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Por uma teoria latino-americana das Relações

Internacionais: contribuições dos Estudos de Área

Marina Bolfarine Caixeta1


Resumo
Este artigo apresenta os Estudos de Área e as Relações Internacionais como dois
campos científicos que foram marcados pelo contexto político do pós-II Guerra
Mundial de disputas das potências por áreas de influência. A América Latina e Caribe
figurou em ambos como objeto de estudo sem grande participação na produção de
conhecimento. O giro decolonial, contudo, trouxe contribuições inestimáveis para o
conhecimento científico na região, com destaque para as ciências humanas, uma vez
que reivindica sua maior autonomia científica e política e valoriza o desenvolvimento
de perspectivas plurais e próprias nos estudos científicos. Defende-se na discussão aqui
proposta que as Relações Internacionais devem se apropriar do giro decolonial rumo a
uma teoria latino-americana para o campo. A partir do conceito da geopolítica do
conhecimento (colonialidade do saber), com respaldo de alguns autores e correntes
teóricas consagrados nas RI - construtivismo, teoria crítica - reconhece-se a importância
da contextualização teórica e do enraizamento das teorias adotadas, em detrimento da
importação de teorias estrangeiras, permeadas de visões de mundo alheias aos
problemas e identidades latino-americanas.

Palavras-chave: Estudos de Área; Teoria das Relações Internacionais; América Latina


e Caribe; giro decolonial; geopolítica do conhecimento; colonialidade do saber


1
Bacharel em Relações Internacionais pela UCB, mestre em cooperação internacional (CEAM/UnB) e
doutoranda em ciências sociais (ELA/ICS/UnB), sua pesquisa centra-se na cooperação internacional para
o desenvolvimento (cooperação Sul-Sul). O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq,
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil.

1
Introdução

As Relações Internacionais requerem produção teórica própria dos vários locais


a partir do qual elas são estudadas. Como campo acadêmico-científico, ela está
relacionada à produção de conhecimento e à formação de cientistas e profissionais para
o mercado. Por estar relacionado tanto à compreensão dos fenômenos internacionais,
quanto à informação que subsidia a tomada de decisão dos povos e países, este campo
de estudo deve envolver tantas perspectivas quantas identidades diversas houver.
Em especial no tocante à produção teórica dessa área, de grande relevância se
faz discutir a geopolítica do conhecimento. Como uma perspectiva crítica às teorias
com pretensões neutras e de abrangência universal, ela revela a hierarquia de poder
político por trás da produção científica, o monopólio epistemológico do Atlântico Norte
sobre as regiões colonizadas - eis o conceito de ‘colonialidade’ que explica as
reverberações atuais do findo sistema colonial -, além da íntima relação entre ciência e
capitalismo, responsável pela influência mútua entre saber e poder.
Para Cervo (2008), há grande problema na adoção de teorias alheias à realidade
empírica em que são instrumentalizadas. Dentre os riscos oferecidos pelas teorias de
pretenso alcance universal está a negligência da natureza explicativa dos fenômenos
em detrimento da abstração que neutraliza as diferenças culturais. “Essa dinâmica de
construção de teorias reivindica, racionalmente, a multiplicação de formulações [...] de
tal sorte que não permaneçam alguns povos ou nações à mercê de outros no terreno da
formação acadêmica e decisões políticas” (CERVO, 2008; 3).
Propõe-se uma aproximação entre as reflexões sobre a produção teórica das
Relações Internacionais (RI) e os Estudos de Área (EA). Ambos os campos emergem
no cenário do pós II Guerra Mundial em que a ciência esteve permeada de interesses
políticos, marcando uma produção científica parcial e imperialista. Para tanto, deve-se
aproveitar as lições deixadas pelos EA à região da América Latina e Caribe para se criar
uma identidade latino-americana e caribenha na comunidade científica das Relações
Internacionais com vistas à produção teórica útil e situada. Assim, transita-se de um
cenário em que a região se constituía um mero objeto de estudo e de fornecimento de
dados empíricos para o centro científico produtor de teorias universais, para outro em
que assume posição de sujeito ativo.
Deve-se reconhecer, para tanto, a importância de certo acumulado histórico das
ciências sociais da região para o desenvolvimento de programas de pesquisa científica

2
e de formação acadêmica em Relações Internacionais. Isso, para que fiquem atentos à
pluralidade teórica e à identidade regional latino-americana em meio às análises dos
fenômenos internacionais, comuns a tantas perspectivas quanto a lugares de
representação e enunciação existirem. Notadamente as contribuições do ‘giro
decolonial’ promovidas pelo Grupo Modernidade/Colonialidade (GMC) na década de
1990 oferecem uma clara identificação latino-americana com relação à crítica pós-
colonial iniciada no Oriente.
Formado por intelectuais latino-americanos situados em diversas
universidades das Américas, o coletivo realizou um movimento
epistemológico fundamental para a renovação crítica e utópica das ciências
sociais na América Latina no século XXI: a radicalização do argumento pós-
colonial no continente por meio da noção de “giro decolonial”. Assumindo
uma miríade ampla de influências teóricas, o M/C atualiza a tradição
crítica de pensamento latino-americano, oferece releituras históricas e
problematiza velhas e novas questões para o continente. Defende a
“opção decolonial” – epistêmica, teórica e política – para compreender e
atuar no mundo, marcado pela permanência da colonialidade global nos
diferentes níveis da vida pessoal e coletiva. (BALLESTRÍN, 2013; 89)

Este artigo defende que para ser importante para a humanidade, a Ciência deve
contar com diferentes referenciais e visões de mundo. Assim, conta-se com a abertura
do campo científico a outros locais e atores-produtores de conhecimento, numa
pluralidade epistemológica, reflexo da diversidade cultural que marca os campos
ontológicos estudados. Sendo assim, não se deve importar conceitos e teorias vindos de
fora sob o risco de ser alienado da própria condição soberana no cenário político.
Concebe-se, por fim, que teorizar a partir da América Latina e Caribe seja
quebrar determinados cânones do pensamento moderno do Atlântico Norte e inovar os
estudos de Relações Internacionais. Para tanto, deve-se propor novas categorias
analíticas, conceitos científicos, objetos de estudo, métodos de pesquisa e, em especial
teorias. Elas resultam em interpretações específicas acerca dos fatos, atos e fenômenos
internacionais, elas são importantes. Isso implica em que a produção teórica advinda de
uma “escola das RI latino-americana” não se constitua somente em perspectivas
analíticas conhecidas e utilizadas neste contexto, mas que seja capaz de levar
contribuições a outros contextos em benefício da pluralidade de pensamento, da
abrangência das comunidades científicas e da evolução científica em benefício geral.

1. Estudos de Área e Relações Internacionais: ciência e política

3
O que os Estudos de Área tem a ver com as Relações Internacionais? Sabe-se
que ambos os campos científicos foram marcados pelos fins políticos das nações mais
poderosas no pós II Guerra Mundial. Sobre forte influência da guerra político-
ideológica da Guerra Fria, as RI, no âmbito da ciência política, e os EA, nas ciências
sociais, tiveram suas bases científicas constituídas e seus centros de pesquisas
institucionalizados, estes últimos mais no caso dos EA, para servir aos propósitos
imperialistas2 do bloco capitalista. Já no fim do século XX, falava-se na emergência de
um país hegemônico3 representada pelos Estados Unidos.

O contexto político dos EA e das RI

Deve-se reconhecer o conhecimento como importante recurso de poder. Ele


propicia maior margem de ação para os atores internacionais - aqui vale a máxima
popular ‘é preciso conhecer para dominar’.
No que concerne o sistema internacional, que ainda está muito baseado na figura
do Estado, deve-se reconhecer que os governos são aqueles que conduzem tomadas de
decisão internacionalmente e que, ao mesmo tempo, financiam, na sua grande maioria,
as pesquisas científicas. Sendo assim, a conversão do saber científico em algo como
“conhecimento útil” é naturalmente esperada. Isso não implica, necessariamente, tornar
a ciência subserviente a certos propósitos desumanos excludentes, ou mesmo a certos
projetos privados que impliquem o sofrimento de outros. Isso seria atentar contra a
missão da ciência de contribuir para a humanidade, no seu coletivo.
O binômio saber-poder representa a relação íntima entre o conhecimento
científico e a prática política no mundo atual. Isso pode ser expresso na definição de
poder, que assume duas acepções: o poder brando e o bruto. O primeiro tipo de poder,
sem imediatas ameaças a paz, está atrelado à cooperação, à definição de agenda e à
atração em torno de suas instituições, ideais, valores, cultura e descobertas. O segundo
tipo, pode derivar-se do primeiro e está relacionado à iminente coação e intimidação do
outro pelo uso da força, da sanção, dos pagamentos e subornos, segundo Nye (2004).


2
Osório (2018) ao tratar do imperialismo nas Relações Internacionais explica que a evolução conceitual
que tem em Lênin, no século XX, o apogeu de sua problemática, se transforma, no pós II Guerra Mundial
e no neoliberalismo, denominados de ‘atualidade pós-fordista’ na sua atual configuração: intimamente
atrelado ao capitalismo, por meio do Estado.
3
Castro (2012) conceitua hegemonia como exercício de hiperpoder multidimensional em escala global,
o que pressupõe reconhecimento de tal capacidade por parte dos demais Estados; se materializa
primeiramente na forma da consolidação da liderança e, posteriormente, da supremacia em determinadas
áreas, com forte presença em mais de uma área.

4
Ambos podem se complementar e/ou revezar-se nos cálculos de estrategistas políticos
diante da sua percepção da cena internacional.
Devido à vinculação da capacidade econômica dos países a investimentos na
produção de conhecimento, a ciência é parte de um processo cíclico entre poder político
e poder econômico. Sendo assim, a assimetria política é causa e ao mesmo tempo
consequência da desigualdade de produção científica. Se num determinado momento,
o poder político propicia o incremento do poder econômico e, por conseguinte os
investimentos de ciência e tecnologia de um Estado; em outro, maior produção de
conhecimento e inovação tecnológica propicia maior acumulação de capital e influência
política sobre os demais atores.
Num cenário realista, em vez de cooperação, a concorrência entre os atores era
o comportamento mais esperado. Neste contexto, a produção científica das Relações
Internacionais esteve dominada pela teoria realista que partia do pressuposto de atores
racionais e estimulava comportamentos egoístas dos Estados no cenário internacional
anárquico. Os Estudos de Área, por sua vez, constituídos a partir da
multidisciplinariedade, configurou seu universo de pesquisa a partir das demandas
‘pátrias’ de estudar e conhecer o “outro”, para melhor saber como exercer influência.
Os EA dividiram o mundo em ‘partes geográficas’ que se distinguiam pelas suas
diferenças locais para melhor gerar conhecimento sobre vastas extensões do mundo.
Enquanto os objetivos dos norte-americanos falavam em questões geopolíticas nos EA,
os europeus (Grã-Bretanha em 1944) faziam alusão à ideia de que era preciso conhecer
as línguas e culturas dos orientais, dos eslavos do leste europeu e da África com o
objetivo de formular recomendações para a evolução desses povos (RAFAEL, 1994;
WALLERSTEIN, 1997; SZANTON, 2004).
As RI, a seu modo, buscavam compreender os elementos da política externa, da
diplomacia e dos fenômenos internacionais para poder melhor instrumentalizar a
tomada de decisão dos atores governamentais. Numa concepção racionalista e
materialista, os Estados calculam os custos e benefícios das suas ações com forte peso
da compreensão sobre poder e força - os Estados definem seus interesses em termos de
poder e estão sempre prontos a usar sua força uma vez que há uma preponderância da
preocupação com a segurança em sua agenda internacional (SARFATI, 2005).

As lições provenientes dos Estudos de Área

5
Wallerstein (1997) explica o surgimento dos Estudos de Área no período de
1850-1914 nos 5 países: Grã-Bretanha, França, Alemanha, Itália e Estados Unidos.
Pode-se atentar para 3 diferentes clivagens: 1) o passado-presente entre a história
ideográfica e as ciências sociais nomotéticas (economia, ciência política e sociologia)
que estavam centradas no mundo ocidental; 2) o ocidente-oriente, sendo que o mundo
não-ocidental era estudado pela antropologia que o tratava pelos adjetivos
tribais/primitivos/exóticos (no bojo da etnologia) e as grandes civilizações - China,
Japão, Índia, Pérsia e mundo árabe-islâmico – eram estudadas juntamente com as
antigas civilizações grega e romana (no bojo dos estudos clássicos); e 3) a separação
entre Estado, mercado e sociedade civil, o que fez surgir as fronteiras entre ciência
política, economia e sociologia, respectivamente, e daí a realização de estudos empírico
em outros contextos, interessados nos contrastes e nas comparações.
Com base no relatório “As regiões do mundo nas ciências sociais”, da SSRC
(Social Science Research Council) dos Estados Unidos em 1943, defende-se os EA a
partir de uma perspectiva geopolítica. Com a necessidade de cientistas sociais
especializados nas distintas ‘regiões’, almejava-se suprir um existente déficit curricular
e metodológico das academias norte-americanas. Com a necessidade de profissionais
preparados para defender a pátria, buscava-se superar a baixa capacidade dos EUA em
se envolver em conflitos. Pretendia-se, ainda, reverter o quadro de cientistas
generalistas, com o fim de que fossem mais enraizados com as realidades sociais
estudadas. Isso era parte do universo de parca utilização de dados empíricos e de baixo
conhecimento de locais e idiomas estrangeiros nas ciências sociais do país.
O cientista norte-americano, Robert Hall, em 1947, em “Estudos de Área:
considerações sobre suas implicações para as ciências sociais” (apud WALLERSTEIN,
1997) cita 3 razões para a institucionalização dos estudos de área nos EUA: dar
continuidade e conectar as ciências sociais com as áreas das humanidades tradicionais;
promover centros interdisciplinares que permitiriam o diálogo acadêmico
transcendendo as disciplinas e contribuir para os treinamentos de cidadãos que
trabalhariam em prol do interesse nacional dos Estados Unidos. Assim, os EA
contribuiriam com as disciplinas tradicionais, sem, contudo, alterar a estrutura
disciplinar vigente.
Em 1952, o boletim da UNESCO sobre as ciências sociais no nível internacional
foi dedicado aos Estudos de Área. Nele, o pensador francês Duroselle traz a crítica ao
problema dos metodológico deste conhecimento e faz uma denúncia quanto ao objetivo

6
deste campo de estudos, considerando-o menos uma contribuição para as ciências
sociais do que para os objetivos de política externa de certas nações. Não muito
diferente, o estrategista político norte-americano Morgenthau assinala como as áreas
estudadas no bojo dos EA partem dos interesses políticos estatais.4
As maiores críticas a este campo de estudos, contudo, emergem na década de
1960. Intensificada pelos movimentos sociais de 1968, com a Guerra do Vietnã, os EA
entram numa fase crítica ao serem acusados de “colonialismo científico”. Algumas das
críticas são: tratava-se de um movimento político da academia à serviço dos EUA na
Guerra Fria; eram idiográficos, ou seja, baseavam-se na descrição completa de
determinado caso, em vez de nomotéticos, produto de conhecimento generalizado -
altamente descritivos e incapazes de criar teorias sociais; eram produzidos sobre
‘outras’ nações, mas sempre em benefício da ‘nossa’ nação, sem a perspectiva da
alteridade. Além disso, com a globalização, os países se questionam sobre o fato de as
Ciências Sociais se centrarem nas particularidades das regiões/países quando deveriam
cobrir fenômenos internacionais. Por último, a vocação interdisciplinar coloca os
Estudos de Área vassalo das disciplinas tradicionais, pois neles nota-se a falta de
marcos teórico-metodológicos próprios para esses ‘novos objetos’ (RAFAEL, 2014).
Adicionalmente, Rafael (2014) aponta para o fato de que os EA detém um
“imaginário imigrante”. Ao tratar os pesquisadores estrangeiros como fontes de dados
empíricos, suscitam uma lógica de integração-cooperação científica baseada na
subordinação, uma vez que os diálogos entre acadêmicos do Norte e do Sul global
classificam-nos entre teóricos e empiristas, respectivamente, sendo os países do Sul
utilizados como ‘laboratórios’ de pesquisas sobre as quais não ganham nem mesmo os
devidos créditos.
Na compreensão sobre as regiões, não está compreendido o conhecimento
literário e musical dos estudos clássicos nem a cultura popular contemporânea, mas
somente a ciência política e a história. Isso levanta algumas questões: então o que são
as ciências sociais e para que servem? Afinal quem é o “nós” que fala? A ciência deve
ser fruto do imperialismo ou tecer uma crítica ao sistema? Os Estudos de Área


4
Em 1958, o Ato de Educação e Defesa Nacional (National Defence Education Act) autorizou a criação
de centros de Estudos de Área nas universidades nos EUA por mais de 20 anos. Este é foi o marco para
a internacionalização de faculdades, programas de treinamento e bibliotecas até hoje vigentes, conforme
explica Wallerstein (1997).

7
explicitam a existência das “teorias-mercados”, que são produzidos no centro do
sistema e adotados pela periferia (RAFAEL, 2014).
Os Estudos de Área caem em descrédito no nível internacional com um
escândalo que veio a público no Chile. A Operação Camelot em 1964 evidenciou a
crise ética da produção das ciências sociais ao serem ‘úteis’ e atenderem às demandas
governamentais. O Departamento de Defesa se envolve com o financiamento de
pesquisas provenientes dos EA para estudar movimentos insurgentes prevendo
pesquisas de campo em vários países - 12 são na América Latina e Caribe e outros em
regiões de conflito. O esquema saiu do controle quando um dos cientistas percebeu o
propósito das pesquisas e realizou a denúncia sobre uso dos resultados das pesquisas
sociais pelo serviço de inteligência do governo dos EUA (WALLERSTEIN, 1997).
No entanto, dentre alguns resultados positivos dos Estudos de Área, citam-se:
eles serviram de base para os estudos feministas, étnicos e culturais, sobrepondo-se à
tradicional etnografia e aos estudos Orientais; eles fizeram com que disciplinas
ocidentais se abrissem para considerar outros dados e pontos de vistas ao estabelecerem
maior diálogo entre os centros de pesquisa; eles questionaram as divisões sacrossantas
das disciplinas, cuja preocupação era mais técnica e metodológica do que baseada nos
objetos de estudo; eles aumentaram os estudos de línguas e culturas nas universidades;
eles sofisticaram os instrumentais teóricos e metodológicos; eles resultaram em
especializações interdisciplinares com abordagens mais interculturais e, também,
dedicaram-se ao papel da universidade num contexto global multicultural, em que era
preciso internacionalizar as agendas de pesquisa e formar redes científicas.
Assim, os EA apontam para a importância da ética na ciência. Uma ciência
engajada e instrumentalizada pela prática social e política não implica colocá-la à
serviço de interesses egoístas de Estados, empresas e demais grupos sociais em
detrimento de outros. Dentre as lições deixadas pelos EA está o avanço científico em
termos de interdisciplinariedade para o que converge distintos métodos, técnicas,
conceitos e teorias, diferentemente da multidisciplinariedade que caracteriza as RI que
apenas justapõem distintos campos científicos (jurídico, político, historiográfico,
econômico, etc).

Estudos de área nas Relações Internacionais

8
Diante disso, poder-se-ia perguntar sobre os benefícios e malefícios de uma
eventual convergência entre os EA e as RI. Criados no mesmo contexto5 e partindo de
objetivos comuns (ciência à serviço da tomada de decisão), pode-se tirar lições das
críticas feitas aos EA para se buscar um caminho coerente dos dois campos com os
propósitos humanitários.
Importante esclarecer que os EA são aqueles estudos versados sobre as distintas
‘regiões geográficas’ (áreas designando regiões) e as RI interessam-se pela formação
dessas regiões como resultado de fenômenos internacionais estudados 6. Enquanto os
EA trataram das regiões a partir de uma perspectiva geopolítica, pois são de interesse
para a política externa, as RI se encarregam da expressão ‘integração regional’ para
designa o processo pelo qual os territórios pouco ou nada conectados uns aos outros
formam pouco a pouco um conjunto regional distinto do resto do mundo - esse conjunto
é mais do que a simples soma de suas partes. Muitos especialistas, conforme explica
Richard (2014) admitem dois tipos de integração regional: a ‘integração formal’, que é
a menos difícil de definir, já que os países podem entrar em um acordo regional e formar
um espaço comum, e a ‘integração funcional’, chamada por vezes de ‘real’ ou
‘aprofundada’, uma vez que se trata do processo pelo qual as interações entre os
territórios contíguos crescem a tal ponto que terminam por ser mais intensas no interior
dessas zonas do que com seu exterior.
Ao comentar sobre a relação das Relações Internacionais e os Estudos de Área
no início do século XXI, Herz (2002) lamenta sua não evolução no Brasil. Ao não
acompanhar as tendências no centro global, o país teria ficado para trás inclusive em
relação à sua internacionalização. Exceção para os temas da integração latino-
americana, haja vista a criação do Mercosul em fins dos anos 1980.
A tendência à articulação entre o campo de relações internacionais e os
estudos de áreas geográficas específicas, observada nos Estados Unidos e
em outros centros, não ocorreu no Brasil, expressando uma postura mais
geral da comunidade acadêmica e deixando uma lacuna importante quanto
ao nosso conhecimento sobre outras regiões. No entanto, o processo de
integração latino-americano tem favorecido a criação de centros que se
dedicam a esquadrinhar a região, particularmente no sul do país. Algumas


5
É preciso ressalvar que a criação desta área de estudos autônoma se deu na Inglaterra após a I Guerra
Mundial; no entanto, utiliza-se aqui a II Guerra Mundial como marco de consolidação deste campo,
quando vivenciou a primeiro debate paradigmático: dos realistas e dos idealistas nos EUA, conforme
explica Smouts (2004).
6
Trata-se aqui não apenas de região como um conceito geográfico, mas como um espaço resultado da
integração regional. Richard (2014) mostra certa crítica sobre o uso indiscriminado dessa designação de
‘regiões geográficas’ para qualquer ‘formação regional’ que não esteja baseada em áreas contíguas, sem
grandes esclarecimentos conceituais e requisitos analíticos.

9
análises sobre a aproximação com a África foram realizadas e uma área de
estudos africanos foi criada com pontos de interseção com a bibliografia
sobre raças (Mourão,1991; Gonçalves, 1987). Após o fim da Guerra Fria,
trabalhos sobre os países socialistas da Europa Oriental e a China vêm sendo
desenvolvidos. O diálogo entre especialistas em relações internacionais
e pesquisadores que se voltam para estudos comparados também tem
sido rarefeito, limitando-se a trabalhos sobre a América Latina, em
particular sobre os processo de democratização na região. (HERZ, 2002;
25 destaque nosso)

Quanto ao crescimento importante da produção brasileira no campo das


Relações Internacionais a partir da década de 1990, Herz (2002) apresenta um
levantamento sobre os estudos sobre a região da América Latina e Caribe. No tocante
a teses e dissertações apoiadas por instituições estrangeiras no período de 1982-1999,
das 210 teses produzidas 41 tratavam da região da América Latina e Caribe, sendo 23
sobre a integração latino-americana, 11 sobre as relações interamericanas e 7 sobre a
política externa e relações internacionais na América Latina. 7
Adicionalmente, na década de 1980, o Grupo de Trabalho sobre Relações
Internacionais e Política Externa da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa
sobre Ciências Sociais (AMPOCS) traz 4 temas dedicados à região latino-americana,
em ordem decrescente de trabalhos apresentados: política externa e relações
internacionais da América Latina; política externa de grandes potências; outros
processos de integração e cooperação regional; e integração latino-americana e
cooperação regional. Nota-se, naquele período, algum interesse brasileiro por ‘estudos
de área’, ou seja, pelo entorno geográfico brasileiro e pelos países centrais do sistema
internacionais.
Observa-se, entretanto, no Brasil atualmente, a relevância de certas regiões para
as pesquisas científicas. Assim, tanto no campo das RI (Ciência Política), quanto de
outras disciplinas - Ciências Humanas (ciência política; geografia; sociologia; história)
e Ciências Sociais Aplicadas (direito; economia), evidencia-se a existência de linhas de
pesquisa dedicadas às distintas regiões geográficas, seja conectadas a anseios próprios
dos campos de estudos, seja devido ao significado dessas regiões para o país.
Pesquisa realizada no diretório dos grupos de pesquisa do Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (DGP/CNPq) com dados de 2016, revela


7 A autora explica sobre a tabela em que apresenta tais dados “o investimento das agências
governamentais e fundações privadas, em particular a Fundação Ford, para incentivo à formação e
produção, vem gradualmente apresentando resultados, o que pode ser observado nas inúmeras teses de
mestrado e doutorado feitas por estudantes brasileiros.”

10
o número de linhas de pesquisas para cada área geográfica selecionada 8 , conforme
tabela 1 abaixo. A partir dos dados, infere-se o seguinte: A América Latina é a região
de maior interesse da ciência política e história, com destaque para o tema da política
externa, presente no nome das linhas; os BRICS tem maior apelo para a economia; o
Caribe tem sido mais alvo de pesquisas sociológicas do que outras; a América do Sul
se destaca na pauta da ciência política, sem a mesma presença que possui a América
Latina na ciência política e na história; Ásia, Estados Unidos e Europa estão presentes
em pesquisas da ciência política, com pouca expressividade nas demais ciências, sendo
que a Europa é a região menos expressividade de todas; a África está muito presente
em pesquisas da história e com alguma projeção na pauta da ciência política.

Tabela 1: Linhas de Pesquisa por regiões


Área BRICS América Caribe América Europa África Ásia Estados
Latina do Sul Unidos
Ciência 5 0 54 2 14 10 18 11
Política
Geografia 0 10 2 5 0 1 0 0
Sociologia 1 34 42 0 0 5 1 2
História 0 47 8 2 1 82 3 7
Economia 10 14 0 5 1 4 3 1
Direito 1 34 0 1 2 3 1 1
TOTAL 17 193 52 27 6 105 26 22
Fonte: DPG/Lattes/CNPq - Dados compilados pela autora em outubro de 2018.

No tocante ao subcontinente latino-americano, destaque deve ser dado não


apenas às linhas e grupos de pesquisa, mas também aos programas de pós-graduação
dedicados ao tema9 e, também, à universidade voltadas à integração do Brasil com essa
região, a saber: a Universidade Federal da Integração Latino-americana (UNILA).
Além da vocação ligada à integração dos países e regiões, a UNILA nasce no bojo de
maior interesse da política externa dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT).
Notadamente sob a presidência de Lula no período de 2003 a 2013, há interesse em


8
Foram consideradas as linhas de pesquisa (alguns grupos de pesquisa possuem mais de 1 linha de
pesquisa); sem considerar as palavras-chave. Utilizou-se como filtro as duas grandes áreas das ciências
(humanas e sociais aplicadas). Dados disponíveis em: disponível em: http://lattes.cnpq.br/web/dgp
9
Este é o caso do Departamento de Estudos Latino-americanos (ELA) do Instituto de Ciências Sociais
da Universidade de Brasília, onde esta pesquisa tem sido desenvolvida. Criado como Centro de Pesquisa
e Pós-Graduação sobre as Américas (CEPPAC) em 1987 com o intuito de contribuir para a valorização
e divulgação dos Estudos Latino-americanos no Brasil, o Departamento hoje dedica-se aos estudos
comparativos e interdisciplinares sobre a região, sempre adotando uma perspectiva situada.

11
promover a cooperação Sul-Sul além dos acordos formais bilaterais entre governos,
alcançando grupos de cientistas e estudantes10.
Com isso, pergunta-se: seriam esses objetivos de estudar as várias regiões
geográficas do mundo os mesmos daqueles assumidos como Estudos de Área nos EUA
do pós-II Guerra Mundial? Estariam eles servindo diretamente aos interesses dos
governos ou dos Estados em que são hospedados e pelos quais são financiados?
Poderiam eles resultar de uma convergência da natural internacionalização científica
com decisões políticas de aproximação com essas regiões? Como definir as ‘áreas’
como longe das políticas de dominação, expansionistas, e afetas às políticas externas
mais solidárias e inclusivas?
Essas questões nos levam à necessária contextualização do que se entende pelos
EA sempre que mencionados. Acredita-se que a referência à expressão “Estudos de
Área” deve ser ressignificada, caso seja utilizada em outro contexto que não aquele em
que surgiu devido às máculas do seu mau uso naquele contexto. Para tanto, deve-se
partir para a necessária localização da enunciação dos discursos e da vinculação do
enunciador às correntes ideológicas. Dessa forma, nações ou pesquisadores com
curiosidades científicas ou à serviço do bem-estar humano de forma geral se afastam
daqueles comprometidos com anseios egoístas à serviço da dominação. Isso é o que
está posto no bojo das propostas de reflexão e produção de conhecimento atreladas ao
conceito sobre a geopolítica do conhecimento.

2. Geopolítica do conhecimento: o giro decolonial nas RI

A associação entre ciência e política de um país nem sempre assume objetivos


relacionados à expansão de poder de governos e Estados-nação. Ela pode propor ações
vinculadas a pensamentos almejando a construção de uma comunidade de atores cuja
lógica é a da cooperação.
No Brasil do início do século XXI, poder-se-ia dizer que os ‘estudos sobre as
regiões’ acompanhou as mudanças da política externa brasileira. Com temas como a
integração latino-americana, relações com a África, BRICS crescendo simultaneamente
nas agendas de pesquisa e dentre as prioridades da diplomacia brasileira.


10
Amorim (2013), então-chanceler, a caracteriza esta como uma política externa ‘ativa e altiva’, em que
se destaca a autonomia pela diversificação de parcerias, novas geografias políticas com vários blocos
regionais criados, a exemplo dos BRICS e IBAS, e o reencontro com a África.

12
Observa-se, nisso, um ciclo virtuoso entre ciência e política, diferentemente dos
EA. Isso, porque a mudança política do país suscitou um conhecimento científico mais
internacionalizado, com autonomia dos pesquisadores que trabalhavam por sua próprio
interesse e eram financiados sem condicionalidades e imposições por parte do Estado.
As discussões sobre a colonialidade do saber, que traz o conceito da geopolítica
do conhecimento, trata dessa relação entre ciência e política a partir de uma visão crítica
proveniente do Sul global. Numa perspectiva mais estruturalista e que assume um
‘lugar de fala’ marginal na política internacional, aborda-se os problemas da
subalternidade da produção intelectual. Algumas regiões do centro político-econômico
global ainda se reservam as condições de produtores de teorias universais, abstratas,
neutras (leis nas ciências humanas), enquanto relegam à periferia do sistema, o papel
de empiria, de produção localizada.11

Geopolítica do conhecimento: ‘colonialidade do saber’

A modernidade, em que se insere a notoriedade do conhecimento científico, é


um fenômeno vivenciado globalmente ainda que criado e comandado pela Europa. Um
pressuposto do pensamento decolonial 12 , que orienta sua defesa em prol da
emancipação do ser, do pensar e do agir, é que a modernidade eurocentrada teria
produzido após o fim do sistema colonial o tripé da colonialidade: do poder (política),
do ser (existencial) e do pensar (epistêmico).

Numa breve genealogia do pós-colonialismo, Ballestrín (2013) explica que a


corrente decolonial nas ciências sociais singulariza a América Latina e o Caribe. Os
subalternos latino-americanos, empreendem a reconstrução histórica latino-americana
a partir de referencias asiáticos (Guha, Spivak e outros) e, posteriormente, lança-se o
Grupo Modernidade/Colonialidade denunciando o ‘imperialismo’ dos estudos
culturais, pós-coloniais e subalternos que não foram capazes de romper com os autores,
teorias e conceitos europeus – em especial, os sedutores ‘cavaleiros do Apocalipse’:

11
Além do que será apresentado aqui no bojo dos autores do grupo decolonial, outros autores em outros
contextos têm discutido isso; este é o caso do filosofo beninense Paulin Hountondji (2010) em que
reivindica uma produção filosófica africana que seja mais do que africanista, mas de relevância nas
comunidades de filosofos no centro científico.
12
A ‘decolonialidade’ é usada para se referir ao ‘giro decolonial’, expressão utilizada originalmente pelo
filosofo de Porto Rico, Nelson Maldonado-Torres em 2016, com o intuito de complementar a categoria
‘descolonização’ das ciências sociais do século XX, conforme explicam Castro-Gómez e Grosfoguel
(2007).

13
Foucault, Derrida e Gramsci. Sendo assim, o ‘giro decolonial’ é eminentemente situado
na América Latina e Caribe e sua perspectiva crítica busca identidade com a história e
os povos da região, numa pretendida vinculação entre o pensamento intelectual e o
campo da ação política.

Ainda de acordo com Ballestrín (2013), muitos dos integrantes do GMC já


haviam desenvolvido, desde os anos 1970, linhas de pensamento próprias, como é o
caso de Dussel com a Filosofia da Libertação, de Quijano com a Teoria da
Dependência, sob influência de Wallerstein e de sua Teoria do Sistema-Mundo. A
identidade grupal do M/C acabou herdando essas e outras influências do pensamento
crítico latino-americano do século XX – como a teoria da dependência e o diálogo
cepalino. Para explicar o que foi o Grupo, Ballestrín (2013) cita Escobar (2003) que
inclui a teologia da libertação, teorias feministas chicanas, filosofia africana dentre seus
antecedentes, cuja orientação é a “reflexão continuada sobre a realidade cultural e
política latino-americana, incluindo o conhecimento subalternizado dos grupos
explorados e oprimidos”. Para Ballestrín (2013; 99)

Com pouco mais de dez anos de existência, o grupo compartilha noções,


raciocínios e conceitos que lhe conferem uma identidade e um
vocabulário próprio, contribuindo para a renovação analítica e utópica
das ciências sociais latino-americanas do século XXI. (destaque nosso)
Neste contexto é que surgem os debates sobre a geopolítica do conhecimento,
um dos conceitos centrais do Grupo. Para a crítica feita por Quijano, o eurocentrismo
deve seu papel à reprodução da ‘colonialidade do saber’.

A elaboração intelectual do processo de modernidade produziu uma


perspectiva de conhecimento e um modo de produzir conhecimento que
demonstram o caráter do padrão mundial de poder: colonial/moderno,
capitalista e eurocentrado. Essa perspectiva e modo concreto de produzir
conhecimento se reconhecem como eurocentrismo. Eurocentrismo é, aqui,
o nome de uma perspectiva de conhecimento cuja elaboração sistemática
começou na Europa Ocidental antes de mediados do século XVII, ainda que
algumas de suas raízes são sem dúvida mais velhas, ou mesmo antigas, e
que nos séculos seguintes se tornou mundialmente hegemônica percorrendo
o mesmo fluxo do domínio da Europa burguesa. Sua constituição ocorreu
associada à específica secularização burguesa do pensamento europeu
e à experiência e às necessidades do padrão mundial de poder
capitalista, colonial/moderno, eurocentrado, estabelecido a partir da
América (QUIJANO, 2005; 9).

Assim, em resposta ao eurocentrismo, essa corrente defende a ciência complexa


e a quebra dos vigentes paradigmas científicos. Grosfoguel e Castro-Gómez (2007)
tratam do pensamento heterárquico que promovem a descolonização das instituições de
saber (a universidade). Ao se desvincular da ingênua ideia de um pensamento neutro (a

14
“hybris del punto cero”), abre-se espaço para um diálogo de saberes. Dessa forma,
encontram-se novos conceitos e nova linguagem que deem conta da complexidade das
hierarquias de gênero, raça, classe, sexualidade, conhecimento e espiritualidade
inerentes aos processos geopolíticos, geoculturais e geoeconômicos do sistema-mundo.
O desafio que se impõem é buscar ‘fora’ do mundo ocidental as formas de
conhecimento silenciadas para transcender a lógica única que determina tudo desde
uma única hierarquia de poder (heterarquia).
Deve-se, para tanto, transcender o paradigma da dependência, centrado na
dimensão econômica e política, para incluir as dimensões epistêmica e cultural. Castro-
Gómez (2007) explica

En opinión de Lander, las ciencias sociales y las humanidades que se


enseñan en la mayor parte de nuestras universidades no sólo arrastran la
“herencia colonial” de sus paradigmas sino, lo que es peor, contribuyen a
reforzar la hegemonía cultural, económica y política de Occidente. […] Me
referiré concretamente a la transdisciplinariedad y el pensamento complejo,
como modelos emergentes desde los cuales podríamos empezar a tender
puentes hacia un diálogo transcultural de saberes [un intercámbio cognitivo
entre la ciencia occidental y formas post-occidentales de producción de
conocimientos]. (CASTRO-GÓMEZ, 2017; 79-80)

A geopolítica do conhecimento deve estar, para tanto, compreendida com o


conceito de ‘diferença colonial’, que caracteriza os sistemas excludentes gerado pela
modernidade europeia. No anseio inclusivo, conforme Mignolo (2007),

[…] la genealogía del pensamiento decolonial es pluriversal (no universal).


Así, cada nudo de la red de esta genealogía es un punto de despegue y
apertura que reintroduce lenguas, memorias, economías, organizaciones
sociales, subjetividades, esplendores y miserias de los legados imperiales.
(MIGNOLO, 2007; 45)

Neste sentido, tratar do pensamento decolonial é, também, tratar das


contribuições da América Latina e o Caribe para as ‘Epistemologias do Sul’. Com isso,
deve-se apontar para sua natureza plural e, portanto, situada e diversa. Com base em
Santos (2010), deve-se ir contra o pensamento abissal que “consiste na concessão à
ciência moderna do monopólio da distinção universal entre o verdadeiro e o falso, em
detrimento de dois conhecimentos alternativos: a filosofia e a teologia. O caráter
exclusivo deste monopólio está no cerne da disputa epistemológica moderna entre as
formas científicas e não-científicas de verdade.” (p 25).
Adicionalmente, ao defender as ‘Epistemologias do Sul’, Santos e Meneses
(2010; 13) afirmam que “o colonialismo, para além de todas as dominações por que é

15
conhecido, foi também uma dominação epistemológica, uma relação extremamente
desigual de saber-poder que conduziu à supressão de muitas formas de saber próprias
dos povos e/ou nações colonizados”.
Daí a geopolítica do poder ser um tema cada vez mais estudado nas ciências
sociais latino-americanas. Reconhecer a disputa de poder em termos ‘geográfico-
político’ que se dá na produção científica significa não apenas a introdução de novos
saberes e fontes, mas ainda a valorização de perspectivas alternativas e críticas. Dessa
forma, o saber geográfico e historicamente situado sobre os fenômenos estudados, a
introdução de novos temas e o uso de conhecimento na prática política vislumbram a
inserção dos países e povos dessas novas regiões - primeiramente colonizadas e
posteriormente marginalizadas politicamente - na produção de saber global, científico
e não científico.
Chama-se atenção aqui novamente para o fato de que não se quer somente
produzir um ‘conhecimento latino-americano’, útil para a realidade regional, mas
também levar contribuições para o centro científico global.

Relações Internacionais: um campo científico sensível às disputas de poder

No campo científico das Relações internacionais, alguns pensadores têm


reivindicado a importância de produção teórica própria com vistas à maior autonomia
do país e região na política internacional (COX, 1981; WENDT, 2014; ROCHA, 2002;
CERVO, 2008; CASTRO, 2012).
Fala-se de um pluralismo teórico que marca a disciplina das RI. Fruto das
diferenças epistemológicas que separam as distintas narrativas teóricas e os distintos
contextos em que são produzidas. Daí os debates que caracterizam o campo, a saber: o
debate entre o realismo e o idealismo ocorrido nos anos 1970; o debate neo-realismo e
neoliberalismo institucional, nos anos 1980 e o atual grande debate entre racionalistas
e construtivistas; e os debates metateóricos - a relação entre epistemologia, metodologia
e ontologia nas relações internacionais; a relação agente e estrutura; os níveis de análise
e a relação entre cooperação e conflito, segundo explica Rocha (2002) quanto aos temas
e agendas das RI.
Em especial, a região latino-americana que muito avançou com a corrente
decolonial das ciências sociais, com contribuições e resultados evidentes no campo

16
filosófico13, suscita que áreas como as Relações Internacionais transite da importação
de teorias estrangeiras para produções teóricas próprias, de caráter crítico e inovador
com a valorização de outras visões de mundo e referenciais de valor advindas de suas
várias comunidades.
A corrente construtivista, reconhece a relação direta e íntima entre contexto
histórico e intelectual e a produção de conhecimento. Tais contextos não apenas
condicionam o modo de se produzir conhecimento científico, mas também dizem que
o conhecimento pode levar os agentes internacionais a redefinir sua percepção da
realidade e a transformá-la, reconstruindo o universo dos fenômenos de que os analistas
das relações internacionais se ocupam no esforço de interpretação do mundo.

[...] quando uma opinião se estabelece ou quando algumas delas


permanecem em debate no seio da comunidade científica, caracterizando-a
por um pluralismo teórico (como é o caso das Relações Internacionais), os
próprios agentes, a respeito dos quais se constroem os discursos
científicos, deixam-se influenciar, em seu comportamento, pelas
opiniões dos cientistas sobre eles. Afinal, além de objetos de estudo dos
analistas, os agentes são também consumidores da produção científica
sobre a realidade internacional, na qual se baseiam, ao menos parcialmente,
para tomar suas decisões de como agir na esfera internacional. (ROCHA,
2002; 211)

Essa constatação da relação sujeito-objeto na produção de conhecimento na área


das RI evidenciam quão sensível é seu campo de estudos. As RI concebem os sujeitos-
agentes ora como agentes puramente racionais, respaldada por uma ciência
normativista, ora como sujeitos-agentes cujas relações ocorrem em permanente
processo de estruturação da sociedade internacional, numa ciência explicativa-
interpretativa (Giddens apud Rocha, 2002; 2014) 14 . Assim, essas reivindicações do
construtivismo social ultrapassam o foco institucionalista que marca a disciplina
tradicional das RI desde seu início e alcançam um enfoque mais fenomenológico.
No bojo de um ‘construtivismo realista’ ou de ‘via média’, Wendt (2014) aponta
para a importância de se estudar as formas sociais. Numa ‘ontologia da vida social’, o
autor defende que as formas sociais são um fenômeno materialmente fundamentado e


13
Diferentemente da produção de conhecimento europeísta, reivindica-se para a filosofia discussões em
torno dos ‘núcleos problêmicos’ que são problemas que se tornam temas da filosofia. A reflexão
conceitual é tal qual a práxis, dessa forma é diferente a cada momento e lugar (Valdés García, 2017).
14
Com base em Giddens (2013; 31), “a estruturação não tem existência independente do conhecimento
que os agentes possuem a respeito do que fazem em sua atividade cotidiana. Os agentes humanos sempre
sabem o que estão fazendo no nível da consciência discursiva, sob alguma forma de descrição.
Entretanto, o que eles fazem pode ser-lhes inteiramente desconhecido sob outras descrições, e talvez
conheçam muito pouco sobre as consequências ramificadas das atividades em que estão empenhados.”

17
que, por isso, existem independente das mentes e/ou dos discursos de quem as
conhecem. Numa teorização social científica, deve-se partir das teorias de referência,
quais sejam: as perspectivas analíticas que ‘explicam’, segundo os empiristas,
‘relacionam’, segundo os pós-modernos, e ‘estabelecem relações causais’, segundo os
realistas.
Há dois processos identificáveis na interação social e na socialização, segundo
o mesmo autor, o processo causal e o constitutivo. Enquanto o primeiro determina os
ajustes mútuos e a aprendizagem de identidades – as normas são causais quando
regulam o comportamento e as razões são causais quando fornecem motivação e
energia para a ação -; o segundo concentra-se na maneira como as formas sociais são
articuladas, assim, os efeitos constitutivos gerados por ideias e estruturas criam
fenômenos que são conceitual e logicamente dependentes de ideias e estruturas. A
teorização causal se pergunta ‘por quê?’ e ‘como?’ e a teorização constitutiva, ‘como é
possível?’ e ‘o quê?’. Daí o peso que o conhecimento intelectual tem nos processos
causais e constitutivos dos fenômenos sociais.
Adicionalmente, a teoria crítica das RI chama a atenção para a existência de
sujeitos, objetivos e perspectivas inerentes a toda teoria. Trata-se de perspectivas
derivadas de uma posição no tempo e espaço, em especial uma posição política e social
contextualizada. Daí a relevância de se analisar a relação complexa Estado/sociedade a
partir das singularidades que esta relação pode assumir nas distintas realidades (COX,
1981).
Quanto à produção teórica, Cox (1981) explica que toda teoria social e política
está vinculada à determinada origem. Pode, portanto, ser mapeada pelas condicionantes
históricas de certos problemas e questões. Ao mesmo tempo, ela busca transcender
essas particularidades de suas origens históricas para servir a certas proposições e leis
gerais. Assim, o autor classifica as teorias em dois tipos: as ‘teorias para solução de
problemas’ e as ‘teorias críticas’. As primeiras consideram o mundo como o percebe,
mapeando as relações sociais e de poder existentes e as instituições em que operam para
esboçar um marco analítico para a ação. As segundas posicionam-se fora do mundo
social percebido e possuem o objetivo de investigar como esta ordem surgiu.
Diferentemente da solução de problemas, as teorias críticas não tomam as instituições
e as relações sociais e de poder como certas, mas indagam-se sobre o potencial e os
fatores de mudança dessa ordem. Eis o compromisso científico com a transformação
social presente na trajetória histórica das sociedades.

18
Alinhado com as vertentes social (construtivista) e crítica das RI, o cientista
brasileiro Amado Cervo (2008) aponta para o risco de se aceitar as teorias alheias de
alcance universal. Ao comentar sobre o legado deixado pela produção teórica não
apenas para a epistemologia das RI, mas também para a tomada de decisão dos atores
internacionais, notadamente para o Estado, o autor explica
Toda teoria envolve uma visão de dentro das relações internacionais, porque
veicula valores, desígnios e interesses nacionais. Por tal razão, uma teoria
alheia pode ser epistemologicamente inadequada para explicar as
relações internacionais de outro país e, ainda, ao informar o processo
decisório, pode ser politicamente nociva. Tomemos dois exemplos
elementares. Se o choque de civilizações, com que Samuel Huntington vê o
mundo posterior à Guerra Fria, ou o dilema de segurança, com que R. Jervis
interpreta os problemas da paz e da guerra, convêm como categorias
explicativas e inspiração prática para os acadêmicos ou decisores norte-
americanos, por óbvio, não convêm aos brasileiros nem como explicação
das relações internacionais do país, muito menos como referências para o
processo decisório. O conhecimento das relações internacionais compõe
o poder como instrumento útil. Para mentes críticas exerce,
consequentemente, função preventiva diante de ameaças externas da parte
de homens de Estado que tiram inspiração de formulações introspectivas,
derivadas de culturas ou interesses nacionais. [...] Essas considerações
comprovam a necessidade que tem cada país de destilar teorias alheias
e de partir para construções teóricas que sejam epistemologicamente
adequadas e socialmente úteis. A América Latina delas dispõe. Duas são
as versões do pensamento latino-americano aplicado às relações
internacionais: a que expõem pensadores voltados para a realidade
regional das relações internacionais e a que elaborou-se dentro dos
gabinetes dos formuladores de políticas e foram historicamente
aplicadas. (CERVO, 2003; 5-6 grifo nosso)

Como contribuições desse cientista para este campo de estudos, estão os


paradigmas propostos para as Relações Internacionais que buscam fornecer uma
compreensão da política exterior, da diplomacia e das relações internacionais.
Acompanhando a necessidade de uma visão que vem de “dentro”, Cervo (2008)
defende a análise paradigmática baseada em alguns pressupostos, a saber: a existência
da ideia de nação que o povo (e seus dirigentes) faz de si mesmo e a visão que projeta
do mundo, o modo como percebe a relação entre esses dois elementos (identidade
cultural que condiciona os desígnios da política exterior); a percepção de interesses, ou
seja, a leitura que os dirigentes fazem dos interesses nacionais – sociais, políticos, de
segurança, econômicos, culturais; e a elaboração política, que condiciona tendências de
médio e longo prazo e explica suas rupturas, isto é, envolve o modo de relacionar o
interno ao externo e prevê a manipulação de informações para estabelecer o cálculo
estratégico e orientar a decisão.
Dessa forma, deve-se atentar para o peso dos paradigmas nas relações
internacionais. Ao determinarem o modelo de inserção internacional dos países, assim

19
como as teorias científicas das RI, eles balizam a compreensão de determinado objeto
e, portanto, a produção de conhecimento útil sobre ele.
O conceito de ‘inserção internacional’, proposto por Cervo (2008), investe,
portanto, numa produção brasileira e latino-americana no campo das RI. Justifica-se,
assim, porque um conjunto de conceitos serve à matriz nacional e regional para
reavaliar o papel das teorias das RI e desvendar seus riscos. Eles, também, desenvolvem
uma capacidade explicativa e valorativa de fácil operacionalidade. As relações
internacionais do Brasil e da América Latina e Caribe deram origem a 4 principais
paradigmas de desenvolvimento nacional e política externa, no período do século XIX
ao início do século XXI, a saber: o liberal-conservador; o desenvolvimentista; o
normal-liberal; e o logístico.
Castro (2012), num dos poucos livros sobre teoria das relações internacionais
publicados no Brasil, apresenta uma proposta teórica própria: a SEND – síntese
equilibrada normativa dinâmica. Nela se articula a busca humanista entre a tese nata
dos capitais de força-poder-interesse, e a antítese aguerrida dos padrões de dissuasão-
normas-valores com o fim de espelhar os valores da paz, da cooperação, do
entendimento e da harmonia no cenário internacional.
Em defesa da necessidade de se transcender uma teoria geral das RI, numa
perspectiva democratizante vinda do Sul global, o autor diz ser imperativo

pensar e reapresentar possibilidades no horizonte da política internacional.


Precisamos mudar em nós mesmo e forçar cada macrotransformação que se
deseja ver como reflexo nos Estados, nos organismos e nas demais
tipologias dos atores das RI. [...] Os grandes desafios consistem em ampliar
uma agenda mais crítica, reflexiva e mais humanizada, por meio de novos
arcabouços teóricos, em especial por meio do SEND (CASTRO, 2012; 505).
Ao tratar do crescimento da área de RI no Brasil, Herz (2002) informa que é nos
anos 1990 que ocorre a grande mudança na produção científica deste campo. O
crescente debate sobre as transformações dos pilares do sistema moderno de Estados e
o processo de transnacionalização fizeram com que as RI dialogassem mais com outras
áreas da ciência política e da sociologia. Isso abre mais espaço para o que se propõe
nesta discussão: a emergência de outros saberes, de propostas teóricas enraizadas em
outros contextos, a pluriversalidade dos estudos em atenção às distintas percepções da
realidade, com destaque para os povos até então silenciados do mundo colonizado.

3. América Latina e Caribe: pela descolonização das RI

20
A América Latina e o Caribe desde meados do século XX tem avançado no
campo epistemológico. Ao propor uma produção de conhecimento própria e crítica,
notabiliza-se, no mundo político e científico, pelas escola cepalina e teoria da
dependência.

No entanto, é com ‘giro decolonial’ que a região se destaca por uma produção
científica com alto impacto no cenário político global. Cairo (2008), explicita a relação
direta entre ciência e política para a região. Percorrendo os distintos modelos
geopolíticos globais, somente a partir da década de 1990 é que a região se desloca de
uma posição passiva para uma representação ativa e autônoma no mundo científico.
Segundo o autor, os projetos políticos e epistêmicos autônomos na AL&C,
especialmente aqueles do Grupo Modernidade/Colonialidade, justificam as mudanças
de uma posição mais periférica para uma mais central nos modelos geopolíticos no pós-
Guerra Fria.

Projetos de indígenas, mestiços, afrodescendentes, latinos nos Estados


Unidos, que resistem ao império (Slater, 2008) do conhecimento e tentam
construí-lo a partir de outro lócus e com outras genealogias. É certo que “o
pensamento descolonial emergiu na própria fundação da
modernidade/colonialidade, como sua contrapartida. E isso ocorreu nas
Américas, no pensamento indígena e no pensamento afro-caribenho.”
(Mignolo, 2008, p.181). Mas não é menos certo que, desde que se iniciou a
colonização, há mais de cinco séculos nunca como até agora se haviam
desenvolvido projetos (geo)politicos e (geo)epistêmicos autônomos na
América Latina. (CAIRO, 2008; 236)

Há dois momentos que se pretende explicitar aqui: o momento da ‘objetificação’


científica e o momento do ‘agenciamento’ da região. Ambos se localizam no século
XX, com os países da região celebrando o centenário do fim do sistema colonial.

Conforme discutido anteriormente, durante a Guerra Fria, a região não apenas


foi alvo de programas de ‘assistência ao desenvolvimento’ dos Estados Unidos, como
ainda se constituiu em objeto de estudos dos centros de pesquisa daquele país. Contudo,
neste mesmo período, não se pode negligenciar algumas teses e autores críticos sobre a
inserção da região no cenário internacional, o que contribuiu posteriormente para a
consolidação de um saber sócio-científico próprio que atualmente notabiliza a América
Latina e o Caribe no bojo dos estudos pós-coloniais, pós-estruturalistas e pós-
modernos.

21
O marco se dá nos anos 1950-60 no contexto da Guerra Fria, quando os Estudos
de Área alcançam um alto grau de institucionalização e profissionalização. Neste
momento surgem os Latin American Studies, como destaca Feres (2003)

Por mais significativos que tenham sido o lançamento do Sputnik e a viagem


mal sucedida de Nixon, nada foi tão importante quanto a Revolução
Cubana (1959) para a transformação da América Latina em área de
prioridade máxima da Guerra Fria. A transformação dos recursos dos
Estados Unidos para a região aumentou de maneira vertiginosa depois da
revolução [em 1964 essa transferência a título de ajuda atingiu um valor
total nove vezes maior do que o de 1955]. Em outras iniciativas o presidente
americano John F. Kennedy lançou, em 1962, a Aliança para o Progresso,
que prometia investir 20 bilhões de dólares na América Latina em um
período de dez anos. Como mostra a curva, a produção bibliográfica sobre
a América Latina seguiu um aumento repentino e intenso do interesse
estratégico na área. [...] Em 1966, sob os auspícios do Joint Committee on
Latin American Studies e da Hispanic Foundation, foi fundada a Latin
America Studies Association (Lasa), instituição que em pouco tempo passou
a congregar a imensa maioria dos estudiosos da área. (FERES, 2003; 46
destaque nosso)

Superando essa fase, a consolidação da América Latina e Caribe no campo


científico se dá com a emergência de um ‘pensamento latino-americano’. Conforme
demostra Pinto (2012), apesar da defesa de uns sobre a impossibilidade de se
desenvolver um pensamento genuíno e original a partir das Américas, condenada que
está a imitar, outros tantos não apenas defendem como ainda explicam um percurso do
desenvolvimento de um pensamento social e político latino-americano. Com o
amadurecimento próprio, este teria se “iniciado pela influência do romantismo e do
positivismo nos primeiros anos da independência, a esquerda nascente e os
nacionalismos, a emergência do desenvolvimento e do dependentismo, finalizando com
a perspectiva crítica do pós-colonialismo” (p. 337).
Talvez não tivessem sido inéditas as categorias, os conceitos, as interpretações
expressas pelos autores latino-americanos, dos vários períodos citados acima, mas eles
representaram uma visão viva e original da realidade sociocultural e político-econômica
do continente. Isso, porque com a chegada dos Europeus, a América ganhou novas
identidades; com os séculos de colonização, elementos culturais foram agregados e
provocaram mudanças nas visões de si, do outro e do mundo; com os movimentos de
resistência e de constituição de novas sociedades, uma formação de autoconsciência
enquanto indivíduos e coletividades foi inevitável. Sendo assim, não se pode ignorar e,
menos ainda, subestimar o que já é mais do que pensamento científico autêntico para a
América Latina e o Caribe (PINTO, 2012).

22
Ao relatar a “(in)disciplina de Caliban”, personagem célebre das peças teatrais
de Shakespeare que se insubordina contra seu amo, o filósofo cubano Valdés García
(2017)15 faz um percurso importante pelos referenciais do pensamento caribenho na
literatura, na sociologia e na filosofia. O autor, dessa forma, valoriza a prática social
que informa os novos referenciais do pensamento caribenho
Si bien se asume que la filosofía es un modo peculiar de conocimiento, la
capacidad de ‘pensar abstractamente’ en conceptos y categorías, y que es
además un proceso que permite captar la realidad histórico-concreta del
‘estar siendo’, no como acción separada, ni como especulación abstracta,
sino como expresión crítica del proceso real de vida, como reflexión que se
levanta sobre los datos ‘empiricamente registrables’ en función de la
practica transformadora […] (VALDÉS GARCÍA, 2017; 99)

A presença da América Latina e o Caribe nas Relações Internacionais do Brasil


esteve relacionada a era dos regionalismos, que emerge com a globalização. Muito
animada na dimensão econômica, os processos de integração regional têm sua origem
com a Conferência de Bretton Woods – em 1944, que impulsionou a institucionalização
da ordem econômica internacional e legitimou a hegemonia norte-americana em
benefício de um capitalismo global -, inclusive, com os estímulos aos comércio
internacional, segundo Bernal-Meza e Masera (2008).
Num aparente paradoxo, a competitividade no nível global demandava a criação
de ‘regiões econômicas’. Dessa forma, acreditava-se que a constituição de alguns
espaços privilegiados de trocas comerciais entre países vizinhos, orientados por novas
estratégias de desenvolvimento – aquela dos indicadores econômicos -, num momento
posterior prepararia não apenas as cadeias produtivas globais, mas também os mercados
consumidores para participar do comércio multilateral global. Assim, era importante o
estudo dessas regiões pela perspectiva processual e econômica-comercial, cujas
formações chegavam, inclusive, a seguir um padrão linear de desenvolvimento, rumo
ao aprofundamento gradual da cooperação das nações e seus povos – à luz da integração
europeia.
Entretanto, a concepção de região adotada pelas RI, evidencia algumas
deturpações conceituais, segundo Richard (2014), com impacto negativo na
importância da América Latina e Caribe para as RI do subcontinente americano. Para
Richard (2014), essas deturpações perfazem: a abordagem realista dominante da


15
Resenha do Livro “La in-disciplina de Caliban: filosofía en el Caribe más allá de la academia”
(CAIXETA, 2018) Disponível em: http://periodicos.unb.br/index.php/repam/index

23
integração regional e do regionalismo centrados no Estado (governos e instituições
públicas); a análise baseada em acordos formais, que ignora o papel das práticas sociais,
que são manipuladas pelos governos para neutralizar esse agrupamentos de Estados (eis
a ideia de que um acordo dito ‘regional’ faz uma região); a confusão entre acordo
regional e integração provoca uma mistura entre os níveis de integração, o que congela
as construções que são móveis por terem sido produzidas pelas próprias sociedades; o
caráter monosetorial e economicista das abordagens, que exclui observações sobre
processo bem mais ricos; e, por fim, a negligência da noção de contiguidade espacial,
que prescinde de conhecimentos da geografia física (ideia de região integrada16 e de
espaço geográfico) para beneficiar os projetos geopolíticos globais, conforme
anteriormente explicado.
Provavelmente devido a esses vícios, as RI da região latino-americana por tanto
tempo ignorou temas e processos de comum interesse, de certas identificações coletivas
e atentos às naturais integrações dos povos, que teriam se desenvolvido na contiguidade
do espaço geográfico. Isto explicaria, inclusive, por que se fala em América Latina
acoplada a uma região insular caribenha e, ao mesmo tempo, segmentada da sua parte
norte continental.

Considerações finais
por uma teoria da América Latina e Caribe

Nesta discussão, procura-se tratar da necessidade de que a região da América


Latina e o Caribe avance rumo a produções teóricas próprias, como contribuição para
as Relações Internacionais, no nível internacional.


16
Segundo Richard (2014), a região é concebida como um sistema espacial possível de ser distinguido
de sistemas vizinhos; assim, falar de sistema pressupõe que suas unidades constitutivas se pareçam mais
entre si do que com as unidades exteriores e que as relações entre as unidades constitutivas sejam mais
intensas no interior da região do que com as unidades espaciais exteriores. A região é assimilada a um
sistema, independentemente de seu tamanho, e fornece uma visão da existência de interações fortes entre
os elementos vizinhos, enquanto as relações são menos fortes com os elementos externos.

24
A partir dos aprendizados deixados pelos Estudos de Áreas, defende-se aqui não
a negligência dos ‘estudos sobre as regiões’ do mundo, mas seu desenvolvimento
segundo nova perspectiva. Identificado a partir do contexto pós-II Guerra Mundial e
protagonizados pelos Estados Unidos, os EA foram realizados segundo uma
perspectiva autoritária e utilitária da política externa expansionista do governo norte-
americano. Sendo assim, pode-se fazer avançar os ‘estudos sobre as regiões’ com vistas
ao intercâmbio de conhecimento científico, à produção científica pluriversal e às teorias
enraizadas das Relações Internacionais.
Neste sentido, se faz relevante desenvolver o campo das ‘Epistemologias do
Sul’ nas RI. Notadamente, na América Latina e o Caribe observa-se grande potencial,
teórico, conceitual, metodológico introduzido pelo ‘giro decolonial’ para compreensão
dos fenômenos globais e proposição de soluções para os problemas sociais e políticos
observados local e globalmente.
Esse enraizamento da produção de conhecimento latino-americana e caribenha
nas várias regiões, comunidades e povos que formam parte do subcontinente, permitiria
inclusive maior integração entre as ações no níveis locais e globais – conforme
apregoado pela agenda global dos ODS, inclusão de atores e temas novos na agenda de
pesquisa e, também, maior conexão entre o pensamento e a ação. A perspectiva
científica engajada está no centro das propostas apresentadas pela corrente teórica
decolonial latino-americana e caribenha, de forte potencial para dinamizar e inovar a
produção de saber em suas dimensões metodológica, fenomenológica, cratológica
(teoria do poder), epistemológica, ontológica e praxeológica, para acompanhar o que
sugerido por Castro (2012).
A defesa por uma produção teórica latino-americana e caribenha está associada
a defesa de um saber situado. Valoriza-se, assim, o contexto e o enunciador desse saber.
Não se pretende, portanto, aqui associar-se aos cientistas que acreditam na neutralidade
científica, ao produzirem suas teorias abstratas universalistas, mas sim aos cientistas
que lutam pela emancipação intelectual e acadêmica das várias regiões do mundo que
tiveram sua voz silenciada e suas cosmologias negadas às tomadas de decisões coletivas
globais. Valorizam-se teorias produzidas a partir do resgate de símbolos, memórias-
histórias e visões de mundo próprias desse pluralismo humano.

Sendo assim, acreditar na emergência de teorias e conceitos próprios da região


é abrir novas agendas de pesquisa nas Relações Internacionais. Isso não apenas

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inaugura a produção de conhecimento útil para as realidades sociais em que vivemos
na América Latina e Caribe, mas ainda introduzir referenciais analíticos e bibliográficos
novos nas comunidades epistêmicas de RI.

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