e
inovação na China”.
Uma política consolidada depende de temas contemporâneos –
tais quais saúde mental, cidades criativas e mensurações – que pos-
sam indicar a cultura como o centro de políticas públicas globais,
como as que Valentina Montalto (Joint Research Centre) e Hasan
Bakhshi (Creative Industries Policy and Evidence Centre) apresen-
tam em seus respectivos textos: “A cidade criativa sob as lentes da
pandemia: o (in)sustentável valor da cultura” e “Que indicadores são
necessários para incluir a cultura na agenda político-econômica?”.
Este tomo se dedica sobretudo a construir pontes em políticas de
economia da cultura – pontes que ligam distintos países e variados
matizes teóricos, tradições e visões, entre outros. Uma das mais im-
portantes e estratégicas pontes nesse processo é a que faz a ligação
entre a teoria, o impacto e a tomada de decisão. Por isso, entende-
mos que as reflexões de gestores em âmbito federal, responsáveis
diretamente pela área de indústrias criativas e economia da cultura
da história recente do Brasil, constituem a melhor forma de se contar
essa história enquanto pensamos na sua reconstrução. Por isso, você,
leitor, também encontrará neste livro uma entrevista com Cláudia
Leitão, Guilherme Varella, Cláudio Lins de Vasconcelos, Mansur
Bassit e Aldo Valentim.

10 Leandro Valiati
Conhecer – e respeitar – o passado e seu momento histórico, en-
tender o presente e suas potencialidades, olhar o mundo e projetar a
arquitetura de um novo futuro: é disso que a política pública de eco-
nomia da cultura no Brasil precisa urgentemente. Tendo isso como
pano de fundo, esperamos que esta publicação possa contribuir com
alguns insights, ajudando na construção de novos tempos e atores.
Boa leitura!

Introdução 11
MORAG SHIACH é professora de História da Cultura na School
of English and Drama da Queen Mary University of London,
Reino Unido, onde também dirige o Centre for the Creative
and Cultural Economy (Network). Publicou amplamente so-
bre história da cultura, teoria da cultura e economia criativa.
Na última década, liderou uma série de grandes projetos de
pesquisa em colaboração com parceiros de economia criativa.
Um “acordo setorial” e
um precariado criativo:
moldando a política de
economia criativa no
Reino Unido desde 20101
MORAG SHIACH

Este artigo analisa o desenvolvimento de políticas para a economia


criativa no Reino Unido a partir de 2010. Ao fazê-lo, procura desta-
car sua diversidade em diferentes partes do território, bem como a
natureza contestada dessas políticas, que muitas vezes são vistas de
fora como homogêneas. Assim, desafia-se a ideia de que existe um
“modelo britânico” que pode ser facilmente exportado e aplicado em
diferentes contextos nacionais.
A análise tem início a partir de duas imagens distintas.2A pri-
meira delas é uma representação visual dos benefícios econômicos
gerados pelas indústrias criativas, com foco no aumento do valor
agregado bruto (vab), no crescimento das exportações criativas
e no número crescente de empregos criados pela economia cria-
tiva. Tanto o conteúdo quanto o estilo visual dessa representação
foram desenvolvidos para facilitar a compreensão e para aumentar
seu poder persuasivo sobre governos e legisladores. Esses resumos
focados nos benefícios da economia criativa sustentaram o recente
desenvolvimento de um “acordo setorial” para o setor como parte
da estratégia industrial do Reino Unido. Esse acordo surgiu a par-
tir de dois contextos mais amplos: o estabelecimento da economia
criativa como objeto de política e principal impulsionador do cres-
cimento econômico pós-industrial a partir do final dos anos 1990;
e o desenvolvimento de uma estratégia industrial para enquadrar o
investimento público, em uma época em que a expansão do comér-

Um “acordo setorial” e um precariado criativo: moldando


a política de economia criativa no Reino Unido desde 2010 13
cio global surgiu como prioridade pós-Brexit e a divisão econômica
entre Londres e as regiões e nações do Reino Unido também estava
se tornando uma questão política premente.
A segunda imagem retrata um prédio em Hackney Wick, uma
Zona de Empreendedorismo Criativo [Creative Enterprise Zone
(cez)] na parte leste de Londres. Esse ex-pub está no centro de
uma área que recentemente passou por níveis rápidos e signifi-
cativos de gentrificação (embora atualmente esteja sofrendo os
impactos sociais, culturais e econômicos agudos da pandemia
de covid-19). O edifício está atualmente coberto de arte de rua,
incluindo as chamativas inscrições “Enquanto isso, os malucos
do leste de Londres decoram um prédio” e “Do lixo para o luxo”,
evocando forte senso de lugar, o poder disruptivo da prática ar-
tística e um sentido irônico das “transformações” provocadas pela
regeneração/gentrificação. A imagem destaca ainda a natureza
precária dos espaços e do trabalho criativo em Londres e a vul-
nerabilidade de seus bairros mais criativos diante da gentrificação,
o que representa um desafio específico para o desenvolvimento
de formas justas e equitativas de crescimento baseadas na econo-
mia criativa.
Através dessas duas imagens, podemos detectar a tensão entre
o ambicioso “acordo setorial” para a economia criativa impul-
sionado pelo crescimento, publicado em 2019, e os impactos da
subjacente natureza precária do trabalho na economia criativa,
tensão com a qual o presente artigo tem uma preocupação maior.
Ao considerar isso, o acordo se concentrará em quatro áreas de
análise distintas, mas relacionadas. Primeiro, examinará os fato-
res que moldaram o desenvolvimento de uma estratégia industrial
em todo o Reino Unido no ano de 2017 e o papel específico da
economia criativa dentro disso. Em seguida, considerará as ca-
racterísticas distintivas que configuraram o desenvolvimento das
políticas de economia criativa pelos governos descentralizados da
Escócia e do País de Gales, antes de analisar o papel das políticas
de um governo local para a economia criativa através do exemplo
do instrumento de política de cezs da Greater London Authority
(gla). Finalmente, discutirá as consequências da precariedade de
grande parte do trabalho dentro da economia criativa para a for-
mulação de políticas efetivas.

14 Morag Shiach
A ECONOMIA CRIATIVA E A ESTRATÉGIA INDUSTRIAL

Um manifesto cultural independente, Create the Future (Partido Tra-


balhista, 1997), prometeu reorientar [a política cultural] para “desem-
penhar um papel importante na regeneração econômica do nosso país”.
O Novo Trabalhismo estava deixando evidente desde o início seu foco nos
benefícios econômicos da cultura.

david hesmondhalgh et al., 20153

Em Culture, Economy and Politics: the Case of New Labour (2015), o


grupo de pesquisadores escreveu de forma contundente sobre a im-
portância das relações estabelecidas entre a identificação de um setor
designado como “economia criativa” e as ambições de crescimento
econômico dentro das políticas do (Novo) Partido Trabalhista, a
partir do final dos anos 1990. A associação entre o investimento nas
indústrias criativas e o crescimento econômico provou sua resiliên-
cia nos anos seguintes, de modo que o desenvolvimento da estraté-
gia industrial, a partir de 2017, baseou-se explicitamente em muitas
das evidências e argumentos desenvolvidos no final dos anos 1990
e início dos anos 2000. Como Martin Smith argumentou recente-
mente, “a embalagem das indústrias criativas […] no final da década
de 1990 foi, de qualquer forma, um exercício de marketing político
incrivelmente bem-sucedido. Tornou-se também uma exportação
significativa do Reino Unido”.4
A estratégia de economia criativa apresentada em Industrial Stra-
tegy: Building a Britain Fit for the Future (2017)5 pode ser entendida
através da sequência exemplificada pelas publicações aqui citadas:
desde um mapeamento altamente influente da economia criativa
no Reino Unido, realizado pela Nesta em 2008 (Beyond the Crea-
tive Industries),6 passando pelo Manifesto for the Creative Economy, de
2013,7 também produzido pela Nesta, até, finalmente, a própria In-
dustrial Strategy, publicada em 2017 e desenvolvida como resposta às
mudanças nas relações geopolíticas, mais especificamente às novas
condições e oportunidades para o comércio global no mundo pós-
-Brexit, o que pode ser visto em um comunicado de imprensa em
janeiro de 2017:

A primeira-ministra Theresa May usará sua primeira reunião re-


gional do Gabinete nesta manhã (23 de janeiro) para lançar pro-
postas de uma estratégia industrial moderna a fim de aproveitar

Um “acordo setorial” e um precariado criativo: moldando


a política de economia criativa no Reino Unido desde 2010 15
os pontos fortes da Grã-Bretanha e enfrentar suas fraquezas sub-
jacentes para garantir um futuro como uma nação competitiva
e global.8

A capa da publicação de 2017 estampa raios de luz (ou de energia)


vermelhos, brancos e azuis, emanados dramaticamente de um mapa
do Reino Unido. Os vetores dos raios podem ser entendidos como
rotas comerciais globais. O documento procura articular um sen-
tido de identidade nacional, bem como traçar um plano econômico
ambicioso. Ele aborda vários setores econômicos tidos como áreas
fortes no Reino Unido, incluindo a economia criativa que, como
as citações a seguir demonstram, é levada em conta de acordo com
seu histórico e com seu potencial em termos de crescimento rápido,
inovação, colaborações entre ensino superior e economia criativa,
tecnologia imersiva e clusters criativos.

• “As indústrias criativas de nível mundial do Reino Unido estão


crescendo duas vezes mais que a economia como um todo” (p. 104);
• “A colaboração entre as universidades e a indústria é essencial
para a entrega da Industrial Strategy” (p. 85);
• “O Industrial Strategy Challenge Fund permitiu o investimento
em clusters criativos em todo o Reino Unido” (p. 203);
• O governo do Reino Unido já se comprometeu com o “inves-
timento transformador em tecnologias imersivas pioneiras, como
realidade virtual e realidade aumentada” (p. 203).

O papel da economia criativa na estratégia industrial encontrou


maior expressão com a publicação do Industrial Strategy: Creative
Industries Sector Deal 9 em 2018, que foi estabelecido pelo Creative
Industries Council, órgão composto por representantes do governo
e de empresas criativas, órgãos setoriais e organizações de pesquisa:
“Criado para ser uma voz para as indústrias criativas, o conselho se
concentra em áreas onde existem barreiras para o crescimento do se-
tor, como acesso a financiamento, habilidades, mercados de exporta-
ção, regulamentação, propriedade intelectual (pi) e infraestrutura”.10
O texto se inicia com uma introdução de Greg Clark (então se-
cretário de Estado para Negócios, Energia e Estratégia Industrial),
Matt Hancock (então secretário de Estado para Digital, Cultura,
Mídia e Esporte) e Nicola Mendelsohn (vice-presidente do Face-
book para a Europa, Oriente Médio e África, e copresidente do Crea-
tive Industries Council). Eles defendem que:

16 Morag Shiach
As indústrias criativas – incluindo cinema, tv, moda e design,
artes, arquitetura, editoras, publicidade, videogames e artesa-
nato – são uma força indiscutível na nossa economia; na verdade,
elas estão no coração da vantagem competitiva do país. De Harry
Potter a Grand Theft Auto, da Saatchi & Saatchi à Savile Row, as
indústrias criativas respondem por 92 bilhões de libras de valor
agregado bruto (vab), dois milhões de empregos e estão cres-
cendo duas vezes mais rápido do que a economia como um todo.
(2018, p. 2)

O objetivo desse “acordo setorial” é aprimorar ainda mais as áreas


fortes identificadas, concentrando-se no que se constatou como as
principais questões de finanças, habilidades, mercados de expor-
tação, regulamentação, propriedade intelectual e infraestrutura.
O acordo foi anunciado em março de 2018, conforme a seguinte
manchete: “Tornando a Grã-Bretanha o melhor lugar do mundo
para as indústrias criativas prosperarem”.11 As principais políticas
do acordo incluem o incentivo vinte milhões de libras ao ano a fim
de lançar um fundo de desenvolvimento cultural para que parcerias
locais (fora de Londres) possam concorrer a investimentos; 58 mi-
lhões de libras para “usufruir do poder das tecnologias imersivas”; o
desenvolvimento de novos códigos de prática em relação aos direitos
autorais; a melhoria do acesso ao financiamento para empresas de
alto crescimento; a promoção de um Conselho de Comércio e In-
vestimento para alcançar um aumento de 50% nas exportações de
indústrias criativas até 2023; e o lançamento de um programa de car-
reiras criativas liderado pela indústria. O valor total do investimento
proposto é de 150 milhões de libras, algo que, embora claramente
bem recebido pelo setor criativo, representa uma fração muito pe-
quena do investimento de 20 bilhões de libras associado à estratégia
industrial como um todo.

DELEGAÇÃO DA POLÍTICA CULTURAL: ESCÓCIA

Até agora, este artigo concentrou-se na formulação de políticas


no Reino Unido em geral, que tende a ser o que é mais conhecido
e influente internacionalmente – aquela “exportação significativa
do Reino Unido” à qual Martin Smith se referiu. Mas a política
cultural no Reino Unido não é moldada apenas em um nível ou em
um lugar; há desafios importantes e interessantes para o idioma

Um “acordo setorial” e um precariado criativo: moldando


a política de economia criativa no Reino Unido desde 2010 17
e as prioridades do “acordo setorial” a serem encontrados em ou-
tros contextos.
A Escócia alcançou um nível significativo de autoridade descen-
tralizada nos últimos vinte anos, desde que a Lei da Escócia (1998)
criou o Parlamento Escocês e o Executivo Escocês. Um momento-
-chave em que a Escócia articulou uma política cultural distinta foi
a promulgação da Lei da Reforma dos Serviços Públicos, em 2010,
que estabeleceu a Creative Scotland, um órgão não departamental
do governo escocês que assumiu as funções da Scottish Screen e do
Scottish Arts Council. A fusão dessas duas organizações aproxi-
mou empresas mais comercialmente focadas no setor artístico em
toda a sua diversidade, o que gerou tensões e polêmicas signifi-
cativas nos anos que se seguiram, à medida que novas estratégias
e políticas culturais foram desenvolvidas por esse órgão híbrido.
A Creative Scotland tornou-se o órgão público nacional voltado
para as artes, para o cinema e para as indústrias criativas, e tam-
bém era responsável pelo desenvolvimento e promoção do talento
criativo na Escócia.
Os primeiros anos da Creative Scotland foram marcados por
controvérsias e contestações significativas. Por exemplo, em 2012,
“mais de cem artistas escoceses, incluindo três vencedores do Prêmio
Turner, um vencedor do Prêmio Booker e um vencedor do Prêmio
Costa [escreveram] uma carta aberta protestando contra o ‘aprofun-
damento do mal-estar’ na Creative Scotland”.12 Duas das principais
preocupações expressas no texto relacionavam-se ao que os signatá-
rios da carta viam como uso excessivo de “jargão de negócios” pela
Creative Scotland e à ênfase excessiva no valor comercial. A carta
dizia ainda que:

Escrevemos para expressar nossa consternação com a crise em


curso na Creative Scotland. Uma série de notícias de grande
destaque em vários meios de comunicação é apenas um sinal
do aprofundamento do mal-estar dentro da organização, cujas
consequências confrontam aqueles de nós que trabalham todos
os dias na área de artes na Escócia. Rotineiramente, vemos to-
madas de decisão mal concebidas, linguagem ambígua e falta de
empatia e de respeito pela cultura escocesa. Observamos uma
organização com um estilo de gestão confuso e intrusivo casado
com um éthos corporativo que parece ter sido desenvolvido para
pôr artistas contra artistas e empresas contra empresas na busca
de recursos.

18 Morag Shiach
Em resposta a tais críticas, a Creative Scotland procurou rearticular
sua estratégia de forma a enfatizar objetivos comuns e apresentar
uma compreensão mais diversificada de valor.
Em 2014, a Creative Scotland publicou novo plano previsto para
dez anos, chamado Unlocking Potential, Embracing Ambition: a Shared
Plan for the Arts, Screen and Creative Industries, 2014-24.13 O plano ar-
ticulou uma “visão compartilhada” ambiciosa:

Queremos uma Escócia onde todos valorizem e celebrem ativa-


mente as artes e a criatividade como o coração de nossas vidas e
do mundo em que vivemos; que amplie continuamente sua ima-
ginação e as formas de fazer as coisas; e onde as artes, o cinema e
as indústrias criativas estejam confiantes, conectadas e prospe-
rando. (2014, p. 13)

A ênfase nos conceitos de “confiança” e “conexão” é aqui apresentada


no contexto da afirmação dos supostos valores compartilhados do ci-
nema e das indústrias criativas, respondendo, ao que parece, àquelas
críticas anteriores ao uso excessivo do “jargão de negócios” e à visão
estreita de valor associada aos primeiros anos da Creative Scotland.
Em 2016, houve a publicação de A Strategy for Creative Scotland,
que representou um envolvimento distinto com a natureza e o
potencial das indústrias criativas na Escócia. A título de exemplo,
ofereceu-se novo mapeamento da economia criativa no país, de-
fendendo a importância de “dividir e reorganizar alguns setores em
categorias mais adequadas, adicionando setores fora da definição do
Department for Digital, Culture, Media and Sport (dcms) […] para
que se tornassem mais relevantes para a Escócia daquela época”.14 As
taxonomias nunca são neutras, e as decisões sobre o que é incluído
como “indústria criativa” têm consequências significativas para a po-
lítica. A Strategy de 2016 destacou as atividades criativas e setores da
indústria vistos como particularmente importantes para a Escócia,
modificando de forma expressiva a conhecida taxonomia do dcms.15

Um “acordo setorial” e um precariado criativo: moldando


a política de economia criativa no Reino Unido desde 2010 19
Tabela 1

dcms: Governo escocês:

Setores

1. Publicidade e marketing 1. Publicidade


2. Arquitetura 2. Arquitetura
3. Artesanato 3. Artes visuais
4. Design: produto, desenho gráfico e moda 4. Artesanato
5. Cinema, tv, vídeo, rádio e fotografia 5. Moda e têxteis
6. ti, software e serviços de informática 6. Design
7. Editoras 7. Artes cênicas
8. Museus, galerias e livrarias 8. Música
9. Música, artes cênicas e visuais 9. Fotografia
10. Filme e vídeo
11. Jogos de computador
12. Rádio e tv
13. Escrita e editoração
14. Patrimônio
15. Software/editoração eletrônica
16. Educação cultural

Fonte: elaboração própria.

Além da taxonomia revisada das indústrias criativas, o relatório tam-


bém desenvolveu nova abordagem para a articulação e medição de
valor, baseando-se no conceito de triple bottom line [tripé da susten-
tabilidade]. Argumentou-se que as empresas criativas

têm a capacidade de gerar forte valor para outros setores empresa-


riais – estando direta ou indiretamente ligadas ao turismo, educa-
ção, saúde, energia e alimentação – e são muitas vezes constituídas
por uma forte ética social […] Esse éthos define um novo tipo de
setor com rico sistema de micronegócios que são rápidos e for-
mados por forte compreensão do interesse da comunidade, bem
como capacidade comercial, muitos trabalhando para um triplo
resultado econômico, social e cultural. (Apêndice dois, 2016, p. 9)

A ideia de triple bottom line é emprestada da estrutura contábil de-


senvolvida na década de 1990 com o fim de capturar formas de valor
social, ambiental e financeira, associada inicialmente ao trabalho de

20 Morag Shiach
John Elkington.16 Na discussão da política cultural em desenvolvi-
mento na Escócia, ela é usada para destacar os impactos interliga-
dos associados a três formas diferentes de valor: cultural, social e
econômico. Todos os três tipos de valor foram explicitamente men-
cionados por legisladores, organizações culturais e financiadores
escoceses nos últimos anos. Por exemplo:

Esses valores se identificam com a estratégia econômica do go-


verno da Escócia, o apoio aos “4 Is” da economia (Investimento,
Inovação, Crescimento Inclusivo e Internacionalismo), e tam-
bém com a abordagem triple bottom line da Creative Scotland –
entendendo que os negócios criativos têm […] um impacto no
valor econômico, social e cultural.17

Os parceiros estabelecerão uma metodologia comum para medir o


sucesso do triple bottom line no impacto dos serviços públicos sobre
a viabilização do desenvolvimento cultural, social e econômico.18

Aqui, as organizações culturais e criativas enfatizam tanto suas con-


tribuições para a realização da abrangente estratégia econômica da
Escócia, quanto sua alegação de gerar formas mais amplas de valor
cultural e social.
Em novembro de 2019, o governo escocês emitiu uma declaração
política sobre as indústrias criativas.19 Isso ofereceu uma visão do papel
que as indústrias criativas poderiam desempenhar no futuro da Escócia,
citando explicitamente a importância do triple bottom line, ao mesmo
tempo que ligava a economia criativa à inovação e ao crescimento:

Nossa visão é a de que as indústrias criativas devem desempenhar


papel central para que a Escócia tenha um futuro criativo. A fim de
alcançar tal objetivo, trabalharemos em direção à formação de uma
Escócia aberta a negócios para as indústrias criativas, em que mode-
los de negócios sustentáveis, com visão de futuro, iniciativas e ideias
ambiciosas, inovadoras e pioneiras sejam nutridas e desenvolvidas.
[…]
Nosso objetivo é criar os meios para que as indústrias criativas
cresçam de forma sustentável e com resiliência, realizando pa-
drões de crescimento não lineares e o triple bottom line dos valores
econômico, social e cultural. As empresas criativas devem ser im-
pulsionadoras do crescimento econômico e incentivadas a serem
experimentais, dinâmicas, ousadas e confiantes. (2019, p. 4)

Um “acordo setorial” e um precariado criativo: moldando


a política de economia criativa no Reino Unido desde 2010 21
A linguagem usada pode estar visando ao consenso, porém pro-
duz uma nota desconfortável e até mesmo chocante, pois justapõe
termos como “aberta a negócios”, “iniciativas inovadoras”, “cres-
cimento”, “dinâmicas” e “ousadas”, ao lado da evocação da impor-
tância de “padrões de crescimento não lineares” e das contribuições
potenciais da economia criativa para a realização do “triple bottom line
dos valores econômico, social e cultural”. Para alguns comentaristas,
a Creative Scotland ainda está moldando suas políticas com foco em
impactos econômicos mensuráveis:

Esta época viu o surgimento de formas tecnocráticas de gover-


nança baseadas em dados quantitativos, indicadores econômicos
e preços de mercado. […] Quando o Partido Nacional Escocês
(snp) chegou ao poder, eles também foram enfeitiçados, abra-
çando essa política de todo o coração com a criação da Creative
Scotland. […] Nas últimas duas décadas, testemunhamos as
transformações neoliberais em curso de nossas práticas culturais
em atividades econômicas.20

Apesar da ambição declarada pela Creative Scotland de reunir as


indústrias criativas com foco comercial e na diversidade de práticas
artísticas e de seu compromisso de olhar os impactos sociais e cultu-
rais, bem como econômicos, a alegação aqui é que a política cultural
da Escócia está de fato trancada dentro de uma estrutura neoliberal
de prestação de contas e de métricas que constituem uma “forma
tecnocrática de governança”.

DELEGAÇÃO DA POLÍTICA CULTURAL: PAÍS DE GALES

Tal como a Escócia, o País de Gales viu o aumento relevante dos seus
poderes descentralizados nos últimos vinte anos, desde a aprovação
da Lei do Governo do País de Gales (1998), que levou à criação de
uma Assembleia Nacional. Iniciativas recentes e significativas re-
lacionadas à política cultural incluem a publicação de um relatório
realizado para o governo galês em 2014, intitulado Culture and Po-
verty: Harnessing the Power of the Arts, Culture and Heritage to Promote
Social Justice in Wales.21 A análise que fundamentou o relatório foi
encomendada pelo ministro da Cultura e Esportes do País de Gales
em deliberação com os ministros das Comunidades e Combate à Po-
breza, da Habitação e Regeneração e da Educação e Competências,

22 Morag Shiach
e foi liderada pela baronesa Andrews – anteriormente consultora
de políticas de Neil Kinnock e também presidente do English He-
ritage –, que foi nomeada par vitalícia em 2000. A orientação para
a análise foi “recomendar maneiras de como os órgãos culturais e
patrimoniais poderiam trabalhar de forma próxima para ampliar o
acesso, a valorização e a participação na cultura a fim de contribuir
para a redução da pobreza” (p. 3). O relatório abrange uma série
de questões relacionadas às barreiras ao acesso à cultura e à arte; ao
envolvimento da comunidade com a arte e a cultura; à educação e
ao treinamento; às habilidades culturais; e à infraestrutura cultural.
Ele ainda argumenta o seguinte:

Desenvolver maneiras de tirar o máximo proveito dos bens


culturais e patrimoniais como parte de uma economia criativa
e competitiva e de uma comunidade resiliente é um problema
que afeta outros países. Mas apenas no País de Gales, até onde
se sabe, um governo colocou essa questão no cerne do desafio
para encontrar um caminho mais amplo para a justiça social para
todos. (2014, p. 8)

A estreita ligação entre o bem-estar cultural, econômico e social


tornou-se uma vertente distinta na formulação de políticas galesas
nos últimos anos e foi construída a partir da conceituação da cultura
como algo coletivo e local, e não a partir da compreensão da econo-
mia criativa como algo global ou caracterizado pela rápida criação de
empregos e crescimento econômico. De fato, o relatório pontua que

a verdadeira riqueza econômica de um país é seu povo. Consi-


derar o impacto econômico da cultura e do patrimônio a curto
prazo, mas não o benefício econômico e social a longo prazo, do
papel que desempenham no enriquecimento da vida das pessoas
e no estímulo ao seu desejo pela aprendizagem e educação, é in-
suficiente e inaceitável. (2014, p. 9)

A ênfase sobre cultura e pobreza na formulação de políticas de longo


prazo e também sobre a importância de desenvolver abordagens
políticas que aliviem a pobreza e proporcionem bem-estar para as
gerações futuras ecoa em relatórios galeses subsequentes e em suas
principais legislações, incluindo o relatório do governo galês intitu-
lado Light Springs through the Dark: a Vision for Culture in Wales (2016)
e a Lei do Bem-Estar das Gerações Futuras (2015).

Um “acordo setorial” e um precariado criativo: moldando


a política de economia criativa no Reino Unido desde 2010 23
O relatório começa com a usual declaração de que “as indústrias
criativas são um mecanismo vital da nossa economia. Elas contribuem
com empregos e riqueza”.22 O prefácio de Ken Skates (secretário de
Gabinete da Economia e Infraestrutura) evoca ainda o legado crítico e
político de Raymond Williams, citando seu ensaio de 1958 “Culture is
Ordinary” (p. 4) para argumentar que os valores da economia criativa
precisam ser concebidos de forma mais ampla, e as abordagens polí-
ticas devem ser flexíveis o suficiente para oferecer diversos benefícios
por meio do envolvimento com a criatividade e com a cultura.
A Lei do Bem-Estar das Gerações Futuras23 incorpora tal pen-
samento nas políticas públicas, uma vez que “exige que os órgãos
públicos no País de Gales pensem no impacto de longo prazo de suas
decisões, trabalhem melhor com as pessoas, comunidades e entre
si e previnam problemas persistentes como pobreza, desigualda-
des na saúde e mudanças climáticas”. A lei identifica sete objetivos
principais de bem-estar, incluindo “um País de Gales mais saudável”,
“mais igualitário”, “com comunidades coesas” e “de cultura vibrante e
língua galesa próspera”. Assim como a ideia do triple bottom line apa-
receu rapidamente em uma série de documentos da política cultural
escocesa, a responsabilidade sobre o bem-estar das gerações futuras
passou a ser central para as políticas culturais no País de Gales. As-
sim, o Corporate Plan 2018-2023, do Arts Council of Wales,24 afirma:

Queremos trabalhar com você para melhorar o bem-estar e a vida


de nossa nação através da arte. Ao investir na arte, você pode
alcançar todos os sete objetivos da Lei do Bem-Estar das Gera-
ções Futuras. Juntos, podemos fazer a diferença para as futuras
gerações do País de Gales.

O objetivo principal da política cultural é aqui apresentado em rela-


ção ao bem-estar futuro, mas é interessante refletir sobre as formas
como essa prioridade é enquadrada no documento global.
A título de exemplo, a capa do relatório em questão mostra um
espaço criativo que se identifica muito mais com os ambientes de tra-
balho compartilhados, que se tornaram centrais para as empresas de
economia criativa, do que com imagens artísticas baseadas na comu-
nidade: é o espaço pós-industrial que fala de regeneração urbana ao
se referir a tradições folclóricas através de uma estrutura de carroça
que domina o lado direito da fotografia. Estilística e afetivamente,
o documento se situa, de modo precário, entre dois paradigmas da
economia criativa.

24 Morag Shiach
GOVERNO LOCAL E POLÍTICA DE ECONOMIA CRIATIVA:
O CASO DE LONDRES

Em Londres, que recebe uma proporção maior de investimentos cul-


turais do que outros locais do Reino Unido, verifica-se uma alta con-
centração de negócios de economia criativa. Entretanto, há também
uma diferença gritante no gasto público per capita destinado à cultura
em toda a cidade, particularmente se comparados os bairros centrais
e periféricos. Aqueles que vivem em bairros do centro da cidade se
beneficiam de um investimento cerca de dez vezes maior em ativi-
dades culturais em comparação com o que se investe em bairros da
periferia. A essa desigualdade gritante podemos acrescentar muitas
outras questões que tornam desafiadora a sustentabilidade de espa-
ços e negócios criativos em Londres. Eis o contexto para a recente
iniciativa da política de cez da Greater London Authority.
O Creative Enterprise Zones Prospectus (2017),25 que está vinculado
à “Good Growth Strategy”, da gla, descreve os objetivos da política
de cez da seguinte forma:

• “Proporcionar meios para ajudar os artistas e as empresas criati-


vas a criarem raízes nas áreas que ajudaram a regenerar” (p. 5);
• “Com base em Zonas de Empreendedorismo Criativo, serão ofe-
recidos incentivos para reter e atrair artistas e novos negócios criativos
para determinada área, oferecendo espaço de trabalho acessível e per-
manente, suporte a negócios e habilidades, diminuição das taxas para
negócios, banda larga super-rápida e um plano local pró-cultura” (p. 8);
• “As zonas serão clusters de produção criativa e atenderão às ne-
cessidades locais” (p. 8);
• “As cezs serão sustentadas por políticas dentro do Plano de
Londres, pelo qual ‘obrigações de planejamento podem ser usados
para garantir espaço de trabalho acessível com aluguéis mantidos
abaixo dos valores de mercado’” (p. 8).

Ao longo de 2018, vários bairros de Londres apresentaram suas pro-


postas, incluindo planos de negócios detalhados, destinados a áreas es-
pecíficas a serem designadas como cezs; seis localidades conseguiram
obter essa atribuição no início de 2019 – a distribuição geográfica está
indicada na figura 1, a seguir. Embora seis localidades tenham sido bem-
-sucedidas, envolveram-se no processo sete administrações locais, além
da London Legacy Development Corporation (lldc), que tem a res-
ponsabilidade de planejar o local do legado olímpico e áreas adjacentes.

Um “acordo setorial” e um precariado criativo: moldando


a política de economia criativa no Reino Unido desde 2010 25
Figura 1: Bairros com Zonas de Empreendedorismo Criativo
em 2019

Fonte: londonmap360.com/london-boroughs-map.

26 Morag Shiach
Os principais dados relacionados aos sete bairros são apresentados
na tabela abaixo:

Tabela 2

Bairro População Taxa de Negros, asiáticos Preço Ranking de


emprego % e minorias médio do pobreza
(nacional = 76,2) étnicas % imóvel (1 = mais pobre)

(nacional = 14)

Croydon 386.500 75,4 49,9 £ 300.000 102

Hackney 274.300 69 43,6 £ 485.000 7

Tower 304.000 70,4 54 £ 415.000 27


Hamlets

Haringey 278.000 71,3 38,2 £ 432.500 37

Hounslow 274.200 74,2 51,6 £ 355.000 95

Lambeth 328.900 78,5 41,5 £ 450.000 42

Lewisham 303.400 75,9 47,4 £ 352.000 35

Fontes: gla London Borough Profiles e Ministério da Habitação, Comunidades e Governo.


Local: English Indices of Deprivation, 2019 (Disponível em: www.gov.uk/government/statistics/
english-indices-of-deprivation-2019).

Com exceção de um caso, em todos os outros os níveis de emprego


das cezs estão abaixo da média nacional, e a proporção de residentes
de comunidades negras e de minorias étnicas se situa acima da mé-
dia nacional. Em um índice de pobreza que abrange 317 administra-
ções inglesas locais, todos os bairros de cez são registrados no terço
mais carente. Finalmente, os preços dos imóveis nessas localidades
estão bem acima da média do Reino Unido, que é de 310 mil libras,
e especialmente altos em Hackney, onde o índice de pobreza é mais
acentuado. Tais estatísticas capturam os desafios da ordem da des-
vantagem e da gentrificação a serem enfrentados pelas cezs por meio
de investimentos em criatividade, espaços de trabalho e habilidades.
Como parte do processo de licitação para atribuição da cez, cada
uma das localidades deveria definir suas prioridades e propostas de
contribuições para aumentar a sustentabilidade econômica e os im-
pactos sociais. As seis cezs bem-sucedidas identificaram os seguin-
tes objetivos e prioridades:

Um “acordo setorial” e um precariado criativo: moldando


a política de economia criativa no Reino Unido desde 2010 27
• Croydon:26 desenvolver Croydon como cidade da música; entre-
gar um programa de empreendedorismo cultural; subsidiar o acesso
a espaços criativos para jovens; oferecer diminuição das taxas de ne-
gócios para startups criativas; fornecer suporte empresarial persona-
lizado para empresas criativas.
• Hackney/Tower Hamlets/lldc:27 garantir que os poderes de
planejamento ajudem a desenvolver um pipeline de espaço de trabalho
acessível; ajudar a população local a desenvolver habilidades criativas;
oferecer aprendizagens criativas, estágios e suporte empresarial per-
sonalizado como parte do compromisso com o crescimento inclusivo.
• Haringey:28 enfocar moda e fabricação de móveis; honrar o
patrimônio de criação e produção de Tottenham, expandindo a dis-
ponibilidade de espaços de trabalho criativos e investindo em habi-
lidades e treinamento para que toda a comunidade se beneficie do
crescimento criativo previsto.
• Hounslow:29 aproveitar o centro local de tv e cinema, ofertando
novos espaços de estúdio acessíveis; envolver empresas multinacio-
nais locais e fortalecer redes; fornecer treinamento de habilidades
especializadas e apoio a autônomos e pequenas e médias empresas
para garantir que os residentes tenham uma rota clara de acesso a
oportunidades no setor criativo.
• Lambeth:30 nomear um diretor de educação cultural para promo-
ver a colaboração entre escolas e indústrias criativas; lançar um pro-
grama de startups para negócios criativos e digitais; estabelecer uma feira
de arte internacional para mostrar a criatividade na cez de Brixton;
adotar uma política de espaço de trabalho financeiramente acessível.
• Lewisham:31 apoiar negócios criativos para se conectarem e cola-
borarem entre si; aumentar o acesso a espaços de trabalho financeira-
mente acessíveis para que os profissionais da área possam permanecer
na comunidade; vincular empresas criativas às habilidades, conhe-
cimentos e instalações das instituições locais de educação e cultura;
oferecer caminhos de carreira para o setor criativo.

Esses planos ambiciosos só começaram a ser realizados com a pan-


demia de covid-19, e exigiram um rápido ajuste estratégico. Os im-
pactos da pandemia no setor criativo foram vastos e potencialmente
catastróficos. No entanto, a criação das estruturas necessárias para
gerenciar as seis cezs e cumprir seus objetivos permitiu, ao menos,
intervenções rápidas para apoiar modelos de negócios reformulados
e defender espaços criativos nas localidades. Os impactos de médio
a longo prazo desse trabalho, é claro, ainda devem ser observados.

28 Morag Shiach
A vulnerabilidade da economia criativa em relação aos choques gerados
pela pandemia de covid-19 e os desafios específicos para o desenvol-
vimento de intervenções governamentais que pudessem responder ao
grande número de microempresas e autônomos dessa economia (há,
por exemplo, mais de 5 mil trabalhadores criativos autônomos baseados
nas cezs de Hackney Wick e Fish Island) expuseram ainda mais a pre-
cariedade de muitos trabalhos dentro da economia criativa. Conforme
relatado pela Creative Industries Federation, em 6 de abril de 2020:

• “42% das organizações criativas estimam que sua renda diminuiu


100% desde o início da pandemia”;
• “63% das organizações criativas preveem uma diminuição no vo-
lume de negócios anual em mais de 50% até o final de 2020”;
• “Uma em cada sete organizações criativas acredita que pode du-
rar menos de quatro semanas com as reservas existentes”.32

Para alguns analistas, a precariedade é um alicerce necessário para o


tão celebrado sucesso econômico do setor criativo. Assim, um rela-
tório de 2017 da Nesta,33 The State of Small Business: Putting uk Entre-
preneurs on the Map, argumenta:

Ligada ao nascimento e à morte das empresas, há uma questão


de sobrevivência. Para a empresa individual, a sobrevivência é
inegavelmente boa. No entanto, de uma perspectiva da econo-
mia como um todo, altas taxas de sobrevivência de negócios
não necessariamente contribuem para uma economia forte. […]
A morte dos negócios nem sempre é ruim.

Nossa análise conclui que a sobrevivência dos negócios está negati-


vamente relacionada à produtividade. […] As áreas onde a sobrevi-
vência é menor e há um elevado número de nascimentos de empresas
tendem a ser mais produtivas, pois a destruição criativa permite a
realocação de capital para empresas de maior produtividade.

A adoção explícita dos benefícios da “destruição criativa”, ou mesmo


da disrupção, é vista de maneira bastante diferente alguns anos de-
pois, contra um pano de fundo de destruição generalizada e sistêmica
de subsetores-chave da economia criativa no Reino Unido. Contudo,
vozes discordantes podem ser encontradas ainda antes da atual pan-
demia, sugerindo que tanto a economia quanto a sociedade correm
grave risco de solicitar à economia criativa que alcance objetivos

Um “acordo setorial” e um precariado criativo: moldando


a política de economia criativa no Reino Unido desde 2010 29
mutuamente incompatíveis. Ullrich Kockel alertou em 2019 para
os riscos envolvidos ao assumir que o “recurso primário livremente
disponível” da criatividade humana estava sempre e em todos os lu-
gares disponível para exploração:

Em conjunto com o turismo e um recurso onipresente chamado


“patrimônio”, as indústrias criativas passaram a ser vistas como a
salvação de regiões que, de outra forma, eram consideradas ca-
sos econômicos perdidos […], sustentadas pelo recurso primário
continuamente renovável e disponível gratuitamente: a criativi-
dade humana.34

Kockel aponta as limitações de um modelo de economia criativa


que se baseia na ideia de criatividade humana como um bem livre
inesgotável. E o mesmo ponto é poderosamente levantado por Oli
Mould, em seu estudo recente Against Creativity.35 Ao defender a
importância da criatividade para os indivíduos e para a sociedade,
ele polemiza contra a sua captura pela economia e por uma retórica
que não enxerga valor além do econômico: “Então a criatividade, ou
mais precisamente a potência de criar algo do nada, tornou-se uma
característica individual que poderia ser negociada. Ser criativo
agora tem valor, é um traço de caráter muito procurado por empre-
gadores, empresas e governos”. O desafio para todas as abordagens
políticas da economia criativa é significativo: podemos entender sua
capacidade de promover o bem-estar social, cultural e econômico
sem ser vítima de um modelo que, em última análise, desvaloriza e
explora o poder da criatividade humana?

Notas

1 Está é a primeira versão do artigo enviado a thecreativeindustries.co.uk. A segunda retrata o


nós exclusivamente para a presente publicação. pub Lord Napier, que estampa obras de arte de
[N. do org.] Edwin, Mighty Mo, Dscreet, Malarko, Sony,
2 A primeira imagem descrita no texto contém Static, Charice, Stik & Done, integrantes de um
gráficos com estimativas do Department for projeto com curadoria de Aida Wilde. Para
Digital, Culture, Media and Sport (DCMS), do conferir a imagem, ver: www.huckmag.com/
Reino Unido, feitas em junho de 2015 e janeiro de perspectives/reportage-2/the-battle-to-save-
2016. Para acessá-la, ver: -east-london-is-this-finally-the-end. [N. do org.]

30 Morag Shiach
3 Hesmondhalgh, D. et al. Culture, Economy 21 Disponível em: www.gov.wales/sites/default/
and Politics: the Case of New Labour, Londres: files/publications/2019-06/culture-and-poverty-
Palgrave Macmillan, 2015, p. 59. harnessing-the-power-of-the-arts-culture-and-
4 Smith, M. ‘Creative Industries’ Revisited (palestra heritage-to-promote-social-justice-in-wales.pdf.
na Goldsmiths University of London, 2019). 22 Relatório disponível em: www.gov.wales/
5 Disponível em: www.gov.uk/government/ sites/default/files/publications/2019-06/arts-
publications/industrial-strategy-building-a- -and-culture-vision-statement-light-springs-
-britain-fit-for-the-future. -through-the-dark.pdf, p. 6.
6 Disponível em: www.media.nesta.org.uk/ 23 Mais informações em: futuregenerations.
documents/beyond_the_creative_industries_ wales/about-us/future-generations-act.
report.pdf. 24 Disponível em: arts.wales/sites/default/
7 Disponível em: www.nesta.org.uk/ files/2019-02/Corporate_Plan_2018-23.pdf.
report/a-manifesto-for-the-creative-economy. 25 Disponível em: www.london.gov.uk/sites/
8 Ver: www.gov.uk/government/news/pm- default/files/creative-enterprise-zones_
unveils-plans-for-a-modern-industrial- prospectus-2017.pdf.
-strategy-fit-for-global-britain. 26 Disponível em: news.croydon.gov.uk/
9 Disponível em: www.gov.uk/government/ croydon-town-centre-to-be-heart-of-new-
publications/creative-industries-sector-deal. -creative-enterprise-zone.
10 Ver: www.gov.uk/government/groups/ 27 Disponível em: www.london.gov.uk/press-
creative-industries-council#role-of-the-group. -releases/mayoral/mayor-announces-first-
11 Ver: www.gov.uk/government/news/ -creative-enterprise-zones.
making-britain-the-best-place-in-the-world- 28 Disponível em: www.haringey.gov.uk/news/
-for-the-creative-industries-to-thrive. haringey-creative-boosts-announced-2019.
12 Ver: www.theguardian.com/culture/ 29 Disponível em: www.hounslow.gov.uk/news/
charlottehigginsblog/2012/oct/09/ article/656/hounslow_announced_as_one_
open-letter-creative-scotland. of_mayor_of_london_s_first_ever_creative_
13 Disponível em: www.creativescotland.com/ enterprise_zones.
what-we-do/the-10-year-plan. 30 Disponível em: love.lambeth.gov.uk/
14 Disponível em: www.creativescotland. brixton-named-creative-enterprise-zone-
com/__data/assets/pdf_file/0017/34910/ -mayor-london.
Creative-Industries-Appendix-2.pdf, p. 3. 31 Disponível em: lewisham.gov.uk/articles/
15 Ver: www.gov.uk/government/collections/ news/creative-enterprise-zone-launched-in-
creative-industries-economic-estimates; -deptford-and-new-cross.
www.gov.scot/policies/creative-industries. 32 Disponível em: www.creativeindustries
16 Ver Henriques, A.; Richardson, J. (orgs.). federation.com/news/press-release-federation-
The Triple Bottom Line: Does it all Add up?, -calls-urgent-grant-support-creative-organisations.
Londres: Routledge, 2004. 33 Nesta e Sage, The State of Small Business: Putting
17 Dundee’s Creative Industries Strategy, 2017-21. UK Entrepreneurs on the Map, 2017, pp. 9 e 37.
Disponível em: dundeecreates.creativedundee.com. 34 Kockel, U, Shoormal Conference: New
18 Screen Scotland. Partners’ Memorandum, Coasts and Shorelines – Shifting Sands in
2018. Disponível em: www.screen.scot/binaries/ the Creative Economy, Shetland, 2019, p. 9.
content/assets/screen-scot/funding–support/ Disponível em: issuu.com/shetlandarts/docs/
research/screen-scotland-partners-mou- shoormal_programme_a4.
-september-2018.pdf, p. 2. 35 Mould, O, Against Creativity, Verso, 2018.
19 Disponível em: www.gov.scot/publications/ Introdução disponível em: www.versobooks.
policy-statement-creative-industries. com/blogs/4115-a-history-of-creativity.
20 McFadyen, M. “The Creative Economy?
Towards a Culture of Possibility”. Disponível em:
bellacaledonia.org.uk/2019/10/20/the-creative-
-economy-towards-a-culture-of-possibility.

Um “acordo setorial” e um precariado criativo: moldando


a política de economia criativa no Reino Unido desde 2010 31
GEORGE YÚDICE é professor titular do Programa de Estudos
Latino-Americanos e do Departamento de Línguas e Culturas
Modernas da University of Miami. Escreveu, entre outros tí-
tulos, Política cultural (Gedisa, 2004); A conveniência da cul-
tura: usos da cultura em uma era global (Editora UFMG, 2005);
Nuevas tecnologías, música y experiencia (Gedisa, 2007); e
Culturas emergentes en el mundo hispano de Estados Unidos
(Madri: Fundación Alternativas, 2009). É editor do número es-
pecial “Políticas culturais para a diversidade: lacunas inquie-
tantes” da Revista Observatório, do Itaú Cultural, n. 20 (2016).
Tem mais de 150 ensaios sobre estudos culturais e literários.
Prestou consultoria para várias organizações internacionais e
ministérios e secretarias de cultura em diversos países latino-
-americanos. Está no comitê editorial da Z Cultura (revista do
PACC–UFRJ), do International Journal of Cutlural Policy (War-
wick, Reino Unido) e da Heterotopías (Córdoba, Argentina).
Inovações na
política cultural e no
desenvolvimento na
América Latina1
GEORGE YÚDICE

INTRODUÇÃO: POLÍTICAS CULTURAIS NO DESPERTAR


DA NEOLIBERALIZAÇÃO

De meados da década de 1990 até boa parte da primeira década


do novo milênio, muito foi escrito em tom antecipatório e cau-
telosamente otimista sobre o que as políticas culturais tinham
que fazer para alcançar o desenvolvimento integral e sustentável
da América Latina. Os textos – documentos de política baseados
nas convenções da Unesco e nas recomendações ibero-americanas –
criticavam o status quo: ministérios estagnados e secretarias de cul-
tura dedicadas à arte e ao patrimônio com pouca compreensão das
indústrias culturais, da comunicação e da relação entre cultura e
desenvolvimento. Eles também criticavam as políticas neoliberais
implementadas para lidar com a crise econômica que assolou a re-
gião desde o início dos anos 1980, transformou a cultura em uma
commodity e abriu mercados na região para programas culturais dos
Estados Unidos e de outros países, gerando grande riqueza para
indústrias estrangeiras baseadas em direitos autorais. A esperança
de reforma da estrutura neoliberal pode ser vista, por exemplo, nas
recomendações políticas de García Canclini, que deu palestras em
congressos mexicanos e argentinos e cujos livros e ensaios foram
amplamente lidos em toda a América Latina. Seu livro Consumido-
res e cidadãos (1995) sintetizou uma série de políticas nessa direção.
Ele defendeu as seguintes ideias:

• a regulação do capital estrangeiro e das políticas de fortaleci-


mento das economias latino-americanas;

Inovações na política cultural e no desenvolvimento


na América Latina 33
• o estabelecimento de cotas nacionais e regionais de 50% para a
produção latino-americana e sua distribuição em cinemas, canais de
vídeo, transmissões de rádio e programação de tv;
• o desenvolvimento de políticas para criar um espaço midiático
latino-americano;
• a criação de mercados comuns de livros, revistas, filmes, tv e
vídeo na região;
• a criação de uma fundação para a produção e distribuição de
mídia latino-americana;
• o desenvolvimento da cidadania, dando maior atenção a uma
política de reconhecimento em consonância com uma intercultu-
ralidade democrática.

É importante mencionar ainda as recomendações políticas feitas


pelos cinquenta participantes – todos experientes políticos,
administradores culturais e analistas – do Encontro Ibero-América
2002: Diagnóstico e Propostas para o Desenvolvimento Cultural,
patrocinado pela Organização dos Estados Ibero-Americanos (oei)
no México e Rio de Janeiro. Essas recomendações visavam combater
a virada neoliberal na América Latina e abordar questões de diver-
sidade, entendidas não apenas em relação à inclusão de povos indí-
genas e afrodescendentes, mas também em termos de escala, com
ações afirmativas para regiões e países pequenos dentro do proposto
espaço cultural ibero-americano (García Canclini, 2002).
Logo após a publicação do livro de García Canclini, o Brasil foi
atingido por uma profunda recessão, em 1998, e a Argentina fa-
liu no final de 2001. Um relatório de 2001 do Sistema Econômico
Latino-Americano (Sela) estimou que, ao nascer, cada cidadão da
região começou a vida com uma dívida de 1.550 dólares (Boye, 2001),
com mais de um terço da população vivendo na pobreza (Comisión
Económica para América Latina y el Caribe, 2010, p. 4), um nú-
mero que diminuiu na primeira década do milênio (Birdsall; Lustig;
McLeod, 2011), mas ressurgiu quando a crise econômica mundial de
2008 atingiu novamente a região, revertendo os ganhos obtidos na
primeira década do milênio (Latin…, 2017; United Nations Develo-
pment Programme, 2016).
Apesar das interessantes inovações da política cultural no novo
milênio, a situação financeira limitou o seu alcance. Por inovação,
quero dizer não apenas iniciativas para reforçar e aumentar as re-
ceitas nas indústrias culturais e criativas, mas também políticas que
possam estender a participação nessas indústrias àqueles setores

34 George Yúdice
demográficos excluídos da política cultural: os grupos pobres, ra-
cializados e marginalizados fora dos grandes centros metropolitanos.
Em outras palavras, refiro-me a políticas que reforçam as indústrias
culturais e criativas a fim de fortalecer a inclusão democrática. Ne-
nhum Estado que conheço desvalorizou programas já existentes
(por exemplo, para teatros nacionais ou orquestras filarmônicas)
com o objetivo de financiar iniciativas baseadas em direitos cultu-
rais, como os Pontos de Cultura, que foram instituídos nos últimos
anos em vários países da América Latina (e que eu analiso a seguir).
Esses programas, que complementam as políticas artísticas ou patri-
moniais já existentes, continuam a ser vistos como compensatórios
pelos atores culturais convencionais. Embora minha perspectiva
de instituir políticas culturais que levem a sério o desenvolvimento
cultural não seja necessariamente baseada no crescimento econô-
mico, é preciso reconhecer que, se não houver mais financiamento,
novas iniciativas não poderão florescer. Uma das estratégias para
obter maior apoio é convencer outros setores do Estado (economia,
comércio, ciência e tecnologia, turismo etc.) a estabelecerem parce-
rias com a cultura nos planos de desenvolvimento nacional e urbano.
Exploro essa estratégia na seção final deste estudo.

INDÚSTRIAS CULTURAIS E CRIATIVAS

O desenvolvimento econômico das indústrias culturais e criativas é


importante não apenas por razões econômicas, mas sobretudo para
manter as narrativas locais em circulação. Isso significa sustentabi-
lidade, no sentido de que um aumento na produção dessas indús-
trias não deve simplesmente reproduzir narrativas produzidas em
outros lugares. A sustentabilidade cultural das indústrias culturais
e criativas latino-americanas envolve narrativas e estilos que alimen-
tam o imaginário popular, que, por sua vez, serve de insumo para
discussões entre cidadãos (Getino, 1987a). Em outras palavras, as
indústrias audiovisuais nacionais contribuem para o autoconheci-
mento das pessoas. O raciocínio tornou-se ainda mais importante à
medida que os Estados Unidos pressionaram para incluir a cultura –
e em particular produtos e serviços cinematográficos, televisivos e
audiovisuais – nas negociações finais, em 1993, da Rodada Uruguai
do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt), movida pela França
e pelos países da União Europeia. Conforme a subsequente rodada
de negociações comerciais mundiais se aproximava, os opositores

Inovações na política cultural e no desenvolvimento


na América Latina 35
ao comércio na cultura propuseram a Convenção para a Proteção
e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais da Unesco,
aprovada em 2005 e ratificada por 144 Estados em 2017. O foco
deslocou-se do protecionismo nacional para a sustentabilidade de
uma diversidade de expressões ameaçadas pela predominância de
grandes conglomerados audiovisuais. Embora a própria convenção
não pudesse fornecer uma contenção efetiva à Organização Mundial
do Comércio (omc) ou impor obrigações suficientemente fortes aos
signatários para cumprir seus princípios (Neil, 2006), ela forneceu
um impulso para muitos países (e cidades) possibilitarem o acesso
de grupos historicamente excluídos a financiamento e exposição.
Esta seção começa com foco no setor audiovisual das indústrias
culturais e criativas, uma vez que ele detém grande parcela do co-
mércio (e, portanto, de receitas) e fornece um modelo para a coope­
ração regional que obteve algum sucesso. Nesse último aspecto, a
Ibermedia, criada em 1996 para promover a coprodução de filmes
de ficção e documentários entre cineastas dos países de língua espa-
nhola e lusófona, é muito importante. Juntamente com os fundos
nacionais voltados à realização de filmes, ela é responsável por au-
mentar substancialmente a produção cinematográfica na América
Latina. Em dezenove anos de operação, apoiou 787 projetos de co-
produção, 2 mil empresas e 10 mil profissionais (Ibermedia, 2017).
Octavio Getino, cineasta argentino e promotor de políticas culturais
na América Latina, foi fundamental na criação de uma precursora
da Ibermedia, a Conferência das Autoridades Audiovisuais e Cine-
matográficas Ibero-Americanas (1989), e, posteriormente, fundador
do Mercosul Cultural, o braço de política cultural do bloco comer-
cial sub-regional formado por Argentina, Brasil, Uruguai e Paraguai.
Getino também foi a força por trás da criação do Observatório do
Mercosul e do Observatório das Indústrias Culturais da Cidade de
Buenos Aires, que posteriormente se transformou em Observatório
das Indústrias Criativas.
Durante seu exílio, imposto pela ditadura militar na Argentina,
Getino trabalhou na formulação de políticas para cinema, vídeo e
ambientalismo, produzindo o primeiro livro publicado na América
Latina sobre a relação entre meio ambiente, turismo e desenvolvi-
mento (Getino, 1987b). Em seu retorno a Buenos Aires em 1988,
defendeu o desenvolvimento de um espaço audiovisual latino-ame-
ricano (Getino, 1987a, 1989, 1990). As ideias e o ativismo de Getino
evoluíram organicamente, de modo que suas primeiras concepções
sobre cinema, dependência e emancipação no contexto de invasões

36 George Yúdice
comerciais e territoriais se transformaram em recomendações de
políticas para fortalecer o cinema latino-americano. Já em 1987,
compilou grande variedade de informações e análises em seu livro
Cine latinoamericano: economia y nuevas tecnologías audiovisuales. Ele já
coletava dados desde a década de 1970 em boletins mimeografados
sobre as indústrias culturais no Peru. Em 1985, foi membro funda-
dor da New Latin American Cinema Foundation e realizou estudos
regionais sobre cinema, sendo o livro de 1987 um produto desse tra-
balho. Continuou a defender suas ideias como coordenador regional
do Observatório do Cinema e do Audiovisual da América Latina.
No cinema, bem como na tv e no rádio comercial, políticas efeti-
vas não podem ser projetadas sem se conhecer as condições de pro-
dução e comercialização do trabalho local, sem se entender e ante-
cipar o impacto das novas tecnologias ou como novos públicos são
formados. Em uma entrevista um ano antes de sua morte, Getino
fez um retrospecto desses projetos e declarou: “Sem informações
confiáveis, é arriscado pensar em políticas de desenvolvimento, em
qualquer campo. [No meu caso] foi uma questão de descobrir da-
dos e análises desse setor para contribuir para a melhoria das polí-
ticas” (Getino, 2011). Ele era um construtor de instituições e, para
tanto, promoveu pesquisas, coletas de dados e análises. Logo após
seu retorno do exílio para a Argentina, dirigiu o Instituto Nacio-
nal de Cinema (1989–90). Foi pioneiro nos primeiros estudos da
economia das indústrias culturais na Argentina. O próprio Getino
viu sua longa carreira como parte de um “processo que culminou,
felizmente, com a Lei dos Serviços de Comunicação Audiovisual”
(Getino, 2011).
Tal objetivo também foi alcançado pelo ativismo de trabalhado-
res culturais de base (Segura; Prato, 2018). Se a ênfase nas décadas
de 1960 e 1970 foi na insurgência decolonial, nos anos pós-ditadura
(1983 em diante) ela se deu no desenvolvimento de fortes indústrias
culturais e iniciativas comunitárias, as quais poderiam suportar o
ataque de conglomerados americanos, europeus e latino-americanos
que não tinham o interesse dos cidadãos como prioridade.
A criação da Divisão das Indústrias Criativas da Cidade de Bue-
nos Aires no Ministério do Desenvolvimento Econômico, poste-
riormente abrigada no Ministério da Modernização, Inovação e
Tecnologia, é uma consequência direta do tipo de defesa que Getino
e outros realizaram ao longo dos anos. Ela fornece inúmeros serviços
(jurídicos, de pesquisa etc.), assistência e incentivos, e ajuda ainda
a preparar empresas para mercados estratégicos, gerando emprego

Inovações na política cultural e no desenvolvimento


na América Latina 37
no setor. A capital argentina apresenta muitas formas de apoio às
indústrias criativas. O Centro Metropolitano de Design (cmd), em
particular, é um ponto de atração não apenas para empresas locais e
startups, mas também um lugar onde pessoas interessadas em uma
série de setores podem obter treinamento. É uma organização de
serviços 360º que promove e coordena a interação entre designers,
gerentes de design, executivos, empresários e diretores de políticas
públicas e acadêmicas, acompanha empreendedores locais no desen-
volvimento de empresas; é ainda um elo influente entre os distritos
de indústrias criativas de Buenos Aires e uma rede nacional e inter-
nacional de centros de design. Como tal, gera informações que são
cruciais para o desenvolvimento das indústrias criativas. Além disso,
o cmd trabalha com outros escritórios dos governos municipais e
federais, como a Secretaria de Economia Criativa, fortalecendo o
Distrito de Design, promovendo investimentos na área e responsa-
bilidade social e ambiental, impulsionando o emprego entre os mo-
radores do bairro e defendendo uma maior compreensão e uso do
design. O cmd contribuiu para a nomeação de Buenos Aires como
a primeira Cidade do Design da Unesco, o que a incluiu em uma
rede de 116 cidades criativas com foco em artesanato, arte folclórica,
design, cinema, gastronomia, literatura, música e artes midiáticas
(Becerra, 2013).
O governo argentino encabeçou duas outras iniciativas que pro-
movem as indústrias culturais e criativas: o Mercado das Indústrias
Criativas da Argentina (Mica) e o Mercado das Indústrias Culturais
do Sul (Micsur), realizado pela primeira vez em Mar del Plata, na
Argentina, em 2014, depois em Bogotá, na Colômbia, em 2016, e em
São Paulo, em 2018. O Mica, criado em 2011, reúne seis setores: edi-
torial, música, audiovisual, design, artes cênicas e video games. Como
todas as feiras, procura oferecer oportunidades de networking que au-
mentem as vendas dos participantes. Além disso, fornece capacita-
ção em produção transmídia, reconhecendo as profundas mudanças
nas formas de produção e consumo. Também em reconhecimento à
interdependência da cultura com a economia, emprego, educação e
outras áreas, o Mica é organizado com a participação dos Ministérios
da Indústria, do Trabalho, do Desenvolvimento Social, da Econo-
mia e das Relações Exteriores. Ao mesmo tempo que a Argentina
ampliava suas indústrias culturais e criativas, criadores de políti-
cas como Rodolfo Hamawi, diretor nacional de Indústrias Cultu-
rais quando o Micsur foi criado, em 2014, procuraram fortalecer o
mercado regional sul-americano, já que seus países-membros eram

38 George Yúdice
importadores líquidos, contribuindo para déficits comerciários.
A feira foi criada para reverter essa situação. O primeiro Micsur foi
um evento sem precedentes, devido ao seu tamanho e abrangência
continental – na primeira reunião, em 2014, todos os dez países da
América do Sul participaram, e em futuras reuniões toda a América
Latina será incluída. Em 2014, foram 3.100 participantes creden-
ciados, 9.700 reuniões de negócios, 1.200 produtores, palestrantes e
funcionários e oitenta mesas-redondas, conferências e workshops sobre
o presente e o futuro das indústrias culturais (Resumen Micsur, 2014).
Com intenções semelhantes às de Getino, Hamawi observou as
profundas assimetrias no comércio global de cultura, particularmente
as vantagens obtidas pelos grandes conglomerados transnacionais
voltados ao mercado editorial, cinema, tv e outras áreas graças a seus
enormes orçamentos e acesso ao capital financeiro. Ele enfatizou o
papel do Estado no desenvolvimento de “políticas eficazes que com-
pensem e ofereçam novas possibilidades a pequenas empresas locais”,
porque elas “se envolvem com perspectivas culturais ligadas à identi-
dade e autoafirmação de nossos povos” (Hamawi, 2014).

A POSIÇÃO AMBÍGUA DAS INDÚSTRIAS CULTURAIS E


CRIATIVAS NA AMÉRICA LATINA

Embora o sentimento de desvantagem possa estar no pano de fundo


das políticas públicas para as indústrias culturais e criativas, há atual-
mente outro discurso entusiasta que as considera o grande caminho a
ser seguido pela economia criativa. O relatório de 2008 da Conferên-
cia das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad)
a respeito da economia criativa as vê como solução parcial para mui-
tos dos problemas dos países em desenvolvimento. O argumento é
que as pessoas nos países em desenvolvimento são muito criativas
e suas iniciativas já estão gerando emprego e renda significativos.
A cultura, alega-se, pode promover a inclusão social e fortalecer o va-
lor agregado em setores como design e turismo. Embora, sem dúvida,
isso seja verdade, a cultura sozinha obviamente não pode resolver os
problemas da pobreza e da exclusão. O relatório da Unctad faz re-
ferência mínima a essa lacuna. Inclui, por exemplo, um resumo do
estudo de Paulo Miguez sobre o Carnaval da Bahia que mostra lucros
enormes produzidos pelo evento (United Nations Conference on Trade
and Development, 2008, p. 39). Mas o estudo completo de Miguez tam-
bém aponta para a enorme desigualdade e exclusão social na distri-

Inovações na política cultural e no desenvolvimento


na América Latina 39
buição dos recursos gerados pela festa anual. Miguez defende uma
política regulatória que distribua equitativamente as oportunida-
des econômicas que vêm da comercialização, ao mesmo tempo que
mantenha o significado simbólico do festejo popular (Miguez, 1996).
Sua pesquisa sobre o Carnaval da Bahia vai muito além, assim como
a de outros pesquisadores, afirmando que qualquer planejamento de
crescimento sustentável para a cidade de Salvador necessariamente
envolve a reavaliação do papel do Estado e da prefeitura a fim de
torná-lo sustentável econômica e culturalmente para a maioria
da população. Isso significa, entre outras medidas, tirar o Carnaval
das mãos de um pequeno grupo de empresários que colheram todos
os benefícios com “espaços públicos privatizados e expressão popu-
lar sufocada das comunidades tradicionais ou da cultura afrodescen-
dente” (Gonçalo Júnior, 2007).
Outros relatórios, como o La economía naranja: una oportunidad
infinita (Buitrago Restrepo; Duque Márquez, 2013), do Banco In-
teramericano de Desenvolvimento (bid), apresentam números
astronômicos produzidos pela economia criativa, justapondo, com
ousadia, histórias de sucesso dos Estados Unidos, da Grã-Bretanha e
da Ásia às da América Latina, sem reconhecer, quando se orgulham
da renda e do emprego gerados por ela, que a economia criativa tem
uma taxa de informalidade mais alta do que outros setores. De que
adianta saber que a economia criativa – ou laranja – gerou 29,5 mi-
lhões de empregos no mundo e 1,9 milhão de empregos na América
Latina e no Caribe se não nos dizem que a população mundial é de
7,6 bilhões e a população da América Latina e do Caribe é de 646
milhões? Em termos percentuais, os números da América Latina e
do Caribe equivalem a 0,6%, pouco mais da metade da média mun-
dial. Além disso, se levarmos em conta a informação de que a Amé-
rica Latina tem a maior taxa de emprego informal – 43% segundo
o fmi (Casabón, 2017) e 47% segundo a Organização Internacional
do Trabalho (Guy Ryder, 2014) –, e que o setor cultural, segundo o
economista Ernesto Piedras (2008), tem uma taxa ainda maior, pa-
rece óbvio que uma alta porcentagem desses 1,9 milhão de empregos
não é de boa qualidade.
A informalidade é ainda pior entre os jovens. Em Jóvenes, culturas
urbanas y redes digitales,2 Néstor García Canclini e Maritza Urteaga
Castro Pozo concluem que hoje em dia as práticas trabalhistas de
artistas ou promotores e gestores culturais que trabalham em edi-
toras, gravadoras ou galerias de arte são

40 George Yúdice
determinados pela precariedade dos empregos efêmeros que ad-
quirem, pelas demandas trabalhistas do trabalho autônomo e dis-
ponibilidade permanente, pela necessidade de complementar com
empregos não culturais o que eles ganham como artistas, editores
ou músicos independentes. A versatilidade – variando entre lidar
com negócios diversos, formas de colaboração e até mesmo idio-
mas múltiplos e trabalho em outros países – é facilitada por redes
digitais. Mas esse é também um requisito “normalizado”, devido
à flexibilização dos mercados de trabalho e à incerteza quanto ao
futuro dos empregos. Ter vários perfis profissionais e aprender a
trabalhar com especialistas de outras áreas são necessidades de seu
ambiente sociocultural. (García Canclini; Castro Pozo, 2012, p. 9)

A gestão cultural também precisa enfrentar esse desafio. E, claro,


gestores culturais não podem fazer isso sozinhos; eles têm que con-
tar com a colaboração, pelo menos, do Ministério do Trabalho, ou
mais ainda, como vemos no caso do Mica e do Micsur, da educação,
economia, comércio etc.
Como dito, a Colômbia foi anfitriã do segundo Micsur, em outu-
bro de 2016, organizado pela Câmara de Comércio da cidade e pelo
Ministério da Cultura. Foram realizadas 3.800 reuniões de negócios
com trezentos produtores e compradores, proporcionando opor-
tunidades para as indústrias culturais e criativas (Con más…, 2016).
A Câmara de Comércio também apoia o Cluster das Indústrias
Criativas e de Conteúdo de Bogotá e, junto com o patrocínio da
prefeitura, a Invest In Bogotá, que ajuda empresas do setor criativo
a obterem investimento estrangeiro e gerou 1,9 bilhão de dólares
em 2016, sendo 15% em indústrias criativas: tv, editoração, publici-
dade, design, arquitetura, cinema, música e artes cênicas (Informe…,
2016). Medellín, a segunda maior cidade da Colômbia, é muito
conhecida, como Bogotá, por ter reduzido o crime e a violência e
optado pela criatividade e inovação. Em 2013, o Urban Land Insti-
tute a selecionou como a cidade mais inovadora entre duzentas ri-
vais, incluindo Nova York e Tel Aviv (Colombia’s…, 2013). Mais tarde,
naquele mesmo ano, uma parceria público-privada criou o Distrito
de Innovación Medellín, orientado para a tecnologia, mas também
localizado em uma área de crime e pobreza. A iniciativa procurou
ampliar a inovação para os cidadãos (Fernández Rojas, 2013). Em-
bora não esteja primariamente comprometida com a inclusão social,
ela busca integrar o desenvolvimento tecnológico à sustentabilidade
ambiental e humana (Distrito…, 2015).

Inovações na política cultural e no desenvolvimento


na América Latina 41
COMO A ECONOMIA DA CULTURA/CRIATIVA SE
RELACIONA COM O DESENVOLVIMENTO CULTURAL?

Como a maioria das outras cidades que promovem suas indústrias


criativas, os clusters dessas indústrias em Bogotá e de Medellín são em
grande parte patrocinados pela iniciativa privada em parceria com es-
critórios municipais de desenvolvimento econômico, o Ministério do
Comércio, e, às vezes, com a colaboração das secretarias de educação
e do Ministério da Cultura. É difícil determinar a promoção e o apoio
para esse setor com a governança cultural das cidades a partir dos
próprios documentos de políticas, embora se possa ver os nomes de
certos escritórios, empresas e indivíduos reaparecendo na governança
dos grupos e contribuindo para a cultura com políticas de desenvol-
vimento. Bogotá e Medellín têm planos quadrienais e quinquenais,
respectivamente, de desenvolvimento cultural, planos de dez anos e
outros projetos de políticas, como as Políticas Culturais de Bogotá
para 2004–16. Uma das principais estratégias desses planos culturais
é o de articular-se com outros documentos de políticas nacionais, re-
gionais e locais, como o Plano Cultural Decenal para o departamento
de Antioquia, do qual Medellín é a capital. O ponto aqui é que uma
colaboração transversal das indústrias culturais e criativas com outros
setores é necessária para garantir maior visibilidade entre potenciais
colaboradores estratégicos, capacitação, locais mais numerosos de
operação e inclusão de setores demográficos marginalizados.
O foco das indústrias culturais e criativas mudou significativa-
mente desde quando o British Council ajudou no mapeamento de tais
indústrias em Bogotá e Soacha, em 2002. As categorias e os critérios
eram praticamente os mesmos dos mapeamentos realizados no Reino
Unido a partir de 1998. O objetivo declarado nesse documento é a
geração e exploração de propriedade intelectual (Mapeo…, 2002, p. 1).
Atualmente, o plano de dez anos da Secretaria Distrital de Cultura e
Esporte está harmonizado com o Plano de Desenvolvimento de Bo-
gotá: Bogotá Humana (2012–21), que tem os direitos culturais sobre
seu centro (Bogotá, 2011). A partir do reconhecimento da diversi-
dade cultural, o plano busca o empoderamento de todos os cidadãos
em uma cultura democrática, expressa no livre exercício de práticas
artísticas, culturais e patrimoniais. Tais princípios, por sua vez, estão
ligados a políticas de crescimento econômico, inclusão social e sus-
tentabilidade ambiental. A conexão entre a política cultural em rela-
ção às indústrias culturais e criativas em Bogotá e a Convenção para a
Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais ficou

42 George Yúdice
evidente quando a Secretaria Municipal e a Câmara de Comércio rece-
beram um prêmio do Comitê Intergovernamental da convenção para
fortalecer o empreendedorismo nessas indústrias (Cámara…, 2017).
O Plano Cultural Decenal de Medellín também aborda brevemente
as indústrias criativas dentro de sua estrutura de desenvolvimento
cultural (Medellín, 2011). Como o plano de Bogotá, ele se baseia nas
recomendações políticas de organizações como Unesco, Agenda 21
da Cultura (um conjunto de recomendações de políticas da organiza-
ção United Cities and Local Governments), Objetivos de Desenvol-
vimento do Milênio das Nações Unidas (odm), e outras. “Cultura e
Desenvolvimento” é uma das oito áreas programáticas do odm espe-
cificamente voltada para ajudar a atingir as metas 1 (a erradicação da
pobreza extrema e da fome) e 3 (a promoção da igualdade de gênero
e o empoderamento das mulheres) (undp, 2007). De fato, em 2006,
o governo da Espanha contribuiu com 710 milhões de dólares para
conquistar tais objetivos, em conjunto com o Fundo para o Alcance
dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (mdg-f) (com uma
subsequente contribuição de 121 milhões de dólares em 2008) (Cul-
ture, 2013). A expansão da Agenda 2030 das oito metas do odm para
dezessete também inclui a cultura como contribuinte para: inclusão
universal na educação de qualidade através do reconhecimento da
diversidade e do diálogo intercultural (meta 4); crescimento econô-
mico sustentado por meio do apoio do turismo sustentável a produ-
tos culturais locais (metas 8 e 12); tornar as cidades seguras usando a
salvaguarda do patrimônio cultural mundial (meta 11). A Agenda 21,
por sua vez, inclui a cultura como o quarto pilar do desenvolvimento
sustentável – juntamente com o crescimento econômico, a igualdade
social e o equilíbrio ambiental, – definindo-o como crescimento eco-
nômico com inclusão social, equilíbrio ambiental, “desenvolvimento
do próprio setor cultural (ou seja, patrimônio, criatividade, indústrias
culturais, artesanato, turismo cultural)” (Culture, 2010, p. 4) e colabo-
ração transversal da cultura com outros setores.
Dadas as particularidades da história da Colômbia, faz sentido que
sua política cultural enfatize metas de desenvolvimento como a paz,
a inclusão social, a diversidade e o diálogo entre culturas. O conflito
de décadas entre o governo, grupos guerrilheiros (que negociaram
acordos de paz recentemente) e narcotraficantes, bem como as pro-
fundas divisões sociais (o país tem o segundo maior coeficiente de Gini
na América Latina), impulsionou a política de vários setores nos úl-
timos 25 anos, incluindo a cultura. De fato, as instituições culturais
de Bogotá e Medellín promovem uma cultura cidadã e a recuperação

Inovações na política cultural e no desenvolvimento


na América Latina 43
do espaço público, levando a mudanças significativas nessas cidades,
como é amplamente conhecido (um tema abordado por Arturo Ro-
dríguez Morató e Matías Zarlenga). Não por acaso, o secretariado cul-
tural de Medellín é denominado Secretaría de Cultura Ciudadana. Isso
está de acordo com o quadro estabelecido pela Constituição de 1991,
que reconheceu os povos indígenas e os afrodescendentes como parte
integrante da nação e beneficiários de ações afirmativas. Como em
outros países que recentemente elaboraram novas constituições (Bo-
lívia, Equador e Venezuela), há uma forte ênfase nos direitos culturais,
diversidade, inclusão e capacitação. Essas questões desempenham um
importante papel na elaboração de políticas culturais, como vimos.
Em geral e com poucas exceções, porém, as políticas culturais urbanas
ainda não conseguiram ajudar as indústrias culturais e criativas a esta-
belecerem sua sustentabilidade, o que inclui incentivos econômicos, e,
mais importante ainda, a criação de mercados, canais de distribuição
e circulação, formação de públicos e consumidores e assistência do
comércio internacional. O Plano Cultural Decenal de Medellín tem
uma seção curta (pp. 120–24) em cuja conclusão há o reconhecimento
de que as indústrias criativas precisam do apoio de iniciativas público-
-privadas, que podem ajudar a reduzir o risco envolvido no investi-
mento em cultura (Medellín, 2011, p. 124).
Um breve experimento no Brasil estabeleceu um elo entre a in-
clusão social e o apoio a pequenas iniciativas das indústrias culturais
e criativas na música, artesanato, design e outras áreas. Marcus Fran-
chi, assessor técnico da Secretaria de Inclusão Social do Ministério
da Ciência e Tecnologia de 2004 a 2008, instituiu ligações entre
iniciativas culturais, em especial pequenos grupos musicais, para
melhorar seu posicionamento através de marketing, engenharia
de imagem ou branding. Quando a Secretaria de Economia Criativa
foi criada, em 2012, seu diretor contratou Franchi para estabelecer
vínculos entre os Pontos de Cultura. Primeiro descreverei esse pro-
grama e, em seguida, retornarei ao tópico dos vínculos.
A política cultural do Brasil, especialmente durante os dois man-
datos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, está em uma categoria
singular. O Brasil teve a sorte de ter Gilberto Gil como Ministro da Cul-
tura e de nomear políticos progressistas e capazes, muitos oriundos da
cultura popular, de organizações de trabalhadores, iniciativas de centros
urbanos, povos indígenas, comunidades afrodescendentes, culturas re-
gionais, cultura digital e assim por diante. Por duas décadas, esses movi-
mentos culturais haviam transformado o Brasil, e a transformação teve
um impacto na maneira como o país desenvolveu sua economia criativa.

44 George Yúdice
Mesmo sua indústria de alta-costura voltou-se para políticas de
inclusão social, em consonância com o novo espírito promovido pelo
governo federal e por vários governos municipais (Deheinzelin, 2007).
Em vez de replicar iniciativas insustentáveis de outras áreas no setor
criativo, os defensores desse setor partem do princípio de que o desen-
volvimento de uma economia criativa sui generis depende da inclusão
e do empoderamento de sua população, particularmente de grupos
populares e minorias marginalizadas que inovaram em suas localida-
des. Como afirmou uma das mais fortes defensoras de uma economia
criativa sui generis brasileira, Ana Carla Fonseca Reis (2007, p. 293),

não vale muito a pena estimular o crescimento de setores que ge-


ram receitas astronômicas a partir dos direitos de propriedade in-
telectual se a criação dessa riqueza não for acompanhada por uma
melhor distribuição de renda, impulsionada por uma inclusão
socioeconômica que aproveite benefícios simbólicos fundamen-
tais, como os de acesso democrático, valorizando a diversidade e
o fortalecimento da identidade nacional.

Embora o Brasil seja visto – e representado em seus filmes mainstream –


como um país atormentado pela desigualdade, corrupção, narcotrafi-
cantes e violência (todos problemas verdadeiros), menos atenção tem
sido dada à inovação e ao empreendedorismo de sua população, tanto
da classe média quanto das classes populares. Um caso interessante é o
do Grupo Cultural AfroReggae. Um dj, José Júnior, indignado com
o massacre sem sentido de 21 moradores da favela de Vigário Geral, um
bairro pobre na zona norte do Rio de Janeiro, decidiu criar uma banda
de percussão no estilo do Olodum – uma associação ativista afrobaiana de
Carnaval –, como forma de envolver os jovens no universo musical para
afastá-los do tráfico de drogas. O AfroReggae obteve sucesso, produ-
ziu vários cds e filmes e logo se multiplicou em numerosas bandas e
outras atividades culturais, empregando no bairro os recursos ganhos
e arrecadando fundos para uma série de serviços sociais de que care-
ciam. Até financiaram a construção do primeiro centro cultural da ci-
dade instalado em uma favela: o Centro Cultural Waly Salomão. Eles
não fizeram isso sozinhos. Ao longo dos anos, criaram sua própria rede
de vínculos horizontais e verticais entre produtores, músicos renoma-
dos, ativistas comunitários, políticos, jornalistas, profissionais de tv e
mídia, ongs etc., permitindo-lhes investir em seu grande empreen-
dimento social e de entretenimento. A organização propagou-se por
outras favelas e até mesmo por outros países.

Inovações na política cultural e no desenvolvimento


na América Latina 45
Menciono essa iniciativa porque é justamente para empoderar
pessoas em situação semelhante – e que não tiveram as conexões
e a sorte que José Júnior e o AfroReggae tiveram – que Gilberto
Gil, Ministro da Cultura do Brasil de 2003 a 2008, criou os Pontos
de Cultura, como parte do programa Cultura Viva. A ideia era dar
um impulso à miríade de iniciativas “culturais vivas” (atualmente
são mais de 4.500, segundo o site Cultura Viva), já evidenciadas
na grande diversidade de comunidades que compõem o país. Gil
comparou a promoção da Cultura Viva nas comunidades à libera-
ção experimentada no do-in: a energia retida por distúrbios físicos
e emocionais é liberada. A ação do Estado aplicada aos pontos de
pressão da cultura é como a massagem chinesa. Gil nos diz que essa
ação serve para “clarear caminhos, abrir clareiras, estimular, abrigar,
para fazer uma espécie de do-in antropológico, massageando pon-
tos vitais, mas momentaneamente desprezados ou adormecidos, do
corpo cultural do país” (Pontos, 2004).
O conceito de cultura adotado nesse programa é amplo e tem
mais a ver com criatividade local do que com uma definição única,
até mesmo plural, da palavra. A criatividade pode ser aplicada à coo-
peração política, iniciativas inovadoras de economia solidária, redes
de comunicação e novas tecnologias, bem como a conhecimentos e
práticas tradicionais e expressão artística.
O estímulo – ou massagem – envolve financiamento, recursos
tecnológicos, acompanhamento profissional, quando solicitado,
e infraestrutura digital para que os pontos possam ser postos em
contato uns com os outros. Segundo o diretor e fundador do pro-
grama, Célio Turino, era inevitável implementar o programa a partir
dos escritórios centralizados do governo (ou seja, do Ministério da
Cultura), mas logo ele foi descentralizado e, dessa forma, ganhou
autonomia. A seleção e a renovação dos Pontos de Cultura no nível
local levam ao fortalecimento do compromisso com a comunidade
(Turino, 2010, p. 36). O diretor vê os Pontos de Cultura como nós
que estão ligados, em contraste com as divisões que caracterizam a
sociedade em termos de classe e raça. Os inúmeros Pontos de Cul-
tura expõem essa diversidade, não apenas do ponto de vista simbó-
lico (o que já seria importante), mas também como um processo que
pode gerar uma nova economia (Turino, 2010, p. 57). Eles tornam
visível o patrimônio vivo das comunidades, e é por isso que a grande
plataforma que os hospeda recebeu o nome de Cultura Viva, enfati-
zando a ideia de que não apenas os profissionais produzem cultura,
como também as pessoas no seu dia a dia.

46 George Yúdice
Autonomia, liderança e empoderamento são os pilares da ges-
tão compartilhada e transformadora nos Pontos de Cultura. […]
Líderes são criados, identidades são redesenhadas e narrativas
tradicionais são interrompidas. (Turino, 2010, pp. 58 e 63)

O programa não busca uma nação única, mas antes nações diferen-
tes que se imaginam heterogêneas e interativas, porque, uma vez
reconhecido o valor do Ponto de Cultura de uma comunidade, o
próximo passo é conectá-lo a outros Pontos de Cultura e criar uma
rede. “Através do Ponto de Cultura, essas comunidades apresentam
uma nova maneira de se ver e de ser vistas” (Turino, 2010, p. 121).
Quando em rede, os Pontos de Cultura encontraram iniciativas
complementares e análogas que aprimoraram seu trabalho. Foi o
reconhecimento desse efeito que levou o consultor Marcus Franchi a
fazer um experimento de economia criativa, liderando um projeto de
estabelecimento de vínculos e criação de clusters. Ele aplicou o modelo
de arranjos produtivos locais (apls), definido da seguinte forma:

Os apls são conjuntos de agentes econômicos, sociais e políti-


cos, localizados no mesmo território, articulados por meio da
interação, cooperação e aprendizado. Esses clusters fazem parte
do planejamento regional. São fenômenos ligados às economias
de aglomeração, territorialmente focados no treinamento e no
estímulo à produção e às cadeias de valor. Entre seus objetivos
estão a identificação de gargalos (relacionados a demandas e ne-
cessidades) em tecnologia, treinamento, capacitação e especiali-
zação do trabalho, com foco local em fatores regionais, setoriais,
econômicos e sociais. (Franchi, 2011, p. 92)

Essa forma de cluster foi desenvolvida pela primeira vez na região


italiana de Emilia-Romagna, onde as associações de pequenas e
médias empresas que trabalham em têxteis, cerâmica e engenharia
alcançaram alta competitividade internacional. No Brasil, o termo
“arranjos produtivos locais” foi usado no final da década de 1990 para

um espaço social, econômico e historicamente construído através


de um cluster de empresas (ou produtores) similares e/ou forte-
mente inter-relacionadas, ou interdependentes, que interagem
numa escala espacial local definida e limitada através de fluxos
de bens e serviços. Para isso, desenvolvem suas atividades de
forma articulada por uma lógica socioeconômica comum que

Inovações na política cultural e no desenvolvimento


na América Latina 47
aproveita as economias externas, o binômio cooperação-com-
petição, a identidade sociocultural do local, a confiança mútua
entre os agentes do cluster, as organizações ativas de apoio para
a prestação de serviços, os fatores locais favoráveis (recursos na-
turais, recursos humanos, cultura, sistemas cognitivos, logística,
infraestrutura etc.), o capital social e a capacidade de governança
da comunidade. (Costa, 2010, pp. 126–27)

Franchi foi o consultor do apl para a cadeia de produção de hip-


-hop em Ceilândia, uma cidade-satélite de Brasília, onde o maior
número de artistas da cultura hip-hop per capita pode ser encontrado
no Brasil. A ideia era mapear os atores e iniciativas, proporcionar
treinamento em gestão, ajudar a estabelecer vínculos horizontais e
verticais e criar um contexto fértil para potencializar a produção de
eventos de hip-hop, aumentando as receitas para que o cenário local
fosse mais sustentável (Entrevista, 2011; Relatório, 2009). Esse apl
de economia criativa foi formulado no âmbito do Plano Nacional de
Cultura (2010–20), que priorizou os direitos dos cidadãos à sua di-
versidade de expressão simbólica e ao potencial da cultura para o
desenvolvimento econômico (Brasil, 2013). Em relação ao último
ponto, o plano buscou trazer desenvolvimento profissional para
comu­nidades carentes e estimular investimentos e empreendedo-
rismo em atividades econômicas de base cultural, possibilitando a
inserção de produtos, práticas e bens artísticos e culturais nas dinâ-
micas econômicas contemporâneas, com vistas à geração de trabalho,
renda e oportunidades de inclusão social. Alternativas econômicas
como a economia solidária também foram promovidas. Para tanto, o
Ministério da Ciência e Tecnologia, por meio de sua Secretaria de In-
clusão Social, e o Ministério da Cultura, por meio de sua Secretaria de
Cidadania Cultural, reuniram dois de seus programas – Ciência, Tec-
nologia e Inovação para o Desenvolvimento Social e Cultura Viva –
com foco em apls e economias solidárias (Nascimento, 2010).
Algumas das iniciativas em Ceilândia apoiadas por Franchi foram
os Pontos de Cultura. O trabalho chegou ao conhecimento da Secre-
taria de Economia Criativa, que o nomeou para aplicar tal tecnologia
a 27 projetos culturais locais. Cada um receberia consultorias para
elaborar planos de desenvolvimento e constituir vínculos. Franchi
também liderou discussões entre os mais de 3 mil apls na época,
com o objetivo de estabelecer uma estrutura cultural adequada para
esses grupos. Ele também estabeleceu uma colaboração de três vias
entre as secretarias, iniciativas culturais e universidades para ma-

48 George Yúdice
pear as possíveis relações entre os atores vinculados e estender os
apls a iniciativas digitais e comunicações alternativas baseadas na
comunidade, estações de rádio comunitárias e bancos comunitários
(Franchi, 2014, depoimento ao autor).3
O programa Pontos de Cultura do Brasil, juntamente com ino-
vações nas políticas culturais municipais em Medellín, foi uma ins-
piração crucial para a criação do Cultura Viva Comunitária (cvc),
uma rede de iniciativas culturais comunitárias em toda a América
Latina. O cvc tem origem em dezembro de 2009, em Mar del Plata,
onde várias redes de cultura e líderes de organizações e movimentos
culturais de seis países se reuniram no i Congresso Internacional de
Cultura para a Transformação Social, organizado pelo Instituto Cul-
tural da Província de Buenos Aires com a colaboração do Conselho
Federal de Investimentos. Não foi por acaso que os atores se uniram:
muitos se conheceram no contexto da virada de esquerda da Amé-
rica Latina no início do novo milênio, que priorizava o protagonismo
das classes populares e de grupos marginalizados, como afrodescen-
dentes e indígenas. Por exemplo, o Fórum Cultural Mundial, cuja
primeira reunião ocorreu em São Paulo, em 2004, sob os auspícios
do então novo Ministro da Cultura, Gilberto Gil, foi inspirado pelo
Fórum Social Mundial – que começou no Brasil, em 2001 –, mas
teve suas raízes nos movimentos progressistas que buscavam alter-
nativas à hegemonia global sob políticas neoliberais e cujos efeitos
eram particularmente prejudiciais para os setores mais desfavore-
cidos da população. Os participantes desse fórum procuraram ca-
pacitar os desfavorecidos através da arte e da prática cultural, não
como espectadores, mas antes como participantes ativos. Entre os
mais conhecidos estão Jorge Melguizo, então secretário de Desen-
volvimento Social de Medellín e ex-secretário de Cultura da cidade,
responsável por uma campanha multissetorial público-privada para
fornecer aos moradores serviços culturais em conjunto com obras de
desenvolvimento urbano e transporte público, e Célio Turino, funda-
dor do programa Pontos de Cultura, na qualidade de diretor (2004–
10) da Secretaria de Cidadania Cultural do Ministério da Cultura.
Muitas das organizações desse encontro tiveram uma longa tra-
jetória no trabalho com as comunidades locais, como o Teatro do
Oprimido, que remonta à década de 1960 no Brasil, e os grupos cons­
tituintes da Rede Latino-Americana de Arte para a Transformação
Social e a Rede de Teatro Comunitário. Entre os assuntos discutidos
estava o programa Pontos de Cultura, que reconheceu e ajudou a
financiar e conectar mais de 2.500 iniciativas artísticas e culturais já

Inovações na política cultural e no desenvolvimento


na América Latina 49
existentes no Brasil no momento da reunião. Como discutido antes,
esse programa buscou empoderar os atores locais das classes média e
baixa, muitos dos quais foram marginalizados em relação às culturas
da elite. O programa Pontos de Cultura ampliou seu alcance e sua
concepção de cultura de acordo com o que os brasileiros realmente
fazem, para além das normas estabelecidas pelas instituições artís-
ticas convencionais: das artes visuais e literárias às formas culturais
afro, indígenas e das favelas, muitas delas cada vez mais entremeadas
por práticas artesanais e/ou tecnologias digitais. O programa foi e
continua aberto às várias maneiras como indivíduos e coletividades
manifestam sua criatividade. Além disso, procurou interconectar os
vários participantes, não para misturá-los em um composto nacio-
nal, mas antes para valorizar a vasta diversidade dos povos do Brasil,
permitindo-lhes conhecer uns aos outros.
O supracitado encontro de 2009 foi o trampolim para a criação
de uma plataforma para toda a América Latina, através da qual mi-
lhares de organizações se conectam e buscam alcançar algo parecido
com o programa Pontos de Cultura brasileiro em nível continental.
Embora o cvc não seja um programa governamental – é uma rede
de organizações da sociedade civil –, representantes de centenas de
organizações da maioria dos países da América Latina e do Caribe se
reuniram em Medellín em outubro de 2010 (onde Melguizo e outros
ativistas e líderes trabalharam com comunidades para transformar ra-
dicalmente a cidade) para formar a Plataforma Puente. Seu objetivo
era (e continua sendo) atuar como uma estrutura organizacional que
faz lobby com governos nacionais e municipais para legislar políticas
de arte, cultura, educação, transformação social e desenvolvimento
sustentável e, especialmente, requerer a designação de 0,1% dos orça-
mentos nacionais para apoiar os processos de culturas comunitárias
vivas (Convocatoria, 2013). Esses objetivos são consistentes com os de
um movimento transnacional de alterglobalização:

• Fortalecer e multiplicar organizações culturais populares na


América Latina;
• Ganhar o reconhecimento institucional e legal com base em sua le-
gitimidade como protagonistas na construção da identidade das pessoas;
• Obter apoio econômico e institucional do Estado;
• Promover a política de Pontos de Cultura na América Latina;
• Construir redes de organizações culturais populares na América
Latina para a soberania sobre os recursos naturais, distribuição justa
da riqueza e democracia (Convocatoria, 2013).

50 George Yúdice
Outro objetivo importante para a organização continental é obter a
força necessária para influenciar organismos internacionais e mul-
tilaterais, como a Secretaria-Geral Ibero-Americana (Segib), na
implementação de políticas de apoio em todos os níveis – especial-
mente municipais e locais – da sociedade. De fato, na xxiii Cúpula
de Chefes de Estado e de Governo no Panamá, em 2013, o cvc foi
incorporado ao programa Ibercultura Viva e Comunitária, da Segib,
para fortalecer as políticas culturais baseadas na comunidade nos
países ibero-americanos (Ibercultura, 2017).
De acordo com os documentos do cvc, existem mais de 17 mil
experiências culturais comunitárias na Argentina, impossibilitando
a revisão de uma amostra representativa dessas iniciativas. Basta di-
zer que essas organizações e redes conseguiram a instituição de uma
política de Pontos de Cultura por parte do governo a partir de 2011,
com 450 pontos apoiados na seleção de 2013, e que agora são mais de
setecentos (Brasil, 2017). Foram instituídas ou estão em processo de
institucionalização políticas de Pontos de Cultura em várias cidades
e países além de Brasil e Argentina – Antofagasta (Chile), Uruguai,
Paraguai, Peru, Costa Rica, El Salvador, Guatemala e Espanha – com
discussões e representantes de outras localidades nas reuniões anuais
do cvc. Vale a pena mencionar que Fresia Camacho, uma ativista de
longa data na cultura comunitária – participante de numerosas or-
ganizações e redes na Costa Rica, como a Guanared –, foi nomeada
representante do cvc no Ministério da Cultura e Juventude pela ad-
ministração anterior e diretora de Cultura em maio de 2014 pela
atual administração, com a tarefa de descentralizar ainda mais os
recursos e oportunidades. Ela já havia organizado o vi Congresso
Ibero-Americano de Cultura em abril de 2014, no qual os Pontos de
Cultura tiveram um papel importante. Assim, Camacho convidou
Célio Turino, fundador do programa no Brasil, para ser consultor na
nova Lei e Política de Cultura da Costa Rica. Os Pontos de Cultura
da Costa Rica pretendem oferecer um programa de estímulos e criar
sinergias para o fortalecimento de organizações, redes, iniciativas
coletivas e espaços socioculturais ligados à promoção da diversi-
dade cultural, à economia solidária e à salvaguarda dos patrimônios
culturais e naturais (Inscripciones, 2017). O último item é muito
importante na Costa Rica desde que, há mais de quarenta anos, os
ambientalistas conseguiram influenciar outros setores da sociedade
para efetuar uma transformação significativa da matriz produtiva
do país, com uma energia limpa e uma forte proteção ambiental em
equilíbrio com uma indústria de turismo ecológico vibrante.

Inovações na política cultural e no desenvolvimento


na América Latina 51
Gostaria de concluir esta seção com uma reflexão sobre as polí-
ticas culturais da Costa Rica, em parte porque sua atual ministra da
Cultura, Sylvie Durán Salvatierra, antes ativista do cvc, considera
o ambientalismo um modelo para a possibilidade de uma economia
criativa sustentável no país. Suas ideias, que contribuíram para o con-
tínuo desenvolvimento da Convenção para a Proteção e Promoção
da Diversidade das Expressões Culturais (Durán Salvatierra, 2008),
foram resumidas por ela na figura 1:

Figura 1: Um modelo de sustentabilidade para o mapeamento dos


campos de trabalho em cultura e o desenho da política cultural

FLORESTA PRIMÁRIA DA SETORES PROFISSIONAIS DO


GOVERNANÇA DA CRIATIVIDADE MERCADO E DA INDÚSTRIA
E DOS DIREITOS CULTURAIS

ÁREAS DE TRABALHO PARA A ÁREAS DE TRABALHO PARA


SALVAGUARDA E O DESENVOLVIMENTO PROFISSIONALIZAÇÃO
DO PATRIMÔNIO

1. Floresta primária. 1. Indústrias, mercado.

2. Identidade e criatividade como fontes 2. Identidade e criatividade como


primárias de informação (autorreferida). “corrigidas” ou “embaladas” pela academia,
especialistas, funcionários administrativos e,
cada vez mais, o mercado.

3. Herança. Patrimônio edificado ou 3. Patrimônio “em construção”; patrimônio


patrimônio em que o domínio público governado pelo mercado; patrimônio na
tem sido normal ou assumido como regra ausência do Estado/controle público/
de gestão. regulação.

4. Pesquisa, sensibilidade social, 4. Ajuste às preferências do consumidor,


participação, acesso. especialização, profissionalização.

5. Capital cultural como capital social 5. Capital cultural como bens e serviços de
em geral. valor agregado para o mercado.

6. Ênfase na construção da cidadania. 6. Ênfase na construção de mercados.

OS DOIS LADOS SÃO ÊNFASES, E NÃO FORÇAS ABSOLUTAS. UMA VISÃO INTEGRADA DEPENDE DOS
ENTRELAÇAMENTOS E DOS CICLOS DE FEEDBACK ENTRE AMBOS OS POLOS PROPOSTOS.

Fonte: Durán Salvatierra (2008).

52 George Yúdice
Com base na sustentabilidade ambiental endêmica da política pú-
blica costa-riquenha desde os anos 1980 – responsável pela duplica-
ção da cobertura florestal entre 1983 e 2010 e pelo desenvolvimento
do “crescimento verde” (Costa Rica, 2012; Watts, 2010) –, Durán
Salvatierra fez algo similar para as indústrias culturais e criativas:
promoveu, por exemplo, “políticas para apoiar as micro, pequenas
e médias empresas com o intuito de melhorar suas capacidades de
produção e gestão local, bem como de assegurar ligações com agen-
tes de grande escala e tendências globais” (Watts, 2010, pp. 14–5)
e clusters a fim de alcançar a sustentabilidade. A questão não é con-
centrar-se exclusivamente em indústrias criativas de alta tecnologia
nem em comunidades pobres, mas sim fomentar ambos e, quando
possível, estabelecer vínculos entre elas.
Como outros ministérios, o Ministério da Cultura e Juventude da
Costa Rica tem muito do seu orçamento destinado a infraestrutura,
pessoal e programas historicamente emblemáticos, como o Teatro
Nacional, museus etc. O recém-instituído programa Pontos de Cul-
tura, que busca fortalecer a participação de pequenas organizações
culturais locais, tem um orçamento relativamente modesto. Dada a
tendência de aperto do cinto na atual crise fiscal, é improvável que
o orçamento do setor cultural seja aumentado; daí a necessidade de
encontrar outros recursos. Além disso, tendo em mente que mesmo
as menores iniciativas envolvem investimentos e gastos – ainda que
apenas para instrumentos musicais ou figurinos para espetáculos de
dança –, o ministério está buscando formas de parcerias com outros
setores governamentais (economia, comércio, ciência e tecnologia,
turismo) para impulsionar as indústrias culturais e criativas. Como
em outros casos, o setor cultural precisa demonstrar a outros se-
tores sua importância tanto para atender aos direitos culturais dos
cidadãos quanto para gerar riqueza, mesmo que, como já vimos, o
emprego cultural tenha um alto nível de informalidade e careça de
direitos trabalhistas. No entanto, somente quando o trabalho cultu-
ral é transformado em uma prioridade do governo, políticas podem
ser concebidas para melhorá-lo.
Através de colaboração e lobby com outros setores, a economia
criativa alcançou o oitavo lugar entre quatorze setores no ranking do
Plano Nacional de Desenvolvimento. A ideia, semelhante aos apls
desenvolvidos por Franchi no Brasil, é estabelecer clusters que per-
corram setores públicos, privados e acadêmicos para alavancar opor-
tunidades. Iniciativas estão em andamento para trabalhar com pro-
dução audiovisual, literária, artesanato, gastronomia e outras áreas.

Inovações na política cultural e no desenvolvimento


na América Latina 53
Um exemplo é o cluster que envolve o povo indígena Boruca, na
região do Pacífico Sul da Costa Rica. As organizações corresponsá-
veis são os comitês de governantes borucas, o Comitê de Artesãos
Borucas, o Ministério da Cultura e Juventude, o Centro de Cinema,
o Ministério da Economia, Indústria e Comércio, o Ministério do
Meio Ambiente e Energia, o Centro de Apoio ao Desenvolvimento
de Denominações de Origem (CadenAgro), a Universidade da Costa
Rica e a Fundação Nuestra América, entre outras. O objetivo é for-
talecer a produção e comercialização de máscaras, tecidos e cerâmi-
cas borucas, que têm sido um dos pilares da economia desse povo.
O desenvolvimento de uma denominação de origem visa evitar a
pirataria ou o uso indevido de desenhos borucas. Além disso, os
artesãos indígenas interagem com designers e programadores em
igualdade de condições. Clusters como esse também asseguram que
quaisquer iniciativas de turismo sejam conduzidas com sensibilidade
e aprovação da comunidade boruca (figura 2).

Figura 2: Comunidade boruca: processos articulados em


relação ao território e ao patrimônio

Processos Responsáveis

1. Declaração • Comitê Boruca


Patrimônio Cultural • Comitê Yimba Cáje (Curré)
Imaterial (pci) • Centro de cinema (registro) Comunidade e
cultura boruca
2. Máscara • Comitê de Artesões de Boruca
Cagbrú Rojc
Denominação de origem • Ministério da Cultura e Juventude
(Jogo dos Diablitos)
(do) e selo artesanal • cadenagro
• meic: selo artesanal e captação Máscara
• ucr: tese sobre máscara
Têxtil
3. Têxtil • Comitê de Artesões de Boruca
Estúdio Murice e nove • Ministério da Cultura e Juventude
Cerâmica
empreendimentos • minae (acosa)
têxteis (três associações) • Fundação Nostra América

4. Cêramica • Comitê de Artesões de Boruca


Revitalizar • ucr

Fonte: Ministério da Cultura e Juventude da Costa Rica (2017).

54 George Yúdice
CONCLUSÃO

Concluo com a iniciativa da Costa Rica para exemplificar dois pon-


tos: primeiro, que uma economia criativa pode ser concebida como
uma iniciativa sustentável, no modelo de sustentabilidade ambiental
para o crescimento verde, e, segundo, que é possível a um país pe-
queno, de cerca de cinco milhões de habitantes, pensar grande e ino-
var na área da política cultural. Todas as iniciativas dos vários países
mencionados neste ensaio alimentaram as reflexões costa-riquenhas
sobre a evolução de suas políticas. Vários dos atores aqui menciona-
dos interagiram e se conectaram ao longo dos anos, de modo que
há conhecimento e experiência acumulados que tornam possível
não apenas projetar boas políticas, mas também, e mais importante,
planejar estratégias de gestão que incluam uma participação popular
que possa torná-las viáveis. Na verdade, a maioria dos atores do setor
está ciente das recomendações de políticas, uma vez que a maioria
circula nas inúmeras reuniões da Segib e de outras organizações em
toda a América Latina e na Espanha. Há uma série de redes nacionais
de gestão cultural, além da Rede Latino-Americana de Gestão Cul-
tural, que as reúne. A prova está realmente em evidência: como essas
recomendações de políticas podem ser implementadas por meio de
boas práticas de gerenciamento?
Além disso, deve haver vontade política. Os governos devem
nomear os gestores mais experientes e qualificados, o que nem
sempre é o caso. O Brasil é um exemplo: o governo Temer prati-
camente devastou o ministério e as secretarias, revertendo muito
do bom trabalho realizado de 2004 a 2016. Felizmente, os atores
continuam operando em uma série de fundações e iniciativas de base,
mantendo o nível de trabalho das políticas até que as instituições
funcionem adequadamente e os processos democráticos prevale-
çam. Apesar da atual crise econômica e política em vários países da
América Latina, tenho muita fé nas pessoas que trabalham no setor
cultural, bem como nos atores da sociedade civil que participam da
mobilização para a mudança. Existe uma grande diferença, em todo
o mundo, desde que me deparei com esse setor pela primeira vez,
nos anos 1990.

Inovações na política cultural e no desenvolvimento


na América Latina 55
Notas

1 Artigo publicado originalmente em inglês: Sylvie Durán Salvatierra, Ricardo Arias Lira,
Yúdice, G. “Innovations in Cultural Policy Alejandra Hernández e Carlos Villaseñor. Este
and Development in Latin America”, em: trabalho foi apoiado por fundos de pesquisa
International Journal of Cultural Policy, [s. l.], fornecidos pela Faculdade de Artes e Ciências da
v. 24, n. 5, 2018, pp. 647–63. Disponível em: University of Miami.
doi: 10.1080/10286632.2018.1514034. Edição 2 Ver também García Canclini, N.; Castro Pozo,
brasileira disponível em: Políticas Culturais M. U. (orgs.), Cultura y desarrollo: una visión
em Revista, v. 12, n. 1, 2019, pp. 121–56. distinta desde los jóvenes. Madri: Fundación
doi: 10.9771/par.v12i1.30408. Tradução feita Carolina, 2011.
pelo professor Leonardo Costa. Gostaria 3 Mensagem recebida por e-mail em 10 de
de agradecer às seguintes pessoas pelas agosto de 2014.
informações que forneceram para este ensaio:

56 George Yúdice
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Inovações na política cultural e no desenvolvimento


na América Latina 59
MICHAEL KEANE é professor de Mídia Chinesa e Estudos
Culturais na Curtin University, em Bentley, Austrália, e líder
de programa do Digital China Lab. Seus temas de pesquisa
contemplam as indústrias de mídia digital na China, política
cultural e de mídia da Ásia Oriental e indústrias criativas e
estratégias de exportação cultural na China e na Ásia Oriental.

ELAINE JING ZHAO é professora sênior na School of the Arts


and Media e codiretora do Media Futures Hub, da University
of New South Wales, em Sydney, Austrália. Seus temas de pes-
quisa se concentram na produção cultural, transformações
das indústrias de mídia e desafios de governança na economia
da mídia digital, cada vez mais mediada por plataformas, algo-
ritmos e dados. É autora de diversas obras, dentre elas: Digital
China’s Informal Circuits: Platforms, Labour and Governance
(Routledge, 2019) e China’s Digital Presence in the Asia-Pacific
(Anthem, 2020).
A reforma do sistema
cultural: cultura, criatividade
e inovação na China1
MICHAEL KEANE E ELAINE JING ZHAO

Mudanças dramáticas ocorreram na sociedade chinesa nas últimas


três décadas. Muitas delas são atribuíveis às reformas econômicas
do governo presididas inicialmente por Deng Xiaoping, sucessor de
Mao Tsé-Tung, e depois por Jiang Zemin, Hu Jintao e Xi Jinping.
Neste artigo, nos concentramos nas mudanças que levaram a uma
compreensão revisada da cultura.
De acordo com a definição do Partido Comunista Chinês (pcc),
fundamentada pelo materialismo histórico, a cultura,

em um sentido mais amplo, refere-se à soma de toda a riqueza


material e espiritual criada pelos seres humanos no curso do
desenvolvimento histórico da sociedade; em um sentido estrito,
cultura refere-se à ideologia e instituições e organizações relacio-
nadas. (Cihai: Sea of Words, enciclopédia chinesa, 1989, p. 1.731).

No entanto, nas últimas três décadas, o governo chinês renunciou de


forma voluntária ao controle de muitos aspectos da produção cultu-
ral em troca dos potenciais benefícios de coesão e aumento da pro-
dutividade promovidos pela liberalização social. Inevitavelmente, o
mercado, em vez de propaganda do governo, tornou-se o árbitro dos
gostos culturais dos cidadãos chineses (Gerth, 2010). É importante
ter em mente, porém, que a ampliação das práticas de consumo não
constitui necessariamente pluralismo cultural. Até que ponto a cul-
tura é comercializável permanece, de fato, uma questão controversa.
Na visão dos conservadores, a cultura não pode ser deixada às forças
do mercado; contudo, os mesmos conservadores afirmam que a cul-
tura chinesa deve ser globalmente competitiva.

A reforma do sistema cultural: cultura, criatividade


e inovação na China 61
A análise da esfera cultural precisa abordar as maneiras como a
política cultural – na forma de leis, estatutos, documentos e regula-
mentos – organiza as relações entre a produção e a disseminação das
expressões culturais. Comecemos com alguns entendimentos sobre
a política cultural na China antes de discutir a natureza do sistema
cultural e sua reforma.
Dadas as restrições de espaço, nossa discussão é um esboço dos
principais eventos e mudanças no equilíbrio da produção cultural –
da cultura pública à cultura comercial e, mais recentemente, ao con-
teúdo amador gerado pelos usuários. Aqui, identificamos três perío-
dos de reforma: 1978 a 1992, 1993 a 2002 e 2003 a 2013. Com foco no
último período, examinamos a transição muitas vezes problemática
da instituição cultural pública (shiye) para as indústrias comerciais
(chanye). Desde 2003, a “reforma do sistema cultural” deu origem a
outros lemas e temas políticos: poder brando [soft power], inovação
e criatividade. Nesse período, ocorreu a “geminação” de cultura e
criatividade, resultando no termo “indústrias culturais e criativas”
(wenhua chuangyi chanye). Na seção final, voltamo-nos à fase mais
recente – a convergência entre inovação tecnológica e criatividade
cultural – e mostramos como a China está tentando acelerar sua cul-
tura e expandir seus recursos de poder brando.

POLÍTICA CULTURAL NA CHINA

Há duas maneiras amplas de entender os objetivos da política cultu-


ral. Em primeiro lugar, ela diz respeito à regulação do “mercado de
ideias e práticas criativas” (Craik, 2007). Baseado nessa perspectiva,
o papel do governo é regular a produção e o consumo, muitas vezes
com o objetivo de desenvolver a cultura nacional, promover o ma-
croambiente para negócios criativos e, em alguns casos, ajudar a
gerar potencial exportador. Na maioria das democracias liberais, o
papel do governo se dá a distância, capacitando e criando políticas
estratégicas. Em segundo lugar, a política cultural refere-se a políti-
cas que gerenciam recursos e instituições culturais, como bens pú-
blicos de cultura e companhias de teatro. Os governos muitas vezes
desempenham um papel ativo, e às vezes intervencionista, no apoio
às instituições culturais (ver Craik, 2007).
Na China, a implementação da política cultural está enraizada em
estratégias para promover o desenvolvimento simultâneo de interes-
ses públicos e privados. Em termos práticos, trata-se de uma tensão

62 Michael Keane e Elaine Jing Zhao


entre as instituições culturais públicas (shiye) e as empresas comer-
ciais (chanye ou qiye). O processo de política cultural está, portanto,
sujeito a tensões entre interesses concorrentes. Muitos procuram
manter uma abordagem que poderíamos chamar de “C maiúsculo”,
isto é, a civilização chinesa é única, e a cultura é, em grande parte, in-
variável; alternativamente, existem aqueles preparados para permitir
que o espaço da cultura chinesa evolua em resposta à concorrência.
Os adeptos desta última abordagem frequentemente promovem os
ideais de criatividade, a autonomia dos produtores e os imperati-
vos das indústrias comerciais (com fins lucrativos) (Keane, 2013).
Uma grande dificuldade, portanto, é verificar como as deliberações
ocorrem nas esferas de influência sobrepostas; uma dificuldade
relacionada é determinar quais dos muitos documentos e pronun-
ciamentos emitidos pelos ministérios e departamentos do governo
são significativos.
De modo geral, os documentos emitidos pelos principais órgãos
governamentais que antecedem os grandes períodos de planeja-
mento – os Planos Quinquenais de Desenvolvimento Econômico e Social –
servem como modelo. Aqueles com mais autoridade são, portanto,
emitidos pelo Comitê Central do pcc. O texto é cuidadosamente
construído, pois os documentos centrais (zhongyang) têm conside-
rável poder “orientador”, ainda maior do que os discursos dos lí-
deres (Lawrence e Martin, 2012). Documentos políticos abraçam
a retórica do socialismo e reconhecem a influência duradoura de
funcionários idosos do partido. Como consequência, muitas delas
são deliberadamente vagas e abertas à interpretação ou, ainda, são
difíceis de aplicar.
Enquanto a política cultural é rigorosamente debatida e formu-
lada de acordo com os princípios marxistas, o engajamento dos pro-
dutores culturais está aberto a negociação. Os detalhes da política
e a adesão real aos estatutos e regulamentos dependem do clima
político prevalecente, que tende a alternar-se entre períodos de re-
laxamento (fang) e maior restrição (shou). Como vários estudos de-
monstraram, o cumprimento dessas políticas depende da vontade
dos órgãos culturais regionais de pô-las em prática (Keane, 2001;
Chin, 2011).
As políticas são elaboradas em think tanks [laboratórios de ideias]
formais, como a Academia Chinesa de Ciências Sociais, e testadas em
grupos de trabalho internos do pcc, que são às vezes chamados de
“pequenos grupos-líderes”. Frequentemente, esses grupos formais
têm conexões com “líderes acadêmicos” e “acadêmicos-líderes”. Lí-

A reforma do sistema cultural: cultura, criatividade


e inovação na China 63
deres acadêmicos (xuezhexing lingdao) incluem líderes ou funcioná-
rios do setor com sólida formação acadêmica – como Li Wuwei –,2
que podem ser membros da Conferência Consultiva Política do Povo
Chinês (ccpcc),3 um think tank de política nacional e inclusiva, ou
empreendedores e consultores. Já os acadêmicos-líderes (qianyan
xuezhe) realizam pesquisas de ponta.
Apesar das significativas mudanças sociais das últimas três déca-
das, a linguagem da política cultural permanece ancorada em temas
de construção e modernização da nação. O vínculo da política cul-
tural com a política de desenvolvimento econômico, mais evidente
na última década, constitui uma modalidade de governança relati-
vamente nova. A mudança de entendimento da cultura estritamente
como trabalho de propaganda para a cultura como “setor basilar”
(zhizhu chanye) no recente 12o Plano Quinquenal de Desenvolvimento
Econômico e Social exigiu uma reconsideração dos marcos políticos,
trazendo a produção e a distribuição mais próximo ao domínio da
gestão industrial com requisitos de atendimento para os atores ade-
rirem aos regimes jurídicos internacionais.

O SISTEMA CULTURAL

Compreender a governança por uma perspectiva sistêmica é en-


dêmico ao pensamento chinês; um modelo de sistemas não apenas
evoca uma ideia holística de progresso, mas também permite que o
governo desempenhe um “papel orientador” na gestão da reforma.
A reforma do sistema cultural (wenhua tizhi gaige) incorpora argu-
mentos sobre o peso relativo dado às formas de cultura pública e
comercial, bem como sobre a modernização do sistema de inovação
tecnológica chinês (ver a seguir). É importante, assim, observar a re-
forma do sistema cultural em comparação a outros sistemas em
reforma: educação, saúde, economia, tecnologia, manufatura e, mais
importante, o sistema político.
A mais influente teoria de sistema na China é o marxismo. Adap-
tado para atender às necessidades chinesas, o marxismo defendia
uma transformação sistêmica que para ser realizada demandava uma
revolução popular. No entanto, no final da década de 1970, a varia-
ção sinicizada do marxismo-leninismo adotada por Mao Tsé-Tung
precisava urgentemente de revisão. Novas teorias tornaram-se po-
pulares. Os debates intelectuais em meados da década de 1980 reto-
maram os escritos dos futuristas John Naisbitt e Alvin Toffler, que

64 Michael Keane e Elaine Jing Zhao


discutiam grandes mudanças sociais, econômicas e culturais provo-
cadas pela tecnologia (ver Brugger e Kelly, 1990). Naisbitt passou
a oferecer conselhos aos legisladores chineses (Naisbitt; Naisbitt,
2010), enquanto as ideias de Toffler sobre a sociedade pós-industrial
o levaram a ser aclamado pelo People’s Daily um dos “estrangeiros
mais influentes que moldará a China”.4 À época, as ideias de Daniel
Bell também exerciam influência (Bell, 1989). A “sociedade pós-
-industrial” de Bell, concebida a partir de fases de desenvolvimento,
oferecia uma alternativa ao marxismo-leninismo oficial. A teoria da
transição de uma economia produtora de bens para uma economia
de serviços tinha um eco do utopismo comunista: a população chi-
nesa seria libertada de seu atraso e os intelectuais assumiriam um
papel de liderança nas classes profissional e técnica.5
No campo cultural, os sistemas refletem as tensões do pro-
gresso histórico. Segundo os autores de A história da cultura chinesa
[Zhongguo wenhua shi]:

Os subsistemas da cultura material são a base da visão sistêmica


da cultura […]. Somente por meio de uma organização racional
podemos salvaguardar o desenvolvimento coordenado das cul-
turas material e espiritual. A cultura espiritual (e seus subsiste-
mas) desempenha o papel de guia; protege e determina a cultura
material, a construção da cultura institucional e sua orientação.
(Hu; Zhang, 1991, pp. 2–3)

Uma pergunta que surge é: como a cultura chinesa está respondendo às


mudanças realizadas nos sistemas econômico, social e político? Além
disso, como a política cultural na China é impactada pelos sistemas
internacionais, uma vez que o país agora é membro das comunidades
de comércio exterior e busca comercializar sua cultura internacional-
mente? Será que a cultura chinesa é capaz de se adaptar? Da mesma
forma, como o sistema cultural poderá ser reformado?

TRÊS PERÍODOS DE REFORMA

De uma perspectiva global, a atividade cultural pode ser subdividida


de modo geral em três setores: cultura subsidiada publicamente, que in-
clui ópera, museus, companhias de teatro e galerias (embora muitas
vezes incluam elementos comerciais e patrocínio empresarial); pro-
dução comercial, para a qual existe um público e/ou consumidores dis-

A reforma do sistema cultural: cultura, criatividade


e inovação na China 65
postos a pagar; e atividade cultural amadora, que abarca desde dança
folclórica comunitária até criatividade baseada na web. Na China, o
setor público assumiu a prioridade, e até a década de 1980, todos os
artistas e trabalhadores de mídia eram empregados pelo Estado e
atuavam como canais de propaganda do pcc. Hoje, a infraestrutura
de transmissão televisiva continua sendo propriedade do Estado ou
pelo menos é gerenciada por empresas estatais, enquanto a mídia
jornalística está firmemente sob controle do governo.
É no terceiro setor, na esfera da atividade cultural amadora,
que vemos a maior mudança. Antes de 1978, seu domínio estava
sujeito a uma regulamentação rigorosa (Wang, 1995). Atualmente,
a atividade cultural amadora se funde com o mercado: os reality shows
apresentam “aspirantes” a celebridades, enquanto a internet acelera
um frenesi de blogueiros, spoofers e hackers.
Segundo Han Yongjin (2005), a reforma do sistema cultural co-
meçou em 1978 e passou por três etapas: (i) de 1978 a 1992: período
de reconstrução cultural seguido da Revolução Cultural e com ênfase
na reforma das artes cênicas; (ii) de 1993 a 2002: momento de gran-
des reformas em todos os setores, com ênfase na industrialização
(gongyehua) e na criação de conglomerados (jituanhua); (iii) a partir
de 2003: o foco mudou para o aprofundamento da transformação
da instituição cultural pública (shiye) para a indústria e a empresa
(chanye e qiye), bem como para o desenvolvimento de novos modelos
de financiamento e apoio.
Dois anos após o fim da Revolução Cultural, em 1978, a primeira
etapa da reforma do sistema cultural começou em uma década mar-
cada pela intervenção governamental excessiva, e às vezes caótica,
nas práticas culturais. A terceira plenária do xi Comitê Central do
pcc iniciou reformas nos trens, movendo a nação da luta de classes
para a reconstrução econômica. Em 1979, no iv Congresso Nacio-
nal dos Trabalhadores das Artes, Deng Xiaoping anunciou o fim da
interferência política nas atividades culturais (Deng, 1983), uma
referência à era anterior, em que tais atividades eram manipula-
das por Mao e seus ministros culturais, incluindo sua esposa, Jiang
Qing. Essa “promessa” para as comunidades artísticas, no entanto,
não implicou recuo por parte do Estado. O modelo menos inter-
vencionista de jurisdição cultural se refletiu na chamada “liberta-
ção do pensamento” (sixiang jiefang) e na aprovação do princípio
da “diversidade” (duoyanghua), que, por sua vez, foi encapsulado
dentro da “política das cem flores” (ver Kraus, 2004; Keane, 2007).
A campanha – “deixando cem flores desabrocharem e cem escolas de

66 Michael Keane e Elaine Jing Zhao


pensamento lutarem” – foi iniciada por Mao no final da década de
1950 e supostamente desenvolvida para promover o florescimento
da arte e da ciência. Enquanto Mao incentivou ideologias diferen-
tes e concorrentes a expressarem suas opiniões, sendo então capaz
de eliminar elementos problemáticos, o uso do lema das cem flores
por Deng implicou uma liberalização genuína da arte e da política
cultural (Kraus, 2004).
A produção cultural se expandiu e se diversificou. A chamada
febre cultural (wenhua re) de meados da década de 1980 viu uma
proliferação de novos gêneros literários, estilos musicais populares
e teledramas. No final da década, uma antologia de escritos do po-
pular autor Wang Shuo, de Pequim, supostamente vendeu mais do
que as obras reunidas de Mao (Barme, 1992). O primeiro endosso
oficial do termo “mercado cultural”6 foi visto em fevereiro de 1988.
Após a “viagem ao sul” de Deng Xiaoping em 1992, passando por
Shenzhen e pelas novas zonas econômicas do país, os trabalhadores
culturais chineses foram instruídos a ir ao mercado; muitas institui-
ções editoriais perderam apoio financeiro e foram forçadas a buscar
novos modelos de negócios, por vezes terceirizando a produção para
estúdios não licenciados (gongzuoshi) (Schell,1995; Keane, 2007).
Esses acontecimentos marcaram o início da segunda fase da
reforma. No mesmo ano, o termo “indústria cultural” foi introdu-
zido, embora sua formulação para virar política de Estado tivesse
que esperar mais nove anos (ver Pang, 2012). Durante esse período,
a cultura comercial cresceu. No final da década de 1990, quando o
governo proclamou que as instituições de mídia deveriam seguir
o caminho da comercialização, tornando-se conglomerados (jituan) –
que eram, na verdade, uma tentativa de construir campeões de mídia
local (ver Keane, 2013) –, o mercado midiático se consolidou. Foi
quando a segunda etapa atingiu seu auge e o lema “segurança cul-
tural” (wenhua anquan) foi desenvolvido, antes da entrada da China
na Organização Mundial do Comércio (OMC). A determinação da
China de se abrir ao investimento estrangeiro significou a redução
das restrições ao comércio cultural. A necessidade de liberalizar os
mercados em setores estratégicos, incluindo publicidade e cinema,
levou a debates cuidadosos sobre a soberania do Estado.
Um tratado inicial sobre segurança cultural e globalização, da-
tado de fevereiro de 2000, teve autoria de Hu Huilin (Hu, 2000).
Em 12 de agosto de 2003, Hu Jintao levantou o tema “Garantindo
a segurança cultural nacional”7 ao politburo do Comitê Central
do pcc durante a sétima reunião de estudos coletivos. Na quarta e na

A reforma do sistema cultural: cultura, criatividade


e inovação na China 67
sexta sessão das plenárias do xvi Comitê Central, a segurança cul-
tural foi incluída em um pacote de “medidas de segurança”, a saber,
segurança política, econômica, cultural e da informação. Não foi sur-
presa o fato de os acadêmicos conservadores se unirem em torno da
proposição de que a cultura tradicional chinesa declinaria ou morre-
ria se a decadente cultura externa pudesse ser acessada tão facilmente.
Como solução propôs-se que a China deveria fortalecer seu “po-
der brando” (ver Chu, 2013; Keane, 2013, 2010, 2010a, 2010b; Sun,
2010; Barr, 2011; Kurlantzick, 2007). A ideia tornou-se obrigatória
em declarações políticas e relatórios de notícias. Resumidamente, o
poder brando descreve a capacidade de uma nação de exercer in-
fluência além do “poder duro” – como a influência militar e econô-
mica. De acordo com Joseph Nye (1990), a “atratividade” de uma
nação repousa em três recursos: cultura, valores políticos e políticas
externas. Na maioria dos casos, o poder brando é sinônimo da “atra-
tividade cultural” de uma nação, mas, no caso da China, tal atrati-
vidade ainda não se manifestou além de suas fronteiras nacionais.
Mesmo antes de Nye, o poder brando já era mencionado no país.
Segundo Li Mingjiang (2008, p. 292), o primeiro artigo chinês so-
bre o conceito foi escrito em 1993 por Wang Huning, hoje mem-
bro do Secretariado do Comitê Central do pcc. Mingjiang observa
que 485 artigos com o termo “poder brando” em seus títulos foram
publicados entre 1994 e 2007. Quando a liderança do pcc passou
de Jiang Zemin para Hu Jintao, o ambiente político estava aberto a
uma reavaliação da influência interna e externa da China. Estatísti-
cas coletadas por pesquisadores da Academia Chinesa de Ciências
Sociais mostram um aumento no consumo de produtos culturais e
de lazer no exterior. Em seu discurso de abertura no xvii Congresso
Nacional do pcc, em 2007, o presidente Hu Jintao enfatizou que o
país deveria estimular a criatividade cultural como parte do poder
brando da nação:

Devemos manter a orientação da cultura socialista avançada, de-


sencadear uma nova onda no desenvolvimento cultural socialista,
estimular a criatividade cultural de toda a nação e melhorar a cul-
tura como parte do poder brando do nosso país, a fim de melhor
garantir os direitos e interesses culturais básicos do povo, enri-
quecer a vida cultural na sociedade chinesa e inspirar a população
a ter uma perspectiva espiritual mais elevada e progressiva.

68 Michael Keane e Elaine Jing Zhao


A transformação do mercado cultural, isto é, sua evolução em dire-
ção às indústrias culturais e criativas (wenhua chuangyi chanye), repre-
senta uma mudança do estado de propaganda presidido pelos líderes
revolucionários da China. A articulação da “criatividade cultural”
como tema discursivo acomoda nitidamente facções conservado-
ras e progressistas. O mercado, agora apresentado como “indústria”
(chanye), é visto pelos reformistas como um mecanismo de progresso
e uma força positiva para a mudança.

NOVOS CAMINHOS

A terceira etapa da reforma, desenvolvida a partir de 2003, incor-


pora uma transformação mais ampla, trazendo novas mídias para
um alinhamento aprofundado com relação à política cultural. No
âmbito da reforma do sistema cultural nas etapas (i) e (ii), temos a
categorização tripartite de instituições, mercados e consumidores
da política cultural organizada. A China Central Television (cctv)
é geralmente descrita como uma instituição cultural pública (shiye),
embora atraia altos níveis de receita publicitária. Entidades comer-
ciais como a Huayi Brothers, empresa líder na produção de filmes, ou
galerias de arte comerciais como a 798, em Pequim, são evidências
das transformações do mercado (chanye) – consumidores (xiaofeizhe)
são categorizados como “plateias” (guanzhong), “usuários” (yonghu)
ou “bases” (caogen).
O impacto dos usuários e das bases está alterando a natureza da
atividade cultural na China de forma significativa. A relação entre
instituições, mercado e consumidores está, portanto, mudando
à medida que milhões de usuários de internet geram conteúdo de
baixo orçamento, criam paródias online (egao) (Meng, 2011), con-
tribuem com legendagem (Hu, 2006) e disseminam relatos fictícios
(Zhao, 2011).
Essa mudança é inerente às transformações vividas pelas econo-
mias formais e informais. Como mencionado antes, o sistema polí-
tico chinês é externamente formal e muito bem estruturado, mas
internamente conectado a numerosos think tanks e comunidades
epistêmicas. Da mesma forma, a atividade cultural é representada
em formações complexas. Grande parte da produção cultural é for-
mal, ou seja, é oficialmente ratificada, censurada e distribuída de
acordo com jurisdições geográficas. Outra parte dessa produção,
porém, é informal, abalando as tentativas do Estado de restringir sua

A reforma do sistema cultural: cultura, criatividade


e inovação na China 69
área de atuação – por exemplo, formas de paródia baseadas na web e
conteúdos gerados pelos usuários. Embora seja impossível estimar
o valor da economia informal, há poucas dúvidas de que as comuni-
dades online estão contribuindo para a identidade cultural da China.
Esses novos desafios também se apresentaram como oportuni-
dades, ecoando a palavra chinesa para crise, weiji, um composto de
wei (perigo iminente) e ji (oportunidade). Enquanto os desafios são
mais evidentes com relação às bases, as oportunidades de reforma
surgiram como resultado da necessidade de fortalecer as indústrias
(chanye). Para alguns reformistas de políticas, esse fortalecimento é
uma forma de disciplinar a “economia cultural informal”.8
O sistema cultural mais uma vez chamou a atenção nacional em
julho de 2003, após uma conferência nacional de trabalho em Pe-
quim. O documento Pareceres sobre o trabalho inicial na reforma do sis-
tema cultural,9 elaborado pelo governo central, propôs uma nova série
de medidas para separar as instituições públicas (shiye) das indústrias
(chanye). No entanto, enquanto os debates sobre a separação de fun-
ções seguiram, até a elaboração do 12o Plano Quinquenal, em 2009, a
reforma do sistema não ficou diretamente ligada ao poder brando, que,
como mencionado anteriormente, surgiu como um lema nacional no
período do Hu Jintao. Em 2009, o Conselho de Estado divulgou seu
Plano de Ajuste e Revitalização da Indústria Cultural.10 Embora tenham
sido formuladas várias políticas setoriais específicas, incluindo inicia-
tivas municipais, distritais e provinciais, ele representou o primeiro
plano nacional dirigido à indústria cultural. O documento foi pos-
teriormente incorporado ao Esboço do Plano Quinquenal de Reforma e
Desenvolvimento Cultural de 2011-15 (shi er wu wenhua gaige fazhan guihua
gangyao), por meio do qual o Ministério da Cultura anunciou que o
setor cultural se transformaria em um “setor basilar” até 2015, ou seja,
representaria 5% do PIB. Com essa meta ambiciosa em mente, o Mi-
nistério da Cultura promulgou outro plano com o objetivo de duplicar
o valor agregado anual das indústrias culturais do país, sinalizando
uma taxa de crescimento médio anual superior a 20%.
Metas ambiciosas são fundamentais para o planejamento socia-
lista. Como Keane (2011 e 2013) argumentou, a percepção de que a
China está tendo um desempenho inferior na “concorrência de po-
der brando” (Chua, 2012) em comparação com a Coreia do Sul e o
Japão provoca uma bolha de desconforto nos corredores do poder de
Pequim. Embora a nação tenha se tornado uma superpotência eco-
nômica nas últimas décadas, suas indústrias culturais e de mídia não
seguiram a mesma tendência de crescimento. Contudo, há uma crença

70 Michael Keane e Elaine Jing Zhao


de que a aplicação de práticas industriais e de tecnologia pode acelerar
o desenvolvimento da produtividade cultural e fomentar a inovação. A
ideia de que economia e cultura são codependentes é agora uma ideia-
-chave entre os think tanks do pcc e outras comunidades epistêmicas.
Em 2012, Zhu Zhixin, vice-diretor da Comissão Nacional de De-
senvolvimento e Reforma, observou:

Incentivar o desenvolvimento da indústria cultural é essencial


para reestruturar e estimular o crescimento econômico […]. É
difícil imaginar um renascimento nos mercados internacionais
no curto prazo e, nesse contexto, a economia nacional da China
corre o risco de se enfraquecer. A indústria cultural não é ape-
nas vigorosa e eficiente, mas também promoverá amplamente o
consumo e impulsionará muitos setores relacionados. (Citado
em Wei, 2012)

Declarações como essa demonstram uma mudança de foco de um


modelo de crescimento liderado pelas exportações para uma maior
dependência do consumo interno. Li Wuwei toca em um ponto
ainda mais sutil do argumento:

[os] problemas fundamentais (ou as contradições causadas pelo


desequilíbrio das estruturas econômicas internas e externas) que
levaram à desaceleração econômica ainda estão por ser resolvidos
[…]; precisamos transformar e atualizar a economia. As indús-
trias criativas estimularão a transformação da economia chinesa
da abordagem orientada à exportação para a abordagem orien-
tada à inovação. (Li, 2011, p. 36)

Apesar do fato de Li usar o termo “indústrias criativas” em vez de


“indústrias culturais”, descrição preferida do Ministério da Cultura,
é evidente que os legisladores estão atentos ao papel que essas in-
dústrias emergentes desempenham na condução do crescimento de
indústrias relacionadas, como as de turismo, financeira e de logística.
O termo “indústrias criativas” ganhou apoio de outros reformado-
res-líderes, ansiosos para ver a China se afastar de sua dependência
da indústria de base e da produção de baixo custo. Em 2009, o pri-
meiro-ministro Wen Jiabao fez um importante discurso resumindo
o programa de trabalho do governo. Ele abordou a tarefa de “apoiar
ativamente as empresas na aceleração da atualização tecnológica e no
desenvolvimento de empresas baseadas na inovação”. E acrescentou:

A reforma do sistema cultural: cultura, criatividade


e inovação na China 71
Iremos acelerar o desenvolvimento de setores de serviços mo-
dernos. Promoveremos o desenvolvimento de bancos, seguros,
logística moderna, consultoria, software e indústrias criativas
e desenvolveremos novos tipos de serviços. Iremos atualizar as
indústrias de serviços tradicionais. (Wen, 2009)

O esboço do Plano Quinquenal de Reforma e Desenvolvimento Cultural


de 2011-15 enfatiza a necessidade urgente de “emancipar e desen-
volver a produtividade cultural para fornecer uma ampla gama de
produtos e serviços às pessoas”. Tal emancipação é um meio para
resolver a lacuna existente entre oferta e demanda no mercado in-
terno. A forte produtividade cultural é importante para aumentar
a competitividade internacional, um fator que traz as ambições de
poder brando da China para um foco mais definido. De acordo com
o documento11 aprovado no xvii Comitê Central do pcc, em 2011
(Wang e Cai), a capacidade da China de inovar é fundamental para
“aumentar o poder brando e a competitividade abrangente da cul-
tura de uma nação”. A solução, segundo esse documento, passa pela
“convergência entre cultura e tecnologia”.
O significado de “convergência” na linguagem política chinesa
está aberto à interpretação. O discurso contemporâneo de con-
vergência tem como foco levar a China para um novo modelo de
desenvolvimento. O modelo preferido é a combinação entre a ino-
vação tecnológica e a criatividade cultural (keji chuangxin yu wenhua
chuangyi ronghe). Os legisladores reconhecem o papel da inovação
científica e tecnológica na condução do crescimento das indústrias
culturais e criativas e na expansão dos processos de aperfeiçoamento
da sociedade. Acredita-se que a convergência seja o futuro modelo de
desenvolvimento para as indústrias culturais do país, bem como um
meio de transformar o desenvolvimento econômico.
Nesse modelo, a tecnologia da informação se aproximou da cul-
tura e da arte. No 12o Plano Quinquenal, uma indústria de tecnolo-
gia da informação de “nova geração” foi identificada como um dos
sete setores emergentes de importância estratégica nacional. Mais
especificamente, isso inclui redes de informação de última gera-
ção, componentes eletrônicos básicos, software de ponta e novos
serviços de informação. A perspectiva é de que essas tecnologias
digitais desempenhem papéis diferentes em distintas regiões para
beneficiar as indústrias culturais. Em grandes cidades costeiras do
leste da China, como Pequim e Xangai, tecnologias emergentes
como internet móvel, computação em nuvem e big data estão im-

72 Michael Keane e Elaine Jing Zhao


pulsionando a “atualização” das indústrias culturais; isso implica
que projetos culturais com baixo desempenho devem se tornar
mais criativos e inovadores. Nas regiões menos desenvolvidas do
centro-oeste, os legisladores veem a informatização e a digitali-
zação como uma forma de transformar recursos culturais tradi-
cionais em oportunidades de desenvolvimento, por exemplo na
indústria do turismo ou na preservação do patrimônio cultural.
Mais distante das cidades da costa leste, a ênfase é menos na cria-
tividade e inovação e mais na proteção.
Em consonância com o discurso da atualização, o Estado aprovou
“bases de demonstração nacionais” para combinar cultura com ciência
e tecnologia. Elas geralmente integram os parques nacionais de alta
tecnologia existentes. A atual lista nacional de bases de demonstração
conta com dezesseis projetos. Por exemplo, a Base de Demonstração
de Zhongguancun, em Pequim, que inclui o distrito de alta tecno-
logia de Haidian, o distrito de recreação cibernética de Shijingshan
mais a oeste, o Yonghe Park, no distrito de Dongcheng, e o Desheng
Science Park, no distrito de Xicheng. Da mesma forma, a Base de
Demonstração de Zhangjiang, em Xangai, identificou indústrias da
informação e abraçou oportunidades em jogos online e publicação
digital. Os setores de conteúdo e serviços digitais são, desse modo,
importantes ramos de atividade na exploração da convergência en-
tre criatividade cultural e inovação tecnológica. Embora estruturas
visíveis como bases e parques possam ser facilmente construídas na
China, os processos criativos e de inovação “menos visíveis” são fun-
damentais para fomentar o setor.
A campanha de convergência está introduzindo novas aborda-
gens para a produção, distribuição e consumo de conteúdo criativo.
Isso representa desafios para o governo em resposta a esse desenvol-
vimento, especialmente quando o conteúdo é dissociado das plata-
formas de distribuição. Embora a tríplice convergência de redes –
telecomunicações, radiodifusão e internet – esteja na agenda do
governo chinês desde o 10o Plano Quinquenal proposto na passagem
para o século xxi, houve pouco progresso no nível nacional, princi-
palmente por causa de interesses conflitantes entre a Administração
Estatal de Rádio, Cinema e Televisão (sarft) e o Ministério da In-
dústria e Tecnologia da Informação (miit), com exceção de alguns
projetos-piloto em várias cidades (Wu e Leung, 2012). Certamente,
existe a necessidade de se estabelecer uma agência reguladora de
comunicações convergentes para melhor implementar a política
de triple play.

A reforma do sistema cultural: cultura, criatividade


e inovação na China 73
Como parte da reforma institucional do Conselho de Estado, a
Administração Geral de Imprensa e Publicações (gapp) e a sarft
se fundiram para aprofundar a reforma das instituições culturais e
otimizar seus recursos. A recém-formada Administração Estatal de
Imprensa, Publicações, Rádio, Cinema e Televisão supervisionará as
organizações, o conteúdo e a qualidade de seus produtos e gerenciará
os direitos autorais. Além disso, para acelerar o desenvolvimento e
fazer das indústrias culturais um pilar da economia nacional, o Es-
tado pretende

estabelecer um sistema de inovação tecnológica no campo da cul-


tura em que as empresas desempenharão um papel de liderança,
o mercado oferecerá orientação, e os esforços das empresas, uni-
versidades e institutos de pesquisa serão integrados.

Mais uma vez notamos uma forte dose de retórica que reflete a
agenda de desenvolvimento industrial do Estado e sua ênfase em
tecnologia da informação como um meio de alcançar o Ocidente
avançado e seus próprios vizinhos da Ásia Oriental (Coreia do Sul
e Japão). Desde 1998, os parques científicos e tecnológicos sediados
em torno das universidades testemunharam um rápido desenvolvi-
mento. Os parques anteriores estavam focados em ciência e tecnolo-
gia: alguns eram especializados em campos tecnológicos específicos
dominados por uma única universidade; outros, mais abrangentes,
administrados pelo governo local com a participação de várias uni-
versidades. Além disso, desde 2006, os parques científicos e tecno-
lógicos passaram por uma virada de “humanas”, com muitos deles,
recém-estabelecidos, ligados a universidades com forte capacidade
de pesquisa nas disciplinas dessa área (Peng, 2009).
De fato, a inovação está acontecendo cada vez mais fora da pes-
quisa e do desenvolvimento no âmbito corporativo. Inovação susten-
tável significa que os produtos e serviços precisam ser melhorados
por meio de conversas contínuas com vários atores. Entre esses ato-
res estão os consumidores, que assumem cada vez mais importância
na produção criativa e na inovação. Por exemplo, o crescimento vi-
brante do conteúdo gerado pelos usuários no domínio digital teve
um impacto social, cultural, econômico e político significativo na
China. Embora a criatividade de base exista em grande parte no setor
informal, que não é contabilizado nas estatísticas do governo, tem
havido uma tendência pela qual os atores da indústria no setor for-
mal começam a trabalhar em conjunto com talentos de base (Zhao;

74 Michael Keane e Elaine Jing Zhao


Keane, 2013). Alguns tornaram-se incubadoras de talentos, com o
objetivo de desenvolver e explorar a criatividade de base para o seu
crescimento, ajudando assim as empresas a captarem e responderem
melhor às necessidades do mercado.
Apesar da atenção dada à convergência entre inovação tecno-
lógica e criatividade cultural, não há consenso no país sobre o que
realmente é um sistema de inovação cultural. Até o momento, a ên-
fase tem sido na oferta e não na demanda – uma abordagem do tipo
“construa e eles virão”. Não faltam bases de produção para a mídia e
a cultura; a China se destacou na terceirização de design internacio-
nal e animação (ver Keane, 2013). O problema é que a reputação da
marca dos setores culturais do país não é das melhores. Em 2011, o
ex-presidente chinês Hu Jintao lamentou: “A força geral da cultura
chinesa e sua influência internacional não são compatíveis com o
status internacional da China. A cultura internacional do Ocidente
é forte, enquanto nós somos fracos” (Hu, 2012).
Além de promover a produtividade cultural (isto é, dobrar a pro-
dução para atender à demanda do consumidor interno), espera-se
que a convergência entre as indústrias culturais, manufatureiras e
de serviços estimule a competitividade internacional e, dessa forma,
impulsione a reforma do sistema cultural. Há uma reviravolta irô-
nica nisso – um potencial reverso. Quando a China abriu sua econo-
mia na década de 1980, a “porta aberta” gerou inadvertidamente a
imitação generalizada de produtos de marca do exterior. Com ori-
ginais autênticos com preços altos ou indisponíveis, o boom da ex-
ploração da “shanzhai culture” (cultura da cópia) ofereceu produtos
alternativos baratos aos consumidores (Keane e Zhao, 2012; Wallis
e Qiu, 2012). De fato, à medida que a indústria de tecnologia da in-
formação cresceu nos anos 2000, a cópia de produtos digitais, como
telefones celulares, causou a aceleração dessa cultura.
À medida que a China sobe na cadeia de valor de “Made in China”
para “Created in China” [criado na China], o significado de “shan-
zhai” transforma-se de pura pirataria em criatividade de valor agre-
gado e microinovação. Isso é evidente nos setores de produção e
serviços. No setor de fabricação de telefones celulares, por exemplo,
os produtores locais começaram com a clonagem, mas logo apre-
sentaram novos recursos, como celulares dual chip, para atender às
necessidades do consumidor no mercado interno. Isso também se
aplica ao conteúdo digital. O Weibo, lançado em 2009 como um ser-
viço semelhante ao Twitter, rapidamente adicionou recursos como
anexos de fotos e vídeos, postagens multimídia e contas verificadas,

A reforma do sistema cultural: cultura, criatividade


e inovação na China 75
evoluindo depois para um quase híbrido de Facebook e Twitter. En-
quanto os aplicativos da moda no Vale do Silício geralmente encontram
um enxame de versões copiadas pela China, a inovação incremental
ocorre quando as empresas locais adaptam a ideia importada às ne-
cessidades ou gostos locais.
Além disso, em resposta à popularidade do conteúdo gerado pe-
los usuários e reconhecendo que as gerações mais jovens da China
são nativos digitais que desejam se envolver com atores do setor
comercial, a cctv lançou a China Network Television (cntv) em
dezembro de 2009. A cntv é uma versão administrada e financiada
pelo Estado de sites de vídeos privados já existentes, como Youku e
Tudou (os quais passaram por uma fusão em 2012).
Com acesso às enormes bibliotecas de conteúdo da cctv sem o
desembolso de altas taxas de direitos autorais, a cntv tem óbvias
vantagens de mercado. Percebendo uma oportunidade de explorar
comunidades criativas, ela introduziu a plataforma Xiyou (xiyou.
cntv.cn), por meio da qual os usuários podem fazer upload e com-
partilhar vídeos, e evidentemente emulou as estratégias de muitos
participantes do setor para capturar lucros potenciais na economia
informal. Alternativamente, esse é um caso em que o governo re-
conhece que as comunidades de base atingiram uma massa crítica,
embora seja uma massa que está em desacordo com a representação
das “massas” (qunzhong) à espera de serem educadas do pcc, tema
dominante da política cultural das décadas de 1940 a 1980. As novas
massas estão se movendo de forma online para buscar informações e
entretenimento: são móveis, imprevisíveis e onipresentes.
Além de se envolver com as massas digitais imprevisíveis e com-
petir com atores de mídia privados, a cntv visa mostrar ao mundo o
desenvolvimento, o progresso, a história e a cultura da China. Essa é
talvez a intenção política mais importante por trás da plataforma. De
acordo com seu site, a cntv é uma “plataforma de serviço público
globalizada, multilinguística e multiterminal”; ela visa “converter-
-se em uma emissora confiável baseada na internet na China” (cntv,
2010). Tais aspirações voltadas para o exterior estão intimamente
ligadas ao poder brando. O problema que o país enfrenta em suas
tentativas de desenvolver esse poder, no entanto, é uma percepção
global e generalizada de que o regime comunista restringe a liber-
dade de expressão e os direitos humanos. Nesse sentido, é evidente
que a cntv evita os campos minados políticos, aparentando ser um
meio focado no entretenimento.

76 Michael Keane e Elaine Jing Zhao


OBSERVAÇÕES FINAIS

Demos início à nossa discussão com uma definição de cultura datada


do final da década de 1980, nascida no cerne do materialismo histó-
rico e da conveniência política. Essa definição serviu bem aos legis-
ladores chineses. Entretanto, sua eficácia está diminuindo à medida
que o poder da cultura se desloca para as bases. A desestabilização
da estrutura de cima para baixo está minando o modelo de cultura
de estágios de crescimento historicamente estabelecido, o que tem
implicações para a reforma dos sistemas social, tecnológico, manu-
fatureiro e educacional, bem como para o sistema cultural.
Argumentamos que a reforma do sistema cultural ocorreu aos
trancos e barrancos, acompanhada por períodos de abertura e ajus-
tes, por mudanças na liderança e pela entrada de novos lemas na lin-
guagem política. No final da primeira década deste milênio, tornou-se
evidente para os principais legisladores que o sistema cultural da
China precisava de um novo sopro de vida. Os reformadores con-
centraram a atenção na separação de instituições públicas e empresas
privadas. O conceito de inovação entrou na linguagem da política
cultural, enquanto a criatividade se fundiu com a cultura, embora
desempenhando um papel de apoio à esta na linguagem política.
A reforma do sistema cultural agora tem que lidar com um tipo
diferente de questão de desenvolvimento. A China está inovando
no setor cultural, mas, como já argumentamos (Keane; Zhao, 2012),
está se esforçando para fazê-lo por meio de uma convergência entre
produção, indústrias de serviços e tecnologia. A convergência é tra-
tada em documentos e relatórios governamentais como a próxima
fase do crescimento econômico da China. No mundo real, há tenta-
tivas de construir bases que respondam às aspirações governamen-
tais, embora ainda estejam em uma fase inicial de desenvolvimento.
Enquanto isso, a criatividade surgiu como uma aspiração para tornar
a China mais competitiva na economia global e fomentar o poder
brando. No âmbito do mercado, a criatividade é muitas vezes limi-
tada por gargalos institucionais e regulamentações. No que se refere
às bases, há mais fluxo. O modo shanzhai de inovação, em particular,
impulsiona a demanda por produtos mais baratos e libera a pres-
são para que a nova geração de “criativos culturais” da China lute
pela novidade. Com efeito, à medida que milhares de empresários
e hackers desvendam o código, o modelo “Made in China” torna-se
“Remade in China” [refeito na China].

A reforma do sistema cultural: cultura, criatividade


e inovação na China 77
Talvez mais significativamente em relação a desafiar o modelo
de cima para baixo, a convergência de tecnologia e cultura deu ori-
gem a uma onda de participação que aproxima a esfera amadora do
convencional. Li Wuwei (2011, p. 34) conclui: “Através dessa prá-
tica, os criadores de base desafiam o convencional com o marginal, o
profissional com o amador”. Na China de hoje, a reforma do sistema
cultural não está mais confinada aos corredores do poder em Pequim.

78 Michael Keane e Elaine Jing Zhao


Notas

1 Este artigo foi originalmente publicado em intelectuais foram convocados para liderar a
Cultural Policies in East Asia, Londres: Palgrave transição da China para a modernização, em
Macmillan, 2014, pp. 155–73. [N. do org.] contraste com as décadas anteriores, quando o
2 Li Wuwei é um dos principais conselheiros valor do trabalho intelectual foi rebaixado e
políticos da China e o mais importante pensador o trabalho manual foi elevado.
do país na área de desenvolvimento social e 6 Wenhua tizhi gaige shidian gongzuo de yijian.
econômico. Foi vice-presidente da Conferência 7 Quebao guojia wenhua anquan.
Consultiva Política do Povo Chinês (ccpcc) 8 Em 2008, a Administração Estatal de Rádio,
entre 2008 e 2012. É autor de vários livros, Cinema e Televisão (sarft) promoveu uma
incluindo How Creativity is Changing China. campanha de repressão em larga escala em sites
3 A ccpcc é composta por um quadro variado, de compartilhamento peer-to-peer no setor
incluindo membros dos partidos “democráticos” digital (ver Zhao e Keane, 2013). A intenção era
da China, como o Kuomintang Revolucionário, conter a atividade de distribuição informal.
líderes empresariais, generais do Exército de 9 Wenhua tizhi gaige shidian gongzuo de yijian.
Libertação Popular e outros. 10 Wenhua chanye zhenxing guihua.
4 Sobre essa declaração do período, ver: 11 Decisão do Comitê Central do pcc
www.prnewswire.com/news-releases-test/ sobre as principais questões relacionadas ao
alvin-toffler-named-among-chinas-most- aprofundamento da reforma do sistema cultural
influential-foreigners-56959942.html. e à promoção do grande desenvolvimento da
5 Essas ideias se tornaram influentes em uma cultura socialista.
época (meados da década de 1980) em que os

A reforma do sistema cultural: cultura, criatividade


e inovação na China 79
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A reforma do sistema cultural: cultura, criatividade


e inovação na China 81
CAROLE ROSENSTEIN é professora associada de Gestão Artís-
tica e de Estudos Folclóricos na George Mason University. Estuda
política, demo­cracia e equidade culturais e o aspecto social
da arte e da cultura. Liderou pesquisas comissionadas para o
National Endowment for the Arts, o Institute for Museum and
Library Services, a American Academy of Arts and Sciences
e o Urban Institute, todos nos Estados Unidos. É doutora em
Antropologia Cultural e emprega em seu trabalho abordagens
qualitativas e interpretação, bem como dados quantitativos e
análises. De 2000 a 2007, trabalhou no portfólio de políticas
culturais do Urban Institute, onde foi pesquisadora associada
do Center on Nonprofits and Philanthropy. Em 2007, foi bol-
sista Rockefeller em Política Cultural no Smithsonian Center
for Folklife and Cultural Heritage, em Washington, DC. Sua pu-
blicação mais recente é o livro Understanding Cultural Policy
(Routledge, 2018).
Arquétipos de política
cultural: o lado ruim e o
lado bom1
CAROLE ROSENSTEIN

Os arquétipos de política cultural têm sido fundamentais para o


estudo comparativo da área e continuam influenciando tanto as
caracterizações cotidianas como as acadêmicas dos sistemas nacio-
nais. Também chamados de modelos (Kawashima, 1995), manuais ou
principais exemplos (Zimmer e Toepler, 1999), abordagens (Gattinger
e Saint-Pierre, 2008) ou orientações (Aróstegui e Rius-Ulldemolins,
2018), quase todas as abordagens da política cultural comparada in-
cluem alguma discussão dos arquétipos franceses, ingleses e ameri-
canos. A literatura da política cultural comparada tem argumentado
que tais arquétipos são ferramentas inadequadas para qualquer tipo
de análise matizada mais abrangente (ver Belfiore, 2004; Bonet e
Emmanuel, 2011; Pontes de Araújo e Villarroya, 2018). Ainda assim,
a sua proeminente influência persiste, bem como a noção de que eles
são, de uma forma ou de outra, centrais para o projeto comparativo.
Este artigo defende o argumento de que os arquétipos não cons-
tituem boas ferramentas para analisar o funcionamento burocrático
e instrumental dos sistemas nacionais de política cultural. O trabalho
começa com uma cuidadosa análise das maneiras como os arquétipos
foram usados em três estruturas fundamentais para o estudo compara-
tivo: Cummings e Katz (1987), Chartrand e McCaughey (1989) e Mul-
cahy (2003).2 Essa linha de pesquisa foi motivada por minhas tentativas
de mapear a burocracia cultural e os instrumentos políticos em uso na
política cultural dos Estados Unidos, reunidas no livro Understanding
Cultural Policy, de 2018. O projeto trouxe à tona a pobreza metodológica
dos arquétipos proeminentes. Mais especificamente, descobri que o ar-
quétipo americano não me ajudou; na verdade, obscureceu ou ludibriou
minha visão e tornou mais difícil a análise de como a política cultural

Arquétipos de política cultural: o lado ruim e o lado bom 83


é formulada e administrada nos Estados Unidos. Isso, na verdade, não
deveria me surpreender, já que os arquétipos foram desenvolvidos
para permitir comparações entre nações, e não para auxiliar na criação
de profundos retratos descritivos da política cultural em qualquer país
específico. No entanto, minha hipótese recém-formulada do arquétipo
como uma ferramenta analítica me levou a examinar as distinções ti-
das como certas entre as políticas culturais francesa, inglesa e americana.
Com base nessa avaliação, argumentarei aqui que nem as estruturas ana-
líticas nem as teorias construídas a partir de arquétipos se sustentam.
Em contrapartida, sugiro também que os arquétipos são valiosos
para o estudo comparativo de políticas culturais. A segunda parte
deste artigo comprova que tais ferramentas refletem o que as pessoas
acreditam ser verdade sobre a cultura – ou seja, suas ideologias culturais.
As ideologias culturais dão forma a ideias em torno da importância
da cultura e de como ela deve ser administrada. Seus aspectos mais
relevantes para a política cultural nacional geralmente são formados
em situações em que pessoas de diferentes culturas se confrontam em
função de mudanças políticas radicais, projetos coloniais ou globali-
zação. Eles são bastante claros na política linguística e na política edu-
cacional, e são reconhecidamente importantes também para a política
artística e cultural. Argumento então que os arquétipos de política
cultural mais conhecidos refletem ideologias culturais do nacionalismo
francês, da Commonwealth inglesa e do conceito americano de mercado
de ideias. Tais ideologias destacam certos mecanismos administrativos,
aumentando a ênfase do seu papel em sistemas que, na verdade, são
híbridos no que toca a sua administração. Isso tudo torna os arquéti-
pos ferramentas fracas para analisar os mecanismos da política cultural.
Entretanto, como eles nos informam sobre as ideologias culturais de
maneira direta e poderosa, e podem, com o aprofundamento do es-
tudo, nos informar sobre a natureza do relacionamento entre ideologia
e política cultural, é essencial que continuem a fazer parte do estudo
comparativo. Ao longo do artigo, discutirei as noções de ideologia: ideo-
logias de mercado, ideologias políticas, ideologias culturais. Utilizo o termo
“ideologia” segundo a acepção de antropólogos linguísticos e semió-
ticos (como eu): por exemplo, em uma formulação final, a ideologia
linguística é “qualquer conjunto de crenças sobre linguagem articulada
pelos usuários como racionalização ou justificativa da estrutura e do
uso da linguagem percebida” (Silverstein, 1979, p. 193). Ideologias são,
portanto, conjuntos de crenças expressas usadas para explicar alguns
fenômenos, como eles funcionam no mundo e por que funcionam con-
forme o modo como são percebidos.3

84 Carole Rosenstein
ARQUÉTIPOS DE POLÍTICA CULTURAL E TEORIAS DA
POLÍTICA CULTURAL NACIONAL (O LADO RUIM)

Para os cientistas sociais, existem duas abordagens amplas para identi-


ficar grandes diferenças entre as políticas culturais nacionais para efeito
de comparação. A primeira delas é construir uma espécie de história
natural das políticas culturais nacionais, isto é, reunir descrições de
várias dessas políticas, determinar se elas, de fato, se encaixam em tipos
diferentes e, em seguida, tentar explicar por que podemos encontrar
diferenças. Em sua inovadora compilação de ensaios, intitulada The
Patron State: Government and the Arts in Europe, North America and Japan
(1987), Milton Cummings e Richard Katz participam dessa emprei-
tada. A segunda abordagem propõe uma teoria para explicar por que
as políticas culturais nacionais podem ser diferentes e, em seguida, ana-
lisar uma série delas para ver se realmente diferem conforme previsto.
Minha interpretação de Chartrand e McCaughey (1989) e de Mulcahy
(2003) mostra que eles estão empenhados nessa tarefa.
Cummings e Katz esboçam uma estrutura para comparar como as
nações abordam a política cultural com base no principal objetivo do país,
instrumento-chave para definir a política, o grau de centralização vertical
e a forma de administração (figura 1). Os autores sugerem que as políticas
culturais nacionais podem ser comparadas descrevendo-as em relação
aos seus objetivos principalmente nacionalistas, econômicos, sociais ou
políticos; ao uso de patrocínios, subsídios, doações ou gastos fiscais; à
prevalência de centralização, descentralização ou delegação4 e ao uso de
ministério, agências fragmentadas, quango [agência quase não governa-
mental] ou instituições culturais do setor público para administrá-las.

Figura 1: Estrutura para uma política cultural comparativa

Grau de centralização
Objetivo Instrumento Administração
vertical
Patrocínio/
Nacionalista Centralização Ministério
patronagem
Agências
Econômico Subsídio/doação
Descentralizado fragmentadas
Social Grantmaking Quango
Instituições
Político Gastos fiscais Delegado
culturais públicas

Fonte: adaptado de Cummings e Katz, 1987.

Arquétipos de política cultural: o lado ruim e o lado bom 85


Qualquer política cultural individual é passível de ser caracterizada
pela combinação de todas as referidas classificações: pode-se encon-
trar, em um determinado local, um sistema descentralizado de orien-
tação social, baseado no clientelismo e administrado por instituições
culturais do setor público; em outro, pode haver um sistema nacio-
nalista centralizado, baseado em subsídios e administrado por um
ministério etc. O estabelecimento de arquétipos de política cultural
não fazia parte do projeto de Cummings e Katz, e a elaboração de
objetivos principais, instrumentos políticos e graus de centraliza-
ção vertical é abstrata, valendo-se de exemplos nacionais puramente
para fins de ilustração, sem fazer sugestões ostensivas sobre a pos-
sibilidade de qualquer uma dessas dimensões se ligar a outras. Com
o propósito de reunir retratos descritivos das políticas culturais
nacionais no volume The Patron State, os autores forneceram da-
dos para se construir uma teoria que especulasse sobre os motivos
dessas dimensões serem regularmente encontradas juntas em um
sistema de política cultural nacional.
No entanto, a argumentação de Cummings e Katz sobre o que
eles chamam de “principais formas organizacionais” de adminis-
tração – ministério, agências fragmentadas, quango (com controle
parcial do governo) e instituições culturais públicas – vincula es-
sas formas a tradições de apoio à arte de maneira a aproximá-las
do desenvolvimento de arquétipos. Eles sugerem que uma distin-
ção básica pode ser feita entre duas tradições de apoio à arte e à
cultura: uma está enraizada no absolutismo tipificado pela França
e Áustria, nações católicas que haviam sido governadas por mo-
narcas absolutos, onde a cultura e a arte eram abraçadas na corte e
seu cultivo fazia parte da glorificação do monarca e do seu Estado
(pense em Luís xiv em Versalhes); outra tradição está enraizada
no mercantilismo tipificado pela Inglaterra e Holanda. Essa tradi-
ção surgiu de nações plutocráticas que haviam sido governadas
por um monarca com poderes limitados, onde o patronato era as-
sumido principalmente por comerciantes ricos, e o desdém pela
arte, arraigado no ascetismo protestante, predominava. O abso-
lutismo levou à tendência ao apoio estatal à arte; o mercantilismo,
a uma tendência ao apoio privado. Embora tais características e
tendências possam ser aplicadas a outras conjun­turas, a França
e a Inglaterra são os dois casos arquetípicos usados em The Patron
State, bem como na maioria das políticas culturais comparativas.
Em grande parte, isso ocorre porque as “principais formas orga-
nizacionais” de administração identificadas nesses países ressoam

86 Carole Rosenstein
muito fortemente as tendências históricas: seguindo sua tendência
de apoio estatal à arte, a França desenvolveu o que Cummings e
Katz chamam de “modelo do Ministério da Cultura francês”, en-
quanto a Inglaterra desenvolveu a “fundação quase pública” de
controle governamental parcial, alicerçada em sua tradição de
apoio privado à arte.
A protoarquetipagem baseada em tradições históricas de apoio
à arte fundamenta uma tipologia de “forma organizacional” que
não resiste à análise. Empregando essa tipologia, por exemplo,
Cummings e Katz definem a política dos Estados Unidos vincu-
lando-a ao National Endowment for the Arts (nea), reconhecido
por eles como uma “fundação quase pública”, no modelo do Arts
Council inglês. Contudo, a administração da política cultural ame-
ricana é profunda e fundamentalmente híbrida. Isso é verdade
mesmo para a faixa mais estreita de política e administração que
se concentra na arte. Embora a administração cultural americana
não inclua um ministério, ela incorpora cada um dos outros tipos
de forma organizacional em funções administrativas essenciais.
A administração cultural nos Estados Unidos geralmente está as-
sociada ao nea, mas isso tem mais a ver com a maneira de perceber
a arte como representante de toda a cultura e com as narrativas
da Guerra Fria de formulação de políticas culturais do que com a
sua real organização burocrática de administração. Outro exemplo:
muitos ministérios supervisionam o tipo de instituição cultural do
setor público que Cummings e Katz classificam como “empresarial”
(em que o governo atua no papel de empresário). Muitas dessas
instituições se envolvem em doações, o que as tornaria algo mais
parecido com um quango. Essa tipologia simplesmente não encon-
tra respaldo nos tipos e nas configurações da estrutura adminis-
trativa que encontramos no mundo, e que queremos descrever e
entender cuidadosamente.5
Existem vários problemas aqui; o maior deles é o fato de Cum-
mings e Katz inclinarem-se para o apoio à arte como dimensão expli-
cativa fundamental subjacente à política cultural (nesse sentido, eles
não são os únicos). Um bom argumento é o de que a política cultural
britânica pode ser mais bem compreendida quando observada a his-
tória da sua orientação para a regulamentação da cultura, em vez de
sua orientação para o apoio à arte. A forma como a arte é vista, isto é,
como parte da cultura, deve ser considerada no desenvolvimento de
uma tipologia comparativa efetiva. Esse tratamento delineia a dis-
tinção básica entre uma tradição francófona, que acredita na forte in-

Arquétipos de política cultural: o lado ruim e o lado bom 87


tervenção do Estado sobre a cultura, e uma tradição anglófona, que
se sente menos confortável com a intervenção estatal. No entanto, a
proposição subjacente de que tais tradições explicarão a estrutura
administrativa primária não parece funcionar de fato.
Em outra estrutura de influência, Chartrand e McCaughey (1989)
comparam o que chamam de quatro “papéis arquetípicos” que um
Estado pode assumir em seu apoio à arte e à cultura: facilitador, pa-
trono, arquiteto e engenheiro. Os quatro tipos são extraídos de uma es-
trutura que compara possíveis atitudes em relação ao apoio à “criati-
vidade” versus o apoio à “produção de tipos de arte específicos, como
o realismo socialista”, e são elaborados a partir de retratos abstratos
da política nacional de arte nos Estados Unidos, Inglaterra, França
e urss (figura 2). O Estado facilitador promove a

diversidade de atividade nas artes amadoras sem fins lucrativos


e nas belas-artes. Ele apoia o processo de criatividade, em vez
de tipos ou estilos de arte específicos. Além disso, nenhum pa-
drão de arte específico é apoiado por esse Estado, que se baseia
nas preferências e gostos de doadores corporativos, fundações e
pessoas físicas.

O Estado patrono apoia o “processo de criatividade”, mas seu objetivo


político é “promover padrões de excelência artística profissional”.
O Estado arquiteto “apoia as artes como parte de seus objetivos de
bem-estar social e também tende a apoiar a arte que atende à co-
munidade, em vez de padrões profissionais de excelência artística”.6
No Estado engenheiro, “as decisões de financiamento são tomadas por
comissários políticos e destinam-se a promover a educação política,
não a excelência artística”. Além disso, o apoio é dado apenas à “arte
que atende aos padrões políticos de excelência; não suporta o pro-
cesso de criatividade”.

Figura 2: Apoio à “criatividade” como o objetivo principal da


política nacional de arte

eua Inglaterra França urss

++ + − −−

Fonte: adaptado de Chartrand e McCaughey, 1989.

88 Carole Rosenstein
Partindo de fundamentos para a comparação dos graus de “apoio à
criatividade”, os arquétipos de Chartrand e McCaughey destacam
mecanismos administrativos distintos, usados nos quatro países
citados: nos Estados Unidos, eles estão associados aos gastos tribu-
tários; na Inglaterra, ao Arts Council, com controle governamental
parcial; na França, a um Ministério da Cultura centralizado; e na
urss, à propriedade nacional da empresa cultural. Os mecanismos
administrativos repousam no centro dos arquétipos, fornecendo a
chave para identificar as diferenças entre eles.
No entanto, a tipologia descrita não consegue distinguir as
duas dimensões da administração: os instrumentos políticos e
a organização burocrática. A despesa fiscal e a nacionalização
são instrumentos políticos; os conselhos e ministérios das artes
constituem tipos da organização burocrática. Os fundamentos
conceituais dessa estrutura tornam-se mais aparentes quando as
instituições são substituídas pelos instrumentos políticos tipi-
camente associados a elas – subsídios e provisão pública,7 como
pode ser visto a seguir (figura 3):

Figura 3: Os arquétipos de política cultural por forma de


administração e instrumento político característicos

eua Inglaterra França urss

Conselho de
Administração [nulo] Ministério [nulo]
Artes

Subsídio/ Provisão
Instrumento Gastos fiscais Nacionalização
doação pública

Fonte: elaboração própria.

Uma vez que os instrumentos políticos associados a esses quatro


arquétipos são identificados, fica claro que eles caem em uma escala
que mede o grau de “interferência” do governo no mercado de arte:
os gastos tributários são o instrumento menos utilizado; a nacio-
nalização, o mais. A comparação reflete as orientações fundamen-
tais para o mercado e as ideologias de mercado que impulsionam as
intervenções – neoliberal, liberal, planejado e controlado (figura 4).
A tipologia não é útil para ajudar a explicar a administração cultural

Arquétipos de política cultural: o lado ruim e o lado bom 89


porque os instrumentos políticos não se ligam, de fato, às estrutu-
ras burocráticas da maneira como os arquétipos sugerem. É preciso
reiterar: quando visto da perspectiva administrativa, os sistemas
de política cultural aparentam ser profunda e fundamentalmente
híbridos. Em primeiro lugar, os instrumentos políticos de gastos
tributários, subsídio, provisão pública e nacionalização podem ser e
são, de fato, adotados independentemente da estrutura burocrática
existente. Os governos que administram a política cultural por meio
de um ministério empregam despesas tributárias; os que oferecem
as doações com controle parcial do governo também nacionalizam
as empresas culturais. Além disso, os instrumentos políticos não são
mutuamente exclusivos. Uma vez desvinculados desses arquétipos,
fica claro que eles não necessariamente conflitam uns com os outros.
Argumentar que os aspectos burocráticos e instrumentais da admi-
nistração de alguma forma se encaixam ou se vinculam requer mais e
mais estudos comparativos de políticas culturais, especialmente en-
volvendo muitos outros exemplos nacionais, bem como um estudo
cuidadoso do desenvolvimento ou da mudança de políticas culturais
(ver Bonet e Emmanuel, 2011).

Figura 4: Os arquétipos de política cultural de Chartrand e


McCaughey

eua Inglaterra França urss

“Facilitador” “Patrono” “Arquiteto” “Engenheiro”

++ Criatividade + Criatividade − Criatividade −− Criatividade

Gastos fiscais Subsídio/doação Provisão pública Nacionalização

Neoliberal Liberal Planejado Controlado

Fonte: adaptado de Chartrand e McCaughey, 1989.

90 Carole Rosenstein
Ao apresentar seus arquétipos, Chartrand e McCaughey agrupam
características das quatro nações mencionadas e unem desejo de
apoiar a expressão artística ou a criatividade (ou não) com vontade
de intervir no mercado (ou não). O uso de arquétipos faz supor
que todos os tipos de diferença podem ser explicados em relação à
abordagem de uma nação no mercado – não só o compromisso do
governo com a criatividade, mas também seu interesse fundamen-
tal pela cultura enquanto interesse público, sua vontade de investir
na cultura e seu respeito pelos padrões estéticos. A estrutura de
Chartrand e McCaughey se funde, reforçando a tendência de tor-
nar a questão da “liberdade artística” um tema privilegiado de todo
estudo comparativo de políticas culturais. Encarar tais diferenças
como aquelas que devem fundamentar a política cultural compa-
rada pode ter feito sentido no contexto da Guerra Fria, mas hoje não.
Atualmente, o estudo comparativo de políticas culturais deve tra-
tar das maneiras como as políticas abrangem toda uma variedade
de formas culturais, não apenas a arte, e também deve ser capaz de
comparar amplos sistemas de política cultural, não apenas modelos
de financiamento artístico. Alguns legisladores e políticos tendem
a privilegiar a ideologia de mercado, usando-a como uma espécie
de epistemologia para toda política. Não devemos tomar isso como
verdadeiro ou, ao menos, verdadeiro em todas as ocasiões. Essa con-
figuração pode ser apenas o produto de um período histórico especí-
fico (anos 1980, por exemplo) ou de alguma outra força. Definir se o
uso de um determinado instrumento político de fato reflete outros
tipos de intenções e em que grau isso ocorre – principalmente uma
orientação voltada para o mercado – são questões que exigem es-
tudo mais aprofundado.
Parece, então, que duas coisas são verdadeiras sobre o conjunto
de influência de arquétipos de política cultural: eles refletem diferen-
ças que as pessoas acreditam ser reais e consequentes e, ao mesmo
tempo, referem-se a sistemas que compartilham muitas das mesmas
características administrativas. Isso sugeriria que a melhor forma de
explicar as diferenças entre esses sistemas não é olhar para a admi-
nistração cultural.
No entanto, destrinchar os arquétipos de Chartrand e Mc-
Caughey é um exercício valioso por várias razões. Em primeiro lugar,
o exercício acusa que o uso de determinado instrumento político
pode ser impulsionado por uma ideologia de mercado tanto quanto
o é, se não muito mais, por qualquer eficácia ou eficiência direta
que ele pode ter ou qualquer resultado específico que uma política

Arquétipos de política cultural: o lado ruim e o lado bom 91


pretende alcançar. Os arquétipos de Chartrand e McCaughey
também são valiosos pelo modo como revelam que, quando os
legisladores adotam um desses mecanismos administrativos, o uso
pode refletir ou implicar certa atitude em relação à intervenção.
Embora a intenção de “apoiar a criatividade” não forneça base ade-
quada para uma teoria da administração cultural, os mecanismos ad-
ministrativos associados aos arquétipos claramente abrangem uma
gama de sistemas de política cultural que variam de relativamente
não planejados a altamente planejados (figura 5).

Figura 5: Os arquétipos de política cultural por mecanismo


administrativo característico e grau de planejamento

eua Inglaterra França urss

Gastos fiscais Conselho de Artes Ministério Nacionalização

−− Planejamento − Planejamento + Planejamento ++ Planejamento

Fonte: adaptado de Chartrand e McCaughey, 1989.

Quando o governo adota ou desenvolve o Ministério da Cultura ou


introduz uma forma cultural específica dentro de um ministério,
isso sugere que ele deseja intervir em um nível relativamente alto.
Já quando adota ou desenvolve a isenção fiscal para abordar algumas
questões concernentes à política cultural, isso sugere que ele deseja
intervir em um nível relativamente baixo. Como os sistemas de po-
lítica cultural são híbridos, também pode ser útil traçar diferentes
formas de administração associadas a diferentes elementos da cul-
tura dentro de qualquer sistema específico.
Embora o façam apenas de forma implícita e indireta, Chartrand
e McCaughey explicam as diferenças entre as políticas culturais na-
cionais conforme as distintas ideologias de mercado. Por outro lado,
Mulcahy (2003, 2017) argumenta que as políticas culturais refletem
ideologias políticas. Ele argumenta que os sistemas de política cultural
diferem de acordo com as distinções na “cultura política” (chamada,
às vezes, de “cultura pública”). A cultura política é a “orientação
para a política envolvendo atitudes gerais sobre o sistema e atitudes
específicas sobre o papel do eu no sistema” (Mulcahy, 2003, p. 96).8

92 Carole Rosenstein
A ideia lembra o insight de Tocqueville, que disse: “Em todos os lu-
gares que, à frente de um novo empreendimento, você vê o governo
na França e um grande lorde na Inglaterra, pode ter certeza de que
encontrará uma associação nos Estados Unidos” (Tocqueville, 2000
[1805–59], p. 489). Ou Mary Glasgow, a primeira secretária-geral
do Arts Council, comentando que “a ausência de controle oficial é
como gostamos de fazer as coisas na Grã-Bretanha” (citada em Mi-
nihan, 1977, p. 245). As nações têm maneiras diferentes de entender
o ato de governar e certas formas de fazer a administração do Estado,
e essas características maneiras de fazer serão refletidas em tudo o que
regem, incluindo a cultura. Mulcahy usa a ideia de cultura política
para comparar “sistemas de patrocínio cultural” que surgem de qua-
tro tipos de “cultura pública” (2003): nacionalismo francês, liberalismo
canadense, social-democracia norueguesa e libertarismo americano (figura
6). Cada tipo está associado a uma “forma característica de finan-
ciamento cultural”,9 “modo de administração cultural” e “política
cultural” – ou “grandes preocupações de política cultural”.

Figura 6: Os “tipos ideais” de política cultural de Mulcahy


adaptados como arquétipos

França Canadá Noruega eua

Estado da Social-
Tipo ideal Protecionista Laissez-faire
cultura -democracia

“Cultura Social-
Nacionalista Liberal Libertária
pública” -democracia

Administração Estatista Consociativismo Localista Pluralista

Política
Hegemonia Soberania Democracia Laissez-faire
cultural

Fonte: elaboração própria.

O propósito declarado de Mulcahy é elaborar “tipos ideais” de


“patrocínio cultural”. Contudo, não está claro se esses exemplos
funcionam como tipos ideais, uma vez que a sua aplicabilidade a
qualquer outra nação é questionável. A Grã-Bretanha seria mais
bem descrita como parte de uma ideologia política liberal, mas
não seria bem entendida como protecionista, e as preocupações

Arquétipos de política cultural: o lado ruim e o lado bom 93


com a soberania cultural não poderiam ser consideradas de forma
justificável como algo primordial para sua política cultural. A bu-
rocracia cultural do Japão é altamente centralizada, mas sua po-
lítica cultural não se concentra na hegemonia. Grande parte da
política cultural brasileira contemporânea tem se caracterizado
pelo uso de instrumentos políticos laissez-faire, mas o Brasil está
longe de ser libertário. Como não funcionam bem como tipos
ideais abstratos, esses retratos podem ser entendidos como ar-
quétipos. (Isso é menos verdadeiro no caso da Noruega, que parece
representar um tipo distinto de política cultural nórdica.)
Os arquétipos de Mulcahy são desenhados para exemplificar seu
argumento de que, “dependendo de suas culturas políticas, os gover-
nos variam na forma como suas políticas culturais são conceituadas
e implementadas” e “as políticas culturais representam um micro-
cosmo de visões de mundo sociais e políticas mais amplas” (2017,
p. 8). Assim, o que ele fornece são descrições de quatro nações onde
as ideologias políticas sobre governo e administração são refletidas
na área da cultura, expressas na burocracia e na política cultural.
Um defeito grave da estrutura de Mulcahy é o fato de ele não definir
claramente o que quer dizer com “cultura pública”, nunca a distin-
guindo do conceito de “cultura política”. Daí se deduz que o que ele
quer dizer com “cultura pública” é a expressão da ideologia política
no domínio da política cultural. Evidentemente, examinar a “cultura
pública” de uma nação pode ser uma lente importante para conside-
rar a política cultural. Mas o que isso nos diz? Uma ideologia política
libertária é expressa na política cultural americana por meio do uso de
gastos tributários e apoio à iniciativa privada, no formato corporativo
e sem fins lucrativos. Ao mesmo tempo, existem, nos Estados Unidos,
uma burocracia cultural complexa e diversificada e gastos públicos
substanciais, além dos gastos com impostos, para a arte e a cultura.
Concentrar-se nos gastos tributários como algo exemplar do sistema
americano não põe o sistema de política cultural em foco; na verdade,
torna-o menos fácil de discernir. Uma política cultural comparativa
eficaz deve ser capaz de descrever ideologias diferentes em ação no
processo de formação e desenvolvimento das próprias políticas e de
caracterizar os seus sistemas como são, e não como aparentam ser
quando vistos através das lentes da ideologia.
O trabalho do Mulcahy não oferece uma visão crítica, mas as
pessoas gostam de um sistema em que a ideologia política e a ad-
ministração parecem se encaixar bem, considerando-o um exemplo
de como um sistema deve ser. Estamos dispostos a ignorar a ma-

94 Carole Rosenstein
neira como ele realmente funciona para vê-lo como mecanismo bem-
-sucedido que incorpora elegantemente tais dimensões. Isso nos diz
muito sobre o poder e a influência de arquétipos.
Considerem-se os três arquétipos de política cultural nacional
mais poderosos: França, Inglaterra e Estados Unidos. As diferen-
ças fundamentais entre eles decorrem de suas diferentes ideolo-
gias políticas ascendentes sobre quem melhor detém a autori-
dade: um governo versus um grande lorde10 versus uma associação,
como Tocqueville colocou a questão. As formas relacionadas de
organização burocrática e instrumentos políticos nesses arqué-
tipos parecem se encaixar com as ideias sobre autoridade como
algo natural e autoexplicativo (figura 7).

Figura 7: Os arquétipos de política cultural por autoridade,


forma de administração e instrumento característicos

França Inglaterra eua

Controle
Autoridade Centralizado Delegado
governamental parcial

Administração Ministério Quango [nulo]

Instrumento [nulo] Subsídio/doação Gastos fiscais

Fonte: elaboração própria.

Se ideias sobre autoridade pudessem explicar as diferenças adminis-


trativas, esperaríamos encontrar formas administrativas distintas em
lugares onde há ideias distintas sobre autoridade e vice-versa. Será que
esse é o caso? A Noruega tem ideias distintas sobre a descentralização
da autoridade, e sua burocracia cultural é diversamente estratificada,
ou seja, caracteriza-se por uma grande autonomia intergovernamental
segundo a dimensão vertical. Não está claro se isso faz dela uma forma
distinta de administração cultural. Talvez sim. A Alemanha tem uma
forma distinta de burocracia cultural em nível federal, o Comitê de
Cultura e Questões Midiáticas, cujas responsabilidades se limitam a
compromissos de política cultural internacional e a promover comu-
nicações nacionais e intercâmbio de informações. Mas as ideias ale-

Arquétipos de política cultural: o lado ruim e o lado bom 95


mãs sobre autoridade (de modo diverso da organização política) são
bastante estatistas. E o National Endowment for the Arts americano
evoluiu para atuar de forma semelhante à burocracia federalista alemã,
no sentido de que muitas de suas funções se alteraram para mediar
comunicações e ações nacionais,11 enquanto a delegação ao setor sem
fins lucrativos permanece a principal orientação da autoridade cultu-
ral nos Estados Unidos. Sendo assim, embora comparar ideias sobre a
autoridade ofereça alguns bons insights sobre dimensões comparativas
generativas, isso não parece nos fornecer uma boa explicação – ou teo-
ria – sobre por que os sistemas de política cultural diferem.

IDEOLOGIAS CULTURAIS E ARQUÉTIPOS DE POLÍTICA


CULTURAL (O LADO BOM)

A discussão até aqui sugere que os arquétipos de política cultural


não são tão bons para nos mostrar como os sistemas nacionais de
política cultural realmente são ou por que eles são como são. Os
arquétipos foram considerados úteis para apontar uma dimensão
analítica fundamental para a comparação (ou seja, o grau de plane-
jamento) e podem continuar a ser úteis para o estudo comparativo
de políticas culturais, porque são muito bons para nos informar
sobre como as nações pensam suas políticas culturais (se e quando
as pensaram) ou, talvez mais precisamente, sobre como desejam
que seus sistemas nacionais de política cultural sejam vistos. Não
há dúvida de que tais desejos se relacionam com ideias gerais sobre
o governo. E eles também têm a ver, inevitavelmente, com as ideias
das pessoas a respeito da cultura. As três nações arquetípicas citadas,
por exemplo, são caracterizadas por três ideologias culturais muito
diferentes, isto é, conjuntos de premissas relativamente pressupos-
tas e sistemáticas (Parmentier, 2016) sobre a cultura e sua relevância
e impacto na moral, na sociedade e na política. Cada uma dessas
ideologias culturais pode ser o tema de uma longa investigação.
Aqui, vou simplesmente esboçá-las e relacioná-las diretamente às
ideias sobre o valor público da cultura (já que esta é uma discussão
sobre políticas públicas e, portanto, o que é público a respeito da
cultura é o mais importante aqui).
A ideologia cultural francesa pode ser caracterizada como nacio-
nalista: o valor público da cultura está enraizado na sua capacidade
de promover a identificação com a nação. O melhor contexto para
reconhecer o caráter profundamente nacionalista da ideologia cultu-

96 Carole Rosenstein
ral da França se conserva nas atitudes e ideias sobre a língua francesa.
Ela é vista pelos franceses como a mais alta personificação da cultura
de seu país (Schiffman, 1996, p. 80). A clareza, a elegância e o refi-
namento da linguagem são considerados características bem… fran-
cesas. Acredita-se que seja a língua mais adequada ao pensamento
racional e à comunicação. É considerada um instrumento de civili-
zação; falar francês leva o falante à irmandade universal de esclare-
cimento, igualdade e liberdade. Desde 1673, a Académie Française
estabeleceu e fez cumprir os padrões da língua francesa em nome do
Estado, dos cidadãos franceses e de todos os francófonos. O francês
tornou-se o idioma oficial para todas as ações governamentais em
1787. Ensinar o francês-padrão e usá-lo como língua de instrução
nas escolas fazia parte da agenda revolucionária de longo prazo, e
a política linguística colonial dos séculos xix e xx também seguia
nessa direção. A ideologia cultural francesa é uma extensão dessa
forma central. Para os franceses, existe um padrão cultural, e esse
padrão reflete o que é ser francês; além disso, tal padrão pode ser
identificado e fixado, e é esse padrão fixo que o Estado deve manter
e promover. A cultura está no centro do modo como a França se
entende como nação, e o cultivo atento e coordenado da cultura é,
portanto, prioridade do governo.
O valor público da cultura na Inglaterra decorre da sua capaci-
dade de promover a comunhão; isso faz parte da ideologia cultural da
Commonwealth – uma ideia complicada e indescritível. Em essên-
cia, a ideia é a de que, embora as pessoas tenham direitos essenciais
e diferenças irreconciliáveis, elas podem encontrar bens mútuos em
torno dos quais concordam e se unem. No argumento clássico de
Thomas Hobbes sobre a Commonwealth, o que pode uni-los é a paz
que conquistam ao se submeter ao governo de um soberano. Na ideo-
logia cultural da Commonwealth, o que pode unir diversas pessoas
é o reconhecimento mútuo do padrão de excelência incorporado na
cultura inglesa. O uso do inglês como língua franca é visto como uma
expressão dessa ideia. Formas culturais apresentadas na abertura dos
Jogos Olímpicos de 2012 – críquete, Shakespeare, Blake, James Bond,
literatura infantil, os Beatles – são os principais exemplos dessa ideo-
logia: tanto definitivamente britânicas quanto absolutamente glo-
bais. Outro exemplo é o Man Booker Prize, concedido à literatura
em inglês publicada no Reino Unido. O prêmio foi fundamental para
estabelecer a categoria “Commonwealth Literature”, ou seja, litera-
tura escrita em inglês por escritores das ex-colônias. Salman Rushdie
escreveu sobre a ideia de uma literatura da Commonwealth ser

Arquétipos de política cultural: o lado ruim e o lado bom 97


uma quimera, e em termos muito precisos. É claro que a palavra
passou a significar uma criatura irreal e monstruosa da imagina-
ção; mas você deve se lembrar que a quimera clássica é um tipo
de monstro bastante especial. Tem a cabeça de leão, corpo de
bode e cauda de serpente. Ou seja, só poderia existir em sonhos,
sendo composto de elementos que não poderiam ser reunidos no
mundo real. (1992, p. 63)

É claro que a Commonwealth of Nations [Comunidade das Nações]


é um órgão transnacional real, e a cultura é central para sua visão e
atividades. Não é por acaso que a ideia de comunidade é uma raiz
do Arts Council, tal como um símbolo da política cultural inglesa:
a mudança decisiva do Império para a Commonwealth aconteceu
exatamente no momento em que o Arts Council foi criado.
A ideologia cultural dos Estados Unidos, por sua vez, pode ser ca-
racterizada como aquela que vê a cultura como um mercado de ideias.
É importante entender essa ideologia de maneira distinta do neoli-
beralismo. Seus princípios estão bem expressos no texto de Thomas
Jefferson, Virginia Statute of Religious Freedom, de 1786:

Considerando que Deus Todo-Poderoso criou a mente livre; […]


obrigar um homem a fornecer contribuições em dinheiro para a
propagação de opiniões em que ele não acredita é pecaminoso e
tirânico; [e] permitir que o magistrado civil intrometa seus po-
deres no campo da opinião e restrinja a profissão ou propagação
de princípios sob a suposição de sua má tendência é uma falácia
perigosa que imediatamente destrói toda liberdade religiosa,
porque ele é, naturalmente, juiz dessa tendência e fará de suas
opiniões a regra de julgamento e aprovará ou condenará os sen-
timentos dos outros apenas quando eles se enquadrarem ou di-
ferirem dos seus próprios […]. A verdade é grande e prevalecerá
se for deixada a si mesma, porque ela é a antagonista adequada e
suficiente do erro, e nada tem a temer do conflito, a não ser por
interposição humana sem suas armas naturais, a livre argu-
mentação e o debate, com os erros deixando de ser perigosos
quando se permite livremente contradizê-los.

Aqui, crenças, opiniões e gostos são vistos como questões naturais


e fundamentais da consciência individual. Como tal, eles devem
circular e prosperar ou morrer livres da interferência do governo.
A famosa metáfora do mercado foi introduzida por Oliver Wendell

98 Carole Rosenstein
Holmes, juiz da Suprema Corte, em uma decisão sobre liberdade de
expressão em 1919:

Mas quando os homens perceberem que o tempo perturbou


muita fé combatente, eles podem vir a acreditar, ainda mais do
que acreditam nos próprios fundamentos de sua conduta, que
o bem final desejado é mais satisfatoriamente alcançado pelo
livre comércio de ideias – que o melhor teste da verdade é o
poder do pensamento de ser aceito na competição do mercado
e que a verdade é a base sobre a qual seus desejos podem ser
realizados com segurança.12

O mecanismo administrativo que é apresentado como modelo ou


símbolo de uma política cultural nacional arquetípica diz algo sobre
a ideologia cultural que ali opera. O Ministério da Cultura francês
exemplifica a ideologia cultural nacionalista francesa porque ex-
pressa a ideia de que cultura, Estado e nação são uma coisa só. O Arts
Council exemplifica a ideologia cultural da Commonwealth britâ-
nica porque expressa a ideia de que, através da cultura, outros podem
compartilhar a mesma “boa sorte” dos britânicos (elites).13 Os gas-
tos tributários exemplificam a ideologia americana do mercado de
ideias porque refletem a noção de que os recursos que um conceito
ou uma expressão cultural ou artística podem reunir correspondem
ao seu valor público (para a lógica complexa e pragmática subjacente
a essa ideia, ver Blasi, 2004). As formas administrativas expressam
ideais culturais; são apresentadas como explicação das razões por
que a cultura é importante e como deve ser governada; além disso,
explicam as razões por que determinada abordagem da política cul-
tural é melhor ou mais adequada, de acordo com uma compreensão
particular da cultura. Elas podem ter pouco a ver com os tipos de
administração cultural que predominam no trabalho que ocorre de
fato. Em vez disso, têm mais a ver com os limites ou horizontes es-
tabelecidos para uma política cultural. Às vezes, a ideologia política,
a administração cultural e a ideologia cultural de uma nação se ali-
nham muito bem; às vezes, não. Em lugares onde esse alinhamento
é forte, encontramos um arquétipo.

Arquétipos de política cultural: o lado ruim e o lado bom 99


UMA IDEOLOGIA CULTURAL FUSIONISTA E SUA
EXPRESSÃO ADMINISTRATIVA

Embora os arquétipos de política cultural não possam nos dizer


muito sobre a forma real da administração cultural, algo particu-
larmente útil para reconhecer que as relações arquetípicas entre a
forma de administração e a ideologia cultural existem é a propo-
sição de que outras ideologias culturais tendem a ressaltar outras
formas administrativas – formas interessantes de se analisar com
mais profundidade, tanto para quem estuda política cultural quanto
para quem está engajado na sua formulação.
A título de exemplo, no Brasil, os principais equipamentos e pro-
gramas culturais públicos são fornecidos pelo Sesc (Serviço Social do
Comércio), uma entidade híbrida do terceiro setor que cobra uma
taxa sobre a folha de pagamento de empresas de varejo e serviços e
é financiada pelo governo para contribuir com a qualidade de vida
dos trabalhadores do setor. O Sesc foi criado em 1946 e oferece gi-
násios locais, bibliotecas, teatros, galerias e programação cultural e
esportiva em cidades de todo o Brasil. (Caso essa descrição esteja
sugerindo um tipo de imagem errada: meus alunos americanos, que
foram informados de que estaríamos visitando uma “instalação cul-
tural da agência de serviço social”, ficaram literalmente boquiabertos
com o grande e belo centro cultural de um Sesc que visitamos em
São Paulo.)

O Sesc atua em todos os estados do país (atendendo a cerca de


2,2 mil municípios em todas as regiões); cada estado é livre para
traçar suas próprias estratégias de atuação no âmbito da institui-
ção com base nas demandas regionais. No total, são 509 centros
de atividades e 129 unidades móveis, que incluem hospedagem,
sede cultural e educacional e centro médico. Conta com 232 salas
de cinema, 249 auditórios, 71 teatros, 197 galerias, 265 biblio-
tecas e 56 bibliotecas móveis, ostentando a maior rede privada
de teatros e bibliotecas do país. O Sesc também pode se adaptar
aos espaços públicos e atuar em outras instituições por meio de
parcerias. Esse sistema, aliado ao grande número de unidades, é
a base da perspectiva de longo alcance do Sesc. Considerando os
diversos segmentos que atende (diferentes faixas etárias e estra-
tos sociais), sua cobertura geográfica e a vasta gama de atividades
oferecidas, pode-se certamente dizer que o público do Sesc é tão
amplo quanto seu espectro social. Dados de 2013 mostram

100 Carole Rosenstein


que a instituição ultrapassou os 5,9 milhões de inscrições e
credenciamentos por ano, somando o notável número de
742,1 milhões de pessoas atendidas. (Ribas, 2015)

Esse arranjo administrativo é uma miscelânea de instrumentos po-


líticos baseados em impostos, que se concentram em patrocínios
corporativos, e em posteriores expansões da administração cultural
do setor público e iniciativas políticas implementadas sob o governo
Lula (2003–10).
Os mecanismos administrativos aqui tendem a ser integrados
verticalmente e segmentados pelo setor industrial. Eles parecem
combinar tanto com as pretensões de planejamento dos gover-
nos autoritários de direita quanto com as dos governos socialistas.
A política cultural composta é quase assombrosa na maneira como
reflete a ideologia cultural fusionista ou mista brasileira, em que a
cultura híbrida é unificada dentro da instituição social central do
patriarcado (ideias fundamentadas no trabalho muito contestado,
mas igualmente influente de Gilberto Freyre sobre a identidade na-
cional brasileira). Trata-se de um caso que se identifica fortemente
com outros exemplos nacionais de sistemas altamente centralizados
e intencionalmente híbridos (a China vem logo à mente). Ele está
pronto para os arquétipos.

CONCLUSÃO

O que é um arquétipo? Sem abusar do tecnicismo, uma boa maneira


de pensar sobre o conceito é a seguinte: enquanto um tipo é uma
regra geral que estabelece exemplos individuais que de alguma forma
pertencem a um determinado domínio ou conjunto, um arquétipo é
um exemplo dessa generalização. Onde tipos são abstratos, arquéti-
pos são concretos. Eles são um exemplo ideal de um tipo. Como tal,
um arquétipo implica como um tipo deveria ser. Este “deveria” é
importante. Arquétipos representam uma afirmação: eles afirmam
representar o que define um tipo, o que é essencial para ele, quais
de seus domínios ou conjuntos de regras são os mais importantes.
Eles podem ser ferramentas metodológicas úteis, principalmente em
comparações entre tipos. Como os fenômenos são extremamente
complexos e os tipos abstratos abrangem toda uma gama de diversos
exemplos concretos, pode ser útil ter um exemplo concreto de um
tipo para comparar com exemplos de outros tipos.

Arquétipos de política cultural: o lado ruim e o lado bom 101


É importante que os pesquisadores de políticas culturais conhe-
çam a opinião das pessoas sobre como uma política cultural deveria
ser. Arquétipos podem nos falar sobre isso, pois definem políticas
culturais, embalam mecanismos de administração cultural com al-
gumas características de determinada nação e explicam por quais
motivos nós encontramos ali tais mecanismos administrativos espe-
cíficos. Eles naturalizam as associações e as fazem parecer necessárias.
As ideologias culturais são essenciais para essa lógica. Legisladores,
administradores culturais, construtores de nações, artistas e ativis-
tas culturais estão todos engajados nesse trabalho. No entanto, vai
ser muito difícil para nós, como analistas e estudiosos, ver e entender
o que eles estão fazendo se estivermos fazendo o mesmo.
Como arquétipos contêm em si interpretações e afirmações, eles
não são, como vimos, boas ferramentas para análise. Em geral, po-
dem impedir uma eficaz pesquisa de política cultural comparativa
por atrapalhar o desenvolvimento de comparações baseadas em
variáveis claramente definidas.

Em sua forma mais pura, a pesquisa transnacional é quase ex-


perimental em projetos com ênfase na explicação. Nessa visão, a
expansão da pesquisa para incluir vários países é uma estratégia
consciente que visa ajudar a explorar a relação entre as variáveis.
Variáveis entre os países podem ser testadas quanto ao seu poder
explicativo. Mas a escolha dos países segue em vez de preceder a
escolha da variável, porque os países são um dispositivo para es-
tudar o comportamento das variáveis, e não o contrário. Em um
projeto de pesquisa quase experimental cujo objetivo é a explica-
ção, a escolha dos casos a serem considerados deve ser informada
pelas variáveis cujos efeitos deverão ser testados. (grifos nossos,
Schuster, 1987, p. 7)

Usar arquétipos como ferramenta para analisar a administração


cultural leva ao mal-entendido sobre até que ponto os mecanismos
administrativos – incluindo instrumentos políticos e formas de or-
ganização burocrática – vinculam-se a determinadas tendências po-
líticas ou tradições de apoio à cultura; além disso, leva também a uma
análise insuficiente aos motivos de essa ligação acontecer, quando
de fato acontece. Uma vez que o propósito do estudo comparativo é
analisar e explicar tais associações, isso se torna uma séria desvanta-
gem. Além disso, os arquétipos de política cultural sempre se refe-
rem a nações, e isso constitui um problema. Identificar um sistema

102 Carole Rosenstein


de política cultural nacional e mostrar que suas dimensões política,
administrativa e cultural se identificam fortemente umas com as ou-
tras é um projeto de construção da nação e peculiar à ideia de associar
uma cultura a um Estado para formar uma nação. As dimensões-chave
da formulação de políticas culturais e administração cultural são
internacionais, locais e autóctones. Essas dimensões são facilmente
ignoradas ou mal compreendidas em um quadro comparativo que
não dá valor à supremacia da nação, e que se restringe a arquétipos
de política cultural no Ocidente/Hemisfério Norte.
Em vez de servir como ferramenta analítica, os arquétipos devem
ser objeto de análise, para nos ajudar a entender os quadros concei-
tuais que moldam as políticas culturais na vida real. Esta discussão
sugere vários caminhos para mais pesquisas nesse sentido. O grau de
planejamento foi aqui identificado como uma variável válida para o
estudo comparativo de políticas culturais. Como podemos explicar
a variação nos graus de planejamento encontrados nas políticas cul-
turais nacionais? Essa variação pode ser explicada pela ideologia de
mercado, ideologia política, ideologia cultural ou por algum outro
fator ou combinação de fatores? A construção da teoria exigirá o
estudo de um conjunto mais amplo de nações do que foi conside-
rado anteriormente, um conjunto que é constituído explicitamente
para abranger a gama relevante de graus de planejamento (e não al-
gum conjunto pressuposto de nações relevantes). Outro caminho
é examinar se o que surgiu na literatura como um tipo de política
cultural nórdica aparentemente distinta (ver Mangset et al., 2008)
pode ser explicado pela existência de uma ideologia cultural nórdica
igualmente distinta. Se não for, o que explica isso? Se a resposta for
afirmativa, que instrumento de política cultural distingue esse tipo?
Por fim, os pesquisadores de política cultural comparativa devem
começar a identificar toda a diversidade de instrumentos e sistemas
distintos de política cultural que refletem ideologias culturais dis-
tintas, para além daquelas da França, Inglaterra e Estados Unidos.

Arquétipos de política cultural: o lado ruim e o lado bom 103


Notas

1 Este artigo foi publicado no International parecem sugerir que processos altamente
Journal of Cultural Policy em 2019. Disponível institucionalizados para avaliar e arregimentar
em: DOI: 10.1080/10286632.2019.1691175. a excelência artística representam uma espécie
[N. do org.] de “padrão comunitário” que mina o “apoio
2 Mulcahy desenvolve sua estrutura em uma à criatividade”.
série de artigos. Escolhi o que considero o mais 7 Para uma explicação completa sobre as
sintético e elaborado. diferenças entre esses instrumentos, ver
3 Embora essa definição de ideologia não esteja Rosenstein (2018). Em resumo, a provisão
relacionada com a ideia marxista de “falsa pública da cultura é encontrada quando a
consciência”, ela reconhece uma diferença entre infraestrutura cultural ou os programas
o participante (emic) e as compreensões culturais fazem parte do setor público e são
analíticas (etic). Além disso, vê as ideologias e usados para atender às necessidades culturais.
seus objetos como fenômenos totalmente Às vezes, isso é chamado de “provisão direta”.
sociais, deixando espaço para a influência de A fundação da provisão pública é a posse do
poder, posição e ausência sistêmica ou material ou da infraestrutura cultural pelo setor
conhecimento parcial na formação da ideologia. público. Na provisão pública, o setor público
Muitos antropólogos linguísticos exploraram também governa os recursos culturais.
esse espaço (para uma discussão clássica, ver A administração de terceiros pode até estar em
Irvine, 1989). evidência, mas o governo continua sendo o
4 Um retrato mais completo substituiria a principal formulador de políticas, mantendo
descentralização pelo federalismo e pela sua autoridade de governança. O governo
subsidiariedade como tipos reconhecidos e também pode suprir as necessidades culturais
especificaria que esse espectro tem a ver com pagando dinheiro público sob a forma de
a centralização vertical (ou integração contra subsídio a empresas sem fins lucrativos
estratificação, ver Rosenstein, 2018). e empresas culturais comerciais, ou ainda
5 Uma forma de enquadrar de modo destinando recursos para outra parte
satisfatório a dimensão administrativa é pensar do governo (como nos subsídios
em tipos de centralização ao longo do plano intergovernamentais, concedidos a agências
horizontal (ou concentração contra fragmentação, culturais, com parcerias federais e estaduais
ver Rosenstein, 2018). Uma burocracia cultural nos eua). O subsídio é diferente da provisão
pode estar concentrada em um ministério, pública porque o provedor é independente
organizar algumas agências culturais em um do governo em sua propriedade ou termos de
conjunto enquanto deixa outras fragmentadas, incorporação, governança e administração,
ser totalmente fragmentada, altamente e mantém sua própria autoridade sobre a
descentralizada através da incorporação de um provisão da cultura.
quango com controle governamental parcial, ou 8 A ideia de cultura política vem de Almond,
ainda totalmente descentralizada, delegando G.; Verba, S. The Civic Culture: Political Attitudes
certas funções à sociedade civil. and Democracy in Five Nations, 1963.
6 Chartrand e McCaughey não oferecem um 9 Deixo de lado a tipologia de formas de
exemplo arquetípico de um Estado arquiteto. financiamento cultural de Mulcahy porque a
O único exemplo que usam para ilustrar essa sua discussão é mínima e alguns de seus tipos
configuração é a França, e o arquétipo é parecem erroneamente aplicados. Por exemplo,
comumente entendido como representativo Mulcahy associa a França a subsídios (2003, p. 97),
do país. No entanto, ali, “padrões de excelência embora a política cultural francesa se
artística” são totalmente incorporados na caracterize pelo instrumento político de
formulação e na administração da política provisão pública direta.
cultural institucional. Em sua breve discussão 10 Isso, claro, é profundamente contestado.
sobre a França, Chartrand e McCaughey No entanto, é distintivo e característico. Para

104 Carole Rosenstein


uma justificação da interpretação da condições de mudança, incentivo à inovação e
autoridade cultural com controle iniciativa, punição da rigidez, da lentidão, da
governamental relacionado a grandes lordes, falta de consciência e da falha em auditar.
ver Williams (1979). Quaisquer que sejam seus limites e deficiências,
11 Embora o nea mantenha algumas funções os mercados livres são uma força poderosa
de doação, sua comissão não se envolve com elas. contra a inércia. Assim como a liberdade de
12 Em uma convincente análise da metáfora de expressão” (2004, p. 45).
Holmes, Blasi argumenta que “as características 13 É assim que Moggridge, parafraseando
dos mercados proeminentes são aquelas que Alan Peacock, descreve o argumento de John
também figuram com destaque em governança Maynard Keynes para o apoio estatal à arte
eficaz, investigação científica e seleção natural: (2005, p. 546).
abertura a novas capacidades, sede por
informação melhor, capacidade de resposta a

Arquétipos de política cultural: o lado ruim e o lado bom 105


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Arquétipos de política cultural: o lado ruim e o lado bom 107


JASON POTTS é economista especializado em evolução econô-
mica, mudança institucional e tecnológica, inovação e natureza
do crescimento econômico de longo prazo. Integrou o ARC
Centre of Excellence for Creative Industries and Innovation
(CCI), da Queensland University of Technology, em Brisbane,
na Austrália.

STUART CUNNINGHAM foi chefe do CCI. É especialista em es-


tudos culturais e de mídia e política de indústrias criativas da
Queensland University of Technology.
Quatro modelos de
indústrias criativas1
JASON POTTS E STUART CUNNINGHAM

INTRODUÇÃO

“Indústrias criativas” é uma nova definição analítica dos componen-


tes industriais da economia em que a criatividade é um insumo, e o
conteúdo ou propriedade intelectual é o resultado.2 A definição foi
introduzida no modelo do Department for Digital, Culture, Media
and Sport (dcms) de 1998 e adotada em diversos documentos de
mapeamento por outros países, que também buscam estimar o ta-
manho e o crescimento desse setor e formular novas políticas.3 As-
sim, as indústrias criativas passaram a ser representadas como um
conjunto significativo e em rápido crescimento,4 ou seja, um setor
importante para a atenção de políticas.
O suposto propósito desses documentos de mapeamento foi
estimar o “significado” das indústrias criativas para a economia
moderna a fim de reorientar o apoio à política econômica de acordo
com esse significado.5 Ao fazê-lo, no entanto, esses estudos des-
tacam um ponto importante: o valor econômico das indústrias
criativas (ics) pode se estender para além da produção manifesta
de bens culturais ou do emprego de pessoas criativas, tendo um
papel mais geral ao impulsionar e facilitar o processo de mudança
em toda a economia, como evidenciado por seus parâmetros di-
nâmicos e pelo grau de incorporação na economia mais ampla. De
fato, pode até acontecer que o “significado dinâmico” das indús-
trias criativas seja maior do que seu “significado estático”. Em caso
afirmativo, isso tem implicações imediatas sobre a política para o
tipo de intervenção apropriada para as ics. Este artigo procura

Quatro modelos de indústrias criativas 109


responder à seguinte pergunta: qual a relação dinâmica entre as
indústrias criativas e o resto da economia?
Melhor do que procurar saber o tamanho absoluto ou a signi-
ficância econômica estática de um setor, seria então indagar sobre
seu desempenho relativo quanto à dinâmica econômica.6 Os qua-
tro modelos presentes neste artigo são as respostas possíveis a essa
pergunta: (1) negativo, (2) neutro, (3) positivo e (4) emergente.
Cada uma dessas possibilidades se transforma em um modelo de
política diferente: em (1) é necessário um subsídio de bem-estar;
em (2), uma política-padrão da indústria; em (3), uma política de
investimento e crescimento; e em (4), uma política de inovação.
Estruturas de políticas muito diferentes partem, pois, de cada um
dos quatro modelos dinâmicos básicos de modo a relacionar as ics
com o resto da economia. Este artigo delineia tais modelos e reúne
uma amostra de evidências existentes para iniciar o seu processo
de classificação.
Começamos traçando as quatro relações primárias entre as in-
dústrias criativas e o resto da economia. Explicamos a relação de
cada modelo com diferentes fundamentos teóricos, o que se espera
observar se cada modelo for verdadeiro e a estrutura de política apro-
priada em cada caso. Usando vários documentos de mapeamento,
formulamos a consideração inicial de um conjunto de amostras de
dados conectadas aos quatro modelos. Entretanto, este artigo não
tenta fazer uma análise abrangente. Para tanto, seriam necessários
uma abordagem muito mais rigorosa de modelagem, dados e aná-
lise estatística. O que pretendemos apresentar aqui é apenas uma
teoria das categorias de modelos envolvidos e uma ilustração de
como diferentes tipos de dados podem ser aplicados a eles. Isso
nos parece o primeiro passo necessário (antes da abordagem mais
rigorosa) em direção ao desenvolvimento da economia das indús-
trias criativas.
Contudo, ao fazê-lo, encontramos imediatamente pelo menos
evidências superficiais que apoiam os modelos 3 e 4. Embora sinali-
zada a necessidade de mais trabalho teórico e empírico, isso também
aponta o valor potencial de uma abordagem baseada na inovação
para as indústrias criativas e para a política cultural. Assim, propo-
mos esses quatro modelos como ponto de partida para uma discus-
são mais aprofundada da interseção entre a análise econômica da
arte e da cultura, por um lado, e a análise moderna do crescimento
econômico (e da política de crescimento), por outro.

110 Jason Potts e Stuart Cunningham


QUATRO MODELOS DE INDÚSTRIAS CRIATIVAS

Vamos definir o valor econômico de toda a economia como y e o


valor econômico das indústrias criativas como ic, levando à seguinte
equação mestra:7

ic = a.y

Isso diz apenas que as indústrias criativas compreendem uma determi-


nada fração (a) de toda a atividade econômica. Em um modelo estático,
a estimativa é tratada como a “significância” do setor. Na Austrália, a
é estimado em 0,045.8 A estimativa de a tem sido uma saída central
dos documentos de mapeamento das indústrias criativas, começando
com o dcms (1998) e, desde então, replicado pela Austrália, Nova Ze-
lândia e União Europeia, entre outros.9 Todas as estimativas revelam
que as indústrias criativas são de fato “economicamente significativas”
(no sentido estático). Além disso, elas são consideradas comparáveis a
outros setores de alto perfil em sua contribuição para renda, emprego
e comércio (a agricultura, por exemplo, normalmente tem um a com
valor de 0,03). Por implicação, argumenta-se que as ics merecem a
atenção de políticas (e apoio) proporcional a essa significância.
O problema com essa linha de raciocínio, no entanto, é que ela
não tem base na teoria econômica. Dar atenção a uma política do
setor industrial na proporção da parcela da renda (ou empregos, ou
divisas) que ela gera é uma questão de conveniência política, não de
lógica econômica.10 Isso é sempre verdade em qualquer argumento
baseado em equilíbrio (estático). De fato, é somente quando se
considera o fracasso de uma indústria que o significado político e
econômico se alinha de maneira estática (devido às distorções pro-
porcionais e ramificadas em outros setores). Mas é possível supor
que a interação das indústrias criativas com a economia agregada
seja positiva, e não negativa. Assim sendo, o significado político-
-econômico básico pode não ser mais válido.
Em vez disso, o significado econômico precisa ser reconstruído.
É isso que o enfoque dos quatro modelos procura fazer, alterando-
-o para uma abordagem dinâmica da significância. Nela, a análise
econômica da relação entre um setor da indústria e o resto da econo-
mia é construída em relação ao inter-relacionamento dinâmico, que
podemos especificar examinando os momentos de ordem superior
de nossa equação mestra: especificamente, como uma mudança na
atividade da ic (δic) afeta a atividade econômica agregada (δy).

Quatro modelos de indústrias criativas 111


Nosso axioma inicial é que a mudança em ic afeta y de alguma
forma (δic ↔ δy). Os quatro modelos propostos são o conjunto de
possíveis inter-relações dinâmicas em que uma mudança na atividade
da ic tem um efeito negativo (modelo 1), neutro (modelo 2) ou posi-
tivo (modelos 3 e 4) sobre a economia. Isso é evidentemente simplista,
mas sugerimos que a leitura oferece um ponto de partida útil para
orientar tanto a análise empírica quanto a discussão política, pelo fato
de ser claro e explícito em conformidade a essa relação hipotética e
seu suporte probatório.
Por conveniência analítica, também assumimos que dic/dy = 0, o
que significa que o crescimento econômico não afeta as ics de forma
diferente do que ocorre com outras indústrias, ou, tecnicamente, que
a elasticidade de renda é unitária.11 Suspeitamos fortemente que não
seja este o caso, mas sim que o crescimento da renda afeta despropor-
cionalmente a demanda pela produção das ics, embora não convenha
considerar isso aqui.12 A política é analisada para determinar se a mu-
dança nas indústrias criativas altera o bem-estar utilitário agregado
(ou utilidade, u). Novamente, supomos que du/dic ∈ r, de tal modo
que uma mudança na ic pode aumentar, diminuir ou deixar a utili-
dade inalterada. Essa formulação de modelagem, ainda que abstrata,
nos permite discriminar abstratamente entre diferenças básicas, em
suposições teóricas, e respostas políticas.

Modelo 1: o modelo de bem-estar


Neste modelo, supõe-se que as indústrias criativas tenham um impacto
líquido negativo sobre a economia, de modo que consumam mais recur-
sos do que produzam. Ele destina-se especificamente àqueles que veem
pouco benefício analítico na discriminação entre indústrias criativas e
culturais (por exemplo, Pratt, 2005). Uma afirmação dinamicamente
equivalente é que a taxa de crescimento da produtividade total dos fa-
tores (tfpIC) é menor nas ics do que em outros setores (tfpY), como
suposto por Baumol e Bowen (1966). Neste modelo, as ics são essen-
cialmente um setor de “bens de mérito” que produz mercadorias cul-
turais que melhoram o bem-estar (du/dic > 0), mas que só são viáveis
economicamente com a transferência de recursos do resto da economia
(dy/dic < 0). Além disso, os transbordamentos positivos de conheci-
mento associados à produção que aumentaria a tfpY são excluídos.

dY dU
Hipótese 1: < 0, >0
dIC dIC

112 Jason Potts e Stuart Cunningham


No modelo 1, as ics são um dreno líquido na economia, embora valha
a pena ter esse dreno, porque seu efeito geral é positivo para o bem-
-estar. Isso se deve à produção de mercadorias de alto valor cultural
(du /dic > 0), mas baixo valor de mercado (dy/dic < 0), pois a produ-
ção é inerentemente não lucrativa, uma vez que as curvas de demanda
estão sempre abaixo das curvas de custo. A justificação econômica
para tal restituição deve, em última análise, basear-se em um argu-
mento de falha de mercado, com políticas adequadamente calibradas
para estimativas desse valor não mercantil. No entanto, saber se a fa-
lha de mercado é uma justificação adequada para a intervenção não é
uma questão que precisa nos preocupar aqui; é suficiente reconhecer
que, se dy/dic < 0, a intervenção política só pode ser justificada se
também for verdade que du/dic > 0. Se o modelo 1 for verdadeiro, as
determinações de políticas devem centrar-se na realocação de renda
e recursos ou na manutenção de preços para proteger um ativo ine-
rentemente valioso (ou seja, a produção cultural), que está natural e
continuamente sob ameaça em uma economia de mercado.13
É amplamente aceito por estudiosos da economia da cultura (por
exemplo, Throsby e Withers, 1979, e Throsby, 1994), e apoiado
por uma série de estudos de avaliação fora do mercado (ver, por exem-
plo, Towse, 1997, 2003), que du/dic é, em geral, positivo. Trata-se de
um resultado não surpreendente e edificante, que está de acordo com
a intuição. Além disso, não é inconsistente em relação às concepções
econômicas do homem econômico racional (Frey, 2001; Dopfer, 2004).
Sendo assim, vamos considerar o sinal positivo como evidência e nos
concentrarmos, em vez disso, no que significa dizer que dy/dic é nega-
tivo. Especificamente, significa que o crescimento das ics vem à custa
do crescimento econômico agregado, já que “o mercado” não deseja o
crescimento, mas deve ser obrigado a apoiá-lo por meio de transferên-
cias. A evidência para o modelo 1 pode, portanto, acumular-se de vá-
rias maneiras, incluindo: altos níveis e taxas de lucro negativas entre as
empresas das ics; baixa produtividade total dos fatores (tfpIC < tfpY);
renda persistentemente menor para fatores de produção das ics em
comparação com outras indústrias; e indicações variadas de que a viabi-
lidade econômica das organizações de atividades dentro das indústrias
criativas depende determinantemente das transferências de recursos
do resto da economia para manter os preços, a demanda ou a oferta.
Se o modelo 1 for verdadeiro, espera-se observar não apenas um
setor economicamente estagnado ou de baixo crescimento, mas tam-
bém um setor com níveis de desempenho mais baixos (por exemplo,
retorno sobre o investimento, receitas etc.). Tal detalhamento permite

Quatro modelos de indústrias criativas 113


múltiplas oportunidades para avaliação empírica. Esta é, na nossa opi-
nião, uma indagação empírica interessante a ser feita novamente, pois a
verdade implícita do modelo 1 é quase axiomática na área da economia
da cultura, em que poucos contestam a suposição implícita de renda
abaixo da média ou de crescimento da produtividade.14

Modelo 2: o modelo normal


O modelo 2 difere do modelo 1 ao permitir que as ics não sejam
retardatárias econômicas nem fornecedoras de bens especiais de
maior significado moral, mas antes efetivamente “apenas mais uma
indústria”: na verdade, a indústria do entretenimento ou lazer. Neste
modelo, que é a configuração-padrão na maioria das análises econô-
micas, uma mudança no tamanho ou valor das ics tem efeito propor-
cional (embora estruturalmente neutro) em toda a economia. Além
disso, ele pressupõe que o impacto no crescimento também é neutro,
de modo que as ics em conjunto não contribuiriam para a mudança
tecnológica, inovação ou crescimento da produtividade nem mais
nem menos do que a média de outros setores.15
Este modelo não argumenta que as ics não têm efeito sobre a
renda, produtividade ou bem-estar, pois isso é trivialmente falso;
argumenta que seu efeito está no mesmo nível de todos os outros
setores – de tal forma que tfpIC = tfpY. De fato, é isso que a análise
econômica usual prevê com base na substituição competitiva de re-
cursos em uma economia baseada no mercado para obter retornos
equivalentes na margem. Em outras palavras, a teoria econômica
usual prevê o modelo 2, no qual as ics são normalmente competiti-
vas e, portanto, não especiais.
Em caso afirmativo, isso implica que o benefício marginal de
bem-estar do redirecionamento de recursos baseado em políticas
para esse setor é zero no agregado. Ou seja, não há ganhos de bem-
-estar econômico para tratamento especial de políticas. Isso pressu-
põe implicitamente que os bens culturais/criativos são “bens normais”,
no sentido de que, à medida que variam de preço relativo, os consu-
midores racionais os substituiriam por bens de outros setores para
igualar sua utilidade marginal. Nesse caso, uma expansão do setor
de IC não teria nenhum benefício de bem-estar agregado distinto
da expansão de qualquer outro setor.

dY dU
Hipótese 2: = 0, =0
dIC dIC

114 Jason Potts e Stuart Cunningham


O modelo não exclui a possibilidade de que a economia das indús-
trias criativas seja “especial” em relação aos níveis extremos de incer-
teza de demanda, modelos de receita de lei de poder, tendências ao
monopólio, mercados de trabalho e direitos de propriedade comple-
xos, problemas endêmicos de retenção, assimetrias de informação,
mercados de fatores altamente estratégicos e assim por diante (por
exemplo, Caves, 2000, e De Vany, 2004). Em vez disso, enfatiza que
esses problemas de coordenação são eventualmente resolvidos sob
condições competitivas, assim como as circunstâncias especiais de
outros setores os levam a descobrir arranjos institucionais e estru-
turas específicas de coordenação.
O modelo 2 considera tais problemas como pertencentes ao domí-
nio da gestão, além de oportunidades para empreendedores, mas, em
última análise, insiste que eles não são diferentes dos problemas “espe-
ciais” de todos os outros setores, como os de energia ou turismo, que
também têm características “interessantes” associadas à escala, coor-
denação, incerteza e redes, entre outros. O “modelo normal” conclui,
assim, que as ics têm estatísticas da indústria comparáveis a outros
setores.16 Dessa forma, elas devem exigir adequadamente o mesmo
tratamento de políticas que outras indústrias. As ics, nessa visão, são
apenas mais um membro da comunidade industrial e deveriam legiti-
mamente exigir “assistência” idêntica à que é dada a outros. O reconhe-
cimento da existência normal é suficiente, e a “significação” é imaterial.
Em caso afirmativo, as ics não requerem tratamento especial de
políticas, apenas a aplicação consistente dos mecanismos de polí-
ticas estendidos a outros setores. É como se o princípio da “nação
mais favorecida”, da Organização Mundial do Comércio (omc),
fosse aplicado à “indústria mais favorecida”, de modo que quaisquer
privilégios concedidos a uma indústria devam automaticamente
estender-se a todas. Nessa visão, o foco das políticas de ic não deve
ser a realocação de recursos, mas sim o apelo por um tratamento
consistente da política industrial (especialmente no que diz respeito
ao movimento internacional de trabalho e propriedade intelectual).
A evidência do modelo normal viria da equivalência dos indicadores
econômicos da ic com os de toda a economia na forma de competição
e empreendimento normais. Para as partes industrialmente mais ma-
duras da ic, como cinema, tv e mercado editorial, isso é certamente
verdade, mas não o é para todos os meios de comunicação, como ne-
gócios baseados na internet e bens comuns que lidam especificamente
com novas ideias. Tal diferença parece importante e, de fato, é a base
do terceiro modelo, em que as ics facilitam o crescimento econômico.

Quatro modelos de indústrias criativas 115


Modelo 3: o modelo de crescimento
O modelo 3 propõe explicitamente uma relação econômica positiva
entre o crescimento das ics e da economia agregada, de tal forma
que dy/dic > 0. Neste modelo, as ics são um motor de crescimento
da mesma forma que a agricultura no início da década de 1920, a
manufatura mais elaborada nas décadas de 1950–60 e a tecnologia
da informação e comunicação (tic) nas décadas de 1980–90. Exis-
tem muitas explicações possíveis, embora todas constituam alguma
variação da noção de que as ics introduzem novas ideias na econo-
mia que, na sequência, se infiltram em outros setores (por exemplo,
novos designs), ou que as ics facilitem a adoção e a retenção de novas
ideias ou tecnologias em outros setores (por exemplo, na tic).
A principal diferença do modelo 3, se comparado aos modelos 1 e 2,
é a de que ele envolve ativamente as ics no crescimento da economia.
Isso pode ocorrer de duas maneiras principais: do lado da oferta e do
lado da demanda. A interpretação do lado da oferta enfatiza a expor-
tação de novas ideias da ic para y. A interpretação do lado da demanda
enfatiza como o crescimento em y causa um aumento proporcional na
demanda por serviços da ic. Na prática, é extremamente difícil separar
as duas forças sem recorrer a avançadas técnicas microeconométricas,
que não são tentadas aqui devido às limitações de dados. O modelo 3
pode, portanto, ser verdadeiro, mas com diferentes implicações polí-
ticas, a depender de a ocorrência predominante da causalidade ser de
ic para y – o modelo do motor de crescimento do lado da oferta – ou
de y para ic – o modelo de indução do lado da demanda.

dY dU
Hipótese 3: > 0, >0
dIC dIC

Em ambos os casos, a política deve tratar adequadamente as ics


como um “setor especial”, não porque ele seja economicamente
significativo em si, mas antes por potencializar o crescimento de
outros setores. Isso pode plausivelmente levar à intervenção, po-
rém, ao contrário do modelo 1, seu objetivo aparente é investir no
crescimento econômico ou no desenvolvimento da capacidade para
atender ao crescimento da demanda. Se o modelo 3 for verdadeiro,
há um claro argumento econômico para redirecionar recursos, não
apenas para o benefício das ics, como também para o bem de todos.
As ics, nessa visão, são claras vencedoras a ser apoiadas.
A evidência para este modelo viria da associação das ics com o
crescimento. Isso agregaria não apenas em empregos e commodities

116 Jason Potts e Stuart Cunningham


(como no modelo 2), como também em novos tipos de trabalho e no-
vos tipos de mercadorias e serviços. O modelo 3 propõe as ics como
motores de crescimento não por serem multiplicadoras de gastos
operacionais, e sim por seu papel na adoção, retenção e absorção de
novas ideias e tecnologias.
As ics seriam, pois, assumidas para criar novas indústrias e ni-
chos de mercado e estabilizar e desenvolver indústrias existentes.
E, especificamente sem esse investimento contínuo, o crescimento
econômico agregado sofreria. Isso é o oposto do modelo 1, em que
o crescimento econômico sofre quando há tal investimento. O mo-
delo 3, por sua vez, argumenta que as ics são boas para a economia
porque introduzem e processam as novas ideias que impulsionam o
crescimento econômico. Essa é a sua importância política, sobretudo
como uma indústria de investimento, assim como o carvão e o aço
no final dos anos 1900 e a tic no final do século xx. As ics são um
motor de crescimento – e quanto mais, melhor.

Modelo 4: o modelo da economia criativa


Os três primeiros modelos podem parecer exaurir as possibilidades
analíticas. Entretanto, um quarto modelo também é possível como di-
mensão emergente. Em vez de pensar nas ics como subconjunto eco-
nômico que “impulsiona” o crescimento de toda a economia, tal como
o faz o modelo 3, elas podem não ser caracterizadas como uma indústria,
mas sim como um elemento do sistema de inovação de toda a economia.17
O modelo 4, portanto, rejeita a equação mestra estática inicial
para uma dinâmica ic = a.y e δyt /δict. Em vez disso, ele altera o
conceito das ics para um sistema de ordem superior que atua sobre
o sistema econômico. O valor econômico das indústrias criativas,
nessa visão, não se dá em relação à sua contribuição relativa ao va-
lor econômico (modelos 1-3), mas devido à sua contribuição para a
coordenação de novas ideias ou tecnologias e, portanto, do processo
de mudança. Neste modelo, as ics não são especificadas meramente
como indústria, e sim mais bem modeladas como um sistema com-
plexo em evolução que deriva seu “valor econômico” da facilitação
da evolução econômica. As indústrias criativas podem, assim, ser
compreendidas como um tipo de empreendedorismo industrial que
opera no lado do consumidor da economia. E, nesse caso, estamos
lidando com um modelo evolutivo das indústrias criativas.
O modelo 4 é semelhante ao modelo 1, na medida em que arrisca
um elemento de apelo especial. Especificamente, este é o mesmo

Quatro modelos de indústrias criativas 117


modelo proposto para o efeito da ciência, educação e tecnologia na
abordagem dos sistemas nacionais de inovação.18 As indústrias criati-
vas, segundo essa visão, originam e coordenam mudanças na base
de conhecimento da economia. Consequentemente, elas possuem
significado político crucial, não marginal.
Conforme o modelo, as ics têm significado e valor essencialmente
dinâmicos em vez de estáticos. Cultura e ação criativa não são uma
indústria propriamente dita, mas antes um mecanismo entre setores.
Assim como a educação tecnológica e a ciência, as ics são vistas como
componente inovador essencial da economia pós-industrial moderna
e, com razão, fonte primária de vantagem comparativa e competitiva.
A mudança nas ics produz, dessa forma, mudanças estruturais e
não apenas operacionais na economia. Surgirão assim novas oportuni-
dades e possibilidades cujo efeito de bem-estar não pode ser conhecido
de antemão. A é a situação típica da evolução econômica como a ge-
ração, adoção e retenção da novidade genérica (Dopfer e Potts, 2008).
De acordo com o modelo 4, as ics não impulsionam o crescimento
econômico diretamente, como ocorre com um boom no setor de re-
cursos primários ou no mercado imobiliário; de maneira distinta, elas
facilitam as condições de mudança na ordem econômica. As ics, então,
criam oportunidades. Se o modelo 4 for verdadeiro, as ics fazem parte
do sistema de inovação, conduzindo e coordenando o processo de cresci-
mento do conhecimento que sustenta a evolução econômica.19

dY dU
Hipótese 4: indefinido, aberto
dIC dIC

A cultura é, de fato, um bem público, mas por razões dinâmicas, e


não estáticas. Diferentemente dos museus ou das artes clássicas, que
buscam o valor cultural por meio da manutenção do conhecimento
passado, a ic encontra esse valor no desenvolvimento e adoção de
novos conhecimentos. A evidência para o modelo 4 advém, pois, da
regeneração contínua das indústrias existentes e do surgimento
de novas indústrias em consequência da atividade da ic. Além do
mais, isso deve ser um facilitador sistêmico da mudança estrutural e
da adaptação em andamento em toda a economia.
O modelo 4, portanto, requer a observação da mudança estrutu-
ral em andamento e a consolidação em toda a economia, com atri-
buição catalisadora disso às operações da ic. Isso é difícil de testar,
como se vê; por isso, a distinção dinâmica entre processos de cresci-
mento (modelo 3) e processos evolutivos (modelo 4) é importante,

118 Jason Potts e Stuart Cunningham


pois traz uma implicação mais radical: a possibilidade de mudança
de políticas que tenham compromisso econômico com o bem-estar
para outras voltadas à inovação.
Resumindo, esses modelos representam quatro modos possíveis de
interação dinâmica entre as indústrias criativas e a economia (ic = a.y).

• No modelo 1, y impulsiona as ics por meio de transferência de


recursos;
• No modelo 2, as ics são apenas mais uma indústria;
• No modelo 3, as ics impulsionam y por meio de transferência
de conhecimento;
• No modelo 4, as ics promovem a evolução de y, que, por sua
vez, faz as ics evoluírem.

Tem havido excessivas negatividade e positividade sobre as ics, as-


sim como apelos à evidência (como revelado pelo dcms em 1998).
O resultado é um pouco como o debate sobre mudanças climáticas,
ou seja, a verdadeira questão se resume à veracidade dos respectivos
modelos e à relação com os dados. A importância das indústrias cria-
tivas é a mesma que a das outras indústrias e requer rigor semelhante
nas proposições básicas. Os dados sobre os quais as evidências podem
ser construídas, no entanto, estão apenas começando a ser reunidos.

EVIDÊNCIA

Qual é a evidência atual?20 Nossa amostra preliminar de dados sobre


crescimento diferencial no valor agregado da IC favorece predominan-
temente a conclusão prima facie de que os modelos 3 e 4 se ajustam
melhor que os modelos 1 e 2. Entretanto, a variação substancial nas me-
didas de desempenho dentro das ics nos adverte que o que é estatisti-
camente verdadeiro para o agregado não é necessariamente verdadeiro
para os subsetores. Por exemplo: patrimônio e artes cênicas parecem
enquadrar-se no modelo 1; área editorial, ao modelo 2; conteúdo digi-
tal, ao modelo 3; e design e software, ao modelo 4. Salientamos que esse
é um primeiro passo com uma nova metodologia; não se trata de uma
conclusão. Contudo, também enfatizamos que esses achados tendem
principalmente a apontar na mesma direção, ou seja, em direção a di-
nâmicas de crescimento (modelos 3 e 4), em vez de dinâmicas de bem-
-estar (modelo 1) ou dinâmicas equivalentes (modelo 2). A evidência
atual aponta principalmente para o modelo de crescimento da ic.

Quatro modelos de indústrias criativas 119


EVIDÊNCIA COMPARATIVA DE CRESCIMENTO

Há uma série de dados agregados recentes sobre o impacto econô-


mico das ics dos quais podemos inferir taxas de crescimento relativas.
Recentemente, os dados das ics ficaram mais acessíveis. A pesquisa a
seguir pode parecer incompleta, mas é superior às que eram realizadas
há uma década, além de atualizada regularmente. Uma pesquisa atual
de dados estará, por definição, desatualizada no momento de sua pu-
blicação, principalmente nesse setor.
A descoberta básica para Austrália, Estados Unidos, Grã-Bretanha e
União Europeia é a de que, entre 1996 e 2006, as ics, sob várias definições,
cresceram a uma taxa mais rápida do que a economia agregada. Essa é a
principal evidência da transformação estrutural impulsionada pelas ics,
corroborando o modelo 3. Entre 2000 e 2005, as ics australianas cresce-
ram duas vezes mais que a economia agregada.21 A Comissão Europeia
constatou que o crescimento do setor cultural e criativo se manteve na
Europa em 12%.22 Na Nova Zelândia, verificou-se que o valor agregado
da ic vem crescendo recentemente a 8% ao ano.23 No Reino Unido, onde
existem dados mais abrangentes, as ICs registraram um crescimento de
5% em comparação ao crescimento real agregado do pib de 3%. As taxas
de crescimento da ic são superiores a 1 em todos os lugares.

Tabela 1

Austrália Nova Zelândia Europa Reino Unido


País
2000–05 1996–2001 1999–2003 1997–2005

Valor agregado da ic (% do pib) 6 3,1 2,6 7,3

Crescimento do valor agregado da ic 10,4 8 5,4 5

Crescimento do pib 4 3,7 2,9 3

Taxa de crescimento da ic 2,6 2,2 1,9 1,7

3,8
Crescimento do emprego na ic 5 n/d 2
1996–2001

1,9
Crescimento do emprego nacional 3 n/d 1
1996–2001

2
Razão de crescimento do emprego na ic 1,6 — 2
1996–2001

120 Jason Potts e Stuart Cunningham


As estimativas da Organização Mundial da Propriedade Intelectual
(ompi) para as indústrias baseadas em direitos autorais (copyright
based – cb) também mostram crescimento do valor agregado e do
emprego a taxas significativamente mais altas do que o do pib.24

Tabela 2

Canadá eua Singapura


País
1997–2002 1999–2002 1995–2000

Valor agregado da cb (% do pib) 5,4 11,9 5,7

Crescimento do valor agregado


6,5 2,4 8,9
médio da cb

Crescimento do pib 3,3 1 7,6

Taxa de crescimento da cb 1,9 2,4 1,2

Crescimento do emprego na cb 5,3 2 5,2

Média de crescimento do
1,4 1,4 3,5
emprego nacional

Razão de crescimento do emprego na cb 3,8 1,4 1,5

E embora existam poucas estatísticas abrangentes que datem de mais


de uma década, os dados de Singapura – usando a classificação do
dcms para a taxa de crescimento anual composta de ics – também
indicam que esse efeito pode não ser uma flutuação recente, e sim
parte de uma tendência sustentada nas economias pós-industriais.25

Tabela 3

Singapura 1986–90 1990–95 1995–2000 Razão ic/pib

ics 4,6 3,4 2,6


1,6
pib 2,8 2,4 1,5

Podemos inferir dessa amostra que as ics estão agora, e estiveram


na última década, crescendo cerca de duas vezes a taxa da economia

Quatro modelos de indústrias criativas 121


agregada.26 Na ausência de evidências de proporções crescentes de
transferência de recursos para as indústrias criativas, isso parece re-
jeitar os modelos 1 e 2 e favorecer o modelo 3.

EMPRESAS

No nível micro, podemos comparar os dados sobre o crescimento


das empresas da ic com o crescimento agregado de todas as empre-
sas. Além disso, podemos comparar a lucratividade das empresas
da ic com a lucratividade agregada. De acordo com a teoria econô-
mica, essas estatísticas devem estar relacionadas, pois a lucratividade
acima da média estimularia o deslocamento de recursos para a ic,
aumentando seu número de empresas. Na Austrália, a proporção
entre as empresas da ic e todas as empresas do país cresceu de 5,9%
para 6,6% entre 2000 e 2005. O número total de empresas da ic cres-
ceu a uma taxa anual composta (cagr) de 11,3% durante o mesmo
período. Para todas as indústrias australianas, a taxa de crescimento
foi de 8,3%.27 O setor de ic tem uma taxa de criação de empresas mais
alta do que a economia como um todo, consistente com a taxa de
crescimento observada do valor agregado no setor de ic.
Os dados de lucro não são amplamente divulgados pelas ics.
Além disso, podem ser ambíguos, mostrando-se pequenos tanto em
uma indústria em declínio, devido às margens baixas, quanto em uma
indústria em crescimento, devido ao reinvestimento. As estimativas
europeias de lucratividade média (retorno sobre investimentos de
capital) das indústrias culturais e criativas para 1999–2003 foi de 9%,
o que é semelhante às estimativas australianas. Isso é bom para o setor
de serviços, que na Europa varia entre 5 e 10%.28 Esse é um resultado
que não surpreende, indicando as ics como comparativamente com-
petitivas, como a hipótese do modelo 2. A lucratividade semelhante
sustenta o modelo 2; o crescimento da empresa, os modelos 3 e 4.
E reconhecendo a variação considerável dentro das ics, os dados das
empresas rejeitam apenas o modelo 1 de forma consistente.

RECEITA

A receita das ics oferece uma boa oportunidade para discriminar os


modelos negativos, neutros e positivos das ics. Dados recentes do
censo australiano apresentam a média de receita para seis setores em

122 Jason Potts e Stuart Cunningham


2001.29 A média para todos os setores foi de 36.276 dólares, e para
as ics, de 47.658 dólares, ou sejas, 31% maior, embora com variação
significativa dentro desse valor.30

Tabela 4

Renda média australiana por setor em 2001

Desenvolvimento de software e conteúdo interativo $64.288

Filme, tv, rádio $48.808

Propaganda e marketing $48.278

Escrita, editoração e mídia impressa $38.392

Arquitetura, design e artes visuais $37.658

Música e artes cênicas $32.553

Média da economia $36.276

Existem várias explicações para a maior renda da ic. Em primeiro


lugar, ela tem, em comparação com a economia agregada, maior
capital humano.31 Em segundo lugar, pode ser que as estatísticas
da média e da mediana não reflitam com precisão a distribuição de
renda, que, em vez disso, é fortemente distorcida por meio de uma
situação em que “o vencedor leva tudo”. De fato, há evidências subs-
tanciais de uma lei de potência, em vez de uma distribuição de receita
gaussiana, em que as ics são desproporcionalmente representadas
entre os super-ricos (De Vany, 2004; Potts, 2006).32 Uma terceira
possibilidade é a de que as receitas sejam maiores nas ics devido às
transferências de recursos de outros setores.33 Isso é dominado pelo
financiamento do patrimônio e pela transmissão televisiva pública,
sendo amplamente comparável com o que ocorre na União Europeia
e nos Estados Unidos. No entanto, na medida em que tudo isso cons-
titui investimento em tecnologias sociais, a transferência líquida
pode até ser feita das ics para o resto da economia, o que seria uma
evidência contra o modelo 1 e a favor do modelo 4.
Certamente existem muitas outras maneiras de indicar os dados
que poderiam testar nossas teorias das quatro versões de indústrias

Quatro modelos de indústrias criativas 123


criativas. É um desafio aguardado. Ainda que por meio de mecanismos
diferentes, parece-nos que as ics são tão significativas quanto a ciência
para o crescimento dos sistemas econômicos. Neste artigo, nos esfor-
çamos para destacar as implicações políticas práticas dessa diferença.

IMPLICAÇÕES

Há boas razões para esperarmos esse tipo de crescimento nas ics:

(1) A afluência crescente, que desloca as despesas agregadas para


as ics, pois sua elasticidade de renda é maior que 1;
(2) O aumento relacionado do capital humano, que permite uma
maior especialização;
(3) O crescimento da tic, que é a base tecnológica das ics;
(4) A globalização, permitindo acesso aos mercados globais tanto
na demanda quanto na mobilidade de fatores.

O crescimento relativo das ics não é uma anomalia; é justamente o que


prevê a teoria econômica do sistema aberto com base nos efeitos da
mudança tecnológica (ou seja, crescimento endógeno) e de uma trans-
formação no conjunto envolvendo consumo consistente e aumento da
renda.34 As evidências pesquisadas ratificam amplamente a noção de
que o crescimento da ic está impulsionando a evolução econômica.
Qual a implicação disso nas políticas públicas? Uma perspectiva é
ver as ics como uma analogia no século xxi da destruição criativa da
“bola de demolição”, que foi a engenharia do século xix.35 As trans-
formações na economia e na cultura nos séculos xix e xx ocorreram
por meio da engenharia física, química, civil e elétrica, juntamente
com a engenharia econômica. O mesmo argumento agora se aplica
à “engenharia” das indústrias criativas de sistemas abertos, no lugar
de sistemas fechados. Se essa tradução metafórica se mantiver, as
implicações políticas irão diretamente do modelo 4, com função
substancial e significativa, para o apoio público baseado na política
de inovação. Entretanto, uma perspectiva igualmente consistente
pode ser observada no modelo 3, em que as ics são mecanismos de
crescimento para o ajuste “genérico” e a adaptação da base de co-
nhecimento da economia. Nesse caso, a política tem um papel ni-
tidamente menos substancial: minimizar a interferência distorcida.
Os modelos 3 e 4 abrigam assim um compromisso substancial-
mente diferente com a intervenção pública (no caso do modelo 4) ou

124 Jason Potts e Stuart Cunningham


o laissez-faire (no caso do 3), e é por isso que vale a pena prosseguir com
mais trabalhos para distinguir empiricamente esses modelos, ou para
explorar se eles podem ser aspectos distintos de um modelo unificado.
Em particular, é evidente que o comportamento do investimento nas
ics é crucial para entendê-lo como análogo ao que se dá na indústria
de serviços de p&d. Descobrimos, por exemplo, que o crescimento é
a principal maneira de empregar os bons resultados das ics (em com-
paração com rendas ou lucros mais altos, que seriam esperados em
uma situação estática). De fato, como o Demos (2007) demonstrou,
as ics “crescem permanecendo pequenas”, de modo que seu desenvol-
vimento ocorre como crescimento empresarial derivado.36
Esse esboço de implicações políticas aponta a necessidade de uma
nova teoria. Os modelos 2 e 3 adequadamente sugerem o tratamento
consistente das ics, mas os modelos 1 e 4 propõem uma intervenção
pública substancial, embora de maneiras diferentes. No entanto, apesar
de nossos dados amostrais favorecerem os modelos 3 e 4 em detrimento
dos modelos 1 e 2, eles não distinguem claramente o modelo 3 do 4.
As ics são, portanto, um motor plausível de crescimento econômico.37
Conforme essa visão, as ics têm valor econômico dinâmico, e não
apenas estático – elas colaboram para o processo de desenvolvimento
econômico para além de sua contribuição à cultura e à sociedade. Essa
distinção é importante, pois a política cultural, que é tradicionalmente
baseada no modelo 1, pode exigir alguma reformulação crítica para se
adaptar ao que parece ser um mundo baseado no modelo 4.

Notas

1 Este artigo foi publicado no International estendendo-se aos campos ostensivamente


Journal of Cultural Policy, em 2008. [N. do org.] comerciais da arquitetura, publicidade,
2 dcms (1998), Cunningham (2001), videogames, pesquisa e desenvolvimento (p&d)
Hesmondhalgh e Pratt (2005) e Galloway e e software. A linha adotada por Florida (2002),
Dunlop (2007). diferentemente do que ocorre com a classificação
3 Para mais discussões, ver dcms (2001), baseada na indústria, inclui todo o trabalho de
Howkins (2001), Florida (2002), Garnham resolução de problemas, abrangendo a mão
(2005), Hartley (2005) e Cunningham (2006). de obra de colarinho-branco e sem colarinho.
4 “Indústria criativa” é uma definição mais Ver, por exemplo, dcms (1998, 2001), nzier
ampla do que “indústria cultural”, (2002) e Higgs et al. (2007b).

Quatro modelos de indústrias criativas 125


5 Ver Howkins (2001), Garnham (2005), por Gapinski (1980, 1984) e Throsby (2006),
Cunningham (2006) e Hesmondhalgh e Pratt mas nos referimos aqui à noção de uma indústria
(2006). inteira como insumo em uma equação de
6 Estritamente falando, não estamos crescimento, o que é menos convencional.
preocupados com o crescimento absoluto, mas 13 Ver Galloway e Dunlop (2007).
antes com a dinâmica da distância da média (ver 14 Sobre receita nas indústrias criativas (não
Metcalfe, 1998). culturais), ver Higgs et al. (2007a). Para uma
7 Qualquer medida operacional consistente discussão de por que as medidas de
será suficiente, seja de saída, como produto produtividade são enganosas nas indústrias
interno bruto ou setorial (ou seja, valor culturais/criativas, ver Cowan (1996).
agregado), receita ou exportações, ou de 15 Nesses setores a mudança tecnológica é
entrada, como emprego, capital (incluindo amplamente definida para incluir não apenas a
capital humano) e criação de empresas geração de novas ideias, mas também sua
(empreendedorismo). adoção e retenção. Ver também Chai, Earl e
8 Podemos tratar razoavelmente como Potts (2007).
paramétricos para uma determinada dotação 16 Ver Scott (2002, 2006).
de recursos, tecnologias, preferências e preços 17 Outra variação sobre o abandono do
relativos. Obviamente, equações semelhantes conceito de indústria é definir as ics como o
poderiam ser escritas para todos os outros espaço de atividade econômica em que
setores, sujeitas a uma soma unitária de escalares. mercados e organizações são
9 Ver Higgs e Cunningham (2007), Higgs et al. predominantemente moldados por redes
(2007a), nzier (2002) e Comissão Europeia sociais (ver Ormerod et al., 2007).
(2006). 18 Por exemplo, Lundvall (1992), Nelson (1993,
10 A ideia de que a importância econômica ipso 2002), Freeman (1995), Edquist (1997) e
facto implica significância política proporcional é Dodgson et al. (2005).
uma falácia amplamente difundida, que foi 19 Ver Loasby (1999) e Freeman (2002).
reproduzida por gerações da chamada “avaliação 20 Refere-se a dados disponíveis à época da
de impacto econômico”. Os economistas há publicação do artigo (2008). [N. do org.]
muito alertam contra essa interpretação (por 21 Havia 437 mil pessoas empregadas nos
exemplo, Seaman, 1987, 2003). segmentos de indústrias criativas em 2001,
11 Talvez surpreendentemente, não existem representando 5,4% da mão de obra australiana.
estimativas empíricas para a elasticidade de Quase 21 bilhões de dólares foram gerados em
renda de todas as indústrias culturais ou criativas, salários e vencimentos de pessoas empregadas
embora com base em estimativas para elementos nos segmentos criativos no mesmo ano,
das ics (por exemplo, demanda por ópera e representando 7% do total dos empregos
teatro) elas sejam amplamente consideradas australianos (Cirac, 2006). Entre 1996 e 2001, o
maiores do que 1 (ver Heilbrun e Gray, 2000, número de pessoas da força de trabalho da ic
pp. 104–06). Estima-se que seja assim também australiana cresceu de aproximadamente 150
para gastos públicos em cultura (Getzner, 2002). mil para 180 mil, uma cagr de 3,8% (Higgs et
12 Observe-se que isso parece sugerir o que os al., 2007a).
economistas chamam de “função de produção” 22 Dados do relatório The Economy of Culture in
da forma yt = f(ict)α, com os modelos sendo Europe (2006). A taxa média de crescimento
distintos pelo fato de α ser menor, igual ou maior para a ue é de 5,4%. Para um total de trinta
que 1. No entanto, não procuramos estimar uma países europeus, a média é de 8,1%.
função de produção (e, portanto, α) devido a 23 As estimativas da parcela de valor agregado
insuficientes dados de séries temporais das indústrias de direitos autorais de 1981 a
consistentes para a ic e às dificuldades de 1986 foram de 3%, indicando que, durante a
interpretar uma regressão entre países. As década de 1980, essas indústrias não estavam
funções de produção para as indústrias culturais crescendo mais rápido do que a média
foram desenvolvidas e estimadas, por exemplo, econômica agregada, mas sim no mesmo ritmo.

126 Jason Potts e Stuart Cunningham


Essa é uma evidência preliminar de que as ics, de 31 Dados europeus relatam que o setor cultural
fato, “decolaram” durante a década de 1990. tem maior capital humano (46% com diplomas
Durante esse período, o emprego na ic cresceu universitários) do que a economia agregada
5% ao ano. Isso resultou no aumento da (25%). Resultados semelhantes são relatados para
participação no PIB de 2,6% em 1996 para 3,2% as indústrias criativas do Reino Unido e
em 2001, e do emprego, de 3% para 3,6%. da Austrália. Qualificações e receitas agregadas
24 Outra evidência de apoio do crescimento setoriais apresentam correlação positiva (por
relativo do emprego das indústrias criativas exemplo, o desenvolvimento de software relata
localizadas nos eua pode ser encontrada em maior capital humano medido pela qualificação
Florida (2002, 2005) e Levy e Murnane (2004). formal do que música).
Note-se que as indústrias baseadas em direitos 32 Por exemplo, embora componham cerca
autorais não são idênticas às indústrias criativas, de 6% da economia australiana, as ics
pois também incluem distribuição. correspondem a 11% das quinhentas maiores
25 “Contribuição econômica das indústrias fortunas da Austrália e a 38% das pessoas com
criativas de Singapura”, do Ministério do quarenta anos ou menos. Esse padrão se repete
Comércio e Indústria, a partir do relatório no Reino Unido, eua e Nova Zelândia.
Pesquisa econômica de Singapura no primeiro 33 O financiamento público cultural é, em média,
trimestre de 2003. de 0,5 a 1% do pib para a ue, embora haja muita
26 Estima-se que as ics, como fração do valor variação (a França e a Áustria, por exemplo, gastam
econômico agregado, sejam proporcionalmente perto de 4%). O financiamento público dos eua é
menores em nações em desenvolvimento como muito baixo (menos de 0,1%), mas, como explica
China, Índia, Rússia e Brasil. Suas taxas de Cowan (2006), o valor da transferência total é
crescimento do setor de serviços fornecem comparável ao da Europa, uma vez que fundos
evidências sugestivas de que as taxas de fiduciários, organizações sem fins lucrativos e
crescimento relativo das ics podem ser transferências corporativas são contabilizados.
semelhantes às das sociedades pós-industriais. Na Austrália, o financiamento governamental
Ainda há muito trabalho a ser feito aqui. das indústrias culturais foi de 4 bilhões de
27 Dados disponíveis em: www.gov.uk/ dólares em 2001, o que representa cerca de 0,5%
government/organisations/department-for-digital- do pib (Tabela 3.4 do relatório do bci, 2003).
-culture-media-sport. 34 Ver Potts e Mandeville (2007), Cowan (1998,
28 A margem de lucro de todas as empresas da 2002), Florida (2002, 2005) e Howkins (2001).
ic australiana foi recentemente estimada em 35 John Harley, personal communication (2006).
10,1%. Houve variação considerável entre os 36 85% das empresas de ic empregam menos de
setores, de 4,8% nas artes cênicas a 24% nas cinco pessoas, uma porcentagem que cresceu à
emissoras de tv. Dados da abs, relatados na medida que a indústria se desenvolveu,
tabela 3.2 do Relatório das indústrias criativas de implicando empreendedorismo em vez de escala
Brisbane (2003). A média da ic australiana está como o método dominante de crescimento.
na metade da faixa de todas as indústrias do país. 37 Nelson e Sampat (2001), Caves (2000) e
29 Levantamento conduzido pelo Cirac, Dopfer e Potts (2008).
com dados do Australian Tax Office. Essa é
uma figura média tríplice formada por
criativo especializado, equipe de apoio e
criativo incorporado.
30 Os dados do censo australiano de 2001
apresentam conclusão semelhante, com a receita
média semanal nas indústrias criativas reportada
em 765 dólares, o que é 15% maior do que a
média de todas as indústrias, no valor de 663
dólares (Relatório das indústrias criativas de
Brisbane, 2003).

Quatro modelos de indústrias criativas 127


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Quatro modelos de indústrias criativas 129


ROBERTA COMUNIAN é professora de Economia Criativa do Departamento
de Cultura, Mídia e Indústrias Criativas do King’s College London. Tem inte-
resse na relação entre investimentos públicos e privados em arte, projetos
de regeneração artística e cultural, trabalho cultural e criativo e carrei-
ras e economias sociocriativas. Foi bolsista do programa Marie Curie no
Centro de Estudos de Desenvolvimento Urbano e Regional da University of
Newcastle, investigando a relação entre indústrias criativas, política cultu-
ral e instituições artísticas apoiadas pelo setor público. Também trabalhou
em pesquisas sobre transferência de conhecimento e indústrias criativas
por meio do Prêmio AHRC Impact Fellowship, da University of Leeds. Pes-
quisou o papel do ensino superior na economia criativa e, recentemente,
explorou as oportunidades de carreira e os padrões dos pós-graduados
em áreas criativas no Reino Unido em vários artigos. Está atualmente en-
volvida no projeto de pesquisa Disce: Developing Inclusive and Sustainable
Creative Economies, financiado pelo H2020 (www.disce.eu).

BRIAN J. HRACS é professor associado da Escola de Geografia e Ciências


Ambientais da University of Southampton. Seu interesse incide sobre o
modo como as tecnologias digitais e a concorrência global estão remode-
lando o mercado de produtos culturais e a vida profissional, bem como
sobre a dinâmica espacial de empreendedores e intermediários na econo-
mia criativa. Publicou artigos sobre a indústria da música contemporânea,
o sistema de moda canadense, trabalho estético, criação de valor, inter-
mediários culturais, curadoria, as mobilidades do “talento” e o desenvol-
vimento econômico impulsionado pela cultura. Além do seu trabalho em
andamento sobre economias criativas na África, atualmente ele pesquisa
os processos e as dinâmicas espaciais da curadoria e a natureza translocal
das cenas culturais.

LAUREN ENGLAND é professora assistente em Economia Criativa do Depar-


tamento de Cultura, Mídia e Indústrias Criativas do King’s College London.
Tem interesse em empresas criativas e educação com foco em artesanato e
desenvolvimento sustentável nos contextos do Norte e do Sul Globais. Para
seu PhD no King’s College London em parceria com o Crafts Council do Reino
Unido, investigou o desenvolvimento profissional no ensino superior e es-
tratégias empreendedoras de início de carreira. Publicou pesquisas sobre
a evolução das habilidades artesanais, empreendedorismo artesanal, ensino
superior e empresas sociais e sobre o impacto da covid-19 nos trabalhadores
criativos. Além do trabalho contínuo sobre economias criativas e moda na
África, atualmente pesquisa o impacto da covid-19 em economias criativas
urbanas, incluindo trabalhadores, organizações e políticas.
Economias criativas na
África: compreensão e apoio1
ROBERTA COMUNIAN, BRIAN J. HRACS E LAUREN ENGLAND

INTRODUÇÃO

Este artigo faz uma reflexão crítica sobre as discussões e ideias que
surgiram em uma rede internacional de pesquisa com duração de
dois anos, financiada pelo Arts & Humanities Research Council
(ahrc), do Reino Unido. O financiamento visava incentivar pro-
postas de redes que explorassem a contribuição que a pesquisa em
artes e humanidades pode dar aos debates que se ocupam do desen-
volvimento internacional e/ou da Agenda 2030 para o Desenvolvi-
mento Sustentável, da onu. O projeto também buscava apoiar o
desenvolvimento de colaborações internacionais capazes de cruzar
fronteiras com países que recebem Assistência Oficial ao Desenvol-
vimento (oda) e/ou com organizações que desempenham papel
importante no apoio ao desenvolvimento internacional.
A rede de pesquisa foi criada para oferecer uma plataforma de
discussão entre acadêmicos, profissionais, artistas, intermediários
criativos e organizações políticas que tratam do papel, importância
e desenvolvimento das economias criativas no continente africano.
Dada a abrangência do projeto, reconhecemos que nosso trabalho
não pode se estender o suficiente para cobrir todo o continente, tam-
pouco procura se propor a vê-lo e entendê-lo como entidade única.
No entanto, lançando mão de fortes conexões acadêmicas, pretendía-
mos nos envolver com uma amostra significativa de países (Quênia,
Nigéria e África do Sul) para explorar as práticas, oportunidades e
desafios que eles enfrentam.
Este texto propõe-se a traçar alguns dos principais pontos de
aprendizado e reflexão com que nos deparamos em nossa jornada

Economias criativas na África: compreensão e apoio 131


e compartilhá-los com a comunidade internacional de acadêmicos,
legisladores e profissionais. A rede e a pesquisa associada a ela, rea-
lizadas em colaboração com muitos parceiros e colegas africanos,
ajudaram-nos a compreender as economias criativas nos países afri-
canos emergentes e a explorar estratégias para incentivar e permitir
a sustentabilidade e o desenvolvimento cultural, social e econômico
específico ao contexto. Ao fazê-lo, o projeto tentou facilitar as trocas
de informação – especificamente em todo o continente africano –,
destacando a importância do conhecimento específico do contexto e
incentivando as conexões entre as redes locais de produção cultural.
Entre as atividades realizadas pela rede, compilamos uma revi-
são da literatura especializada, pesquisas que visam entender me-
lhor o contexto das economias criativas emergentes no continente
africano. Com isso, identificamos cinco dimensões-chave que preci-
savam ser exploradas: (1) o papel do ensino superior nas economias
criativas africanas; (2) o papel da política para economias criativas;
(3) trabalho criativo, coworking e habilidades; (4) comunidades
criativas, clusters e agendas de desenvolvimento; e (5) o papel dos
intermediários criativos: redes e apoio. Este artigo se ocupa mais
detidamente do quinto tema, apresentando detalhes sobre o papel
que os intermediários criativos desempenham no desenvolvimento
das economias criativas africanas.

LITERATURA E METODOLOGIA

As economias criativas no continente africano são muitas vezes


consideradas uma panaceia para o desenvolvimento, com potencial
para contribuir com o crescimento econômico (Schultz e Van Gelder,
2008) e colocar tais países no mapa internacional. Elas oferecem a
oportunidade de usar a riqueza e diversidade de culturas em todo o
continente para gerar benefícios a grande parte da população. Essa
panaceia inclui não apenas o crescimento econômico, mas também
a oportunidade dos africanos de redefinir a si e a sua imagem futura
e impacto cultural. Embora esse cenário idílico tenha grande poten-
cial de mudança e atraia a atenção dos legisladores para o setor, ele
apresenta alguns perigos. Visser (2014) questiona até que ponto se
pode considerar as indústrias culturais e criativas (iccs) como uma
intervenção que “cura tudo”. Ele afirma que, ao desenvolver estra-
tégias para usar as iccs com o objetivo de estimular o crescimento,
por vezes as ideias são tomadas dos países desenvolvidos, sem adap-

132 Roberta Comunian, Brian J. Hracs e Lauren England


tação aos contextos locais, resultando no fracasso da maioria das
iniciativas. Além disso, argumenta que novas iccs podem levar à
marginalização como resultado da renovação urbana e subsequente
gentrificação que muitas vezes as acompanham.
Assim como em outros projetos de pesquisa, nossa jornada come-
çou com uma longa revisão da literatura especializada. O processo
destacou as dificuldades de estudar o contexto africano e um con-
junto de países que são diferentes de qualquer lugar sobre os quais
havíamos pesquisado antes. Embora seja fácil para os pesquisadores
fazerem suposições e levarem suas estruturas em longas jornadas
pelo mundo, depois de mais de dez anos estudando indústrias e
economias criativas em todo o Norte Global, estávamos cientes da
propensão a exportar ideias e sugestões de políticas sem o devido
respeito à diversidade das realidades locais. Como resultado, logo
no início do nosso planejamento e pesquisa, começamos a tratar
não apenas sobre iccs ou sobre uma “economia criativa” monolítica
(pnud e Unctad, 2010), mas também sobre economias criativas. Que-
ríamos reconhecer que, embora esses conceitos diferentes e conecta-
dos circulem pelo mundo e sejam usados em muitos países africanos,
é importante considerar que eles podem ter significados diferentes a
depender do contexto, e que essas interpretações distintas – vindas
tanto dos legisladores locais quanto dos próprios profissionais – são
importantes para identificá-los e entendê-los. Para tanto, tomamos
como ponto de partida a definição fornecida por órgãos de política
nacionais e internacionais. onu e Unctad (2008, p. 4) reconhecem
que a economia criativa está na

interface entre criatividade, cultura, economia e tecnologia, ex-


pressa na capacidade de criar e circular capital intelectual, com
potencial para gerar renda, empregos e receitas de exportação
ao mesmo tempo que promove a inclusão social, a diversidade
cultural e o desenvolvimento humano.

Além disso, a estrutura da Unesco para estatísticas culturais (pnud


e Unesco, 2013) considera a economia criativa um sistema de ativida-
des conectado a domínios culturais e iccs, mas que se expande para
outros setores da sociedade (por exemplo, educação e preservação),
e se relaciona tanto com a cultura intangível quanto com a tangível.
Portanto, nossa pesquisa se baseia na visão apresentada pelo Pro-
grama das Nações Unidas para o Desenvolvimento (pnud) e pela
Unesco (2013, p. 12) de que a “economia criativa não é uma única

Economias criativas na África: compreensão e apoio 133


grande estrada, mas uma infinidade de diferentes trajetórias locais
encontradas em cidades e regiões de países em desenvolvimento”.
Para esse projeto, nosso intuito é investigar não apenas a econo-
mia criativa como um setor comercial, como também as economias
criativas como um termo abrangente que inclui uma série de ati-
vidades criativas e culturais e adota amplo espectro de modelos de
negócios, em que as atividades podem envolver empreendimentos
comerciais, públicos e comunitários. Levamos tal argumento adiante
sugerindo que é crucial reconhecer que não existe uma única econo-
mia criativa, mas antes uma multiplicidade de economias criativas,
que podem apresentar agendas sobrepostas e divergentes. Isso ex-
plica a gama de modelos de negócios e objetivos que muitas vezes se
estendem à esfera social (Comunian et al., 2020). De várias maneiras,
a economia criativa como discurso global tem apontado para uma
direção diferente, longe dos valores que estão no seu centro. Recen-
temente, outros pesquisadores (Wilson et al., 2020) abordaram preo-
cupações em torno das ideias predominantes de “sucesso econômico”
e “crescimento” que cercam os discursos políticos e acadêmicos sobre
a economia criativa. Eles consideraram a importância de ligar a pes-
quisa a outros três discursos que têm dimensões sociais muito claras:
desenvolvimento humano, desenvolvimento cultural e assistência.
Desejávamos reconhecer que as economias criativas geram va-
lor – às vezes econômico e, mais frequentemente, cultural, social,
educacional ou psicológico, na forma de realização pessoal. Elas
dificilmente podem ser delimitadas por taxonomias tradicionais,
pois existem em diferentes escalas e envolvem grande variedade de
atores – de líderes em grandes instituições públicas ou corporações
a conselhos regionais de artes, redes comunitárias locais e artistas
individuais. Como resultado, nossa pesquisa visa reconhecer a plu-
ralidade dos esforços e objetivos de cada ator em sua contribuição
para economias criativas locais ou nacionais.
Ao adotar essa linha, rejeitamos a imposição de definições nacio-
nais ou supranacionais, que possibilitam e estimulam a globalização –
do Norte ao Sul Globais – e a homogeneização dos conceitos de in-
dústria e economia criativas. Em vez disso, usamos a perspectiva da
“glocalização”, pesquisando a adaptação local e a reinterpretação do
contexto da política internacional, enquanto coletamos dados que en-
riquecem nossa compreensão e destacam o valor de adotar e adaptar
perspectivas de economias criativas ao tratarmos dos países africanos.

134 Roberta Comunian, Brian J. Hracs e Lauren England


FOCO EM INTERMEDIÁRIOS CRIATIVOS

Tendo estudado as iccs fora do contexto da África, nos mantivemos


conscientes de que, ao examinar economias criativas, é necessária
uma compreensão complexa dos seus fatores e atores em várias esca-
las (Comunian, 2019). Na microescala, já havíamos analisado exten-
sivamente a dinâmica do trabalho (Hauge e Hracs, 2010; Comunian,
2009), as práticas empreendedoras e de aprendizagem (England,
2020, 2022) e os mercados (Hracs et al., 2013) para profissionais
criativos e seus projetos e produtos. Também tínhamos consciência
do papel das localidades (Brydges e Hracs, 2019), cidades e regiões,
bem como das estruturas políticas (Chapain e Comunian, 2010) que
podem apoiar ou dificultar o desenvolvimento de economias criati-
vas. No entanto, dadas as limitações de tempo (dois anos) e de re-
cursos do projeto de pesquisa, reconhecemos que a abordagem mais
produtiva se daria por meio de um enfoque sobre o nível médio e o
papel das redes e intermediários (Hracs, 2015; Comunian, 2011) nas
economias criativas. Embora seja uma investigação parcial de todo
o sistema, ela forneceu insights sobre as atividades de profissionais
criativos e culturais (nível micro) e as estruturas políticas de alto
nível em que esses intermediários operam (nível macro).
Isso proporciona uma perspectiva integrada para encarar as eco-
nomias criativas, abrangendo motivações, valores e experiências de
diferentes instituições, empresas e indivíduos que trabalham para
apoiá-las e desenvolvê-las. Dentro das iccs, incluindo arte, música
e moda, os intermediários culturais são amplamente reconhecidos
como atores-chave (Jakob e Van Heur, 2015; Comunian et al., 2022).
Esses indivíduos compartilham características comuns, como altos
níveis de capital cultural e de posições dentro de subculturas, cenas,
indústrias e organizações, o que contribui para a sua legitimidade e
autoridade, e as valida (Maguire e Matthews, 2014). De fato, além
de atores humanos individuais, os intermediários podem consistir
em organizações, eventos, espaços e recursos sociotécnicos, como
sistemas de recomendação musical (Jansson e Hracs, 2018). As
motivações variadas dos intermediários se estenderam para incluir
educação ou preservação e abraçar mais papéis de apoio e capacita-
ção, em vez de trabalhar puramente na interface entre profissionais
criativos e mercados/públicos. Assim, diferentemente das definições
anteriores, os intermediários culturais não se posicionam necessaria-
mente entre produtores e consumidores em relação à reformulação
ou curadoria do conteúdo ou à definição do valor cultural de artefa-

Economias criativas na África: compreensão e apoio 135


tos culturais específicos. Em vez disso, como discutido por Comu-
nian et al. (2022), eles tendem a situar-se “ao lado” dos produtores –
atuando como coprodutores e facilitando o acesso a uma série de
recursos e serviços de apoio –, ou “atrás” deles, fornecendo financia-
mento, aconselhamento ou outras formas de formação inicial.

A JORNADA DA PESQUISA

Nós nos propusemos a investigar economias criativas no conti-


nente africano, mas desde o início estávamos conscientes das di-
ficuldades de fazer pesquisa sobre a “África”. De muitas maneiras,
ela é uma construção geopolítica. Por vezes, durante o nosso tra-
balho de campo, a África se apresentou com uma forte identidade
comum e estrutura colaborativa, ligadas às esperanças de desen-
volvimento internacional. Em outros momentos, a identidade co-
letiva tornou-se algo sem sentido e inútil – uma construção que
simplesmente agrupa diferentes locais, nacionalidades e culturas,
os quais muitas vezes não se conectam nem conversam entre si.
Sabendo que nosso projeto, limitado em escopo e duração, não
poderia ser representativo de toda a África, decidimos nos ater a
três países – Quênia, Nigéria e África do Sul – onde nossas redes
acadêmicas internacionais nos permitiriam maximizar o valor e o
potencial da pesquisa. Além disso, são países com amplas comu-
nidades de língua inglesa, o que facilitou nosso trabalho de campo,
embora isso tenha reduzido a representatividade de nossos dados
e trabalho. Não pudemos sequer cobrir significativamente a vasta
geografia – e a variedade de culturas e idiomas – desses três países,
e a maior parte de nosso trabalho de campo permaneceu limitado
a três grandes cidades: Nairóbi, Lagos e Cidade do Cabo. Ainda
assim, o nível limitado de engajamento produziu dados vultosos,
nos convencendo do valor da nossa abordagem e enfatizando que
ainda há muito trabalho a ser feito.
Neste capítulo, compartilhamos os resultados do trabalho de
campo nessas três cidades africanas e refletimos sobre o que apren-
demos com parceiros locais e participantes da pesquisa, além de
estabelecer comparações entre algumas das diferentes abordagens
e estruturas das três cidades, cujas respectivas histórias e trajetó-
rias de desenvolvimento são muito distintas. Em vez de propor
conclusões, estávamos mais interessados em deixar o leitor refle-
tir sobre como descobertas e estudos de caso podem apresentar

136 Roberta Comunian, Brian J. Hracs e Lauren England


exemplos potenciais de melhores práticas e oportunidades para
o desenvolvimento de políticas e conhecimentos acadêmicos do
setor. Esperamos que tais descobertas possam ser benéficas para
nossos parceiros de pesquisa e para as pessoas que participaram
das oficinas e atividades nas três cidades. Cabe pontuar ainda que
aprendemos muito como pessoas e desejamos que alguns dos es-
tudos de caso incluídos no texto forneçam inspiração para pesqui-
sadores e profissionais em todo o mundo.

METODOLOGIA

Trabalhando em colaboração com parceiros locais, tratamos as três


cidades africanas selecionadas – Nairóbi, Lagos e Cidade do Cabo –
e suas economias criativas locais como estudos de caso individuais.
Durante uma semana, realizamos trabalho de campo e, nesse pe-
ríodo, fizemos a coleta de dados, com foco em pesquisa compar-
tilhada, sobre o papel dos intermediários criativos. Em cada local,
investigamos alguns temas que julgávamos emergentes e únicos
para o seu contexto, o que nos proporcionou ricas oportunidades
de aprendizagem e reflexão. Os focos específicos foram o setor de
design de moda em Nairóbi, o ensino superior em Lagos e as mobi-
lidades criativas na Cidade do Cabo.
Os dados coletados no trabalho de campo (25 grupos de discus-
são; 44 entrevistas; 145 respostas de pesquisas online) foram usados
para informar as descobertas e os estudos de caso incluídos neste
artigo. Em cada cidade, realizamos cinco grupos de discussão com
intermediários criativos que nos permitiram coletar dados valiosos
e detalhados sobre crenças, práticas e experiências. A dinâmica de
grupo nos ajudou a entender o papel e as perspectivas das diferen-
tes partes interessadas. Os grupos de discussões voltaram-se para
tópicos como o papel da política, o impacto da mobilidade e das re-
des internacionais e a importância da tecnologia e das redes. Além
disso, coletamos respostas por meio de pesquisas online sobre seus
perfis e atividades, e realizamos detalhadas entrevistas com treze
intermediários. Do mesmo modo, nos dedicamos à observação dos
participantes, visitando vários estúdios, oficinas, galerias, localida-
des, eventos e atividades culturais.

Economias criativas na África: compreensão e apoio 137


ECONOMIAS CRIATIVAS NA ÁFRICA: O PAPEL DOS
INTERMEDIÁRIOS NO APOIO AO DESENVOLVIMENTO

O que são intermediários criativos?


Em nosso projeto, definimos intermediários criativos como indiví-
duos ou organizações que facilitam o crescimento e o desenvolvi-
mento de profissionais criativos, projetos e iccs. Eles desempenham
um papel vital no apoio ao setor, fornecendo acesso a informações,
habilidades, recursos e redes que permitem aos indivíduos envolvi-
dos com iccs cumprir sua missão e objetivos criativos ou de negó-
cios, sejam eles encenar uma peça, fornecer educação artística para
crianças ou levar um novo produto para o mercado.
Reconhecemos que os intermediários criativos existem em to-
das as formas e tamanhos, desde indivíduos aficionados e com ex-
periência no setor criativo e cultural que fornecem treinamento e
mentoria, passando por ongs de médio porte que apoiam a arte
na comunidade, até grandes organizações com financiamento pú-
blico (como conselhos regionais e nacionais de arte), cuja missão é
financiar, treinar e apoiar artistas e iccs. Eles variam de empresas
autônomas locais de propriedade individual a grandes organizações
internacionais, e podem adotar modelos empresariais/organizacio-
nais, refletindo a gama de organizações ativas na economia criativa:
organizações com fins lucrativos, do setor público, beneficentes ou
sem fins lucrativos, cooperativas e empresas de interesse comunitá-
rio ou redes informais.
Tem havido uma atenção política crescente sobre o papel que as
economias criativas podem desempenhar no desenvolvimento local
(pnud e Unesco, 2013). Contudo, menos atenção tem sido dada ao
papel dos intermediários na facilitação de caminhos para o desen-
volvimento criativo. Neste texto, argumentamos que sua função
é importante, por vários motivos, no contexto da África. Em pri-
meiro lugar, os países africanos às vezes carecem de estruturas e ins-
tituições formais de políticas culturais, e, quando elas existem, por
vezes têm capacidade e financiamento limitados para implementar
mudanças duradouras e contribuir para o desenvolvimento criativo
(Steedman, 2022). Em segundo lugar, muitas das instituições for-
mais estão fortemente ancoradas em setores tradicionais da econo-
mia (extração, agricultura, manufatura) e menos preocupadas com
setores emergentes. Isso deixa uma lacuna importante para os inter-
mediários intervirem nos padrões de desenvolvimento e os molda-

138 Roberta Comunian, Brian J. Hracs e Lauren England


rem (Njuguna et al., 2022). Apesar da falta de investimento e apoio
formal para economias criativas, o impacto econômico do setor é
surpreendente e tem sido considerado fundamental para o desenvol-
vimento econômico por organizações internacionais. Isso tem sido
associado à rápida expansão das tecnologias digitais (principalmente
móveis), com muitos jovens saltando das plataformas analógicas e
tradicionais de consumo cultural diretamente para as digitais. A cen-
tralidade da tecnologia e suas importantes conexões com os princi-
pais dados demográficos de muitas nações africanas mostram que
há um nicho para os intermediários crescerem e se conectarem por
meio de novas tecnologias. Finalmente, e mais importante, muitos
autores que estudam economias criativas na África destacam o papel
da informalidade e das redes na estrutura industrial (Drummond e
Snowball, 2022; Burton et al., 2022). Essas questões sugerem que os
intermediários podem articular relações e apoiar as iccs, desempe-
nhando um papel vital no desenvolvimento do setor.

O que os intermediários criativos fazem?


Em nosso projeto, descobrimos que os intermediários criativos
atuam em diversos setores, prestando vários serviços ou se especia-
lizando em apenas um. Eles podem fornecer acesso a informações e
redes (infraestrutura leve), bem como recursos físicos ou estruturais
(infraestrutura física). Assim, a partir de dados coletados por meio
de nossa pesquisa online (85 entrevistados) com intermediários cria-
tivos em Nairóbi, Lagos e Cidade do Cabo (figura 1), identificamos
as áreas em que eles atuam apoiando o desenvolvimento de iccs.
Nossas descobertas sugerem que, na maioria dos casos, os interme-
diários ofereceram suporte em mais de uma área:

• 53% dos entrevistados disponibilizaram espaço e equipamento,


incluindo escritórios, áreas de coworking e incubadoras de empre-
sas, bem como estúdios e locais de ensaio ou apresentações, além de
acesso a equipamento especializado e infraestrutura de TI;
• 40% forneceram financiamento, incluindo distribuição de re-
cursos públicos ou de fundos, empréstimos reembolsáveis e não
reembolsáveis, corretagem de finanças/investimentos e financia-
mento colaborativo;
• 71% forneceram oportunidades de networking e parcerias, in-
cluindo organização de eventos, festivais e feiras de negócios e pro-
moção e intermediação de parcerias e colaborações;

Economias criativas na África: compreensão e apoio 139


• 75% forneceram treinamento e desenvolvimento de habilidades,
incluindo treinamento criativo ou especializado em negócios, opor-
tunidades de desenvolvimento profissional e mentoria;
• 72% forneceram consultoria e orientação de negócios, incluindo
orientação sobre startups, finanças, crescimento, exportação e inter-
nacionalização, protocolo de internet e acesso ao mercado.

Figura 1: Intermediários criativos e suas áreas de trabalho

75% 72%
Treinamento e Consultoria
habilidades e orientação
de negócios

53%
Espaço e
equipamento

40%
Finanças

71%
Networking
e parcerias

Fonte: desenhado por Elsardt Kigen.

140 Roberta Comunian, Brian J. Hracs e Lauren England


ECONOMIAS CRIATIVAS NA ÁFRICA: APRESENTAÇÃO
DO TRABALHO DOS INTERMEDIÁRIOS

Durante o projeto, tivemos a oportunidade de conhecer e entrevis-


tar uma série de intermediários e gostaríamos de apresentar alguns
estudos de caso que se destacam pela contribuição significativa
para o desenvolvimento das economias criativas na África. Nós os
reunimos aqui em quatro títulos que classificam seu trabalho em
diferentes áreas:
• Intermediários criativos e o papel do ensino superior;
• Intermediários criativos e o desenvolvimento da mão de obra
criativa em ação;
• Intermediários criativos, coworking, financiamento e redes;
• Intermediários criativos, comunidades e agendas de desenvol-
vimento.

INTERMEDIÁRIOS CRIATIVOS E O PAPEL DO


ENSINO SUPERIOR

Nosso projeto envolveu parcerias com estabelecimentos de ensino


superior na Nigéria, África do Sul e Quênia – as universidades de
Lagos, Rhodes e Nairóbi, respectivamente. Todos apresentaram
uma série de colaborações e envolvimentos com as economias cria-
tivas locais e nacionais. Durante as nossas visitas e encontros com
acadêmicos nos três países, tivemos a oportunidade de analisar o
papel que as universidades desempenham nas economias criativas
na África. Exploramos essa ideia com mais detalhes em nosso livro
Higher Education and Policy for Creative Economies in Africa: Developing
Creative Economies (Comunian et al., 2021). Em Lagos, criamos um
grupo de discussão com quinze acadêmicos do Departamento de
Artes Criativas e do corpo docente de Artes. O grupo destacou as
melhores práticas de engajamento entre acadêmicos e as iccs locais,
e a importância de uma agenda forte para proporcionar emprega-
bilidade em países onde os jovens frequentemente vivenciam altos
níveis de desemprego. Apresentamos um exemplo ilustrativo disso
com o estudo de caso da Lagoon Gallery, da University of Lagos.
A ideia da Lagoon Gallery foi uma ramificação do projeto Creative
Arts in Town, estabelecido no ano de 2007. O foco do Departamento
de Artes Criativas fundamentou-se desde o início no sentido de pro-
duzir graduados em Artes Cênicas e Visuais que não apenas tives-

Economias criativas na África: compreensão e apoio 141


sem uma boa compreensão de suas próprias tradições artísticas, mas
também fossem voltados para um sentido internacional do mundo.
O projeto foi liderado pela professora de História da Arte e chefe
do departamento, Peju Layiwola, e recebeu grande apoio do corpo
docente e de toda a universidade. Todos reconheceram o importante
esforço do departamento em apoiar e apresentar os talentos desen-
volvidos em seus cursos.
Da mesma forma, membros do corpo docente da University of
Nairobi destacaram a importância de unir formação teórica com
habilidades práticas e empreendedoras. Eles enfatizaram como isso
permitiu que os alunos entrassem no mercado de trabalho – no caso,
da moda – preparados para realizar mais do que simplesmente a ati-
vidade de design. Discussões com membros do corpo docente da
Rhodes University destacaram o papel do ensino superior, com suas
práticas de pesquisa e desenvolvimento, na coleta de dados e no de-
senvolvimento de recomendações que contribuem com a política,
ajudam a moldar a economia criativa e fornecem informações públi-
cas acessíveis. Um grande exemplo disso é o Observatório Cultural
da África do Sul (Saco), da qual a Rhodes University é parceira, um
líder mundial em colaboração entre pesquisa acadêmica e política
cultural nacional. Como explicou a estrategista-chefe de pesquisa
do observatório, Jeanette Snowball,

se você quer ter uma política eficaz, precisa ter alguma coisa no
que se basear… Se você não tem informações sobre alguma coisa
(indústrias culturais), ela não existe e você não sabe como apoiá-la.
Mas espero que, se você tiver uma política baseada em evidências,
ela lhe dê uma ideia melhor de onde gastar seus limitados recursos.

Em todas as nossas discussões, enfatizou-se a importância de de-


senvolver a compreensão da necessidade de fomentar e aprimorar
a criatividade visando alcançar qualidade e excelência internacio-
nalmente reconhecidas. Embora tenhamos identificado vários pro-
gramas e plataformas nos países e localidades específicas que estão
trabalhando para isso, nossas discussões apontaram para a falta de
estruturas formais e incentivos transparentes que apoiem as cola-
borações. Também notamos o sub-reconhecimento das iccs como
parceiras econômicas, culturais e de desenvolvimento essenciais
para o ensino superior. Nos três locais da pesquisa, constatamos
que as habilidades e a educação estavam em demanda (Obia et al.,
2021) e tinham a capacidade de dar voz à economia criativa local e

142 Roberta Comunian, Brian J. Hracs e Lauren England


internacional, contribuindo para o desenvolvimento econômico e
a disseminação da cultura nacional. Houve, porém, algumas limita-
ções identificadas em relação à falta de reconhecimento de discipli-
nas criativas dentro das prioridades de investimento universitário e
como escolhas de carreira sólidas e, às vezes, à falta de acesso e opor-
tunidades para todos. Além de questões mais amplas sobre acesso e
igualdade no ensino superior, muitos jovens optam por estudar no
exterior como caminho para a economia criativa ou optam por se
dedicar a outras disciplinas e ingressar em carreiras criativas em seu
tempo livre por meio de oportunidades autodidatas ou networking.
Embora isso seja valioso para o indivíduo e possa introduzir ideias
inovadoras e diversas no ambiente criativo local, muitas vezes exa-
cerba um sistema de desigualdade por meio do qual não são os mais
talentosos ou merecedores que se sobressaem, mas apenas aqueles
que podem pagar por oportunidades e vantagens específicas. Isso
tem o potencial de criar e reforçar padrões de desigualdade nas car-
reiras criativas (Booyens, 2012). Ao desenvolver infraestrutura de
ensino superior e oferta de cursos para a economia criativa, as na-
ções africanas poderão oferecer oportunidades para uma gama mais
diversificada de jovens; isso, por sua vez, aumentará a diversidade e
a criatividade da economia criativa.

INTERMEDIÁRIOS CRIATIVOS E O DESENVOLVIMENTO


DA MÃO DE OBRA CRIATIVA EM AÇÃO

Nosso projeto envolveu discussões em grupo com profissionais e in-


termediários criativos que trabalham em diversos setores das iccs
e entrevistas adicionais com atores específicos do setor no ensino
superior, artesanato e moda. Isso proporcionou várias perspecti-
vas através das quais pudemos explorar as experiências da mão de
obra e de indivíduos criativos e das organizações que apoiam o seu
desenvolvimento. Embora houvesse questões específicas do setor e
do local relacionadas à política, infraestrutura e dinâmica do mer-
cado, nossas conversas com essas pessoas indicaram uma série de
desafios comuns enfrentados no desenvolvimento de suas carreiras.
As semelhanças incluíam acesso limitado a financiamento formal e
consistente, falta de redes para sustentar a troca de ideias, conhe-
cimento e recursos, apoio social limitado para buscar uma carreira
criativa e falta de apoio político (Burton et al., 2022; Comunian e
Kimera, 2021). Houve um sentimento geral de que as iccs não fo-

Economias criativas na África: compreensão e apoio 143


ram priorizadas e reconhecidas adequadamente por seu potencial de
desenvolvimento econômico, social e cultural. No sentido contrário,
despontaram as organizações que apoiaram os profissionais criati-
vos de cada cenário e as diversas e engenhosas maneiras de construir
suas carreiras. Apesar da importância do ensino superior, discutida
anteriormente, é preciso reconhecer que o desenvolvimento de uma
força de trabalho criativa não é apenas de sua responsabilidade.
Durante o nosso trabalho de campo, identificamos – e nos en-
volvemos com – uma série de intermediários que estavam apoiando
o desenvolvimento da força de trabalho criativa da África, dois dos
quais abordaremos mais detalhadamente a seguir, em estudos de
caso. Estes variaram de indivíduos aficionados e com experiência em
iccs, que forneciam treinamento e mentoria, até grandes organiza-
ções de financiamento público (nacional e internacional) com com-
petência para distribuir recursos e fornecer feedback para os artistas.
Por meio dos grupos de discussão e entrevistas adicionais, desco-
brimos que esses intermediários desempenharam um papel vital no
apoio ao desenvolvimento da força de trabalho criativa ao fornecer
acesso a informações, habilidades, recursos e redes que permitiram
aos envolvidos alcançarem seus objetivos criativos ou de negócios.
A maioria desses intermediários dava suporte ao desenvolvimento
da força de trabalho de várias formas (Comunian et al., 2022).
Muitos daqueles com quem conversamos viram a colaboração
internacional, a construção de parcerias e a criação de redes com
outros intermediários como aspectos essenciais para seu trabalho,
a fim de continuar buscando o reconhecimento da importância das
economias criativas no desenvolvimento potencial de seus países.
Além da rede acadêmica formada por meio da pesquisa, os grupos
de discussão com intermediários em cada localidade possibilitaram
a articulação entre os atores locais.
Os intermediários consideraram a fragilidade das estruturas polí-
ticas e a falta de investimento como enormes barreiras aos desenvol-
vimentos futuros no setor. Todavia, essa não é apenas uma questão
política; uma desconfiança geral acerca das possibilidades que as eco-
nomias criativas podem oferecer em relação à educação e ao emprego
foi muitas vezes vista como a principal barreira. A necessidade de
intermediários criativos para batalhar pela importância do setor foi
igualmente reconhecida.
Apesar de algumas questões serem locais ou específicas do se-
tor, descobrimos que muitos dos desafios foram compartilhados
pelos entrevistados das diferentes cidades. Tais desafios tinham a

144 Roberta Comunian, Brian J. Hracs e Lauren England


ver não apenas com a falta de engajamento político e de reconheci-
mento da importância do setor, como também com sua incapacidade
de compartilhar objetivos comuns e se unir em torno de uma agenda
compartilhada. A especificidade e o contexto local, porém, são im-
portantes e podem originar ou agravar os desafios.
Durante a nossa visita a Lagos, descobrimos um interessante
espaço de desenvolvimento e coworking chamado Angels and Muse.
O projeto é uma iniciativa do renomado artista e escritor Victor
Ehikhamenor. Fundado em janeiro de 2018 e concebido como fle-
xível e multifuncional, o lugar é voltado para o desenvolvimento de
artistas e da futura força de trabalho criativa. Suas múltiplas funções
permitem que ele seja gerido como um negócio capaz de se tornar
tanto um espaço de coworking como de exposições, podendo ser alu-
gado para workshops, treinamentos e eventos. As atividades visam
desenvolver processos criativos e de pensamento. Como destaca
Ehikhamenor,

é um espaço onde pessoas com ideias semelhantes nas indústrias


criativas locais e internacionais podem se reunir para comparti-
lhar ideias e por meio do qual eu posso promover uma retribuição
à comunidade em que atuo como artista. É também um local a
que jovens artistas sem oportunidade de mostrar seu trabalho
podem recorrer.

Outro estudo de caso interessante foi o do Spier Arts Academy, um


programa vibrante de estágio de mosaico e cerâmica no centro da
Cidade do Cabo (a turma final se formou em 2020), cujo objetivo
era contribuir para a economia criativa da África do Sul, bem como
para iniciativas mais amplas ligadas à transformação e elevação so-
cial. O projeto deu impulso a carreiras bem-sucedidas e sustentáveis
relacionadas à arte por meio de financiamento, treinamento, networ-
king e experiência de trabalho. Ao longo de três anos, cada aprendiz
recebeu, em tempo integral, treinamento de qualidade que os ca-
pacitou com as habilidades e conhecimentos artísticos e comerciais
necessários para administrar com sucesso seus próprios negócios
após a graduação.
Ambos os estudos de caso revelam as principais preocupações dos
intermediários criativos de apoiar as agendas de habilidades desen-
volvidas e facilitar as oportunidades de trabalho para criativos locais.

Economias criativas na África: compreensão e apoio 145


INTERMEDIÁRIOS CRIATIVOS, COWORKING,
FINANCIAMENTO E REDES

O acesso ao espaço, ao financiamento e às redes é fundamental para o


trabalho dos profissionais criativos e dos intermediários que os apoiam.
Nas três cidades, observamos as diversas atividades realizadas em seus
espaços de coworking e polos criativos, os quais analisamos com mais de-
talhes em nosso livro Developing Creative Economies in Africa: Spaces and
Working Practices (Hracs et al., 2022). Neles, os criativos podem produzir
trabalhos, realizar reuniões com clientes e encontrar-se com colegas em
um ambiente profissional. Os espaços atendem a diversas comunidades
e localidades em áreas do centro da cidade e seus arredores. Por meio
de nossas interações com a rede, aprendemos sobre clusters criativos
rurais. Os espaços de coworking respondem a uma demanda crescente
por locais de trabalho flexíveis e profissionais, ambientes informais
de aprendizagem e atividades que proporcionem o desenvolvimento
empreendedor. Dessa forma, podemos vê-los como uma resposta a
uma lacuna na provisão de políticas, fornecendo a infraestrutura social
para a construção de redes e colaborações entre pessoas, ideias e lugares
(Merkel, 2015). Muitas vezes, tais espaços vão além do fornecimento
de infraestrutura que suporta as atividades profissionais de networking,
treinamento e crescimento profissional comumente associadas a eles
(Gandini, 2015); seu trabalho igualmente enfatiza o desenvolvimento
do patrimônio e da comunidade e apoia o estabelecimento de uma
massa crítica de atores locais, o que pode, além disso, facilitar o tu-
rismo e o ativismo. São, assim, espaços multifuncionais e multiagenda
fundamentais para o desenvolvimento da economia criativa. Isso é
ilustrado através do estudo de caso do Tribe xx Lab, em Lagos, um
espaço de coworking orientado para mulheres (England et al., 2022).
A cofundadora Emalohi L. Iruobe Esq disse em nossa reunião que
“mais de 70% da população feminina na Nigéria se envolve em alguma
forma de empreendedorismo, seja por meio de pequenos negócios, bi-
cos e agitação criativa, seja como empreendedoras em tempo integral”.
No entanto, as oportunidades para as mulheres estabelecerem negócios
são escassas, em parte devido ao patriarcado e ao nepotismo vigentes na
sociedade nigeriana, o que torna muito difícil para as empresárias
na Nigéria despontarem e se desenvolverem. As mulheres ainda são
discriminadas pelos bancos ao tentar obter bons empréstimos, pelos
proprietários de imóveis para conseguir aluguel e pelo governo nige-
riano, que não aprovou a Lei de Igualdade de Gênero, apresentada em
março de 2016, que tornaria ilegal a discriminação contra as mulheres.

146 Roberta Comunian, Brian J. Hracs e Lauren England


A literatura internacional mais ampla destaca como o financia-
mento das iccs está evoluindo atualmente, uma vez que as institui-
ções financeiras tradicionais não oferecem soluções personalizadas
suficientes (Monclus, 2015). Por meio da nossa pesquisa, observamos
os desafios de acesso a financiamento formal acessível, consistente
e adequado (doações, empréstimos, investimentos etc.). Entre-
tanto, identificamos exemplos de novos intermediários que estão
contribuindo para o desenvolvimento da inovação e oferecendo
financiamento para iccs na África. Isso mostra como abordagens
inovadoras e melhores práticas podem se desenvolver em períodos
relativamente curtos, tanto por meio de colaborações internacio-
nais quanto pelo trabalho de intermediários locais (Comunian et al.,
2022). Em Nairóbi, isso incluiu o Fundo Heva (Njuguna et al., 2022),
que cresceu como uma cisão do trabalho do Nest Collective, uma
organização artística multidisciplinar com sede na cidade. O Nest
deu início a uma reflexão sobre os meios de subsistência artísticos
e o que precisaria ser feito para garantir que os artistas pudessem
viver de sua arte de forma sustentável. Em 2013, apoiado pela Hivos
East Africa, contratou um estudo de viabilidade sobre a economia
criativa na África Oriental. Conforme Njuguna et al. (2022) analisam,
naquela época as pesquisas não abordavam questões envolvendo
financiamento com soluções viáveis e sustentáveis para bancar em-
preendedores criativos por meio de ferramentas de investimento
como empréstimos e ações: “O Nest havia proposto um fundo de
garantia da dívida para o setor criativo, e um estudo determinaria se
isso era de fato a melhor solução para as dificuldades que os empreen-
dedores criativos enfrentam ao buscar financiamento” (p. 47). Em
Lagos, trabalhamos com a Hatch Africa, uma consultoria sediada no
Reino Unido focada no crescimento empresarial e sustentabilidade
na África. Seu trabalho concentra-se na diversidade de atividades e
modelos de negócios criativos em todo o continente e na importân-
cia de educar os profissionais criativos sobre as realidades financeiras
do empreendedorismo e o ambiente de financiamento, bem como
de desenvolver modelos de investimento e de negócios adequados
às suas necessidades (Mokuolu et al., 2021). Os intermediários cria-
tivos também apoiaram o estabelecimento e a manutenção de redes
de diferentes tipos e com finalidades variadas, tanto formais como
informais, em contextos locais, nacionais e internacionais. Para os
trabalhadores criativos, a participação em redes contribuiu tanto
para suas atividades profissionais quanto para seu processo criativo,
atuando como chave de aprendizado e de ideias geradoras de opor-

Economias criativas na África: compreensão e apoio 147


tunidades dentro de uma comunidade criativa em constante cresci-
mento. Instituições de ensino superior, espaços de coworking, polos
criativos e organizações comunitárias atuaram como facilitadores da
rede, e, embora houvesse afinidades em seus interesses e objetivos,
nem sempre havia interação entre eles. Além da rede de pesquisa
formada por meio desse projeto, os grupos de discussão propiciaram
espaços valiosos em que os profissionais e os intermediários criativos
puderam se engajar uns com os outros, se conectar em diferentes
redes e continuar as conversas após os eventos. Da mesma forma,
identificamos as principais oportunidades para o desenvolvimento
de redes regionais e continentais e compartilhamento de conheci-
mento. Por meio delas, as melhores práticas em um determinado
país africano poderiam fornecer uma estrutura mais adequada para
o desenvolvimento da economia criativa em outros países do conti-
nente, em vez de se basear em exemplos do Norte Global ou aqueles
conduzidos por agências não africanas.

INTERMEDIÁRIOS CRIATIVOS, COMUNIDADES E


AGENDAS DE DESENVOLVIMENTO

Nossa pesquisa expôs a necessidade de convergência de agendas de


desenvolvimento cultural, social e econômico no trabalho de profis-
sionais e intermediários criativos em espaços de coworking, polos cria-
tivos e clusters da África. Isso contribui para o crescimento econômico
nacional e local, ao se trabalhar com agências e iniciativas de desen-
volvimento continental e internacional de grande escala, a fim de au-
mentar as habilidades e expandir os mercados interno e de exportação.
Os espaços e organizações com os quais nos envolvemos por meio
da pesquisa e da rede não apenas permitiram o processo de aprendi-
zagem social que dá suporte à criatividade, à eficiência, à geração de
ideias e às conexões sociais que podem impulsionar o desempenho
econômico, como também facilitaram mudanças sociais capazes de
provocar um impacto ainda mais amplo (Akanle e Omotayo, 2020).
Os espaços e clusters criativos da África e o trabalho dos intermediá-
rios podem, portanto, ser vistos como uma operação na interseção
do desenvolvimento cultural, econômico e social. Isso inclui o apoio
a grupos específicos da sociedade que, de outra forma, possivelmente
seriam excluídos das oportunidades de desenvolvimento de negócios,
como as mulheres (Steedman, 2022; England et al., 2022) e comunida-
des rurais marginalizadas (Abisuga-Oyekunle et al., 2021; Drummond

148 Roberta Comunian, Brian J. Hracs e Lauren England


e Snowball, 2022). Em Nairóbi, identificamos esforços para recuperar
as indústrias têxteis domésticas, com o desenvolvimento de novas ca-
deias de fornecimento de materiais sustentáveis, que oferecem opor-
tunidades de emprego para mulheres e agricultores rurais, conforme
ilustrado pelo caso da Tosheka Textiles. A Tosheka passou a usar re-
centemente a seda eri como uma nova fibra para a produção de fios, te-
cidos e tapetes feitos à mão. A nova fibra é uma alternativa ao algodão
de sequeiro, que não tem sido muito benéfico para as comunidades
envolvidas. As atividades da Tosheka fornecem apoio à comunidade
a partir de várias perspectivas; elas não substituem o trabalho agrícola
comunitário, mas são integradas ao trabalho sazonal local, e as ativi-
dades de fiação e tecelagem são planejadas em torno de suas atividades
agrícolas. Portanto, a renda torna-se adicional e permite a diversifica-
ção. A empresa oferece oportunidades de treinamento, além de contar
com o conhecimento e a criatividade da comunidade local.
Grupos de discussão com intermediários na Cidade do Cabo en-
fatizaram a importância de trabalhar e aprender com as comunida-
des, particularmente grupos rurais e marginalizados, a fim de revi-
sar a narrativa (principalmente em relação ao turismo e percepções
de pobreza) e impulsionar a mudança, dando-lhes as ferramentas
para se empoderarem. A necessidade de responder às necessidades
da comunidade, e não às das organizações, era imperiosa. O estudo
de caso do centro cultural Guga S’Thebe, em Langa, um distrito da
Cidade do Cabo, exemplificou como a inserção social e o empreende-
dorismo foram, sim, apoiados por um conjunto de indivíduos e inter-
mediários, mas impulsionados e sustentados por uma comunidade de
base e uma massa crítica de trabalhadores criativos locais (Booyens
et al., 2022). Atualmente, o espaço acomoda uma grande variedade
de empreendimentos criativos, como arte em mosaico, cerâmica,
pintura, têxteis (costura), bordado de contas e tecelagem, arte per-
formática (dança, percussão, teatro) e artesanato em arame. Esse es-
paço de coworking atende um grupo diversificado de artesãos, artistas
e designers que compartilham oficinas ou estúdios para a produção
de bens criativos. Além de ser um local de produção cultural, o centro
oferece uma plataforma de venda, intercâmbio cultural, coworking e
aprendizado. Várias organizações comunitárias e sem fins lucrativos,
como a Associação de Artesãos Guga S’Thebe, a Associação de Artes
Langa, a Fundação Langa Heritage, a Ombonwethu e a Our Work-
shop estão envolvidas. Elas constituem um coletivo de profissionais
criativos e empreendedores sociais que atuam como intermediários
para artistas e artesãos.

Economias criativas na África: compreensão e apoio 149


É importante salientar que as iniciativas de desenvolvimento da
economia criativa são específicas ao local e não se limitam às áreas
urbanas. As áreas rurais e as periferias das grandes cidades podem
carecer de infraestrutura e capital humano para desenvolver uma
série diversificada de iccs, além de ter dinâmicas específicas que
devem ser levadas em consideração (Drummond e Snowball, 2022).
Embora apresentem alguns desafios, existem oportunidades para
desenvolver a vantagem competitiva e impulsionar o desenvolvi-
mento por meio do turismo, aproveitando os clusters criativos locais
existentes e suas habilidades e conhecimentos especializados.
Em nossas investigações sobre o papel da educação, redes e po-
líticas para apoiar o desenvolvimento de economias criativas sus-
tentáveis na África, nos defrontamos com o trabalho das mulheres
africanas nesse setor. Áreas das iccs com baixas barreiras de entrada
(como artes visuais e artesanato) já são reconhecidas por seu po-
tencial de geração de emprego e renda para pessoas anteriormente
desfavorecidas e marginalizadas, muitas das quais são mulheres
(Abisuga-Oyekunle et al., 2021). Nossa pesquisa identificou áreas
com barreiras potencialmente mais altas (em relação à educação,
equipamentos e requisitos de capital) nas quais as mulheres estão
prosperando e impulsionando o desenvolvimento, apesar dessas bar-
reiras empreendedoras – mesmo que, conforme se observa interna-
cionalmente, certas áreas ainda sejam dominadas por homens (mídia
e digital) e mulheres (moda e artesanato). No entanto, identificamos
uma série de plataformas formais e informais – incluindo o Tribe xx
Lab, em Lagos – que possibilitam às mulheres prosperar, impulsionar
o desenvolvimento e se engajar em áreas com alta tecnologia tradicio-
nalmente dominadas por homens. Ao desenvolver economias criati-
vas e expandir o envolvimento internacional com produtos criativos
e culturais africanos, é importante incentivar as mulheres empreen-
dedoras e as plataformas que as apoiam, e garantir que o crescimento
e a internacionalização não dificultem sua ascensão.

OBSERVAÇÕES FINAIS

Este artigo reuniu uma série de perspectivas e reflexões sobre o de-


senvolvimento das economias criativas na África. Concluiremos com
alguns temas mais amplos que vieram à tona, antes de apresentar
recomendações de políticas.

150 Roberta Comunian, Brian J. Hracs e Lauren England


O papel central do ensino superior
Nossa pesquisa destacou a importância do desenvolvimento de habi-
lidades e oportunidades de educação em relação às economias cria-
tivas na África. A educação permite que estudantes e profissionais
aprendam uns com os outros e contribuam para o conhecimento e
a experiência mais amplas do setor. O ensino superior, com as suas
práticas de pesquisa e desenvolvimento, pode provocar uma mu-
dança na perspectiva da economia criativa da África, baseada no pa-
trimônio e na riqueza das tradições, para uma economia que apoie
a necessidade de fomentar e aperfeiçoar a criatividade para alcançar
qualidade e excelência reconhecidas internacionalmente. O ensino
superior desempenha papel específico e único como intermediário
valioso, coordenando e facilitando o desenvolvimento de economias
criativas e trabalhando com ampla gama de partes interessadas e
agendas (figura 2). As instituições de ensino superior e sua força de
trabalho podem sugerir políticas, engajar-se com as necessidades da
indústria, conectar-se com jovens que desejam ingressar nas iccs e
disseminar a cultura. Portanto, posicionamos o ensino superior ope-
rando na interseção das iniciativas políticas (do desenvolvimento
econômico ao envolvimento da comunidade), com o potencial de
fazer contribuições significativas por meio de conexões aprimoradas
nas economias criativas locais, nacionais e internacionais.

Figura 2: Ensino superior na interseção entre economias


criativas, desenvolvimento local, juventude e políticas

Economias Desenvolvimento
criativas local

1 2
Ensino
superior
3 4

Juventude Políticas

Fonte: desenhado por Elsardt Kigen.

Economias criativas na África: compreensão e apoio 151


Redes e espaços para o trabalho criativo
Além do ensino superior, nossas atividades destacaram a variedade
de práticas e experiências de trabalho dos profissionais criativos, o
que reflete a diversidade das iccs e dos contextos nacionais e locais
específicos em que atuam. De muitas maneiras, tais espaços podem
ser vistos como operando fora – ou mesmo dentro – de estruturas
políticas formais, atendendo à crescente demanda por espaços flexí-
veis de aprendizagem e produção criativa, redes e desenvolvimento
empresarial (Hracs et al., 2022).
O que constatamos nos locais de nossa pesquisa foi a importante
multifuncionalidade de provedores de ensino superior, espaços de
coworking e polos criativos em relação a como eles contribuem com
agendas múltiplas e sobrepostas, como produção cultural, desen-
volvimento econômico, coesão comunitária, igualdade, sustentabi-
lidade, turismo, preservação do patrimônio e educação. A oferta de
espaços está significativamente ligada ao florescimento das econo-
mias sociocriativas (Comunian et al., 2020), interligando agendas
econômicas, sociais e culturais.

Intermediários: conectando agendas


de desenvolvimento
Embora o potencial para o crescimento econômico seja a razão proe-
minente para o desenvolvimento da economia criativa (em todo o
continen­te e internacionalmente), ao estudar economias criativas na
África notamos a fusão entre as agendas de desenvolvimento econô-
mico, social e cultural. Isso inclui o papel do ensino superior na inter-
seção de comunidades, políticas e indústria, a multifuncionalidade de
espaços e hubs de coworking criativos e as diversas práticas e motiva-
ções de intermediários criativos, desde a preservação do patrimônio
cultural e o empoderamento de grupos marginalizados até o desenvol-
vimento de mercados internacionais que impulsionam o crescimento
econômico e melhoram as percepções internacionais dos produtos cria-
tivos da África. A sobreposição de agendas de desenvolvimento nas eco-
nomias criativas é importante para a elaboração de iniciativas e espaços
que deem apoio à expressão cultural e ao desenvolvimento econômico e
que empoderem toda a sociedade, ao invés de beneficiar poucos.
Neste artigo, argumentamos que os intermediários desempe-
nham um papel central ao conectarem essas agendas e atuarem como
facilitadores, muitas vezes fazendo ligações entre setores ou partes
divergentes da sociedade e tornando visíveis seus objetivos comuns

152 Roberta Comunian, Brian J. Hracs e Lauren England


e seu potencial de colaboração (figura 3). Além disso, o trabalho dos
intermediários ajuda a identificar as carências do setor e de quem
atua nele e a necessidade de mais reconhecimento e visibilidade das
economias criativas e de seus valores.

Figura 3: A centralidade dos intermediários criativos

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vim cu
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1
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Intermediários
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2 3
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vo ial
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Fonte: desenhado por Elsardt Kigen.

Políticas para economias criativas prósperas


Nossa pesquisa observou a ausência de priorização das iccs por parte
das políticas nacionais de muitos países africanos. No entanto, há um
claro potencial para que essas políticas abracem as economias criativas
e desenvolvam infraestrutura de apoio em parceria com intermediá-
rios, organizações comunitárias e todo o setor privado. Ao imple-
mentar políticas que apoiarão efetivamente o desenvolvimento de
economias criativas na África, é importante reunir empreendedores
criativos, intermediários e legisladores. Os profissionais criativos têm
um papel fundamental a desempenhar na orientação ao governo sobre
o apoio de que precisam e na demonstração das melhores práticas do
setor. Ao analisar as políticas para economias criativas na África, é im-
portante adotar uma abordagem histórica e sistemática, examinando
as iniciativas políticas – de cima para baixo e de baixo para cima – que
podem capacitar os profissionais criativos e as organizações de apoio.
O desenvolvimento de políticas e programas para apoiar a produção
criativa tendo em vista seus benefícios sociais e culturais mais amplos

Economias criativas na África: compreensão e apoio 153


é essencial para incentivar comunidades e sistemas criativos ao lado
de potenciais agendas de desenvolvimento econômico. As pessoas que
participaram de nossos workshops e grupos de discussão estavam muito
interessadas em colaborar entre si e com parceiros internacionais. Elas
mencionaram especificamente como era importante falar conosco
para que tivéssemos mais informações sobre os contextos locais. Tam-
bém relataram que era muito relevante para eles serem reconhecidos
como atores significativos dentro dessa arena global.
Portanto, como representantes das universidades do Reino
Unido, sentimos que as organizações internacionais podem desem-
penhar um papel influente no reconhecimento do valor geral da cul-
tura e das economias criativas, e devem admitir o preponderante
papel dos intermediários e de seu trabalho no apoio aos ambientes
criativos locais (De Bernard et al., 2021).
Destacamos a seguir cinco pilares (figura 4) para o desenvolvi-
mento futuro que as políticas precisam considerar a fim de permitir
que as economias criativas prosperem:

1. Reconhecer o valor que as economias criativas trazem para as


comunidades, a sociedade e a economia. O valor só pode ser per-
cebido se todos os indivíduos da sociedade forem capacitados para
contribuir com ele e se beneficiar dele;
2. Reconhecer o papel dos intermediários criativos em unir legis-
ladores, comunidades e empreendedores para elaborar estratégias
e políticas de economias criativas baseadas na experiência. Desen-
volver modelos de parceria e colaborações de várias partes interes-
sadas – organizações públicas, privadas e comunitárias – em apoiar
iniciativas e infraestrutura sustentáveis;
3. Investir em colaborações e parcerias com o ensino superior
para apoiar um pipeline de talentos e agregar valor às economias cria-
tivas por meio de pesquisa, desenvolvimento e capital humano, ma-
ximizando o impacto das economias criativas locais e aumentando
seu reconhecimento internacional;
4. Fortalecer colaborações continentais e internacionais por meio
de pesquisa e construção de redes para apoiar o compartilhamento de
conhecimento e o desenvolvimento de economias criativas em toda
a África;
5. Criar infraestrutura acessível e inclusiva para apoiar economias
criativas em contextos urbanos e rurais, garantindo que oportuni-
dades educacionais e empreendimentos criativos estejam abertos a
todos e representem a diversidade de cada nação ou região.

154 Roberta Comunian, Brian J. Hracs e Lauren England


Figura 4: Políticas para economias criativas prósperas

Reconhecer
o valor que as
economias criativas
trazem para as
comunidades,
a sociedade e a
economia.
Reconhecer o papel
Criar infraestrutura dos intermediários
acessível e inclusiva criativos em
para apoiar economias unir legisladores,
criativas. comunidades e
empreendedores.

Fortalecer colaborações
Investir em
continentais e
colaborações e
internacionais por meio
parcerias com o
de pesquisa e construção
ensino superior.
de redes.

Fonte: desenhado por Elsardt Kigen.

Nota

1 Somos muito gratos pelo apoio financeiro Wakiuru Njuguna, do Fundo Heva; professor
oferecido pelo Arts and Humanities Duro Oni e toda sua equipe do
Research Council (ahrc, bolsa número ah/ Departamento de Artes Criativas da
P005950/1), do Reino Unido, por meio do University of Lagos; Polly Alakija, presidente
Global Challenges Research Fund (gcrf). do State Council for Arts and Culture de
Também gostaríamos de agradecer a todos os Lagos; Ojoma Ochai, do British Council da
participantes que contribuíram com os Nigéria; professora Jen Snowball, da Rhodes
workshops na Cidade do Cabo, Lagos e Nairóbi University; Unathi Lutshaba e equipe, do
em 2019. Nosso agradecimento especial aos South African Cultural Observatory (Saco);
colegas: Ogake Mosomi e à professora Lilac e dra. Irma Booyens e suas colegas do
Adhiambo Osanjo, da University of Nairobi; Human Sciences Research Council.

Economias criativas na África: compreensão e apoio 155


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Economias criativas na África: compreensão e apoio 157


VALENTINA MONTALTO tem mais de doze anos de experiência
profissional, combinando trabalhos no setor privado – como
gerente de projetos – e no setor público – como pesquisadora e
analista de políticas –, com foco no potencial da cultura para o
bem-estar social e econômico. Seus interesses de pesquisa se
concentram em: a) conceituar o papel da cultura em uma eco-
nomia que é cada vez mais movida por conhecimento; b) de-
senvolver métricas para captar o valor social e econômico da
cultura; e c) sugerir políticas – tanto em nível local quanto na
União Europeia – que possam ajudar a extrair o máximo da cul-
tura para empoderar cidadãos e promover desenvolvimento
econômico. Trabalha atualmente no Joint Research Centre, da
Comissão Europeia, onde lidera o projeto Cultural and Creative
Cities Monitor.
A cidade criativa sob
as lentes da pandemia:
o (in)sustentável valor
da cultura1
VALENTINA MONTALTO

INTRODUÇÃO

Toda cidade é cultural por definição. A cultura determina as relações


das pessoas com o tempo, o espaço e outras pessoas, ainda mais em
locais com alta densidade populacional e caracterizados por inúme-
ras e frequentes relações, como as cidades. Entretanto, os centros ur-
banos conhecidos como cidades de arte, cidades culturais ou cidades
criativas são comumente o resultado de uma vontade específica de
agentes (públicos, privados ou sem fins lucrativos) que convergem
em torno da ideia de que a cultura pode ser um importante recurso
para um território e, assim sendo, pode e deve ser valorizada visando
ao interesse coletivo. Essa ideia pode se apresentar em configura-
ções espaciais e políticas bastante distintas. Até mesmo o conceito
popular de cidade criativa – que moveu inúmeras análises, pesqui-
sas e estudos de caso ao longo dos últimos quarenta anos – reflete
grande variedade de abordagens teóricas – um conceito que, apesar
de poroso, é profundamente questionado pela mudança acelerada
imposta pela pandemia de covid-19.
Inicialmente, este artigo propõe uma visão geral sobre as duas
abordagens teóricas mais difundidas do conceito de cidade criativa.
Em seguida, introduz uma ferramenta de avaliação comparativa – o
Cultural and Creative Cities Monitor [Monitor de Cidades Criativas
e Culturais] – que visa identificar empiricamente e medir a perfor-
mance das cidades criativas europeias. Em um terceiro momento,
conceitualiza os potenciais efeitos provocados pela pandemia em ci-
dades criativas, os quais provavelmente serão coletados pela terceira
edição do Monitor, a ser lançada em 2022. Por fim, discute duas ques-

A cidade criativa sob as lentes da pandemia: o (in)sustentável


valor da cultura 159
tões socioeconômicas conhecidas – a fragilidade dos trabalhadores
culturais e o turismo de massa –, que a pandemia trouxe à tona, e que
a próxima geração de cidades criativas deve enfrentar para equilibrar
a necessidade de serem tanto atrativas quanto sustentáveis.

O QUE É UMA CIDADE CRIATIVA:


FUNDAMENTOS TEÓRICOS

Ao longo dos anos 1980 e na primeira metade dos anos 1990, vários
pesquisadores e iniciativas de políticas começaram a apontar ques-
tões relativas à constituição da criatividade e da inovação em aglo-
merações espaciais. Explícita ou implicitamente, tal esforço resultou
em uma estrutura teórica emergente, focada no pós-fordismo e sua
manifestação na produção flexível (Amin e Thrift, 1996), dando
origem, enfim, ao conceito de “cidade criativa”.
Allen J. Scott e Richard Florida podem ser considerados alguns
dos principais fundadores das reflexões que sustentam a relação entre
cultura, criatividade e aglomerações urbanas. Scott (1997) examina
o histórico de cidades que, através do tempo, se tornaram clusters es-
pecializados em produção cultural graças à combinação entre um
contexto inicial específico (capital cultural), conexões e trocas (ca-
pital social) e um cenário institucional capaz de traduzir criatividade
individual e coletiva em recurso para o território. A abordagem de
Florida (2002, 2005), por sua vez, torna realmente possível popula-
rizar o assunto, já que traz à tona as dinâmicas de especialização ba-
seadas em cultura de grandes áreas metropolitanas, como Nova York,
São Francisco, Paris ou Berlim. Ao mesmo tempo, impele uma série
de outras cidades menores, como Antuérpia, na Bélgica (Martinez,
2007), Wollongong, na Austrália (Waitt e Gibson, 2009), e Óbidos,
em Portugal (Tomaz, Selada e Da Cunha, 2011), a criar condições
para nutrir dinâmicas similares. Basicamente, Florida presume uma
relação direta entre a classe criativa e o crescimento econômico de
uma cidade; daí a necessidade de atrair a classe de trabalhadores por
meio de um ambiente rico em facilidades (inclusive culturais), di-
verso e tolerante, com excelente infraestrutura tecnológica e alta con-
centração de talentos (os chamados “3 Ts”).
Os autores propõem duas abordagens conceituais bastante di-
ferentes para o papel da cultura e da criatividade nas cidades: no
primeiro caso, uma abordagem orientada pela produção cultural (a
cidade cresce ao produzir cultura), e, no segundo, pelo consumo cul-

160 Valentina Montalto


tural (a cidade cresce graças a talentos atraídos também por oportu-
nidades de consumo cultural). Enquanto no primeiro caso possibilita-se
à cultura e à criatividade o crescimento orgânico dentro da cidade,
no segundo a cultura assume papel instrumental para atrair talentos
externos, o que, em última análise, produz risco de rejeitar jovens e
promissores profissionais criativos de baixa renda, como discutido
amplamente na literatura especializada (Comunian, 2011; D’Ovidio,
2016; Sacco, 2014).
Como a produção cultural requer condições regionais específicas
(concentração de talentos, fluxo de conhecimento e ideias através de
redes formais e informais, mercado local e/ou capacidade de alcançar
os nichos adequados no mercado global, entre outros), capitais e
grandes cidades são geralmente os locais onde se concentram os prin-
cipais centros de produção cultural, com raras exceções (o cluster de
cerâmicas da cidade de Caltagirone, na Itália, é um exemplo).
No caso de pequenos centros urbanos, o turismo pode por vezes
compensar a dificuldade de se implantar uma economia com alto
valor agregado, tornando-os locais próprios para a difusão e o con-
sumo de uma cultura produzida em outro lugar, capaz ao mesmo
tempo de contribuir para (re)ativar a cadeia de suprimentos cultu-
rais locais (Barrado-Timón, Palacios, e Hidalgo-Giralt, 2020). É isso
que a rede de Cidades Criativas da Unesco, como Barcelos (Portugal,
c. 120 mil habitantes) e Angoulême (França, c. 42 mil habitantes),
está tentando fazer por meio do artesanato e da literatura, respec-
tivamente, de modo a escolher a produção cultural como a força
motriz para as estratégias de promoção do turismo. Curiosamente,
enquanto Barcelos ostenta tradição histórica no setor de cerâmica,
Angoulême só passou a desenvolver sua cadeia de suprimentos no
setor de HQs há pouco tempo, depois do grande sucesso do Festival
International de la Bande Dessinée (fidb) (Chesnel, 2010; Lesage,
2013), que se tornou um dos mais importantes da Europa.

CIDADES CRIATIVAS EUROPEIAS: UMA FERRAMENTA


EMPÍRICA DE AVALIAÇÃO COMPARATIVA

De acordo com os dados do Monitor de Cidades Criativas e Culturais,


desenvolvido pelo Joint Research Centre, da Comissão Europeia,
pelo menos 190 cidades de trinta países europeus (27 da União Eu-
ropeia, e também Noruega, Suíça e Reino Unido) decidiram investir
em cultura como elemento de especialização e diferenciação regional.

A cidade criativa sob as lentes da pandemia: o (in)sustentável


valor da cultura 161
Essas cidades estão incluídas na ferramenta de medida comparativa
devido ao compromisso de iniciar rotas de desenvolvimento basea-
das em cultura. O Monitor mensura tais compromissos empirica-
mente, utilizando três iniciativas comparáveis em escala internacio-
nal. Assim, o índice leva em conta os seguintes dados:

• 98 cidades que foram ou serão Capitais Europeias da Cultura


(ou foram pré-selecionadas para se tornar uma);
• 33 cidades criativas da Unesco; e
• 59 cidades que sediam pelo menos dois festivais culturais
internacionais.

A performance dessas cidades é medida por meio de 29 indicadores di-


ferentes, todos eles relacionados ao sistema criativo e cultural de cada
localidade. Tais indicadores derivam de um conjunto inicia de dados
com cerca de duzentos indicadores baseados em critérios estatísticos e
conceituais (Montalto, Tacao Moura, Alberti, Saisana e Panella, 2019;
Montalto, Tacao Moura, Langedijk e Saisana, 2019). O Monitor reúne
então 29 métricas com o fim de calcular os subíndices de Vitalidade
Cultural, Economia Criativa e Ambiente Favorável, assim como o
Índice de Cidades Criativas e Culturais (c3), como um indicador sin-
tético da vitalidade cultural e criativa das cidades europeias.

Tabela 1: Monitor de Cidades Criativas e Culturais: estrutura conceitual,


indicadores e pesos

Pesos dos Pesos das


Subíndices Dimensões Indicadores
subíndices dimensões

Pontos turísticos e de referência

Museus e galerias de arte


D1.1 Espaços e
50% instalações Assentos de cinema
culturais
Concertos e shows
1. Vitalidade
40% Teatros
cultural
Pernoites de turistas
D1.2 Participação Visitantes em museus
50% cultural e
atratividade Presença em cinemas

Satisfação com equipamentos culturais

162 Valentina Montalto


Pesos dos Pesos das
Subíndices Dimensões Indicadores
subíndices dimensões

Empregos em arte, cultura e


D2.1 Empregos entretenimento
baseados em
40%
criatividade e Empregos em mídia e comunicação
conhecimento
Empregos em outros setores criativos

D2.2 Propriedade Pedidos de patente de tic


20% intelectual e
2. Economia Community design applications
40% inovação
criativa
Empregos em novas empresas de arte,
cultura e entretenimento
D2.3 Novos
Empregos em novas empresas de
40% empregos em
mídia e comunicação
setores criativos
Empregos em novas empresas de
outros setores criativos

Graduados em Artes e Humanidades


D3.1 Capital
Graduados em tic
40% humano e
educação Média de aparições em classificações
universitárias

Graduados estrangeiros

População nascida no exterior


D3.2 Abertura,
3. Ambiente 40% tolerância e Tolerância de estrangeiros
20% confiança
favorável Integração de estrangeiros

Confiança em pessoas

Acessibilidade a voos de passageiros


D3.3 Conexões
15% locais e Acessibilidade rodoviária
internacionais
Acessibilidade ferroviária

D3.4 Qualidade de
5% Qualidade de governança
governança

Fonte: Cultural and Creative Cities Monitor – edição 2019.

Mesmo sem os dados da terceira edição do Monitor, cuja publica-


ção está agendada para 2022 – que vão nos permitir medir empiri-
camente o impacto da pandemia em cidades criativas –, podemos
antecipar que a recente crise sanitária enfraqueceu o dinamismo
cultural que caracteriza tais cidades em pelo menos três frentes.
CIDADES CRIATIVAS SOB A LENTE DA PANDEMIA DE
COVID-19: CONCEITUANDO IMPACTOS

Em primeiro lugar, a pandemia certamente afetou o setor cultural


enquanto setor econômico e isso se deve a pelo menos dois motivos: o
primeiro é a necessidade de um público presencial, especialmente
em alguns setores, como o de entretenimento ao vivo (daí a incom-
patibilidade entre muitos trabalhos culturais e o teletrabalho); o se-
gundo deriva da fragilidade estrutural de um setor em que um terço
dos empregados nos 27 países da União Europeia são autônomos
(uma proporção de 32% contra 14% dos empregos em geral). O per-
centual é ainda maior entre artistas e escritores (na ordem de 44%)
(Fonte: Eurostat, 2020). Trabalhadores fora do padrão, como os au-
tônomos, têm maior risco de perder renda e estão mais propensos a
não ter fontes alternativas de renda ou planos de saúde.
Em segundo lugar, a recente crise econômico-sanitária afeta a
cultura enquanto bem de consumo/lazer e, por extensão, todos os
setores que dependem dela, a começar pelo turismo. Nas cidades
analisadas pelo Monitor de Cidades Criativas e Culturais, de 2% a
12% dos empregos correm alto risco; o percentual flutua entre 17% e
60% se também levarmos em conta os empregos no setor de turismo.
Em terceiro lugar, a crise sanitária afeta a cultura enquanto bem
relacional e instrumento de cuidado individual e coletivo, já que es-
paços físicos de cultura foram esvaziados de súbito e se tornaram
inacessíveis como nunca havia ocorrido. O fechamento de espaços e
a drástica redução do acesso afetaram tanto cidades grandes quanto
médias e pequenas. Em termos de bem-estar individual e coletivo,
a pandemia pode afetar particularmente cidades menores, onde as
pessoas parecem ser mais apegadas às instalações culturais locais. De
acordo com resultados de uma pesquisa europeia sobre qualidade de
vida, é nas cidades de tamanho médio onde, na verdade, se registra
a maior parte de habitantes satisfeitos com a infraestrutura cultural
local (Bolsi et al., 2020). Em média, 90% da população na amostra-
gem de 83 cidades se diz satisfeita. Isso se dá principalmente graças à
alta porcentagem de habitantes satisfeitos que se encontra em cida-
des médias, como Aalborg (Dinamarca, 95%), Cardiff (Reino Unido,
95%), Oulu (Finlândia, 94%), Groningen (Holanda, 94%), Malmo
(Suécia, 94%), Estrasburgo (França, 93%), Gdansk (Polônia, 93%),
Antuérpia (Bélgica, 92%) e Bolonha (Itália, 89%).

164 Valentina Montalto


Figura 1: Taxa de empregos nas áreas de cultura e turismo em algumas cidades
da União Europeia que fazem parte do “top 50” do Índice de Cidades Criativas
e Culturais

0,5

0,4

0,3

0,2

0,1

0
Nuremberg

Groningen
Amsterdã

Stuttgart
Barcelona

Frankfurt

Toulouse
Munique
Avignon
Bologna

Bremen

Kraków
Galway
Veneza

Atenas

Leipzig

Leuven
Dublin
Lisboa

Mainz

Turku
Milão

Tartu
Cork

Fonte: Elaborado pelo Joint Research Center (JRC), da Comissão Europeia, com base em dados de
Eurostat (Urban Audit; dados mais recentes combinados para o período de 2011–16. NaceE Rev. 2,
R a U, e Nace Rev. 2, G a I).
Figura 2: Taxa de habitantes satisfeitos com a infraestrutura cultural
de sua cidade (salas de concerto, teatros, museus e bibliotecas)

%
<65
65 - 72
72 - 78
78 - 80
>= 80
População das cidades
<250 000
250 000 – 500 000
500 000 – 1 000 000
1 000 000 – 5 000 000
>= 5 000 000

Fonte: Comissão Europeia (Report on the Quality of Life in European Cities, 2020).

166 Valentina Montalto


RUMO A NOVAS MANEIRAS DE CONSTRUIR UMA
CIDADE CRIATIVA?

Na primeira fase da pandemia, muitas cidades não apenas agiram de


maneira veloz como também tal ação foi articulada em resposta aos
múltiplos impactos ocasionados pela situação emergencial. De um
lado, governos locais (e, dependendo do caso, regionais e nacionais)
introduziram medidas de apoio financeiro e empregatício; de outro,
iniciaram ou apoiaram campanhas de divulgação para o período de
verão, voltadas para o público local, e não internacional. Além disso,
favoreceram ou mesmo apoiaram financeiramente o desenvolvi-
mento de formatos alternativos de produção e distribuição, com o
objetivo de modelar espaços, como as plataformas digitais, ou de
encontrar categorias de público particularmente exposto aos efeitos
socioeconômicos da pandemia (para mais informações, ver Mon-
talto et al., 2020; uclg Culture Committee, 2020; Unesco, 2020).
A validação dessas medidas se encontra sobretudo no reconhe-
cimento institucional, o que agrega às dimensões econômica, empre-
gatícia e social da cultura. Ainda assim, a crise evidencia gargalos
socioeconômicos do setor, que são bem conhecidos e foram exacerba-
dos pelo peculiar momento histórico que vivenciamos. Em resumo,
tais gargalos envolvem uma questão central: como tornar cidades
criativas atraentes e sustentáveis?
Sustentabilidade tem relação, em primeiro lugar, com as condi-
ções de trabalho precárias e frágeis em que a maioria dos trabalhado-
res culturais se encontram (Comunian e England, 2020). Ratificar
a dignidade do trabalho dos profissionais significa reconhecer e
preservar o capital humano e profissional que alimenta a imagem e
a economia cognitivo-cultural de nossas cidades. Mas quem exata-
mente são esses trabalhadores? Os dados existentes não são suficien-
tes para medir trabalhadores culturais e criativos, especialmente
no nível das cidades. Como a maioria é freelancer, eles geralmente
escapam das estatísticas oficiais. A pandemia oferece às cidades a
oportunidade de refletir sobre novas maneiras de coletar dados
aprofundados relativos a esses trabalhadores, o que pode, em úl-
tima instância, ajudar a torná-los visíveis diante das políticas tanto
culturais quanto sociais, em todos os níveis relevantes de governo.
O conhecimento aprimorado representará, assim, a base para a cria-
ção de um sistema de bem-estar que leve em conta as condições
estruturais do mercado de trabalho cultural (trabalho baseado em
projeto, alta mobilidade etc.). A adoção de um European Status of

A cidade criativa sob as lentes da pandemia: o (in)sustentável


valor da cultura 167
the Artist, proposto pelo Parlamento Europeu e agora aguardando
a ação da Comissão Europeia, segue exatamente na direção de tor-
nar o trabalho cultural sustentável.
Em segundo lugar, a sustentabilidade tem relação com um campo
de reflexão igualmente conhecido, o turismo. Apesar de a pande-
mia ter afetado severamente a economia turística, trata-se de um
período que permitiu que cidades redescobrissem o valor de um tipo
diferente de turismo, mais lento e próximo. Ela não terá sido em vão
se propiciar oportunidade para repensar o turismo urbano. Algumas
cidades já trabalham para isso, principalmente Barcelona, que pre-
tende transformar La Rambla em eixo cultural. A ideia, ambiciosa
e visionária, pode ser pioneira do novo modelo de desenvolvimento
urbano baseado em cultura – modelo este que vai além da mera mo-
noeconomia turística. A questão principal é como setores e profis-
sionais culturais podem se tornar parceiros da indústria do turismo,
com o objetivo de adicionar ideias sustentáveis ao desenvolvimento
de um turismo cultural atrativo.
Esses dois tópicos podem auxiliar a moldar as políticas e a agenda
de pesquisa das cidades criativas para além de respostas emergen-
ciais de curto prazo à pandemia.

Nota

1 Este artigo foi elaborado para o Seminário Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Internacional de Economia e Política da (ufrgs). Em maio de 2022, foi publicado no
Cultura e Indústrias Criativas para o livro que leva o mesmo nome e está disponível
Desenvolvimento Sustentável, realizado em nos sites do Itaú Cultural e da ufrgs.
outubro de 2021 pelo Itaú Cultural e pela Tradução de Tatiana Diniz. [N. do org.]

168 Valentina Montalto


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A cidade criativa sob as lentes da pandemia: o (in)sustentável


valor da cultura 169
HASAN BAKHSHI é diretor do Creative Industries Policy and
Evidence Centre, um consórcio de pesquisa de dez universi-
dades financiado pelo Arts and Humanities Research Council
(AHRC) e liderado pela Nesta cuja função é melhorar a base
de evidências das políticas de apoio às indústrias criativas do
Reino Unido. Antes de trabalhar na Nesta, foi diretor executivo
do Lehman Brothers, economista-chefe interino do Ministério
de Relações Exteriores e da Comunidade das Nações e econo-
mista do Banco da Inglaterra. Tem um grande número de pu-
blicações em periódicos acadêmicos e políticos sobre assuntos
que variam do progresso tecnológico e crescimento econômico
à economia do setor criativo e cultural. É membro do Creative
Industries Council do governo britânico e do conselho con-
sultivo do Department for Digital, Culture, Media and Sport
(DCMS). Em 2017, foi eleito membro do Royal Economic Society
Council. Atualmente, integra o conselho de duas organizações
de arte: Art UK e Darbar Arts.
Que indicadores são
necessários para incluir
a cultura na agenda
político-econômica?1
HASAN BAKHSHI

Cada vez mais, em todo o mundo, as indústrias culturais e criativas


(iccs) precisam fazer uso de dados quantitativos e de estatísticas para
o desenvolvimento de seu trabalho (Mateos-Garcia, 2014; Lilley e
Moore, 2013). Promover mais “tomada de decisão orientada por da-
dos” é visto como um meio de as organizações alcançarem eficiência
operacional (Navarrete, 2013) e de se aproximarem do público (Finnis,
Chan e Clements, 2011) e como uma maneira de facilitar o desenvol-
vimento de conteúdos criativos e inovações em modelos de negócios
(Behrens et al., 2020). As organizações beneficiárias de financiamento
público enfrentam pressões adicionais para uma maior utilização dos
dados, em especial para demonstrar que os benefícios do apoio ao con-
tribuinte compensam os custos. O fato de que os benefícios culturais
do investimento público são difíceis de quantificar levou alguns eco-
nomistas a redobrados esforços para mensurar seus benefícios econô-
micos e sociais, que são mais fáceis de medir (Bakhshi, 2013).
Neste breve artigo, proponho seis princípios aos quais os indica-
dores devem aderir para que a cultura e a criatividade sejam incluídas
na agenda político-econômica.2 Ilustro esses princípios com três es-
tudos de caso de dados das iccs britânicas.

SEIS PRINCÍPIOS PARA INDICADORES CULTURAIS

Os seis princípios apresentados no diagrama a seguir (figura 1) são


inspirados em uma estrutura desenvolvida por um consórcio de
pesquisadores liderados pela Nesta no contexto de um projeto sobre
indicadores de pesquisa e inovação financiado pelo programa Hori-

Que indicadores são necessários para incluir a cultura


na agenda político-econômica? 171
zonte 2020, da União Europeia (Blind, 2018). Não devem ser vistos
como um conjunto exclusivo, mas sim como princípios necessários,
embora não suficientes, para que a cultura e a criatividade assumam
seu devido lugar na agenda político-econômica. Em particular, eles
não abordam integralmente questões de ética de dados, como res-
ponsabilidade e justiça – considerações vitais para a cultura, assim
como para outros setores, mas que receberam muita atenção nos últi-
mos anos (ver, por exemplo, o Government Digital Service – 2020 –,
do Reino Unido).
Esses princípios não devem ser vistos como aplicáveis exclusi-
vamente às iccs. No entanto, a cultura de advocacy do setor, muitas
vezes associada a reivindicações que não podem se apoiar em dados
confiáveis, evidencia como eles são importantes para as iccs. Sem
dúvida, a adesão aos seis princípios não é conflitante, mas essencial
para uma advocacy eficaz nas indústrias culturais e criativas. Os indi-
cadores devem sobretudo expor os muitos problemas das iccs, bem
como os benefícios que elas conferem à economia e à sociedade. A le-
gitimidade aos olhos dos formuladores de políticas é garantida com a
ajuda de dados rigorosos e transparentes, e não por dados unilaterais.

Figura 1: Seis princípios para indicadores culturais

Relevante

Dinâmico Inclusivo

Dados culturais

Transparente Oportuno

Confiante

Fonte: elaboração própria.

172 Hasan Bakhshi


Indicadores relevantes contêm informações úteis, com nível apro-
priado de resolução (geográfica, setorial, ocupacional etc.) para
os formuladores de políticas. O que é considerado “útil” depende
da compreensão do que o formulador está tentando alcançar, a
natureza das suas decisões, as restrições que elas enfrentam e quais
instrumentos políticos eles têm disponíveis para atingir seu obje-
tivo. Em determinado contexto cultural, o formulador de políticas
pode, por exemplo, precisar de estimativas setoriais de emprego
para informar esquemas de criação de vagas direcionadas. Contudo,
quando é necessário um argumento competitivo ao tentar obter fi-
nanciamento de seu ministério da economia ou finanças, o formu-
lador pode enfrentar restrições advindas da comparação com outras
forças de trabalho.
Indicadores inclusivos apresentam o quadro mais completo do
conjunto de oportunidades e restrições relevantes para o formula-
dor de políticas. Além de tornar mais provável que os resultados
pretendidos sejam alcançados, as políticas inclusivas se ancoram em
um apoio mais amplo dos beneficiários. Essas razões estão além das
justificativas normativas óbvias para querer que os indicadores sejam
inclusivos. Em um contexto cultural, no qual o escopo da política é
altamente questionado e os interesses e as desigualdades são grandes,
a inclusão de indicadores (e transparência onde há privilégios) pode
ser crucial.
O momento oportuno para as decisões políticas é normalmente
ditado pela lógica política e por fatores conjunturais que indepen-
dem dos processos de geração de dados. O período de tempo ao qual
um indicador se refere deve, portanto, ser relevante para a decisão
política em questão. Em um contexto cultural, por exemplo, a clas-
sificação industrial-padrão (sic), estabelecida internacionalmente,
e a classificação ocupacional-padrão (soc), usada nas estatísticas
oficiais, são revisadas com intervalos de aproximadamente décadas,
dando origem a estatísticas sobre iccs imprecisas para mudanças
rápidas, incluindo emergentes e subsetores – precisamente aqueles
que mais merecem atenção política. Um exemplo é o setor de video-
games, que, embora longe de ser uma indústria nova, ainda carece de
uma identidade separada na sic (Nações Unidas, 2008).
Formuladores de políticas precisam de indicadores que possam
ser usados sem que se tenham grandes preocupações com sua qua-
lidade, interpretabilidade, representatividade e oportunidade: em
suma, eles devem ser confiáveis. Na prática, a construção de confiança
pode exigir que os formuladores de políticas se envolvam com os in-

Que indicadores são necessários para incluir a cultura


na agenda político-econômica? 173
dicadores repetidamente e ao longo do tempo. A chancela estatística
das agências de coleta de dados, assim como o endosso dos institutos
nacionais de estatística, é uma consideração igualmente importante.
Em geral, confiança requer transparência: os formuladores de polí-
ticas contam com a capacidade de especialistas independentes, que
tenham a possibilidade de confrontar as agências de coleta de dados.
Além de seu papel na construção de confiança com os formula-
dores de políticas e outros usuários de dados, a transparência leva a
obtenção de dados inclusivos e de maior qualidade, pois as limitações
metodológicas e as lacunas nas informações são expostas, podendo
ser sugeridas melhorias. Em áreas contestadas como a cultura, a
transparência sobre o que não está sendo medido é tão importante
quanto o que é, de fato, medido. Uma revolução de dados abertos
está ocorrendo em disciplinas como economia e psicologia, das quais
periódicos acadêmicos agora exigem regularmente que os autores
publiquem os conjuntos de dados necessários para replicar seus re-
sultados. Sem dúvida, porém, os dados usados na grande maioria dos
novos trabalhos empíricos na área de iccs permanecem fechados para
analistas terceirizados. Em um contexto cultural, a falta de transpa-
rência (sobre a metodologia) ajuda a explicar por que as classificações
nacionais de iccs permanecem inalteradas por muito tempo após sua
introdução, não obstante a natureza de rápida mudança dessas indús-
trias. Apesar dos esforços de instituições multilaterais como a Unesco,
o trabalho de medição das iccs é internacionalmente fragmentado e
raramente se baseia em contribuições anteriores. Isso inibe o desen-
volvimento de uma base de evidências madura.
Para se adequar à sua finalidade, as metodologias e as fontes de
dados também precisam ser robustas em relação às mudanças nos
processos de geração de dados, caso contrário perdem relevância
para os formuladores de políticas. Em outras palavras, elas devem ser
dinâmicas. Isso exige que as agências de coleta de dados em áreas de
políticas sujeitas a rápida mudança se envolvam com novas fontes
de dados à medida que estejam disponíveis, bem como experimen-
tem técnicas analíticas de ponta, como aprendizado de máquina,
análise de rede e visualização interativa de dados. Em um contexto
cultural, em que o foco da política é amplo e a medição é ineren-
temente desafiadora, o estabelecimento de um conjunto de indica-
dores com entendimentos transparentes de seus diferentes pontos
fortes e fracos deve ser o objetivo.
Os três exemplos a seguir são do Reino Unido e foram escolhidos
para ilustrar esses diferentes princípios.

174 Hasan Bakhshi


Caso 1 – Um mapeamento dinâmico da economia criativa

Tabela 1: Economia criativa

EMPREGOS EM EM OUTRAS
INDÚSTRIAS CRIATIVAS INDÚSTRIAS

Ocupação criativa Ocupação criativa

Outras ocupações Outras ocupações

Fonte: elaboração própria; os empregos relacionados à economia criativa estão destacados em


verde escuro escuro.

Para que possam indicar as prioridades da política industrial e com-


parar desempenhos econômicos nacionais e regionais ao longo do
tempo, os governos precisam de estimativas das contribuições das
iccs para exportações, valor agregado e emprego. Mas quais subse-
tores devem ser tratados como iccs para esses fins? No Reino Unido,
o dcms adotou, em 2014, o Mapeamento Dinâmico,3 um método
para classificar subsetores individuais como “criativos” nas estatísti-
cas econômicas setoriais (Bakhshi, Freeman e Higgs, 2013).
A abordagem é composta por três etapas distintas: a primeira
consiste em utilizar critérios específicos para classificar determi-
nadas profissões como criativas; a segunda, em caracterizar como
indústrias criativas aquelas que empregam uma proporção excep-
cionalmente alta de pessoas em ocupações criativas; e a terceira, em
definir a economia criativa como a soma dos trabalhadores das in-
dústrias criativas e daqueles empregados em ocupações criativas em
outras indústrias (ver tabela 1).4
Além de ser transparente sobre a base na qual alguns subsetores
e ocupações são incluídos nas estatísticas de economia criativa do
Reino Unido, a abordagem tem como um de seus pontos fortes o
uso de classificações industriais-padrão confiáveis e da Pesquisa da
Força de Trabalho oficial (um levantamento de dados inclusivo que
abrange todo o Reino Unido e todos os segmentos da força de traba-
lho, incluindo – o que é importante para as iccs – os trabalhadores
independentes).

Que indicadores são necessários para incluir a cultura


na agenda político-econômica? 175
Caso 2 – Valor econômico da cultura e do patrimônio
Governos utilizam técnicas de análise de custo-benefício para avaliar
oportunidades de investimento público. Se os benefícios esperados
descontados de um investimento excederem os custos, isso sugere
que há motivos econômicos para fazer tal investimento. E se, porém,
esses benefícios não forem mediados pelos mercados e, portanto,
não se refletirem nos preços? No caso do Reino Unido, considere-
mos os museus nacionais, que normalmente têm entrada gratuita:
uma análise de custo-benefício de uma possível expansão de um
museu que dependesse apenas dos benefícios de mercado subesti-
maria severamente os benefícios de uso para o público frequentador.
A avaliação do investimento seria ainda mais distorcida se a expansão
desse museu também trouxesse benefícios para quem não o visita,
como o valor (de não uso) para as gerações futuras ou mesmo o valor
da sua simples existência para o público.
Por todas essas razões, nos últimos anos, o dcms, em colabo-
ração com o Arts and Humanities Research Council e com finan-
ciadores como o Arts Council England e a Historic England, vem
desenvolvendo uma base de evidências sobre estimativas de uso
e não valor do patrimônio cultural e patrimonial (dcms, 2021).
Os estudos publicados abrangem coleções nacionais (Bakhshi,
Fujiwara, Lawton e Mourato e Dolan, 2015), cidades e catedrais
históricas (Lawton et al., 2018), ruas históricas e edifícios cívicos
(Lawton, Fujiwara, Szydlowska, Lagarde, Radosevic, Arber e van
Emmerik, 2021), museus locais (Fujiwara et al., 2018) e galerias
e teatros locais (Lawton, Fujiwara, Arber, Radosevic, Lagarde,
Donovan, Davies e Bakhshi, 2021). As pesquisas sobre o público
geral nas quais esses estudos se baseiam são projetadas para ser
representativas da população relevante. Há perguntas sobre status
geográfico, socioeconômico e demográfico, o que permite explo-
rar as diferenças entre os grupos. No entanto, a implementação
desses estudos é repleta de desafios técnicos, e por isso tem sido
importante submeter sua aplicação à revisão acadêmica por pares
(Lawton et al., 2019; Lawton, Fujiwara, Mourato, Bakhshi, La-
garde e Davies, 2021).
Os cenários de valoração apresentados ao público também po-
dem ser adaptados à medida que as propostas de valor das organi-
zações culturais e patrimoniais evoluem. Fujiwara et al. (2017), por
exemplo, usam técnicas de avaliação contingente para estimar o va-
lor público do arquivo online do British Film Institute, que o público
acessa gratuitamente na internet.

176 Hasan Bakhshi


Além de sua óbvia relevância para os financiadores, o resultado
das pesquisas revela orientações focadas no setor sobre como as
organizações devem e não devem usar as estimativas no desenvol-
vimento de modelos de negócios para investimento (Lawton, Fuji-
wara, Bakhshi, Mourato, Arber e Davies, 2021).

Caso 3 – Radar criativo


Um dos interesses permanentes dos formuladores de políticas para
as iccs em todo o mundo é confirmar se eles contribuem para o
desenvolvimento econômico local (Chapain et al., 2009) e, em
caso afirmativo, se o crescimento em um lugar se dá à custa do
crescimento em outros lugares ou de forma complementar a ele.
No Reino Unido, a economia criativa (Bakhshi, Davies, Freeman
e Higgs, 2015) e as indústrias criativas (Mateos-Garcia e Bakhshi,
2016) estão, sem dúvida, entre os setores mais desiguais em relação
à distribuição geográfica.
Uma característica presente nos estudos mencionados é que eles
analisam as indústrias criativas em níveis relativamente baixos de
resolução geográfica, como nas Travel to Work Areas – áreas con-
tíguas onde pelo menos 75% dos residentes trabalham e 75% dos
trabalhadores residem –, que são atualmente 243 no Reino Unido.
Para mapear as indústrias criativas em uma resolução mais refinada,
Siepel et al. (2020) usam dados extraídos dos sites de mais de 200
mil empresas e organizações criativas do Reino Unido, incluindo
seu código postal. Eles então empregam um algoritmo de agrupa-
mento espacial para identificar microclusters. Depois disso, usam os
dados varridos como um quadro de amostragem para uma pesquisa
longitudinal de empresas, o que lhes permite coletar informações
oportunas sobre, entre outras coisas, o histórico de crescimento,
ambições e dificuldades das empresas localizadas nos microclus-
ters em comparação com aqueles encontrados em outras áreas, in-
cluindo grandes aglomerados urbanos. Eles identificam empresas
criativas dentro do contingente empresarial com base em palavras-
-chave derivadas da maneira como as empresas se descrevem em
seus sites. Essa abor­dagem certamente fornece um conjunto mais
rico de negócios criativos do que aquelas baseadas nos códigos sic
das empresas, conhecidas por sofrerem com altas taxas de classifica-
ção incorretas (Bakhshi, 2016). Os dados varridos são coletados pela
empresa Glass.ai, que já forneceu dados desse tipo para pesquisas
anteriores voltadas à classificação setorial (Mateos-Garcia, Stathou-

Que indicadores são necessários para incluir a cultura


na agenda político-econômica? 177
lopoulos e Thomas, 2018; Mateos-Garcia, Klinger e Stathoulopou-
los, 2018), inclusive para o instituto de estatística do Reino Unido,
o Office for National Statistics – ons (Lee, 2020).
Embora o conjunto de dados seja muito grande, ele tem limita-
ções. Uma delas é o fato de ele não ser 100% inclusivo, uma vez que,
por exemplo, nem todas as empresas criativas têm um site. É difícil
afirmar quão grande é esse problema. Por um lado, as estimativas do
ons sugerem que apenas 18,6% das empresas com dez a 49 funcioná-
rios não contam com um site. Porém, por outro, sabe-se que as iccs
contêm em seu interior um número desproporcionalmente grande
de microempresas (com menos de dez funcionários), das quais até
58,9% não têm sites (ons, 2021).

178 Hasan Bakhshi


Notas

1 Este artigo foi elaborado para o Seminário promoção, distribuição ou comercialização


Internacional de Economia e Política da Cultura de bens, serviços e atividades de conteúdo
e Indústrias Criativas para o Desenvolvimento derivado de origens culturais, artísticas ou
Sustentável, realizado em outubro de 2021 pelo patrimoniais”. Disponível em: en.unesco.org/
Itaú Cultural e pela Universidade Federal do creativity/sites/creativity/files/digital-
Rio Grande do Sul (ufrgs). Em maio de 2022, -library/What%20Do%20We%20Mean%20
foi publicado no livro que leva o mesmo nome e by%20CCI.pdf.
está disponível nos sites do Itaú Cultural e da 3 Este método foi utilizado para a construção e
ufrgs. [N. do org.] definição dos setores criativos presentes no
2 Por cultura e criatividade, refiro-me às Painel de Dados do Observatório. Disponível
atividades das indústrias culturais e criativas, em: www.itaucultural.org.br/observatorio/
que a Unesco define como os “setores de paineldedados. [N. da ed.]
atividade organizada que têm como objetivo 4 Bakhshi (2020) apresenta as três etapas mais
principal a produção ou reprodução, detalhadamente.

Que indicadores são necessários para incluir a cultura


na agenda político-econômica? 179
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Que indicadores são necessários para incluir a cultura


na agenda político-econômica? 181
à esquerda Mansur Bassit, Cláudia Leitão
e Guilherme Varella; à direita Cláudio Lins
de Vasconcelos e Aldo Valentim
A história
recente
da política
brasileira de
economia
da cultura
revisitada

Entrevista de Cláudia
Leitão, Guilherme
Varella, Cláudio Lins
de Vasconcelos, Mansur
Bassit e Aldo Valentim
a Leandro Valiati
A política pública é um processo dinâmico e de construção perma-
nente. Muitas vezes, decisões, estratégias e ideias não são devida-
mente registradas. Com o intuito de oferecer importantes insights
para futuras gerações de formuladores de políticas públicas brasi-
leiros, foram convidados a responder às perguntas a seguir gesto-
res culturais formalmente responsáveis pela área de economia da
cultura, indústrias criativas e economia criativa do governo federal
brasileiro entre 2012 e 2022.
A ideia deste encontro foi falar sobre futuro, perspectivas e desa-
fios e como reconstruir a política brasileira de economia da cultura
e indústrias criativas a partir de um contexto de restrição orçamen-
tária, polarização, descontinuidade institucional e pandemia.
Não se tentou realizar um balanço de gestões, mas sim registrar re-
flexões individuais dos entrevistados, todos formuladores de políticas
públicas, sobre como preparar essas políticas para um novo ciclo.
Os entrevistados foram: Cláudia Leitão (cl), secretária de Eco-
nomia Criativa do governo Dilma Rousseff (2011–12); Guilherme
Varella (gv), secretário de Políticas Culturais – a Secretaria de Po-
líticas Culturais absorveu a Secretaria de Economia Criativa – do
governo Dilma Rousseff (2014–16); Cláudio Lins de Vasconcelos
(clv), secretário de Economia da Cultura do governo Michel Temer
(2016); Mansur Bassit (mb), secretário de Economia da Cultura do
governo Michel Temer (2016–18); e Aldo Valentim (av), secretário
de Economia Criativa do governo Jair Bolsonaro (2019–22).

A história recente da política brasileira de economia


da cultura revisitada 185
1. POLÍTICAS CULTURAIS PARA A ECONOMIA
DA CULTURA

Leandro Valiati Quais as principais potencialidades e limites das


políticas de economia da cultura dentro da arquitetura de política
cultural do país?

Cláudia Leitão As potencialidades para a economia da cul-


tura são imensas dentro de um ministério, que, em princípio,
quando da sua existência,1 nunca se dedicou de uma forma mais
aprofundada e efetiva a essa temática. De certa forma, talvez
tenhamos tido dois ministros que tiveram a preocupação com
a questão do desenvolvimento e da economia da cultura, Celso
Furtado [1986–88] e Gilberto Gil [2003–08], mas não houve,
na estrutura do próprio Sistema Nacional de Cultura, nas atua-
ções do próprio ministério, políticas claras, contínuas e efeti-
vas para trazer a cultura à mesa do desenvolvimento do país,
especialmente a de um novo desenvolvimento, mais amplo e
sustentável. Considero, portanto, que as potencialidades são
grandes, mas as políticas de cultura do Ministério da Cultura
são absolutamente esparsas, sazonais e ainda insatisfatórias.

Guilherme Varella A primeira questão a ser entendida é que


uma política nacional de economia da cultura precisa ter es-
cala. Não dá para pensar numa economia da cultura que não
considere a dimensão territorial e a complexidade regional
brasileiras e as peculiaridades de serviços e de estrutura esta-
tal de atendimento em cada região; é preciso considerar esses
fatores. Nesse sentido, a ausência de uma coordenação federa-
tiva de uma economia da cultura faz muita falta. Não existir o
Ministério da Cultura,com suas atribuições de fazer a coorde-
nação das outras instâncias federativas, estados e municípios,
e a coordenação programática de um plano que dê conta de
orientar as competências de cada instância na economia da
1 O Ministério
da Cultura foi
cultura, os processos regulatórios e importantes que precisam
oficialmente extinto ser feitos, as questões relacionadas aos atendimentos mais re-
pela medida gionalizados, que têm diferentes cenários econômicos – ou
provisória nº 870, seja, esse olhar panorâmico e de alguma maneira de coorde-
em 1º janeiro de
nação –, faz com que exista uma desestruturação institucio-
2019, no governo
de Jair Bolsonaro nal do campo da economia da cultura ou, de alguma maneira,
(2018–22). uma falta de musculatura estatal para conseguir ativar a liga-

Entrevista de Cláudia Leitão, Guilherme Varella, Cláudio Lins


186 de Vasconcelos, Mansur Bassit e Aldo Valentim a Leandro Valiati
ção com a iniciativa privada e com os processos de consumo
e fruição da sociedade. Considerando isso, as potencialidades
se resumem a tentar uma articulação entre os estados que já
têm algum tipo de política sobre o setor e de alguma maneira
criar consórcios estaduais e estruturas que possam trabalhar a
regulação econômica da cultura e as políticas de economia da
cultura, além de servir como agentes de conexão com os mu-
nicípios, para conseguir pensar políticas mais regionalizadas.

Cláudio Lins de Vasconcelos Os limitadores se devem, em


grande parte, a problemas sistêmicos, como o papel evidente-
mente secundário reservado às demandas da área no contexto
geral da administração pública federal. Um exemplo: a preca-
riedade de dados oficiais sobre o setor é um problema, pois di-
ficulta o desenho de políticas públicas. A criação de uma conta-
-satélite no ibge, como há em muitos países, resolveria parte do
problema e permitiria comparações internacionais, mas a ideia
nunca saiu do papel. Ocorre que isso é apenas um sintoma; a
causa é a relutância dos agentes públicos em reconhecer a cen-
tralidade da produção de conteúdo na economia contemporâ-
nea, fortemente calcada em ativos intangíveis. É essa visão – ou
a falta de uma – que impede que outras áreas do governo, como
a Fazenda, a Indústria e Comércio Exterior ou o Itamaraty, se
apropriem do tema como pauta estratégica de suas pastas.

Mansur Bassit O Brasil é um país de pessoas criativas na es-


sência, apesar de muitos não se darem conta. Qualquer em-
preendedor brasileiro precisa de criatividade para enfrentar
uma ciranda burocrática, instável e sem garantias de sustenta-
bilidade. Ainda não conseguimos pensar num projeto de país,
muito menos num projeto que viabilize uma integração entre
educação, cultura e economia com uma visão ampla. Ainda
pensamos em “caixinhas”, e não na transversalidade do tema.
A cultura é tida como supérflua na visão da maioria dos cidadãos.
Poucos compreendem sua dimensão na geração de empregos, na
movimentação de uma cadeia econômica e na capacitação de ha-
bilidades que a educação pode proporcionar. É urgente que se
quebrem paradigmas a fim de pensar num projeto amplo que en-
volva a transversalidade entre cultura, educação, economia e até
saúde – saúde não como o contrário de doença, mas como bem-
-estar social, mental e de equilíbrio do corpo e da mente.

A história recente da política brasileira de economia


da cultura revisitada 187
“[…] a precariedade de dados oficiais sobre o setor
é um problema, pois dificulta o desenho de políticas
públicas.” – CLV

Aldo Valentim A própria diversidade cultural e criativa do


Brasil é uma matéria-prima em potencial e deve ser vista
como insumo central para a formulação de políticas públi-
cas de economia criativa, setor que já representou cerca de
2,6% do pib brasileiro. Mas os desafios são enormes. É preciso,
sobretudo, diminuir as desigualdades de acesso, observadas
pelos números de municípios sem nenhum equipamento cul-
tural. Temos 19% da população com mais de dez anos sem
acesso à internet em casa; 41% da oferta cultural está concen-
trada nas regiões metropolitanas. Esses indicadores, além de
mostrarem a exclusão, apontam para um potencial de cres-
cimento e para o quanto os empreendedores criativos ainda
podem expandir seus mercados com a oferta de bens e servi-
ços que preencham essas lacunas. No caso do poder público,
os indicadores também mostram as potencialidades para a
construção de políticas públicas de economia criativa, seja
por meio de ações que incluam essa população no consumo
cultural (presencial e virtual), seja por meio de programas
que colaborem com a criação de espaços voltados para a eco-
nomia criativa nas cidades. Temos, ainda, diversos desafios
estruturantes, dentre eles extinguir as atuais estruturas ins-
titucionais e criar outras sob novos parâmetros e com marcos
legais adequados ao conceito de economia criativa, porque as
atuais estão ultrapassadas para enfrentar os desafios impostos
pelo século xxi, sobretudo para o momento pós-pandêmico.

LV Na sua visão, a área de economia criativa/indústrias criativas


pode ser mais eficiente se for liderada por um Ministério/Secretaria
da Cultura ou por outras áreas de um governo?

CL Quando estive no ministério, sempre advoguei que a


cultura poderia ter um lugar muito estratégico para ganhar
força, prestígio e valor simbólico dentro da Esplanada dos
Ministérios se essa temática se transformasse numa política

Entrevista de Cláudia Leitão, Guilherme Varella, Cláudio Lins


188 de Vasconcelos, Mansur Bassit e Aldo Valentim a Leandro Valiati
pública liderada pelo Ministério de Cultura. Afinal de contas,
a cultura qualifica o desenvolvimento, daí o seu importante
papel nessa liderança, para que nós não corramos o risco ou a
ameaça de tirar o valor simbólico, isto é, de destruir os bens e
serviços culturais e criativos dos seus valores simbólicos, cul-
turais e identitários. No entanto, o que se percebe em termos
globais é que essas temáticas também acabam trabalhando, de
forma transversal e transdisciplinar, com outras pastas. Há
grande sinergia entre indústrias criativas e as temáticas do
turismo, do lazer, do entretenimento, da ciência e tecnologia
e da cultura. O caso brasileiro é bem complicado, porque nem
sequer temos mais o Ministério da Cultura, mas eu imagino
que, numa nova estrutura do Estado brasileiro, será preciso
trabalhar políticas transversais que façam essa costura entre
diversas pastas, na perspectiva de um plano maior, que nós
chegamos inclusive a propor para a presidenta Dilma Roussef
à época da criação da Secretaria [de Economia Criativa], o
chamado Plano Brasil Criativo, envolvendo quinze ministé-
rios com políticas sinergéticas voltadas ao desenvolvimento
local e nacional, nessa perspectiva da transversalidade de po-
líticas. Precisamos, por isso, de indicadores capazes de quan-
tificar e qualificar esse desenvolvimento sustentável de uma
forma multidimensional.

GV O principal seria, de fato, restituir o Ministério da Cul-


tura como uma instância coordenadora dos processos econô-
micos da cultura num nível jurídico e institucional, mas isso
está fora dos planos de agora. Esperamos que esses planos
possam voltar o mais breve possível. Sem eles, a gente tem
que pensar em outras coisas. Acho que as principais limi-
tações estão relacionadas ao desenvolvimento desigual de
cadeias econômicas de segmentos e de linguagens culturais,
enquanto algumas já têm uma tradição mercadológica e co-

“Ainda não conseguimos pensar num projeto de país,


muito menos num projeto que viabilize uma
integração entre educação, cultura e economia
com uma visão ampla.” – MB

A história recente da política brasileira de economia


da cultura revisitada 189
mercial por estarem intimamente ligadas a processos priva-
dos de marketing, publicidade ou de financiamento (privado
ou de instituições ligadas ao campo privado). Isso vale muito
para as linguagens artísticas, e essas linguagens têm algo
mais desenvolvido, uma vasta gama de expressões culturais,
principalmente aquelas mais relacionadas a produções co-
munitárias, tradicionais, populares ou de linguagens mais
experimentais ou desinstitucionalizadas, que passam a ter um
pouco mais de dificuldade de se organizar enquanto cadeia.
Um passo importante seria pensar em iniciativas regulatórias
e de políticas de financiamento de organização de segmentos
que são potenciais indústrias.

CLV Institucionalização é importante, em especial para uma


área historicamente negligenciada, com orçamento baixo e
descontinuidade de políticas, entre outros problemas. O tema
em si não deve ficar restrito a um só órgão, pois o desenvol-
vimento de um setor econômico de cultura forte, diverso e
comprometido com os interesses econômicos e geopolíticos
do país me parece um objetivo compartilhado. O fundamen-
tal é que haja uma estratégia integrada de produção e distri-
buição desses bens. A existência de uma estrutura estável, de
nível ministerial, dedicada à liderança das pautas, à articula-
ção intragovernamental e à interlocução com o setor produ-
tivo, é altamente recomendável.

MB Se a economia criativa e as indústrias criativas estiverem


sendo pensadas transversalmente pelos gestores da cultura,
educação e economia, pouco importa a nominação do órgão
público. O essencial é haver um projeto para o tema, pensado
estrategicamente, com execução menos burocratizada, mais
democrática, orçamento estabelecido e garantido por lei e
equipes capacitadas.

AV Dentro da Secretaria/Ministério da Cultura é um equí-


voco. Teríamos resultados mais assertivos se houvesse uma
secretaria específica para formulação, coordenação e articu-
lação dessas políticas numa das áreas fortes de qualquer es-
trutura governamental: economia, planejamento ou governo.

Entrevista de Cláudia Leitão, Guilherme Varella, Cláudio Lins


190 de Vasconcelos, Mansur Bassit e Aldo Valentim a Leandro Valiati
“A própria diversidade cultural e criativa do Brasil
é uma matéria-prima em potencial e deve ser vista
como insumo central para a formulação de políticas
públicas de economia criativa, setor que já
representou cerca de 2,6% do PIB brasileiro.” – AV

2. MODELO DE FINANCIAMENTO

LV Como você avalia a efetividade do atual modelo brasileiro de fi-


nanciamento à cultura? Qual seria, na sua visão, a forma mais efetiva
de harmonizar o sistema de mecenato (política indireta) com o de
fundos de cultura (política direta) no Brasil? Você acredita que o
modelo brasileiro de financiamento cultural (mecenato predomi-
nante – Lei Rouanet) está adequado ao sistema legal-institucional
do país (estrutura institucional de políticas lideradas pelo Estado)?
Quais avanços você enxerga como ideais? E quais seriam possíveis
no curto e médio prazo?

CL Considero que o modelo de financiamento de cultura é


muito reduzido e pouco eficiente. Na verdade, eu diria que,
nessa área de fomento, financiamento, incentivo, investi-
mento, o ministério pouco avançou. Ficamos limitados às leis
de incentivo nas perspectivas federal, dos estados e dos muni-
cípios, e também a um tipo de financiamento muito baseado
na lógica de editais, como se eles fossem políticas. Editais são
instrumentos, não políticas públicas. Nós precisamos avançar
com uma compreensão muito mais larga do que significa fi-
nanciamento, fomento, incentivo e investimento em cultura
no Brasil. Se pensarmos – e essa questão é bastante ampla –
nas etapas de criação, produção, distribuição, comercialização
e consumo de bens e serviços culturais, veremos que precisa-
mos de financiamento para todas elas, coisa que não acontece.
É preciso pensar novas formas de financiamento que envolvam
também os setores privados, as organizações privadas e as par-
cerias público-privadas. Precisamos de um financiamento que
vá além das leis de incentivo e que permita financiamentos co-
laborativos. Precisamos de linhas de crédito – especialmente
de pequenos e microcréditos – orientadas aos setores criativos

A história recente da política brasileira de economia


da cultura revisitada 191
e culturais. Precisamos de “investidores-anjo”. Precisamos re-
solver a questão dos fundos garantidores, que não permitem a
um criador, a um empreendedor cultural brasileiro, ter acesso
a créditos, porque há sempre garantias que são impossíveis
de ser realizadas. Há aí, portanto, vários óbices que não nos
permitem avançar, o que faz com que a cultura seja vista de
uma forma frágil e sazonal, sempre relacionada aos ciclos dos
editais, recursos que muitas vezes não chegam ou chegam
atrasados. Quando falamos de editais, falamos também do
dirigismo que acaba acontecendo, e o criador começa a pen-
sar a sua criação a partir de editais, o que é uma inversão total
da lógica necessária ao direito à criatividade,2 como assim o
denominou Celso Furtado. Parece-me que nós precisamos de
um Sistema Nacional de Cultura por meio do qual os fundos
realmente tenham recursos dignos, suficientes para que o pró-
prio ministério e as pastas estaduais e municipais possam for-
mular políticas e enfrentar as necessidades de aplicabilidade
dessas políticas no território. O Fundo Nacional da Cultura no
Brasil foi sistematicamente apequenado, reduzido, e o país, em
termos de política federal, sempre teve muito mais recursos
para a Lei Rouanet [ou Lei de Incentivo à Cultura] do que
para fundos de cultura, o que é um descalabro, um erro estru-
tural do sistema de fomento à cultura. O mecenato deve ser
um instrumento, mas ele não pode ser o único. Isso cria uma
série de distorções às quais precisamos estar atentos. Precisa-
mos, na verdade, insisto, prestigiar os fundos de cultura e criar
um verdadeiro sistema – como o que temos na área da educa-
ção, que são fundos que estão interligados a uma arquitetura
jurídico-política do Fundo Nacional da Cultura; que seja um
fundo capaz de alimentar com recursos os fundos estaduais e
municipais para um verdadeiro federalismo cultural. Se esse
processo não acontece, não há qualquer sentido na criação de
fundos estaduais e municipais, daí as dificuldades da vontade
política de prefeitos e governadores. Eles precisam ser alimen-
tados e retroalimentados com uma política nacional de cultura,
criando-se, portanto, uma arquitetura eficaz, eficiente e efe-
2 FURTADO, C. tiva para o financiamento de cultura no Brasil.
Cultura e
Desenvolvimento
GV Eu acho que o problema da efetividade do modelo bra-
em época de crise,
Rio de Janeiro: sileiro de financiamento à cultura é mais de afetividade. Nós
Paz e Terra, 1984. ficamos muito apegados à ideia de que uma lei de incentivo

Entrevista de Cláudia Leitão, Guilherme Varella, Cláudio Lins


192 de Vasconcelos, Mansur Bassit e Aldo Valentim a Leandro Valiati
fiscal pode significar a espinha dorsal de uma estrutura de
financiamento à cultura no Brasil, e isso é uma inverdade.
A lei de incentivo fiscal, que, na verdade, dá conta de apenas
uma parcela das manifestações culturais – aquelas que têm
mais visibilidade, apelo midiático, concentração de público
e, por tudo isso, mais interesse das iniciativas empresariais –,
surgiu como uma lei temporária que, depois de dinamizar e
aquecer o mercado da cultura, pudesse deixar de existir para
que o mercado, os mecenas e as empresas, com suas próprias
pernas, pelas próprias finanças, dessem conta de financiar
os projetos culturais que fossem do seu interesse. Ou seja,
o Estado, que é um intermediador nessa relação, deixaria
de ficar como intermediador para funcionar efetivamente
como um financiador, um regulador de políticas de finan-
ciamento à cultura. Hoje a gente tem um debate enviesado.
Há aqueles que acham que o financiamento da parte mais
voltada às linguagens comerciais, que é o que a Lei Rouanet
faz, significa o financiamento da cultura no Brasil. Isso não
funciona, porque as manifestações das culturas populares
e tradicionais, as mais experimentais, as mais difíceis, as
que mais independem de público, aquelas de pesquisa, de
linguagens inovadoras, não vão ter esse acesso, e essas ini-
ciativas são a grande maioria. A grande questão é que elas
não têm o mesmo espaço de mídia nem a mesma projeção
econômico-financeira. A avaliação que eu tenho do modelo
é a de que houve, por questões políticas e institucionais de
orçamento, uma diminuição da expressão política da pasta
da Cultura, uma falta de regulação efetiva da forma de ar-
recadação, uma falta de regulamentação efetiva do Fundo
Nacional da Cultura e uma ausência de um sistema distri-
butivo fundo a fundo através do sistema nacional. Por todas
essas razões, o Fundo Nacional da Cultura acabou tendo um
espaço subvalorizado, escanteado dentro de um quadro de
financiamento. Assim, não pelos seus méritos, mas pela au-

“Precisamos de um financiamento que vá além


das leis de incentivo e que permita financiamentos
colaborativos.” – CL

A história recente da política brasileira de economia


da cultura revisitada 193
sência deles, a Lei Rouanet acabou ocupando, mais do que
um vácuo orçamentário, um vácuo especialmente simbólico.
Se não há um fundo, não há outra política. A Lei Rouanet
acaba cobrindo isso e ocupando um espaço simbólico de ser
o lugar que fala pelo financiamento à cultura. Paralelamente,
existem os editais, que são poucos, porque o orçamento di-
reto e finalístico da cultura é pouco, e existem os mecanis-
mos que vêm da regulação – a Condecine, por exemplo, do
Fundo Setorial do Audiovisual, que faz com que esse fundo
seja um colosso orçamentário perto do orçamento do Mi-
nistério da Cultura. Só que ele é aplicado a apenas uma das
áreas: a área que tem a indústria desenvolvida. Esse modelo
traz parcos financiamentos ao audiovisual, exorbitante pelo
processo regulatório, e uma Lei de Incentivo à Cultura que
tenta ocupar o todo, embora ela só ocupe uma parte. Essa
conta não fecha.
Na minha visão, a forma mais efetiva de harmonizar os
sistemas de incentivo fiscal e de fundo de cultura no Brasil
é pensar o que não deve ser feito, ou seja, justamente o que
está propondo hoje o governo federal, na gestão Bolsonaro.
Primeiro, a inexistência do Ministério da Cultura, o fato de
ser uma secretaria, com uma estrutura subvalorizada dentro
da estrutura institucional do governo, sem o status neces-
sário, sem prestígio, sem orçamento, sem estatura política,
tudo isso faz com que a discussão já parta de uma prerroga-
tiva equivocada de que a cultura tem um papel e uma impor-
tância menores, e isso também significa um orçamento, um
descontingenciamento, um repasse e uma liberação menores.
A segunda coisa que não deve ser feita é a criminalização do
setor artístico pelas ferramentas institucionais de financia-
mento, cuja principal é a Lei de Incentivo à Cultura. O pro-
blema dessa lei não são os artistas, são os gestores ou produ-
tores culturais; o problema da Lei de Incentivo à Cultura é um
desenho normativo e institucional que replica as distorções
de uma economia capitalista no setor cultural.

CLV Os números do crescimento do setor cultural nas


últimas décadas são, em si, uma evidência do impacto po-
sitivo das políticas de fomento e incentivo. Em meados da
década de 1990, a produção de longas-metragens brasilei-
ros não chegava a dez obras por ano. Duas décadas depois,

Entrevista de Cláudia Leitão, Guilherme Varella, Cláudio Lins


194 de Vasconcelos, Mansur Bassit e Aldo Valentim a Leandro Valiati
chegou-se ao patamar de duzentas obras por ano. Isso é
resultado de uma política de financiamento público consis-
tente. Ampliando a análise para outras linguagens, notare-
mos que, antes da Lei Rouanet, praticamente não havia um
setor econômico da cultura, com produção estável, força de
trabalho formada e redes de relacionamento estabelecidas
com outros agentes econômicos. Esses mecanismos não são
imunes a críticas, claro. No caso da Lei Rouanet, boa parte
delas se deve ao fato de que, dos três modelos de financia-
mento previstos, apenas o mecenato é plenamente utilizado.
Patrocínios estão irremediavelmente atrelados a objetivos
mercadológicos. Isso não seria um problema se o mecenato
fosse apenas um dos mecanismos, e não o único, em termos
práticos. Espera-se, contudo, que o mecenato preencha o
vácuo deixado pela inoperância do Fundo Nacional da Cul-
tura e pela não implementação do Fundo de Investimento
Cultural e Artístico (Ficart). Não é o ideal.
Os mecanismos de financiamento à cultura vêm há muito
sendo tratados, por reguladores, Judiciário e tribunais de
contas, como políticas de natureza compensatória criadas
para “ajudar a quem precisa”. Alguns mecanismos são para
isto mesmo: viabilizar manifestações artístico-literárias que
não ocorreriam de outra forma por absoluta ausência de ca-
pital privado. É o caso do Fundo Nacional da Cultura, assim
como de algumas linhas do Fundo Setorial do Audiovisual.
Outros mecanismos, no entanto, como o mecenato, consti-
tuem principalmente uma política de desenvolvimento seto-
rial, com função macroeconômica comparável, embora não
idêntica, à de incentivos destinados a outras indústrias. O im-
portante num mecanismo de fomento setorial é o aumento
da produção e dos postos de trabalho. O controle deveria ser
finalístico, dentro de parâmetros gerais de qualidade e orça-
mento. Controlar a aplicação de incentivos setoriais rubrica
a rubrica gera custos administrativos desnecessários para o
Estado e riscos regulatórios intoleráveis para grande parte
dos pequenos e médios produtores.

MB Já avançamos muito nos modelos de financiamento, mas


ainda há muito a ser feito. Somos um país gigantesco, com
municípios e estados em diferentes níveis de desenvolvi-
mento e com maturidades administrativas muito diversas.

A história recente da política brasileira de economia


da cultura revisitada 195
Formas de financiamento, assim como políticas públicas, não
deveriam ser padronizadas num país tão diverso e desigual.
Financiar a cultura pensando nos mais de 5 mil municípios
de uma única maneira não é viável. O desafio está em criar-
mos modelos de financiamento menos burocratizados, mais
adaptados às diferentes realidades e demandas de cada região,
e, principalmente, levando em conta a cultura local e suas ma-
nifestações regionais, que, em grande parte, diferem do eixo
econômico da região sudeste.
A princípio, acredito ser necessário garantir o funcio-
namento do que se tem hoje. Somos um país que arrecada
muito, mas gasta de maneira errada – isso quando consegue
que essa arrecadação atenda a seu fim inicial. Orçamento, re-
passe e execução deveriam andar juntos. Leis que garantissem
a divisão do fomento atendendo com mais recursos a quem
menos chance tem de se fomentar sozinho são um exemplo.
Após tudo que ainda estamos passando no país e na cultura,
acredito que necessitamos de uma campanha de conscientiza-
ção da importância da cultura para o ser humano, mostrando
que ela é, mais que lazer, um importante instrumento de in-
clusão econômica. É preciso ter um projeto que valorize a eco-
nomia da cultura e as indústrias criativas. Muita coisa já se faz,
principalmente em nível estadual. Incluir no currículo escolar
disciplinas que ensinem o potencial da economia da cultura
desde o ensino fundamental seria, a médio e longo prazo, uma
forma importante de se construir uma nova mentalidade e
uma nova visão da cultura e do mundo.

“Ampliando a análise para outras linguagens,


notaremos que, antes da Lei Rouanet, praticamente
não havia um setor econômico da cultura, com
produção estável, força de trabalho formada e
redes de relacionamento estabelecidas com outros
agentes econômicos.” – CLV

Entrevista de Cláudia Leitão, Guilherme Varella, Cláudio Lins


196 de Vasconcelos, Mansur Bassit e Aldo Valentim a Leandro Valiati
AV Não é efetiva, pois não temos evidentes as definições que
devem vir antes. Qual é o papel do Estado no financiamento
à cultura? Quais setores são prioritários? Como devem ser
apoiados? Quais tipos de projetos e atividades devem ser fi-
nanciados? Continuaremos com esse modelo de repasse de
recursos a fundo perdido somente aos empresários culturais,
produtores e artistas (lado da oferta) ou vamos avançar para
modelos voltados ao público (lado da demanda), tais como
vale-cultura, vouchers, meia-entrada baseada em renda, polí-
ticas para acesso à internet e oferta cultural disponibilizada
pelas plataformas e streaming para parcelas da população de
baixa renda? Outro ponto é a divisão de responsabilidades en-
tre União, estados e municípios: definir o que é competência
exclusiva de cada ente para, a partir daí, entendermos a real
demanda de recursos públicos e desenhar um sistema de fi-
nanciamento coerente. O terceiro ponto é parar com o pensa-
mento de que basta criar leis, sendo que o adequado e simples
é executar plenamente as leis existentes. Por exemplo, a Lei
8.313/91 [Lei Rouanet] contém vários mecanismos: o Fundo
Nacional da Cultura (editais para projetos, convênios com es-
tados e prefeituras, bolsas e passagens aéreas), empréstimos
reembolsáveis, incentivo fiscal e o Ficart – um fundo de inves-
timentos reembolsáveis para os grandes projetos. No entanto,
essa lei nunca foi implementada totalmente, concentrando
toda a pressão no incentivo fiscal. Há uma ausência de moni-
toramento e avaliação dos resultados e impactos que possam
nortear os ajustes e o debate público. Considero importante
a sociedade participar, pois é o contribuinte quem paga a
conta. Não acho que o debate deve se concentrar apenas en-
tre setor artístico, políticos e gestores públicos; o cidadão-­
‑contribuinte deve ser instado a opinar.

A história recente da política brasileira de economia


da cultura revisitada 197
“O desafio está em criarmos modelos de financiamento
menos burocratizados, mais adaptados às
diferentes realidades e demandas de cada região, e,
principalmente, levando em conta a cultura local e
suas manifestações regionais, que, em grande parte,
diferem do eixo econômico da região sudeste.” – MB

3. ECONOMIA DA CULTURA E PANDEMIA

LV Você entende que as medidas tomadas pelo Brasil para prote-


ger o setor cultural da grave crise econômica durante a pandemia
foram efetivas?

CL Considero que não houve nenhuma responsabilização,


liderança ou atuação realmente significativas do governo fe-
deral no sentido de proteger o campo da cultura da situação
dificílima, eu diria quase trágica, em que se encontraram os
profissionais, artistas, protagonistas da cultura e empreen-
dedores culturais, que, na verdade, atravessaram a pandemia
desamparados, sem quaisquer priorizações. E nós sabemos
que todas as grandes organizações internacionais – a própria
Unesco, o Grupo de Roma do G20 e a Organização dos Esta-
dos Ibero-Americanos (oei) – fizeram uma série de observa-
ções e alertas para a necessidade de que os países encarassem
a economia da cultura de uma forma prioritária dentro das
suas políticas para o atravessamento da pandemia. Setores que
em princípio vivem da aglomeração, da atuação no território,
foram prejudicados. Sabemos que essa transferência para o
mundo digital foi muito complexa, especialmente frágil para
os criadores, que não tiveram, portanto, remuneração. Eles
próprios tiveram de propor uma série de produtos e serviços
realizados ao longo da pandemia, como lives, encontros digi-
tais etc. Houve uma omissão absurda, e a economia da cultura,
assim como outros setores que trabalham nessa perspectiva
do simbólico – e eu falo aqui no sentido da economia cria-
tiva, que é mais amplo do que o da economia da cultura –, foi
muito prejudicada pela ausência de políticas públicas, também

Entrevista de Cláudia Leitão, Guilherme Varella, Cláudio Lins


198 de Vasconcelos, Mansur Bassit e Aldo Valentim a Leandro Valiati
reflexo da destruição de todo esse constructo do Ministério
da Cultura ao longo de sua existência – dos anos 1980, no go-
verno Collor, já sob ameaça de extinção, até quando foi de fato
extinto pelo governo Temer. Essa sazonalidade do ministério
tem sido muito prejudicial para as políticas de cultura de forma
geral, mas, em relação à economia da cultura, essas políticas
nunca tomaram uma dimensão estratégica no âmbito federal,
pela própria fragilidade da pasta. É preciso, quem sabe numa
reestruturação do Ministério da Cultura, refazê-lo de uma ou-
tra forma, repensando sua estrutura, sua missão, sua finalidade.
Eu sempre lembro de uma divisão que existia antes do golpe
que destituiu a presidenta Dilma do poder, e que no início eu
não entendia, entre o Ministério da Agricultura e o Ministério
do Desenvolvimento Agrário. A ideia de dois ministérios para
a agricultura significava, de uma forma muito interessante, que
há uma indústria da agricultura, mas há também uma impor-
tância imensa e uma necessidade de políticas para os pequenos
agricultores, para o desenvolvimento de pequenas proprieda-
des. Nós somos um país onde essa agricultura dos pequenos
é muito importante. Parece-me que é a mesma lógica para a
cultura. Nós precisaremos ter uma visão muito clara do que é
indústria cultural e do que é economia dos pequenos fazedo-
res de cultura. Essa divisão me parece estratégica para o pós-
-pandemia e quem sabe para um novo Ministério da Cultura.

GV Entendendo que a crise no setor cultural brasileiro não


foi causada pela pandemia, mas agravada por ela, a primeira
constatação é de que as medidas – basicamente a Lei Aldir
Blanc e algumas medidas mais locais de auxílio – foram to-
madas pelo Congresso Nacional, e não pelo governo federal. O
governo, inclusive, foi contra e só teve que aceitá-las por causa
da aprovação unânime e referendada socialmente, com muito
apoio popular. Não foi uma agenda de apoio econômico ao
setor que veio do Executivo, comprovando mais uma vez que
a acefalia da cultura não foi despropositada; pelo contrário,
há uma estratégia de desmonte em curso. Acredito que elas
foram efetivas para um contexto de auxílio imediato e para
uma superemergência de socorro ao setor cultural, mas os
seus efeitos se estancam no tempo, então, no médio prazo, elas
deixam de funcionar. Aí vieram outras leis, a Lei Aldir Blanc 2
e a Lei Paulo Gustavo – que o governo foi novamente contra;

A história recente da política brasileira de economia


da cultura revisitada 199
teve até veto relacionado a alguns projetos –, para tentar dar
algum tipo de continuidade.
Com relação à efetividade, é preciso considerar algumas
coisas. A primeira é que nem todos os integrantes do setor cul-
tural conseguiram acessar a lei. Muitos deles, que têm algum
tipo de atividade de difícil comprovação, não conseguiram
confirmá-las, ou nem sequer conseguiram organizar minima-
mente as formalidades para acessar os recursos. A segunda é
que muitas prefeituras, em especial as pequenas, também não
tinham condição estrutural de dar conta da execução. Acho
que isso influenciou bastante – já está até havendo um des-
dobramento de questões de prestação de conta e tudo mais.
Sendo assim, é difícil falar em efetividade de uma forma ab-
soluta. Acho que ela teve uma efetividade relativa relacionada
à questão paliativa do socorro imediato, mas se estancou no
tempo. O Congresso entrou nessa pauta, mas medidas estru-
turantes de economia da cultura para a pandemia não foram
realizadas. Não dá para falar em efetividade se nem sequer as
medidas foram realizadas por parte do Executivo. Injeção de
recursos imediatos é fundamental, mas outras medidas rela-
cionadas à competência tributária, à organização de outros
arranjos mais locais e territoriais, à coordenação de esforços
para socorrer determinados setores além da cultura, como tu-
rismo e desenvolvimento, poderiam ter sido feitas. Nada disso
foi feito. Então não dá para falar em efetividade nesse sentido.

CLV Foram poucas as medidas oficiais de contenção da crise


no setor. Na verdade, no auge da pandemia, os principais me-
canismos de apoio à economia da cultura estavam paralisados
ou com suas atividades drasticamente reduzidas. A Ancine to-
mou algumas medidas, como a liberação de linhas de crédito
e a autorização para a primeira exibição em outras janelas que
não as salas de exibição, as quais estavam interditadas. Os edi-
tais de produção, no entanto, principal sustentáculo da pro-
dução independente, foram suspensos por mais de dois anos.
As omissões foram ainda mais graves no âmbito da Secretaria
Especial da Cultura. A Comissão Nacional de Incentivo à Cul-
tura (cnic), que exerce papel central na aprovação de projetos,
foi praticamente dissolvida no período e ainda não retomou
suas atividades. Com isso, muitos projetos ficaram pendentes
de análise e aprovação.

Entrevista de Cláudia Leitão, Guilherme Varella, Cláudio Lins


200 de Vasconcelos, Mansur Bassit e Aldo Valentim a Leandro Valiati
MB No momento tão polarizado que vivemos, qualquer
auxílio para o setor cultural é essencial. Certamente pode-
ria ter sido feito muito mais se não tivéssemos uma política
evidente de desmonte do setor. A Lei Paulo Gustavo e a Lei
Aldir Blanc só estão aí porque o setor lutou muito para se fa-
zer ouvir. Mesmo assim, ainda estamos com problemas sérios
mesmo após a retomada. Como disse antes, temos grandes
desigualdades que precisam ser vistas e atendidas. Com a
pandemia, as pessoas e seus hábitos de consumo, inclusive
cultural, mudaram, e a transformação digital acelerou-se de
tal forma que uma nova organização das políticas públicas
precisa ser pensada.

AV O governo federal, através da Secretaria Especial da Cul-


tura, disponibilizou, no período da pandemia, o maior vo-
lume de recursos para o setor cultural da história, por meio
da Lei Aldir Blanc. Foram transferidos 3 bilhões de reais aos
26 estados, ao Distrito Federal e a 4.744 municípios – 85%
do total dos municípios brasileiros –, possibilitando aproxi-
madamente o lançamento de mais de 8 mil editais, o apoio a
mais de 25 mil espaços culturais e o atendimento a 700 mil
artistas, por meio do auxílio à renda, segundo as projeções
iniciais da secretaria. Além da Lei Aldir Blanc, o governo
federal criou linhas de crédito por meio do Programa Emer-
gencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse), destinado a
eventos, shows e entretenimento, e do Programa Nacional de
Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (Pro-
nampe). Somente o setor cultural obteve 37.535.337.173,04 de
reais em 2020 e 23.861.818.170,25 de reais em 2021, totali-
zando o valor de 61.397.155.343,29 de reais. Considero que as
medidas foram efetivas e a resposta foi adequada diante do
que a conjuntura e os acordos políticos da época permitiram.

“Com a pandemia, as pessoas e seus hábitos de


consumo, inclusive cultural, mudaram, e a
transformação digital acelerou-se de tal forma
que uma nova organização das políticas públicas
precisa ser pensada.” – MB

A história recente da política brasileira de economia


da cultura revisitada 201
Houve um esforço do Congresso na aprovação das leis e um
empenho das equipes envolvidas, nos diversos ministérios,
para que as ações de mitigação dos impactos da pandemia no
setor cultural fossem implementadas, principalmente pelas
equipes da Secretaria Nacional da Economia Criativa e Di-
versidade Cultural, área do governo federal que coordenou
toda a articulação interministerial e federativa para que os
recursos chegassem aos trabalhadores dos setores criativos.
Eu, como secretário nacional à época, me empenhei, junto
com toda a equipe, para que os recursos da Lei Aldir Blanc,
Pronampe, Perse e outros fossem plenamente implementa-
dos e repassados.

LV Qual seria a melhor forma de preparar e atualizar as políticas de


economia da cultura e indústrias criativas do Brasil para as trans-
formações estruturais que a pandemia provocou na produção, dis-
tribuição e consumo de cultura?

CL Eu acho que a primeira questão é termos uma taxono-


mia, uma compreensão do que significa economia da cultura,
de por que não se usa a expressão “economia criativa”, de por
que se confundem essas duas expressões e de por que se fala
em indústrias criativas no sentido da tradução direta do in-
glês, um ruído que sempre se coloca no que é produzido de
forma industrial: a indústria cultural, a indústria do turismo,
a indústria do lazer, a indústria da música… Nós precisamos
falar sobre os setores criativos que movimentam diversas
economias. Os africanos falam em economias criativas. Eu
gosto muito dessa expressão, porque nos mostra que cada
setor possui uma economia diferente, havendo, portanto,
necessidade de uma visão equitativa da construção, estrutu-
ração, formulação, implementação e monitoramento dessas
políticas para os setores criativos. Há bastante tempo esses
setores estão aí, definidos pelas organizações internacionais,
pela Unctad, pela Unesco. Nós sabemos que a cultura e a arte,
junto com as mídias, com toda a área de audiovisual e com
as criações profissionais, compõem esse grande sistema da
economia criativa. Acho que cabe ao Brasil avançar com um
modelo que seja brasileiro, que seja latino-americano, que
seja caribenho e africano, para alcançar novos significados de
uma economia criativa que contribua para uma epistemolo-

Entrevista de Cláudia Leitão, Guilherme Varella, Cláudio Lins


202 de Vasconcelos, Mansur Bassit e Aldo Valentim a Leandro Valiati
gia do “Sul”, como afirma o professor Boaventura de Sousa
Santos.3 Não devemos copiar modelos exógenos. Considero
que essa visão da endogenia não significa isolamento, mas
seu desenvolvimento significa encontrarmos soluções pró-
prias para os nossos problemas. Celso Furtado, nosso grande
ministro da Cultura, pensador, economista, presidente da
Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Ce-
pal), um homem do desenvolvimento na América Latina,
dizia-nos que o sentido de desenvolvimento é muito mais
um ato de imaginação, de invenção, do que de transforma-
ção. A criatividade, declarava ele, é uma invenção que parte
da cultura. Então nós precisamos, depois da pandemia, ou a
partir dela, repensar qual é o lugar que o Brasil quer ocupar
nessa compreensão do que é uma economia criativa, definir
glossários e taxonomias e entender os processos de criação,
produção, distribuição e consumo. Todas as etapas estão
conectadas, e nós precisamos de tradutores entre mundos
analógicos e digitais para pensarmos essa economia. Somos
um continente de culturas tradicionais populares, somos um
país que é um celeiro de uma grande biodiversidade cultural,
como diria o ministro Gilberto Gil. Tudo isso é complexo.
Modelos exógenos não nos ajudam a avançar. Considero que
nós temos que assumir, ser audazes no sentido de produzir
conteúdo para o Hemisfério Sul.

GV Primeiro, tem que haver uma repactuação com o setor


cultural. Nunca vamos preparar e reestruturar a economia
da cultura, que é uma agenda que depende da atuação do
Estado, se ele se mantiver como está, sendo um Estado an-
ticultural, que não só nega a cultura como também combate
o setor cultural, que usa a institucionalidade do setor como
plataforma ideológica. A repactuação é a primeira coisa.
Por isso que uma mudança, uma agenda, qualquer que seja
ela – de reestruturação da economia da cultura, reestrutu-
ração da política de patrimônio ou reestruturação da po-
lítica de diversidade cultural –, na verdade, recuperações 3 Santos, B.
do setor cultural, passa necessariamente pela mudança de de S.; Meneses,
agenda política. Não dá para negar isso, não dá para alie- M. P. (Orgs.).
Epistemologias do
nar essa questão, descontextualizá-la. Não se consegue
Sul, São Paulo:
entrar nessa agenda se não se destravar justamente a porta Editora Cortez,
que a impede, que é a mesma que impede todas as outras, 2010.

A história recente da política brasileira de economia


da cultura revisitada 203
a porta de obstrução do setor cultural pelo Estado. Esta é a
primeira questão: repactuar. A segunda questão é escutar
dos próprios segmentos – e não trazer soluções alheias a
eles, elaboradas dentro de gabinetes ou fora dos movi-
mentos – para entender na prática, no cotidiano, no dia a
dia da sua produção onde estão os principais gargalos afe-
tados. É claro que um mapeamento de longe, que pode ser
feito por meio de levantamentos de censo e de indicadores,
é interessante e importante, mas a questão é que, no pós-
-pandemia, muita coisa se reestruturou na prática, no fazer
cultural, para dar conta da sobrevivência dos artistas. Os
artistas e agentes culturais passaram a realizar suas ativi-
dades compondo-as com outras, a realizá-las com menor
custo, fazendo um outro tipo de arranjo, participando de
um outro tipo de cadeia econômica. Entender no dia a dia,
no cotidiano, o que os trabalhadores da cultura têm feito
e como estão se virando é a segunda questão. A terceira é
adentrar efetivamente a agenda da economia digital da cul-
tura. É claro que essa agenda segrega de alguma maneira
muitas das produções que não alcançam o acesso às tecno-
logias, bens e serviços digitais – a gente sabe que há nela
um recorte socioeconômico –, mas cada vez mais esta vai
ser uma agenda imperativa de como os arranjos de distri-
buição e de consumo dos bens e serviços culturais vão se
dar. As questões relacionadas à plataformização da cultura,
ao sistema algorítmico de recomendação e mediação dos
conteúdos, ao big data, machine learning e todos os outros
expedientes que estão relacionados à inteligência artificial,
compõem um arcabouço de reorganização econômica da
cultura por meio do ambiente digital. E o Estado brasileiro –
até porque é uma questão difícil cuja regulação não é local,
mas global, o que impede uma efetividade – nunca conse-
guiu, de fato, adentrar essa questão por várias razões; por-
que ela é incipiente no Brasil, mas também porque nunca
houve vontade política de enfrentar determinados interes-
ses que estão postos nessa indústria cultural oligopolizada
baseada na informação digital.

Entrevista de Cláudia Leitão, Guilherme Varella, Cláudio Lins


204 de Vasconcelos, Mansur Bassit e Aldo Valentim a Leandro Valiati
“Celso Furtado […] dizia-nos que o sentido de
desenvolvimento é muito mais um ato de
imaginação, de invenção, do que de transformação.
A criatividade, declarava ele, é uma invenção que
parte da cultura. Então nós precisamos, depois
da pandemia, ou a partir dela, repensar qual é o
lugar que o Brasil quer ocupar nessa compreensão
do que é uma economia criativa […]” – CL

CLV Mesmo antes da pandemia, as transformações tecno-


lógicas já vinham revolucionando as formas de distribuição
e fruição de bens culturais. O mundo do streaming não é o
mundo da tv por assinatura. No entanto, os objetivos gerais
das políticas públicas – garantia de espaço para a cultura
brasileira, incentivo à produção independente, diversidade
de linguagens, plena liberdade artística etc. – seguem váli-
dos e plenamente exigíveis. Isso porque tais políticas reali-
zam, no nível infraconstitucional, preceitos constitucionais.
O apoio oficial à produção cultural brasileira é um ditame
que se impõe a todo e qualquer governo, e não uma opção
programática. Os princípios permanecem, apesar das mu-
danças conjunturais.

MB Estamos num momento importante para quebrar os pa-


drões antigos e lutar por um novo país, mais justo, moderno
e igual para todos. Nunca antes a cultura se tornou tão neces-
sária e importante para acelerarmos essa transformação. No
próximo governo, a cultura e a indústria criativa têm que estar
no foco das discussões para uma nova estruturação depois de
tudo o que o setor viveu.
A recriação do Ministério da Cultura ou a estruturação
de uma Secretaria da Cultura com orçamento definido e com
uma liderança com visão moderna e conhecedora dos proble-
mas do país e de suas necessidades é essencial para que pos-
samos reconstruir e fortalecer a expressão cultural e econô-
mica da criação. O engajamento das equipes no órgão público
responsável, seja qual for a estrutura, é fundamental para o

A história recente da política brasileira de economia


da cultura revisitada 205
“Mesmo antes da pandemia, as transformações
tecnológicas já vinham revolucionando as formas
de distribuição e fruição de bens culturais.” – CLV

sucesso da gestão. Não importa se são técnicos de carreira ou


cargos de confiança; o importante é que todos acreditem no
projeto da liderança para o sucesso da gestão. O país precisa
de um projeto em que a cultura, a educação e a saúde sejam o
núcleo central da política de governo.

AV Creio que as políticas públicas de economia criativa


não devem ser pensadas apenas para o setor artístico (e
aí beneficiando somente o segmento das belas-artes). Os
desafios do século xxi, o pós-pandemia e as mudanças
geracionais exigem que os gestores, formuladores e execu-
tores de políticas públicas estejam atentos às demais áreas
da economia criativa, sobretudo àquelas ligadas à inova-
ção e à tecnologia, que evidentemente sempre poderão ter
suas interfaces com as manifestações artísticas e culturais
mais tradicionais, mas devem ser vistas como um campo de
atuação que merece ter sua exclusividade. Nessa constru-
ção, devemos estar atentos ao processo de digitalização do
consumo. Uma pesquisa da área de inteligência de mercado
4 Painel online da Globo comprovou que 78% dos brasileiros consomem
realizado pelo música por meio dos seus smartphones (pelo YouTube, Spo-
setor de pesquisa tify e outros), seguido pela tv/Smart (34%). Os gêneros
e conhecimento
mais consumidos são sertanejo, pop e música gospel.4 Ou-
da Globo entre 14
e 17 de maio de tra pesquisa – Nielsen Brasil em parceria com a Toluna –
2021. Disponível aponta que 42,8% dos brasileiros entrevistados consomem
em: gente.globo. streaming diariamente e 43,9%, uma vez por semana. Ape-
com/o-consumo-
nas 2,5% não assistem a nada nas plataformas.5 Os jovens
-de-musica-no-
-brasil/.
são maioria no consumo pelas plataformas. Evidentemente,
5 Pesquisa essa tendência foi acentuada pela pandemia, devido ao fe-
realizada pela área chamento dos cinemas e demais espaços culturais (físicos),
de mídia da mas os dados mostram que é uma tendência que veio para
Nielsen Brasil em
ficar e tende a se intensificar. O consumo de conteúdos
parceria com a
Toluna, em 30 de curtos via redes sociais (Instagram e TikTok) e as novas
junho de 2020. tecnologias para difusão da arte (nfts) são tendências que

Entrevista de Cláudia Leitão, Guilherme Varella, Cláudio Lins


206 de Vasconcelos, Mansur Bassit e Aldo Valentim a Leandro Valiati
devem ser atentamente observadas, pois tendem a impac-
tar o processo de criação, produção, distribuição, financia-
mento e rentabilização dos bens e serviços criativos. Outro
ponto que merece atenção é que 42,3% da população têm até
trinta anos, correspondendo à geração z e à geração mille-
nium, com novos imaginários, comportamento, padrões de
consumo e grande poder influenciador.

“Os desafios do século XXI, o pós-pandemia e as


mudanças geracionais exigem que os gestores,
formuladores e executores de políticas públicas
estejam atentos às demais áreas da economia
criativa, sobretudo àquelas ligadas à inovação e à
tecnologia, que evidentemente sempre poderão ter
suas interfaces com as manifestações artísticas e
culturais mais tradicionais, mas devem ser vistas
como um campo de atuação que merece ter sua
exclusividade.” – AV

A história recente da política brasileira de economia


da cultura revisitada 207
Copyright © 2023, Leandro Valiati. EQUIPE ITAÚ CULTURAL
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Todos os direitos reservados. Este livro Diretor Eduardo Saron
não pode ser reproduzido, no todo ou
em parte, armazenado em sistemas
eletrônicos recuperáveis nem transmitido NÚCLEO OBSERVATÓRIO
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autorização por escrito do editor. Produção Andréia Briene

1ª edição 2023 Tradução Atelier das Palavras e


DWT Soluções Integradas (terceirizadas)

Ilustração Felipe Stefani (p. 182)

Organizador e editor Leandro Valiati

EQUIPE WMF MARTINS FONTES


Acompanhamento editorial Juliana Bitelli e
Dimitri Arantes
Preparação Rogério Trentini
Revisões Bruna Wagner e Rafael Falasco
Projeto gráfico Bloco Gráfico
Assistente de design Stephanie Y. Shu
Composição Jussara Fino
Produção gráfica Geraldo Alves

Memória e Pesquisa | Itaú Cultural­­

Economia da cultura e indústrias criativas: políticas públicas,


evidências e modelos/ vários autores; organizado
por Leandro Valiati. São Paulo: Itaú Cultural;
Editora wmf Martins Fontes, 2023.
208 pp., 16 x 23 cm; vol. 2.
Inclui bibliografia e índice.
ISBN: 978-65-88878-58-3 / ISBN: 978-85-469-0422-8

1. Economia da Cultura. 2. Indústrias Criativas.


3. Política Cultural. 4. Modelos de Indústrias Criativas.
O Itaú Cultural integra a Fundação Itaú
5. Políticas Públicas. I. Instituto Itaú Cultural.
para Educação e Cultura.
II. Valiati, Leandro. III. Título.
Saiba mais em fundacaoitau.org.br.
CDD 306.3

Bibliotecária Ana Luisa Constantino dos Santos Todos os direitos desta edição reservados à
CRB-8/10076 Editora WMF Martins Fontes Ltda.
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Imagem de capa:
Rodrigo Andrade
Sem título, óleo sobre tela sobre mdf,
120 × 180 cm, 2020
O segundo tomo de Economia da cultura e
indústrias criativas destaca os grandes
referenciais teóricos das políticas culturais de
vários lugares do mundo – da América Latina
e dos Estados Unidos à China, da África à
Europa e Reino Unido –, trazendo as reflexões
de Morag Shiach; George Yúdice; Michael
Keane e Elaine Jing Zhao; Carole Rosenstein;
Jason Potts e Stuart Cunningham; Roberta
Comunian, Brian J. Hracs e Lauren England;
Valentina Montalto; e Hasan Bakhshi. Além disso,
este volume apresenta uma entrevista com
os ex-secretários de Economia Criativa, de
Políticas Culturais ou de Economia da Cultura
brasileiros: Cláudia Leitão, Guilherme Varella,
Cláudio Lins de Vasconcelos, Mansur Bassit e
Aldo Valentim.

LEANDRO VALIATI
organizador e editor

Itaú Cultural

isbn 978-65-88878-58-3

wmf Martins Fontes

isbn 978-85-469-0422-8

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