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Viagem pela alt a hierarquia: pesquisa de campo e int erações com elit es eclesiást icas
Ernest o Seidl
T he format ion of an Army in Brazilian way: corporat e disput es and inst it ut ional adapt at ion
Ana Luiza Bit t encourt
CAPÍTULO 6
Estudar os poderosos:
a sociologia do poder e das elites
Ernesto Seidl
UM TEMA CANÔNICO
E FORA DE MODA?
P
oucos temas nas ciências sociais podem ser con-
siderados tão constitutivos de uma disciplina
quanto o elitismo. Formulado num período de institucionalização
acadêmica, foi fundamental para a afirmação de um terreno de dis-
cussão que, ao longo do século XX, conheceria fortes polêmicas,
rupturas e dissidências, veria a formação de correntes e de discí-
pulos e sofreria intensas reformulações teóricas. Em suma, abriria
um veio de reflexões e de objetos de pesquisa legítimos.
A alocação inicial da temática das elites sob o teto da ciência
política, conforme a lógica de divisão disciplinar e sob forte influ-
ência da originária teoria das elites dos pioneiros Vilfredo Pareto
(1848-1923), Gaetano Mosca (1858-1941) e Robert Michels (1876-
1936), não foi sem consequências sobre a forma dominante de
pensar a questão. Fundamentalmente, a premissa de que o poder
nas sociedades modernas é exercido por governantes ou políticos
profissionais levaria ao estudo de tais grupos para então saber-se,
finalmente, quem governa.
Como se poderia imaginar, a própria natureza do debate (“quem
governa”) prestou-se a uma apropriação por parte de disputas ideo-
lógicas travadas, sobretudo, em torno da “questão da democracia” e
da “qualidade das elites” de cada país. Historicamente próxima do
próprio establishment e do debate prático sobre o poder, a ciência
política norte-americana foi central no uso do tema como combus-
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Para uma análise detalhada das condições históricas de surgimento da teoria das
elites, assim como das principais questões em jogo nas disputas entre fundadores
e intérpretes, consultar Grynszpan (1999).
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Elementos muito semelhantes são apontados por pesquisadores franceses com
relação ao contexto pós-maio de 1968. Ver Pinçon e Pinçon-Charlot (2007).
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“O campo do poder é um campo de forças definido em sua estrutura pelo estado
da relação de força entre formas de poder, ou de espécies de capital diferentes.
É também, inseparavelmente, um campo de lutas pelo poder entre detentores
de poderes diferentes, um espaço de jogo no qual agentes e instituições que têm
em comum a posse de uma quantidade de capital específico (econômico ou cul-
tural, sobretudo) suficiente para ocupar posições dominantes no interior de seus
campos respectivos enfrentam-se com estratégias destinadas a conservar ou a
transformar esta relação de força” (BOURDIEU, 1989:375).
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Como indicativo da renovação de interesse pela temática das elites no Brasil,
entre outros vários exemplos, citaríamos a edição dos dossiês “Elites políticas”
da Revista de Sociologia e Política (UFPR), v. 16, n. 30, 2008; “Sociologia do po-
der e das elites” da Revista TOMO (UFS), v. 10, n. 13, 2008; “Elites” (v. 8, n. 15,
2011) e “Cultura, poder e modalidades de engajamento” (v. 9, n. 17, 2012) dos
Cadernos Pós Ciências Sociais (UFMA); a realização, desde 2007, de Grupo de Tra-
balho sobre o tema na reunião anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs); e a publicação das coletâneas organizadas
por Almeida e colaboradores (2004), Canêdo e Tomizaki (2012), Coradini (2008)
e Heinz (2006b, 2011).
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Um balanço da historiografia contemporânea sobre a história social das elites é
fornecido por Charle (2006a).
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Poucos países são dotados de um setor de ensino explicitamente voltado à for-
mação de elites, as chamadas grandes écoles. Sediadas em Paris, situam-se no topo
da hierarquia do ensino superior, em geral acima das universidades. Saint-Mar-
tin (2008:52-54) chama atenção para a tendência à cristalização das teses sobre a
“nobreza de estado” francesa, ressaltando trabalhos mais recentes que apontam
mudanças em direção a uma maior abertura social.
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A questão do “elitismo” na carreira diplomática brasileira foi tema de debate
na grande mídia por ocasião de mudanças introduzidas no processo seletivo do
Instituto Rio Branco há cerca de 10 anos. Entre outros aspectos, a prova de fran-
cês deixou de ser eliminatória e questões de “cultura geral” (música erudita,
literatura internacional, mitologia clássica) — seguramente favoráveis a candi-
datos dotados de um tipo de capital cultural pouco comum, sobretudo filhos
de diplomatas — deram espaço a assuntos mais diretamente ligados a relações
internacionais, história e atualidades.
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Sobre os usos da titulação escolar e da inserção profissional como recursos na
política eleitoral e na militância no Brasil, consultar em especial os trabalhos de
Coradini (2001, 2002, 2007, 2008), Gaglietti (2003), Grill (2007, 2008a, 2008b),
Grill, Tavares dos Reis e Barros Filho (2008), Oliveira (2008), Petrarca (2008),
Seidl (2009b), Tavares dos Reis (2008) e Tavares do Reis e Grill (2008). Com res-
peito à polivalência dos títulos superiores e às relações de seus portadores com
posições de elite, ver Coradini (2010).
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Seguramente o trabalho de Charle (1987) sobre as elites republicanas da França
no período 1880-1900 apresenta um dos melhores exemplos desse tipo de abor-
dagem. Trabalhos de pesquisadores brasileiros inspirados em alguma medida
nessa perspectiva podem ser vistos em Coradini (1997), Engelmann (2001), Grijó
(1998), Grill (1999), Heinz (2006a), Marenco dos Santos (1997), Marenco dos San-
tos e Da Ros (2008), Seidl (1999, 2003, 2012) e Seidl e Neris (2011).
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Com respeito às definições e usos da prosopografia, consultar Broady (2002),
Charle (2006a), Heinz (1999) e Lalouette (2006). Alguns exemplos de estudos
prosopográficos dedicados a elites intelectuais, acadêmicas, políticas e adminis-
trativas encontram-se em Bourdieu (1984, 1998), Charle (1980, 1987, 1990) e Sa-
piro (1999).
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Na impossibilidade de desenvolver neste espaço aspectos metodológicos e
de tratamento das fontes, sugerimos algumas leituras que julgamos fundamen-
tais. Com respeito à condução de pesquisas de campo que incluem entrevistas,
observações e interações diretas, consultar Cohen (1999), Chamboredon et al.
(1994), Hertz e Imber (1995), Le Wita (1988), Pinçon e Pinçon-Charlot (1997,
2007), Saint-Martin (1993) e Seidl (2003). Sobre o tratamento de fontes escritas
de caráter variado (material institucional, memórias, genealogias, biografias), ver
Coradini (1997), Miceli (1988) e Saint-Martin (1992).
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Um panorama dessas pesquisas é apresentado em Almeida e colaboradores
(2004), em Canêdo, Tomizaki e Garcia (2013) e no número especial intitulado “Le
Brésil et le marché mondial de la coopération scientifique’’ dos Cahiers du Brésil
Contemporain, n. 57/58-59/60, 2004-2005.
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Para uma história do desenvolvimento dos think tanks nos Estados Unidos e
sua capacidade de produção intelectual e de controle das condições do debate
público, consultar Medvetz (2007, 2008, 2009). Com respeito à temática da for-
mação de elites e a constituição de mediadores políticos e culturais em processos
de construção identitária nacional, ver o excelente trabalho de Anjos (2006) so-
bre Cabo Verde.
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Um conjunto de pesquisas centradas em questões como socializações familia-
res, instituições e modos de escolarização das elites em países como Brasil, Sué-
cia, Suíça, França, Inglaterra e Estados Unidos pode ser encontrado em Almeida
e Nogueira (2003).
As famílias do Exército
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Os principais resultados são apresentados em Seidl (2008a, 2010, 211).
As famílias da Igreja
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Não por acaso, e também em oposição ao caso do mundo militar, na Igreja o
termo carreira não é aceito. Em seu lugar, expressões como serviço e caminhada
expressam a lógica do interesse pelo desinteresse que está na base do funciona-
mento da atividade religiosa na Igreja Católica.
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A passagem pelo exterior consiste em um dos caminhos mais seguros à ascen-
são de religiosos na carreira. Progressivamente, desde os anos 1960 a Igreja tem
escolhido seus dirigentes (bispos, superiores provinciais de ordens, congrega-
ções e institutos masculinos e femininos, secretários regionais da CNBB) entre
indivíduos a quem a própria instituição previamente permitira circular pelo ex-
terior. A este respeito, consultar Seidl (2009a, 2013) e Seidl e Neris (2011).
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Estes aspectos encontram-se desenvolvidos em Seidl (2003, espec. caps. 3 e 5).
24
As análises de Suaud (1978:111-112 e passim) sobre o sistema seminarístico
demonstram bem como as formas de avaliação escolar próprias ao seminário me-
nor conjugam critérios de competência escolar com aqueles de “competência
moral”, em benefício do segundo. Não sendo “nem puramente religiosa, nem
exclusivamente escolar”, a avaliação do candidato ao sacerdócio se expressa em
“julgamentos totais” nos quais a qualificação religiosa sempre é medida, não im-
portando o tipo de atividade em questão.
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A inexistência de dados dessa natureza para o conjunto do clero nacional im-
pede maiores generalizações. No entanto, as informações reunidas sobre o epis-
copado de Minas Gerais apontam alta presença de familiares dos bispos daquele
estado em atividades profissionais na Igreja. Ver Seidl (2003).
REFERÊNCIAS