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AS DIVERSAS DIMENSÕES DO PATRIMÔNIO CULTURAL:

PATRIMÔNIO E CIDADE

ELEMENTOS DA MATRIZ URBANA PORTUGUESA EM GOIÁS: Vila


Boa e suas identidades culturais

OLIVEIRA, IRINA ALENCAR DE.

1. Universidade de Brasília - UnB. Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura e


Urbanismo (Doutorado)
irinaoliveira@gmail.com

RESUMO
Analisa-se os elementos da matriz urbana portuguesa na cidade de Goiás-GO, tomada como pioneiro
e importante exemplar das cidades do ciclo do ouro na região da Capitania de Goyazes. Enfoca-se
nos espaços provenientes de seu primitivo núcleo gerador, em especial, suas ruas e largos, durante o
século XVIII, período de formação e consolidação da atual conformação urbana, estabelecendo-se
também uma relação com os diversos traços remanescentes desses primórdios ainda hoje
encontrados no local. Pretende-se, assim, refletir acerca dos vínculos de identidade estabelecidos
entre esses lugares com suas comunidades no princípio e na contemporaneidade, de modo a
compreender o impacto das configurações urbanas inicialmente criadas nessas impressões. Os
núcleos de ocupação da Coroa portuguesa nas diversas regiões no Brasil, a partir do século XVII,
carregam uma forte tradição urbanizadora desenvolvida ao longo de todo seu período colonial na
África e Ásia, apresentando características que remontam ao antigo Império Romano, passando pela
influência árabe até a cidade de origem cristã na península Ibérica, que atinge seu auge com o
aprimoramento da atuação dos engenheiros militares e dos “ruadores”. Esse modo de “fazer cidades”
está claramente presente nas configurações das ocupações urbanas do período colonial brasileiro em
seu ciclo aurífero, sendo considerado um forte elemento de imposição da presença da metrópole nas
regiões inóspitas e distantes do interior da colônia, tornando-se, assim, um forte traço de identidade
português no território brasileiro/goiano. Ao longo do tempo, nota-se que os habitantes da cidade de
Goiás também passaram a estabelecer vínculos afetivos e indentitários com o lugar, como verificado
nas poesias de Cora Coralina, por exemplo.

Palavras-chave: matriz urbana portuguesa; cidades coloniais brasileiras; ciclo do ouro; Vila Boa de
Goiás; identidade cultural.

11º Mestres e Conselheiros


Belo Horizonte/MG - de 26 a 28/06/2019.
Introdução
O presente artigo analisa os elementos herdados da matriz urbana portuguesa na
cidade de Goiás-GO (antiga Villa Boa de Goyaz), pioneiro e importante exemplar das
ocupações surgidas devido ao ciclo aurífero na Capitania de Goyazes a partir de 1726.
Seleciona-se como recorte físico os espaços provenientes de seu núcleo gerador, o Arraial
de Santana, destacando-se suas características ruas e largos, que seguem certa
regularidade e respeitam a topografia natural do terreno às margens do Rio Vermelho. A
delimitação temporal recai principalmente sobre o século XVIII, período de formação e
consolidação da atual conformação urbana do núcleo antigo da cidade, estabelecendo
também relações com os diversos traços remanescentes desses primórdios.

O interesse por esse tema justifica-se pela necessidade de compreender e preservar


as memórias coletivas, em especial, as memórias edificadas com valor histórico e cultural no
atual contexto de globalização e “aceleração da história” (Nora, 1993, p. 7), afim de
estabelecer e manter relações de identidade (Le Goff, 1990), autorreconhecimento e
pertencimento dos indivíduos com os locais em que vivem. São escolhidas duas ocasiões
destacadas ocorridas na cidade de Goiás-GO: o processo de sua criação e o momento de
sua inscrição na lista de patrimônio mundial da UNESCO (2001). Nos dois momentos,
pretende-se observar o comportamento das questões identitárias, justificando a adoção de
tão ampla linha do tempo. Admite-se ainda a complexidade e a grande amplitude conceitual
de memória e identidade, sendo analisadas perspectivas bem delimitadas de cada uma
delas.

Inicialmente, procura-se investigar a vinculação da consistente manutenção das


estruturaras urbanas originárias até a atualidade à influência do chamado modo português
de fazer cidades (Boaventura, 2007, p. 31). Em seguida, pretende-se identificar a possível
existência de contribuições dessa forte cultura urbanizadora para o estabelecimento de
laços identitários entre a comunidade local e a cidade do princípio e a contemporânea. Para
isso, busca-se compreender a concepção dos núcleos urbanos implantados pela Coroa
portuguesa na Colônia como “cidades portuguesas no Brasil” (Moreira, 2003) ou afirmações
como “ao se conhecer uma cidade brasileira se viu todas”, possivelmente, em referência à
influência dos inúmeros portugueses que vieram para o interior nas bandeiras paulistas
(Coelho, 1997, p. 79) e à insistência na repetição de um programa de necessidades básico e
na padronização fachadas. Tais evidências podem indicar uma preocupação geral do

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colonizador em conferir às cidades coloniais uma “aparência tipicamente portuguesa”,
conforme defende o pesquisador Gustavo Coelho (1997, p. 112).

Nesse momento inicial da pesquisa de doutorado, parte-se da observação crítica do


processo de desenvolvimento do núcleo urbano antigo da cidade de Goiás, buscando-se
detectar traços do chamado “urbanismo português” (conceito a ser melhor delimitado
adiante, considerando-se sua inexistência naquele momento histórico) em sua conformação
espacial e compreender a relação desses elementos com os vínculos identitários
estabelecidos pelos habitantes locais do princípio até a atualidade. Apoia-se nos preceitos
da Sintaxe Urbana e da História Cultural para realizar a investigação, que se ampara na
0literatura e iconografia disponíveis, além da substancial bibliografia já produzida sobre o
tema. Destaca-se, ainda, a utilização de fontes alternativas como a literatura e as artes
plásticas, em adição às tradicionais como mapas e relatos de viajantes e moradores locais.

A pesquisa foi construída com base no material cartográfico disponível desde o século
XVIII, sobre o qual foram sobrepostos os elementos formais desse modo português de fazer
cidades, sobretudo, os mais recorrentes na formação de ocupações urbanas no Brasil
Colônia e, em especial, nas regiões auríferas. Considerando-se o discurso de imposição da
presença do poder real no interior do país e a necessidade de efetiva ocupação desse
território, essa linguagem simbólica torna-se primordial para marcar historicamente a
passagem da Coroa portuguesa pelo Brasil, tornando-se um forte elemento de identidade
lusa nos primórdios da ocupação do hinterland local. Entretanto, ao longo dos séculos, a
imagem da cidade formada por largos, ruas-corredor tortuosas e becos estreitos passa
também a representar a identidade de uma parcela dos tradicionalistas goianos do século
XX e XXI, ricamente expressa em diversos suportes artísticos regionais, como a literatura de
Cora Coralina e as pinturas de Goiandira do Couto.

Revisão literária
O texto foi construído sobre três grandes eixos: a concepção de matriz urbana
portuguesa, sua influência nas cidades do ciclo do ouro em Goiás e a relação entre esses
dois elementos e a identidade coletiva local. O primeiro deles é o substrato base de análise,
do qual foram extraídos os componentes mais característicos da cultura urbana portuguesa,
fortemente presentes nas ocupações do período aurífero no interior do Brasil, adotando-se
Vila Boa de Goiás como estudo de caso. Considerando todos esses dados, estão sendo
analisados os possíveis reflexos que deixaram nos aspectos identitários observados na

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comunidade local, tanto no momento de seu surgimento como na atualidade. A seguir,
realiza-se uma breve delimitação e reflexão teórica dos conceitos aplicados, destacando-se
seus principais aspectos, abordagens e autores.

Inicia-se pela conceituação de matriz urbana portuguesa, a partir da visão de Manoel


Teixeira, para quem as cidades portuguesas apresentam características morfológicas
bastante específicas, oriundas das diversas influências e concepções de espaço às quais
foram submetidas ao longo de sua história, sendo muitas delas verificadas nas cidades
brasileiras do período colonial (e em especial, aquelas do ciclo do ouro), conforme elenca:

a selecção de locais topograficamente dominantes como núcleos iniciais dos


aglomerados urbanos; a íntima articulação dos traçados das cidades com as
particularidades topográficas locais; a estruturação das cidades em núcleos distintos,
com malhas urbanas diferenciadas, correspondendo cada uma delas a diferentes
unidades de crescimento; a localização de edifícios singulares em sintonia com a
topografia, e o importante papel destes edifícios na estruturação dos traçados urbanos; a
lenta estruturação formal das praças urbanas, associadas a diferentes núcleos geradores
e a funções distintas; a constância da estrutura de loteamento e das tipologias de
construção a ela associadas, ao longo do tempo; finalmente, o processo de planeamento
e de construção da cidade portuguesa, que é sempre projectada no sítio e com o sítio,
isto é, quer a cidade se desenvolva gradualmente quer se desenvolva a partir de um
plano pré-definido, o seu traçado apenas se concretiza no confronto com a estrutura
física natural do território (Teixeira, 2000).

Na formação dessa matriz urbana, destaca-se a tradição de regularidade da cidade


romana, “sempre associadas a acções de planeamento promovidas pelo poder” (Teixeira,
2000). Das cidades gregas, ressalta-se a influência da “cuidadosa adaptação do traçado das
ruas às características topográficas locais (...) e uma concepção de espaço urbano em que
eram os edifícios localizados em posições dominantes que davam sentido e estruturavam os
espaços envolventes” (Teixeira, 2000).

O domínio muçulmano do século VIII ao XIII traz uma nova expansão urbana ao
território português. Surgem cidades mais densas, bem hierarquizadas e organizadas do
âmbito privado para o público, considerando três parâmetros fundamentais: defesa, clima e
religião. Contavam ainda com uma estrutura uniforme, apesar da desordem aparente,
apresentando uma clara preocupação com a escolha do sítio e um “carácter íntimo das suas
ruas, tortuosas, com diferentes perfis ao longo do percurso, das quais saíam ruas em
cotovelo ou becos que davam acesso a pequenos conjuntos de casas construídas em torno
de impasses” (Teixeira, 2000). Já as casas “eram por todas estas razões viradas para pátios
interiores, e as poucas aberturas para a rua eram protegidas por janelas, rótulas e
muxarabis” (Teixeira, 2000).

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Após a Reconquista da Península Ibérica, observa-se a reintegração dos principais
centros urbanos portugueses ao território cristão, sem alterações significativas em seus
sistemas e morfologias. Entretanto, esse processo gera uma rica síntese originária da “união
de duas civilizações diversas que se opunham em muitos aspectos e que, fundindo-se em
um meio cultural propício, favoreceram o surgimento de uma cultura única, com elementos
característicos próprios de cada uma delas” (Coelho, 1997, p. 45).

Conforme Teixeira (2000), são verificadas quatro fases principais de ocupação e


estruturação da rede urbana portuguesa, considerando-se os territórios ultramarinos como o
grande campo de desenvolvimento do modo português de fazer cidades dos séculos XVI ao
XVIII, através da fundação de fortes, feitorias e núcleos urbanos nas costas da África, Brasil,
Índia e Extremo Oriente. Acrescenta que, no vazio do território brasileiro, foi “possível
observar a crescente aplicação de traçados regulares no planeamento de vilas e de cidades
construídas de raiz ao longo destes séculos” (Teixeira, 2000). O autor destaca, por fim, a
singular capacidade portuguesa de compreender a íntima articulação com realidade
material, ecológica e cultural do local e, sobretudo, com as características físicas do
território, apontando essa como uma das principais características dos traçados urbanos
lusos (Teixeira, 2000).

Após esse panorama geral, Rafael Moreira apresenta um conceito chave para o
entendimento do saber fazer cidade português, conforme nomeado pelos próprios no
período colonial: arte ou ciência da ruação1. Muito distante do ainda inexistente termo
urbanismo, tratava-se de “uma teoria empírica e, sobretudo, pragmática, de terreno mais
que de gabinete, a que se procurou dar credibilidade e forma científica no séc. XVII, mas
que é fruto de uma evolução específica do império português com raízes em Portugal no
passado medieval, na sua situação de país-limite da Europa” (Moreira, 2003, p. 8). O autor
complementa que “‘arruar’ não significaria mais do que alinhar, traçar a direito, sem implicar
ortogonalidade”, indicando uma tendência cada vez mais acentuada ao regular, sem chegar
à esquadria perfeita. Foi inclusive elaborado um Tratado de Ruação por José de Figueiredo
Seixas (cerca de 1763), havendo outros documentos orientadores do processo de ocupação

1
Essa profissão parece não ter existido em Portugal, apenas na Colônia, sendo que “mais do que aos
engenheiros, a esses humildes funcionários municipais deve-se a aparência moderna das cidades brasileiras,
mais regulares que as da metrópole e do Oriente; e a sua prática profissional, a arte da ruação, marca da
entrada na era moderna” (Moreira, 2003, p. 24). Assim, o “arruador podia ser um engenheiro, um funcionário
administrativo, um governador, etc.”, pois arruar “era o ato de desenhar no território aquilo que se estabelecia
com umas regras simples ditadas pela tradição, pela convenção de uma Carta Régia ou pelo projeto, mas com
as potencialidades de reflexão e adaptação à realidade que o desenho permite” (Boaventura, 2007, p. 221). O
método resiste até o final do século XVIII em Goiás, sendo utilizado na implantação de igrejas e largos.

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dos territórios e fundação de vilas, como as cartas régias2 e o Foral (carta de estatuto
municipal que instruía acerca da instalação da Casa da Câmara e Cadeia e do Pelourinho).
Essas diretrizes foram essenciais no momento da crescente demanda por consolidar a
ocupação territorial nas zonas auríferas brasileiras, já na segunda metade do século XVIII.

Moreira ressalta também o importante papel dos engenheiros militares 3 e de sua


formação para o desenho das cidades portuguesas, advertindo que não há clareza quanto
aos efetivos realizadores dos traçados das vilas. Apresenta indícios de que “eram os
mestres-pedreiros, pelo sistema simples de cordeação4 feita diretamente no terreno, contra
os ventos dominantes como ensina Vitrúvio, e a demarcação dos lotes por marcos ou
postes” (Moreira, 2003, p. 11) que executavam o trabalho de fato.

Assim, o autor conclui que o fazer cidades português do período colonial seria a soma
das diversas influências já mencionadas, estabilizando-se entre 1540 e 1620 em “um tipo
‘clássico’ de cidade portuguesa (ou definida uma metodologia de desenho urbano), fruto da
geometria do sistema abaluartado” (Moreira, 2003, p. 16). Em suma, trata-se da união da
“criatividade dos ‘práticos’ nacionais e sua experiência, agora enriquecida pela síntese entre
o saber erudito ou livresco e o seu tradicional empirismo” (Moreira, 2003, p. 23). Nesse
ponto, é possível comprovar, portanto, que os processos de criação de cidades e redes
urbanas lusos não ocorriam sem qualquer planejamento, como equivocadamente afirmado
ao longo de anos, possivelmente, em razão da inconsistente interpretação da “pouca
ordenação que remetia à ocasionalidade e à espontaneidade do sítio no qual se
implantavam as cidades” (Medeiros; Holanda; Barros; 2011, p. 32), assim como, da
comparação com as malhas urbanas espanholas em xadrez.

Parte-se agora para as perspectivas relativas às cidades brasileiras surgidas no ciclo


do ouro, com enforque na capitania de Goiás e em sua capital. Ressalta-se que, durante

2
Para Deusa Boaventura (2007, p. 218), elas impunham uma regularidade, ainda que marcada pelo
pragmatismo e flexibilidade necessários às circunstâncias locais, através da lógica de organização dos
espaços, iniciada pela “marcação de uma praça, considerada o elemento central da malha urbana, a abertura
de ruas em linha reta e a uniformização das fachadas, as quais deveriam obedecer às construções de uma rua,
de uma praça ou mesmo de uma cidade”.
3 Coelho (1997, p. 62) afirma que esses profissionais vieram para o Brasil desde 1549, promovendo melhores
condições e padrões de qualidade nos núcleos urbanos ao “abrir caminhos” e “traçar novas povoações já
perfeitamente regulares”, a exemplo da própria Vila Boa de Goiás, que tem conformação semelhante a
diversas outras vilas criadas na mesma época, como Icó (1736), São José do Rio Negro (1755) e Oeiras (1761)
(Moreira, 2003, p. 23).
4 Antigo método herdado da náutica e baseado no uso de bússola, compasso, marcos e cordas enceradas para
a marcação do traçado urbano diretamente no sítio e em escala real (Moreira, 2003, p. 22), não descartando
uma possível influência da arte romana da Costrametação (castra metatio ou “balizar acampamentos”)
(Moreira, 2003, p. 11).

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esse período, são construídas cidades, tanto em Portugal quanto no Brasil, com planos
regulares e concebidos segundo traçados geométricos, na maioria das vezes ortogonais,
onde se expressam alguns dos grandes temas do urbanismo clássico, como exposto acima.

Para Paulo Santos (apud Coelho, 1997, p. 58), existem quatro modelos característicos
de traçados no Brasil Colônia: o traçado inteiramente irregular; o traçado com relativa
regularidade; o traçado inicialmente irregular, que passou por regularizações; e traçados de
perfeita regularidade. Os dois primeiros caracterizam-se pela ausência de participação
oficial em sua constituição, sendo aquelas ocupações iniciais das regiões mineradoras, sem
tempo hábil para planejamentos, segundo o autor. Os últimos são aqueles elaborados pelos
engenheiros militares, que ainda assim não apresentavam grandes interferências no
traçado, apenas elementos ordenadores, já que continham um sentido provisório e fugaz,
devido à economia agrícola com foco no ambiente rural na qual se desenvolveram.

Segundo Coelho (1997, p. 6), as cartas régias definiam “preceitos que acabaram por
se constituir em um corpo de doutrina”. Entretanto, afirma que a fundação de cidades no
Brasil estava estreitamente vinculada às especificidades locais, que eram respeitadas e
trabalhadas de forma individual, como em Vila Boa. Assim, foram observadas adaptações às
características climáticas e geográficas regionais, realizadas pelos responsáveis pela
ocupação inicial, predominando “formas baseadas em conceitos e conhecimentos populares
de organização e estruturação tanto do espaço urbano quanto do espaço edificado”.
Destaca que a ocupação “não apresenta nem os elementos próprios da restauração
portuguesa, que por essa época expressavam-se principalmente nos aglomerados de
interesse da dominação política, nem aqueles característicos do Barroco, movimento ainda
em pleno desenvolvimento criativo por ocasião da fundação e da implantação da vila”.

Por fim, Deusa Boaventura (2007, p. 26) afirma que as raízes do que chama de
urbanismo colonial, responsáveis pelas formações urbanas goianas, são “sínteses de
diferentes modelos de cidades, reproduzidos ora por ações dos bandeirantes, ora por
governadores como Luiz de Mascarenhas, José de Almeida e Cunha Menezes”,
complementado sob a perspectiva de Nestor Goulart que:

No urbanismo colonial português, a noção de apropriação de território está diretamente


ligada a um conceito de espaço que se define tanto pelos seus contornos quanto por
suas interligações, que constituem uma rede de caminhos terrestres e fluviais. Foi essa
estrutura a base da organização do território e do poder e controle que incidiria sobre ele.
No entanto, a ocupação desses espaços só pode ser mais bem entendida quando se
estuda as formas de divisão ou partilhas do solo, que denunciam claramente os
mecanismos e as relações de controle do Estado (Boaventura, 2007, p. 120).

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FIGURA 1: Esquema indicando a expansão urbana observada da cidade de Goiás através de uma
série histórica de mapas de 1730 a 2016
FONTE: Silva, 2017, p. 88

Quanto ao conceito de identidade, adota-se a perspectiva mais geral de Michael Pollak


(1992, p. 204), que a vincula com a memória. Define-a como a “imagem que uma pessoa
adquire ao longo da vida referente a ela própria, a imagem que ela constrói e apresenta aos
outros e a si própria, para acreditar na sua própria representação, mas também para ser
percebida da maneira como quer ser percebida pelos outros”. Entende que sua construção
parte de três elementos essenciais: unidade física (“fronteiras físicas”, como o corpo (no
âmbito individual), ou pertencimento a um grupo (no caso da coletividade)); “continuidade
dentro do tempo, no sentido físico da palavra, mas também no sentido moral e psicológico”;
sentimento de coerência, no qual “os diferentes elementos que formam um indivíduo são
efetivamente unificados”. Por identidade coletiva, alude “a todos os investimentos que um
grupo deve fazer ao longo do tempo, todo o trabalho necessário para dar a cada membro do
grupo - quer se trate de família ou de nação - o sentimento de unidade, de continuidade e de
coerência” (Pollak, 1992, p. 207), podendo-se incluir nesse ponto os lugares memoráveis
como elementos agregadores por seu forte potencial expressivo, como o objeto de pesquisa
em questão.

Já Stuart Hall (2001, p. 8) apresenta o recorte da identidade cultural, destacando seu


hibridismo, definindo-a como “aspectos de nossas identidades que surgem de nosso
‘pertencimento’ a culturas étnicas, racionais, linguísticas, religiosas e, acima de tudo,
nacionais”. Assume a complexidade da atual definição dessa categoria de pensamento,

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devido às mudanças observadas na contemporaneidade acerca da fragmentação das
“paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no
passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais” (Hall, 2001, p.
9), levando ao que chama de “crise de identidade”, o que justifica o necessário recorte
simplificado adotado neste artigo, a ser posteriormente melhor problematizado.

David Lowenthal (1998, p. 83) retoma a vinculação com a memória, ligando-a à ideia
de continuidade, ao afirmar que “relembrar o passado é crucial para nosso sentido de
identidade: saber o que fomos confirma o que somos”. Relaciona também a concepção de
identidade nacional “como símbolos duradouros da história e da memória, as relíquias
tangíveis” (Lowenthal, 1998, p. 166).

Conclui-se com Maria Elaine Kohlsdorf, que trata da identidade dos lugares no âmbito
patrimonial, com o foco em sua materialidade, na capacidade de serem facilmente
reconhecíveis (serem fortes, possuírem um genius loci marcante, ou seja, apresentarem um
conjunto de características que os tornam inconfundíveis, apelando à percepção5), de
evocarem memórias (articulando-se através dos símbolos que os transformaram em lugares
com forte significado, de modo que, beneficiadas pelos “processos de percepção universal”,
possibilitam a “formação de uma identidade coletiva” (KOHLSDORF, 2012, p. 58)) e de
criarem vínculos afetivos.

Resultados e Discussão dos resultados


Surge uma rede urbana6 a partir da ocupação do interior da colônia durante o ciclo do
ouro, originando os “núcleos primeiros em cidades, hoje correspondentes a grandes centros
urbanos ou capitais de estado” (Medeiros, 2013, p. 553), como Vila Boa, pioneiro povoado
da capitania e sede de governo até 1937.

A atual cidade de Goiás nasce do arraial de Sant’Ana, fundado em julho de 1726,


sobre os vestígios do antigo arranchamento do Anhanguera, para estabelecer a efetiva
ocupação do território goiano. Inicialmente, trata-se de uma povoação sem autonomia

5
Kohlsdorf (2012, p. 57-58) afirma que “a percepção se apóia nos sistemas sensoriais e, por isso, capta
informações sensíveis (tais como cenas contidas nos campos visuais do observador) e durante deslocamentos
do indivíduo. Ela é seletiva, motivo pelo qual se registram apenas campos visuais com grau adequado de
estímulo da configuração espacial e em alguns momentos de nossos trajetos. As informações visualmente
recolhidas sofrem mudanças profundas em nossa inteligência, tornando-se noções sobre o lugar percebido,
ricas e abrangentes. São essas decodificações que constroem a ideia sobre a identidade de certo lugar”.
6
Segundo Boaventura (2007, p. 67), Goiás, “ao final da primeira metade do século XVIII, possuía uma vila, mais
de cinquenta arraiais e quatro aldeamentos erguidos às margens da estrada de São Paulo.

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jurídica ou administrativa, submetida à tutela de São Paulo. Então, é erguida uma capela
“sobre uma ligeira elevação, pouco acima do rio Vermelho, dedicada à Santa Ana” (Vidal,
2009, p. 249), sendo organizadas as principais ruas do local a partir dela.

Com o aumento da exploração das minas e, consequentemente, da população, foi


necessário substituir o arraial por uma vila para o melhor controle da região, além de
“assegurar a tranquilidade de seus habitantes e permitir a retirada do imposto real sobre a
extração do ouro” (Vidal, 2009, p. 253). Uma nova capitania separada é criada em 1735,
sendo Santana escolhida como sede governamental, em detrimento de Meia Ponte (atual
Pirenópolis-GO), em razão de sua melhor estrutura e localização estratégica para
deslocamentos, estando mais a oeste de Tordesilhas (Boaventura, 2007, p. 67).

O governador da capitania de São Paulo demarca, então, quatro léguas de terra


(Boaventura, 2007, p. 131) para implantação da vila nas proximidades do antigo arraial em
1739. Ele define “no ponto central do espaço escolhido, a praça na qual será instalado o
Pelourinho, símbolo do duplo poder da comunidade local e da soberania do monarca”,
seguido pela igreja, edifício da Casa de Câmara e Cadeia e sedes das principais instituições
públicas. Redesenha o traçado das ruas, que não mais se originariam da capela, “mas
inspirado a partir do ponto de concepção do mais importante poder político da vila: o Senado
da Câmara” (Lemes, 2013, p. 90), tornando-se “o elemento inovador e orientador de uma
outra organização espacial” (Boaventura, 2007, p. 32). Dessa forma, são criados “dois pólos
magnéticos da vila7, que vão dar forma ao espaço urbano”, um composto pelo antigo ponto
estruturante da ocupação urbana, a Capela de Santana, e outro, a partir dos novos edifícios
públicos8.

Fernando Lemes (2013, p. 92) considera que a nova vila substituiria “a instabilidade e
os deslocamentos, que caracterizam o mundo dos arraiais, pelo sedentarismo e o equilíbrio

7
Segundo Boaventura (2007, p. 220-221), “a região do Largo do Chafariz deveria ser a representação dessa
grande inovação espacial, planejada para assumir o papel gerador de sua malha urbana. Com ela, pretendia-
se organizar os espaços da Vila e fixar os edifícios de representação eclesiástica e estatal. A realidade
construída mostrou, entretanto, distorções na implantação da capital, acabando por diferir das prescrições
enunciadas na sua Carta Régia, por causa de alterações motivadas, provavelmente, por particularidades do
sítio e outras pela resistência do povo em manter-se em Santana, reforçada pelo pouco incentivo de D. Luiz de
Mascarenhas à transferência da população para o novo núcleo. (...) Mas os mais significativos e marcantes
testemunhos dessas distorções foram a permanência da Matriz no Largo de Santana e as modificações na
praça demarcada por D. Luiz de Mascarenhas e, conseqüentemente, dos lugares definidos para a Casa de
Câmara e Cadeia e o pelourinho”.
8 Para separar a vila e seu desenvolvimento do núcleo preexistente e transferir a população do arraial para a
nova vila, foram proibidas novas residências do lado do núcleo relativo à jurisdição da Casa de Câmara e
Cadeia e do pelourinho. Segundo Coelho (1997, p. 96), essa ordem nunca foi obedecida, ficando essa região
semiabandonada, de modo que, até a atualidade, ela não funcionada como núcleo agregador de público.

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impostos pela disciplina dos poderes urbanos da monarquia”, garantindo um maior controle
da região pelo rei. Assim, “regularidade, equilíbrio e estética compõem as novas palavras de
ordem que revelam o esboço de um projeto político que deve prevalecer com o nascimento
de um novo tempo, de uma nova sociedade”. Laurent Vidal (2009, p. 257) reforça o
argumento, ao afirmar que instituindo “uma cidade o poder metropolitano se projeta no
espaço colonial, ao mesmo tempo em que pretende projetar os valores fundamentais de
uma ordem, dita colonial, no interior dos muros da cidade”, afirmando ainda que “fundar uma
vila é buscar esquecer os erros de sua gênese, é obter uma vitória sobre o deslocamento –
gesto colonial por excelência, que permitiria passar um risco sobre o passado e abrir-se
para um futuro sem obstáculos”.

Assim, observa-se a forte intenção do colonizador de deixar clara sua marca,


identidade e presença no território colonial, através da conformação espacial da vila,
alterando até mesmo seu nome. Nesse contexto, Coelho (1997, p. 112) afirma que a
“insistência na repetição de um programa básico e padronização de um modelo de fachada
refletem uma preocupação geral do colonizador em conferir às cidades coloniais uma
‘aparência tipicamente portuguesa’”. Portanto, a vila “foi pensada como um instrumento
político a serviço de um projeto econômico – exploração do ouro”, sendo sua organização
social e seu ordenamento espacial decorrentes desse desenho inicial (Vidal, 2009, p. 276).

Boaventura (2007, p. 129) acrescenta: “a fundação de um novo município que


permitiria a legitimação do poder administrativo sobre um território caracterizado por limites
imprecisos e incertos. A inauguração de uma capital representaria também a sua
organização, autonomia, instauração de um governo próprio e uma política”. Trata-se da
instalação de um importante centro fiscal e político-administrativo da metrópole, com
essencial papel de defender e controlar uma extensa região e suas riquezas.

O povoamento da região mineradora se efetiva com a distribuição e a ocupação de


áreas urbanas mais definitivas, “a partir dos primeiros sinais de estabilidade da economia”
(Coelho, 1997, p. 73), inicialmente, estruturando-se na construção de residências. Elas
apresentam um partido típico com pavimento único, construídas parede-meia e
perpendicularmente ao arruamento, “mais autêntica herança ibérica, trazendo para o interior
da colônia questões como estabilidade construtiva, simplificação da estrutura de cobertura,
além de um modo bem característico de organização dos espaços internos, que se
apresentam quase que padronizados” (Coelho, 1997, p. 74), destacando-se ainda o fato de
definirem e dimensionarem a rua, também determinando o caráter e a paisagem do núcleo.

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Em 1778, realiza-se seu primeiro grande projeto de restruturação urbana, com reforma
de edifícios públicos e construção de infraestrutura. Sua relevância está na preocupação
com o ordenamento do plano e questões estéticas, como o alinhamento de ruas e fachadas,
além da normalização da arquitetura dos novos edifícios a construir, para corrigir
“significativas distorções” e como “expressão da cultura racional europeia que se pretendia
implantar e marca do bom governo” (Boaventura, 2007, p. 32).

FIGURAS 3 e 4: “Planta da antiga Villa Boa dos Goyazes” e “Proposta de realinhamento do tecido
urbano de Vila Boa, 1782”, respectivamente
FONTE: Nestor Goulart ("Prospectos De Cidades, Villas, Povoaçoens, Fortalezas, e Edificios, Rios, e
Cachoeiras Da Expedição Philosophica do Pará, Rio Negro, Mato Grosso, e Cuyabá. Originaes") e
Boaventura, 2007, p. 231

A necessidade de espaço para a acomodação dos numerosos exploradores vai ser


determinante para o dimensionamento dos lotes destinados à habitação. Ainda que
enfrentando a lentidão das construções, devido à escassez de materiais e mão-de-obra,
esse desafio é contornado por soluções tradicionais como a “implantação de edifícios unidos
lateralmente, limitando e delimitando o espaço público que, mais que rua, se apresenta
como caminho” (Coelho, 1997, p. 99-100) disposto nas linhas retas reforçadas pelas
fachadas uniformes. Assim, a rua compõe-se por dois alinhamentos de casas frente a frente,
de modo que “não é o espaço público que define o privado, mas sim esse último que, ao ser
edificado, determina e delimita a via pública urbana, demonstrando uma clara relação com
os modelos de organização espacial implantados pelos muçulmanos em território ibérico”
(Coelho, 1997, p. 101).

Coelho (1997, p. 101-102) destaca ainda outra influência mourisca9 na “largura com
que as ruas se apresentam”, revelando o “meio de comunicação e espaço de referência no

9
Além de técnicas e elementos construtivos como largos, chafarizes, janelas de rótula e gelosias (Coelho, 1997,
p. 123).

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relacionamento cotidiano da população. Além de definir os principais eixos de ocupação,
estabelece conexões no interior do perímetro urbano e faz sua ligação com o meio exterior,
ao dar continuidade às estradas e caminhos”. Nas vias observa-se ainda “elementos de
visada em perspectiva, ou seja, proporciona a apreensão visual de elementos da
composição urbana a partir de determinados pontos, cantos ou ruas que, pela perspectiva
criada, valorizam esses elementos em relação ao seu entorno”.

A rua principal do núcleo geralmente liga dois pontos fundamentais da cidade, como
os pátios das igrejas mais importantes, cadeia ou palácio, e centraliza o comércio, buscando
aproximar as demais atividades públicas. Em Vila Boa, trata-se da Rua Direita que também
estabelece a “ligação das duas principais portas da cidade” e da “estrada que leva ao núcleo
mais próximo”. Do largo do Rosário, ponto de encontro das ruas Bartolomeu Bueno e Dom
Cândido, “sairia também a estrada para o arraial da Barra, posteriormente transformada em
rua, com o nome de rua Nova” (Coelho, 1997, p. 98-99). Observa-se que “não só o seu
traçado reproduzia o encontrado em Portugal como também a designação das ruas”
(Coelho, 1997, p. 66).

Destacam-se os becos como elementos de ligação, configurando “espaços abertos


curtos e estreitos que apresentam como função principal interligar aquelas vias de maior
porte e movimento”. Há ainda os becos sem saída que atendem “à parte posterior ou de
serviço das residências”, estando “bem mais próximos do adarve (do árabe ad-darb) do que
de qualquer elemento urbano ocidental” (Coelho, 1997, p. 104-105).

As praças são outro elemento herdado da cultura urbana portuguesa, funcionando


como ponto de encontro, organização de mercados e feiras, uma “referência urbana mais
importante até mesmo que a rua, pois era ali que se realizava todo tipo de manifestação e
de festividade, tanto religiosas quanto profanas, além de ser a região da cidade onde se
localizavam os principais edifícios” (Coelho, 1997, p. 105). Os três principais exemplares de
Vila Boa, denominados largos, são simples e triangulares “com sua massa de edifícios
residenciais, em sua grande maioria térreos, dando suporte à volumetria de um determinado
edifício que se pretende destacar” (Coelho, 1997, p. 106), apresentando-se de forma
irregular e em locais estratégicos.

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FIGURA 6: Imagem aérea localizando as perspectivas de Villa Boa em 1751, constantes abaixo
FONTE: Google Maps

FIGURA 5: Perspectivas de Vila Boa em 1751 de Norte para o Sul, Sul para o Norte e Noroeste
para Sudeste, respectivamente

FONTE: Nestor Goulart (acervo da Casa da Ínsua, em Castendo) e Google Maps

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Elas vêm acompanhadas de uma sucessão de outros espaços públicos, como largos,
pátios e terreiros, que “articulando uma trama viária até certo ponto modesta, alimentava e
dava sentido à vida em suas ruas”. Destacam-se os largos que foram delimitados em função
do local, do uso e de sua origem, fugindo ao conceito tradicional de praça, pois trata-se mais
de um “alargamento da rua propriamente dita do que da concepção de necessidade prática
de um espaço urbano aberto nos moldes hispano-americanos” (Coelho, 1997, p. 106).

Quanto aos edifícios religiosos, em sua maioria, apresentam “características


semelhantes às das primeiras capelas construídas pelos colonizadores no litoral,
considerando-se que as igrejas do Rosário e da Boa Morte, situadas em praças centrais,
“estão implantadas de forma recuada em relação ao conjunto dos edifícios do seu entorno, e
no ponto de melhor visualização no que se refere à topografia” (Coelho, 1997, p. 103). Os
prédios públicos contam com uma volumetria marcante e “com elementos compositivos
próprios do maneirismo”, não contendo elementos decorativos exteriores, “que venham
modificar o rigor de singeleza de suas formas” (Coelho, 1997, p. 101).

Talvez sob influência italiana, configura-se o urbanismo da Ordem de Cristo10, com


ruas que “acompanham o relevo do terreno mas procuram manter-se paralelas e
perpendiculares, com uma Rua da Corredoura como eixo unindo dois rossios ou terreiros
uniformes e cortado por travessas” (Moreira, 2003, p. 10). Vila Boa segue a última opção,
apesar de ser cortada por um rio, que é definida pela Rua Direita do Comércio e eixo de
ligação entre a precária estrada que vem de São Paulo até Cuiabá (Coelho, 1997, p. 98).
Portanto, esse pode ser considerado o último dos elementos da matriz urbana colonial
analisado na cidade, sendo um dos mais importantes e destacados.

Conclusão
Em suma, Deusa Boaventura (2007, p. 206) afirma que os bandeirantes, como
primeiros responsáveis pelas ocupações em Goiás, trazem a clássica forma lusa de fazer
cidades, privilegiando “aspectos topográficos da região, desenvolvimento linear às margens
da estrada que vinha de São Paulo e a construção de uma primitiva capela em um lugar
distante do rio, marco de fixação e primeiro espaço fundacional da cidade, logo ligado ao
segundo largo, o do Rosário, e que, juntos, desenhavam o tradicional sistema” português.

10 Recebe essa denominação por se tratar de um “esquema bipolar traçado em forma de cruz, como símbolo da
Cruz da Ordem de Cristo, que determinaria, pela repetição de quarteirões e lotes, uma estrutura linear
orientada para o porto, marítimo ou fluvial, ou a principal estrada” (MOREIRA, 2003, p. 11).

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A associação dos elementos da matriz urbana portuguesa aplicados às cidades
brasileiras do período aurífero, com destaque para a vinculação identitária com o Coroa ao
utilizar a morfologia urbana, legaram características únicas a tais sítios históricos. Isso pode
ser comprovado ao se consultar a argumentação técnica constate na candidatura da cidade
de Goiás a patrimônio mundial da UNESCO11. Observando-se atentamente todo o processo
de preparação da documentação para a inscrição nessa lista e o engajamento da
comunidade local durante esse tempo, destaca-se a importância do autorreconhecimento
popular em relação ao seu patrimônio, a criação de fortes laços afetivos e de identidade com
o lugar. Além, dos diversos exemplos vinculados às artes plásticas e literárias desses fatos,
como pode ser verificado na pintura de Goiandira do Couto e no trecho do poema de Cora
Coralina apresentados abaixo.

FIGURA 7: Representação do largo do Rosário realizada pela pintora vilaboense Goiandira do Couto
FONTE: https://www.opopular.com.br/editorias/magazine/100-anos-de-goiandira-1.944093

No poema “Minha Cidade”, Cora Coralina (1993, p.47/8/9 apud Bittar, 1997, p. 137-
138) registra sua vinculação afetiva com a cidade:

Goiás, minha cidade...


Eu sou aquela amorosa
de tuas ruas estreitas,
11
“Goiás testemunha a ocupação e a colonização das terras do Brasil central ao longo dos séculos XVIII e XIX.
O traçado urbano é um exemplo do desenvolvimento orgânico de uma cidade mineradora, adaptada às
condições da região. Ainda que modestas, tanto a arquitetura pública quanto a arquitetura privada formam
um todo harmonioso, graças ao uso coerente de materiais e técnicas locais.” (Fonte:
<http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/culture/world-heritage/list-of-world-heritage-in-brazil/historic-centre-of-
the-town-of-goias/> 11 de janeiro de 2019)

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curtas,
indecisas,
entrando,
saindo
uma das outras. (...)

Eu vivo nas tuas igrejas


e sobrados
e telhados
e paredes.
Eu sou aquele teu velho muro
verde de avencas (...)

Eu sou estas casas


encostadas
cochichando umas com as outras. (...)
Eu sou o caule
dessas trepadeiras sem classe, (...)

Eu sou a dureza desses morros.

Conclui-se com a importante observação de Kohlsdorf (2012, p. 58) que ressalta a


fundamental participação comunitária na “preservação dos traços fisionômicos dos lugares”,
de modo que engajá-la na redescoberta de seu genius loci. Ao final, autora afirma que
“restringir a decodificação de símbolos patrimoniais a grupos intelectualmente privilegiados é
evitar o exercício da cidadania através da construção da memória popular. Expor à
percepção das populações esse tipo de símbolo, deve ser o objetivo das ações de
preservação”. Ainda que seja complexo o entendimento do conceito de identidade, a partir
do simplificado recorte aqui adotado, pode-se vislumbrar diretrizes para trabalhar tal
concepção a favor da construção de processos preservacionistas mais efetivos, que contem
com a atuação ativa daqueles que convivem diariamente com as belezas e complexidades
dos bens patrimonializados, como no caso da população da cidade de Goiás. Essa condição
apresenta um grande potencial investigativo para geração de novas formas de salvaguarda
patrimonial.

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