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A UNESCO E A QUESTÃO

DA DIVERSIDADE CULTURAL

Revisão e estratégia, 1946-2004

Um estudo baseado em documentos oficiais

Versão revisada
(Setembro de 2004)

DIVISÃO DE POLÍTICAS CULTURAIS E DIÁLOGO INTERCULTURAL


Edição: Katérina Stenou
Diretora, Divisão de Políticas Culturais e Diálogo Intercultural,
Setor de Cultura, UNESCO

Sinopse: Katérina Stenou/Chimene Keitner


Impressão: UNESCO

Tradução: Karina Musmanno, Rio de Janeiro, Brasil

Os autores são responsáveis pela escolha e apresentação dos fatos contidos


neste livro, bem como pelas opiniões nele expressas, que não são
necessariamente as da UNESCO, nem comprometem a Organização.

Divisão de Políticas Culturais e Diálogo Intercultural, Setor de Cultura,


UNESCO
1, Rua Miollis
75732 Paris Cedex 15 (França)
tel: +33 (0)1 45 68 43 03
fax: +33 (0)1 45 68 55 97
e-mail: k.stenou@unesco.org

Publicado em 2000 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a


Ciência e a Cultura
7, Place de Fontenoy, 75352 Paris 07 SP (França)

UNESCO, 2000

Versão revisada em 2004

© UNESCO

2
Introdução

A pluralidade cultural é, por definição, um traço central e contínuo das


Organizações das Nações Unidas. Contudo, o modo como diferenças
culturais têm sido concebidas na teoria (ideias) e trabalhadas na prática
(instituições) tem variado substancialmente ao longo da história da
Organização. Uma revisão cronológica seletiva das plataformas e programas
da UNESCO, a agência da ONU especificamente encarregada de assuntos
culturais, pode oferecer um guia para algumas dessas transformações.
Embora esse método de amostragem histórica não seja absoluto, pode
provar-se útil ao sugerir algumas tendências teóricas e implicações práticas
da abordagem do tema da diversidade cultural no passado com vistas a
consolidar e refinar esforços presentes e futuros.

Em termos cronológicos, quatro grandes períodos emergem do


discurso e da ênfase dos documentos da UNESCO (considerando Relatórios
de Diretores-Gerais e, a partir de meados da década de 1970, Planos de
Médio Prazo). Inicialmente, durante o período de reconstrução pós-guerra e
de estabelecimento da ONU e de suas agências relacionadas, a UNESCO
concentrou-se em educação e conhecimento como chaves para a paz,
citando, por exemplo, a distância Oriente-Ocidente como uma importante
divisão cultural e uma fonte de (desnecessários) desentendimentos e
conflitos.

Essa abordagem otimista tratou os Estados-nações como entidades


unitárias: as ideias de pluralidade, diversidade, ou interculturalidade (palavras
que, embora carreguem diferentes significados, são frequentemente usadas
de forma intercambiável) estavam, portanto, ligadas à ideia de diferenças
internacionais, não intranacionais (os termos “nação” e “Estado” também
tendem a ser usados de forma intercambiável para delinear tanto uma
unidade cultural quanto política, ainda que, na realidade, tenham limites
geográficos incertos ou contraditórios). Nesse estágio inicial, a própria cultura
parecia ser pensada mais em termos de produção artística e práticas
externas do que em termos de modos de pensar, sentir, perceber e estar no
mundo profundamente internalizados e criadores de identidade.

A proliferação de novas nações independentes marcou o segundo


período, levando a mudanças de ênfase e definição. As identidades culturais
únicas dessas nações e a justificação de sua independência e de sua
existência internacional tornaram-se questões políticas centrais. O conceito
de cultura expandiu-se para incluir o de “identidade”. Esses acontecimentos
foram acompanhados por duas forças: uma resistência aos efeitos
homogeneizantes da tecnologia uniforme e uma luta, em grande medida
silenciosa, contra o imperialismo ideológico de Estados poderosos em um
contexto de Guerra Fria nascente (a rivalidade da Guerra Fria acabou por
dotar estados menores de um poder adicional e permitir-lhes “manipular”
superpotências para sua própria vantagem).

3
Durante o terceiro período, uma extensão e cristalização do segundo,
a noção de cultura como poder político ganhou impulso ao ligar-se à ideia de
desenvolvimento endógeno. A relação entre cultura e desenvolvimento
resultou em argumentos em defesa do apoio financeiro e administrativo a
países em desenvolvimento, que reivindicavam o direito de definir caminhos
“próprios” para o desenvolvimento de forma a participar igual e inteiramente
das questões internacionais. Não é possível identificar datas específicas para
esses períodos, pois a evolução foi gradual e suas etapas coincidiram.
Todavia, evidencia-se a mudança fundamental na direção de uma maior
ênfase nos fundamentos políticos e materiais do conceito de cultura.

O quarto e mais recente período caracterizou-se por uma relação entre


cultura e democracia, criando uma ênfase na necessidade de tolerância não
apenas entre sociedades, mas também internamente. Evidências de tensões
em variados níveis (local e regional, bem como internacional) levaram a um
foco em problemas internos de determinada sociedade, especialmente dos
centros urbanos, e em questões teóricas e práticas envolvendo os direitos
das minorias e a coexistência de diversas comunidades culturais. Essa
ênfase não substituiu os outros discursos, mas atraiu atenção significativa em
resposta a necessidades e transformações contemporâneas. Como em
períodos anteriores, as definições e prioridades da UNESCO evoluíram para
acomodar realidades sociais e políticas em mutação.

Sob essa perspectiva, a grande transformação deveu-se à aceleração


do processo de globalização, que não fora prevista durante a elaboração da
última Estratégia de Médio Prazo (1994-2000). A globalização mudou
radicalmente não apenas a ordem econômica e tecnológica, mas também as
mentalidades e formas de conceber o mundo. Essa nova dimensão requer
uma redefinição do tipo de ações e estratégias a estabelecer de modo a
preservar e promover a diversidade cultural, em particular à época em que
novos mercados globais são formados e quando se debate o estatuto de
bens culturais comparados aos bens de consumo.

Este relatório analisará esses períodos com um pouco mais de


atenção, esboçando a evolução da abordagem da diversidade cultural pela
UNESCO através de textos selecionados. Primeiramente, contudo, um
pequeno alerta: em termos metodológicos, a análise documental deve
basear-se em palavras, tanto as ditas como as não ditas (le dit e le non-dit1).
Consequentemente, tem-se a situação paradoxal em que palavras são
usadas para interpretar e analisar significados enquanto são consideradas de
uma distância crítica. Um certo ceticismo é ainda mais importante na leitura
de textos políticos como os Relatórios Gerais, que respondem a demandas e
preocupações dos Estados-membros, ou declarações e resoluções obtidas
após negociações durante as quais acordos semânticos podem ter sido
utilizados para mascarar conflitos em linguagem vagamente consensual. Tal
alerta não invalida este exercício – pelo contrário, torna-o ainda mais
interessante e importante. Aponta, simplesmente, para uma necessidade de


1
Em francês no original, “o dito e o não-dito”.

4
cuidado na interpretação, e sugere a possibilidade de conclusões outras além
daquelas avançadas por essa análise preliminar.

I. Cultura e Conhecimento

Informação como Chave para a Paz


Na Constituição da UNESCO

Após a Segunda Guerra Mundial, líderes políticos procuraram tornar


impossível que a história se repetisse. Críticas ao idealismo e à ineficácia da
Liga das Nações tiveram um impacto direto sobre o modo como a
Organização das Nações Unidas foi pensada e estabelecida. Porém, embora
os autores da Carta das Nações Unidas previssem, em comparação com a
Liga, recursos institucionais a medidas de sanções e execução mais
concretos através do Conselho de Segurança da ONU, não ignoraram o
papel e a importância de ideias, como evidenciado pelo mandato da
UNESCO. A famosa noção de que “guerras começam nas mentes dos
homens” estabelecia um certo tipo de abordagem à prevenção de conflitos,
focando no conhecimento como chave para a compreensão e a paz. A
ignorância foi identificada como a principal causa para a suspeita, para a
desconfiança e para as guerras entre os povos. Como resultado, a chave
para relações pacíficas seria o cultivo da “solidariedade intelectual e moral
entre a humanidade” através dos esforços da UNESCO. A fé otimista na
automaticidade da fórmula conhecimento è entendimento è paz foi
facilitada pelo número relativamente pequeno de delegados presentes à
Conferência Constitucional da UNESCO (18 governos participaram da
primeira Conferência de Londres e 44 participaram da Conferência
Constitucional em novembro de 1945) e por sua agenda em comum,
tornadas ainda mais urgentes pelos horrores recentes da guerra.

O propósito da Organização recém-criada era, assim, “avançar,


através das relações educacionais, científicas e culturais entre os povos, os
objetivos da paz internacional e do bem-estar comum da humanidade”. A
ênfase foi posta na manutenção, no aumento e na difusão do conhecimento
(arte, monumentos, livros, ciência e história) e da informação. A expansão da
“cultura” envolveu maior acesso a essa base de conhecimento geral através
da educação popular; “cultura” referia-se a informação histórica e produção
artística, ainda não compreendida explicitamente como uma experiência
particular com um conteúdo específico e formador de identidades. A cultura
como tal ainda não fora politizada.

Nesse estágio, o único sinal do futuro poder político da diversidade


cultural apareceu na cláusula de reserva da jurisdição doméstica da
Constituição. Era uma fórmula padrão, designada para impedir ou reduzir a
infração à soberania dos Estados-membros como resultado de sua
participação em instituições internacionais. Limites foram estabelecidos
quanto ao escopo e à competência da UNESCO com vistas a “preservar a

5
independência, a integridade, e a fértil diversidade de culturas e sistemas
educacionais dos Estados-membros da Organização”. Novamente, a razão
por trás dessa cláusula não era uma preocupação com a diversidade em si
mas, principalmente, um desejo de reassegurar governos participantes. A
diversidade era compreendida dentro de um modelo de Estados unitários,
cada um soberano sobre seu próprio povo e território (por isso a ideia de que
“ao eleger membros para o Conselho Executivo, a Conferência Geral deveria
considerar a diversidade de culturas e uma distribuição geográfica
equilibrada”). Governos agiam em nome de seu povo; a ideia de sobrepor a
UNESCO a chefes de governo e engajar o povo diretamente era contrária a
seu mandato e provavelmente impediria a formação da Organização como
um todo.

Somente a estipulação de que “as responsabilidades do Diretor-Geral


e da equipe [do Secretariado] seriam de caráter exclusivamente internacional
criou a possibilidade para que a UNESCO incorporasse uma comunidade
internacional de certa forma qualitativamente diferente de seus membros
individuais. Na década de 1940, a ideia dessa comunidade internacional
como um ator com deveres e responsabilidades estava claramente à frente
de seu tempo. Todavia, assim como a ideia de uma identidade cultural mais
politizada, era uma noção embrionária que se desenvolveria com o tempo.

II. Cultura e Política

Da Descolonização à Declaração de Cooperação Cultural


Internacional de 1966

Dadas suas origens no pós-guerra, não surpreende que o objetivo


maior e a raison d’être 2 da Organização das Nações Unidas fossem o
estabelecimento e a preservação da paz. A cultura, como outros assuntos,
inscrevia-se nesse contexto. Como registrado em um relatório de setembro
de 1946 sobre “Les Arts de la Création 3 ”: “as artes transcendem a
documentação através da interpretação, e ajudam homens e nações a obter
aquele conhecimento íntimo uns dos outros como seres humanos, vivendo
em diferentes condições mas unidos em uma única experiência humana,
essencial para alcançar um mundo em paz,” (p. 123). Nesse relatório, a
diversidade é reconhecida dentro da experiência humana unificada, mas é
considerada fonte de riqueza, não de conflito: “na família humana, cada país
e região tem suas próprias características e seus próprios valores distintivos,
e cada um faz sua contribuição ao tesouro cultural comum,” (p. 124). A arte,
produto concreto da cultura, é um meio de troca e de entendimento mútuo: “a
arte é uma chave para o entendimento de nossa própria cultura e da cultura
de nossos vizinhos,” (p. 127). Com todas essas observações, esse relatório
ecoa, com similar otimismo, a fórmula da Constituição da UNESCO:
conhecimento è entendimento è paz.

2
Em francês no original, “razão de ser”.
3
Em francês no original, “As Artes da Criação”.

6
Entretanto, ainda no Relatório Geral de 1947 (escrito por Sir Julian
Huxley), havia indicações de que essa variedade de experiências humanas
poderia levar a conflitos. Em face de tal possiblidade, Huxley insistia em uma
posição intermediária entre a padronização e a incompreensão, capturada
pelo hoje familiar slogan “unidade na diversidade” (p. 13). Ainda que nobre, a
expressão permaneceu uma promessa sem receituário, um credo de
conteúdo ainda por esclarecer. Por outro lado, o Relatório de 1947 referia-se
a uma “cultura universal”; não usou a palavra “cultura” como metonímia ou
substituto para a palavra “povo” para significar um grupo particular de seres
humanos, como seria comum anos depois. Contudo, o projeto de uma
“Histoire Générale des Civilisations 4 ” (plural) implicava na existência de
múltiplas civilizações, não uma única categoria que pudesse adequadamente
abraçar toda a experiência humana.

Essa segunda ideia, a ênfase no particularismo e não na


universalidade, refletiu-se na observação do Diretor-Geral de que culturas
são diversas, ao contrário da ciência, cujo objetivo final é a unidade, e até a
uniformidade. Essa diversidade poderia levar a certa possessividade – como
na ideia do desenvolvimento endógeno como caminho até o desenvolvimento
particular de um determinado povo, surgindo de sua cultura particular, em vez
de um caminho uniforme ou padrão estabelecido pelos ditados da ciência –
mas não foi pensada como forma de isolamento. Ainda assim, o potencial
para fortalecimento contido na diversidade foi sugerido pelo objetivo de
impedir que nações menores ganhassem poder pela propaganda de nações
politicamente mais poderosas, uma mensagem claramente relacionada ao
contexto emergente da Guerra Fria.

Desde o início, então, duas grandes questões emergiram na


plataforma da UNESCO, relacionadas uma à outra e envolvendo uma certa
tensão interna, e até uma contradição: em primeiro lugar, a negociação entre
unidade e diferença, e a ideia de que uma poderia ser obtida sem sacrificar a
outra; depois, a ideia de caminhos individuais para o desenvolvimento, com
os benefícios do fortalecimento medidos com relação aos possíveis perigos
do isolamento excessivo. Esses problemas eram de natureza teórica e
prática. No reino da teoria, a UNESCO recebeu o titulo de “tête pensante5”
das Nações Unidas, pois evoluíra a partir do Instituto Internacional de
Cooperação Intelectual. O Relatório de Huxley, de 1947, fora explicitamente
direcionado a intelectuais e profissionais (p. 17), um tipo de “comunidade
epistêmica” internacional (para usar um termo de Ernst Haas) designada para
facilitar o entendimento e a cooperação através do conhecimento mútuo. Mas
as distinções entre teoria e prática e intelectualismo e geopolítica não
permaneceriam rígidas – especialmente em anos recentes, durante os quais
a relação entre cultura e política foi enfatizada de forma a priorizar a primeira,
tanto retoricamente quanto em termos de alocação de recursos materiais.
Uma visão geral de algumas das seções dos Relatórios do Diretor-
Geral que datam da década de 1950 oferece uma boa ideia do modo como a
cultura era percebida e apoiada. A categoria “atividades culturais” incluía:

4
Em francês no original: “História Geral das Civilizações”.
5
Em francês no original: “cabeça pensante”.

7
preservação e proteção a obras de arte, ao patrimônio cultural e aos artistas;
cooperação internacional e difusão da cultura. Nesse sentido, a cultura
parecia ocupar uma esfera autônoma, separada das ciências sociais. Em
1951, contudo, a subseção 4E da categoria relativa às atividades culturais
tratava de “ações em prol dos direitos humanos”. Estabelecer essa ligação
entre cultura e direitos legais – “dignité6” e “droits7” – foi um importante passo
para trazer a cultura para o centro da política, tornando-a constitutiva (e não
simplesmente expressiva, ou um produto) da identidade e da independência
do indivíduo e do grupo. Embora fosse o Conselho Econômico e Social o
encarregado, em 1952, da “prevenção à discriminação e da proteção de
minorias”, a ênfase da UNESCO em cultura e educação também trouxe, suas
atividades, necessariamente, para o domínio dos direitos humanos.

De outras formas sutis, a questão das tensões internacionais e dos


direitos das minorias conquistou espaço dentro do campo cultural, em vez de
limitar-se à seção de ciências sociais aplicadas da agenda da UNESCO. Mais
uma vez, essa mudança refletiu uma compreensão de que a cultura não
poderia circunscrever-se à produção artística. No Relatório de 1952, a
subseção VIIIB invocou as “bases culturais da solidariedade internacional”, e
clamou por um “novo humanismo” que substituiria o nacionalismo pelo
patriotismo (nesse contexto, patriotismo significaria uma lealdade ao país
ainda compatível com deveres para com a humanidade em geral, enquanto
nacionalismo significaria uma ligação exclusiva e potencialmente xenofóbica
ou agressiva). O reconhecimento de diferenças fundamentais entre seres
humanos que vivem em culturas diferentes ficou claro na coleção de “styles
de vie 8 ”, que apresentava análises de vários “caracteres nacionais”.
Novamente, seria através da expansão do conhecimento sobre diferentes
traços culturais que o entendimento seria alcançado, como sugerido na
Constituição de 1945.

A dúvida sobre a eficácia da abordagem baseada no conhecimento


permaneceu. A subseção 4F do Relatório Geral de 1955, sobre “Cultura e
Entendimento Internacional”, e a subseção 6A do Relatório de 1957, sobre o
“grande projeto de apreciação mútua dos valores culturais orientais e
ocidentais”, soam muito positivas e importantes. Mas o que exatamente
significa “entendimento internacional” e “apreciação mútua”? Somente nos
anos recentes as distinções entre atitudes e políticas de tolerância,
entendimento, aceitação, contato construtivo, etc. seriam elaboradas na
teoria e implementadas na prática (seja constitucionalmente, através de
projetos governamentais, seja através da sociedade civil). Já em 1959,
contudo, a subseção 5F do “grande projeto” falava sobre “la communication
entre les cultures9”. Aqui encontramos a substituição da palavra “cultura” por
“povos ou nações” que marca definitivamente o reconhecimento de cultura
como um aspecto amplo e não epifenomenal de um grupo determinado.


6
Em francês no original: “dignidade”.
7
Em francês no original: “direitos”.
8
Em francês no original: “estilos de vida”.
9
Em francês no original: “a comunicação entre as culturas”.

8
Vários outros elementos merecem atenção no Relatório de 1952. Em
primeiro lugar, a questão da industrialização e da assistência técnica foi
limitada pela preocupação com a diversidade cultural, como ficara evidente
no objetivo de uma “modernização equilibrada, preservando, ao mesmo
tempo, os valores culturais e sociais particulares” (p. 199). A questão da
“integração social” (p. 200) começava a emergir, mais notadamente com
respeito à “assimilação cultural” de imigrantes – sendo a assimilação
considerada um objetivo positivo a ser atingido de forma que imigrantes
pudessem pertencer à sociedade e desfrutar inteiramente de seus direitos,
um objetivo que pode ser colocado em risco por uma ênfase excessiva na
preservação de comunidades culturais especiais em uma determinada
sociedade. Essa questão também se refletiu na ênfase em “medidas (...) para
acabar com a discriminação e, assim, acelerar as integrações de grupos, até
então excluídos, dentro da comunidade” (p. 206), com a diferença teórica e
prática entre políticas de assimilação e integração ainda não claramente
desenvolvidas. Na esfera concreta, a Comissão Nacional Iugoslava conduzia
um estudo sobre a “política adotada e os resultados alcançados com relação
à integração de minorias nacionais e culturais” (p. 207), sugerindo que
indivíduos precisavam ser tratados como membros de grupos específicos em
certas situações políticas, uma observação que assumiria importância ainda
maior com a emergência do discurso dos “direitos dos povos” em décadas
seguintes.

O tema do conhecimento mútuo permaneceu importante no que diz


respeito às ciências, pois o Relatório articulou a convicção de que, se as
pessoas soubessem que não havia oásis científico algum para preconceitos
de ordem étnica, tornar-se-iam automaticamente mais tolerantes e apoiariam
a igualdade racial (p. 204). É claro, ainda que represente um importante
elemento na luta para promover a igualdade, essa posição ignora as
motivações políticas para a perpetuação de equívocos e a construção de
diferenças étnicas como indicativas de desigualdade natural ou distinções
sociopolíticas.

Mesmo o cultivo da solidariedade internacional poderia ser um tópico


politicamente sensível, como evidente na seção sobre educação no Relatório
de 1952. Ao dizer que a educação “cobria o senso de lealdade para com seu
país e com a comunidade humana do indivíduo, sua consciência de
pertencimento a uma grande família, sua confiança nas instituições
internacionais que mantêm e estendem união e paz entre todos os povos do
mundo” (p. 211), o Diretor-Geral tinha de especificar que isso não incluía a
substituição da lealdade nacional pela lealdade internacional, mas a resposta
a obrigações internacionais através do patriotismo e das obrigações
nacionais. Essa estrutura dupla, em que o nível nacional permanece o mais
importante mas não a única plataforma para lealdade, era a definição de um
“civisme international 10 ”, o melhor que uma organização internacional
dependente do apoio de seus Estados-membros esperava encorajar naquele
momento. Embora conservadora, essa concepção era qualitativamente
diferente do modelo envolvendo exclusivamente os Estados, com cada

10
Em francês no original: “civismo internacional”.

9
Estado completamente autônomo e autossuficiente. Como o relatório
enfatizava, a realidade internacional (“Relações internacionais foram
desenvolvidas no mundo todo de tal forma que agora as nações são
interdependentes em um grau nunca antes sonhado”) criava “um novo campo
de deveres” que Estados não podiam ignorar. Com essas informações em
mente, “todo o programa da UNESCO guarda testemunho da existência e
encoraja o crescimento da comunidade” (p. 213). O “projeto por uma História
do Desenvolvimento Científico e Cultural da Humanidade”, ao contrário da
“Histoire des Civilisations”, reforçava a ideia de uma unidade na família
humana, na interconexão do progresso e do desenvolvimento em todas as
áreas do globo.

O Relatório Geral de 1960 acrescentou duas interessantes reflexões


ao “grande projeto de apreciação mútua” entre Ocidente e Oriente.
Primeiramente, a ênfase em “programas para o público geral” (p. 157)
ressaltava a importância da difusão da cultura, não apenas entre os
intelectuais de diferentes países, mas entre as pessoas comuns dentro de
seus próprios países. Em seguida, os termos usados para descrever o
processo de troca cultural poderiam ser igualmente aplicados a trocas
“políticas” entre diferentes culturas, revelando a sensibilidade potencial de
tais esforços: “O encontro de indivíduos representando vários ramos das
artes e da literatura oferecia oportunidades de continuar a comparação de
valores espirituais e padrões de apreciação estética entre Oriente e Ocidente,
com os devidos descontos para as importantes diferenças que surgem das
personalidades dos artistas e o fato de que ainda retiram sua inspiração de
culturas imensamente variadas” (p. 161). Indivíduos não são determinados
por sua cultura, mas seus modos de perceber e estar no mundo são
necessariamente influenciados por ela. Compreender essa precisa correção
do desenvolvimento e as implicações que ela pode ter para interações entre
pessoas influenciadas por diferentes origens culturais é tão importante
quanto aprender sobre as múltiplas culturas: é a questão de como a diferença
pode moldar o comportamento que é mais importante, além do mero
reconhecimento de que pessoas de diferentes culturas podem reagir de
formas diferentes à mesma situação.

Um documento importante que emergiu das discussões sobre a


cultura e sua influência sobre as relações internacionais da década de 1960
foi a “Declaração dos Princípios da Cooperação Cultural Internacional”, uma
resolução adotada na 14a sessão da Conferência Geral, em 4 de novembro
de 1966 (marcando o vigésimo aniversário da UNESCO). Como esperado, a
Declaração combate a “ignorância do modo de vida e dos costumes dos
povos”, mantendo a já familiar ênfase no conhecimento como chave para a
paz. O Artigo I estabelece a importância de cada cultura, tanto para o povo à
qual ela pertence (Artigo 1.2) como parte do patrimônio comum da
humanidade (Artigo 1.3). O artigo IV.4 reflete um equilíbrio similar, pois
espera-se que cada indivíduo possa desfrutar da cultura de cada povo, não
apenas de seu/sua cultura. Mais uma vez, o artigo VI evoca essa negociação
em um nível diferente, insistindo tanto no enriquecimento e no respeito
mútuos pela originalidade de cada cultura em esforços cooperativos
internacionais. Os ideais de liberdade e abertura (Artigo VII) são apoiados ao

10
longo do imperativo de soberania estatal (Artigo XI.1) novamente sugerindo
uma tensão implícita entre a “verdade” como um objetivo comum e o
confronto entre várias “verdades” representadas por Estados nacionais que
podem ou não ser compatíveis em termos ideológicos ou práticos uns com os
outros.

O florescimento individual em concordância com a Declaração de


Direitos Humanos poderia significar o florescimento em concordância com os
chamados valores “universais”, ou o desenvolvimento em um contexto mais
culturalmente específico, também reconhecido como essencial no artigo 27
da Declaração Universal. Afirmar que particularismo e universalismo são
necessariamente complementares é tão vazio quanto insistir que tensões
sempre existirão: para que princípios tenham significado, devem oferecer
uma chave para soluções concretas, mesmo que a fórmula possa variar de
um caso para outro. A Declaração de 1966 foi importante para conservar uma
vontade política de cooperar, mas falhou no detalhamento das modalidades e
potenciais contradições desse esforço em direção à cooperação. A
politização aproximou a cultura do topo da agenda internacional, mas
também aumentou os riscos na cooperação cultural e nas atividades
interculturais.

III. Cultura e Desenvolvimento

De Ideias sobre Desenvolvimento Endógeno


À Conferência sobre Políticas Culturais em Bogotá, em
1978

A necessidade de amparar a retórica com recursos tornou-se uma


prioridade no final da década de 1960. Essa mudança refletiu-se em uma
série de reuniões, incluindo a Mesa-Redonda sobre Políticas Culturais, em
Mônaco, em dezembro de 1967, e a Conferência Intergovernamental sobre
Aspectos Institucionais, Administrativos e Financeiros das Políticas Culturais,
realizada em Veneza, entre agosto e setembro de 1970. O Relatório Geral de
1969 (seção 3.2.d) indicou um estudo sobre o “direito à cultura”, tornando-a
uma categoria ainda mais importante ao enfatizar o direito individual à cultura
(como articulado previamente no artigo 27 da Declaração Universal dos
Direitos Humanos). Enquanto no relatório de 1969 a ajuda dos Estados-
membros para o desenvolvimento cultural focou principalmente na tradução,
na difusão literária e em trocas culturais, a necessidade de apoio material
pelo desenvolvimento cultural tornou-se cada vez mais evidente à medida
que a UNESCO movia-se em direção à década de 1970. O Relatório Geral
de 1975-76 relacionou o florescimento cultural ao desenvolvimento e bem-
estar de uma nação como um todo (“Cultura a serviço do desenvolvimento”,
categoria 4A). O Relatório 1979-80 ressaltou que esse desafio à dicotomia
tradicional entre economia e estética era um elemento essencial da estratégia
para promoção de fundos para cultura (p. 50).

11
A ideia do desenvolvimento endógeno ou diversificado, um pilar do
Relatório de 1977-78, conectou a cultura ao desenvolvimento. Para os países
de independência recente e ainda em desenvolvimento, a cultura oferecia a
direção única para um caminho autônomo em direção ao progresso que seria
politicamente libertador e economicamente fortalecedor. A subseção 1.2
sobre Educação e a seção 2.1.2 sobre Ciências Sociais do Relatório de
1977-78 intituladas ambas “apreciação e respeito pela identidade cultural”,
envolviam o respeito à identidade cultural como um conjunto de escolhas
políticas e econômicas (mais que escolhas simplesmente estéticas), um pré-
requisito de maior igualdade entre nações no cenário mundial.

Além da questão do poder nas relações internacionais, outro elemento


emergia do estudo da cultura e de políticas culturais. Como observado no
Relatório de 1977-78, “o principal traço novo do programa para o estudo de
culturas é a importância dada a interações culturais” (p. 40). Como parte
dessa mudança de direção, “faz-se uma tentativa de estudar culturas
regionais” e “um maior interesse tem sido demonstrado em regiões culturais
que são, em si, centros de síntese para uma variedade de influências e
contribuições culturais”. A questão da diversidade cultural interna a uma
sociedade havia sido diminuída ou ignorada no contexto do pós-guerra,
quando a paz e o entendimento entre Estados soberanos era uma prioridade
mais alta para organizações internacionais que a paz e o entendimento
dentro dos Estados. Isso era especialmente verdade para uma organização
como a UNESCO, cujo mandato a impedia explicitamente de “interferir” em
assuntos internos de seus membros. De fato, tornou-se cada vez mais claro
que os mesmos problemas surgiam das relações interculturais dentro e entre
sociedades. Em ambos os casos, como observado no Relatório de 1977-78,
“o encontro organizado levou de fato a recomendações relacionadas a planos
de ação que envolvem o estudo de valores convergentes, sem desconsiderar
a necessidade de reconhecer diferenças” (p. 40). Enquanto a sugestão de
que estratégias podem ser úteis nos níveis intra- e internacionais acabaria
por tornar-se parte importante da plataforma da UNESCO, esse equilíbrio
entre a ênfase em “valores convergentes” e o “reconhecimento de diferenças”
provou-se de mais fácil defesa teórica que implementação prática.

O Plano de Médio Prazo para 1977-82 identificou várias dessas


mesmas questões. O Plano incluiu algum dos objetivos abaixo, que ajudam a
ilustrar as prioridades nos estudo culturais durante aquele período:

Ÿ Objetivo 1.2: Promover a apreciação e o respeito pela identidade


cultural de indivíduos, grupos, nações ou regiões. Esse objetivo
mostrou que a identidade cultural poderia pertencer a um número de
diferentes entidades (indivíduos, grupos, etc.) com duas implicações:
em primeiro lugar, que a interculturalidade não começa simplesmente
onde a fronteira de um estado termina; em seguida, que o respeito
pela identidade cultural pode incluir direitos para grupos tanto quanto
para indivíduos, um tema desenvolvido mais recentemente pela
UNESCO (ver seção IV abaixo).

12
Ÿ Sub-objetivo 1.21: Promover a identidade cultural como um fator de
independência e de comunidade de interesses. Esse sub-objetivo
reforçou a importância geopolítica da cultura como força liberadora no
cenário mundial. Mas os imperativos de independência e solidariedade
convivem de forma um tanto desconfortável: o primeiro viria em
detrimento do segundo? Será que a galvanização de identidades
culturais, considerada o pilar central da independência política,
ajudaria ou atrasaria tentativas de entendimento internacional? Com o
movimento não-alinhado, anticolonial definindo-se negativamente
contra a influência imperial, que elementos positivos de uma cultura
comum poderiam ser retidos para preservar algum cimento entre
povos diversos, e evitar, ao mesmo tempo, em todas as
circunstâncias, os excessos coloniais da uniformidade e da
dominação? Os riscos políticos dessa negociação eram claros nesse
Relatório, especialmente dada a experiência histórica de países com
processos recentes de independência: “A identidade de nações, que é
a base para sua soberania e pré-condição para o diálogo, encontra
sua força na intensidade e na autenticidade de sua vida cultural” (p.
11). O Relatório sugeria que a afirmação cultural promoveria, de fato, o
entendimento mútuo: “Para cada nação, quer seja ou não
politicamente dona de si, quer seja ou não uma grande potência, quer
tenha um amplo espectro de recursos e habilidades a seu dispor ou
esteja ainda no estágio de desenvolvimento, a afirmação da identidade
cultural é a base para o pluralismo cultural. Aceitação e respeito por tal
pluralismo, com direitos iguais e em patamares iguais, é hoje
manifestamente um fato que contribui para a paz e o entendimento
entre nações,” (p. 11). Novamente, contudo, tais afirmações requeriam
um certo salto de fé. Mesmo após um aplainamento teórico do campo,
as regras ainda precisavam ser negociadas e desenvolvidas.

Ÿ Sub-Objetivo 1.2.3: Promover a identidade cultural dentro do


contexto de uma estratégia de desenvolvimento global. A relação entre
cultura e desenvolvimento endógeno era bastante clara a essa altura,
mas era menos claro o significado de “uma estratégia global de
desenvolvimento”, especialmente junto à ênfase em caminhos
originais e autônomos. Estilos diferentes de desenvolvimento poderiam
ser coordenados e complementares sem serem uniformes? Até que
ponto a identidade cultural era um veículo para o desenvolvimento, e
até que ponto era algo a ser protegido dos efeitos do processo de
desenvolvimento? Apesar dessas potenciais contradições, emergiu,
nesse período, uma concepção mais sofisticada de desenvolvimento
para incluir aspectos culturais: “Assim, começou a ser aplicada a ideia,
cujo princípio já foi anteriormente admitido, de que o desenvolvimento
não pode ser limitado apenas à economia mas de que os objetivos do
crescimento devem ser também definidos em termos de
aprimoramento cultural, satisfação individual e coletiva, e bem-estar
geral” (Plano de Médio Prazo de 1984-1989, p. 234). Porém, assim
como ocorrera com outros objetivos, as implicações desse
reconhecimento deveriam ser decididas através de acordos regionais
e globais. O chamado por uma Nova Ordem Econômica Internacional

13
defendia a identidade cultural como uma “condição essencial” de
desenvolvimento endógeno e integrado, com liberação política e
crescimento econômico representando pré-condições para e produtos
dessa afirmação cultural, criando um círculo virtuoso de florescimento
cultural e econômico. Como já havia sido notado nos primeiros
momentos da história da UNESCO, a cultura não era apenas um canal
para expressão: era a própria constituição de um povo como ator
político no cenário internacional.

Ÿ Sub-Objetivo 1.24: Promover o respeito pela identidade cultural de


indivíduos e grupos, com referência particular àqueles afetados pelo
fenômeno da exclusão social dentro de sociedades desenvolvidas ou
em desenvolvimento. Esse objetivo ressalta a questão das identidades
culturais dentro das sociedades, e a questão da coesão social dentro
dos Estados, tema que ganharia maior importância na década
seguinte. Enquanto a situação de trabalhadores migrantes já havia
sido estudada nesse contexto, um crescente entendimento, naquele
momento, de que populações nacionais eram, na verdade, mais
diversas do que se admitia resultou, por vezes, em nova série de
questões e prioridades. Especialmente em centros urbanos, o discurso
de marginalização envolve tanto fatores socioeconômicos quanto
culturais, frequentemente relacionados. Esse objetivo evoca a ideia
central do pluralismo como participação e compartilhamento, não
como retiro ou reclusão, bem como a noção de diálogo intercultural –
ideias são tão importantes dentro de sociedades multiculturais quanto
dentro dos países-membros da Organização.

A discussão sobre como encorajar a afirmação da identidade ao


mesmo tempo em que se previne a divisão ou a reclusão foi ilustrada pela
Resolução 4101 da Conferência Geral sobre Cultura e Comunicação, de 28
de novembro de 1978, que avançava os objetivos de “satisfação-
desenvolvimento-solidariedade”, esperando que pudessem reforçar um ao
outro em vez do contrário. Mais cedo naquele ano, na Conferência
Intergovernamental sobre Políticas Culturais da América Latina e do Caribe,
em Bogotá, concluiu-se que “não pode haver política cultural sem uma
política cultural apropriada” (p. 3). A Conferência ocorreu entre 10 e 20 de
janeiro, e o Diretor-Geral apresentou esse Relatório na Conferência de 28 de
julho (de onde essas citações foram retiradas). Os principais temas da
conferência eram identidade cultural, desenvolvimento cultural e cooperação
cultural. A quarta de uma série de conferências intergovernamentais
regionais sobre o tema das políticas culturais, essa conferência, em
particular, viu “uma notável convergência de atitudes quanto aos problemas
básicos considerados”; de fato, o Diretor-Geral relatou que “a Conferência.
(...) marcou um ponto de inflexão para a UNESCO em termos de cooperação
cultural” (p. 1). A ideia de que o pluralismo cultural poderia ser “a essência da
identidade cultural” desafiava a imagem de países culturalmente monolíticos
e introduzia a noção, familiar ao Caribe, de uma “culture de métissage11”.
Dada essa enorme diversidade, concluiu-se que “a diversidade cultural dos

11
Em francês no original: “cultura de mestiçagem”.

14
povos deve ser considerada não um fator de divisão, mas de estabilização”.
Aproveitar tal potencial “impeliria os povos a reconquistar o controle sobre
seu próprio destino, enquanto fortaleceria seu interesse pelo mundo exterior”
(p. 1). A autoafirmação levaria a trocas, não a exclusões.

A hoje estabelecida ideia de cultura como essência de um povo, e não


apenas como produto ou meio, está clara na Declaração de Bogotá: “como a
soma total de valores e criações de uma sociedade e a expressão da vida, é
essencial à vida e não um simples meio ou instrumento subsidiário de
atividade social” (p. 1). No contexto da Declaração de Bogotá, a comunicação
asseguraria “liberdade, autenticidade, universalidade” (p. 3), e a cooperação
cultural ofereceria a relação entre diversidade e solidariedade, e a UNESCO
realizaria o papel de facilitador institucional. O relatório da conferência é
categórico e encorajador, mas não esclarece o equilíbrio específico entre
particularismo e universalismo. Seus slogans otimistas ainda precisariam ser
apoiados pela implementação e pelo sucesso de arranjos mais concretos.

IV. Cultura e Democracia

Direitos Humanos e Sociedades Multiculturais


Nas décadas de 1980 e 1990

O Relatório Geral de 1979-80 expressou preocupação de que “a


distância entre conceitos e sua aplicação prática é ainda grande demais” (p.
54). O relatório ressaltou que as relações entre desenvolvimento cultural,
políticas culturais e responsabilidade governamental ainda precisavam ser
especificadas. Com relação a direitos culturais, o Relatório Geral de 1981-83
referiu-se à Resolução 4/01 e encorajou a implementação da
“Recomendação da Participação dos Povos em Geral na Vida Cultural e sua
Contribuição”, e os estudos sobre legislação cultural nacional (XXII). Como
indicado acima, o gerenciamento do pluralismo cultural foi reconhecido como
um tema relevante dentro de e entre sociedades. Por isso a referência, no
relatório de 1981-83, a “indivíduos e grupos em uma situação multicultural”
(p. 46) e à ideia de trabalhadores migrantes “vivendo em duas culturas”.
Direitos culturais poderiam ser reivindicados por indivíduos e grupos dentro
de países desenvolvidos e em desenvolvimento, não apenas pelos países
menos poderosos.

A Conferência Mondiacult, ocorrida no México entre julho e agosto de


1982 foi um ponto alto da atividade da UNESCO no setor cultural naquela
década. A Declaração sobre Políticas Culturais do México incluiu uma
definição de cultura e uma explicação de seu papel, demonstrando a
evolução desses conceitos desde a criação da UNESCO. A Declaração
observou que “em seu sentido mais amplo, a cultura pode, agora, ser
considerada todo o complexo de traços distintivos espirituais, materiais,
intelectuais e emocionais que caracterizam uma sociedade ou grupo social.
Inclui não apenas as artes e as letras, mas também modos de vida, direitos

15
fundamentais do ser humano, sistemas de valores, tradições e crenças” (p.
39). Segundo essa definição, o próprio conceito de cultura contém tanto o
universal quanto o particular: a ideia universal dos direitos humanos
fundamentais e os traços, crenças e modos de vida particulares que
permitem a membros de um grupo sentir uma conexão especial e única com
outros membros.

A Declaração do México também definiu o papel da cultura como


amplo e compreensivo: “pois é a cultura que fornece ao homem a habilidade
de refletir sobre si mesmo. É a cultura que nos torna especificamente
humanos, seres racionais dotados de discernimento e senso de
responsabilidade moral. É através da cultura que distinguimos valores e
fazemos escolhas. É através da cultura que o homem se expressa, torna-se
ciente de si, reconhece sua incompletude, questiona seus próprios feitos,
busca incansavelmente novos significados e cria obras através das quais
transcende suas limitações” (p. 39). Essa visão mais sofisticada da cultura
como faculdade universal em lugar de um rígido sistemas de práticas permite
o máximo potencial para a flexibilidade e a transcendência. Constrói ideias de
renovação, reavaliação, e escolha na definição própria de cultura,
antecipando-se à crítica que diz que o particularismo pode transformar-se em
baluarte contra o compartilhamento e a solidariedade interculturais. Outras
cláusulas dessa Declaração refletem a visão mais tradicional de cultura como
altamente especificada, impedindo, portanto, a noção mais sofisticada de
cultura como avaliação crítica ao tornar-se tão ampla e não-específica que
perde sua relevância e potência. Essa constante tentativa de balancear
afirmação e abertura, um pilar central da abordagem cristalizada nesse
documento, representa um contrapeso importante à excessiva politização da
identidade cultural em detrimento da busca por valores comuns. Finalmente,
o reconhecimento de que nenhuma cultura pode viver isoladamente no
mundo interdependente atual subjaz a essa Declaração e a seus princípios.

O Plano de Médio Prazo para 1984-89 desenvolveu o tema da


especificidade e da universalidade. Afirmou que “cada patrimônio cultural é
parte da propriedade comum da humanidade” (p. 228), sugerindo a
importância para todas as culturas da preservação e do respeito a cada uma
delas. Um estudo mais detalhado também foi imaginado sobre esse tópico
geral: “o quinto subprograma (estudos da especificidade e universalidade de
valores culturais) envolve estudos e pesquisas direcionados a: desenvolver o
conceito de valor cultural e a especificidade de valores culturais; lançar luz às
condições para o alcance do equilíbrio entre afirmação de identidade e os
requisitos imperativos à convivência harmônica e ao mútuo enriquecimento
de culturas; oferecer uma definição mais clara, em termos metodológicos, de
um conjunto de valores estéticos e éticos que são amplamente
compartilhados e estabelecer as condições para seu reconhecimento por
indivíduos, sociedades e a comunidade internacional” (p. 231). O
reconhecimento da importância desses temas foi o primeiro passo em
direção ao desenvolvimento de abordagens profundas e úteis.

Em uma dimensão concreta, o apartheid concentrou a atenção na


questão da diversidade e da igualdade. Como observou o Plano de Médio

16
Prazo, a Declaração de julho de 1950 sobre a questão racial “demonstrou
que o racismo não apenas tem o efeito de negar a igualdade a certas
populações mas também de questionar a unidade da raça humana” (p. 243).
O Plano sublinhava que “a questão básica levantada pela política deliberada
de apartheid é a escolha entre a imagem do homem que é tarefa da
UNESCO defender em nome da comunidade internacional e a imagem que
resulta daquela política” (p. 244) e que “o apartheid representa a culminação
lógica e o estágio final do colonialismo” (p. 253). A politização da identidade
cultural como potencial fator libertador dentro das próprias sociedades foi
ilustrada clara e dramaticamente por essas condenações de políticas de
apartheid, demonstrando a conexão entre identidade e direitos humanos que
fora teorizada nos documentos da UNESCO.

A libertação era um imperativo para grupos dentro da sociedade a


para as próprias sociedades, mesmo após a onda inicial de descolonização:
“a negação dos direitos dos povos à autodeterminação compreende a
negação dos direitos humanos e de liberdades fundamentais” (p. 263). Esse
Plano de Médio Prazo reconhecia “os muitos e variados pré-requisitos – não
apenas políticos e legais, mas também econômicos, sociais e culturais – para
que todos os povos desfrutem da genuína independência, isto é, a habilidade
de construir seu próprio futuro segundo suas aspirações” (p. 261). A relação
entre cultura e política, que data de várias décadas anteriores, foi fortificada
pelo foco na democracia e na promoção de direitos econômicos, sociais e
culturais tanto nas sociedades quanto na arena internacional. Como sempre,
essa afirmação de especificidade foi temperada pela perene questão: “É
possível identificar um conjunto de valores significativos compartilhados por
toda a humanidade?” (p. 234). Embora muitos dos modelos conceituais e
prioridades práticas da UNESCO tenham sido modificados ao longo dos
anos, certas questões fundamentais e recorrentes permanecem no centro de
seu discurso e de seus programas.

Em 8 de dezembro de 1986, em sua 100a reunião plenária, a


Assembleia Geral das Nações Unidas expediu a Proclamação da Década
Mundial do Desenvolvimento Cultural. Seus objetivos eram: reconhecer a
dimensão cultural do desenvolvimento, afirmando e enriquecendo identidades
culturais, aumentando a participação na cultura, e promovendo a cooperação
cultural internacional. As relações entre cultura e política, desenvolvimento e
democracia eram todas evidentes nesses quatro objetivos – novamente,
implicitamente, tanto no nível internacional quando no nível intranacional. O
Relatório Geral de 1988-89 sublinhava essa conexão entre os níveis
doméstico e internacional, afirmando que “o exercício de direitos culturais e
linguísticos efetivo torna-se cada vez mais importante para a resolução de
conflitos nacionais e internacionais e para a proteção dos direitos humanos”
(p. 77). Um encontro internacional de especialistas na sede da UNESCO em
novembro de 1989 concentrou-se no conceito dos direitos dos povos, com
referencia especial à relação entre os direitos dos povos e os direitos
humanos, como os últimos são definidos em instrumentos universais
internacionais (p. 76). Um simpósio internacional em colaboração com a
Société Française de Philosophie examinou a “Filosofia e a Revolução
Francesa – o Ideal Universal e seus Limites”, enquanto outro simpósio

17
estudou “As Três Declarações dos Direitos Humanos: 1776, 1789, 1948”.
Todos esses projetos demonstraram o desejo de alcançar universalidade
sem impor uniformidade, pois até mesmo direitos humanos “universais” foram
questionados como culturalmente específicos e imperialistas por sociedades
que se sentem ameaçadas por padrões externos.

O Plano de Médio Prazo de 1990-95 enfatizou o papel único da


UNESCO e a importância de “atividades que apenas a UNESCO pode
conduzir com sucesso, como, por exemplo, projetos interculturais clamando
por cooperação cultural internacional” (p. 80-81). Enquanto lamentava uma
séria insuficiência de recursos financeiros para estudos culturais e
interculturais (p. 84), o Plano demonstrava forte consciência da situação
global contemporânea, resumida a seguir:

Ÿ A crescente interdependência de cultura e economias, um processo


acelerado pelo desenvolvimento de meios modernos de transporte e
comunicação, que nutrem um sentido de pertencimento a uma cultura
universal única;

Ÿ A também crescente reafirmação de especificidades e identidades


culturais;

Ÿ A persistência e até o reaparecimento de tendências de


autoanálise e de preconceito cultural que se chocam com a
cooperação internacional;

Ÿ O desenvolvimento de sociedades multiculturais, que torna a


afirmação de identidade cultural mais complexa, embora
enriquecendo-a ao mesmo tempo.

Dadas essas condições, o conceito de 1952 de um “civisme


international12” parece igualmente relevante na década de 1990, combinando
lealdades particulares, de origens culturais com obrigações mais amplas e
universais derivadas do pertencimento a uma humanidade comum. Um papel
basilar da UNESCO em décadas vindouras contribuirá para a elaboração
teórica e a implementação prática desses conceitos mais dinâmicos e
multifacetados.

O Relatório Geral de 1990-91 começou a dedicar maior atenção a


essas áreas com uma ênfase crescente na democracia e na expansão da
paz e dos diálogos interculturais (X). O Fórum Internacional de Cultura e
Desenvolvimento, em Praga, em setembro de 1991, explorou “modos de
construir um novo conceito de cidadania, baseados em maior consciência e
responsabilidade, embora desenvolvendo as dimensões cívicas junto aos
aspectos puramente políticos”. Relacionados a esse projeto estavam os
esforços continuados da UNESCO na área de direitos dos povos,
autodeterminação e identidade cultural, com um plano de preparar “um

12
Em francês no original, “civismo internacional”.

18
estudo específico sobre a autonomia e os novos arranjos políticos bem como
sobre multiculturalismo como modelo alternativo à assimilação e integração
para lidar com os direitos de minorias nacionais” (p. 81). Longe dos dias em
que a assimilação era considerada um objetivo para os trabalhadores
migrantes – o único meio de experimentarem direitos como membros da
sociedade de destino – esse novo modo de multiculturalismo permitiu uma
maior preservação da diversidade e da autonomia culturais dentro das
sociedades, com a esperança de que os laços de cidadania segurariam
membros de diferentes culturas dentro de um único Estado. As questões de
como essa concepção de cidadania livre de valores poderia ou deveria ser,
que grau de similaridade e consenso é necessário como cimento social
mínimo em determinada sociedade e como o multiculturalismo pode trabalhar
para unir sociedades enquanto, ao mesmo tempo, dá livre expressão àquilo
que poderia, de outra forma, ameaçar separá-los, todas permanecem
altamente relevantes e ainda sem resolução em sua maior parte. A prioridade
de promover “a expressão cultural das minorias no contexto do pluralismo
cultural” permaneceu central no início da década de 1990, por exemplo, no
Relatório Geral de 1992-93 (XIII), no Encontro Internacional sobre
Democracia e Tolerância, em Seoul, em 1994, e na proclamação da ONU por
tolerância, em 1995, explicada pelo Diretor-Geral em seu relatório de 1994-95
como medida a promover “a ideia e, sobretudo, a prática, da tolerância
‘ativa’“. Contudo, essa ênfase não substituiu as anteriores, especialmente a
recorrente conexão entre cultura e desenvolvimento. Em abril de 1993, um
seminário foi realizado em Nova Déli sobre Identidade Cultural e
Desenvolvimento, e outro em Hanói sobre a Dimensão Cultural do
Desenvolvimento. O dia 21 de maio foi designado, em 1993, o Dia Mundial
para o Desenvolvimento Cultural, e o relatório da Comissão Mundial de
Cultura e Desenvolvimento Nossa Diversidade Criadora considerou o
desenvolvimento parte inseparável da cultura em todos os aspectos.

A Estratégia de Médio Prazo para 1996-2001 continua a enfatizar


guerras e conflitos, “para os quais sociedades de múltiplas etnias, culturas ou
religiões oferecem solo mais fértil” (p. 6). Esses conflitos, nascidos do “medo
das diferenças”, ameaçam a segurança global e a coesão social. A ideia de
que “o novo mundo que toma forma é sem dúvida muito menos homogêneo
e, portanto, muito menos ‘governável’ do que parece” (p. 6) ressalta uma
necessidade urgente de conceitos e estratégias que respondam e gerenciem
essas forças. Enquanto a presunção de que populações homogêneas são
mais fáceis de governar que sociedades plurais pode não ser tão evidente, a
observação de que conflitos podem eclodir ao longo de linhas de divisão
percebidas entre populações não pode ser ignorada. O trabalho das Nações
Unidas, de acordo com a Estratégia de Médio Prazo, é tentar trazer ordem a
uma sociedade internacional que está se tornando global e, ao mesmo
tempo, fragmentada (p. 6), notadamente com a construção e a manutenção
da paz sobre as bases de “equidade, justiça e liberdade”. A chave é
encontrar definições de “equidade, justiça e liberdade” que todos os povos
possam aceitar e com as quais possam conviver: em outras palavras,
identificar valores comuns que poderiam constituir as “fundações de um
desejo de conviver” (p. 44). A alta prioridade do Plano de Médio Prazo,
repetida inúmeras vezes, de criar “políticas públicas que ajudem a fortalecer

19
a coesão social dentro de sociedades multiétnicas e multiculturais” (p. 45) e
sua ênfase sobre a necessidade especial de focar “no gerenciamento de
relações intercomunitárias” (p. 45) representam a culminação de uma
tendência iniciada na década de 1980 e cada vez mais proeminente e
importante nos dias atuais.

Como visto acima, a conexão entre cultura e conhecimento fez da


UNESCO um organismo central na busca pela paz; a conexão entre cultura e
política ressaltou importância crucial da identidade cultural na busca por
independência política, a conexão entre cultura e desenvolvimento permitiu
que novos países construíssem poder econômico e se afirmassem no cenário
mundial, e a conexão entre cultura e democracia concentrou sua atenção em
relações culturais infra- e internacionais. Agora, com a aproximação do
século vinte e um, a conexão implícita entre cultura e segurança pode
também servir para reforçar a importância de relações interculturais positivas
como pedra angular da paz internacional, com todo o apoio financeiro e
administrativo que essa prioridade requer.

Ao discutir a segurança internacional na Estratégia de Médio Prazo, o


Diretor-Geral cuida em restringir-se ao mandato constitucional específico da
UNESCO de “construir a paz nas mentes dos homens – ao ajudar a
estabelecer as bases intelectuais e morais da reconciliação entre partes em
conflito” (p. 46). De fato, ele não precisaria ter sido tão cuidadoso: um
precedente histórico potencial para o papel da UNESCO na construção da
paz permaneceu inexplorado por décadas. O Diretor-Geral observou, em seu
Relatório de 1952, que existiam bases teóricas para que a UNESCO
participasse de atividades de manutenção da paz (embora nenhum pedido
tenha sido feito para esse serviço ainda): “o programa para 1952 inclui, pela
primeira vez, uma resolução autorizando-me ‘a pedido do Conselho
Econômico e Social das Nações Unidas, e com a aprovação do Conselho
Executivo, a auxiliar, por meio de estudos, pesquisas ou conselho de
especialistas em ciências sociais, a ação das Nações Unidas, seja para
manter a paz em áreas onde conflitos podem surgir, ou, após cessadas as
hostilidades, para restaurar a vida normal das comunidades nacionais em
áreas sujeitas a conflitos’” (p. 198). Esse é, precisamente, o tipo de ação que
poderia ser extremamente utilizado no cenário mundial contemporâneo, se
cuidadosamente planejado e coordenado com a ONU e com outros
organismos internacionais. A UNESCO já percorreu um longo caminho nos
últimos cinquenta anos, mas, apesar de certas mudanças, a continuidade de
seu mandato e missão é, também, evidente. As relações interculturais são,
de fato, um assunto de segurança internacional. Como demonstrou a história
da UNESCO, a necessidade de estudar e gerenciar situações de pluralismo
cultural em todos os níveis sociais permanecerá um foco vital e indispensável
para as atividades da Organização. Essa atenção ao pluralismo cultural
assegurará que a UNESCO permaneça proativa e relevante nas áreas mais
necessárias das relações internacionais atuais.

Enquanto se observa essa continuidade, é também necessário


reconhecer que novos desafios surgiram durante os últimos anos em relação
à extensão do processo de globalização. Esse movimento traz duas

20
potencialidades sem precedentes de expressão e inovação, e o risco de
marginalização das culturas mais vulneráveis. Aproveitar as novas
possibilidades oferecidas pela globalização e regulá-las são ações vitais para
que todas as culturas possam alcançar total reconhecimento, sem
experimentar exclusão em uma economia global emergente.

Nessa perspectiva, a UNESCO ressalta a necessidade de proteger os


patrimônios tangível e intangível em seus aspectos plurais, bem como a
diversidade de criação intelectual e artística contemporânea. Bens culturais,
de fato, não são meros bens de consumo; expressam uma visão de mundo e
a mais completa identidade de indivíduos e povos. Atenção especial é
dispensada, portanto, à exploração comercial de bens culturais, que também
são símbolos de identidade. Isso significa considerar direitos autorais e
permanecer vigilante quanto ao respeito pela propriedade intelectual e a
constituição de novos mercados globais. É igualmente importante, na visão
da UNESCO, que o desenvolvimento de novas tecnologias não enfraqueça a
diversidade cultural. Nesse aspecto, a UNESCO insiste na necessidade de
promover o pluralismo nos meios de comunicação, a diversidade linguística e
a presença de conteúdos locais no ciberespaço. Ao incluir, na definição de
sua estratégia, as novas dimensões econômica e tecnológica induzidas pela
globalização, a UNESCO está envolvida em promover a diversidade cultural,
quando enfrenta novos desafios sem apoiar o relativismo cultural ou o
fundamentalismo.

A estratégia para 2002-2007

Após duas Mesas-Redondas de Ministros da Cultura, uma sobre


“Cultura e Criatividade em um Mundo Globalizado” (UNESCO, Paris, 2 de
novembro de 1999) e o outro sobre “Diversidade Cultural: 2000-2010:
desafios do mercado” (UNESCO, Paris, 11-12 de dezembro de 2000), um
Comitê Especializado sobre “o fortalecimento do papel da UNESCO na
promoção de diversidade cultural no contexto da globalização” (Paris, 21 a 22
de setembro de 2000) e debates intensivos durante as sessões 161a e 162a
do Conselho Executivo (28 de maio a 13 de junho de 2001 e 2 a 31 de
outubro de 2001), a 31a sessão da Conferência Geral adotou unanimemente
a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural da UNESCO, em um
contexto bastante incomum: logo após os eventos de 11 de setembro de
2001. Era uma oportunidade para os Estados reafirmarem sua convicção de
que o diálogo intercultural é a melhor garantia da paz, e para rejeitar
absolutamente a teoria do inevitável choque entre culturas e civilizações.

Pela primeira vez, a diversidade cultural foi reconhecida como


“patrimônio cultural da humanidade”, cuja defesa foi considerada um
imperativo ético e prático, inseparável do respeito pela dignidade humana. O
conceito de “diversidade” reafirma que a pluralidade é o reservatório
necessário para liberdades, que o pluralismo cultural constitui, portanto, a
resposta política ao fato da diversidade cultural, e que tal pluralismo é
inseparável de uma estrutura democrática. Assim, a liberdade de expressão,
a pluralidade dos meios de comunicação, o multilinguismo, a igualdade de
acesso de todas as culturas a expressões artísticas e a conhecimento

21
científico e tecnológico, e a possibilidade de que estejam presentes nos
meios de expressão e disseminação constituem garantias essenciais de
diversidade cultural. Finalmente, políticas culturais, que são a verdadeira
força motriz por trás da diversidade cultural, deveriam alimentar a produção e
disseminação de bens e serviços culturais diversificados.

A Estratégia de Médio Prazo para 2002-2007 reafirma o mandato


institucional específico da UNESCO dentro do sistema das Nações Unidas,
“com vistas a preservar e promover a frutífera diversidade de culturas”
(Constituição da UNESCO) de acordo com o Objetivo Estratégico 8:
“Salvaguardar a diversidade cultural e encorajar o diálogo entre culturas e
civilizações”. A ampliação do processo de globalização, embora represente
um desafio para a diversidade cultural, cria as condições para a renovação
do diálogo entre culturas e civilizações, respeitando sua igual dignidade,
baseada em direitos humanos e liberdades fundamentais. Com base em
Nossa Diversidade Criadora, o relatório da Comissão Mundial sobre Cultura e
Desenvolvimento (1996); no Plano de Ação adotado pela Conferência
Intergovernamental sobre Políticas Culturais para o Desenvolvimento
(Estocolmo, 1998); e na Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural
da (2001), a UNESCO esforçar-se-á em defender o papel crucial da cultura
em estratégias de desenvolvimento nacionais e internacionais. Os três
documentos recomendam, em particular, a elaboração de políticas culturais
direcionadas à promoção da diversidade cultural para a pluralidade, o
desenvolvimento sustentável e a paz. A ideia é canalizar a diversidade em
direção a um pluralismo construtivo através da criação de mecanismos
estatais e sociais para promover a interação harmônica entre culturas. Para
alcançar tal objetivo, tanto Estado quanto sociedade civil têm importante
papel a desenvolver, promovendo a igualdade e a inclusão, não a
uniformidade, reconhecendo o senso de pertencimento e auxiliando a
afirmação, permitindo a indivíduos que desfrutem da segurança de
identidades individuais plurais dentro de uma estrutura social aceita e
democrática... A proteção da diversidade cultural está estreitamente ligada à
estrutura maior do diálogo entre civilizações e culturas e sua habilidade em
alcançar entendimento, solidariedade e cooperação mútuos e genuínos.

Desde a adoção da Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural


da UNESCO, pode ter havido muitas iniciativas internacionais para encorajar
a reflexão sobre a desejável consolidação da ação que estabelece padrões
em relação à diversidade cultural. Exemplos incluem: a mesa-redonda
“Diversidade Cultural e Biodiversidade Para o Desenvolvimento Sustentável”
no contexto da Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável
(Joanesburgo, 3 de setembro de 2002), a Cúpula sobre Francophonie
(Beirute, outubro de 2002), os Encontros anuais da Rede Internacional para
Políticas Culturais (Cidade do Cabo, África do Sul, outubro de 2002; Opatija,
Croácia, outubro de 2003; Xangai, China, outubro de 2004) e a adoção da
resolução A/RES/57/249 pela Assembleia Geral das Nações Unidas
proclamando o dia 21 de maio o “Dia Mundial da Diversidade Cultural para o
Diálogo e o Desenvolvimento” (20 de dezembro de 2002).

22
A questão de uma estrutura normativa para diversidade cultural foi
debatida por várias organizações governamentais e intergovernamentais,
bem como por associações internacionais de profissionais da cultura e por
círculos acadêmicos nacionais.

Na 166a sessão do Conselho Executivo, na primavera de 2003, os


países-membros consideraram aconselhável a elaboração de um instrumento
normativo vinculante sobre diversidade cultural.

Quatro opções foram propostas: (a) um novo instrumento amplo sobre


direitos culturais, (b) um instrumento sobre o status do artista, (c) um novo
Protocolo para o Acordo de Florença, (d) um novo instrumento para proteção
da diversidade dos conteúdos culturais e expressões artísticas. Essa última
opção foi adotada sob recomendação do Conselho Executivo.

Em sua 32a sessão (outubro de 2003), a Conferência Geral pediu ao


Diretor-Geral que apresentasse, em sua sessão seguinte (em 2005), um
relatório preliminar e um projeto inicial de uma convenção internacional para
proteção da diversidade de conteúdos culturais e expressões artísticas.

Em concordância com os procedimentos da UNESCO, um projeto


preliminar foi elaborado entre dezembro de 2003 e junho de 2004 por um
grupo de especialistas independentes de diversas áreas (antropologia, lei
internacional, economia da cultura, filosofia, etc.).

Seu trabalho, inspirado pelos princípios da Declaração Universal


(notadamente as ligações entre diversidade cultural e direitos fundamentais,
democracia, diálogo e desenvolvimento) foi conduzido com o objetivo de
reconhecer a igual importância dos aspectos culturais e econômicos do
desenvolvimento e a natureza específica de conteúdos culturais e
expressões artísticas; em outras palavras, a natureza dupla, cultural e
econômica, dos bens e serviços tratados na convenção. Consequentemente,
os especialistas sugeriram revisar o texto do título sem modificar o escopo da
convenção. O novo título tornou-se: “Convenção Internacional sobre Proteção
e Promoção da Diversidade Cultural e da Expressão Artística”.

O projeto preliminar da convenção divide-se em sete capítulos:


“Preâmbulo”, “Objetivos e Princípios Orientadores”, “Escopo de Aplicação e
Definições”, “Direitos e Obrigações dos Estados”, “Relação com Outros
Instrumentos”, “Organismos e Mecanismos Complementares”, e “Cláusulas
Finais”.

O objetivo final afirmado nessa primeira versão é fornecer a todos os


países os meios de proteger e promover a diversidade de expressões
culturais dentro e fora de suas fronteiras. Isso é necessário para auxiliar
todos os países, e em particular os países em desenvolvimento, a participar
de uma forma mais equilibrada de globalização e beneficiar-se da diversidade
de suas expressões culturais a fim de assegurar o desenvolvimento de longo
prazo. A diversidade cultural é, na verdade, a mola principal do

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desenvolvimento sustentável que os Estados devem ativar ao adotar medidas
apropriadas.

A palavra “promover” usada junto à palavra “proteger” demonstra o


desejo dos Estados de evitar a tendência de buscar refúgio em raízes, ou de
adotar formas rígidas de pensamento. Em lugar disso, consideram que a
diversidade de expressões culturais significa liberdade de expressão –
garantidora de livre criação e difusão, possibilitando a todos os povos o
benefício da riqueza das culturas do mundo.

Ao elaborar esse texto, ouvimos muito cuidadosamente observações


feitas por profissionais do campo da cultura e de várias organizações
internacionais, intergovernamentais e não-governamentais. Na elaboração
deste projeto preliminar, a Conferência Geral confiou à UNESCO o mandato
de conduzir consultas com a Organização Mundial do Comércio (OMC), a
Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento
(UNCTAD) e a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) para
garantir que a Convenção estivesse em uma relação complementar, não-
competitiva, com os instrumentos legais internacionais preexistentes.

O projeto preliminar elaborado pelos especialistas foi enviado aos


Estados-membros em julho de 2004 com um relatório a ser examinado no
primeiro encontro intergovernamental de especialistas, de 20 a 25 de
setembro de 2004.

Após esse encontro, pede-se que os países-membros enviem por


escrito seus comentários e propostas de emendas ao Secretariado. Um
segundo encontro intergovernamental terá lugar em fevereiro de 2005. Será
provavelmente seguido por um terceiro encontro para garantir que a
convenção e o relatório final estejam prontos para a 33a sessão da
Conferência Geral, em outubro de 2005, com vistas à sua adoção por esse
organismo da UNESCO. A fase de consultas a especialistas governamentais
é crucial já que os vários níveis – político, filosófico, econômico, legal – serão
explorado ao longo de debates entre os representantes dos Estados-
membros, organizações governamentais e não-governamentais e
profissionais da cultura.

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