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MORHY, SAMIA (1); LIMA, JOSÉ JÚLIO (2); PONT VIDAL, CELMA (3)
1. Universidade Federal do Pará. Instituto de Tecnologia, Programa de Pós-Graduação em
Arquitetura e Urbanismo
Rua Augusto Corrêa, 01. Campus Universitário do Guamá, Belém, Pará, Brasil - CEP 66.075.110
samiamorhy@gmail.com
RESUMO
A imposição de leis urbanísticas nas cidades em áreas de valor a preservação pressupõe a regulação
de construção relacionada à proteção do patrimônio. A ação do Estado na condução da gestão
edilícia decorrente das leis insere-se na expressão de um discurso político criado em torno de valores
incorporados nas intenções da política de preservação. A introdução da modernização como ideário
político lançada inicialmente na capital paraense na era do Intendente municipal Antônio Lemos
(1902–1912) e consolidada no governo de Getúlio Vargas (1937–1945) incentivou uma mudança nos
hábitos sociais dos moradores de classe alta em termos de local da moradia. Com efeito direto sobre
o Centro Histórico de Belém, protegido por legislação específica federal em 2012 e por legislação
municipal desde 1990, este artigo trata da relação entre o processo de degradação arquitetônica dos
sobrados e casario do bairro da Campina construídos até o início do século XX com os efeitos da
modernidade operados em dois períodos de centralização política e limitações no regime de direitos
democráticos. Ainda que marcadamente ligados a elites econômicas, a modernidade enquanto
discurso contrapõe-se a uma compreensão subjetiva de sua casualidade. Para a compreensão da
subjetivação dos fatos relativos à modernização no bairro da Campina, no início do XX, este artigo
constrói um discurso historiográfico sobre a modernização em Belém durante o período lemista e, em
seguida, durante o Estado Novo varguista, buscando revelar as relações entre as historiografias dos
dois momentos de poder político centralizador e a modernização sobre o local de morar, o qual
estaria associado, contraditoriamente, a um processo de degradação do estoque edificado de um
bairro histórico de Belém. A partir destes dois momentos, o trabalho busca articular em uma terceira
parte, na qual, por meio do discurso historiográfico construído, associar a modernidade presente na
mudança cultural e nos hábitos sociais da camada da população de alta renda, ligados ao poder
político em vigor, com a introdução da modernização do local e na forma de morar, aguçando o
sentido da modernidade como fator relevante de status social, sob pena de perder o patrimônio
arquitetônico eclético. Ressalta-se que a população residente no Centro Histórico de Belém,
conforme Censos do IBGE de 2000–2010 aumentou 7.5%, mesmo sem nenhuma política
incentivadora ao uso habitacional, o que leva a sugerir políticas de retorno da moradia ao Centro. Ao
final do artigo, há a indicação de políticas habitacionais, por meio de ações governamentais ou civis.
Com destaque para maior participação social nos projetos, uma vez que este item é uma das
conquistas democráticas recentes no planejamento urbano, bem como, que sejam capazes de
fomentar uma mudança cultural e nos hábitos da sociedade local visando aguçar seu interesse de
retornar a moradia nos sobrados ecléticos do tombado núcleo urbano de Belém e minimizar sua
degradação.
Palavras-chave: modernização, modernidade, moradia, ruínas, Centro Histórico de Belém/PA
O paper busca construir aquilo que é sugerido por Dias e Chaves (2015, p. 6), quando
mencionam que “a pesquisa historiográfica, irremediavelmente recai numa ressignificação
subjetiva dos fatos”. Assim, para compreender a subjetivação dos fatos relativos à
modernização no bairro da Campina, no início do XX, este artigo constrói um discurso
historiográfico sobre a modernização em Belém durante o período de Antônio Lemos e em
seguida, a modernização durante o Estado Novo do presidente Getúlio Vargas. A partir
destes dois momentos, o trabalho busca articular em uma terceira parte, as relações entre
as historiografias dos dois momentos com a degradação arquitetônica atualmente expressa
na ocorrência de ruínas, no bairro da Campina.
Durante o século XIX o núcleo urbano de Belém se expandiu e desenvolveu através das
atividades atacadistas da zona portuária, passando a atrair o comércio a varejo, serviços
especializados, indústrias, os principais estabelecimentos administrativos e religiosos
formando o centro comercial tradicional de Belém, além das residenciais das camadas mais
abastadas da sociedade. Para o centro convergiam as principais vias e meios de transportes
coletivos, tornando-se a centralidade urbana de maior acessibilidade.
Entre os anos de 1902 a 1945 a cidade de Belém foi governada por líderes políticos que
introduziram ideais de modernização na cidade. O primeiro, senador Antônio Lemos, buscou
motivação e modelo na Europa, posteriormente, o governador Magalhães Barata cumprindo
ordens nacionais do programa político do Presidente Vargas para modernizar o país (PONT
VIDAL, 2008a).
Segundo Sarges (2000) o governo de Antônio Lemos foi marcado por políticas de
reordenamento urbano, higienização e embelezamento da cidade, cujo modelo estava
embasado no urbanismo vigente na França e pretendia transformar Belém em uma pequena
réplica de cidade europeia. Dias e Chaves (2015, p.3) chamaram de Paris Tropical à
semelhança de Belém com a capital francesa pretendida por Lemos com as remodelações
urbanas e arquitetônicas de ideais haussmanianos. No período ocorreram projetos de
monumentalização com alargamento e abertura de vias. Como exemplos, no primeiro caso,
a Avenida 15 de Agosto, atual Avenida Presidente Vargas e, no segundo caso, o processo
de aterramento da região litorânea e a construção da Boulevard da República, atual
Boulevard Castilhos França, cujas vias estão dentro do bairro da Campina (CHAVES, 2011).
Transformar Belém em uma cidade europeia significava, tanto para o governante quanto
para os moradores, modernizá-la. E essa modernização não estava restrita a melhorias
urbanas, incluía o “modo de vida” das pessoas. Ou seja, a modernização era ao mesmo
tempo concreta – aplicada na cidade – e abstrata – transformando a cultura da população.
Gorelik (1999) diferencia modernização de modernidade ao explicar que modernização são
processos duros que continuam transformando o mundo, motivados por representações
culturais de modernismo, expressas pelo modo de vida e organização social.
Derenji (1987, p.150) complementa que “o Ecletismo, que será o símbolo, a representação
arquitetônica das mudanças de comportamento trazidas pela riqueza do ciclo da borracha,
usará esse neoclássico tardio como mais uma opção de escolha de estilos”.
Em virtude das novas leis implantadas por Antônio Lemos acrescido com os rendimentos
que a economia da borracha rendia aos cofres públicos, nos últimos anos do século XIX e
primeiros do XX, Belém expandiu além dos dois tradicionais bairros, da Cidade (atual
Cidade Velha) e da Campina, com a implantação de grandes novos bairros planejados,
transformando os arredores ou subúrbio da cidade, com vias largas, lotes com dimensões
maiores, novos palacetes construídos ao longo da Estrada de Nazaré, atual Avenida
Nazaré, do Umarizal e da Estrada de Bragança, atual Avenida Almirante Barroso (COELHO,
2007).
Tais transformações iniciam uma nova era de modernização da cidade que podem ter
influenciando na cultura e hábitos sociais dos moradores da classe alta do núcleo urbano
deixando seus sobrados e casario e preferindo ir morar em palacetes, chalés e bangalôs em
outras áreas da cidade, como as avenidas Nazaré (Figura 2) e Braz de Aguiar.
Os novos bairros localizados nos arredores dos bairros da Cidade Velha e Campina
possuíam vantagens locacionais: (i) por estarem próximos do núcleo urbano, portanto, da
centralidade das atividades de comércio e serviço; (ii) por estarem afastados do “burburinho”
causados pelo fluxo de pessoas e veículos atraídos pela centralidade; e, (iii) por
Este processo de valorização da modernidade estaria incluído na relação feita por Bordieu
entre o espaço simbólico e o espaço social. Para o autor (1990, p. 160), “o espaço social
tende a funcionar como um espaço simbólico, um espaço de estilos de vida e de grupos de
estatuto, caracterizados por diferentes estilos de vida”. O poder do simbólico estaria ligado à
modernização do espaço físico enquanto que, o espaço social seria o desejo, a ambição, a
mentalidade de modernidade desejada pela riqueza da época.
A expansão da cidade, na era lemista, se deu através da via Travessa dos Mirandas que,
após seu alargamento e intervenções urbanísticas, tais como, construção do Teatro da Paz
e da Praça da República, passou a se chamar Avenida 15 de Agosto, sendo o principal eixo
de integração do núcleo urbano inicial com os novos bairros da cidade. Localizada no bairro
da Campina, a Avenida 15 de Agosto, durante o governo Getúlio Vargas, passa a se chamar
Avenida Presidente Vargas por simbolizar o ideal modernista da época, sob pena de perder
o patrimônio arquitetônico eclético. Conforme Belém (1999, p. 64):
[...] a avenida passa a se constituir em um novo centro comercial da cidade,
concentrando as atividades comerciais mais sofisticadas como hotéis,
escritórios de companhias de navegação, consulados, bares, cafés,
restaurantes, lojas e cinemas. Essas atividades, associadas à presença de
edifícios residenciais, proporcionavam um movimento, inclusive à noite, ao
contrário do centro comercial antigo.
O regime do Estado Novo instaurado em 1937, pelo Presidente Getúlio Vargas, defendia a
modernização como ideário, que segundo Chaves e Santos (2013, p. 3) “[...] o símbolo mais
eficaz dessa modernidade que precisava ser empregado era o edifício em altura, novo
conceito de moradia e ícone das ideologias divulgadas e disseminadas pelo “Estilo
Internacional” [...]” incentivando a verticalização no Brasil, “[...] condizendo com os novos
ares que Vargas tentaria implantar no novo Brasil industrializado” (MELLO, 2007, p.68).
Para Chaves e Santos (2013) para atrair a população mais abastada da cidade a morar nas
alturas era necessário adaptar o novo tipo de moradia aos seus anseios. Para isso,
“percebe-se a permanência de ambientes e formas de organização espaciais que
apresentam características das amplas casas burguesas e palacetes de Belém de outrora”
(p. 14).
Belém (1999, p. 23) descreve que o “bairro da Campina foi logo atingido pelo processo de
decadência econômica, com a deterioração de seu casario, a substituição de um comércio
dinâmico e de qualidade por um comércio popular”. Com a mudança do consumidor de alta
renda para outras áreas da cidade, o centro urbano passou a se especializar em um novo
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Belo Horizonte/MG - de 21 a 23/06/2017
perfil de consumidor – o de classe baixa. Para este consumidor o que mais importa é o
preço baixo e a variedade das mercadorias e não a aparência ou as características
arquitetônicas e das instalações físicas das lojas. Por isso, e em função dos próprios custos
elevados de conservação de prédios antigos, dentre outros motivos, os comerciantes locais
deixaram de investir na aparência e na conservação dos imóveis onde ficam suas lojas,
resultando num declínio do conjunto edificado que compõem o centro urbano. Villaça (2001)
enfatiza que, na origem do processo popularmente chamado de “decadência” ou
“deterioração” do centro, está o seu abandono por parte das camadas de alta renda e a sua
tomada pelas camadas populares.
Desde a sua origem, passando pelo seu apogeu até o início do processo de degradação
física, o núcleo urbano inicial de Belém, acumulou um importante patrimônio. As
construções do forte, das igrejas, dos mercados do Ver-o-Peso e de Carne, de fábricas, dos
palácios dos governantes, dos sobrados e casarios com seus revestimentos em azulejos
portugueses, etc. constituem patrimônio arquitetônico, urbanístico, histórico, artístico,
cultural e paisagístico. A preocupação com a preservação deste patrimônio resultou no
tombamento do núcleo urbano como Centro Histórico de Belém (CHB) composto por parte
do bairro da Cidade Velha e todo o bairro da Campina. Atualmente o tombamento do CHB é
regulado pelas três esferas governamentais: pelo Município através da Lei Orgânica do
Município de Belém de 30/03/1990 e pela Lei Municipal nº 7.709 de 18/051994; pelo Estado
com a Lei nº 5.629 de 20/12/1990 e pela União por meio da Portaria nº 54, de 8/05/2012 do
Ministério da Cultura, a qual passa atualmente por revisão visando sua normatização para
atuação do IPHAN na área.
Considerações Finais
Os recursos econômicos disponíveis na era de Lemos possibilitaram a implementação de
obras que transformaram a paisagem do núcleo urbano de Belém como um todo. Ao
contrário da era de Vargas, as finanças da capital paraense estavam limitadas e os
investimentos priorizaram a modernização de uma parte do núcleo urbano através da
verticalização. Vale indagar como estaria o núcleo urbano de Belém se os recursos públicos,
durante o governo de Vargas, estivessem disponíveis para realização dos seus ideais de
modernização? À época não existiam as leis preservacionistas, o que permitiria destruir toda
a massa edificada, de período colonial e eclético, para construção do novo, das edificações
em alturas. No entanto, em virtude da restrita realidade financeira do governo Vargas, a
destruição não foi propriamente na massa edificada e, sim, no abandono das demais áreas
do núcleo urbano, onde se localizava uma parcela significativa de edificações ecléticas da
cidade.
Uma possível solução, diante do quadro apresentado neste trabalho quanto à existência de
ruínas e estacionamentos no CHB, são ações para a reabilitação de imóveis com
investimentos para o retorno de moradias à área. Há estudos de viabilidade técnica e
orçamentária para o caso de Belém, como o conduzido por Norat (2007), os quais
dependem de programas governamentais conforme identificados por Lima, Faria e Andrade
(2002). Este processo mostra-se relevante na medida em que foi detectado um relativo
aumento no número de domicílios no CHB. Conforme os resultados dos Censos do IBGE de
2000 e 2010 aumentou 7.5%, mesmo sem nenhuma política incentivadora ao uso
habitacional. O uso habitacional é potencialmente um propulsor da conservação, pois além
de contribuir para a diminuição do déficit habitacional, pode atrair outras atividades que dão
apoio a moradia, possibilitando a utilização do espaço em horários e períodos que vão além
dos horários comerciais, garantindo o uso ininterrupto do espaço e evitando, com isso,
espaços desertos e inseguros.
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