Você está na página 1de 15

AS DIVERSAS DIMENSÕES DO PATRIMÔNIO CULTURAL:

PATRIMÔNIO E MEMÓRIA SOCIAL


NARRATIVAS ARQUITETÔNICAS: A memória social da construção
de Volta Redonda através de suas primeiras edificações

SOARES, FERNANDA MEDEIROS CALHÁU. (1); VASCONCELLOS, VIRGÍNIA


MARIA NOGUEIRA DE. (2)

1. Mestra em Projeto e Patrimônio – PROARQ – FAU – UFRJ


Rua Raimundo Corrêa, 90 – Volta Redonda – 27250-815
fernandacalhau.arq@gmail.com

2. Professora do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura - UFRJ


Av. Pedro Calmon, 500 – Cidade Universitária – Rio de Janeiro – 21941-901
virginia.vasconcellos@gmail.com

RESUMO
Este artigo possui como objetivo discutir a importância da preservação de alguns exemplares
arquitetônicos da época da construção da Cidade de Volta Redonda, localizada no Estado do Rio de
Janeiro, como testemunhos de sua memória social. Contando com um projeto urbanístico de autoria
de Attílio Corrêa Lima, realizado no início dos anos 1940, sua construção foi um instrumento utilizado
para a implantação da indústria de base, no Brasil, durante o primeiro período de Governo de Getúlio
Vargas. Seu projeto está diretamente ligado à construção da Companhia Siderúrgica Nacional que,
na época, foi a maior unidade industrial do País. A cidade é constituída por estruturas simbólicas de
uma Cidade Moderna, contando com uma forma de ocupação racionalista, hierarquização viária e
infraestrutura projetada, representando um novo padrão de vida brasileiro e uma nova mentalidade.
Dentre as primeiras edificações construídas dentro deste plano de urbanização estão os “Hotéis de
Solteiros”, projetados para abrigar os funcionários que se mudavam para a cidade com a finalidade de
trabalhar nos diversos setores da indústria siderúrgica. Os referidos hotéis, localizados em um dos
principais eixos viários da Cidade, são um importante testemunho da memória social local, apesar de
vários exemplares remanescentes sofrerem significativas modificações ou, até mesmo, demolições
para darem espaço a edifícios de maior gabarito. Pelo fato de Volta Redonda ser uma cidade
relativamente recente, o imaginário coletivo ainda apresenta enorme dificuldade em assimilar tais
edificações como patrimônio histórico, o que torna necessária uma maior discussão sobre a
importância destes elementos, até então, não protegidos em nenhuma esfera, como símbolos da
identidade e memória local. Como metodologia utilizada, após a apresentação de um breve histórico
sobre a formação da cidade e suas características, serão discutidas a importância da preservação de
exemplares arquitetônicos e de sua ambiência como narrativa de um período histórico, como
formadores de uma memória social e elemento auxiliador na formação da identidade de um lugar. Por
fim, procura-se encontrar meios efetivos de conscientização e valorização do patrimônio pela
população local, sem que estes meios encontrados sejam considerados empecilhos ao
desenvolvimento da Cidade.

Palavras-chave: Memória social; Preservação arquitetônica; Volta Redonda - RJ.

11º Mestres e Conselheiros


Belo Horizonte/MG - de 26 a 28/06/2019.
Introdução

De maneira diferente à que ocorre na maior parte das cidades de todo o mundo, a Cidade
de Volta Redonda não foi constituída pela expressão da cultura de um local, mas sim pelo
desejo de expressão de um modo de vida idealizado. Durante o regime político do Estado
Novo (1937-1946), Getúlio Vargas desejava provocar um grande impacto com a construção
de uma usina siderúrgica (ACKEL, 2007, p. 176), marcando o início do rompimento de um
Brasil de características agrária e rural, rumo a tornar-se um País industrializado. Neste
período as instituições componentes do Governo foram reestruturadas, permitindo que os
mais diversos setores da sociedade desenvolvessem novos sistemas de relações, num
processo de mobilização econômica (instaurando uma nova ordem podutiva) e
desmobilização política (ASSIS, 2013, p. 17). Implantar uma indústria de base naquele
momento era essencial para iniciar o processo de desenvolvimento econômico e social do
País, pois a partir de tais indústrias, eram criadas condições para que os demais setores
industriais também fossem desenvolvidos. Portanto, a industrialização era vista como “fator
de independência e soberania nacional” (ASSIS, 2013, p. 21).

Em 4 de Março de 1940, através do Decreto-Lei nº 2.064, foi criada uma Comissão


Executiva do Plano Siderúrgico Nacional, com a finalidade de realizar os estudos técnicos
para a implantação e organizar a criação de uma companhia nacional que envolveria tanto a
participação de capital proveniente do Estado quanto de particulares, segundo Assis (2013,
p. 19). Fundada em 9 de Abril de 1941, após sua criação pelo Decreto-Lei 3.002 de janeiro
do mesmo ano, a Companhia Siderúrgica Nacional foi considerada um marco na história da
indústria brasileira, “difundindo o industrialismo no cenário econômico e cultural do país”
(ASSIS, 2013, p. 18) e promovendo a reforma política e administrativa no Brasil.

Com a criação da CSN, ainda era necessário decidir o local ideal para a implantação do
projeto, que deveria obedecer a certos aspectos de ordem técnica, climáticos e de ordem
militar. A localização deveria ser estratégica, centralizada em relação às fontes fornecedoras
de matérias-primas para a produção siderúrgica (o carvão utilizado seria proveniente de
Santa Catarina e o minério de ferro seria extraído do sul de Minas Gerais), proximidade em
relação aos dois maiores centros consumidores brasileiros (Rio de Janeiro e São Paulo),
abundância de água doce para realização do processo industrial e resfriamento de alto-
forno, contar com um fornecimento de energia eficiente, possuir potencial de abastecimento
agropecuário, existência de meios de transporte eficientes para o transporte de carga e
localização geográfica segura, longe do alcance da artilharia naval, conforme relata Ackel

11º Mestres e Conselheiros


Belo Horizonte/MG - de 26 a 28/06/2019.
(2007, p. 174 - 175). Este último aspecto era extremamente importante para a decisão do
local de implantação do projeto da usina siderúrgica, pois neste período ocorria a Segunda
Guerra Mundial. Costa (1992, p. 19) cita que “Lafaiete (MG), Vitória (ES), Antonina (PR) e
Santa Cruz (RJ), áreas em estudo, foram declaradas rejeitadas, por não atenderem aos
requisitos mínimos indispensáveis”. Atendendo a todos estes requisitos, a comissão
finalmente decidiu pela implantação na região compreendida entre as cidades de Barra
Mansa e Barra do Piraí, ambas no Vale do Paraíba fluminense, área caracterizada pela
cultura cafeeira, ao longo do século XIX. Nesta região, encontravam-se condições ideais: o
Rio Paraíba do Sul atenderia à necessidade de água doce para o funcionamento da
indústria, a Estrada de Ferro Central do Brasil já realizava a conexão entre Rio de Janeiro e
São Paulo, permitindo o transporte e escoamento da produção e também existia a
proximidade com a Serra do Mar, fator que conferia maior segurança em relação a possíveis
ataques.

Os estudos que levaram à decisão pela implantação no Sul do Estado do Rio de Janeiro
envolveram tanto técnicos nacionais quanto alemães e americanos. Vargas conseguiu
auxílio de técnicos destas duas nacionalidades por procurar manter o Brasil em posição de
neutralidade em relação à Segunda Guerra, visando à obtenção de vantagens econômicas
com a situação. Por fim, decidiu, em 1941, apoiar os Aliados, conseguindo dos americanos
boa parte do financiamento para a construção da Usina de Volta Redonda. Em troca, além
do Brasil oferecer a eles estabelecimento em bases militares no Nordeste, comprometeu-se
também a fornecer borracha e minério de ferro aos Estados Unidos, União Soviética e Reino
Unido (ASSIS, 2013, p. 18-19).

O sítio escolhido era um espaço de produção agrícola decadente, porém próximo à


infraestrutura necessária exigida pelo projeto (MOREIRA, 2002, p. 51), ocupado pelas
Fazendas Santa Cecília e Retiro, que foram desapropriadas. Este território era pertencente
ao 8º Distrito do Município de Barra Mansa. Até o ano de 1940, a população deste distrito de
Santo Antônio de Volta Redonda era de pouco mais de 3 mil habitantes, sofrendo uma
imensa transformação após a decisão de Getúlio Vargas pela implantação da primeira usina
siderúrgica no local (ACKEL, 2007, p. 174), passando a ser um foco e uma prioridade
nacional. De acordo com Assis (2013, p. 20), o relativo isolamento do local em relação aos
centros urbanos constituía, implicitamente, mais um aspecto favorável ao “novo trabalhador”
e à nova ordem urbana desejados pelo Governo Vargas, que queria consolidar um novo
pensamento nacionalista através de um novo modelo de País, de modo de vida, de

11º Mestres e Conselheiros


Belo Horizonte/MG - de 26 a 28/06/2019.
trabalhador, contando com novas ordens produtivas, econômicas, extendendo-se também
às esferas territorial e urbana.

A partir da contextualixação apresentada, este trabalho tem como objetivo discutir a


importância da preservação dos primeiros exemplares arquitetônicos desta nova Cidade e
da ambiência do projeto urbano de Attilio Corrêa Lima como testemunhos de um período
histórico brasileiro, da memória social e formação da identidade da população de Volta
Redonda.

Metodologia

A partir da contextualização apresentada, a metodologia escolhida para este trabalho


consiste na discussão, fundamentada a partir de referências bibliográficas, sobre a
importância da preservação de alguns dos primeiros exemplares arquitetônicos construídos
na Vila Operária de Volta Redonda e da ambiência do projeto executado por Attílio Corrêa
Lima. Tais elementos configuram-se como importantes narrativas de um período histórico da
história brasileira, como formadores da memória social de uma cidade relativamente recente
e como construtores da identidade local.

Primeiramente serão abordados alguns conceitos e critérios adotados por Corrêa Lima para
o plano de construção da referida Vila Operária. A partir disso, será discutida a função da
arquitetura como elemento conformador de memória social e identidade. Como recorte para
a realização desta análise foram selecionados os hotéis de solteiros da Rua 33 (também
denominada Alberto Pasqualine), uma das vias mais representativas deste projeto e período
histórico, devido ao grande número de hotéis remanescentes ou adaptados às necessidades
atuais. Por fim, serão apresentadas algumas considerações para a preservação e
valorização deste patrimônio arquitetônico e urbano que vem sobrevivendo às mudanças
sociais.

1. O Plano de Attílio Corrêa Lima para a Vila Operária de Volta


Redonda

Com a construção da indústria siderúrgica, iniciada em 1941, através do financiamento


obtido com o Export Import Bank of Washington (COSTA, 1992, p. 19), tornava-se
necessário também criar toda a infraestrutura urbana de apoio para receber os que
trabalhariam neste novo empreendimento. Assis (2013, p. 1) cita que “este conjunto

11º Mestres e Conselheiros


Belo Horizonte/MG - de 26 a 28/06/2019.
constituiu um esforço na história da sociedade brasileira em marcar e consolidar as ideias e
o pensamento nacionalista de Vargas e do Estado Novo”. O projeto urbano para a criação
da Vila Operária de Volta Redonda foi confiado ao arquiteto e urbanista Attílio Corrêa Lima
(1901 – 1943), um dos precursores do urbanismo moderno brasileiro e autor de diversos
planos, dentre eles o da cidade de Goiânia. Apesar de mais modesto, este novo projeto
serviria como base para expressar o modelo desenvolvimentista do governo da época e
como instrumento para moldar a sociedade a um novo estilo de vida moderno e urbano,
simbolizando uma nova era na história brasileira. A construção de Volta Redonda foi uma
das primeiras experiências do urbanismo progressista no Brasil , segundo Ackel (2007, p.
178).

Elaborado entre os meses de junho e dezembro de 1941, o Plano da Vila Operária (Figura
1) foi inspirado no modelo da Cité Industrielle de Tony Garnier, este considerado por Choay
(1965, p. 163) como o primeiro manifesto do urbanismo progressista. A escolha deste
modelo foi justificada pela natureza da cidade e ao programa que deveria ser desenvolvido
(ACKEL, 2007, p. 178), apesar de ser considerado bastante utópico pelo próprio Garnier.
Moreira (2002, p. 54) cita que também há influências das Garden Cities de Howard e das
experiências de cidades soviéticas que à época estavam se desenvolvendo em torno da
atividade de produção. De acordo com Lopes (1993, p. 83 apud MOREIRA, 2002, p. 54), a
principal diferença era que “enquanto o modelo de Garnier concebia uma cidade
administrativamente autônoma, com terra socializada, a Vila Operária de Volta Redonda
pertencia à empresa”.

Figura 1 - Plano de Attilio Corrêa Lima, 1941. Fonte: MOREIRA, 2014, p. 21.

11º Mestres e Conselheiros


Belo Horizonte/MG - de 26 a 28/06/2019.
Attílio construiu seu plano em uma área contígua à usina siderúrgica, prevendo a construção
de 4 mil unidades habitacionais, destinadas a abrigar cerca de 20 mil habitantes, e também
incluindo os mais diversos equipamentos urbanos necessários para garantia de uma vida
confortável e agradável para a população que ali iria residir (ACKEL, 2007, p. 176). Foi
adotado predominantemente um traçado simples e ortogonal, que priorizava a ocupação das
áreas mais planas situadas entre a linha ferroviária da estrada de Ferro Central do Brasil , a
qual realizava a separação entre a área da indústria e cidade, e as montanhas existentes ao
sul (ACKEL, 2007, p. 178).

O projeto da Usina, elaborado pela empresa americana Arthur G. McKee & Co (1941),
influenciou na elaboração do traçado adotado por Attilio. O plano viário não apresentava
nenhuma escala de monumentalidade, mas seu traçado em linhas retas permitia a criação
de perspectivas de eixos importantes, facilitava os fluxos viários e deslocamentos à pé
(ACKEL, 2007, p. 178). O Centro Comercial foi localizado entre a Usina e o Bairro Santa
Cecília, área residencial destinada aos técnicos e operários especializados. O desenho
urbano adotado, que permitia um fácil acesso de todos os bairros à indústria, facilitava um
rígido controle sobre a vida de todos os agentes formadores desta nova sociedade,
reforçado pela proximidade dos locais de residência com o local de trabalho. Como
característica evidente influenciada pelo Plano de Tony Garnier estavam os recuos
ajardinados de dez metros das fachadas frontais em relação às vias, característica que
facilitava o cumprimento de regras higienistas, ausência de muros, portões ou qualquer tipo
de barreiras e a integração com as áreas verdes da cidade.

A Vila Operária (Figura 2) compreendia a criação de três bairros (Santa Cecília, Conforto e
Laranjal), diferenciados entre si por apresentarem distintas áreas dos lotes, diferentes taxas
de ocupação e tipologias habitacionais (ASSIS, 2013, p. 44), revelando a existência de uma
nítida estratificação social. O Bairro Conforto foi destinado à habitação de operários não
especializados e o Bairro Laranjal aos engenheiros e administradores. As diferentes
tipologias, localização e comodidades que as habitações apresentavam eram variáveis de
acordo com a função e faixa salarial dos funcionários que ali residiriam. É importante
ressaltar que Attílio “foi responsável apenas pelo plano urbanístico (...) e pela concepção
geral dos principais volumes e disposições dos edifícios. Os projetos de arquitetura foram
desenvolvidos por vários outros profissionais da equipe permanente ou contratados”,
segundo Lopes (2003, p.77 apud ACKEL, 2007, p. 182).

11º Mestres e Conselheiros


Belo Horizonte/MG - de 26 a 28/06/2019.
Figura 2 – Maquete da Vila Operária de Volta Redonda. Fonte: IPPU/VR, s/d.

A seguir, será analisado o projeto dos hotéis de solteiros, construções bastante


características da identidade conferida ao projeto e um dos primeiros exemplares a
formarem a paisagem urbana de Volta Redonda, tornando-se importantes elementos da
memória social do período de construção da Cidade.

1.1. Os hotéis de solteiros

Todas as residências em todos os bairros que foram parte do projeto inicial da Vila Operária
foram construídos pela Companhia Siderúrgica Nacional e cedidas a seus funcionários,
independentemente do extrato social ao qual pertenciam (apesar de serem alocados de
acordo com o nível de renda e instrução), conforme relatado por Ackel (2007, p. 183),
excetuando-se esta situação na região conhecida como “Volta Redonda Velha”, núcleo
inicial de povoamento do distrito. A empresa também era responsável pela manutenção das
residências que havia construído, atividade que pode ser interpretada como uma forma de
controle e subordinação sobre seus funcionários.

11º Mestres e Conselheiros


Belo Horizonte/MG - de 26 a 28/06/2019.
Dentre as moradias projetadas para o início da construção de Volta Redonda foram
executados pequenos conjuntos constituídos por dois pavimentos, de características
neocoloniais, conhecidos como “Hotéis de Solteiros”. Dispostos ao longo de toda a Rua 33,
um dos principais eixos viários constituintes da Cidade, estes hotéis (Figura 3) foram de
extrema importância para abrigar durante muitos anos os funcionários especializados que
chegavam ao local para trabalhar, oriundos das mais diversas regiões do País. Alguns
exemplares eram diferenciados e apresentavam varanda na fachada frontal (Figura 4).

Figura 3 – Hotéis destinados aos funcionários solteiros ao longo da Rua 33. Fonte: IPPU/VR, 1946.

Figura 4 – Levantamento da compartimentação dos antigos hotéis de solteiros com varanda. Fonte:
ZAMBELLI, Ian. Volta Redonda – A Vila como Patrimônio. Trabalho Final de Graduação. Curso de
Arquitetura e Urbanismo do UGB, 2016. (4 Pranchas)

11º Mestres e Conselheiros


Belo Horizonte/MG - de 26 a 28/06/2019.
Apresentavam características neocoloniais em suas fachadas e eram compostos por dois
pavimentos. Um corredor central existente, em ambos, realiza a distribuição dos fluxos para
acesso a todas as dependências, dotadas de ventilação e iluminação natural. Os referidos
hotéis ainda hoje são característicos e conformadores da paisagem local, sobrevivendo às
intensas transformações que a forma e o caráter da região da antiga Vila Operária vem
sofrendo ao longo dos últimos anos. Após a privatização da CSN no início dos Anos 1990,
as relações entre indústria e cidade começaram a se modificar e muitas construções que
eram propriedades da empresa ficaram abandonadas. Sem apresentar propostas para
utilização deste patrimônio, muitos exemplares ficaram abandonados, sofrendo o desgaste
da passagem do tempo e esperando uma oportunidade para serem alvos da especulação
imobiliária. A ambiência da Rua 33 e do projeto urbano de Attílio Corrêa Lima se modificam
continuamente, acompanhando o ritmo acelerado da vida contemporânea. Percebe-se que
quanto mais próxima da área projetada como centro comercial, mais oprimidas estão estas
edificações remanescentes (Figura 5). Quando não se encontram sufocadas por edifícios
altos, geralmente estão abandonadas ou foram demolidas, a fim de dar lugar a construções
com maior potencial construtivo.

Figura 5 – Hotel remanescente sem uso atual definido. O edifício alto ao lado afeta todo o cuidado
com as questões de ventilação e iluminação adequadas das construções, além de contrastar com a
escala original. Foto: SOARES, F. M. C.. Junho/2019.

11º Mestres e Conselheiros


Belo Horizonte/MG - de 26 a 28/06/2019.
Posteriormente ao processo de privatização da Companhia o acesso a todos estes
equipamentos edificados que ainda eram de propriedade da mesma, aos documentos e aos
seus projetos originais foi dificultado ou até mesmo proibido. Esta postura adotada pela
empresa, além de provocar uma possível perda da memória social local com a passagem do
tempo, dificulta também uma possível solicitação de proteção ou regulação das intervenções
futuras nestes objetos, devido à falta de embasamento teórico e documental que atestem
sua importância, restando à população a alternativa de preservação da memória destas
construções através de registros fotográficos. Estes hotéis não representam apenas o início
de um novo período político e econômico brasileiro, mas também expressam a
materialização de uma organização social e espacial consideradas ideais em determinado
momento da história brasileira como modelo futuro de país.

2. A arquitetura como elemento de memória social e identidade

Ao contrário do que geralmente ocorre em todo o mundo, a área de Volta Redonda


compreendida por esse estudo não foi formada pelo resultado das ações espontâneas e
expressão dos anseios de uma população sobre o território, e sim a materialização de uma
sociedade idealizada por alguns poucos indivíduos, composta por elementos “prontos”,
utilizadas para abrigar pessoas provenientes dos mais diversos lugares do Brasil em busca
de trabalho e / ou de uma oportunidade de vida melhor, que carregavam consigo inúmeras
culturas e identidades. A mescla e somatório de todos estes agentes sobre o território
conformou ao longo do tempo a identidade do lugar. Citando Heidegger (1954), Pinheiro
(2014, p. 226) nos lembra que “o território é consequência de um habitar”. A relação de
pertencimento dos indivíduos em relação ao território em que habitam é de extrema
importância, pois deve estabelecer uma relação de identificação e de convergência de
interesses de uma comunidade. São estas características comuns entre os sujeitos
pertencentes a um mesmo território que são capazes de definir uma identidade (PINHEIRO,
2014, p. 226).

As cidades encontram-se em transformação permanente, sendo praticamente impossível o


seu congelamento no tempo, pois em conjunto com a arquitetura conformadora de suas
imagens, são resultado da expressão tanto do passado quanto da sociedade atual,
formando narrativas da ação do tempo, das preferências de uma sociedade, de seus
desejos e, quase sempre, da condição econômica do lugar. Dodebei, Farias e Gondar
(2016, p. 11) citam que a memória não é apenas referente ao passado, “ela pode ser
considerada também do futuro, pois a imaginação articula esses dois tempos mágicos e

11º Mestres e Conselheiros


Belo Horizonte/MG - de 26 a 28/06/2019.
simbólicos – passado e futuro – sem diacronia, ordem cronológica ou ordem evolutiva”.
Assim como os territórios, Pinheiro (2014, p. 227) aponta que as identidades também se
afirmam como fatos dinâmicos e, consequentemente, instáveis. Como um organismo vivo,
as identidades também estão sujeitas a mudanças. Já no caso dos chamados “núcleos
urbanos históricos”, conjunto de elementos que carregam as marcas do passado em sua
fisionomia, as identidades vão sobrevivendo (PINHEIRO, 2014, p. 230). À medida que
permanecem no território, afirmam-se como expressões das ações humanas e reforçam seu
valor tanto na dimensão tangível quanto intangível. São fatores como a persistência da
permanência de determinados objetos arquitetônicos que “são testemunhos autênticos de
uma genética identitária que é responsável pela diferenciação dos lugares, das suas
respectivas sociedades e, inclusivamente, pela diferenciação (...) às novas camadas”
(PINHEIRO, 2014, p. 231).

A importância destas primeiras edificações construídas em Volta Redonda não reside


apenas na sua materialidade, e sim na narrativa e no significado expressado pelos
elementos que as constituem (Figura 6). São estes significados que conferem seu valor
patrimonial e formam as memórias coletivas da sociedade e do local aonde estão inseridos
(PINHEIRO, 2014, p. 231). A permanência de tantos exemplares ao longo dos anos reforça
a ideia de que são representativas da gênese e da identidade que se construiu sobre um
território surgido a partir de uma idealização. É a própria cidade e sua arquitetura que
narram sua história e memórias, e apesar das contínuas tranformações produzidas no
cenário da Rua 33, praticamente inevitáveis com a passagem do tempo (ainda mais quando
permitidas pelo poder público e se tornam alvos da especulação imobiliária), a construção
de novos edifícios de gabarito alto e a narrativa deste período histórico contemporâneo
ainda não se sobrepuseram às características arquitetônicas originais da Rua 33, que já
começa a apresentar diversas camadas construídas ao longo de sua existência.

Figura 6 – Exemplos bem-sucedidos de adaptação da arquitetura às necessidades contemporâneas,


sem mudanças significativas na construção original. Foto: SOARES, F. M. C.. Junho/2019.

11º Mestres e Conselheiros


Belo Horizonte/MG - de 26 a 28/06/2019.
No próximo tópico, serão discutidos alguns possíveis instrumentos utilizados para a
preservação da memória social e consequente valorização do patrimônio arquitetônico.

3. Instrumentos de valorização do patrimônio arquitetônico

Por tratar-se de uma cidade de construção relativamente recente, é possível considerar que
grande parte da população local de Volta Redonda não veja as edificações remanescentes
do período de sua construção como bens com valor patrimonial e dignos para serem objetos
protegidos e preservados. A natureza acelerada da vida cotidiana e o gosto pela inovação,
muito presente na sociedade atual, fomentado também pela propaganda dos especuladores
imobiliários, faz com que, aos poucos, as transformações e permanências se revelem de
forma rápida, e com que a história tanto do lugar quanto do Brasil se percam. A falta de
conhecimento do Plano original, bastante modificado ao longo do processo construtivo e da
relevância deste para a história, é um fator fatores que reforça, ainda mais, o descaso com
as edificações citadas ao longo desta reflexão.

Diante dos entraves produzidos pela CSN e da falta de ação da Municipalidade, que permite
que tais construções permaneçam ociosas e se deteriorem em área urbana dotada de
excelente infraestrutura (Figura 7), torna-se necessária a realização de um intenso trabalho
de conscientização da população sobre o valor do patrimônio que possuem.

Figura 7 – Sinais de deterioração e abandono em antigo hotel de solteiros. . Foto: SOARES, F. M. C..
Junho/2019.

11º Mestres e Conselheiros


Belo Horizonte/MG - de 26 a 28/06/2019.
Todos somos agentes urbanos nos espaços que habitamos e somos também, de certa
forma, “proprietários” do patrimônio histórico-cultural de algum lugar quando pertencemos a
ele, pois a permanência destes objetos e valores, compreendendo as dimensões materiais e
imateriais, é reflexo do “ser” dos agentes de um território. Como forma de aproximar a
população leiga da questão da cidade como lugar de memória social, foi criado em 1954,
pouco antes da emancipação, o Clube Foto Filatélico de Volta Redonda, um pequeno
espaço museológico reconhecido pelo Instituto Brasileiro de Museus, que também abriga
eventos de pequeno porte. Seu acervo preserva e difunde os testemunhos da revolução
industrial brasileira, ocorrida a partir da criação da Companhia Siderúrgica Nacional e de
Volta Redonda. Infelizmente seus eventos e exposições não são muito divulgados, mesmo
estando inserido numa área de grande fluxo de pessoas.

Apesar da pouca visitação que o Clube Foto Filatélico recebe, uma estratégia adotada na
atualidade e bastante eficiente para aproximação da população com a história e memória
social local foi a divulgação do acervo através das redes sociais. Através da divulgação de
fotos antigas e ações de interação com o público, cresce o interesse pela preservação da
memória até mesmo pela população leiga, em quem é despertada a relação de
pertencimento, de identidade e a curiosidade sobre a história. Jogos de descobertas de
quem são as pessoas nas imagens, tentativas de localização dos sítios de edificações que
já não existem mais e comparações entre fotos antigas e recentes com seus marcos na
paisagem são algumas estratégias eficientes de preservação da memória e valorização do
patrimônio, despertando o interesse dos mais velhos e das novas gerações. De acordo com
Silva (2016, p. 309 - 310), “o artefato fotográfico, com o seu caráter de testemunho, tem
contribuído com o campo de investigação da memória, e para que esta tenha um certo
poder de reconhecimento social e coletivo”, constituindo-se como um documento imagético.
Os registros fotográficos constituem-se, portanto, como narrativas não verbais de
identificação de experiências e memórias.

Considerações finais

A partir da reflexão desenvolvida, pode-se perceber a importância de existirem iniciativas


para a preservação da memória social de uma cidade recente como Volta Redonda. Em seu
pouco tempo de existência já torna-se possível observar as marcas da passagem do tempo,
os símbolos de identidade, memória social e permanência. É impossível conseguirmos

11º Mestres e Conselheiros


Belo Horizonte/MG - de 26 a 28/06/2019.
preservar tudo diante das intensas mudanças sofridas na vida cotidiana e do grande poder
exercido pelo capital privado, que consegue se impor diante de leis brasileiras e dos desejos
de uma população. A mesma empresa que construiu uma cidade, quando era de
propriedade nacional, hoje, nas mãos da iniciativa privada, contribui dia a dia para a sua
deterioração e perda dos elementos que formam sua história.

Só o tempo poderá dizer quantos exemplares de hotéis de solteiros e das primeiras


edificações de Volta Redonda resistirão no futuro, quanto da narrativa arquitetônica será
preservada e o quanto do caráter do projeto original para a Vila Operária resistirá. Diante da
falta de poder para entrar em conflito com uma empresa que passa por cima de todas as leis
e anseios de uma população, parece que a única alternativa que resta para a preservação
da memória social é o registro fotográfico. Silva (2016, p. 310) aponta que a interseção entre
fotografia e memória ocorre pelo aspecto testemunhal, e que “o caráter de testemunho, que
podemos definir como campo de experiências, possibilita a projeção do reconhecimento do
horizonte como expectativa”. As fotografias constituem um meio de rememorar o passado
com o olhar do presente, e com o objetivo de transmissão desta representação de tempo
congelado sobre papel para o futuro, produzindo uma relação de identificação e inserção do
observador em uma época que já não existe mais. Graças ao do uso da tecnologia e da
internet, tornou-se possível utilizar mais um meio de preservação das memórias sociais e
das fotografias, permitindo a rápida difusão e compartilhamento de testemunhos históricos.

Bibliografia

ACKEL, Luiz Gonzaga Martans. Attílio Corrêa Lima: Uma trajetória para a modernidade.
2007. 342 p. Dissertação (Doutorado em Projeto de Arquitetura) – Faculdade de Arquitetura
e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.

ASSIS, Renata Oliveira. Usina e Cidade: Harmonia, conflitos e representações do / no


espaço urbano em Volta Redonda, RJ. 2013. 154 p. Dissertação (Mestrado) – Programa de
Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal de Viçosa, Viçosa, 2013.

CHOAY, Françoise. O Urbanismo: utopias e realidades. São Paulo: Perspectiva, 1965


(Coleção Estudos).

COSTA, Alkindar. Volta Redonda ontem e hoje. Volta Redonda: Prefeitura, 1992.

11º Mestres e Conselheiros


Belo Horizonte/MG - de 26 a 28/06/2019.
DODEBEI, Vera; FARIAS, Francisco Ramos de; GONDAR, Jô. Revista Morpheus (Número
especial: Por que memória social?). Revista Morpheus - Estudos Interdisciplinares em
Memória Social, [S.l.], v. 9, n. 15, mar. 2016. ISSN 1676-2924. Disponível em:
<http://www.seer.unirio.br/index.php/morpheus/article/view/5475>. Acesso em: 21 junho
2019.

MOREIRA, Andréa Auad. A Inscrição do Movimento Moderno no Patrimônio Arquitetônico e


Urbanístico em Volta Redonda. – Volta Redonda / RJ: FERP, 2014.

MOREIRA, Andréa Auad. Barra Mansa: Imagens e Identidades Urbanas. 2002. 185 p.
Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Urbanismo, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002.

PINHEIRO, Vasco Maria Tavela de Sousa Santos. Reterritorialização dos núcleos urbanos
históricos. In: GAZZANEO, Luiz Manoel (Org.). Artes & Território no mundo lusófono e
hispânico. Rio Books, 2014. P. 224-236.

SILVA, Sérgio Luiz Pereira da. Desafios metodológicos em memória e fotografia. In:
DODEBEI, Vera; FARIAS, Francisco Ramos de; GONDAR, Jô. Revista Morpheus (Número
especial: Por que memória social?). Revista Morpheus - Estudos Interdisciplinares em
Memória Social, [S.l.], v. 9, n. 15, mar. 2016. ISSN 1676-2924. Disponível em:
<http://www.seer.unirio.br/index.php/morpheus/article/view/5475>. Acesso em: 21 junho
2019.

11º Mestres e Conselheiros


Belo Horizonte/MG - de 26 a 28/06/2019.

Você também pode gostar