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GRADUAÇÃO
“OS BRICS E AS TRANSFORMAÇÕES DA ORDEM GLOBAL”
João Pessoa, 28 e 29 de Agosto de 2014
Comissão Científica:
INTRODUÇÃO
Nesta seção abordaremos o contexto que possibilitou a participação de assuntos
indígenas na política global, e também quais são os aportes teóricos que oferecem alguma
abertura para o estudo de povos indígenas na área de conhecimento de relações
internacionais.
Há relativo consenso entre os pesquisadores do assunto em torno de alguns
processos que foram determinantes para a emergência internacional dos assuntos
indígenas: os fenômenos complexos derivados do processo de globalização; a formação de
um regime global sobre direitos humanos; e, a ascensão política da temática ambiental. A
partir da segunda metade do século XX estes novos temas foram incorporadas como
elementos de cômputo obrigatório na construção da sociedade civil global.
No campo científico, nas décadas de 1980 e 1990, uma série de debates teóricos
começa a oferecer elementos explicativos para a consideração de novas áreas de
conhecimento e de novos temas na interpretação das relações internacionais. O
Construtivismo, principalmente através das obras e debates publicados por Onuf (1989),
Kratochwil (1997) e Wendt (1999), ganhou relevância ao promover um debate ontológico e
epistemológico sobre o campo das relações internacionais, ou seja, questionou-se sobre a
natureza daquilo que é estudado, a composição, os conceitos e as perspectivas que
fundamentam esta área de conhecimento.
Na interpretação de Nogueira e Messari (2005), o construtivismo enquanto corrente
interpretativa da realidade internacional inovou ao negar a antecedência ontológica tanto
aos agentes quanto à estrutura, afirmando que ambos estão em permanente construção
pela interação de agentes sociais. Esta corrente interpretativa se contrapôs às perspectivas
dominantes até então neste campo de estudo, pautadas no princípio da anarquia e na
exclusividade dos Estados como atores políticos internacionais. A partir de então,
determinados autores começaram a considerar a relevância de fatores sociais e normativos
– como a cultura, os valores e as regras – para a compreensão de fenômenos globais.
As transformações sistêmicas e seu impacto à teoria foram
responsáveis, em grande medida, pela valorização de temas ligados
à cultura e à identidade no contexto da agenda de estudos de
Relações Internacionais. Os debates propostos por Huntington e
Fukuyama, e entre os dois autores, são emblemáticos nesse sentido
(JULIAO, 2008).
Estas mudanças já se processavam na política mundial há algum tempo, e foram
apenas incorporadas ao entendimento das relações internacionais. Pode-se verificar estas
transformações desde pelo menos as décadas de 1960 e 1970, com o crescimento das
chamadas conferências sociais e a emergência política de diferentes tipos de atores não
estatais, sejam de cunho econômico, social ou ambiental. Rosenau (1990) também captou
tais transformações e identificou a transição de um sistema internacional centrado nos
Estados para um sistema global multicentrado.
Estes fatores sociais diversos, que passaram a ter sua influência reconhecida em
vários âmbitos das sociedades nacionais e internacional, foram agrupados sob o conceito de
globalização. Todavia, segundo o autor Boaventura de Souza Santos (2005, 2006) a
complexidade, as múltiplas dimensões e vetores destes processos permitem afirmar que
existe não apenas uma, mas várias globalizações. Processos através dos quais uma
determinada entidade ou condição local amplia sua influência de modo a alcançar todas as
regiões do planeta, por meio de diversos conjuntos de relações sociais, políticas,
econômicas e culturais, que, portanto, fazem com que outras condições locais sejam
modificadas. Todavia, esta mútua influência entre o local e global é bastante assimétrica, no
caso dos povos indígenas. Ainda de acordo com o autor, o encontro destas forças se faz por
meio de múltiplas arenas de interação transnacional, como as redes difusas de
comunicação, os organismos internacionais e as organizações não governamentais.
Sobre este ponto vale a elaboração de uma análise, a saber: as influências do
processo de globalização sobre os povos indígenas e, em contrapartida, a capacidade de
resposta e participação dos povos indígenas nas arenas da política global. É justamente
nesta relação de forças, entre o global e o local, que está inserida a problemática dos povos
indígenas isolados.
Na perspectiva de Gabriel Fonteles (2012), “a globalização adquire, para os povos
indígenas, uma característica dialética, que apresenta riscos e oportunidades”. De acordo
com este autor, “as relações entre globalização e povos indígenas, portanto, não suscitam
apenas conflitos, mas geram também novas oportunidades de ação” já que “com o avanço
dos debates acerca das questões indígenas em âmbito internacional, os povos indígenas
ganham espaço para articulação e movimentação política, a fim de conquistar e aplicar os
direitos a eles reservados”.
O principal resultado da participação dos povos indígenas na política global foi o
fortalecimento de suas reivindicações políticas perante os Estados nacionais onde vivem:
é interessante notar que a arena internacional é receptiva para
diversos temas e questões que domesticamente os Estados não são.
O caso indígena é um deles. Dentro de fronteiras nacionais,
questões indígenas têm recorrência histórica de serem tratadas com
displicência ou preconceito. Na arena global, entretanto, em função
dos instrumentos simbólicos que as causas indígenas agregam –
Direitos humanos e meio ambiente – essas questões são
desenvolvidas mais livremente e, por vezes, atores que com elas se
envolvem tendem a favorecer os povos indígenas [...] Ou seja, as
práticas de accountability das redes transnacionais de apoio às
causas indígenas podem ter resultados práticos que favoreçam os
povos indígenas diante dos Estados” (FONTELES, 2012, p. 41-43).
Portanto, houve uma sensível mudança nas relações de força entre o Estado e os
povos indígenas após a participação destes nas arenas da política global. Entende-se,
assim, que a perspectiva teórica mais adequada para analisar estas relações de influência
entre o Estado e os povos indígenas é o pós-colonialismo, cujas referências iniciais são
atribuídas às reflexões de Homi BHABHA (1998) sobre “O local da cultura”, e a Eduard SAID
(2003), com a obra sobre “Orientalismo”. No entendimento de Souza Santos (2004), o pós-
colonialismo é “um conjunto de correntes teóricas e analíticas [...] que têm em comum
darem primazia teórica e política às relações desiguais entre o Norte e o Sul na explicação
ou na compreensão do mundo contemporâneo”.
Trata-se claramente de uma postura intelectual engajada em criticar as concepções
epistemológicas vigentes, derivadas das relações de dominação típicas do colonialismo. Os
debates mais pertinentes que surgem neste sentido levantam, justamente, a questão de
como promover esta emancipação epistemológica e política. Karena Shaw (2002) questiona,
então, como as arenas políticas globais e a área de conhecimento das relações
internacionais podem constituir um espaço relevante para as reivindicações dos povos
indígenas.
what are the conditions under which international relations might
become a meaningful political site for indigenous people in their
struggles to create futures for themselves and their communities,
which are also, simultaneously and necessarily, struggles against
colonialism, neo-colonialism, and post-colonialism? […] It is
necessary a shift if the discipline is to play an enabling role in
indigenous peoples against colonization (SHAW, 2002).
A TRANSNACIONALIDADE INDÍGENA
Por que considerar os povos indígenas como atores com características
transnacionais? E no que essa investigação implica para o campo das relações
internacionais? Os motivos pelos quais consideramos os povos indígenas como atores
transnacionais se dividem em: fatores histórico-temporais; noções de territorialidade e
identidade; formas de organização social, econômica, e, principalmente, política. Todos
estes fatores são distintos daqueles que conformam o Estado-Nação. Esta percepção da
trans-nacionalidade que caracteriza os povos indígenas implica no reconhecimento da
especificidade destes atores políticos, e traz novos elementos para o estudo de atores não
estatais na política global.
Iniciando-se pelo fator cronológico, a existência dos povos indígenas transcende
historicamente a existência do Estado-Nação. Ou seja, os povos indígenas já existiam muito
1
As principais instituições que reconheceram direitos aos indígenas são: a Resolução 105 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT), de 1957; a Constituição Nacional Brasileira, de 1988; a Resolução 169 da OIT,
de 1989; e a Declaração das Nações Unidas sobre Direitos dos Povos Indígenas, de 2007.
antes do surgimento do Estado, sobreviveram à globalização destas unidades políticas, e
seguramente continuarão a existir após o declínio, as possíveis transformações ou o
desaparecimento da entidade política do Estado-Nação e de seus sistemas2. Neste sentido,
Coates (2004) observa que “muitos povos indígenas assistiram à ascensão e à queda dos
principais impérios coloniais que os dominaram”.
É conhecimento fundamental na área de relações internacionais que o Estado-Nação
é uma entidade política criada em meados do século XVII (1648) por meio do Tratado de
Westfália. Tal acordo pôs fim a uma série de conflitos envolvendo oligarquias e setores
religiosos da Europa, e seu resultado foi um novo ordenamento político baseado no
equilíbrio de poder através dos princípios de soberania estatal, nação e território. Portanto, o
Estado-Nação, seus fundamentos, e o sistema internacional que se construiu
posteriormente refletem os anseios e ambições daqueles que dominavam a mesa de
negociações naquele contexto histórico específico.
Com a difusão deste sistema político para todo o restante do globo, através da
expansão colonial, o Estado-Nação foi imposto a muitas regiões sem que nelas existissem
os fundamentos que foram a base da criação estatal no contexto europeu. Ou seja, os
princípios de nação, território e soberania estatal não faziam sentido ou não eram os fatores
mais relevantes para a organização política e social vigente, por exemplo, na América
indígena no período pré-colombiano, ou no período imediatamente posterior.
Prova disto é que existem, principalmente na América e na África, diversos exemplos
nos quais as fronteiras territoriais atribuídas aos Estados não levaram em consideração as
dinâmicas existentes entre os povos originários locais, muito menos as alianças e conflitos
existentes entre eles. Conforme demonstrou Darcy Ribeiro (1979), o Brasil é um caso típico
no qual foi o Estado quem determinou a Nação, e não o contrário, fazendo com que muitos
dos problemas que temos na história das relações interétnicas sejam derivados desta
situação.
Desse modo, muitos povos se viram, mesmo depois das
independências dessas colônias, submetidos à autoridade de um
Estado, de um poder governamental, que não os representa, com o
qual não se identificam e muitas vezes não o compreendem
(BARBOSA, 2012, p. 11).
2
Quanto a esta tese cabem muitas clivagens, adendos e argumentos. Nos reservamos aqui ao comentário
quanto à superação da noção de que os povos indígenas são seres primitivos, antigos e fadados ao
desaparecimento. A diversidade de estudos antropológicos existentes demonstram que os povos indígenas
possuem inestimável poder de adapatação e que as mudanças nos seus modos de vida, decorrentes do contato,
não alteram sua autoidentificação como indígenas. O autor brasileiro precursor desta tese foi Roberto Cardoso
de Oliveira (1963) com as formulações teóricas sobre “A Fricção Interétnica” e a posterior corrente de estudos de
“etnologia do contato interétnico”.
território que foi posteriormente fragmentado por fronteiras nacionais, o qual se situa em
vastas regiões do Brasil, Paraguai, Argentina e Uruguai”. Assim, para poderem circular em
seu território tradicional e manter suas práticas tradicionais de mobilidade, reciprocidade e
solidificação de seus vínculos familiares, as organizações políticas dos povos Guarani
reivindicam atualmente a criação de um estatuto político que reconheça sua cidadania
diferenciada transnacional. “Em suma, a etnicidade desafia as noções dos estados
nacionais de cidadania, desenvolvimento e fronteira” (COMANDULLI, 2012, p. 23).
“Em sentido jurídico estrito, a cidadania é entendida como o “vínculo político que liga
o indivíduo ao Estado e que lhe atribui direitos e deveres de natureza política”
(ACQUAVIVA, 1998, p. 279). Neste artigo, defende-se que a ideia de cidadania precisa
também ser pensada em um contexto de reconhecimento territorial étnico transnacional,
como aponta Young (1989). De acordo com o Artigo 32 da Convenção 169 da OIT: “Os
governos deverão adotar medidas apropriadas, inclusive mediante acordos internacionais,
para facilitar os contatos e a cooperação entre povos indígenas e tribais através das
fronteiras, inclusive as atividades nas áreas econômica, social, cultural, espiritual e do meio
ambiente”.
Portanto, um dos fatores que se pretende demonstrar nesta seção é que o Estado na
América é produto de uma ação externa, do colonialismo europeu ocidental, ação que foi
continuada após as independências coloniais, e obviamente não corresponde às formas de
organização política, de territorialidade e de identidade dos povos indígenas (BARBOSA,
2012).
Além do fator cronológico, outros elementos centrais que demonstram a
transnacionalidade dos povos indígenas são as noções indígenas de territorialidade e de
identidade. Infelizmente, não podemos nos estender na análise destes fatores
antropológicos. Porém, especial atenção deve ser dada à análise das formas de
organização social e exercício da atividade política entre os indígenas. Como demonstrou
Clastres (2003), a partir do estudo de povos originários de diferentes continentes, a
atividade política entre os indígenas é baseada em princípios de liderança e de natureza do
poder político totalmente distintos daqueles estabelecidos pelo contrato social entre o povo e
o príncipe. Vejamos primeiro o aspecto da política interna, entre os indígenas de um mesmo
grupo. Trata-se do estudo da “dimensão política da Etnologia das sociedades arcaicas”, com
a qual se busca apreender as relações políticas e tal como elas se ligam em outras culturas.
Existe agora uma quantidade suficiente de textos e descrições para
que se possa falar de uma Antropologia Política, mensurar seus
resultados e refletir sobre a natureza do poder, sobre suas origens,
enfim, sobre as transformações que a história lhe impõe segundo os
tipos de sociedade onde ele se exerce (Clastres, 2003).
Todavia, por mais que a Antropologia Política esteja consolidada como área
pertinente e específica de conhecimento, ao buscarmos trabalhos que partem de uma
perspectiva interdisciplinar, relacionando a Antropologia com as Relações Internacionais o
que encontramos é um campo ainda muito rarefeito, preenchido por alguns poucos artigos e
raros trabalhos de dissertação e teses ainda não publicadas. Esta lacuna se deve à
ausência de núcleos de estudos ou de uma agenda de pesquisa institucionalizada sobre a
importância dos povos indígenas para as relações internacionais. Já em países da Europa,
nos Estados Unidos e no Canadá, encontram-se institutos de pesquisa sobre temas latino-
americanos que realizam um sólido trabalho de produção e publicação científica sobre a
atividade política de povos indígenas no âmbito global3.
Para um país como o Brasil, seus povos originários já deveriam constituir um fator de
clara relevância para nossas relações internacionais. Nesta pesquisa buscamos articular o
que há de aprendizado político no contato interétnico entre os povos indígenas e a
sociedade envolvente. Em, outras palavras, da mesma forma que os povos indígenas
buscaram participar da política internacional aprendendo sua dinâmica e participando de sua
institucionalização, a sociedade nacional e a política internacional também devem buscar
aprender sobre a organização e o funcionamento da política entre os povos indígenas.
Segundo Clastres (2003), os povos indígenas são “sociedades contra o Estado”, pois
sua organização política se estrutura em uma noção de autoridade fundamentada em trocas
simbólicas entre o chefe e os demais membros da comunidade, de tal forma a inviabilizar o
nascimento do ethos estatal (JULIAO, 2012). Nesta perspectiva, mesmo em etnias
diferentes e distantes há a semelhança de que o poder político entre os indígenas não está
fundamentado em contratos sociais nem no monopólio do uso legítimo da força:
o político se determina como campo fora de toda coerção e de toda
violência, fora de toda subordinação hierárquica, onde, em uma
palavra, não se dá uma relação de comando-obediência. Esta aí a
grande diferença do mundo indígena (CLASTRES, 2003).
3
Entre os quais: Assies (1994), Battiste (2000), Brysk (2000), Coates (2004), Corntassel (2008), Huhndorf
(2009), Mato (2000), Maybury-Lewis (2002), Niezen (2003), Shaw (1999, 2002), Smith e Varese (1996), Smith
(1999), Smith e Ward (2000), Van Cott (1993), Varese (1996), Wilmer (1993).
uma das evidências de que a atividade política interna desempenhada por povos indígenas,
conceitualmente e de fato, não segue os padrões estabelecidos para a atividade política
interna dos Estados e entre Estados.
Porém, ao passarmos para a análise da política externa dos povos indígenas, no seu
relacionamento com a política nacional e internacional, veremos que estes atores tiveram
que aprender e incorporar alguns procedimentos da política institucionalizada nos moldes
ocidentais. Ao analisar o conceito de “diplomacia indígena”, Taís Julião (2012) ressalta que
a diplomacia é uma atividade política bastante antiga que remonta aos contatos entre
civilizações na Antiguidade. Todavia, desde o advento do Estado Moderno, a atividade
diplomática passou a ser designada como um mecanismo de Estado voltado a organizar
suas relações com os demais entes estatais. Nessa perspectiva, falar em diplomacia
indígena pode parecer equivocado, já que a organização política dos povos indígenas não
está assentada na estrutura estatal. A autora questiona, então: “como compreender o
conceito de diplomacia advindo de uma organização política que não faz uso da linguagem
do Estado?”.
Podemos argumentar que a natureza e o alcance da participação
indígena estiveram – e ainda estão – condicionados, em grande
medida, à adequação a linguagem-padrão da participação política
nos espaços institucionalizados globais. Seria, portanto, dessa
disciplina imposta aos povos indígenas para participar das
discussões, das negociações e dos processos decisórios que
envolvem o reconhecimento de seus direitos em âmbito global que
nasce a diplomacia indígena. Em outras palavras, a diplomacia
indígena representa, em última instância, o esforço necessário dos
povos indígenas para que o diálogo aconteça; porém, no idioma
político “do branco” (JULIAO, 2012).
Por estes motivos, o estudo crítico da política indigenista estatal brasileira, e dos
posicionamentos ideológicos que nortearam sua trajetória de atuação, são referências
indispensáveis para a compreensão e tratamento de assuntos indígenas. Entre as
instituições que lidam atualmente com o assunto destacam-se: a Aliança Internacional para
Proteção dos Povos Isolados; o Comitê Indígena para Proteção dos Povos em Isolamento
Voluntário e Contato Inicial da Amazônia e Grande Chaco (CIPIACI); o Grupo de Ação Bi-
Nacional Brasil-Peru para a Proteção dos Índios Isolados; e a Organização do Tratado de
Cooperação Amazônica (OTCA).
O avanço persistente da sociedade envolvente nos remete às seguintes perguntas:
Por que estudá-los e o que escrever sobre grupos indígenas que vivem em regiões remotas
e que ainda não tiveram ou buscam evitar o contato com a sociedade envolvente? Quais
são os possíveis processos históricos que os levaram a esta condição? Quais as raízes
étnicas e linguísticas destes povos? Eles permanecerão fugindo do contato mesmo com a
aproximação cada vez maior da sociedade dominante?
Fato é que determinadas etnias adaptaram-se de alguma forma ao contato com os
diversos âmbitos da sociedade envolvente (interagindo com agentes externos, dentro e fora
de sua localidade). Já outras etnias encontram-se isoladas e evitando o contato com a
sociedade devido às decorrências intrínsecas ao contato. Muitos destes povos, já
localizados e identificados como isolados, estão mapeados por órgãos indigenistas do Brasil
e de outros países sulamericanos. Porém, possuem uma série de especificidades
desconhecidas e algumas características sobre as quais se têm relativa articulação de
informações como sua localização geográfica, os grupos étnicos que compõem seu entorno,
quais são seus deslocamentos mais freqüentes, etc. Estas informações viabilizam
estimativas e algumas identificações precisas de quais são suas raízes étnicas e
lingüísticas, conforme consta no estudo etnográfico de Antenor VAZ (2011).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sem a intenção de concluir o assunto, a tentativa aqui é de relacionar os principais
aspectos abordados no decorrer do texto. Para tanto, tomemos como base as principais
questões levantadas no início: É possível garantir o direito de autodeterminação dos povos
indígenas isolados? Ou seja, como os Estados e as instituições responsáveis devem atuar
para assegurar que estes povos permaneçam sem contato com as sociedades nacionais
enquanto esta for sua opção? E, por detrás destas questões, há uma outra mais
abrangente: É possível impor limites reais, intransponíveis ao avanço da exploração
capitalista a partir da necessidade de preservação ambiental e de proteção dos povos
indígenas?
Nossa hipótese é a de que o isolamento e a fuga do contato com as sociedades
nacionais configuram uma opção e uma atitude política de determinados povos indígenas
em busca de assegurar sua sobrevivência conforme seus modos de vida, cultura, satisfação
de necessidades, organização social e política. Ou seja, o isolamento não é ocasional, ou
simplesmente geográfico, mas é um isolamento voluntário, deliberado, que expressa a luta
destes povos indígenas pelo seu direito à autodeterminação. Seu caráter transnacional e
sua localização próxima às fronteiras exigem a efetivação de políticas de proteção que
superem os limites políticos e territoriais dos Estados.
Todavia, nosso principal argumento é o de que esta “proteção à distância” precisa
ser acompanhada da produção consistente de conhecimentos sobre o contato interétnico
entre povos indígenas e a sociedade envolvente, tão importante na formação e na história
do Brasil, através do fomento a programas de pesquisa e núcleos de estudos político-
antropológicos, formação de linguistas e etnólogos, de modo a informar a sociedade e
capacitar as instituições competentes, nacionais e internacionais. Construindo, assim,
aparatos e metodologias necessárias para aprimorar a interação e o intercâmbio entre a
sociedade envolvente e os povos indígenas já contatados.
Neste caso, fez-se referência a uma instância multilateral de cooperação oficial,
como é a OTCA com sua base no TCA, representando o maior e mais importante processo
de cooperação estatal na região. Mas também se considerou necessário levar em conta
outro nível da cooperação. Nesse nível se fez referência a uma organização, a COICA, que
integra organizações indígenas regionais de todos os países amazônicos e coordena
propostas, políticas e ações no nível local, nacional e internacional, e que por tanto tem que
ser definida como organização internacional.
Analisar o vínculo entre estes níveis resulta necessário para entender os alcances e
as limitações da cooperação amazônica, a qual visa alcançar os objetivos comuns que
tendem à defesa do território e ao desenvolvimento sustentável. Pode se dizer que a
intensidade da cooperação multilateral do TCA e a OTCA tem sido muito variável.
O período que se estende da assinatura do TCA até os dias atuais caracteriza-se
pela descontinuidade no engajamento dos países, alternando períodos de inatividade com
fases de declarada renovação do compromisso político. Essa variabilidade da intensidade
da cooperação amazônica liderada por esse processo interestatal oficial tem reflexos em
processos não estatais que questionam políticas e decisões ou se integram sobre objetivos
comuns, sendo uma variável importante na avaliação do rendimento institucional.
A criação da COICA em 1984 representou um questionamento ao processo de
integração entre os Estados amazônicos e reflete as falhas e lacunas deixadas pelo
processo oficial. A inserção dessa organização nos mecanismos institucionais criados pelo
TCA em 1978 e pela OTCA a partir de 2002, ajuda a entender que a cooperação é um
processo que inclui vários atores das relações internacionais e que a cooperação precisa de
mecanismos de diálogo não somente entre iguais, pois as desarticulações entre um nível e
outro são refletidas nas limitações dos mecanismos institucionais criados. Isto é muito mais
evidente no contexto amazônico.
Desta forma, por se tratar de uma questão paradigmática, a preocupação e a
construção de conhecimentos acerca dos povos indígenas isolados pode ser útil não apenas
para o estudo e as políticas direcionadas a povos em isolamento voluntário, mas também
para a ampla gama de povos indígenas com contato estabelecido e frequente, muitos dos
quais já possuem diversas formas próprias de interação cultural, econômica e política com
as sociedades nacionais e internacional. Em suma, o objetivo geral desta pesquisa é
estudar os povos indígenas para compreender e aprimorar o relacionamento com as etnias
contatadas e proteger efetivamente as etnias que não desejam interagir com as sociedades
nacionais.
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