Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
ABA
AFA
EASA
AAA
ASA UK
RAAE
IAS
AAS
CAS
ALA
ASAfrica
PAAA
gias e planos de desenvolvimento sustentados por
agências multilaterais como as Nações Unidas e o
Banco Mundial.
Em um período cheio de confiança na força *Baseado em survey conduzido durante o encontro “An-
da modernização e no papel da ciência e da tec- tropologias Mundiais: Fortalecendo a Organização Inter-
nologia no grande destino da humanidade, o nacional e a Eficiência da Profissão”, junho de 2004, Reci-
número de praticantes de antropologia aumentou fe, com a presença de catorze presidentes de associações
firmemente. Mais de cinqüenta anos atrás, Alfred antropológicas (AAA, Associação Americana de Antro-
Kroeber (1953) fez um survey sobre a antropolo- pologia; JASCA, Sociedade Japonesa de Antropologia
gia mundial e publicou os achados no seu famo- Cultural; RAAE, Associação Russa de Antropólogos e
so livro Anthropology today. Ele chegou a um Etnólogos; ABA, Associação Brasileira de Antropologia;
número de 2 mil antropólogos em todo o mundo, EASA, Associação Européia de Antropologia Social; IAS,
seiscentos deles membros da Associação Sociedade Antropológica Indiana; ASA, Associação dos
Americana de Antropologia (AAA). Hoje, esta Antropólogos Sociais do Reino Unido e da
associação tem cerca de 11 mil membros. Por Commonwealth; CAS, Sociedade Canadense de Antro-
outro lado, outras comunidades antropológicas pologia; AAS, Sociedade Antropológica Australiana; AFA,
cresceram e se diversificaram desde a Segunda Associação Francesa de Antropologia; PAAA, Associação
Guerra Mundial. Quando a Associação de Antropológica Pan-Africana; ALA, Associação Antropo-
lógica Latino-Americana; ASA, Antropologia Sul Africana).
Antropólogos Sociais do Reino Unido e da
Commomwealth (ASA) foi fundada em 1946, tinha
aproximadamente vinte membros. Ela cresceu,
atingindo mais de 150 membros, em 1962, e cerca Mas processos políticos do período pós-
de 240, em 1968 (Asad, 1973). Hoje a ASA tem guerra logo convergiriam, na década de 1960, a
seiscentos membros. No que diz respeito ao uma grande crise de representação da antropolo-
Brasil, Otávio Velho (1980) aponta que 41 pessoas gia hegemônica causada por uma mudança clara
152 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 60
socioculturais (Krotz, 1997) aumentaram em com- estrangeiros têm feito historicamente ao poder dos
plexidade em contextos globais e nacionais. centros hegemônicos. Minha principal preocupa-
Entraram em cena outras disciplinas, como os ção é com o que pode ser chamado de migração
estudos culturais, e abordagens teóricas, como o de textos, conceitos e teorias.
pós-colonialismo, que não carregavam o pecado A monotonia da fertilização cruzada interna-
original da antropologia de cooperação com o cional não é um problema exclusivo da antropo-
colonialismo. A globalização reforçou as contradi- logia. O sociolingüista Rainer Enrique Hamel, no
ções entre segmentos étnicos e o poder do seu estudo Language empires, linguistic imperia-
Estado-nação. Multiculturalismo e políticas da lism, and the future of global languages, conside-
diferença foram internacionalizados, reforçando, rou que “pode ser tomado como sintoma do
assim, movimentos políticos “nativos” e a cultura- imperialismo científico do inglês o fato de que [...]
lização da política. a maioria de autores de países de língua inglesa e
As duas principais crises da antropologia suas antigas colônias que escreve sobre o mundo
supracitadas estavam intimamente relacionadas às como um todo, o faz sem citar um único texto de
posições variantes, internamente a estruturas de língua não-inglesa em suas vastas bibliografias”
poder, dos sujeitos clássicos da pesquisa antropo- (2003, p. 20). Esse problema, entretanto, é parti-
lógica – grupos nativos ou sem poder –; estavam cularmente interessante quando percebido em
relacionadas a mudanças do relacionamento da uma disciplina que preza a diversidade tão inten-
antropologia com o “escaninho do selvagem” samente. A polifonia na produção antropológica
(Trouillot, 1991). Mas hoje há outro elemento que deve significar, primeiro, o reconhecimento de
não foi devidamente incorporado por críticas ante- uma enorme produção em diferentes locais do
riores e que com certeza impactará a antropologia, sistema mundial, produção que precisa ganhar
a saber, a presença internacional das antropolo- visibilidade se é que vamos levar a sério o papel
gias não-hegemônicas e sua importância na pro- da diversidade na construção de discursos mais
dução e na reprodução de conhecimento. Isso não densos e na complexificação da fertilização cru-
é realmente uma novidade, já que o cenário aca- zada. Além disso, deve significar uma compreen-
dêmico e científico – e a antropologia é uma con- são das trocas desiguais de informação que ocor-
firmação dessa afirmação – tem sido sempre pro- rem dentro do sistema mundial de produção
penso à internacionalização. Entretanto, com o intelectual e a conseqüente tomada de posições
crescimento do número de antropólogos fora dos políticas que pretendam ir além da situação pre-
países hegemônicos chegamos a uma situação dis- sente em direção a um ambiente mais igualitário
tinta. Apesar disso, a fertilização cruzada interna- e, assim, mais enriquecedor. Finalmente, também
cional tem acontecido dentro de um universo deve significar uma crítica intelectual e a ação crí-
muito limitado, composto de um número restrito tica subseqüente sobre os mecanismos que sus-
de parcerias. É verdade que em locais como o sis- tentam tais trocas desiguais não só dentro do
tema universitário norte-americano a diversidade cenário acadêmico, mas também fora dele, envol-
das nacionalidades do corpo docente e dos pes- vendo outras formas de produção de conheci-
quisadores aumentou nas últimas décadas, um mento, outras cosmopolíticas sobre alteridades.
resultado do próprio lugar central dos sistemas O presente é mais um momento de reinven-
científicos, tecnológicos e acadêmicos norte-ame- ção da antropologia. Desta vez, a mudança não será
ricanos no mundo globalizado. Mas esse aumento provocada por outra crise na posição de sujeito das
em diversidade, na antropologia e em outras dis- populações nativas – a disciplina já passou por essa
ciplinas, não tem correspondido a um crescimen- experiência –, mas por mudanças nas relações entre
to intenso no consumo de uma produção estran- antropólogos localizados em diferentes locais do sis-
geira diversificada, fato que indica a normalização tema mundial. Steban Krotz também antevê profun-
do trabalho daqueles a quem Aijaz Ahmad (1994) das transformações nessa direção. Para ele,
chamou de “intelectuais étnicos”. Na verdade, não
estou tão preocupado com a migração de pessoas [...] apesar de os principais impulsos da produção
e com a contribuição que muitos estudiosos de conhecimento antropológico continuarem
154 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 60
vindo de países onde essa ciência se originou, poder. De fato, a circulação internacional de
tais impulsos estão também acontecendo cada idéias está altamente entrelaçada com relações de
vez mais em lugares onde vivem aqueles que poder, e ela própria pode “ter o efeito de cons-
eram, até pouco tempo, exclusivamente objetos truir e reforçar a desigualdade” (L’Estoile, Neiburg
favoritos da antropologia. Isso demanda a criação
e Sigaud, 2002, p. 23).
de novas estruturas de produção de conhecimen-
A antropologia tem uma longa relação com
to que [...] não submetam a diversidade cultural a
um modelo que pretende ser único e eterno de o poder estatal em todos os países onde é prati-
forma exclusiva (2002, p. 399). cada e, em muitos aspectos, a disciplina foi mode-
lada por essas relações. Onde há um regime auto-
Muitas antropologias estão prontas a partici- ritário, como nos tempos stalinistas na Rússia, a
par desse novo cenário. De fato, sua maior visibi- relação antropologia/Estado torna-se mais óbvia
lidade internacional é um pré-requisito para termos (Vakhtin, 2006). De um lado, elites estatais
uma comunidade mais heteroglóssica e igualitária impõem um controle do potencial crítico da pro-
de antropólogos mundiais e formas mais comple- dução e da teoria antropológicas; de outro, con-
xas de criar e circular teoria e conhecimento em vertem a antropologia em uma técnica de contro-
nível global. Muito do aperfeiçoamento da antro- le social, um tipo de engenharia social visando a
administrar as relações entre minorias étnicas e
pologia dependerá de como respondermos a essa
poderosos governos centrais. Em tempos de guer-
questão: em uma era de globalização intensa, e
ra, como mencionamos anteriormente, mesmo
depois das fortes críticas epistemológicas e meto-
em regimes não-autoritários, tais como o norte-
dológicas dos últimos quinze anos, como podemos
americano, a antropologia pode ser chamada a
estabelecer novas condições de trocas acadêmicas
desenvolver papéis similares além de se tornar
e regimes de visibilidade?
uma fonte de inteligência sobre o inimigo. O
papel da antropologia em processos de constru-
ção da nação é bem conhecido e não é preciso
Poder e hegemonia na antropologia
estender-se muito sobre ele.11 É suficiente dizer
que antropólogos (re)criam ideologias contraditó-
O debate sobre antropologias mundiais pro-
rias de unidade ou diversidade nacional, que são
cura mostrar a existência de outros locais de pro- ancoradas na autoridade da produção acadêmica
dução de conhecimento sobre diversidade, tais e freqüentemente se refletem em políticas de apa-
como aqueles representados pela experiência da ratos estatais (da educação e cultura ou da admi-
interculturalidad (Walsh, Schiwy e Castro- nistração de conflitos étnicos) e em posições polí-
Gómez, 2002; De la Cadena, 2006). Também tem ticas de agentes da sociedade civil, como ONGs.
a intenção de criticar a troca desigual de informa- Os dilemas que antropólogos australianos
ção e teoria existente internamente à antropolo- (Toussaint, 2006) estão enfrentando em disputas
gia. Tal desigualdade freqüentemente é discutida por terras aborígenes que chegam ao sistema judi-
sob diferentes rótulos: antropologias centrais ver- ciário nacional são um exemplo das formas intri-
sus periféricas (Cardoso de Oliveira, 1999/2000); cadas de relações entre antropologia, aparato
antropologias internacionais versus nacionais ou estatal e auto-representação da disciplina, princi-
antropologias de construção da nação e antropo- palmente no que diz respeito à autoridade de seu
logias de construção de império (Stocking, 1982); status científico vis-à-vis conflitos no interior do
antropologias hegemônicas e não-hegemônicas Estado-nação. Com efeito, a antropologia desen-
(Ribeiro e Escobar, 2002); antropologias do Sul volveu-se em relação aos interesses nacionais e
(Krotz, 1997); etc. Essas classificações são úteis internacionais sobre o status das populações nati-
para pensar as desigualdades existentes, mas pre- vas “encontradas” em territórios tradicionalmente
cisamos transcender tais dualidades, já que, como controlados pelos Estados ou em novas áreas
diz Verena Stolcke (comunicação pessoal), não coloniais (L’Estoile, Neiburg e Sigaud, 2002).
são capazes de lidar com ordens transnacionais. É preciso pensar um pouco mais sobre as
Elas também refletem vários tipos de relação de relações entre antropologia e construção de impé-
ANTROPOLOGIAS MUNDIAIS 155
rio, antropologia e colonialismo. Não obstante tra- neo-orientalismo (Velho, 2006). Abordagens nati-
balhos como os de Asad (1973) e Stocking (1991), vistas podem igualmente ser uma reação à exis-
ainda necessitamos um estudo que detalhe cuida- tência de um corpo de intelectuais e literatura
dosamente as complicadas relações entre a disci- estrangeiros que mantêm os padrões válidos de
plina e as administrações coloniais (Ben-Ari, interpretação sobre uma determinada cultura ou
1999). De um lado, a antropologia pode ter for- país. Velho argumenta que a ausência de brasilia-
necido apoio a oponentes locais do poder colo- nistas, estudiosos estrangeiros do Brasil, contri-
nial; de outro, Ben-Ari também argumenta que o buiu para impedir o desenvolvimento de uma
conhecimento antropológico, junto com o censo, abordagem nativista em nosso país.
o mapa e o museu, eram parte do que Anderson A existência de uma antropologia – isto é, de
(1991, p. 163) chamou de gramática do estilo uma disciplina que expandiu nos sistemas univer-
colonial estatal de pensar sobre seu próprio domí- sitários durante o século XX – totalmente isolada
nio. Para Ben-Ari (Idem, p. 388), a questão crucial de antropologias hegemônicas ocidentais é uma
é entender o lugar da antropologia na construção impossibilidade até em regimes autoritários
de taxonomias e discursos coloniais. Na sua aná- (Vakhtin, 2006; Smart, 2006). A antropologia,
lise dos relacionamentos entre colonialismo fran- desde seu começo, é uma cosmopolítica sobre
cês e etnologia francesa, D’Estoile (2002) mostrou alteridade de origem ocidental. Se o reconheci-
como várias pesquisas e instituições educacionais, mento de uma determinada afirmação em antro-
tais como o Institute d’Ethnologie e o Musée de pologia depende da sua validade, esta validade,
l’Homme, foram apoiados pelo aparato colonial em última instância, depende de sua consagração
francês, em um movimento contínuo de pessoas, por uma comunidade de argumentação que é
informação e conhecimento entre “modos de também uma comunidade cosmopolita. Até pers-
conhecimento administrativo e discurso científi- pectivas nativistas teriam que passar por esse tipo
co” com a intenção de legitimar a dominação de processo. É por isso que é impossível acredi-
racional sobre nativos africanos.12 tar em uma antropologia isolada, cuja validade
Essa discussão também traz à tona os limites seria inteiramente reconhecida e satisfeita apenas
da antropologia como disciplina universal. A dentro dos limites do Estado-nação. Os exemplos
necessidade de separar os vínculos reais ou ima- da antropologia na Rússia e na China são, nova-
ginados entre antropologia e colonialismo em mente, fortes indicadores de tal condição.
países africanos ou asiáticos (Barnes, 1982; O fato de a antropologia ter se expandido da
Kashoki, 1982) conduziu a uma crítica afiada por região norte-atlântica para outros cantos do
intelectuais pós-coloniais daquelas regiões. A Áfri- mundo não significa que não possa se beneficiar
ca representa o melhor cenário para considerar a de suas muitas diferentes versões e das diferentes
eficácia do discurso universalista antropológico, tensões que ela criou com sistemas locais pré-
mais ainda do que a Índia. Na África, a pretensão existentes. Concordo com Shinji Yamashita quan-
universalista da antropologia logo foi relacionada do argumenta que
ao eurocentrismo e desenvolveu um debate sobre
a necessidade de uma epistemologia africana. [...] se a cultura viaja, como mostra James Clifford
Muito mais intensamente do que na Índia, onde o (1992), a antropologia também viaja. Através de
pensamento antropológico foi parte de debates sua viagem global, ela pode ser enriquecida e
transformada por seus encontros com diferentes
pós-coloniais sobre construção da nação
situações locais. Acredito firmemente que a antro-
(Visvanathan, 2006), na África a disciplina foi
pologia do século XXI vai ser construída na base
pega entre o isolamento e o nativismo. De todo de relações “glocais”, isto é “global-local”
modo, qualquer pretensão a uma epistemologia (Robertson, 1995), da mesma forma que outras
nativista é um paradoxo já que, como Mafeje grandes formas de produção cultural são cons-
(2001) observou, d’aprés Rabinow, não há nada truídas no mundo (1998, p. 5).
mais ocidental do que a discussão sobre episte-
mologia. Além disso, alegações de autenticidade Mas é também verdade que há diferentes
cultural e científica podem bem ser um tipo de viajantes e formas de viajar. Hierarquias de
156 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 60
(Ribeiro, 2003) aponta para a existência de antro- pológicas em redes para discutir como fazer com
pologias pós-nacionais e pós-imperiais, nas quais que forças heterogeneizantes da globalização tra-
várias reversões de posições de poder são neces- balhem em favor de iniciativas heteroglóssicas.
sárias. Já que parte importante do projeto pós- Esse é o motivo pelo qual Arturo Escobar e eu
imperialista é provincializar os Estados Unidos organizamos um simpósio internacional sobre
por meio da crítica, por exemplo, das produções Antropologias Mundiais, em março de 2003, na
midiáticas e das matrizes ideológicas daquele Itália, cujo resultado está publicado em World
país, uma das tarefas dos pesquisadores latino- anthropologies: disciplinary transformations in
americanos seria gerar conhecimento mediante systems of power (2006). É também o motivo pelo
pesquisas de campo sobre questões norte-ameri- qual Paul Little e eu organizamos uma reunião no
canas, principalmente sobre aquelas que prefigu- Brasil, em junho de 2004, que juntou a catorze
ram poderosamente as cosmopolíticas e as ideo- presidentes de associações antropológicas nacio-
logias de poder e prestígio. Ao mesmo tempo em nais e internacionais para discutir e negociar
que precisamos fazer pesquisa sobre os subalter- modos mais democráticos de interação global,
nos do Sul, é preciso fazer pesquisa sobre a elite produção e disseminação de conhecimento.13 A
do Norte. Para cima e para o Norte, vai o antro- constatação, por todos, da importância da reunião
pólogo. Já que hegemonia é a arte de exercer e o seu entusiasmo demonstraram ser este o
poder silenciosamente, vamos não apenas deixar momento para criar modos mais horizontais e
os subalternos falarem, mas também fazer os diversificados de interação e intercâmbio em nível
poderosos falarem! global. Em conseqüência, o Conselho Mundial de
O vínculo entre antropologias e sistemas de Associações Antropológicas (World Council of
poder é complexo, pois a antropologia, de muitas Anthropological Associations) foi criado na reu-
formas, faz parte de relações de poder e de cons-
nião de Recife. O CMAA (WCAA) tem como obje-
trangimentos muito mais amplos, incluindo os
tivo principal promover intercâmbios mais diver-
criados pelo desenvolvimento desigual em escala
sos e equânimes entre antropologias e
global. Há, por exemplo, sistemas educacionais,
antropólogos em escala mundial.14
acadêmicos e científicos desenvolvidos diferente-
A crítica ao desequilíbrio de poder entre
mente e com acessos distintos a recursos e poder
antropologias hegemônicas e não-hegemônicas é
do Estado-nação. Está claro, entretanto, que tais
aqui realizada para irmos além da atual estrutura
relações não podem ser reduzidas a uma disjun-
ossificada, para indicar que há muitas contribui-
ção entre antropologias de construção de império
e antropologias de construção de nação. Os fato- ções possíveis vindas de outras posições no siste-
res subjacentes são os tipos de posições, pers- ma mundial e que se pode esperar uma fertiliza-
pectivas e práticas que os antropólogos têm a res- ção cruzada mais complexa se formos capazes de
peito de grupos e projetos poderosos e construir outras condições de conversabilidade
não-poderosos. Um modo de olhar esta questão é que promovam a criação de uma comunidade
considerar que a antropologia é boa para prover transnacional de antropólogos mais heteroglóssi-
a certos grupos, poderosos ou não, com conheci- ca. Em um artigo inspirado por vários debates,
mentos que “legitimam” demandas sobre diversi- que ocorreram dentro do coletivo da Rede de
dade étnica e cultural e acesso a recursos naturais Antropologias Mundiais, Eduardo Restrepo e
e sociais. Arturo Escobar escreveram que o projeto de
Antropologias mundiais pós-imperiais “antropologias mundiais” é uma “intervenção dire-
desenvolver-se-ão pela crítica teórica, mas tam- cionada à implosão dos constrangimentos discipli-
bém, e talvez de maneira mais importante, pela nares que modalidades subalternizadas da prática
atividade política daqueles que se interessem em e imaginação antropológica têm que enfrentar em
tais proposições. Antropologias mundiais impli- nome de um modelo normalizado e normalizante
cam, por exemplo, na construção de outras con- de antropologia” (2005, p. 100). Há duas noções
dições de conversabilidade por intermédio da que ajudam a entender a presente situação. Elas se
(re)união de antropólogos e de instituições antro- referem ao que Dipesh Chakrabarty (2000, p. 28)
158 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 60
chamou de ignorância assimétrica e eu chamo de das publicações são traduções, ao passo que na
tensão entre provincianismo metropolitano e cos- França e na Alemanha esse número é cerca de
mopolitismo provinciano. 12%; na Espanha e na Itália, chega a 20%. Trata-
se de um importante aspecto da base sociolin-
güística que sustenta o provincianismo metropoli-
Provincianismos e cosmopolitismos tano. Por extensão, pode-se dizer que o oposto é
invertidos verdadeiro: quanto menos importante uma língua
na economia simbólica global, mais traduções
Provincianismo metropolitano e cosmopoli- haverá para ela. Esta é uma das fontes sociolin-
tismo provinciano são baseados nas relações desi- güísticas do cosmopolitismo provinciano.
guais existentes na economia simbólica global. Rainer Enrique Hamel adverte que “o mono-
Darei uma breve definição de ambas as noções. lingüismo científico poderia não apenas aprofun-
Provincianismo metropolitano significa a ignorân- dar as desigualdades existentes no acesso e na
cia que centros hegemônicos geralmente têm da difusão de descobertas científicas, mas também
produção de centros não-hegemônicos. ameaçar a criatividade científica e a própria diver-
Cosmopolitismo provinciano significa o conheci- sidade conceitual, bases do desenvolvimento
mento que centros não-hegemônicos geralmente científico” (2003, p. 24). Ele vê o perigo de pas-
têm da produção de centros hegemônicos. Essa sarmos de “uma forte hegemonia do inglês mun-
ignorância assimétrica pode se expressar em situa- dial para um monopólio; de um paradigma de
ções curiosas, embora comuns, como o fato de a diversidade poliglota, que admite conflito de lín-
história da antropologia universal (i.e. de antropo- guas, para um paradigma monoglota, apenas do
inglês” (Idem, p. 25). Se o monolingüismo cientí-
logias hegemônicas) ser conhecida e estudada por
fico levanta críticas tão amplas e sérias, uma
antropólogos não-hegemônicos, mas o contrário
antropologia mono-estilística pode ser considera-
não ser verdadeiro. Os processos pelos quais as
da um impedimento para uma antropologia mul-
antropologias sem história, para utilizar a expres-
ticêntrica global.
são irônica e acertada de Krotz, tornaram-se insti-
A centralidade é um recurso positivo tanto
tucionalizadas e cresceram não são ensinados ou,
quanto negativo quando lidamos com disciplinas
na melhor hipótese, são raramente ensinados até
que dependem de interpretação e contexto para
nos seus próprios países. Os clássicos incluem
aperfeiçoar suas capacidades heurísticas, como é
quase exclusivamente antropólogos estrangeiros.
o caso da antropologia. Ela é positiva porque nos
Em muitos programas de pós-graduação fora grandes centros de produção há as melhores con-
do núcleo hegemônico, é obrigatória a capacida- dições de trabalho (salários, bibliotecas, fundos
de de ler pelo menos duas línguas, além da nati- de pesquisa, acesso à disseminação e visibilida-
va. De fato, o provincianismo metropolitano e o de). É negativa ante a redução lingüística, cultural
cosmopolitismo provinciano podem ser mais bem e política que trabalhar para um sistema universi-
entendidos se considerarmos a questão da língua, tário nacional específico implica (não importa
sempre bastante complexa quando o que está em quão grande e diverso seja, não se igualará à
jogo é a comunicação transnacional. O inglês tem diversidade mundial) e por causa do provincia-
sido a língua mais expansiva nos últimos cinco nismo metropolitano, um fechamento lingüístico
séculos (Hamel, 2003, p. 16). Renato Ortiz (2004) e sociológico que implica em grande perda de
mostra que o inglês mundial está estruturando os diversidade e de interesse em outras produções.
debates sociológicos em escala global. Ele tam- Nesse sentido, se pensarmos na prática da antro-
bém chega à conclusão de que existe uma relação pologia em escala global, veremos uma enorme
entre a centralidade de uma língua no mercado capacidade de fertilização cruzada, espalhada em
mundial de bens lingüísticos e a proporção de tra- diferentes “glocais”, com um potencial de criativi-
duções feitas para ela. É menor a proporção de dade impossível de ser encontrado em um único
textos traduzidos para as línguas mais centrais. lugar. Há evidências sociológicas e lingüísticas
Nos Estados Unidos e na Inglaterra, menos de 5% que tal criatividade está localizada em e vinda de
ANTROPOLOGIAS MUNDIAIS 159
sociais, econômicos, políticos e culturais específi- ANDERSON, Benedict. (1991), Imagined commu-
cos. Por isso a transformação é uma constante na nities: reflections on the origins and
história da antropologia em qualquer lugar. De spread of nationalism. Londres, Verso.
fato, a antropologia é uma fênix cuja morte, ou
ARCHETTI, Eduardo P. (2006), “How many ‘cen-
agonia prolongada, tem sido anunciada várias
ters’ and ‘peripheries’ in anthropology?
vezes, ao menos desde a década de 1920 quando
A critical view on France”, in Gustavo
Malinowski insistiu que os antropólogos fizessem
Lins Ribeiro e Arturo Escobar (orgs.),
mais trabalho de campo etnográfico, tendo em
World anthropologies: disciplinary
vista um mundo nativo que desaparecia. As mui-
transformations in systems of power,
tas mortes e renascimentos da antropologia indi-
Oxford, Berg Publishers.
cam sua habilidade de se transformar e direcionar
sua crítica para si mesma, ampliando e redefinin- ASAD, Talal. (1973), “Introduction”, in Talal Asad
do seus interesses, atribuições e teorias. A abun- (org.), Anthropology and the colonial
dância de alternativas internamente à antropolo- encounter, Atlantic Highlands, Huma-
gia tornou-se um estímulo poderoso, levando a nities Press, pp. 1-19.
uma reavaliação do destino, do campo, dos obje-
ASKEW, David. (2003), “The debate on the
tivos, dos programas, das características e das
‘Japanese’ race in imperial Japan: displa-
definições da disciplina. As ressurreições e reen-
carnações da antropologia podem ser entendidas cement or coexistence?”. Japanese Review
se considerarmos tratar-se de uma disciplina alta- of Cultural Anthropology, (3): 79-96.
mente reflexiva, que se projeta nos tópicos e nos BARNES, J. A. (1982), “Social science in India:
assuntos que ela estuda e por eles é retroalimen- colonial import, indigenous product, or
tada. Em conseqüência, a antropologia está em universal truth?”, in Husseim Fahim
sintonia fina com as mudanças sociológicas que (org.), Indigenous anthropology in Non-
ocorrem historicamente. No mundo globalizado, Western countries, Durham, Carolina
precisamos ter vozes e perspectivas internacionais Academic Press, pp. 19-34.
mais diversificadas participando em qualquer ava-
liação das fronteiras do conhecimento antropoló- BEN-ARI, Eyal. (1999), “Colonialism, anthropolo-
gico. Com efeito, o mundo globalizado é o cená- gy and the politics of professionaliza-
rio perfeito para a antropologia florescer, já que tion”, in Jan van Bremen e Akitoshi
uma das lições básicas da disciplina é o respeito Shimizu (orgs.), Anthropology and colo-
à diferença. Uma disciplina que elogia a plurali- nialism in Asia and Oceania, Hong
dade e a diversidade precisa promover tais dinâ- Kong, Curzon, pp. 382-409.
micas em seu próprio meio. Este é o momento BENEDICT, Ruth. (1946), The chrysanthemum and
ideal para as antropologias mundiais. the sword. Boston, Houghton Mifflin.
CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. (1999/2000),
BIBLIOGRAFIA “Peripheral anthropologies ‘versus’ central
anthropologies”. Journal of Latin
AHMAD, Aijaz. (1994), “Orientalism and after”, in American Anthropology, 4 (2)-5 (1): 10-30.
Patrick Williams e Laura Chrisman CASTELLS, Manuel. (1996), The rise of the network
(orgs.), Colonial discourse and postcolo- society. Cambridge, Blackwell.
nial theory, Nova York, Columbia
University Press, pp. 162-171. CHAKRABARTY, Dipesh. (2000), Provincializing
Europe: postcolonial thought and histo-
ALBERT, Bruce. (1995), “O ouro canibal e a
rical difference. Princeton/Oxford,
queda do céu: uma crítica xamânica da
Princeton University Press.
economia política da natureza”. Série
Antropologia, 174, Brasília, Universi- CHEAH, Pheng & ROBBINS, Bruce (orgs.).
dade de Brasília. (1998), Cosmopolitics. thinking and fee-
ANTROPOLOGIAS MUNDIAIS 161
L’ESTOILE, Benoît de; NEIBURG, Federico & RESTREPO, Eduardo & ESCOBAR, Arturo. (2005),
SIGAUD, Lygia. (2002), “Antropologia, “Other anthropologies and anthropology
impérios e Estados nacionais: uma abor- otherwise: steps to a world anthropology
dagem comparativa”, in _________ network”. Critique of Anthropology, 25
(orgs.), Antropologia, impérios e Estados (2): 99-128.
nacionais. Rio de Janeiro, Relume
RIBEIRO, Gustavo Lins. (1998), “Cybercultural
Dumará/Faperj, pp. 9-37.
politics: political activism at a distance
LÉVI-STRAUSS, Claude. (1966), “Anthropology: its in a transnational world”, in Sonia
achievement and future”. Current Alvarez, Evelina Dagnino e Arturo
Anthropology, 7: 124-127. Escobar (orgs.), Cultures of politics/poli-
tics of cultures: revisioning Latin
LEWIS, Diane. (1973), “Anthropology and colo-
American social movements, Boulder,
nialism”. Current Anthropology, 14 (5):
Colorado, Westview Press, pp. 325-352.
581-602.
_________. (2003), Postimperialismo: cultura y
LOMNITZ, Claudio. (2002), “A antropologia entre
política en el mundo contemporáneo.
fronteiras: dialética de uma tradição
Barcelona/Buenos Aires, Gedisa.
nacional (México)”, in Benoît de
L’Estoile, Federico Neiburg e Lygia RIBEIRO, Gustavo Lins & ESCOBAR, Arturo.
Sigaud (orgs.), Antropologia, impérios e (2002), “World anthropologies. discipli-
Estados nacionais. Rio de Janeiro, nary transformations within systems of
Relume Dumará/Faperj, pp. 125-158. power”. Organizers’ Statement. Inter-
national Symposium of the Wenner-
MAFEJE, Archie. (2001), “Anthropology in post-
Gren Foundation for Anthropological
independence Africa: end of an era and
Research, Nova York, (mimeo.).
the problem of self-redefinition”, in
African social scientists reflections. Part _________ (orgs.). (2006), World anthropologies:
1, Nairobi, Heinrich Boll Foundation. disciplinary transformations within sys-
tems of power. Oxford, Berg Publishers.
NKWI, Paul Nchoji. (2006), “Anthropology in a
post-colonial Africa: the survival deba- ROBERTSON, Roland. (1995), “Glocalization:
te”, in Gustavo Lins Ribeiro e Arturo time-space and homogeneity/heteroge-
Escobar (orgs.), World anthropologies: neity”, in Mike Featherstone et al.
disciplinary transformations in systems (orgs.), Global modernities, Londres,
of power, Oxford, Berg Publishers. Sage Publications, pp. 25-44.
ORTIZ, Renato. (2004), “As ciências sociais e o SMART, Josie. (2006), “In search of anthropology in
inglês”. Revista Brasileira de Ciências China”, in Gustavo Lins Ribeiro e Arturo
Sociais, 19 (54), fev. Escobar (orgs.), World anthropologies:
disciplinary transformations in systems
PEIRANO, Mariza. (1991), “The anthropology of
of power, Oxford, Berg Publishers.
anthropology: the Brazilian case”. Série
Antropologia, 110, UnB. SOUZA LIMA, Antonio. (2002), “Indigenismo no
Brasil: migração e reapropriações de
PINA CABRAL, João de. (2004), “Uma história de
um saber administrativo”, in Benoît de
sucesso: a antropologia brasileira vista de
L’Estoile, Federico Neiburg e Lygia
longe”, in Wilson Trajano Filho e Gustavo
Sigaud (orgs.), Antropologia, impérios e
Lins Ribeiro (orgs.), O campo da antropo-
Estados nacionais, Rio de Janeiro,
logia no Brasil, Rio de Janeiro/Brasília,
Relume Dumará/Faperj, pp. 159-186.
Contracapa/ABA, pp. 249-265.
STOCKING, George W. (1982), “Afterword: a view
RAMOS, Alcida R. (2004), “‘Our knowledge is our
from the center”. Ethnos, 47 (1): 173-186.
trademark’ or disengaging ethnograp-
hy”. Universidade de Brasília (mimeo.) _________. (1991), Colonial situations: essays on
ANTROPOLOGIAS MUNDIAIS 163
Em uma época de globalização In an age of heightened globaliza- Dans une ère de globalisation exa-
exacerbada, os antropólogos não tion, anthropologists have failed cerbée, les anthropologues n’abor-
têm discutido consistentemente a to discuss consistently the current dent pas, de façon consistante, la
natureza corrente de sua prática e nature of their practice and its discussion à propos de la nature
das transformações que ela atra- transformations on a global scale. courante de sa pratique et des
vessa em escala global. Este artigo This article views anthropology as transformations qu’elle traverse à
considera a antropologia uma cos- a cosmopolitics that consolidated l’échelle globale. Cet article consi-
mopolítica que se consolidou itself as a formal academic disci- dère l’anthropologie en tant que
como disciplina acadêmica formal pline in the 20th century within a cosmopolitique consolidée comme
no século XX, internamente a um growing Western university sys- discipline académique formelle au
sistema universitário ocidental em tem that expanded throughout the XXe siècle, dans le cadre d’un sys-
crescimento e em expansão. world. It is part of a critical tème universitaire occidental en
Insere-se no campo de uma antro- anthropology of anthropology, pleine croissance et en expansion.
pologia crítica da antropologia, one that decenters, re-historicizes, Elle s’insère dans le champs d’une
que descentra, re-historiciza e plu- and pluralizes what has been anthropologie critique de l’anthro-
raliza o que se entende como taken as “anthropology” so far. It pologie, qui décentre, replace dans
antropologia até o momento. O questions not only the contents son contexte historique et diversifié
autor questiona não apenas os but also the terms and the condi- ce que l’on a considéré, jusqu’à
conteúdos, mas também os termos tions of anthropological conversa- présent, comme étant l’anthropo-
e as condições das conversações tions. It also focuses on issues that logie. L’auteur questionne non seu-
antropológicas. Enfoca, ainda, reveal how anthropology got lement les contenus, mais aussi les
questões relativas ao enredamento entangled with geopolitics and termes et conditions des conversa-
da antropologia com geopolítica e national/global power. The article tions anthropologiques. Il aborde,
poder nacional/global. Além disso, emphasizes that the increasingly également, les questions relatives à
enfatiza que o papel cada vez important role non-hegemonic l’anthropologie placée dans le
maior das antropologias não-hege- anthropologies play in the pro- réseau géopolitique et de pouvoir
mônicas na produção e na disse- duction and dissemination of national et global. Il met aussi l’ac-
minação de conhecimento em knowledge on a global scale is a cent sur le fait que le rôle croissant
escala global revela uma nova new transformative force coming des anthropologies non hégémo-
força transformadora interna à pró- from within anthropology itself. niques liées à la production et à la
pria antropologia. dissémination du savoir dans une
sphère globale révèlent une nou-
velle force transformatrice interne à
la propre anthropologie.