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Ensaios de

Antropologia
Dos Usos da Cultura – Civilização, Cultura e Subjetividades

Responsável pelo Conteúdo:


Prof. Dr. Edgar da Silva Gomes

Revisão Textual:
Prof. Me. Luciano Vieira Francisco
Dos Usos da Cultura –
Civilização, Cultura e Subjetividades

• Introdução;
• Cultura e Civilização: Três Visões;
• Franz Boas e a Crítica do Evolucionismo;
• Aplicações da Antropologia Culturalista – Margaret Mead;
• Dos Usos da Cultura – Conclusões.

OBJETIVOS DE APRENDIZADO
• Discorrer sobre “cultura” e suas relações com as subjetividades;
• Compreender o desenvolvimento de algumas interpretações sobre as culturas;
• Entender as apropriações e os usos indevidos de conceitos para não incorrer em julgamentos
preconceituosos contra outras formas de organização social.
UNIDADE Dos Usos da Cultura – Civilização, Cultura e Subjetividades

Introdução
“A cultura humana é um conjunto de textos [...], na qual o antropólogo deve saber ler
por sobre os ombros daqueles a quem esta cultura pertence” (Clifford Geertz).

Cultura é um conceito importante para a Antropologia e diz respeito à forma como


lidamos com as diferenças entre as nossas práticas sociais e as práticas sociais “dos ou-
tros”. Nesta Unidade, estudaremos como os antropólogos entendem a cultura. Partindo
da crítica ao evolucionismo até chegarmos a uma formulação culturalista, que predomi-
na até hoje nos estudos antropológicos, contribuindo como ferramenta de análise para
outras Ciências Sociais.

Figura 1 Figura 2
Fonte: Getty Images Fonte: Getty Images

A percepção das diferenças nos modos como os homens vivem suas vidas em socie-
dade, como mostra Roque de Barros Laraia (2008), não é nova. Passando de Confúcio
a Heródoto e Tácito, de Marco Polo a José de Anchieta, de Rousseau até os dias de
hoje, a cultura se apresenta como uma das questões mais fundamentais do pensamento
ocidental. Isso porque ela nunca vem isenta de um profundo debate da forma como nós
mesmos, em nossos hábitos cotidianos, lidamos com a diferença, com aquele que se
comporta diferentemente de nós.

Por isso, nesta Unidade veremos brevemente, num primeiro momento, de que modo
franceses, alemães e ingleses pensavam a questão da cultura e civilização, que é impor-
tante conhecermos para compreendermos formulações posteriores na Antropologia, e
os conflitos em torno desses conceitos, que culminaram em um fator relevante para o
evento catastrófico que se seguiu: a Primeira Guerra Mundial. É evidente que não resu-
miremos as causas da Primeira Guerra a uma disputa por conceitos. O que refletiremos
é, antes, de que modo essas formulações dizem respeito, ao mesmo tempo, ao modo
pelo qual essas culturas veem o outro e ao quão marcante é esse olhar para constituir
uma noção do que seria a própria cultura. Assim, ilustrando a importância disso para a
criação e manutenção de rivalidades que, por mais que não possam ser apontadas como
uma causa principal, tornam-se um fator importante.

Obviamente, não trabalharemos a Guerra, dado que o nosso foco será na cultura e
nas questões que ela suscita. A Guerra será um modo de entendermos as dimensões de
um problema que, por mais que pareça “apenas” teórico, tem proporções maiores: diz
respeito a uma visão de mundo onde estão ancoradas nossas subjetividades.

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A partir desta exposição, apresentaremos a influência do pensamento alemão e das
reflexões que ocorriam na Alemanha pré-Primeira Guerra Mundial no desenvolvimento
tanto de uma crítica radical aos evolucionismos, quanto na formulação de Antropologia
culturalista, ancorada fortemente na Antropologia de Franz Boas, um alemão muito
preocupado com essas “dimensões” já ditas, fazendo de seu trabalho uma incansável
tentativa de interpretar antes de julgar as culturas estudadas.

Frans Uri Boas foi o fundador da Antropologia norte-americana do início do século XX.
Nascido na Alemanha, em 1858, formou-se em Geografia e teve seu Doutorado nessa área
premiado. Somente em 1887, quando emigrou para os Estados Unidos, que começa a se
dedicar de fato aos estudos antropológicos. Em 1899 assumiu a Cadeira de Antropologia na
Universidade de Colúmbia, em Nova Iorque, onde lecionou até a sua morte, em 1942. Entre
seus alunos mais brilhantes estava um brasileiro bem conhecido, Gilberto Freyre!

Fonte: https://bit.ly/3bUK7rd

Em um terceiro momento, analisaremos de que maneira essa formulação culturalista


apareceu no trabalho de uma das principais alunas de Boas: Margaret Mead. Você verá
a predominância que a cultura possuiu nas análises da personalidade ligada ao gênero,
no texto de Mead.

Por fim, veremos de que forma esse conceito de cultura que, em um primeiro mo-
mento na Antropologia foi importante para a compreensão da diversidade e de sua
importância, foi utilizado, posteriormente, pelo apartheid sul-africano como arma para
manter os negros numa posição de submissão.

Cultura e Civilização: Três Visões


Adam Kuper, no primeiro capítulo de seu livro Culture: the antropologist’s account
– Cultura: a visão dos antropólogos (1999) – nos mostra, muito brevemente, as for-
mulações de cultura nos três principais países europeus de fins do século XIX: França,
Alemanha e Inglaterra. A importância de sabermos como essas concepções aparecem
nesses países está em podermos, a partir daí, elaborarmos, senão uma origem, um
princípio que, de alguma forma, norteou o pensamento antropológico tanto dos evolu-
cionistas como dos culturalistas e tantas outras escolas.

O autor começa nos apresentando uma palestra muito significativa a respeito da vi-
são francesa de civilização. Trata-se de uma comunicação proferida por Lucien Febvre
(1878-1956), um grande historiador moderno francês, em 1929. Nessa comunicação, o
historiador tentou rastrear os significados que a palavra civilização tomou com o tempo.
Segundo Kuper (1999), o resultado é que Febvre chegou a, pelo menos, dois sentidos
desse termo: um primeiro que dizia respeito a todo um conjunto que incluía aspectos
materiais, morais, intelectuais e políticos da vida social e, nesse sentido, não implicava
julgamento de valor; num segundo sentido, muito parecido com o sentido dado pelos
evolucionistas culturais, a palavra conotava um estágio avançado de desenvolvimento,
que era representado por nossa própria sociedade e conotava julgamento de valor.

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UNIDADE Dos Usos da Cultura – Civilização, Cultura e Subjetividades

Contudo, dessa discussão surgiria um impasse: “[...] como pode uma linguagem co-
nhecida por ser clara e lógica chegar a dois usos contraditórios para uma palavra?”
(KUPER, 1999, p. 25) A problemática de Febvre nessa conferência seria exatamente
essa, tentar resolver a aparente contradição. Segundo Kuper (1999, p. 29), a conclusão
a que o historiador francês chegou foi que:

o termo pode se referir tanto a sociedades modernas sobreviventes e a


um ideal de uma vida social civilizada [...]. Em ambos os sentidos o termo
implica um contrário [...]. Mas normalmente civilização é avaliada e iden-
tificada com progresso. No uso geral, o termo ganhou uma aura sagrada.
Representar coisas como o contrário de civilização seria demonizá-las.

Para se contrapor a essa visão francesa, o autor apresenta um livro muito interessan-
te de um dos maiores sociólogos do século XX: trata-se de Norbert Elias (1897-1990) e
sua obra intitulada O processo civilizador, de 1939. Segundo Kuper (1999), nesse livro
encontra-se de forma muito substantiva duas concepções importantíssimas para compor
o quadro geral desse embate entre franceses e alemães, no que diz respeito à oposição
entre cultura e civilização.

O autor nos mostra que na Alemanha estava presente uma diferença essencial a que
os franceses sequer se referiam. Enquanto na França chamavam de civilização um todo
complexo e multifacetado que incluía todos os fatos da vida social, para os alemães,
civilização (zivilisation) era algo meramente utilitário, externo, alheio em muitas formas
aos valores nacionais. Ao contrário do que seria, para eles, cultura (kultur), isto é, algo
delimitado espacial e temporalmente e cujo limite se encontra na identidade nacional.

Quando os alemães expressam orgulho em suas conquistas, eles dizem não


de sua civilização, mas de sua Kultur [...]. Kultur era não apenas nacional,
mas pessoal [...]. Kultur, portanto, implicava cultivo, Bildung, uma progres-
são pessoal em direção à perfeição espiritual. (KUPER, 1999, p. 30-31)

A Batalha de Amiens, disponível em: https://bit.ly/2N44Iz4

É precisamente aqui que encontramos um ponto importantíssimo de combate entre as


duas noções – que se tornou também um ponto de combate entre as nações. Enquanto na
França reivindicavam para si a mais alta cultura europeia (e, por isso, naquela época, do
mundo), os alemães encontravam nessa reivindicação uma vulgaridade imensa. Para eles,
reivindicar para si civilização, ou seja, ser civilizado, não era de fato uma conquista, uma
vez que a pessoa não havia realmente feito nada para chegar até ali. Era algo superficial.
Nas palavras de Kuper (1999, p. 32): “Kultur e Zivilization resumiam os valores contrários
que (na visão de alguns alemães) dividiam França e Alemanha: virtude espiritual e mate-
rialismo, honestidade e artifício, uma moral genuína e mera polidez aparente”.

Por fim, a visão inglesa relaciona-se muito estreitamente com a visão dos evolucionis-
tas. Kuper (1999), referindo-se à forma moderna de pensar cultura na Inglaterra, colocou-a
em termos de uma análise da alta cultura e da cultura popular na vida da nação, inserindo-
-a num período posterior (inclusive posterior ao que nos interessa aqui), as disputas entre

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um conceito de cultura entendida como cultura passível de ser apreendida segundo uma
escala evolutiva mais geral, como também aparece em outro inglês, Tylor (2005).

Saiba mais sobre a Primeira Guerra Mundial, disponível em: https://youtu.be/HNw027hhbbw

É interessante notar que, fora as divergências entre os países, havia divergências tam-
bém internas – ao acompanhar o texto de Kuper (1999) você perceberá muito bem. Mas
é importante notar a abertura desse campo de disputas que vai além de uma teorização
das Ciências Humanas. Um jovem aluno, primeiramente, de Física e, posteriormente,
de Geografia, estava muito ciente disso na Alemanha do fim do século XIX. Ainda que,
naquela época, não sabia, nem tinha como saber, que revolucionaria a Antropologia.
Trata-se de Franz Boas.

Franz Boas e a Crítica do Evolucionismo


Boas, como nos mostra Kuper (1988), veio de uma família judia alemã que presava
muito pela educação e pelas Ciências. Quando jovem, esteve dividido entre o que di-
vidia também os próprios pensadores alemães, a saber: a objetividade e subjetividade,
ou os limites entre as duas esferas. Assim, acabou optando, para sua Graduação, a
fazer o Curso de Física e estudar psicofísica. Anos mais tarde, voltou seus estudos para
a Geografia. Foi nesse momento que começou a manter contato com as tradições do
pensamento alemão, de modo que o seu estudo começou a importar. Segundo Kuper
(1988, p. 127), “[...] a ligação imediata de Boas com essa tradição foi através de Bastian,
com quem ele trabalhou em Berlin, e Bastian representou uma reação ao determinismo
geográfico ortodoxo”. Isso porque, à época, os geógrafos tendiam a dar um papel de-
terminante ao ambiente geográfico no desenvolvimento intelectual e cultural. Para esses
autores, as diferenças entre as culturas podiam ser explicadas em termos geográficos:
se uma cultura desenvolveu determinado tipo de prática, os motivos disso devem ser en-
contrados nas condições climáticas, morfológicas do terreno, hidrográficas. O homem,
nesses casos, era necessariamente fruto do meio ambiente (LARAIA, 2009).

Figura 3 Figura 4
Fonte: Getty Images Fonte: Getty Images

A importância desse debate estava ancorada num forte entrelaçamento dele com o
evolucionismo na Antropologia. O determinismo geográfico acabou como um “braço”

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do determinismo biológico – embora, em muitos casos o superasse, diferenciasse-se e se


opusesse –, que propunha que as práticas culturais e intelectuais teriam acontecido pelo
fato de o homem, enquanto espécie, ter o seu corpo, pouco a pouco, desenvolvido até
chegar a um estágio em que pudesse existir vida em sociedade e vida inteligente.

Quando Boas foi, com a ajuda de seu tio e de sua noiva, para os Estados Unidos
(EUA), não encontrou um terreno muito propício para críticas ao evolucionismo. Ainda
era o final do século XIX, tempo difícil para criticar autores como Morgan ou Frazer,
ainda mais num contexto em que, segundo Kuper (1988), o próprio Boas descobriu,
posteriormente, que os usos do evolucionismo excediam o âmbito acadêmico e tendiam
para o militar.

Ao estabelecer um vínculo com os EUA, realizou vários trabalhos de campo. Não é


nosso objetivo aqui apresentá-los, pois a mais importante dessas pesquisas foi a abertura
para a crítica ao evolucionismo – e aqui está assentado o aspecto mais importante da
contribuição boasiana para as Ciências Humanas. É disso que trataremos agora.

Em seu texto intitulado As limitações do método comparativo da Antropologia


(2006), esse pesquisador apontou sua crítica não tanto para a teoria evolucionista, mas
ao seu método. Para ele, não se poderia apreender a realidade das culturas estudadas se
o antropólogo as tratasse como se estivessem fora da história, isto é, se o antropólogo
não enxergasse nelas as diferentes temporalidades existentes entre os homens, se eles
não percebessem que não há apenas diferentes formas de “evoluir”, mas também que
essa evolução, se é possível chamar assim, atende a critérios muito restritos e delimita-
dos pela cultura – e não a critérios estabelecidos anteriormente a elas, em outro lugar,
como a Europa. Nesse sentido, como bem aponta Castro (2006, p. 16):

O novo “método histórico”, por ele [Boas] defendido em oposição ao


comparativo, exigia que se limitasse à comparação a um território res-
trito e bem definido. A precondição para o estabelecimento de grandes
generalizações teóricas e a busca de leis gerais seria, portanto, o estudo
de culturas tomadas individualmente e de regiões culturais delimitadas.

Boas, à época, voltava-se também a outra escola que conhecera desde seus tempos
de Geografia, o difusionismo. Ao contrário dos evolucionistas, que pensavam que o fato
de duas práticas culturais que aconteciam em lugares distantes demonstravam que exis-
tia uma linha evolutiva que os ligava como produtos da espécie humana, os difusionistas
pensavam que uma determinada prática teria se originado de um mesmo lugar e através
de diferentes formas de contato (guerra, comércio, viagens etc.), essas práticas teriam se
difundido para outras regiões (CASTRO, 2006).

Nesse caso, mesmo reconhecendo a importância desses tipos de contatos para mu-
danças dentro de determinada cultura, essa difusão só poderia ser pensada em regiões
muito próximas, e em situações onde se poderia caracterizar com muita segurança a
hipótese dessa transmissão.
O que se vê na leitura do texto de Boas é que a cultura vai tomando lugar como o
conceito que melhor explica a diversidade humana. E não apenas isso, as diferentes
culturas vão deixando de ter um valor maior ou menor, de acordo com um critério
dominante que assegura para onde caminha a humanidade. Assim, “[...] a concepção

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boasiana de cultura tem como fundamento um relativismo de fundo metodológico, ba-
seado no reconhecimento de que cada ser humano vê o mundo sob a perspectiva da
cultura em que cresceu” (CASTRO, 2006, p. 18).

Embora esse autor ainda tenha sido um crítico ferrenho do racismo e da raciação dos
seres humanos, não abordaremos demoradamente o assunto. É apenas importante que
saibamos que, para Boas, as variáveis ditas “raciais” tinham, no fundo, um argumento
que era determinista biológico e não levavam em conta as interações sociais na constru-
ção do conceito de raça.

Podemos, portanto, assim sintetizar as críticas boasianas às duas bases do pensamen-


to evolucionista: determinismo biológico (pois, para o autor não existe uma evolução da
espécie humana e cada cultura deve ser examinada segundo seus próprios critérios de
“evolução”) e o determinismo geográfico (pois, para o autor, a análise das condições de
mudança e estabelecimento de determinadas práticas sociais dizem respeito à forma
como a cultura apreende determinado evento geográfico – e não é a geografia de uma
região que cria essas formas de lidar com aquilo. Por fim, Boas critica o difusionismo
que, como meio explicativo, carece de maior precisão, na medida em que não informa
como as interações entre as culturas aconteceram e a ligação entre isso e a prática social.

A cultura também faz parte de nosso cotidiano! Muitas vezes, em nosso dia a dia, depa-
ramo-nos com pessoas que têm algumas dificuldades que não temos. Quantas vezes
olhamos para essas pessoas como se fossem menos inteligentes do que nós? Quantas
vezes as inferiorizamos? Se levarmos em consideração o que aprendemos sobre Boas, os
seres humanos têm capacidades semelhantes, mas são desenvolvidas de modos diferen-
tes a depender do lugar de onde viemos e fomos criados, das oportunidades que tivemos
ou não. E se, ao invés de julgarmos alguém com dificuldades, procurarmos entender de
onde essa pessoa veio e como foi a vida dela?

Como lembra Kuper (1988), o grande linguista Roman Jakobson frequentemente


fazia a seguinte brincadeira a respeito de Boas: se um dia ele precisasse contar o Des-
cobrimento da América por Colombo, iria, primeiramente, dizer sobre as críticas dele e,
então, diria o que tinha a propor. Para Adam Kuper (1988), Jakobson percebeu muito
bem que a teoria boasiana é fundamentalmente crítica, mais do que qualquer outra coi-
sa, e se algo lhe falta, é um sentido prático dessa análise, entender in loco, como isso se
dá. Não faltaram, porém, alunos brilhantes que pudessem fazer isso por ele.

Aplicações da Antropologia
Culturalista – Margaret Mead
Para termos uma noção mais consolidada sobre como se dá essa concepção de Boas
na prática, dois estudos de uma de suas alunas mais importantes serão fundamentais.
Margaret Mead (1901-1978) foi uma respeitada antropóloga estadunidense, talvez a de
maior popularidade em seu tempo nos Estados Unidos. Devido a seus estudos acerca

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dos comportamentos sexuais de culturas tradicionais do Pacífico Sul e do Sudeste da


Ásia, a autora foi também muito citada pelas feministas na década de 1960 (veremos
mais adiante os motivos disso) e, ao mesmo tempo, foi muito criticada metodologica-
mente a partir da década de 1980.

Seu primeiro livro de sucesso foi Coming of age in Samoa – Adolescência em Samoa –,
originalmente publicado em 1928. Não nos focaremos nesse livro, porém, para que saiba-
mos o desenvolvimento de seus projetos discorreremos sobre ele um pouco. Entre outras
coisas, as descobertas da autora sugerem que as comunidades samoanas ignoram tanto
meninos como meninas até os 15 ou 16 anos de idade, antes disso, as crianças não
possuem nenhuma posição social dentro da comunidade. Ou seja, entre os samoanos as
crianças, pelo menos no que diz respeito às práticas mais elementares, não são alvos de
disputas políticas, o que garantia uma série de “liberdades sexuais” para os jovens o que,
segundo ela, garantiria também uma passagem tranquila da infância para a idade adulta
(passagem a que nós denominamos adolescência) e não marcada por traumas psicológi-
cos, ansiedades e confusão, tal como acontece no Ocidente.
Segundo Mead (1961), isso acontece porque as garotas de Samoa (que é quem ela
estuda com maior ênfase no livro) pertencem a uma sociedade estável e monocultural,
rodeada por modelos em que nada do que diz respeito aos fatos mais básicos da existên-
cia humana – como a cópula, o nascimento, as funções corporais ou a morte – eram es-
condidos. As garotas samoanas não eram pressionadas a corresponder a uma variedade
de valores conflitantes em relação às suas vontades, como as garotas ocidentais – aqui,
claramente a autora menciona as garotas norte-americanas, mas podemos transpor
facilmente isso para a nossa cultura.

Figura 5 Figura 6
Fonte: Getty Images Fonte: Getty Images

É importante notar que, embora Margaret Mead esteja tratando de uma cultura muito
diferente e distante da nossa, está, simultaneamente, criticando o modo que as nossas
práticas oprimem a nós mesmos e criam conflitos internos muito traumáticos para nós.
Faz isso mostrando que não é natural sermos assim, que esses conflitos não são inatos,
mas frutos de um doloroso processo de adaptação à nossa cultura, pois é ela que nos
pede que sejamos assim e, por não ser parte da nossa constituição como Homo Sapiens,
essa forma de nos relacionar pode mudar.
Em outro livro seu fica muito claro para nós esse posicionamento. Trata-se de Sex
and temperament in three primitives societies – Sexo e temperamento em três

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sociedades primitivas –, de 1935. Tornou-se a maior “pedra angular” do movimento
feminista, uma vez que ele alegava que o sexo (aparato biológico) e o temperamento
(personalidade) não eram relacionados naturalmente, mas construções culturais. Era
possível, por exemplo, que as mulheres comandassem uma região de Papua Nova Guiné
sem causar nenhum problema, ao contrário do que diziam teorias evolucionistas da
época, para quem a mulher, por seu temperamento passivo e emotivo, não poderia co-
mandar nada além da casa sem causar problemas, ou que os homens o fariam melhor.

Mead (1963) pôde perceber isso analisando três culturas distintas (Arapesh,
Mundugumor e Tchambuli) e, baseando-se na divisão clássica ocidental, que atestava uma
personalidade passiva e pacifista para as mulheres, por elas estarem ligadas à vida privada,
à casa e aos filhos, enquanto atribuía aos homens um papel ativo e guerreiro, ligados à
vida pública, à defesa do território e da integridade familiar, pode negá-la radicalmente.

Essas características eram vistas como próprias do ser humano. Homens evolutiva-
mente se tornaram isso e as mulheres aquilo. Não é difícil de imaginar tanto o potencial
crítico das pesquisas de Margaret Mead, como a comoção que esse livro causou nos
movimentos feministas.
Isso porque a autora mostrou que não só essas personalidades estão ligadas à própria
concepção que nós, em nossa cultura, temos dos homens como das mulheres. Não obs-
tante, essas concepções não encontram correspondência em outros lugares do mundo.
Segundo a autora, os Arapesh, por exemplo, eram pacíficos em seus temperamentos
e nenhum dos dois (homens e mulheres) faziam guerras. Já entre os Mundugumor, o
contrário acontecia: ambos faziam guerras e ambos tinham temperamentos bélicos.
Por fim, entre os Tchambuli, diferentemente desses três anteriores e muito distintos do
cenário que a autora encontrava nos Estados Unidos do começo do século XX, eram os
homens que tinham vidas relegadas a um plano privado e as mulheres que trabalhavam
e eram ligadas à vida pública.

Você Sabia?
Margaret Mead foi uma das cientistas mais importantes e famosas do século XX! Em
1976, ela foi conduzida ao National Women’s Hall of Fame, maior honraria destinada ex-
clusivamente a mulheres dos EUA. Em 1979, um ano após a sua morte, o presidente dos
EUA, Jimmy Carter fez uma homenagem póstuma a ela, concedendo a Margaret Mead
a Medalha Presidencial da Liberdade, a maior condecoração a civis que os Estados
Unidos possuem!

Fonte: https://bit.ly/39KaTQh

Repare como nos dois trabalhos, mas principalmente no segundo, é possível identi-
ficar as críticas boasianas tanto ao determinismo geográfico, quanto ao determinismo
biológico. Isto é, não são pelas condições climáticas, geomorfológicas ou hidrográficas
de uma região (Papua Nova Guiné) que práticas culturais são estruturadas, pois se tra-
tam de grupos que habitam regiões de um mesmo país, cujas condições geográficas são
semelhantes e mesmo assim possuem culturas muito distintas.
Igualmente, cabe pensarmos a crítica ao determinismo biológico. Ora, como já discu-
timos, esses casos evidenciam uma diferença muito grande em relação ao pensamento

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ocidental, principalmente estadunidense da época (e talvez de hoje, ainda): se culturas


tão distintas estabelecem relações aos sexos de modos diferentes das nossas, significa
que, em primeiro lugar, essas relações não estão pressupostas na própria distribuição
anatômica dos sexos (homem e mulher) e, em segundo lugar, se essas relações não es-
tão pressupostas, foram criadas num espaço de interação social e depois naturalizadas
como as únicas possíveis.

Ela demonstra, assim, o pressuposto fundamental da Antropologia Culturalista de


Franz Boas: os olhos com que vemos nossas práticas, que costumamos pensar ser o
único jeito possível e a melhor forma, são os olhos da cultura na qual estamos inseridos.
Só vemos as coisas como tal porque aprendemos a vê-las assim.

Figura 7
Fonte: Getty Images

Dos Usos da Cultura – Conclusões


Embora Boas tenha lutado veementemente contra os mais diferentes tipos de pre-
conceitos, e seus escritos sobre o método essencialmente culturalista tentem dar conta
da diversidade humana não como um fator de cisão entre as diferentes subjetividades
humanas, mas como algo que os colocava no mesmo patamar, sem melhores ou piores,
apenas pessoas que viviam de seus modos – que a cultura lhes proporcionava –, os mais
singulares eventos da vida. Muitos usos que acabavam por acirrar os preconceitos foram
feitos do conceito de cultura tal como ele mesmo estabeleceu. O exemplo mais caracte-
rístico disso é, sem dúvida, o apartheid sul-africano.

Como Kuper (1988) nos mostra, ao contrário do muito que foi propagado pela mídia
à época – inclusive nos dias de hoje ainda o dizem assim –, o apartheid não teve origem
em um racismo típico de um país colonizado, recém-independente. Ao contrário, como
nos mostra o autor, igualmente na África do Sul o racismo era visto com maus olhos,
pois, principalmente depois dos eventos da Segunda Guerra Mundial, a ideia de ver um
povo ser oprimido por sua raça era inaceitável e inadmissível.

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Figura 8
Fonte: Getty Images

Os critérios de raça não estavam colocados, o que houve foi uma espécie de doutrina-
ção, partindo de estudos de grandes acadêmicos daquela região, de temas que reforças-
sem as diferenças. Esses estudos mostravam que as populações negras possuíam uma
riqueza cultural própria que seria, ao mesmo tempo, muito frágil. Portanto, ao menor
contato com a cultura ocidental, já corrompida, poderia se esfacelar.

Assim, o argumento que se punha de modo convincente, inclusive aos negros, era
que, embora a convivência com os brancos fosse desejável, ela seria extremamente pe-
rigosa aos negros, uma vez que, nesse contato, eles poderiam perder as suas próprias
raízes culturais. Esse argumento chega a tal ponto de convencimento que persuade, até
certo ponto, boa parte da própria população negra (KUPER, 1988).

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UNIDADE Dos Usos da Cultura – Civilização, Cultura e Subjetividades

Material Complementar
Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade:

Livros
O crisântemo e a espada
BENEDICT, R. O crisântemo e a espada. São Paulo: Perspectiva, 2002.

Filmes
Invictus
Dir. Clint Eastwood, Estados Unidos, 2009.
Recentemente eleito presidente, Nelson Mandela (Morgan Freeman) tinha consciên-
cia que a África do Sul continuava sendo um país racista e economicamente dividido,
em decorrência do apartheid. A proximidade da Copa do Mundo de Rúgbi, pela pri-
meira vez realizada no país, fez com que Mandela resolvesse usar o esporte para unir
a população. Para tanto chama para uma reunião Francois Pienaar (Matt Damon),
capitão da equipe sul-africana, e o incentiva para que a selação nacional seja campeã.
https://youtu.be/211tsGoram8
Procurando Sugar Man
Dir. Malik Bendjelloul. Reino Unido; Suécia, 2012.
Nos anos 1970, Sixto Rodriguez foi um cantor de folk que tentou a sorte na cidade
de Detroit, lançando dois discos que não fizeram sucesso. Mais conhecido como
Rodriguez, sua trajetória musical teve continuidade na África do Sul, onde se tornou
um ícone da música pop local e inspiração para as gerações seguintes. Entretanto,
Rodriguez simplesmente havia desaparecido. Rumores indicavam que ele tinha se
suicidado, mas não havia qualquer confirmação. Até que, nos anos 1990, um grupo
de fãs resolveu tirar a história a limpo e desvendar a verdade por trás do paradeiro
do cantor.
https://youtu.be/UbTng0b4wHE

Leitura
Por uma semântica profunda: arte, cultura e história no pensamento de Franz Boas
ALMEIDA, K. M. P. de. Por uma semântica profunda: arte, cultura e história no
pensamento de Franz Boas. Mana, v. 4, n. 2, 1998.
https://bit.ly/2LB8sI4

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Referências
BOAS, F. As limitações do método comparativo da Antropologia. In: CASTRO, C.
(Org.). Antropologia Cultural. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

CASTRO, C. Apresentação. In: ________. (Org.). Antropologia Cultural. 3. ed. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

FREEMAN, D. Margaret Mead and Samoa: the making and unmaking of an


anthropological myth. Cambridge, MA, USA; London: Harvard University, 1983.

GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.

KUPER, A. Culture: the anthropologists’ account. Cambridge, MA, USA: Harvard


University, 1999.

________. The invention of primitive society: transformations of an illusion. London;


New York: Routledge, 1988.

LARAIA, R. B. Cultura: um conceito antropológico. 23. ed. Rio de Janeiro: Jorge


Zahar, 2009.

MEAD, M. Sex and temperament: in three primitive societies. New York: William
Morrow and Company, 1963.

________. Coming of age in Samoa: a psychological study of primitive youth for


western civilisation. New York: Morrow Quill, 1961.

TYLOR, E. A ciência da cultura. In: CASTRO, C. Evolucionismo cultural. Rio de


Janeiro: Zahar, 2005.

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