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URBA NI D A D E S

Arquitectura e Sítios
Históricos da Guiné-Bissau
URBANIDADES
Arquitectura e Sítios
Históricos da Guiné-Bissau

Curadoria: Ana Vaz Milheiro


com Filipa Fiúza
/
Organização: Alfredo Caldeira
e Victor Hertizel Ramos
3

Prefácio
leopoldo amado
director-geral do instituto nacional de estudos e pesquisa (guiné-bissau)

A
nte a crescente tendência de automar- a arquitectura e o plano urbano e, entre este
ginalização internacional que actual- último e os importantes processos de con-
mente a Guiné-Bissau se encontra – em cepção e de construção das cidades que hoje
razão da sua instabilidade política recorrente compõem a componente urbana da Guiné-
– e também, em face da uma outra tendên- -Bissau: os locais onde as malhas urbanas se
cia, caracterizada esta pela emergência de articulam ou se confluem, os pontos de che-
hodiernos estudos e valorização do impor- gada ou de inflexão das vias estruturantes, a
tante património urbanístico e arquitectónico localização dos edificados magnificentes, as
coloniais, ressalta nítido a oportunidade e a lógicas dos traçados respectivos, entre outos
pertinência da presente exposição, de inicia- aspectos nao menos relevantes.
tiva da Fundação Mário Soares e do Centro No limite, e, para lá mesmo do estrita-
de Estudos sobre a Mudança Socioeconó- mente pitoresco ou exótico – convém dizê-lo
mica e o Território, do ISCTE-IUL, intitulado – subjaz a esta exposição uma redobrada
justamente de “Urbanidades – Arquitectura e preocupação histórica, na medida em que
Sítios Históricos da Guiné-Bissau”. nela é amiúde patente a evocação dos as-
Assim o é, não apenas porque é a pectos factuais que conformam o axioma,
primeira vez que hodiernamente se procu- segundo o qual, as cidades da Guiné-Bissau,
ra, pela iconografia e pela da cartografia à semelhança de outras cidades construída
(imprescindíveis fontes históricas), uma feliz por portugueses nos trópicos, além das con-
evocação histórica dos aspectos e urbanísti- dicionantes ou determinantes de natureza
cos e arquitectónicos da Guiné-Bissau, mas social, política ou económica, próprios do
fundamentalmente porque, na globalidade colonialismo ou da colonização, foram igual-
das peças que compõem a exposição, estão mente concebidas por processos próprios de
patentes, com eloquência, as relações entre planeamento qualificados que, adaptando-se
4 PREFÁCIO

embora à topografia das suas localizações, iniciativa, por sinal isoladas, com o foco ape-
emergiram em contextos históricos e urbanos nas no Arquipélago dos Bijagós. Outrossim,
sui generis, irradiando daí, entre outros as- pelas razões de instabilidade aqui aduzidas,
pectos, os imperativos de gestão do espaço mas igualmente em virtude do crescimento
urbano, os traçados das vias estruturantes, as desregulado (anárquico às vezes) dos cen-
formas de adaptação ao sitio, os elementos tros urbanos, assiste-se, genericamente, a
arquitectónicos de alto nível, dos quais ine- uma crescente degradação do património
xorajvelmente se destacam o recurso a sofis- histórico e urbanístico e arquitectónico co-
ticadas técnicas de desenho e a utilização de loniais, seja por incúria, seja pela forca da
materiais de construção de vanguarda. inércia, seja ainda pelo desconhecimento
Com efeito, a iconografia e a cartogra- do seu valor enquanto História e Memória
fia da presente exposição, eivados de uma colectivas.
legitima preocupação histórica, estribada Assim, para além de abrir novas
esta num profundo labor de pesquisa e na perpectivas em relação a novos e mais
necessidade sua contextualização, designa- multifacetados estudos e abordagens sobre
damente dos desenvolvimentos a partir de o património urbanístico e arquitectónico
sucessivos processos de adaptação ou de (tanto a tradicional, como as a das cidades,
síntese que os caracterizou e caracteriza a bem como os que se reportam ao período
urbanização das cidades da Guiné-Bissau, da escravatura), secundados os mesmos
conduz-nos também a uma viagem singu- de acções de consciencialização sobre a
lar, provavelmente, de sentimentos difusos, necessidade de sua inequívoca apropriação
porque necessariamente comparativa e, qui- e patrimonialização, enquanto legados urba-
çá, nostálgica, mas que nos interpela para o nístico e arquitectónico da Guiné-Bissau, a
imperativo de, em si próprio, tornar as pró- exposição “Urbanidades – Arquitectura e Sí-
prias cidades um objecto de investigação tios Históricos da Guiné-Bissau” é, também,
científica, em ordem a melhor aquilatarmos a a um tempo, uma janela de oportunidades
problemática das heranças coloniais em con- para o conhecimento e o enaltecimento das
textos pós-coloniais, corroborando assim da matizes originais e o processo evolutivo das
proposta de renomados historiadores portu- condições em que emergiram e se desenvol-
gueses, patente na obra “Cidade e Império veram as cidades e os sititos históricos da/
– Dinâmicas coloniais e reconfiguração pós- na Guiné-Bissau, até para que, acerca desse
-coloniais” (org. Elsa Peralta). conhecimento, possam os guineenses pers-
Na Guiné-Bissau, no que ao panorama pectivar novos processo de reabilitação e,
do estudo e divulgação do património urba- porventura, novas malhas urbanas, de forma
nístico e arquitectónico coloniais dizem res- a salvaguardar o essencial de sua patrimo-
peito, temos de convir que rareiam, no geral, nialização: ia cultura nelas subjacente e, bem
iniciativas ou estudos sistémicos sobre a assim, os laços de continuidade que se impõe
problemática, excepção feita a uma ou outra em relação ao futuro.
5

Partir da realidade
da nossa terra.
Ser realistas
alfredo caldeira e victor ramos

A
ocupação colonial dos territórios africa- só se concretiza de forma sistemática a partir
nos fez-se quase sempre a partir do es- da segunda metade do século XIX, embora,
tabelecimento de relações comerciais, na sua maioria, tais vilas e cidades se situem
designadamente de matérias-primas e de es- preferentemente nas zonas costeiras ou de
cravos, e da inculcação de novas religiões. fácil acesso fluvial, na medida em que aí se
Essa ocupação começou pela instala- situavam as portas dos diferentes mercanti-
ção de áreas de segurança, locais protegidos lismos coloniais.
por paliçadas ou fortins e fortalezas (Cacheu As vilas e cidades construídas na fase
em 1588 ou Bissau em 1697), essencialmen- da efectiva ocupação colonial dos territórios
te destinados à defesa dos colonos face aos visam, essencialmente, o controlo das popu-
autóctones que habitavam esses territórios. lações, organizando-o através de novas téc-
Gradualmente, essas áreas afirmaram-se en- nicas e ferramentas como a burocracia, o re-
quanto fenómenos de poder e cresceram, crutamento para trabalhos públicos ou para
submetendo os povoamentos circundantes, efeitos militares, a aplicação da justiça, a im-
cujo controlo foi assegurado por via militar, posição de impostos, o recurso a métodos
de que são exemplo as “campanhas de paci- estatísticos e o próprio desenho urbanístico,
ficação”. que tenderá a colocar no centro as entidades
Essa relação (de poder político e ter- coloniais (públicas ou privadas) e na periferia
ritorial) entre dominados e dominadores só os bairros indígenas – tudo concebido e exe-
tardiamente se concretizará na implantação cutado no âmbito de estratégias de reforço
de vilas e cidades nos territórios colonizados do domínio colonial.
– correspondendo também ao crescimento Atente-se ainda na construção de “al-
da penetração dos colonizadores no interior deias estratégicas” no decurso da guerra
dos territórios, que, no caso da Guiné-Bissau, colonial (1963-1974), com desmantelamento
6 PARTIR DA REALIDADE DA NOSSA TERRA. SER REALISTAS.

dos povoamentos pré-existentes e, muitas Esta Exposição, organizada pela Fun-


vezes, a inserção dessas aldeias dentro dos dação Mário Soares, em colaboração com o
próprios aquartelamentos dos colonizadores. ISCTE-IUL, pretende precisamente evidenciar
Estas realidades vão a par de tentati- a evolução histórica das realidades urbanas
vas inovadoras de crescimento urbano, ain- da Guiné-Bissau, mostrando a sua diversida-
da que geralmente inseridas nos objectivos de e a sua capacidade actual para encontrar
essenciais do domínio colonial. Daí a impor- soluções futuras.
tância sublinhada por Amílcar Cabral de “co- Dá-se assim mais um passo na estrei-
nhecermos a nossa realidade e conhecermos ta cooperação que a Fundação Mário Soares
também todas as realidades, para podermos tem mantido com diversas instituições, públi-
saber onde está a nossa, entre as outras, para cas e privadas, da República da Guiné-Bissau,
podermos saber qual a nossa força total, e participando no que entendemos ser o dever
qual a nossa fraqueza total 1.” de memória que a todos deve convocar.

Ruína dos Armazéns Aspecto das obras


do Povo (antiga Casa de recuperação do
Gouveia), em Cacheu edifício do Memorial
da Escravatura e do
Tráfico Negreiro,
inaugurado em
Cacheu a 8 de julho
de 2016

1. Amílcar Cabral, “Partir da realidade da nossa terra. Ser


realistas”, PAIGC - Seminário de Quadros, 19-24 de Novembro
de 1969, pp. 23
7

URBANIDADES
Arquitectura e Sítios
Históricos da
Guiné-Bissau
ana vaz milheiro iscte-iul, dinâmia’cet

A
Arquitectura das cidades da Guiné- contribuindo para a decadência de Bolama.
-Bissau constitui um património invul- Trata-se da construção de uma “cidade nova”
gar na África subsariana. Os primeiros para lá dos limites do forte de São José de
aglomerados que cruzam a presença eu- Amura e que em 1941 se torna a capital do
ropeia com as culturas ancestrais africanas futuro país. A segunda metade do século XX
remontam ao século XVI, de que é exemplo corresponde ao arranque da consolidação
a formação de Cacheu em 1588. As constru- urbana na maioria dos núcleos urbanos gui-
ções militares, como o forte de Cacheu ou a neenses desencadeada através do reforço
fortaleza de Amura, representam essa pri- de uma “arquitectura de representação” que
meira vaga. No século XIX, o reconhecimento ocupa localizações proeminentes. Este pro-
da soberania portuguesa em Bolama, após cesso deixa marcas na paisagem construída
o diferendo com a coroa britânica, favorece da Guiné-Bissau e está ligado à actuação
a sua consolidação como uma cidade im- do Gabinete de Urbanização Colonial (GUC)
portante. A decisão em 1879 de aí instalar a criado em Lisboa, em 1944, por Marcelo Cae-
sede do governo desencadeia um crescente tano, então ministro das colónias.
investimento, que culmina, em 1920, com um As obras da autoria dos arquitectos do
projecto urbano não construído. Confirmam Gabinete reflectem, nos programas e nas op-
este momento, vestígios de obras eclécticas, ções estéticas, as diferentes fases da cultu-
como o edifício neo-clássico da Câmara Mu- ra arquitectónica e urbanística desenvolvida
nicipal desenhado pelo engenheiro de minas até à revolução de Abril de 1974. O início do
José Guedes Quinhones. Gabinete caracteriza-se pelos programas de
Bissau consagra-se como a cidade gui- habitação para funcionários públicos e de
neense do século XX, a partir do plano ur- equipamentos de saúde. É também marca-
banístico de Guedes Quinhones, de 1919, do pelo aperfeiçoamento de uma expressão
8 URBANIDADES

“pitoresca”, inspirada na arquitectura tradi- A presença de um património de arqui-


cional portuguesa adaptada ao clima tropi- tectura moderna, construído a partir de 1945,
cal. Inscrevem-se neste quadro, projectos de é associada a um espírito mais progressista.
programas tão distintos como a sé de Bissau O primeiro edifício a ser referenciado em Bis-
ou a antiga enfermaria mista de Bafatá. sau é a actual sede do PAIGC (1949-1952). A
Nos anos de 1950, assiste-se à actua- Administração do porto de Bissau ou a anti-
lização de conhecimentos no domínio da ga sede dos Transportes Aéreos Portugueses
arquitectura tropical e à redenominação do (TAP) são outros casos singulares dessa lin-
GUC para Gabinete de Urbanização do Ultra- guagem. Promotores privados impulsionam,
mar (GUU). Dá-se o aprofundamento de pro- ainda que timidamente, algumas iniciativas
gramas e tipologias programáticas, designa- que se destacam igualmente pela linguagem
damente para o ensino liceal, dentro de um moderna, casos do edifício comercial Ancar
espírito racional, ainda que os projectos se (1957-1967), do painel do artista plástico gui-
definam pela monumentalidade das fachadas neense Augusto Trigo, embutido numa fa-
e das configurações volumétricas. Estão nes- chada próxima, e da sede da União Desporti-
ta categoria obras como a reforma do palácio va Internacional de Bissau (UDIB).
do governo, as sedes dos Correios ou o Sindi- A década de 1960 é assinalada pela
cato Nacional dos Empregados do Comércio transformação do GUU em Direcção de Ser-
e Indústria. viços de Urbanização e Habitação da Direc-
Os planos urbanísticos desta fase adop- ção Geral de Obras Públicas e Comunicações
tam igualmente princípios racionalistas, que (DSUH-DGOPC). Na Guiné-Bissau, a dificul-
se manifestam na delimitação sectorial das dade em fixar técnicos – designadamente ar-
funções, conjugados com uma predilecção quitectos – vai manter alguma regularidade
pelas composições axiais da tradição urba- na encomenda à DSUH. Os organismos lo-
nística ocidental. Nas abordagens ao plano cais começam contudo a operar com maior
de Bissau, elaboradas com o objectivo de autonomia, avançando com obras como a
valorizar o seu estatuto recente de capital, sede dos bombeiros em Bissau, concluída em
acentuam-se estes dois aspectos: a monu- 1960, ou o actual liceu nacional (1961-1963)
mentalidade do principal eixo viário – a an- reformulado no âmbito da Repartição Provin-
tiga Avenida da República, hoje Avenida cial dos Serviços de Obras Públicas, Portos
Amílcar Cabral – e o zonamento que delimita e Transportes (RPSOPPT). O programa das
em áreas específicas da cidade, as funções escolas primárias produz, na mesma época,
residencial, hospitalar, desportiva, escolar, uma pequena obra-prima de tendência orga-
militar, etc. Descarta-se a possibilidade da nicista, a escola de Contuboel.
construção em altura, preferindo-se as baixas A guerra pela independência traz uma
densidades. A decisão afecta igualmente os forte presença militar ao território guineen-
“bairros indígenas”, designados por “bairros se. Os militares assumem responsabilidades
populares” desde 1959. como o reordenamento territorial – com o ob-
Arquitectura e Sítios Históricos da Guiné-Bissau 9

jectivo de controlar as populações através da A nova abordagem dos técnicos da


reorganização das povoações rurais–, o aces- DGOPC reflecte uma alteração metodológi-
so a infra-estruturas básicas, a abertura de po- ca, mais centrada em processos estatísticos
ços, e a construção de escolas e postos médi- e de análise das condições sociais do que em
cos. Os reordenamentos introduzem modelos princípios clássicos de composição. A “arqui-
de habitação-tipo para as populações não ur- tectura de representação” é substituída pela
banas, elaborados pelos militares, apesar do noção de “espaço cívico”. Nas regiões rurais,
empenho dos arquitectos na criação de uma onde a guerra está mais presente, prevalecem
casa popular adequada às diferentes etnias. o pragmatismo e as opções militares, embo-
Povoação tradicional
na Guiné, déc. 1970
[Arq. Luis Possolo]

Durante o período final da presença co- ra se ensaiem propostas modernas a partir


lonial, entre 1970 e 1974, aceleram-se os pla- de estudos sobre o habitat local, privilegian-
nos directores, principalmente para Bissau, do a organização do alojamento através de
que manifestam uma mudança de paradigma. habitações dotadas de um conjunto mínimo
Os profissionais da DGOPC cooperam mais de equipamentos. Os técnicos actuam ago-
proximamente com os técnicos locais, maiori- ra num quadro de urgência. É neste contexto
tariamente quadros militares. Admite-se a ir- que as obras de arte – as pontes e os viadutos
reversibilidade das construções informais que –alteram a paisagem rural da Guiné-Bissau
circundam a capital, abdicando-se da sua de- dotando-a de construções singulares.
molição e propondo-se projectos de reestru- “URBANIDADES – Arquitectura e Sítios
turação dos assentamentos populares densi- Históricos da Guiné-Bissau” é o reflexo deste
ficados com sucessivos êxodos rurais. património extraordinário.
10 URBANIDADES

Arquitectura
tradicional

Descrições sobre a Casa Tradicional integram, adornam o interior das suas habitações com
desde o final do século XVI, as narrativas sobre representações da vida quotidiana.
a paisagem do actual território da Guiné-Bis- Na última fase do período colonial mul-
sau. No Tratado breve dos Rios de Guiné do -tiplicam-se as missões aos habitat tradicio-
Cabo-Verde..., André Álvares d’Almada, des- nais e a realização sistemática de levanta-
-creve em 1594 algumas dessas casas como mentos. A Habitação Indígena da Guiné Por-
“redondas, feitas de taipa, e o barro tão bom tuguesa, coordenada por Teixeira da Mota e
que ficam parecendo feitas gesso, cobertas Ventim Neves, de 1948, incide sobre a casa
por cima de folhas de olas”. Sobre a casa dos (fisionomia e sistemas construtivos), a moran-
Bijagós, refere serem construídas pelas mu- ça (forma como se agrupam os conjuntos de
lheres, “que fazem todo o mais serviço que casas habitadas), a povoação (estruturação
fazem os homens”. Dois séculos depois, em dos grupos de moranças, abordando cons-
1728, o padre Jean Baptiste Labat revela a truções não residenciais, como mesquitas) e
existência de casas de planta rectangular nas a religião (cerimónias relativas à fundação da
regiões litorâneas, reflexo da apropriação cul- casa ou da povoação). Os médicos referem
tural das residências dos lançados de origem então a importância em melhorar a perfor-
portuguesa e cabo-verdiana que penetram no mance da Casa Tradicional, tornando-a me-
sertão, influenciando os modelos tradicionais. nos permeável às doenças tropicais. Eventu-
Já no século XX, estudos etnográficos, almente, os arquitectos ao serviço do gover-
como Babel Negra, em 1935, de Landerset no colonial irão demonstrar, cerca de 1970, a
Simões, aprofundam a diversidade cultural eficácia de um novo protótipo de Casa gui-
de cada etnia, referindo algumas especifici- neense, comum a todas as etnias e exequível
dades ornamentais que diferenciam o espaço dentro dos sistemas tradicionais correntes. A
da habitação. Destacam-se os Bijagós, que proposta nunca será concretizada. AVM
Arquitectura e Sítios Históricos da Guiné-Bissau 11

Vista aérea de uma


tabanca [PT, IICT,
Arquivo Histórico
Ultramarino]

Caderno de Campo da Missão de


Estudos do Habitat Nativo da Guiné,
Fernando Schiappa de Campos e
António Saragga Seabra
[Arquivo Schiappa de Campos/
Saragga Seabra]

Missão de Estudos do Habitat Nativo


da Guiné, Fernando Schiappa de
Campos, António Saragga Seabra
e Castilho Soares, DGOPC-DSUH,
Ministério do Ultramar, 1959-60
[Arquivo Schiappa de Campos/
Saragga Seabra]
12 URBANIDADES

Fortes e fortalezas

0 5 25 50 m

Fortaleza de São José


de Amura, c. 1944
[redesenho Filipa
Fiúza, 2015]

Fortaleza de São José


de Amura, 1766
[PT, IICT, Arquivo
Histórico Ultramarino]

Amura
O forte de São José de Amura, em Bissau, si- de Manuel Germano da Mota, em 1766. É uma
tua-se junto à parte antiga da cidade e ao seu fortificação regular, em alvenaria de pedra,
actual porto. Os seus antecedentes remon- de configuração quadrada, com cerca de 150
tam ao final do século XVII, quando os portu- metros de lado, e atingindo mais de 7 metros
gueses, em resposta a uma tentativa francesa de altura do lado do rio Geba. Corresponde
de ali estabelecerem um entreposto fortifi- a um período tardio do sistema abaluartado,
cado, decidem levantar uma fortaleza. Essa reconhecível no grande desenvolvimento dos
construção inicial não terá passado de um baluartes e nos ângulos obtusos entre estes e
estado precário, sendo abandonada no início as muralhas. A configuração actual deve-se a
do século XVIII. A sua reconstrução ocorreu reparações e restauros ocorridos entre 1858
a partir de 1753 com desenho de Manuel de a 1860, e mais recentemente na década de
Vinhais Sarmento, e posteriores alterações 1970. AVM/RVA
Arquitectura e Sítios Históricos da Guiné-Bissau 13

Esquema conjuntural de
Cacheu, século XVIII, a
partir de Manuel Pires.
[Ana Vaz Milheiro
e Rogério Vieira de
Almeida, 2015]

Fortaleza de Cacheu
[Ana Vaz Milheiro,
2011]

Cacheu
O actual forte de Cacheu localiza-se na re- sectores: a “Vila Fria”, protegida por estacaria
gião noroeste, nas margens do rio que os e habitada por uma população “europeiza-
portugueses inicialmente baptizaram de S. da”, lançados e seus descendentes; e a “Vila
Domingos, a 25 quilómetros da foz. É uma es- Quente”, ocupada pelos povos africanos. Sa-
trutura quadrangular, de 20 metros de lado, be-se hoje que a construção do forte não se
com baluartes nos vértices e de muros com deve a Gonçalo Gombôa Ayala, capitão-mor
cerca de cinco metros de altura. Representa a de Cacheu entre 1644 e 1649. Mas, na carto-
primeira feitoria portuguesa na costa guine- grafia do século XVIII, estão já marcadas as
ense. O aglomerado primitivo foi fundado em preexistências do monumento contemporâ-
1588 pelo cabo-verdiano Manuel Lopes Car- neo, identificado como “Fortaleza única e ar-
doso, com autorização do régulo local. Cerca ruinada”. A configuração actual deve-se aos
de 1625, a praça encontra-se dividida em dois restauros de 1946. AVM
14 URBANIDADES

Bissau, aspectos
da cidade

A existência de Bissau está ligada à fundação terior da ilha revela-se urgente.


da fortaleza e da praça de S. José de Amu- Durante a I República portuguesa, as
ra. O primeiro aglomerado é implantado nos campanhas de “pacificação” chefiadas por
finais do século XVI, com a fixação de lan- João Teixeira Pinto submetem os povos da
çados cabo-verdianos na ilha de Bissau. Os região. Em 1919, o engenheiro de minas José
missionários instalam-se também, vindos de Guedes Quinhones elabora o Plano da Nova
Cacheu. Segundo João Barreto, em a História Cidade de Bissau. O seu traçado prolonga os
da Guiné (1938), em 1685, o porto de Bissau limites primitivos da praça, assentando na
é já estrategicamente importante. A constru- hierarquização de avenidas ortogonais, a par-
ção da fortaleza conhece três etapas. Mas a tir do eixo principal da actual Av. Amílcar
estrutura actual tem raízes em 1766, quando a Cabral, e terminando na Praça dos Heróis Na-
coroa portuguesa retoma o seu interesse por cionais, onde se implanta o palácio do gover-
Bissau. Em 1864, o viajante Francisco Travas- no. Em 1941, Bissau passa a capital da Guiné.
sos Valdez descreve o aglomerado habitado O Estado Novo aprova, nove anos depois, um
maioritariamente por africanos, grumetes novo plano, da responsabilidade do Gabinete
e alguns comerciantes luso-descendentes. de Urbanização Colonial, com sede em Lis-
A feição agradável, quando avistada do rio boa, que reforça a estratégia urbana preexis-
Geba, desvanece-se em terra: “aquela praça tente. O actual núcleo histórico coincide por-
... não passa de uma povoação mal alinhada, tanto com o desenho de Quinhones. Bissau
com algumas casas palhoças, outras de bar- mantém assim uma escala urbana singular. O
ro, e bem pouca e sólida construção”. O pe- centro da cidade constrói-se em poucas dé-
rímetro urbano de configuração triangular é cadas, entre os anos trinta e setenta, facto
reforçado, do lado de terra, por uma paliçada que lhe confere uma excepcional uniformida-
que serve de defesa. A ampliação para o in- de patrimonial. AVM
Arquitectura e Sítios Históricos da Guiné-Bissau 15

Nova Cidade de Bissau,


José Guedes Quinhones,
1919 [PT, IICT, Arquivo
Histórico Ultramarino]

Cais de Bissau, década 1970


[Arq. Luís Possolo]

Bissau velho
1 Mercado Municipal, anterior a
1945 (demolido, foto de 2009) 2 Casa dos Direitos (antiga
1.ª Esquadra de polícia)
[foto: ACEP - Associação para a
3 Monumento aos
Heróis Nacionais
(antigo Monumento
4 Palácio da Presidência da Guiné-
Bissau (antigo Palácio do Governo
- reformulação João António Aguiar,
5 Ministério da Justiça (antigo
Palácio da Justiça). 1941

Cooperação entre os Povos, 2012] ao Esforço da Raça) José Galhardo Zilhão, GUC. 1945)
[foto anterior ao restauro de 2013]

6 Antigo bairro para funcionários


públicos, anterior a 1945 7 Residências para funcionários.
Paulo Cunha, BCM. 1944-48 8 Antiga casa do Governador
da Guiné. Paulo Cunha, BCM,
1944-48
9 Sé. João Simões, GUC. 1945
(projecto original Vasco
Regaleira. 1942)
10 Estádio Lino Correia
(antigo Estádio Sarmento
Rodrigues). Paulo Cunha, BCM.
1947

11 Aspecto do bairro de Santa


Luzia. c.1948 12 Antigo Museu e Centro
de Estudos da Guiné
Portuguesa. (GUC?). c. 1948
13 Escola Prof. António José
de Sousa (antiga Residência
das Irmãs de Bissau). Mário de
14 Hospital Nacional Simão
Mendes (antigo Pavilhão
principal do Hospital Central de
15 Sede do PAIGC (antiga
Associação Comercial,
Industrial e Agrícola da Guiné).
Oliveira, GUC. 1948 Bissau). Mário de Oliveira, GUC. 1951 Jorge Chaves. 1949-52

16 Estação Meteorológica.
Lucínio Cruz, GUU. 1952 17 Hospital 3 de Agosto (antigo
Pavilhão de Tisiologia, em
ruínas). Lucínio Cruz, Mário de
18 Liceu Dr. Agostinho
Neto (antiga Prefeitura
Apostólica da Guiné - Escola de
19 Antiga Central Eléctrica
20 Sede dos CTT. Lucínio
Cruz, GUU. 1950-55

Oliveira, GUU. 1953 Oficinas de Bissau). Eurico Pinto


Lopes, GUU. 1954

21 Antigo Bairro para


funcionários dos Correios. 22 Praça Che Guevara (antiga
Praça Honório Barreto, com
Monumento homónimo inaugurado em
23 Antigo Monumento a Diogo
Gomes, inaugurado em
1958 (Praça da Alfândega), GUU
24 Antigo Monumento a Nuno
Tristão 25 Alfândega (GUU?)

1958, desenho urbano de Eurico Pinto


Lopes a partir de João Aguiar, GUU)

26 Instalações da Marinha
(GUU?) 27 Sindicato dos Trabalha-
dores da Guiné (antigo
Sindicato Nacional dos Emprega-
28 Sporting de Bissau, 1955
29 Sport Bissau e Benfica
(antigo Sport Lisboa e
Bissau), Eurico Pinto Lopes, GUU.
30 Bombeiros. RPSOPPT.
1960

dos do Comércio e da Indústria). 1955


Eurico Pinto Lopes, GUU. s.d.
Um itinerário para Bissau

31 Liceu Kwame N’Krumah


(antigo Liceu Honório
Barreto). Carlos Abel Aires,
32 Escola primária, Alto de
Crim, Bissau, 1958 33 Edifício ANCAR. 1957-67
34 Painel da autoria do artista
plástico Augusto Trigo, s.d. 35 Bairro da Ajuda. c. 1965-
1968

RPSOPPT. 1961-63

36 Lar de Raparigas. António


Sousa Mendes, DSUH-
DGOPC. 1966 (demolido em 2012)
37 UDIB – União Desportiva
Internacional de Bissau,
inauguração em 1971
38 Administração do Porto.
Carlos Tojal, Manuel
Moreira, Carlos Roxo. 1967-68
39 Sede da TAP. Pinto da
Cunha. Década de 1970 40
1982
INEP, Construtora Soares
da Costa. Concluído em

41
Bissau
Hotel Azalai (antiga Messe
dos Oficiais). Periferia de

Fotos: Ana Vaz Milheiro, 2011


18 URBANIDADES

Bolama

Planta de
levantamento da
Cidade de Bolama,
José Guedes
Quinhones, 1920-
21 [Sociedade de
Geografia de Lisboa]

A cidade portuária de Bolama localiza-se no Bolama passa a sede da nova colónia da Gui-
arquipélago dos Bijagós. O navegador Álvaro né, que então se autonomiza administrativa-
Fernandes deve ter sido um dos primeiros eu- mente de Cabo Verde. Em 1920, o engenhei-
ropeus na região. No século XVII, o cronista ro José Guedes Quinhones, também autor
Azevedo Coelho aconselha a transferência da do edifício da Câmara Municipal, propõe um
capitania de Cacheu para a ilha de Bolama, grandioso plano de melhoramento urbano.
segura e adequada à navegação. Em 1792, Pouco é aplicado. A capital transfere-se para
uma expedição inglesa desembarca na ilha, Bissau em 1941, década que assinala a actu-
posteriormente reclamada pela coroa britâ- al decadência da cidade, apesar do potencial
nica. Ulysses Grant resolve a questão a favor do seu património arquitectónico do período
dos portugueses, em 1870. Nove anos depois, colonial. AVM
Arquitectura e Sítios Históricos da Guiné-Bissau 19

Bafatá

Plano Urbano de
Bafatá, Gabinete de
Urbanização Colonial,
s. d. [PT, IICT,
Arquivo Histórico
Ultramarino]

Bafatá, sítio natal de Amílcar Cabral, é a segun- ração sanitária sistemática do território gui-
da cidade da Guiné. Implanta-se na confluência neense durante o Estado Novo. Localizada na
dos rios Geba e Colufi e guarda um importante zona alta, debruça-se sobre o núcleo histórico.
legado arquitectónico do século XX. A estraté- Dali se avista a igreja, cuja reforma data do ar-
gia de recuperação do núcleo histórico passa ranque da década de cinquenta (Pinto Lopes
simultaneamente pela reforma do património e João Aguiar, 1950). A vida colonial desapa-
e pela relação com o fundador do PAIGC. A recida com a independência encontra-se re-
sua casa encontra-se ainda na cidade baixa. presentada pelas piscinas modernas do antigo
Ao longo das margens, entre a arquitectura Sporting Clube de Bafatá (1962) ou pelo velho
corrente e anónima dos sobrados, destaca-se jardim público, onde se destaca o pódio da es-
o mercado em estilo neo-árabe. A enfermaria tátua do antigo governador Oliveira Muzanty.
mista, actual hospital regional de Bafatá, obra Hoje, uma nova cidade, espontânea e informal,
do arquitecto João Simões, é uma construção consolida-se alheada da cidade formal e histó-
pioneira de 1946, inaugurando a infraestrutu- rica, muito para lá dos seus limites. AVM/FF
20 URBANIDADES

Outros Núcleos
Urbanos

No pós II Guerra Mundial, Bissau consolida-se eixo da avenida. As casas dos funcionários,
como um modelo urbano a generalizar pelas professores e médicos compõem o cenário.
povoações do interior da Guiné. As comemo- A capela representa a religião colonizadora.
rações do V centenário da presença portugue- Raramente é objecto de uma visão axial, im-
sa na região, em 1946, sob governo de Manuel plantando-se lateralmente.
Sarmento Rodrigues, assinalam o processo A mesma regra é aplicada a diferentes
de renovação. Entre as vilas intervenciona- escalas, com pequenas variações. Traçados
das contam-se Canchungo, Mansoa e Gabu. O ortogonais tornam as estruturas mais com-
esquema seguido parte da definição de uma plexas, admitindo-se igualmente pequenas
praça (maioritariamente uma rotunda) que re- praças arborizadas, apetrechadas com equi-
mata uma avenida arborizada, com plataforma pamentos de lazer e parques infantis. A in-
central. Os novos planos são publicados, em tervenção pode configurar uma ampliação,
1948, no Boletim Cultural da Guiné Portugue- como em Mansoa, onde se alarga a quadrícu-
sa. Pertencem à Repartição Central dos Ser- la existente e a nova avenida funciona como
viços Geográficos e Cartográficos da Guiné, uma nova centralidade de tipo boulevard.
dirigida por Eduardo José Pereira da Silva. Pode também corresponder a uma nova fun-
A nova avenida configura um eixo mo- dação, alterando-se a toponímia local para
numental, servindo de suporte aos principais outra de inspiração colonial: Canchungo pas-
equipamentos públicos que se disseminam sa a Teixeira Pinto; Gabu a Nova Lamego. Os
através de projectos-tipo: escola primária; nomes originais serão repostos após a inde-
posto sanitário; edifício de correios, telégra- pendência. Em Gabu, a quadrícula da cidade
fos e telefones; caixa de água; celeiro comu- presta-se a uma maior disseminação dos no-
nitário; clube militar e desportivo. A residên- vos equipamentos. Já em Canchungo, a ave-
cia do administrador de posto e a sede ad- nida principal concentra todo o investimento
ministrativa posicionam-se quase sempre no programático. AVM
Arquitectura e Sítios Históricos da Guiné-Bissau 21

Canchungo
Vista da rua principal, Canchungo

Gabu
Núcleo histórico de Gabu

Mansoa
Antigas casas coloniais dos
Funcionários Superiores em Mansoa
22 URBANIDADES

Obras de arte:
pontes e viadutos

Ponte de Mansoa,
Jorge Perloiro e
José Jacinto Alves,
1959-1964, Arq. Edgar
Cardoso [cortesia
Carlos Ferraz]

Mais do que a arquitectura, são as obras de guerra, assegura a mobilidade dos exércitos.
arte – como as pontes – que reflectem as Hoje, esta ponte é uma ruína tendo-se torna-
estratégias do Estado Novo na transforma- do obsoleta devido às constantes alterações
ção do território guineense. Logo a seguir à da bacia hidrográfica guineense. A importân-
II Guerra Mundial, relatórios oficiais descre- cia destas estruturas é confirmada pela visita
vem a condição precária das ligações terres- presidencial realizada, ainda durante a cons-
tres numa região plana, húmida e pantanosa. trução, pelo General Craveiro Lopes à ponte
A Guiné é então servida por 2.800 km de es- do Saltinho em 1955. A nova ponte sobre o
tradas quase exclusivamente de terra, onde a rio Mansoa (Jorge Perloiro e José Jacinto Al-
travessia da extensa rede hidrográfica é ain- ves, 1959-1964) é anunciada no Boletim Geral
da feita por jangadas, e as pontes existentes do Ultramar, em 1964, como obra da Brigada
são estruturas rudimentares. A construção da de Estudos e Construção de Estradas, que
ponte pênsil de Ensalma (c.1948), atribuída concebeu o respectivo plano e orientou a sua
ao engenheiro Humberto Lopes, torna-se as- execução. A antiga ponte Salazar ou ponte
sunto recorrente nos discursos de Sarmento Nova, sobre o rio Geba e porta de entrada
Rodrigues. Em tempo de paz, uma rede efi- em Bafatá, destaca-se entre as demais devi-
caz de comunicações promove o desenvol- do à sua dimensão, pouco usual na paisagem
vimento normal da província. Em tempo de guineense. AVM/FF
Arquitectura e Sítios Históricos da Guiné-Bissau 23

Escolas

Liceu Kwame
N’Krumah (antigo
Liceu Honório Barreto),
Carlos Abel Aires,
RPSOPPT, 1961-63
[PT, IICT, Arquivo
Histórico Ultramarino]

No sector escolar de Bissau localizam-se de ensino primário iniciada na sequência


os actuais liceus Agostinho Neto e Kwame das comemorações do V centenário (Sona-
N’Krumah. O primeiro é desenhado no âm- co, p.e.). Em 1961, como resultado do estu-
bito do Gabinete de Urbanização do Ultra- do dos habitats tradicionais, Schiappa de
mar por Pinto Lopes (1954). O último, é do Campos desenha as extraordinárias escolas-
engenheiro Carlos Abel Aires, chefe dos ser- -capela para o Ministério do Ultramar. Uma
viços locais de Obras Públicas (1963). Deste é construída em Contuboel. Com a guerra e
organismo, são os projectos-tipo escola + a proximidade da independência, acelera-se
casa do professor (1959) que se disseminam a concretização de novos postos de ensino a
pelas regiões rurais, consolidando a rede partir de 1970. AVM
24 URBANIDADES

Edifícios públicos

Edifício dos Correios,


Telégrafos e Telefones
(CTT) da cidade
de Bissau, Lucínio
Cruz, Gabinete de
Urbanização do
Ultramar, trab. 268-A,
1955

A estratégia do desenho dos principais edifí- do Ultramar, vão marcar três fases arquitec-
cios públicos na Guiné tem correspondência tónicas: uma formalmente mais “pitoresca”,
aos principais momentos da colonização mo- que cruza a tradição do edifício tropical ec-
derna do país. No período que medeia entre a léctico, da grande varanda, com evocações da
1ª República e o Estado Novo, os edifícios são arquitectura portuguesa; uma tendência mais
desenhados em estilo ecléctico ou historicista, pragmática, reflexo do programa de usos e de
casos das obras de Bolama. Depois de 1945, um sistema construtivo resiliente (onde se ins-
os técnicos dos serviços locais de Obras Pú- creve o edifício da imagem); uma última, per-
blicas, e os arquitectos afectos ao Ministério meável à sensibilidade da cultura africana. AVM
Arquitectura e Sítios Históricos da Guiné-Bissau 25

Saúde

Hospital Nacional 3
de Agosto (antigo
Pavilhão de Tisiologia)
[PT, IICT, Arquivo
Histórico Ultramarino]

Até à independência, os equipamentos de saú- Bafatá (João Simões, 1946) revela princípios
de dividem-se entre postos sanitários e ma- de adaptação ao clima e expressões pitores-
ternidades rudimentares (regiões rurais), en- cas. Os edifícios seguintes evidenciam maior
fermarias e hospitais (núcleos urbanos). Nos pragmatismo. Em Bissau, o sector hospitalar é
anos trinta começam a ser montadas enfer- constituído por um conjunto de edifícios de di-
marias nas tabancas, de combate à Doença do ferentes escalas. O pavilhão central é de Mário
Sono. A partir da II Guerra, a assistência médi- de Oliveira (1953). Depois de 1962, o pavilhão
ca é um dos programas-chave do Gabinete de de tisiologia (Oliveira, Cruz, 1951), em Bissalan-
Urbanização Colonial. A enfermaria mista de ca, funciona como hospital militar. AVM
26 URBANIDADES

Arquitectura
doméstica do
século XX
Durante o Estado Novo, a habitação de pro- Cunha, “nota-se a tendência da preocupação
moção oficial nos territórios portugueses estética” nas obras particulares e públicas,
africanos confere uma identidade distinta às como nota o engenheiro Ventim Neves radi-
cidades modernas de colonização portugue- cado na Guiné, cumprindo-se parte dos ob-
sa. Ao procurar uma expressão “ultramarina” jectivos que precisamente pretendiam quali-
análoga à Casa Portuguesa, os arquitectos ficar o traçado das construções guineenses.
aprofundam uma arquitectura doméstica Efectiva-se a transferência de um ima-
inspirada em modelos metropolitanos, onde ginário metropolitano para a Guiné. Compo-
os elementos tradicionais portugueses são nentes tradicionais como os alpendres ou as
adaptados às especificidades climatéricas coberturas em telha são transformados em
dos trópicos. elementos apropriados à especificidade dos
Aposta-se maioritariamente na residên- trópicos, a partir da reinterpretação do seu
cia unifamiliar implantada em novos bairros potencial. Paralelamente surgem ensaios mo-
de expansão, periféricos aos centros urba- dernos, com estruturas leves e plantas orto-
nos e inspirados nas teorias da cidade-jardim, gonais.
promovendo-se conjuntos edificados de bai- Em relação à habitação popular dis-
xa densidade, como acontece no centro de semina-se o recurso a projectos-tipo, como
Bissau e noutros núcleos urbanos guineenses. acontece no caso do bairro de Santa Luzia,
Em Bissau, a experiência na construção em Bissau, onde a estrutura reticulada do
de casas para funcionários assenta essencial- aglomerado pressupõe já a vontade de re-
mente no trabalho deixado pela Brigada de gularizar os assentamentos de origem local,
Construção de Moradias na Guiné que, sob enquanto a casa corresponde a uma simpli-
direcção de Paulo Cunha, concretiza seis ca- ficação da residência tradicional, assente so-
sas de três tipos. bre um rectângulo e com varanda exterior,
Depois da partida da equipa de Paulo utilizando materiais industriais. AVM/FF
Arquitectura e Sítios Históricos da Guiné-Bissau 27

Antigo bairro dos


funcionários dos CTT
em Bissau

António Francisco
da Graça com família
[INEP/FMS-CEGP-
MGP]
Antiga residência do
Governador da Guiné,
Bissau, Paulo Cunha,
Brigada de construção
de Moradias, 1944-48
[PT, IICT, Arquivo
Histórico Ultramarino]
28 URBANIDADES

Edifícios singulares

(antiga Associação
Comercial, Industrial
e Agrícola da Guiné),
Bissau, Jorge Chaves,
1949-52

Sede do PAIGC
A emergência de uma arquitectura moder- resulta de um concurso público lançado em
na na Guiné está associada a uma maior re- Lisboa, no Porto e na capital guineense, em
ceptividade em África a obras consideradas 1949, cujo pioneirismo se impõe como exem-
“progressistas”, ainda em tempo colonial. O plar. Trata-se de uma realização privada que
primeiro edifício referenciado neste contexto concorre com as obras de promoção pública,
é a actual sede do Partido Africano para a In- imprimindo uma maior qualidade ao espaço
dependência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) urbano. O arquitecto Jorge Chaves é o autor
em Bissau. Encomendado para sede da antiga do projecto, não sendo conhecida outra obra
Associação Comercial e Industrial da Guiné, sua no país. É inaugurada em 1960. AVM
Arquitectura e Sítios Históricos da Guiné-Bissau 29

Gabinete Multiplano
– Carlos Tojal, Manuel
Moreira, Carlos Roxo,
1967-68

Administração do Porto de Bissau


A sede da Administração do Porto de Bis- çam a sua excepcionalidade: “A inexistência
sau (1967-1968) é desenhada em Lisboa em Bissau de soluções eficazes em face das
pelo grupo Multiplano (Carlos Tojal, Manuel condições físicas, conferiram ao trabalho de
Moreira, Carlos Roxo). O seu carácter ino- concepção uma necessidade inventiva pou-
vador é desde logo salientado nas revistas co usual entre nós”. O recurso à pré-fabri-
de arquitectura publicadas em Portugal no cação assegura a eficácia da construção do
final da década de sessenta. O novo edifí- edifício, montado em três meses. Um dos
cio é apresentado como um exemplar da princípios fundamentais do seu desenho é a
Arquitectura Tropical. Os arquitectos refor- ventilação cruzada. AVM
30 URBANIDADES

José Pinto da Cunha,


década de 1970

Sede da TAP em Bissau


O edifício-sede dos Transportes Aéreos Portu- verticais, que reflectem o tratamento dado às
gueses (TAP), localizado na Praça dos Heróis fachadas na necessária resposta ao clima. O de-
Nacionais, é concluído em tempo próximo à senho remete para um tratamento plástico se-
independência guineense. O seu autor é prova- melhante ao de outras obras tropicais edificadas
velmente o arquitecto José Pinto da Cunha, que em espaços da antiga África portuguesa, corres-
então reside e trabalha em Luanda, projectando pondendo ao aperfeiçoamento de uma cultura
para diversos territórios africanos. Trata-se de moderna tardia de génese luso-africana que tem
um volume isolado, revestido por brise-soleils sido associada à estética “brutalista”. AVM
Arquitectura e Sítios Históricos da Guiné-Bissau 31

Memorial
da escravatura
FICHA TÉCNICA
Projecto: DE|JC,
Arquitectos - Daniela
Ermano e João
Carrasco
Engenharia e
Estruturas:
Tiago Serralheiro
Entidades Promotoras:
AD-Acção para o
Desenvolvimento,
COAJOQ-Cooperativa
Agro-Pecuária de
Jovens Quadros,
AINAssociazone
Interpreti Naturalistici,
Fundação Mário Soares
Financiamento:
UE-União Europeia

Aspeto do edifício
do Memorial da
Escravatura e do
Tráfico Negreiro,
inaugurado no dia 8
de julho de 2016

A criação do Memorial da Escravatura e do área habitada maioritariamente pelo grupo


Tráfico Negreiro em Cacheu visa resgatar a étnico Manjaco, a cidade de Cacheu consti-
memória histórica da escravatura naquela tui o primeiro ponto de implantação portu-
região da Guiné-Bissau e das suas relações guesa efetiva na costa da Guiné. O Memorial
com os circuitos e os destinos do tráfico ne- foi construído num edifício colonial em ruí-
greiro mundial, privilegiando as vertentes nas, que serviu de instalação à Casa Gouveia
Histórica, Cultural e Económica. Localizada e, após a Independência, aos Armazéns do
na margem esquerda do rio Cacheu, numa Povo.
32 FICHA TÉCNICA

Organização: Fundação Mário Soares (Alfredo Caldeira e


Victor Hertizel Ramos)
Curadoria: Ana Vaz Milheiro (AVM) com Filipa Fiúza (FF), ISCTE-IUL,
DINÂMIA’CET
Equipa curatorial: Paulo Tormenta Pinto (ISCTE-IUL, DINÂMIA’CET),
Eduardo Costa Dias (ISCTE-IUL, CEI-IUL) e Rogério Vieira de Almeida
(DINÂMIA’CET)
Design gráfico: vivóeusébio
 
Fontes fotográficas:
Ana Vaz Milheiro (FCT: Gabinetes Coloniais de Urbanização: Cultura e
Prática Arquitectónica, PTDC/AUR-AQI/104964/2008)
Fundação Mário Soares
Luís Possolo (déc. 70, Agência Geral do Ultramar, Instituto de
Investigação Científica Tropical - Arquivo Histórico Ultramarino)
Maurício Wilson (Bolama)
 
Fontes documentais:
Edgar Cardoso - Engenharia, Laboratório de Estruturas Lda.
(Eng. Carlos Ferraz)
Instituto de Investigação Científica Tropical - Arquivo Histórico
Ultramarino
INEP-Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (Guiné-Bissau)
LEMOS, Mário M.; RAMIRES, A (2009). O primeiro fotógrafo de guerra
português: José Henrique de Melo. Guiné: Campanhas de 1907-1908,
Coimbra: Imprensa da Universidade, D. L.
LOUREIRO, João (2000). Postais antigos da Guiné, Lisboa: João
Loureiro e Associados
Sociedade de Geografia de Lisboa
 
Redesenhos: Bruno Ferreira, Filipa Fiúza (FCT: Gabinetes
Coloniais de Urbanização: Cultura e Prática Arquitectónica,
PTDC/AUR-AQI/104964/2008)
 
A investigação historiográfica, missões à Guiné-Bissau e levantamento
de elementos documentais foram realizados no âmbito do
projecto “Gabinetes Coloniais de Urbanização: Cultura e Prática
Arquitectónica” [PTDC/ AUR-AQI/104964/2008], o trabalho de
curadoria integrou o projecto “Coast to Coast – Desenvolvimento
infraestrutural tardio na antiga África continental portuguesa (Angola
e Moçambique): Análise histórico-crítica e avaliação pós­- colonial”
[PTDC/ATP­AQI/0742/2014], ambos financiados pela Fundação para a
Ciência e Tecnologia.
A Fundação Mário Soares procedeu aos trabalhos de tratamento
documental e fotográfico no âmbito do protocolo de cooperação com
o INEP-Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa e, em colaboração
com a AD-Acção para o Desenvolvimento, está a desenvolver o
projecto do Memorial da Escravatura e do Tráfico Negreiro, em Cacheu.

CEGP Centro de Estudos da Guiné Portuguesa


DGOPC-DSUH Direcção Geral de Obras Públicas e Comunicações –
Direcção de Serviços de Urbanismo e Habitação
GUC Gabinete de Urbanização Colonial
GUU Gabinete de Urbanização do Ultramar
MGP Museu da Guiné Portuguesa
RPSOPPT Repartição Provincial dos Serviços de Obras Públicas, Portos
e Transportes
Com o apoio:

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