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RESUMO

A demolição e descaracterização dos bens de valor histórico e cultural em


decorrência do crescimento urbano desenfreado e a falta de planejamento
prévio é cada vez mais recorrente não só nos grandes centros urbanos, mas
em cidades de pequeno e médio porte. A proposta deste artigo é expor o
cenário atual da preservação do patrimônio histórico na cidade de Pau dos
Ferros, localizada no interior do estado do Rio Grande do Norte, e apontar as
ações depredatórias que direcionam o município para o caminho de uma cidade
sem memória. A despeito das edificações que sofreram com a ação de agentes
destruidores da memória local do processo de concepção de uma comunidade
e o papel de protagonista e antagonista da população na narrativa da perda da
memória desta cidade.

PALAVRAS CHAVE Preservação; Demolição; Descaracterização; Pau dos


Ferros; Memória.

ABSTRACT OU RESUMEN

The demolition and mischaracterization of assets of historical and cultural value


as a result of unbridled urban growth and the lack of prior planning is
increasingly recurrent in large urban centers. The purpose of this article is to
expose the current scenario in relation to the preservation of historical heritage
in the city of Pau dos Ferros, located in the interior of the state of Rio Grande
do Norte, 400km from the capital, and to point out the depredatory actions
that direct the city in the path of a city without memory. Despite the buildings
that suffered from the action of agents that destroyed the local memory of the
process of designing a community and the role of protagonist and antagonist
of the population in the narrative of the loss of memory of this city.

KEY-WORDS OU PALABRAS-CLAVE Preservation; demolition;


mischaracterization; Pau dos Ferros; memory.

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INTRODUÇÃO
Com o advento da modernidade tornou-se comum ver edificações, que faziam parte da
história das cidades brasileiras, serem demolidas ou descaracterizadas devido à uma
necessidade desenfreada por uma ideia de progresso, e a busca pela modernidade
arquitetônica, que atropela a crônica local desses espaços.
No município de Pau dos Ferros. Uma cidade que foi fundada por meio da atividade
pecuária e hoje é um centro econômico e educacional da mesorregião do Alto Oeste
Potiguar, essa realidade não é diferente. Mesmo sendo uma cidade no interior do estado
do Rio Grande do Norte, que fica a 400km da capital Natal, sua evolução urbana
demonstra uma constante busca pela atualidade arquitetônica, visando o crescimento
econômico através da especulação imobiliária, em ascensão na região.
“A demolição é o ato ou efeito de demolir, desmantelamento, destruição, demolimento.”
(Oxford Languages, 2022). Na arquitetura, ou melhor dizendo, no cenário histórico das
cidades, o conceito de demolição parte desse mesmo pressuposto, sendo também
associado ao termo “renovação”. A renovação urbana abre caminhos para o
desenvolvimento das cidades, muitas vezes sem se preocupar com a história presente
nessas quadras e edificações, apagando gradativamente a memória cultural de uma
comunidade.
Um dos exemplos que evidenciam e escancaram a falta de apego do pauferrense para
com a sua história é a Igreja Matriz, que sofreu com a descaracterização no decorrer do
tempo, e atualmente possui em si características que não faziam parte da sua composição
original. Tanto externa quanto internamente, a edificação passou por várias modificações
no decorrer dos seus 283 anos de história, em sua estrutura, forro, cobertura e fachada.
Nela pode-se destacar a demolição do altar-mor original em 1969 e o acréscimo de uma
torre como obra mais recente concluída em 2015 através da campanha “Casa mãe”.

Figura 1: igreja da Matriz sem as torres e com o obelisco. Fonte: acervo Toinho Dutra (1956).

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Figura 2: igreja da Matriz após as primeiras reformas. Fonte: acervo Toinho Dutra (1960).

Figura 3: igreja da Matriz atualmente. Fonte: Google Imagens (2022).

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Outro exemplo que demonstra o desmantelamento do conjunto edilício tradicional da
cidade foi a demolição de algumas das residências mais antigas localizadas na Praça da
Matriz para a construção do Plaza Shopping, que ocorreu em 2014. A área escolhida para
a construção do shopping causou uma descaracterização da paisagem urbana central da
cidade, e não passou por nenhum tipo de avaliação de impacto, inclusive por se tratar de
uma área com edificações tombadas pela gestão municipal, o que demonstra que a
especulação imobiliária vem se sobrepondo à preservação histórica e cultural da cidade.

Figura 4: casas que existiam no local onde o Plaza Shopping foi construído. Fonte: Jayane Dutra (2022).

Figura 5: Plaza Shopping Center. Fonte: Google Imagens (2022).

Mediante a esse contexto, este artigo procura entender as circunstâncias que levaram a
este cenário atual, que direciona Pau dos Ferros para o caminho de uma cidade sem
memória, evidenciando causa, efeito e possíveis medidas a serem tomadas para frear
esta situação iminente.

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PAU DOS FERROS: CONTEXTO HISTÓRICO E ATUAL
A sesmaria de Pau dos Ferros datada de 1733, entretanto, suas terras pertenceram ao
território da Vila de Portalegre até o dia 04 de setembro de 1856, quando a lei de nº 344
elevou à categoria de vila a povoação de Pau dos Ferros, estabelecendo os limites do
novo município (BARRETO, 1978, p.31 e 41).
Assim como boa parte das cidades do interior do estado do Rio Grande do Norte, Pau dos
Ferros tinha seus recursos baseado na pecuária, que ofereceu perspectivas de exploração
comercial e deu início a história da cidade. Muitas são as narrativas que permeiam a
origem de seu nome, mas em seu livro, José Jacomé cita a seguinte história:

A origem deste nome é a seguinte: No local onde está situada a cidade havia uma pequena
lagoa, à margem da qual crescia uma frondosa árvore. Essa lagoa servia de pouso de
comboieiros, boiadeiros e vaqueiros das fazendas espalhadas na região. Naquela árvore
gravavam os vaqueiros com ponta de faca os ferros ou marcas com que os fazendeiros
assinalavam seus gados. Há divergências na tradição quanto à natureza da árvore. Uns
dizem que era uma oiticica e outros afirmavam que era um jucá. A árvore ficou sendo
conhecida na circunvizinhança por “pau dos ferros”, nome que passou à fazenda, à
freguesia, e, finalmente ao município. (BARRETO, 1987, p.36)

Hoje, quase 166 anos após o sancionamento da lei que reconhece Pau dos Ferros como
município, a cidade, que se localiza a 400km da capital do Rio Grande do Norte, é
conhecida por todos como a “Princesinha do Oeste”. Tornou-se um centro comercial e
educacional que atende não só as cidades circunvizinhas que fazem parte do seu estado
de origem, como também, cidades que pertencem aos estados do Ceará e da Paraíba.

Figura 6: mapa de Pau dos Ferros e seus municípios vizinhos. Fonte: Google Imagens (2022).

Desde a sua formação, a cidade possuía edificações que marcaram as décadas através
de seus traços arquitetônicos, tornando-se lugares que fazem parte da memória coletiva1

1
A memória coletiva é compreendida/defendida por Halbwachs como processo de reconstrução do passado
vivido e experimentado por um determinado grupo social.

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da população pauferrense. O conceito de lugares de memória surgiu em meados do século
XX, com o historiador Pierre Nora, para quem o “lugar de memória” pode ser
compreendido por meio de três características: material, funcional e simbólica. A
presença desses lugares de memória e os esforços pela sua durabilidade são uma
resposta a possibilidade do esquecimento. Como ressalta Nora, “se o que [os lugares de
memória] defendem não estivesse ameaçado, não se teria a necessidade de construí-los.
Se vivêssemos verdadeiramente as lembranças que envolvem, eles seriam inúteis”
(NORA, 1993, p. 13).
Com o passar dos anos a cidade passou por diversas transformações, se tornando um
centro econômico e educacional, o que ocasionou alguns problemas urbanos, como o
crescimento exponencial da população e, consequentemente, de sua territorialidade, de
forma desordenada e sem uma legislação de regulamentação, que só veio a ser
implementada recentemente com a elaboração do Plano Diretor, em vigor desde 2022.
Junto a essa falta de planejamento vieram as demolições e descaracterizações, não só na
área central como nos bairros mais antigos da cidade, onde muitos bens de valor histórico
foram demolidos ou descaracterizados, em prol do crescimento econômico e do
progresso.
Apesar da Lei Orgânica do Município de Pau dos Ferros, elaborada na década de 1990,
apresentar declarações pontuais acerca da preservação do patrimônio histórico e cultural,
como: na seção I. Art. 13 e parágrafo XLIII “proteger o patrimônio histórico cultural”; na
seção II. Art 14, parágrafo IV “Proteger os documentos, as obras e outros bens de valor
histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios
arqueológicos”; e no parágrafo V da mesma seção, “impedir a evasão, a destruição e a
descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico ou cultural”, apenas
cinco bens são tombados pelo município, pela Lei nº 1509/2015, na cidade de Pau dos
Ferros, que correspondem ao Obelisco (Figura 7); ao Prédio Sede da Prefeitura de Pau
dos Ferros (Figura 8); à Casa da Cultura Popular Joaquim Correia (Figura 9); ao Mercado
Público Municipal Antônio Soares de Holanda (Figura 10) e ao Quartel da Polícia Militar
(Figura 11). Bens estes que foram tombados com base em interesses políticos e
econômicos, sendo ignorados todos os outros bens que fazem parte da memória da cidade
e não possuem nenhum instrumento de preservação, a exemplo da Igreja Matriz.

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Figura 7: Obelisco. Fonte: Google Imagens (2022).

Figura 8: Sede da Prefeitura de Pau dos Ferros. Fonte: Google Imagens (2022).

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Figura 9: igreja da Matriz sem as torres e obelisco. Fonte: acervo Toinho Dutra (1956).

Figura 10: igreja da Matriz sem as torres e obelisco. Fonte: acervo Toinho Dutra (1956).

Figura 11: igreja da Matriz sem as torres e obelisco. Fonte: acervo Toinho Dutra (1956).

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Esta situação, conforme será visto adiante, está contribuindo para o processo de perda
da história da cidade de Pau dos Ferros. Com o contínuo quadro de demolições das
edificações mais antigas para dar lugar ao novo ou a simplesmente nada, e as mudanças
de fachadas que descaracterizam completamente as edificações históricas.

A PERDA DA MEMÓRIA: BENS DEMOLIDOS E DESCARACTERIZADOS


Nesta sessão serão expostos os bens de valor histórico e cultural da cidade de Pau dos
Ferros que foram demolidos ou descaracterizados.

Antigo prédio da receita federal


A edificação funcionou como o Fomento Agrícola em 1954 e posteriormente como a
Receita Federal, tornando-se um bem importante para a história e desenvolvimento
econômico de Pau dos Ferros. O mesmo apresentava características do estilo art decó
sertanejo e era uma edificação térrea. Com o passar dos anos houve a desativação da
receita e o local permaneceu sem uso em estado de abandono, foi vendido em um leilão
no ano de 2020, e em fevereiro de 2021 foi demolido para dar espaço a um
estacionamento privativo de um supermercado.

Figura 12: antigo prédio da Receita Federal. Fonte: acervo Jânio Melo (2014).

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Figura 13: antigo prédio da receita federal abandonado. Fonte: acervo Jânio Melo (2019).

Figura 14: demolição do antigo prédio da receita federal. Fonte: acervo Jânio Melo (2021).

Figura 15: estacionamento privativo do supermercado Nonato. Fonte: Google Earth (2022).

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A “moderninha” da Rua Getúlio Vargas
A casa moderninha da avenida Getúlio Vargas, um dos poucos exemplares com
características de arquitetura moderna na cidade, construída na década de 1960, foi
demolida no ano de 2022 para dar espaço a uma lacuna urbana que serve de acesso para
um grande supermercado da cidade.

Figura 16: casa moderna da rua Getúlio Vargas. Fonte: acervo Memória do Sertão (2022).

Figura 17: Lacuna urbana criada pela demolição da casa para dar aceso a um supermercado. Fonte:
Google Earth (2022).

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Prédio da BR-405, nº 880
Esta edificação que carrega traços do estilo art decó sertanejo, já estava descaracterizada
com a implementação de um portão de aço, foi completamente demolida para que o
terreno pudesse ser vendido sem o custo da demolição.

Figura 18: Prédio da BR-405, nº880. Fonte: Google Earth (2022).

Figura 19: terreno à venda do antigo prédio demolido da BR-405. Fonte: Jayane Dutra (2022).

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Pavilhão da Praça da Matriz
O pavilhão da Praça da Matriz, foi erguido em 1947, uma construção com características
da arquitetura moderna, aonde antes aconteciam as festas da cidade. No ano de 2020 foi
feito um projeto de restauração por um arquiteto local que buscava transformar o
Pavilhão em um Café Central. No entanto, o conceito de restauração foi completamente
deturpado, visto que o projeto retirava todas as características originais da edificação.
Houve uma certa comoção da população durante o decorrer da obra e fez com que a obra
fosse interrompida antes de seu término, este projeto continua parado até hoje sem
previsão de retomada.

Figura 19: Pavilhão da Praça da Matriz. Fonte: Toinho Dutra (1965).

Figura 20: Projeto de restauração do Pavilhão. Fonte: Lucyvan Freitas (2020).

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Figura 21: Projeto de restauração do Pavilhão. Fonte: Lucyvan Freitas (2020).

Figura 22: Projeto de restauração do Pavilhão. Fonte: Lucyvan Freitas (2020).

Figura 23: Pavilhão da Matriz atualmente. Fonte: Jayane Dutra (2022).

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Castelinho da Matriz, nº214
O castelinho da matriz era um imponente exemplar da arquitetura eclética na cidade, foi
erguido no ano de 1917 e vinha sendo preservado até uma “ameaça” de tombamento no
ano de 2014, que fez o com que o dono da residência tomasse uma atitude drástica e
removesse todas as características que faziam de sua casa um bem de valor histórico
para a cidade de Pau dos Ferros. Em um relato do dono escrito por Thiago Holanda, ele
diz:

Infelizmente, a ameaça do tombamento legal me impediu de continuar preservando o


colorido e o vigor estilístico da minha casa. Não porque as nossas intenções, a minha e a
da vereadora-tombadora, não coincidissem, a princípio. Por mim, ainda teria feito muitas
renúncias, inclusive, financeiras para que aquela fachada permanecesse tão jovial quanto
o era no ano de 1917. Contudo, só o faria enquanto não me fosse negada a alternativa de
optar pelo inverso, de reinventá-la, de alterar as suas cores e ornamentos ou, até mesmo,
de destruí-la.
Se a minha liberdade de decidir o que era certo ou errado para a minha própria casa iria
ser substituída pela obediência servil de um “padrão estético” imposto pelos outros, sejam
governantes de ocasião ou outras figuras covardemente ocultadas pelo emblema do
“interesse público”, então tudo estaria invertido e já não mais existiria um autêntico direito
de propriedade. Antes que essa inversão ocorresse, preferi eu mesmo pôr pelo avesso os
termos do tombamento pessoal que havia feito naquele mês de dezembro de 1995. Ao
destruir a sua fachada, senti-me novamente a tombá-la tanto quanto na primeira vez.
Preservei a liberdade de ser o seu dono e da minha forma pessoal de amá-la. Nenhum outro
tombamento poderia ser mais legítimo. (HOLANDA, 2015, p.03)

Atualmente, a casa está ainda mais descaracterizada e parte dela deu espaço a uma loja
de roupas.

Figura 24: Castelinho da Matriz. Fonte: Thiago Holanda (2015).

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Figura 25: castelinho da Matriz descaracterizado após ameaça de tombamento. Fonte: Thiago Holanda

(2015).

Figura 26: castelinho da Matriz descaracterizado após ameaça de tombamento. Fonte: Thiago Holanda

(2015).

Figura 27: castelinho da Matriz atualmente. Fonte: Jayane Dutra (2022).

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Mercado Publico
O Mercado Público Municipal Antônio Soares de Holanda foi construído no ano de 1868,
manteve suas características originais e foi tombado no ano de 2015, no entanto, um
projeto de reforma que teve seu fim no ano de 2017, demoliu por completo seu interior,
mudando toda a configuração interna e foi adicionada uma estrutura metálica que destoa
das características arquitetônicas do edifício, destacando-se mais que ele próprio. Uma
ação totalmente oposta a proposta de tombamento que já havia sido realizada pelo
próprio município ao bem de valor histórico e cultural da cidade.

Figura 28: Mercado Público em 2014, antes de sua reforma. Fonte: Farias (2015).

Figura 29: Projeto de reforma do Mercado Público. Fonte: Blog Sertão Potiguar (2017).

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Figura 30: Mercado Público com reforma Finalizada. Fonte: Google Imagens (2022).

Figura 31: Demolição da parte interna do Mercado Público. Fonte: Blog Nossa Pau dos Ferros (2015).

Figura 32: Interior do Mercado Público com reforma Finalizada. Fonte: Monique Lessa (2019).

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Essas são só algumas das inúmeras edificações de valor histórico e cultural que compõe
a memória local da cidade de Pau dos Ferros e que padecem em consequência da busca
pela modernidade arquitetônica e vazia, atrelada a expansão urbana e o comercio
localista que se apodera de toda e qualquer oportunidade de ampliação de espaço e
modernização.
A função atribuída a essas edificações vai muito além de espaço e composição
arquitetônica, elas integram os lugares de memória coletiva que fomenta a concepção do
espaço ao se tornarem parte de um contexto histórico local. No livro A Lâmpada da
Memória, John Ruskin cita:

A memória pode ser verdadeiramente considerada como a Sexta lâmpada da Arquitetura;


pois, é ao se tornarem memoriais ou monumentais que os edifícios civis e domésticos
atingem uma perfeição verdadeira; e isso em parte por eles serem, com tal intento,
construídos de uma maneira mais sólida, e em parte por suas decorações serem
conseqüentemente inspiradas por um significado histórico ou metafórico. (RUSKIN, 2008,
p.55)

É na memória que se encontra todo o significado histórico e cultural de determinado meio,


pois, a memória é uma construção de fatos verdadeiros e significativos responsável por
impedir o esquecimento da concepção de uma comunidade. No caso de Pau dos Ferros,
a demolição e a descaracterização dos bens de valor histórico e cultural apaga
definitivamente todo e qualquer resquício e significado histórico presente nessas
edificações ao tirar sua identidade e valor. Ainda no livro A Lâmpada da Memória, John
Ruskin cita: “É como centralizadora e protetora dessa influencia sagrada, que a
Arquitetura deve ser considerada por nós com a maior seriedade. Nós podemos viver sem
ela, e ora sem ela, mas não podemos rememorar sem ela” (RUSKIN, 2008, p.54).
A arquitetura é uma peça fundamental no ato de rememorar a história local, visto que o
fato de ser construções sólidas capazes de ultrapassar o efeito do tempo permite que a
crônica seja lembrada em qualquer espaço de tempo. Em contrapartida, não é exequível
transporta-se para o lugar de memória se não há vestígios de identificação da história,
por isso, a arquitetura precisa ser vista como ferramenta de preservação pelas pessoas
que formam a comunidade, pois, elas possuem um papel de protagonismo, seja na
preservação ou demolição dos bens históricos culturais.

O PAPEL DAS POPULAÇÃO NA PRESERVAÇÃO DOS BENS DE VALOR


HISTÓRICO
A demolição e descaracterização dos bens de valor histórico são ações depredatórias da
memória contida nos espaços que compõe a cidade e no espirito de pertencimento da
população. A linha tênue entre preservar e demolir, tombar ou descaracterizar com base
nos valores culturais e históricos ou anseios pessoais e muitas das vezes individualistas,
segue sendo a razão para as mesmas ações, seja assertiva ou não, continuem
acontecendo mesmo em cidades interiorizadas como Pau dos Ferros. A causa sempre irá
advir das pessoas.

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O crescimento desenfreado dos centros urbanos, a busca pela modernidade arquitetônica,
aspirações econômicas, a falta de apego e zelo pelo bem histórico, a busca pelo progresso
e a insuficiência de lei que de fato cubra todo o cenário histórico da cidade são só alguns
dos motivos que principia o caminho para uma cidade sem memória. Destaca-se que o
município pauferrense até possui uma legislação (Lei Nº 1.509/2005) sobre preservação,
mas ela contempla apenas bens arquitetônicos considerados mais pertinentes, ou seja, a
Prefeitura, o Mercado Público Municipal Antônio Soares de Holanda, o Quartel da Policia
Militar e o Obelisco, colocando o restante na direção do poderio imobiliário e comercial
que se apodera de toda e qualquer possibilidade de posse que venha a surgir,
principalmente no centro da cidade.
O crescimento imobiliário e comercial é, se não for o maior, responsável pela
desapropriação cultural e histórica de Pau dos Ferros. É através dele que cada vez mais
surgem lacunas urbanas e um déficit histórico e cultural na região. Obviamente, quando
se fala sobre culpabilidade na não preservação dos bens de valor histórico e cultural, as
pessoas que constituem o local não se isentam da culpa, afinal, por trás do mercado
imobiliário há pessoas movidas pela ganância e pela necessidade de derrubar para
construir algo novo e consequentemente, vazio.
Assim como há a atribuição negativa no quesito preservar, também há outra óptica, onde
o papel das pessoas é preservar e manter a memória intacta, seja se movimentando para
impedir que edificações históricas sejam demolidas e descaracterizadas ou sendo o
agente da ação ao não fazer e ainda conscientizar os demais a sua volta sobre a
importância de manter viva a crônica do espaço. Além do mais, edificações de valor
histórico não conseguem cuidar-se unicamente só e acabam se deteriorando com o passar
dos anos ao ficar à mercê do tempo, uso e degradação natural, por isso, a contribuição
das pessoas no resguardo de edificações que trazem consigo vestígios culturais e histórico
é primordial para que a memória não pereça.

CONCLUSÃO
O projeto de demolir e descaracterizar o município de Pau dos Ferros está desenrolando-
se a todo vapor e a memória local, do processo de concepção da cidade está aos poucos
se esvaindo para dar lugar a modernidade arquitetônica e as lacunas urbanas preenchidas
por estacionamentos, empreendimentos imobiliários, vias de acesso para rede de
supermercado ou lojas e boutiques que integra o ponto central da cidade.
Seja pela falta de informação sobre preservação e tombamento ou políticas públicas de
preservação que englobe todas as edificações com esse teor e não apenas as consideradas
pertinentes como na legislação (Lei Nº 1.509/2005) sobre preservação, Pau dos Ferros
encontra-se no caminho para uma cidade sem memória. A modernidade aplacada pelo
mercado imobiliário parece reger a cidade em um único som, onde só é tocado duas
notas, a de demolição e a descaracterização dos bens histórico e culturais.
Dentre as formas de frear esse aceleramento está a introdução de políticas de
conscientização e educação patrimonial que buscam acondicionar as edificações que

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restam e que contribuem na construção da narrativa local. Outrossim, o Curso de
Arquitetura da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA), sede em Pau dos
Ferros, possui projetos de pesquisa como “Memória do Sertão: Estudo Arquitetônico de
Pau dos Ferros” que atua na realização de levantamentos de edificações residências,
comerciais, institucionais e religiosas do município para que ao menos haja registros sobre
a memória do lugar no processo de sua concepção.
Mediante a isso, este artigo tem como finalidade revelar como está a atual situação de
Pau dos Ferros no quesito preservação do patrimônio histórico e cultural, e também usar
o veículo para alertar sobre o rumo que a memória local está tomando ao ser descartada
sem que haja nenhum resquício de arrependimento ou culpabilidade dos agentes da ação
degradante. A ação que degrada o lugar de memória resulta na perca das características
históricas e culturais que caracterizam e distinguem a concepção de uma comunidade.

REFERÊNCIAS
BARRETO, José Jácome. Pau dos Ferros: História, tradição e realidade. Pau dos Ferros: 1987.
FARIAS, Fablênia Tatiany de. Comercio e cidade: processos e formas espaciais em Pau dos
Ferros/RN. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro
de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia.
Natal, 2015.
FERREIRA, Anna Cristina de Andrade et al. A cidade não para e a memória não perece: a
preservação patrimonial e as transformações urbanas na contemporaneidade. Porta Alegre:
Editora Fi, 2020.
HOLANDA, José Edmilson. Pau dos Ferros: crônicas, fatos e pessoas. Pau dos Ferros: Arte
Gráfica Pauferrense, 2006. 105 páginas.
HOLANDA, Thiago. Como o tombamento destruiu a história de uma arquitetura.
Disponível em: < https://caosplanejado.com/como-o-tombamento-destruiu-a-
historia-de-uma-arquitetura/> Acesso em: 19 agosto 2022.
MIRANDA, Lucas Mascarenhas de. Memória individual e coletiva. Disponível em: <
Memória individual e coletiva | Unicamp > Acesso em: 19 agosto 2022.
OLIMPIO, Monique Lessa Viera et al. Memória em risco: o processo de descaracterização
do centro histórico de Pau dos Ferros/RN. Belo Horizonte: Arquisur, Vol.1, 26.
PAU DOS FERROS. Lei N° 1509/2015, de 21 de outubro de 2015. Estabelece normas para
preservação e conservação das estruturas e semblantes culturais, históricos e
arquitetônicos, de prédios e monumentos de Pau dos Ferros/RN.
ROCHA, Ana Maria Goldim. PAIVA, Maria do Socorro de. BEZERRA, Maria do Carmo Costa.
Pau dos Ferros sua origem e desenvolvimento. Pau dos Ferros: 1972.
RUSKI, John. A Lâmpada da Memória. Cotia: Ateliê Editorial, 2008.

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