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ACERVOS

E REFERENCIAS
DE MEMÓRIA
LGBTQIAP+
SUMÁRIO 3º ATO, o primeiro grupo de ativismo 114
LGBT de Belo Horizonte
Resgatar, construir e perpetuar 08 Luiz Morando
Instituto Odeon
Preservando e fabricando histórias de luta: 144
O Museu da Diversidade Sexual e 12 acervos LGBTQIAP+ no Rio Grande do Sul
a preservação dos patrimônios e Caio de Souza Tedesco
memórias LGBTQIAP+
Leonardo Vieira A constituição do acervo digital do ALB: 166
procedimentos técnicos e memórias
De Centro de Cultura, Memória e 22 Julia Aleksandra Martucci Kumpera
Estudos a Museu: Concepção do
Museu da Diversidade Sexual Reflexões e desafios para salvaguardar 180
Leila Antero memórias LGBTQIA+ em Rondônia
Lauri Miranda Silva
O Pioneiro Museu do Sexo da Bahia 44
Luiz Mott e Marcelo Cerqueira Reflexões museológicas sobre a 204
formação do acervo da Unidas -
Museus brasileiros e as dissidências 74 Associação de Travestis Unidas na
sexuais e de gênero: uma breve reflexão Luta pela Cidadania, em Sergipe
Leandro Colling Douglas Santos Neco e
Rafael dos Santos Machado
A Musealização da Performance 92
Dance with me, de Élle de Bernardini Ficha técnica 232
Anna Paula da Silva
9

RESGATAR,
CONSTRUIR
E PERPETUAR
Instituto Odeon

Atualmente o Museu da Diversidade Sexual é gerido pelo Instituto


Odeon, uma organização social que tem como missão promover
gestão e produção cultural e artística de excelência, em diálogo com
a educação, agregando valor público para a sociedade. O Instituto
Odeon existe para trazer mais cultura para as cidades e mais arte para
as pessoas. Quer transformar a percepção do público sobre museus
e eventos culturais, trabalhando em direção a um país que promove a
expressão da arte, expande o acesso ao que é produzido e leva a sério
seu legado cultural.
10 Resgatar, construir e perpetuar 11

A existência do Museu da Diversidade Sexual (MDS) do Em paralelo a todo o valor afetivo e histórico que
Estado de São Paulo, por si só, já é um fato histórico. depositamos nos resultados e colaboradores deste projeto,
Podemos concordar que, sim, é um feito tardio dado ressaltamos a relevância do livro Acervos e Referências
os avanços de movimentos sociais da virada do século, de Memória LGBTQIAP+ para elevação de discussões
mas a lenta ocorrência de vitórias, infelizmente, é sociopolíticas sobre memória e patrimônio das bandeiras
uma característica intrínseca das lutas históricas das que o Museu da Diversidade Sexual defende.
comunidades LGBTQIAP+.
Visamos um cenário em que seja possível aprender e
Quando paramos para pensar em referências documentais construir coletivamente, sem censura ou retaliação, as
e artísticas dessas comunidades, especialmente em formas que podemos contar as nossas histórias. Quais
museus, tendemos a pensar um pouco mais de tempo foram nossos triunfos e fracassos? Que costumes estamos
em comparação com autores e obras fora desse campo levando adiante? Onde reconhecemos as vírgulas, pontos
identitário. Não é em vão. Até mesmo esse atraso do finais ou reticências enquanto comunidades? Estamos a
pensamento é histórico. multiplicar os passos. Seguimos.

As memórias, os patrimônios e as culturas LGBTQIAP+ – Instituto Odeon


é importante dizer nos plurais – sofreram, estruturalmente,
marginalização e apagamentos ao longo da história.
Esse é um dos inúmeros fatores que justificam a
carência de referências.

Ainda que todos tenhamos um longo percurso de resgates,


a presente obra evidencia nosso comprometimento em
imergir nas territorialidades brasileiras LGBTQIAP+. A
partir deste compilado de olhares que fundamentam a
importância do acervo da instituição, direcionamos nossa
atenção ao passado, presente e futuro a fim de alcançar a
totalidade de nossa existência.
13

O MUSEU DA DIVERSIDADE
SEXUAL E A PRESERVACAO
DOS PATRIMONIOS E
MEMÓRIAS LGBTQIAP+
Leonardo Vieira

Leonardo Vieira é Historiador, Museólogo e Produtor Cultural.


Atualmente, ocupa o cargo de Coordenador do Núcleo de Museologia
e Acervo do Museu da Diversidade Sexual.
14 O Museu da Diversidade Sexual e a preservação dos patrimônios e memórias LGBTQIAP+ 15

O ano de 2022 foi marcante para a história do Museu Do ponto de vista do diálogo da gestão com entes externos
da Diversidade Sexual do Estado de São Paulo por ao Museu, este iniciou-se nas primeiras semanas do
diversos motivos. Dentre aqueles que valem a pena Instituto Odeon à frente da instituição, quando ocorreram
serem lembrados por se mostrarem promissores para a uma série de reuniões com parceiros estabelecidos e
instituição, constam a celebração de seus dez anos de futuros, e teve seu ápice durante a realização do Seminário
existência e a continuidade do processo de estruturação Museu da Diversidade Sexual: a escuta e a construção de
museológica da instituição. novos caminhos, realizado de forma híbrida (presencial e
virtual), em março de 2022, em parceria com o Centro de
Podemos dizer que este processo se iniciou no momento de Pesquisa e Formação do SESC São Paulo1.
criação do Museu, quando ainda era chamado oficialmente
de Centro de Cultura, Memória e Estudos da Diversidade Tendo em vista o processo de estruturação museológica
Sexual do Estado de São Paulo, porém, ganhou substancial do Museu da Diversidade Sexual, tais momentos foram
impulso em 2018, quando foi realocado da atual Unidade e têm sido essenciais para que seja concebido o Plano
de Difusão Cultural para a Unidade de Preservação do Museológico e revisada a Política de Gestão de Acervo
Patrimônio Museológico da Secretaria de Cultura do Estado, da instituição, documentos indispensáveis para o
a qual acompanha a gestão da maioria dos museus do estabelecimento das pretensões e desejos de qualquer
estado. Com este movimento, o Museu da Diversidade instituição museológica, bem como das estratégias e
Sexual passou definitivamente a ser regido por diretrizes e caminhos para suas realizações.
procedimentos comuns ao sistema de museus de São Paulo.
De forma particularizada, o seminário foi estruturado para
Sendo assim, quando o Instituto Odeon assumiu a gestão que se constituísse como um importante local de escuta e
do Museu em janeiro de 2022, um de seus principais reflexão sobre as principais frentes de atuação do Museu.
compromissos dizem respeito a dar continuidade a este A saber: memória e patrimônio, arte e práticas artístico-
processo. É nesta perspectiva que a atual gestão, de forma culturais, educação e acolhimento, território e formação
interna e junto a ex-colaboradores, parceiros e públicos e empreendedorismo.
do Museu, tem empreendido discussões conceituais,
1 O seminário está disponível
programáticas e operacionais tendo em vista o passado, online no canal do Museu Sobre a frente de atuação relacionada ao
da Diversidade Sexual
presente e futuro da instituição. no Youtube. campo da memória e do patrimônio das
16 O Museu da Diversidade Sexual e a preservação dos patrimônios e memórias LGBTQIAP+ 17

comunidades LGBTQIAP+, a museóloga Leila Antero referências LGBTQIAP+ de abrangência nacional por uma
apresentará uma rica narrativa sobre os processos instituição ligada à esfera estadual?
desenvolvidos para além dos já citados neste texto. Porém,
cabe antecipar os esforços da atual gestão em refletir sobre As respostas para essa questão são múltiplas e complexas.
o acervo desejado para o Museu da Diversidade Sexual. Porém, da mesma forma com que ela encabeça discussões
da gestão do Museu, e em especial do seu Núcleo de
Formular aspirações para o acervo do MDS não constitui Museologia e Acervo, surgiu a necessidade de expandi-la
tarefa fácil, afinal, a primeira e maior diretriz que surge para agentes externos à instituição. É com esta perspectiva
para a constituição deste acervo diz respeito à sua que surge a ideia desta publicação.
representatividade com relação às comunidades LGBTQIAP+.
Esta questão por si só já nos coloca uma série de desafios O livro Acervos e Referências de Memória LGBTQIAP+ se
tendo em vista uma maior marginalização histórica de propõe a reunir diferentes perspectivas sobre acervos,
determinados grupos, tais como travestis e pessoas trans, coleções, obras e referências das comunidades LGBTQIAP+
em detrimento de outras, como homens cis gays. presentes em diferentes locais do território brasileiro. O
material apresenta um breve panorama das discussões
Talvez o segundo maior desafio relacionado ao ato de empreendidas atualmente por intelectuais, pesquisadores
definir um acervo desejado para o MDS diz respeito ao fato e militantes dos campos LGBTQIAP+ e da memória e do
de que o Museu da Diversidade Sexual constitui o único patrimônio, constituindo um importante material para a
equipamento público - ou seja, ligado à estrutura do estado, nutrição das questões que perpassam a concepção do
no caso, o paulista - dedicado exclusivamente a “preservar acervo do Museu da Diversidade Sexual.
o patrimônio sócio, político e cultural da comunidade LGBT
brasileira” existente no território nacional. Como citado, Leila Antero, museóloga do MDS,
apresenta uma narrativa detalhada sobre os processos
Tal característica, aliada ao fato de a instituição estar ligada relacionados à gestão do acervo institucional que foram
ao estado de São Paulo e localizada na região central da desenvolvidos ao longo do ano de 2022. Dentre eles,
capital paulista, impõe uma série de questões, dentre cabe ressaltar a importância do diagnóstico do acervo, o
as quais ressalto a seguinte: Quais as potências e os qual constituiu base para o planejamento de uma série de
desafios que se impõem na constituição de um acervo de procedimentos futuros.
18 O Museu da Diversidade Sexual e a preservação dos patrimônios e memórias LGBTQIAP+ 19

Em seguida, o antropólogo e decano do Movimento No capítulo quinto, o pesquisador da memória LGBTI+ de


LGBTQIAP+ brasileiro Luiz Mott e o presidente do Belo Horizonte Luiz Morando aborda as referências do
Grupo Gay da Bahia e coordenador do Centro Municipal grupo 3º ATO, pioneiro do movimento LGBTQIAP+ mineiro,
LGBT de Salvador Marcelo Cerqueira apresentam as tendo em vista o início da organização de grupos fora do
relações estabelecidas entre o campo do campo do eixo Rio-São Paulo. O texto de Luiz Morando nos possibilita
patrimônio e dos museus com o erótico e a sexualidade uma série de reflexões com relação às referências
humana. Os autores também nos fornecem uma rica LGBTQIAP+ de uma série de iniciativas brasileiras que não
narrativa sobre a experiência pioneira do Museu do se encontram ainda mapeadas e musealizadas.
Sexo na Bahia.
Em seguida, o transhomem e transativista Caio de
No terceiro capítulo, o professor da Universidade Federal Souza Tedesco ressalta o protagonismo do movimento
da Bahia (UFBA) e pesquisador das relações entre a social LGBTQIAP+ na “mobilização para a criação de
sexualidade, gênero e cultura, Leandro Colling, expõe um acervos, arquivos, museus e projetos voltados para
estudo sobre a chamada “cena artivista das dissidências história e memória LGBTQIAP+” e aborda experiências de
sexuais e de gênero” no Brasil, bem como alguns aspectos salvaguarda, registro e pesquisa de referências LGBTQIAP+
de seu surgimento. de instituições públicas do Rio Grande do Sul.

Já a professora do Departamento de Museologia da Já a cofundadora do Arquivo Lésbico Brasileiro (ALB) Julia


UFBA e atual coordenadora do referido curso, Anna Aleksandra Martucci Kumpera narra no sétimo capítulo
Paula da Silva, analisa o processo de musealização da o processo de constituição do acervo digital do Arquivo,
performance Dance with me, da artista Élle de Bernardini, ressaltando os procedimentos técnicos e determinadas
pela Pinacoteca do Estado de São Paulo, no capítulo tomadas de decisões relacionadas ao processo. Em seu
quatro. Este processo constitui caso ímpar para pensarmos texto, a autora aborda também reflexões relacionadas à
na aquisição e catalogação de obras de artistas trans por preservação e difusão da memória lésbica.
parte das instituições museológicas, visto que Élle de
Bernardini é uma das poucas artistas transexuais que tem No capítulo oitavo, a professora e pesquisadora Lauri
obras institucionalizadas. Miranda Silva aborda questões relacionadas à preservação
da memória LGBTQIAP+ em Rondônia a partir de espaços
20 O Museu da Diversidade Sexual e a preservação dos patrimônios e memórias LGBTQIAP+ 21

de sociabilidade e de organizações civis e projetos voltados se de múltiplas estratégias para que sua potência
à atuação junto à comunidade LGBTQIAP+, assim como seja reconhecida em todo o Brasil, haja vista a imensa
expõe uma narrativa autobiográfica que nos leva a refletir diversidade da cultura LGBTQIAP+ nacional, seus diferentes
sobre os processos de ocupação de espaços de poder e de suportes e processos de circulação. É, também, por este
conhecimento por pessoas trans. caminho que pretendemos direcionar a instituição nos
próximos anos.
Por fim, os pesquisadores Douglas Santos Neco e Rafael
dos Santos Machado apresentam o processo de formação Boa leitura a todes!
do acervo da primeira organização não governamental de
pessoas trans e travestis de Sergipe, a Unidas, tendo como
panorama o cenário das políticas públicas dos campos do
patrimônio e da Museologia e a LGBTfobia que estrutura a
sociedade brasileira.

Em conjunto, estes textos expõem a riqueza da memória


LGBTQIAP+ nacional e os desafios para seu registro,
preservação, salvaguarda e comunicação. Dentre algumas
destas problemáticas, considero como a mais desafiadora
a descontinuidade de determinadas políticas públicas
do campo do patrimônio cultural e da Museologia e
daquelas relacionadas às comunidades LGBTQIAP+.
Consequentemente, este fato impacta no desenvolvimento
de programas e projetos de instituições, organizações e
agentes da sociedade civil.

Neste sentido, o Museu da Diversidade Sexual possui


compromisso ímpar por ser uma instituição pública sui
generis no território nacional. Para tanto, necessita-
23

DE CENTRO DE CULTURA,
MEMÓRIA E ESTUDOS A
MUSEU: CONCEPCAO DO
ACERVO DO MUSEU DA
DIVERSIDADE SEXUAL
Leila Cristina Antero Cordeiro

Leila Antero é licenciada em Artes pelo Centro Universitário


Metropolitano de São Paulo, técnica em Museologia pelo
Centro Paula Souza e mestra em Museologia pelo Programa
de Pós-graduação da USP. Atualmente é Museóloga do
Museu da Diversidade Sexual de São Paulo.
24 De Centro de Cultura, Memória e Estudos a Museu 25

O Museu da Diversidade Sexual (MDS) foi criado como de suas histórias evidenciava a importância deste
Centro de Cultura, Memória e Estudos da Diversidade espaço para as populações que estão fora do padrão
Sexual do Estado de São Paulo, por meio do Decreto cis-heteronormativo. Porém, o fato de não ter surgido
Estadual nº 58.075, de 25 de maio de 2012 (SÃO PAULO, oficialmente como instituição museológica, e por estar
2012), na Unidade de Difusão Cultural (atual Unidade inicialmente alocado em uma Unidade ligada à bibliotecas,
de Difusão Cultural, Bibliotecas e Leitura). A instituição implicou em questões de processamento que ainda podem
surge, principalmente, a partir da necessidade sentida ser sentidas na constituição do acervo.
por ativistas e representantes dos Movimentos Sociais
LGBTQIAP+ de preservar a memória daqueles que Regulamentada em 14 de janeiro de 2009, a lei federal
perderam suas vidas em decorrência da epidemia de HIV/ 11.904 estabelece o Estatuto dos Museus, que regula as
AIDS que assolou o mundo a partir da década de 1980. atividades em todas as áreas, conforme vemos em nota
publicada no portal oficial do Governo Federal (2022):
Ainda que tenha sido concebido como Centro de Cultura
e Memória, desde sua criação havia a intenção de que o A lei regula toda a atividade museológica no país,
espaço fosse um museu, conforme relatam a seguir Lopes, da segurança à aquisição de obras, da gestão
Padilha e Ladeia (2021, p, 72): financeira à curatorial, do financiamento à prestação
de contas, das ações educativo-culturais aos
(...) a vontade de museu se faz urgente, portanto, projetos de pesquisa, pois determina parâmetros
utilizando da estratégia do nome social o centro para as atividades dos museus e cria importantes
de cultura é chamado de museu desde sua mecanismos de gestão, proteção e divulgação do
concepção, para assim firmar seu lugar e sua patrimônio museológico.
identidade na capital paulista.
A referida lei prevê ainda a criação de um Plano Museológico,
A ausência de um espaço dedicado à que trata-se de um documento de gestão em que é possível
preservação, pesquisa e comunicação da avaliar o histórico da instituição observando suas forças,
memória LGBTQIAP+ no Brasil1 e que tornasse 1 O Museu da Diversidade fraquezas, oportunidades e ameaças. A partir dessa
Sexual foi o primeiro de sua
populações dissidentes protagonistas na temática a ser criado na avaliação, é possível a elaboração de um plano de ação de
América Latina, e o terceiro
narrativa de preservação e comunicação no mundo. todas as áreas. No geral, este plano vigora por cinco anos.
26 De Centro de Cultura, Memória e Estudos a Museu 27

Outro ponto previsto na lei é que instituições Contudo, foram realizadas doações de obras de arte
museológicas contem com a presença de um museólogo, e reproduções fotográficas por parte de artistas que
profissional responsável pela aplicação de normativas e expuseram no Museu para compor o acervo da instituição.
procedimentos, pela execução dos mesmos para a boa
gestão do acervo museológico, entre outros. Por meio do Decreto 63.375, de 04 de maio de 2018, a
denominação da instituição é formalizada como Museu
Durante a pesquisa nos arquivos de memória institucional, da Diversidade Sexual e é reconhecida sua missão
foi possível observar que houve tentativas de museológica. De acordo com o decreto supracitado, são
implementação destes padrões, contudo, estavam mais atribuições do MDS:
alinhadas a diretrizes arquivísticas do que museológicas.
Dentre os documentos institucionais elaborados, 1. formação de acervo, divulgação e publicação
estão as primeiras versões das Políticas de Acervos de documentos, estudos, relatos, depoimentos
e do Plano Museológico que atualmente estão em e outros materiais referentes à memória e à
fase de revisão. história política, econômica, social e cultural da
comunidade LGBT no Brasil;
É preciso considerar que até o ano de 2021 o MDS
não possuía um Contrato de Gestão exclusivo para 2. promoção e apoio a eventos culturais, cursos,
administração da instituição, o que dificultava a conferências, palestras e pesquisas, com o
contratação de pessoal tornando a equipe enxuta. objetivo de promover e divulgar a produção
Vale ressaltar ainda que até este momento o MDS cultural relacionada com a diversidade sexual
havia sido gerenciado por Organizações Sociais (OSs) (SÃO PAULO, 2018).
experientes e de mérito reconhecido na área de gestão de
equipamentos voltados para ações culturais, mas que, até O referido Decreto previa ainda a integração do Museu à
o gerenciamento do Museu da Diversidade, não possuíam Unidade de Preservação do Patrimônio Museológico, da
tradição na gestão de instituições museológicas. Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São
Paulo (UPPM), responsável pela gerência de Museus do
Neste período, a aquisição de acervo era feita, quase que Estado em parceria com Organizações Sociais.
exclusivamente, por meio de empréstimo e de comodato.
28 De Centro de Cultura, Memória e Estudos a Museu 29

A UPPM é ainda responsável pela “elaboração, área passará de aproximadamente 100 m² para 540 m²,
desenvolvimento e avaliação de diretrizes e políticas possibilitando a criação de um espaço destinado a exposição
públicas relacionadas ao patrimônio museológico do de longa duração, além das exposições temporárias (SÃO
Estado de São Paulo” (SÃO PAULO, s/d). Uma vez integrado PAULO, 2021). A permanência do Museu da Diversidade
a UPPM, a OS gestora do Museu da Diversidade Sexual no metrô República se faz necessária devido à grande
precisa alcançar metas específicas direcionadas a representatividade da região do Arouche para a comunidade
equipamentos museológicos, tendo como base diretrizes LGBTQIAP+, possibilitando que a missão do Museu dialogue
nacionais e internacionais de gestão museal. com a relação destas populações em seu entorno.

No ano de 2020, durante o isolamento social decorrente Em janeiro de 2022, a Organização Social Instituto Odeon
da pandemia de covid-19, em parceria com a UFSC passa a gerir o Museu da Diversidade Sexual através
(Universidade Federal de Santa Catarina), iniciou-se o do Contrato de Gestão 05/2021. Como ação de rotina,
projeto de extensão “Acervo e diversidade: mapeamento o contrato supracitado prevê, além de outras ações, a
e política de acervo em museus” (LOPES, PADILHA E salvaguarda (documentação e conservação) dos acervos
LADEIA, 2021, p. 71) com o intuito de “articular teoria e museológico, arquivístico e bibliográfico do MDS. Já a
prática na construção de uma política de acervos para o ampliação dos acervos por compra está prevista como
Museu da Diversidade Sexual” (ibid.). Para isso, foi formado meta condicionada à captação de recursos externos
um Grupo de Trabalho (GT) composto por museólogos, através de parcerias e leis de incentivo. Paralelamente,
historiadores, pesquisadores da Museologia LGBT e ações de aquisições por meio de doações estão sendo
técnicos do Museu. Além da contextualização histórica da empreendidas por meio de pesquisas e contato com
instituição, o documento traz diretrizes para aquisição e ativistas e artistas que possuem intenção de doar suas
descarte de acervos. coleções ao Museu da Diversidade Sexual.

No segundo semestre de 2021 foi anunciado pelo então Quando houve a troca de Organização Social na gerência
governador do Estado, João Doria, a destinação de uma do Museu da Diversidade Sexual, para que ocorresse a
verba exclusiva para a gestão do MDS, além da ampliação transferência de gestão do acervo para o Instituto Odeon,
do espaço expositivo localizado no mezanino da estação como primeira ação da atual equipe, em janeiro de 2022,
República do Metrô de São Paulo. Com a reforma, a foi feito um arrolamento do acervo material museológico
30 De Centro de Cultura, Memória e Estudos a Museu 31

e bibliográfico do MDS. A partir de então, a listagem foi Para a elaboração do Diagnóstico do Acervo, além das
enviada para a Secretaria de Estado de Cultura e Economia informações levantadas durante o arrolamento, foi
Criativa (SEC) com o intuito de formalizar a transferência, realizada uma pesquisa nos arquivos institucionais gerados
processo este que aconteceu em novembro de 2022. entre os anos de 2012 e 2021, que trazem o histórico de
tratamento do acervo. Contudo, a falta de padronização na
Somente após a transferência é que a atual equipe organização e nomenclatura dos arquivos fez com que essa
passou a ter condições plenas de desenvolver e aplicar pesquisa fosse prejudicada em alguns momentos. A partir
uma política de documentação e conservação do acervo. daí, a atual equipe sentiu a necessidade de incorporar
Porém, ainda anteriormente à transferência, as ações às ações de documentação a criação de um quadro de
de pesquisa deste acervo foram continuadas com a arranjos e a sistematização na nomeação dos arquivos
elaboração do Diagnóstico do Acervo. No momento do gerados nos anos anteriores e futuros. Essa ação se dará a
arrolamento foram levantadas informações presentes nas partir da contratação futura de profissional qualificado no
obras e livros. Em seguida, houve a complementação com campo da arquivologia.
dados existentes em planilhas preenchidas previamente e
no arquivo institucional do Museu. Os campos elencados Atualmente, a Política de Gestão de Acervos está em fase
foram os seguintes: de revisão de acordo com a meta estabelecida no Contrato
de Gestão 005/2022. A revisão foi finalizada no segundo
• Número - correspondente a numeração provisória; quadrimestre de 2022, atendendo ao contrato supracitado
• Imagem; (SÃO PAULO, 2022, p. 150). Para tal, foi formado um Grupo
• Autor; de Trabalho composto por profissionais dos núcleos de
• Título; Museologia e Acervo, Educativo e Programação.
• Data;
• Técnica; A primeira etapa visou o estudo da Política de Acervos
• Dimensão; elaborada em 2020 e, além da leitura do documento
• Exposição - mostra que fez parte originalmente; presente no arquivo institucional, foi feita análise dos
• Localização vídeos com as reuniões do GT responsável pela primeira
• Observação - com estado de conservação. versão do documento. Foi feita ainda a revisão bibliográfica
de um artigo publicado sobre o processo de concepção
32 De Centro de Cultura, Memória e Estudos a Museu 33

da Política (LOPES, PADILHA, LADEIA, 2021), bem como de catalogação, saída do objeto, empréstimo - entrada,
outros títulos relacionados ao Museu da Diversidade Sexual empréstimo - saída e documentação retrospectiva.
(FELICE, 2015; LADEIA, 2022; BREDARIOLLI, 2019).
É importante ressaltar que, para além da assinatura do
Além das referências bibliográficas citadas, serviram Termo de Permissão de Uso (TPU) para transferência
como base para a elaboração da revisão da Política de da gestão dos Acervos (museológico, arquivístico e
Acervos documentos similares desenvolvidos por outras bibliográfico) para a Odeon, outro fator que retardou o
instituições museológicas como, por exemplo, o Museu processamento do acervo do Museu da Diversidade foi
da Cidade de São Paulo (2020) e o Museu da Imigração seu fechamento de abril a setembro de 2022. Isso se deu
(2018). Outro artigo utilizado como referência foi Política de devido a uma decisão judicial após ação popular movida por
Aquisição de Acervos: Instrumentos de gestão e de memória um deputado de extrema direita. Este processo resultou
institucional (VIEIRA, 2019). em liminar com a suspensão temporária do Contrato de
Gestão entre SEC e Instituto Odeon, o que fez com que a
Após a leitura do referencial teórico, passou-se a escrita transferência da tutela do acervo fosse postergada.
da atualização da Política, tendo sido dividida nos
seguintes tópicos: apresentação, Museologia e questões A ação contesta o aumento da verba para gestão da
LGBTQIAP+, histórico do museu, relevância do museu instituição e a ampliação da unidade da República. Em
para a comunidade LGBTQIAP+, diagnóstico de acervo seus argumentos, o deputado traz relações infundadas e
e procedimentos primários de gestão de acervo. Para sem parâmetro de comparação ao tentar parametrizar o
elaboração deste último, além de ter como base a Norma repasse de museus de grande porte como Museu da Língua
Spectrum 4.0 (2014), foram utilizadas as Resoluções SC da Portuguesa e Museu Paulista (Ipiranga) com o do MDS (SÃO
Secretaria de Cultura e Economia do Estado de São Paulo, PAULO, 2022). Contudo, esse argumento foi contestado em
presentes no Caderno UM LabCult nº 04 - Legislação da parecer divulgado pelo Ministério Público do Estado de São
Cultura no Estado de SP: Resoluções (SILVA; RAMOS, 2018). Paulo, ao relatar que:

A partir de então, foi possível elaborar 8 (oito) normas com Outro fundamento da decisão agravada e que
procedimentos primários, sendo eles: entrada do objeto, também não nos parece sólido é suspender os
aquisição, controle de localização e de movimentação, repasses porque os valores são vultosos. De fato,
34 De Centro de Cultura, Memória e Estudos a Museu 35

os valores não são insignificantes, mas com o só agravarão ainda mais os recursos que ali se
que foram comparados? Se pensarmos no que se encontram investidos [...]
investe na cultura em nosso país, isso realmente
nem chega ser mínimo que de lá vultoso. Aliás, Aproveitando-se do significado dessa suspensão
sem qualquer demérito a alguns contratos, vale mencionar o ofício referido no bojo do
a quantia repassada à gestão do Museu agravo interno no qual a Secretaria da Cultura
mostra-se menos vultosa. Basta comparar- pontua a extensão dos danos, seja quanto a
se o desembolso feito aos museus em geral e [sic] manutenção do acervo, desmobilização do
outros empreendimentos culturais permanentes pessoal, serviços de segurança e evidentemente
com aqueles feitos por muitos administradores danos ao patrimônio museológico (Ibid, p, 03).
públicos a um único artista sob o manto da
inexigibilidade de licitação. Interessante os dados Ressalta-se que, dentre os possíveis prejuízos causados
e as ponderações feitas pelo Estado de São Paulo pela ausência de processamento do acervo durante
nos autos no agravo 2086059-88.2022.8.26.000 ao o período de suspensão do Contrato de Gestão do
criticar a impropriedade feita pelo autor popular ao Museu, podemos citar a falta de controle das condições
comparar as verbas destinadas ao agravante com ambientais - tais como temperatura e umidade -, que
aquelas repassadas a outros museus (v.g Museo podem ocasionar a proliferação de microorganismos,
da Língua Portuguesa, Museo do Ipiranga) que como fungos que provocam danos, por vezes
tradicionais, muitos até seculares, contam com irreversíveis, às obras.
contribuição inclusive de particulares (grifo nosso)
(SÃO PAULO, 2022, p. 10). Mesmo com a suspensão do contrato e a impossibilidade
de ações que envolvessem atendimento de público e
Quanto aos prejuízos para o Museu da Diversidade Sexual parcerias, parte da equipe2 continuou com as atividades
em decorrência da liminar de suspensão do contrato, o internas do Museu. Foi neste cenário que se
Ministério Público destaca que: 2 Em função da instabilidade deram as ações descritas anteriormente (de
vivida neste período de
suspensão, o Museu da Diagnóstico do Acervo e revisão da Política
Diversidade perdeu dois
A deterioração do espaço, do acervo, suspensão terços de sua equipe, de Gestão de Acervo), além das demais
incluindo membros do corpo
de projetos, de salários e rescisões trabalhistas técnico e administrativo. atividades de rotina.
36 De Centro de Cultura, Memória e Estudos a Museu 37

Com o estabelecimento das normativas e procedimentos, Ainda que as tratativas para ocupação desta segunda
arrolamento do acervo, análise do histórico no arquivo unidade do MDS já estejam em curso, e bem avançadas,
institucional e escrita do diagnóstico do acervo, foi possível neste primeiro momento o acervo foi transferido para uma
ter um panorama mais claro sobre as necessidades de Reserva Técnica externa. A guarda se dá com empresa
ações futuras para processamento e gestão de acervo, especializada em obras de arte e acervos museológicos
além da necessidade de espaço de acondicionamento. que atende os parâmetros necessários para a preservação
do acervo do MDS. Além disso, todas as ações - desde
Atualmente, o MDS conta somente com o espaço a embalagem, o transporte, o acondicionamento até o
expositivo da unidade República. Num futuro próximo, monitoramento ambiental e de segurança - foram e estão
o Museu terá uma segunda unidade nas imediações sendo acompanhadas pelos museólogos do Museu da
da Avenida Paulista, onde contará com espaços para Diversidade Sexual.
exposições temporárias e as áreas administrativa e
técnica da instituição. Essa área receberá também a Mais uma questão analisada durante o processo de
Reserva Técnica (RT) do Museu da Diversidade Sexual. levantamento do histórico do acervo foi a presença de
A princípio será montada uma RT de transição (RTT) e, acervo digital. Foi possível notar a existência de fotografias
futuramente, uma Reserva Técnica definitiva. Segue abaixo digitais e vídeos com coleta de depoimento. Todavia,
o projeto da planta baixa da RTT com áreas de guarda e também constatou-se que nas listagens desses acervos,
processamento de acervo: por vezes, o acervo museológico era confundido com
arquivo institucional (como, por exemplo, fotografias
de eventos e abertura de exposições). Atualmente, a
equipe está realizando uma varredura no suporte digital
Figura 01 - Imagem referente
a planta baixa da Reserva com a memória institucional com o objetivo de levantar
Técnica na sede MDS-
Alameda Santos. Segundo documentação retrospectiva de acervo material e
Piso do Bloco C
imaterial e de estabelecer distinções claras entre acervo
museológico e institucional.
(01) Banca de processamento;
(02) Mesa higienizadora;
(03) Mesa de apoio;
(04) Prateleiras metálicas; Ainda sobre o acervo imaterial e arquivo institucional, está
(05) Mapoteca metálica
(MDS, 2022) previsto para o ano de 2023 a elaboração da Política de
38 De Centro de Cultura, Memória e Estudos a Museu 39

Preservação Digital do Museu. Paralelo a isso, deverá ser a relação da unidade República com seu entorno esteja
definido o padrão de metadados para essa coleção, bem presente, através da aquisição de patrimônios materiais ou
como metodologias de preservação digital, além de toda imateriais de espaços simbólicos, ativistas, artistas, entre
a sua documentação (formalização de patrimonialização outros, uma vez que a região é tão representativa para a
na nomenclatura de salvamento do arquivo, arrolamento, comunidade LGBTQIAP+. Faz-se necessário que o MDS
inventário e catalogação). traga em seu acervo também a multiplicidade de gêneros,
orientações sexuais, raças, etnias e classes representando
Para além do acervo existente, tem-se como objetivo a ao máximo a diversidade do Museu e dos corpos, sempre
prospecção de bens museológicos para o Museu e essas de acordo com a missão do Museu da Diversidade Sexual.
novas aquisições deverão seguir a missão do MDS e os
parâmetros documentais da Museologia. De acordo com a Além da ampliação de nosso acervo, surgiu a necessidade
Lei 11.904/2009: de estruturar um projeto de pesquisa e difusão de
importantes pontos de memória LGBTQIAP+. Como
Consideram-se museus, para os efeitos desta Lei, primeiro passo, foi dado início a concepção do projeto
as instituições sem fins lucrativos que conservam, Plataforma Mundo Queer, que visa o mapeamento de
investigam, comunicam, interpretam e expõem, referências culturais e patrimoniais desta comunidade.
para fins de preservação, estudo, pesquisa, A partir desse levantamento será possível disponibilizar
educação, contemplação e turismo, conjuntos e o acesso a esses registros em uma plataforma unificada,
coleções de valor histórico, artístico, científico, assim, além dos acervos materiais e imateriais do MDS,
técnico ou de qualquer outra natureza cultural, haverá a divulgação dessas referências com o objetivo de
abertas ao público, a serviço da sociedade e de criar uma rede de memória LGBTQIAP+.
seu desenvolvimento (grifo nosso) (BRASIL, 2009)
Podemos concluir que 2022 foi um ano de muitos desafios
Com isso em vista, e buscando um acervo que 3 Busca-se a formação para o Museu da Diversidade Sexual, contudo, mesmo
de coleções que sejam
esteja a serviço da sociedade, pretende-se a administradas pelo assim foi possível estabelecer meios para dar continuidade
poder público, gerido por
formação de coleções que sejam públicas3, Organizações Sociais, e ao trabalho de diagnóstico, salvaguarda e prospecção
que tenha a participação
cada vez mais diversas e que representem a da sociedade tanto em sua do acervo, visando que essas coleções traduzam cada
constituição quanto na
pluralidade da sigla. Assim como é preciso que múltipla representatividade. vez mais a missão do Museu e a comunidade LGBTQIAP+.
40 De Centro de Cultura, Memória e Estudos a Museu 41

Referências bibliográficas
A partir de parâmetros da Museologia LGBT espera-se que
BRASIL. Lei nº 11.904 de 14 de janeiro de 2009. Institui o Estatuto de
esse acervo possa progressivamente ampliar seu alcance e Museus e dá outras providências. Portal do Planalto. Disponível em:
representatividade social, fazendo com que a comunidade <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l11904.
htm>. Acesso em: 22 ago. 2022.
não se veja apenas como visitante da instituição, mas antes
como protagonista do Museu da Diversidade Sexual. BREDARIOLLI, Rita Luciana Berti. Um museu no metrô: política e estética
em espaços circundantes. In: Imágenes en tránsito. 139-146. Argentina:
Universidad Nacional de Rosario. 2019. Disponível em: <https://www.
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o Centro de Cultura, Memória e Estudos de Diversidade Sexual
do Estado da São Paulo e dá providências correlatas. Dísponível
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dez/2022.

_______. Decreto 63.375, de 04 de maio de 2018. Altera a denominação


e a área do equipamento cultural que especifica, da Secretaria da
Cultura, e dá providências correlatas. Disponível em: <https://www.al.sp.
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html#:~:text=Altera%20a%20denomina%C3%A7%C3%A3o%20e%20
a,Cultura%2C%20e%20d%C3%A1%20provid%C3%AAncias%20correlatas>.
Acesso em: 25 ago. 2022.

_______. Termo De Referência Para Elaboração De Proposta Técnica


E Orçamentária Para Gestão Do Museu Da Diversidade Sexual:
Conforme Resolução SC- 047/2021 de 05 de Outubro de 2021 . São
Paulo: Secretaria de Cultura e Economia Criativa. s/d. Disponível em:
<https://www.transparenciacultura.sp.gov.br/eesseers/2021/10/Termo_de_
Referencia_Resolucao_SC_n_47_2021.pdf>. Acesso em: 16 ago. 2022.

_______. Contrato de Gestão 005/2022. Contrato que entre si celebram


o estado de São Paulo, por intermédio da Secretaria de Cultura e
Economia Criativa, e o Instituto Odeon, qualificado como organização
social de cultura, para gestão do Museu Da Diversidade Sexual,
2022. Disponível em: <http://institutoodeon.org.br/wp-content/
uploads/2022/01/Contrato-MDS.pdf>. Acesso em: 02 dez. 2022.
45

O PIONEIRO
MUSEU DO
SEXO DA BAHIA
Luiz Mott e Marcelo Cerqueira

Luiz Mott é professor titular de Antropologia aposentado da


Universidade Federal da Bahia e Fundador do Grupo Gay da Bahia;
Marcelo Cerqueira, Bacharel em História pela PUC de Salvador é
presidente do Grupo Gay da Bahia e atualmente coordenador do
Centro Municipal LGBT de Salvador.
luizmott@yahoo.com.br - marcelocerqueira757@gmail.com
46 O Pioneiro Museu do Sexo da Bahia 47

Museus do Sexo, Erótico, da Sexualidade e constatamos que a arte erótica acompanha a humanidade
da Diversidade Sexual desde seus primórdios, quando nossos ancestrais
começaram a pintar nas cavernas homens e mulheres
No início dos anos 1990, tivemos oportunidade, o atual nus, às vezes copulando, esculpindo falos em osso, pedra,
presidente do Grupo Gay da Bahia (GGB) e seu fundador, madeira e posteriormente em metal, cristal e vidro. A
Marcelo Cerqueira e Luiz Mott, respectivamente, de celebérrima Vênus de Willendorf encontrada na Áustria
visitar os Museus Eróticos de Paris, Amsterdã e o histórico no começo do século 20, uma estatueta de pedra com 11
Gabinetto Secreto do Museu Arqueológico Nacional de cms de comprimento esculpida há 25 mil anos antes de
Nápoles. Ficamos deslumbrados com tais coleções de Cristo, mostra um corpo feminino nu, com enormes peitos
arte com tantos objetos homoeróticos e impressionados e abundantes nádegas, símbolos não só da fertilidade mas
com a missão social e política que tais museus podem certamente também do erotismo2.
desempenhar na luta contra a homotransfobia.
Entre os povos antigos, sobretudo gregos e romanos, mas
Passamos, a partir de então, a comprar algumas peças também chineses, indianos e africanos, o erotismo foi
sensuais, planejando fundar um museu da sexualidade na celebrado em variegadas obras decorativas, geralmente
sede do GGB, no Pelourinho. Durante os anos seguintes, associadas a rituais religiosos ou em homenagem a heróis
visitamos os principais polos de ceramistas do Nordeste, mitológicos ou reais.
adquirindo figurinhas, canecas e “esculturas de sacanagem”.
Projeto que se concretizou em 1996, com a abertura do Os insuperáveis obeliscos do Egito representavam,
Museu do Sexo da Bahia, também referido como Museu na verdade, o falo do deus do sol, Rá, enquanto as
Erótico e da Sexualidade, tornando-se a primeira instituição deslumbrantes estátuas de homens nus greco-romanas
do gênero no Brasil. Em funcionamento ininterrupto há e suas congêneres renascentistas, que hoje
26 anos, o Museu do Sexo da Bahia é responsável pela chamam nossa atenção pela pequenez do
realização de 29 exposições, além da exibição permanente pênis, na época refletiam importante atributo
2 Cf. artigo Vénus de
de parte de seu acervo e mostras temporárias1. Willendorf – Wikipédia, masculino: a moderação, o comedimento,
a enciclopédia livre
(wikipedia.org). posto que apenas os faunos e bárbaros
Ao pesquisar a história dos museus 1 Conferir página Museu da 3 Cf. artigo Por que estátuas eram representados com órgãos sexuais
Sexualidade da Bahia - Guia gregas têm pênis pequeno?
consagrados ao tema da sexualidade, das Artes. Um grego explica!. agigantados3. Muitos desses maravilhosos
48 O Pioneiro Museu do Sexo da Bahia 49

mármores gregos de homens nus, alguns colossais, foram Criado em 1817, reunindo objetos obscenos, que só

copiados pelos romanos e posteriormente por escultores podiam ser vistos com autorização da autoridade

do Renascimento. competente, desde que o solicitante fosse pessoa de

idade madura e de conhecida moral... Em meados de

Além de obras de arte utilizadas na decoração de palácios 1850 o Gabinete foi fechado à visitação, mas reaberto

e praças, tais nus serviam de inspiração para um fetiche por ordem de Giuseppe Garibaldi durante o processo

sexual muito em moda na antiguidade: o pigmalionismo, de unificação italiana, quando este conquistou

parafilia que consiste na atração sexual por estátuas. Nápoles em 1860! A coleção teve seu primeiro

catálogo publicado em 1866. Progressivamente a

Assim sendo, esses nus artísticos tornaram-se censura do Reino de Itália restringiu seu acesso,

disputadíssimos pelos colecionadores mais abastados, como culminando com o fechamento total durante o período

foi o caso da poderosa família Farnese, particularmente do fascista, quando somente podia ser visitado com

Papa Paulo III (1543), responsável por uma das primeiras e autorização do Ministério da Educação! A censura

mais ricas coleções de obras de arte da antiguidade greco- perdurou até 1967 e a sala foi definitivamente aberta

romana, os inigualáveis Mármores Farnésios4. O próprio ao público em abril do ano 2000. Hoje não existe

Miguel Ângelo arquitetou as instalações para abrigar algumas nenhum tipo de censura, porém menores de 14

dessas preciosidades, transferidas no século 18 para o Museu anos só podem entrar se acompanhados dos pais

Arqueológico Nacional de Nápoles, na Itália, encontrando-se ou professores!5

atualmente algumas dessas obras primas no Museu Britânico


e no Vaticano. Essa fantástica coleção inclui pinturas com cenas
explícitas de sexo, tanto em afrescos parietais quanto
Foi por essa época que se desentulharam as fantásticas na decoração de ânforas e pratos; enorme variedade de
ruínas de Pompéia e Herculano, na Itália, onde foi falos em bronze, granito, osso, marfim e outros materiais,
encontrada uma grande quantidade de pinturas, esculturas muitos usados como luminárias, balanças ou amuletos;
e artefatos eróticos – acervo que deu origem ao pioneiro estátuas de sátiros copulando com ninfas e cabritas, uma
museu erótico mundial, o Gabinetto Segreto, verdadeira Babilônia apimentada com cenas
incrustrado no segundo andar do Museu 4 Ver Coleção Farnese – 5 Cf. artigo Gabinete Secreto de Sodoma e Gomorra. Salvo erro, esse foi
Wikipédia, a enciclopédia do Museo Archeologico
Arqueológico de Nápoles: livre. Nazionale - Nápoles, Itália. o pioneiro dos museus eróticos do mundo,
50 O Pioneiro Museu do Sexo da Bahia 51

refletindo suas aberturas e fechamentos, as ondas e O Instituto para o Estudo da Sexualidade era visitado
modismos impostos pela oscilante moral dominante6. anualmente por cerca de 20.000 pessoas, realizando cerca
de 1.800 consultas, sobretudo para transgêneros. Hirschfeld
Foi, contudo, somente no início do século 20, já no final na foi quem primeiro escreveu um trabalho científico sobre o
época vitoriana, inspirada pelos lampejos do iluminismo travestismo, Die Transvestiten (Berlim, 1910).
e maior secularização dos costumes, que a sexualidade
passou a ser tema de pesquisas acadêmicas, publicações O Instituto advogava a educação sexual, a contracepção,
científicas e tratamento museológico, surgindo então o tratamento das doenças sexualmente transmissíveis –
na Alemanha o pioneiro Instituto para o Estudo da para os mais pobres, o atendimento era gratuito – e foi
Sexualidade, do alemão Institut für Sexualwissenschaft, precursor em nível mundial na luta pela descriminalização,
um misto de núcleo de pesquisa, espaço de fisio-psico- defesa dos direitos civis e aceitação dos homossexuais
terapia, biblioteca e museu de sexologia. e transgêneros.

Fundado em 1919, foi seu idealizador e diretor o Em 6 de maio de 1933, uma brigada de estudantes
grande ícone gay Dr. Magnus Hirschfeld (1868-1935), nazistas invadiu o Instituto e queimou em praça pública
judeu e socialista, pioneiro da luta pelos direitos dos todo seu acervo: 40.000 manifestantes se reuniram em
homossexuais e transgêneros, reunindo num belo volta dessa terrível fogueira homofóbica. Uma tragédia
casarão no centro de Berlin uma biblioteca com mais para a memória de nossa cultura e história LGBT e um
de 20.000 livros e revistas científicas, 5.000 fotografias precoce e violentíssimo atentado ao nascente movimento
e imagens, além de objetos eróticos e museológico homotranserótico9.
parafernália sexual7. Entre suas peças mais 6 Stefano De Caro e
Pier Giovanni Guzzo. Il
preciosas, um maravilhoso pênis esculpido gabinetto segreto del Museo A segunda Grande Guerra e as crises mundiais abortaram
archeologico di Napoli. Guida
numa enorme presa de marfim: tal objeto, rápida. Roma, Mondadori o entusiasmo e a militância desses inconformados
Electa, 2013.
além de outras raridades eróticas, assim pioneiros homossexuais contra a homofobia cultural e
7 Cf. artigo Magnus
como a reconstrução do interior dessa Hirschfeld, O Médico Gay E governamental. Entretanto, vale ressaltar
Judeu Que Defendia LGBTs
instituição podem ser vistos no belíssimo Do Nazismo. 9 Lauritsen, John. Los que ainda nas décadas de 1940 e 1950
primeros movimientos en favor
filme O Einstein do Sexo (1999), do diretor 8 Cf. página Der Einstein de los derechos homosexuales surgiram, especialmente na Holanda e nos
des Sex - Wikipedia, la (1864-1935). Barcelona,
Rosa von Praunheim8. enciclopedia libre. Editora Tusquets, 1974. Estados Unidos, alguns pequeninos grupos de
52 O Pioneiro Museu do Sexo da Bahia 53

afirmação identitária, assim como tímidas manifestações O museu examina muitos aspectos do amor
públicas dessas minorias, como o ONE National Gay & sensual através dos tempos, exibindo uma grande
Lesbian Archives, em funcionamento ininterrupto em Los e extensa coleção de imagens eróticas. Estas
Angeles desde 195210. exibições são feitas através de pinturas, gravações,
fotografias, estátuas e muitas outras coisas... Cada
Somente em 1969, com as rebeliões de Stonewall em sala homenageia destacados ícones sexuais: Mata
Nova York, nos Estados Unidos, que teve início o moderno Hari, Marquês de Sade, Rudolf Valentino, Oscar
movimento de liberação homossexual11 e já em 1970 foi Wilde, Marquise de Pompadour e assim por diante.
fundado o Gay Task Force em Detroit, também nos Estados Na sala do Marquês de Sade, são emitidos sons
Unidos. No ano seguinte, aconteceu a publicação da repetitivos da máquina a vapor, misturados aos
primeira Gay Bibliography.. gritos de alegria de mulheres com um senso de
humor específico.”13
Em 1967, foi fundada em Nova York a pioneira livraria LGBT,
Oscar Wilde Memorial Bookshop, a primeira do gênero que, Assim caminha a humanidade, entre gritos, sussurros e os
emocionado, visitei ainda nos anos 1980, onde além de 50 tons de cinza...
livros, expunham-se obras de arte homoeróticas. Em Paris,
em 1980, ocorreu a abertura da livraria Les Mots à la Bouche, Museus Eróticos pelo Mundo
no Marais, onde comprei diversos livros do gênero “gay and
lesbian studies”. No ano de 1983, foi aberta a primeira livraria Após minucioso levantamento no Google e outros sites de
gay canadense, Out of the Shelves, na cidade de Vancouver12. pesquisa, localizamos informação sobre a existência de 36
museus consagrados a diferentes aspectos da sexualidade,
Salvo erro, foi apenas em 1985, que seria erotismo e diversidade sexual. Relação certamente
10 Cf. site ONE Archives at
inaugurado em Amsterdam, capital da Holanda, the USC Libraries. subnotificada, não obstante tratar-se seguramente da lista
famosa por sua precoce liberdade sexual, o 11 Cf. artigo Revolta de mais extensa disponibilizada em nível mundial.
Stonewall deu origem ao
primeiro museu erótico moderno, o Museu do movimento atual pelos 13 Museu do Sexo em
direitos LGBTQIAP+ | Amsterdã - 2022 | Dicas
Sexo, que recebe em média 675 mil visitantes National Geographic. incríveis! (dicasdeamsterda. Tais Museus do Sexo (Eróticos, da Sexualidade,
com.br); https://www.
por ano. Também conhecido como Venustempel 12 Cf. Out On The Shelves: A dicasdeamsterda.com.br/ da Diversidade Sexual, do Pênis, das
library pivotal to Vancouver’s amsterda/museu-do-sexo-
(Templo de Vênus, em tradução livre): LGBT2QIA+ community em-amsterda/ Pessoas LGBT etc.) estão arrolados em
54 O Pioneiro Museu do Sexo da Bahia 55

ordem cronológica de sua fundação, abrangendo quatro 21. Veneza, Itália, 2006
continentes. Constata-se de antemão que esses espaços 22. Las Vegas, EUA, 2008
museológicos concentram-se notadamente na Europa, 23. Lituânia, 2009
América e em menor número na Ásia e Oceania. Alguns 24. Moscou, Rússia, 2011
encontram-se atualmente fechados14. 25. Lisboa, Portugal, 2011
26. Varsóvia, Polônia, 2011
Museus do Sexo pelo mundo (Data de abertura) 27. São Paulo, Brasil, 2012
28. Bruxelas, Bélgica, 2012
1. Nápoles, Itália, 1807 29. Atenas, Grécia, 2012
2. Kannawa Spa, Beppu, Ōita, Japão, 1960 30. Lima, Peru, 2014
3. Amsterdam, Holanda,1985 31. Reykjavik, Islândia, 2016
4. Hamburgo, Alemanha, 1992 32. Belo Horizonte, Brasil 2016
5. Copenhagen, Dinamarca, 1993 33. Budapeste, Hungria, 2019
6. Salvador, Brasil, 1996 34. Virgínia, EUA, 2020
7. Berlim, Alemanha, 1996 35. Gramado, Brasil, 2021
8. Barcelona, Espanha, 1996 36. Londres, Inglaterra, 202215
9. Chicago, EUA, 1999
10. Carcóvia, Ucrânia,1999 Como antecipamos, embora a nomenclatura destes
11. Xangai, China, 1999 museus varie, todos exibem peças relativas ao sexo,
12. Madri, Espanha, 2000 sexualidade, erotismo, diversidade sexual etc. Alguns
13. Praga, República Checa, 2001 são galerias ou salas particulares de museus históricos,
14. Camberra, Austrália, 2001 médicos, arqueológicos, entre outros. Nos últimos
15. Mumbai, Índia, 2002 anos, foram criados igualmente alguns museus virtuais
16. Nova York, EUA, 2002 dedicados a temas sexuais: por exemplo, em 2003, a
17. Seul, Coreia do Sul, 2004 sexóloga Carmita Abdo criou o Museu do Sexo
18. São Petersburgo, Rússia, 2004 através do Projeto Sexualidade (ProSex) da
15 Cf. artigo Reino Unido
19. Hollywood, EUA, 2004 inaugura o Queer Britain, seu Universidade de São Paulo (USP), em parceria
14 https://en.wikipedia.org/ primeiro museu LGTBQ+ |
20. Miami Beach, EUA, 2005 wiki/List_of_sex_museums Diversidade. com o Laboratório Pfizer.
56 O Pioneiro Museu do Sexo da Bahia 57

Em 2012, foi inaugurado em São Paulo o Museu da modernos, incluindo roupas e instrumentos usados por
Diversidade Sexual (MDS), iniciativa da Secretaria de adeptos do sadomasoquismo17.
Cultura e Economia Criativa do Estado. Atualmente, está
localizado dentro da Estação República do Metrô, e é Outros museus da sexualidade especializaram-se em
considerado um dos três museus do mundo com temática segmentos populacionais específicos, seja quanto à
LGBT, juntamente com o Schwules Museum, em Berlim, e o orientação sexual ou identidade de gênero, seja em
The GLBT History Museum, em São Francisco. Na pandemia personagens pertencentes às minorias sexuais ou em
de covid-19, teve mais de dois milhões de visitas virtuais. aspectos destas subculturas, como o Leslie-Lohman
Entre suas exposições, destaque para “As representações Museum of Gay and Lesbian Art de Nova York (1969), o Tom
LGBT na música brasileira”, “Caio Mon Amour”, “Darcy of Finland Foundation em Los Angeles (1984), o Andy Warhol
Penteado, o Observador Humano”. Desejamos que o Museum de Pittsburgh (1993), o Transgender Archives at the
projeto governamental para ampliação de seu espaço se University of Victoria do Canadá (2007), o Leather Archives
concretize brevemente16. and Museum de Nova York (1991), o GLBT History Museum
em São Francisco (2010), o Museum of Trans History and Art
Certos museus são especializados em aspectos ou em São Francisco (2013)18.
temas específicos da fisiologia, sociologia ou cultura
da sexualidade: Red Light Secrets de Amsterdã abriga Nosso principal museólogo e pesquisador brasileiro sobre
exposições sobre a vida e o trabalho das garotas de museus LGBT, o professor Tony Boita, da Universidade
programa da capital holandesa; o Museum of Sex de Federal de Goiás (UFG), em sua dissertação de mestrado
Nova York oferece ao público a oportunidade de brincar fez o mapeamento dos museus do mundo dedicados
em um pula-pula coberto por seios gigantescos; no à memória e aos direitos LGBTIQ+,
Love Museum de Seul, o público pode interagir com referenciando cinco instituições virtuais
obras de arte de cunho sexual bem explícito; o Icelandic 17 Cf. artigo 8 Fascinating consagrados ao segmento Trans: Digital
Sex Museums to Visit
Phallological Museum de Reykjavik é todo dedicado ao Around the World | Historical Transgender Archive, Archivo da Memória Trans,
Landmarks.
pênis de centenas de espécies animais, incluindo o Museu Travesti do Peru, Museu da Pessoa,
18 Cf. artigo The 11 Sexiest
maior do mundo, de uma baleia azul, com 1,70 metro de Museums in the World. Revista Memória LGBTIQ+ 19 Em 2020, foi
comprimento; o Sex Machines Museum de 19 Cf. artigo 5 Museus (+ inaugurado o Museu Transgênero de História
iniciativas) travesti e trans
Praga reúne brinquedos sexuais antigos e 16 Cf. site do Museu. para visitar online. e Arte (MUTHA):
58 O Pioneiro Museu do Sexo da Bahia 59

Museu transformacional, continuamente em No Brasil, dois museus voltados para o sexo,


transformação, que objetiva criar incentivos, pretensiosamente, sem respaldo histórico, se arvoraram
ferramentas e alternativas à produção de dados à condição de pioneiros e únicos no gênero. Em agosto
sobre violências cotidianas relacionadas às vivências de 2016, duas décadas após a abertura do Museu do Sexo
transgêneras no Brasil, contando com financiamento da Bahia, em Belo Horizonte foi inaugurado no pátio do
Governamental do Estado da Bahia e Federal.”20 Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(Iphan) o Museu do Sexo Hilda Furacão, também conhecido
A partir de 2018, passou a ser divulgado online o Museu como Museu das Putas. O local pretende abrigar ações
Bajubá, com sede no Rio de Janeiro, voltado para a artísticas e propor uma reflexão ampla sobre o sexo.
pesquisa, valorização, salvaguarda e divulgação do
patrimônio histórico da população LGBTI+, notadamente O Museu do Sexo fica no Uai Shopping, na rua Saturnino de
os seus territórios citadinos21. Além dessas citadas Brito, Centro.
instituições específicas centradas na sexualidade, diversos
outros destacados museus históricos ou artísticos têm A iniciativa, que conta com recursos da Lei Municipal
exibido arte erótica ou relacionada ao tema sexual, de Incentivo à Cultura, abriu com a mostra Atentado
reservando salas e pavilhões próprios para sua exibição, ou ao Pudor-Topless. A exposição retrata a forma de
promovendo mostras temporárias. vestir de uma mulher e quer chamar a atenção
para questões de gênero e sexualidade. Outra
O Museu Britânico, em comemoração ao mês do LGBT Pride, mostra é a Gozemos, com fotos e vídeos de artistas
apresentou em 2013 uma mostra que explorou a história convidados, que vai estar nas casas da zona boêmia
secreta do “gay love”, tendo como destaques os bustos em da capital. Segundo o coordenador do Museu do
mármore do Imperador Hadriano e seu esplendoroso amado Sexo, a ideia é fazer a integração dos diversos
Antinous, uma moeda de cobre com a efígie da poetisa extratos sociais da cidade com esse universo da
Safo de Lesbos, uma taça de prata do século 1 capital mineira. Mas a principal questão é trazer
decorada com um homem fazendo amor com 20 Cf. site MUTHA. uma reflexão sobre a sexualidade humana e seus
um efebo (a peça mais cara do museu, avaliada 21 Cf. site Museu Bajubá potenciais. Para ele, a importância é resgatar a
23 Cf. artigo BH terá Museu
em 1,8 milhão de libras) e uma lâmpada da 22 Cf. artigo Desire, love, do Sexo das Putas para história de Hilda Furacão e de todas as pessoas
identity: LGBTQ histories abrigar memória de sua zona
Turquia com duas mulheres fazendo sexo oral22. trail. boêmia. envolvidas com a questão da sexualidade23.
60 O Pioneiro Museu do Sexo da Bahia 61

O outro museu a se autopromover como “o primeiro e único “I. Informações Gerais


museu de sexo do Brasil” é o Sex Museum de Gramado,
fundado em 2021: Histórico: pela primeira vez no Brasil foi criado um Museu
do Sexo da Bahia, iniciativa do bacharel em História
com horário de funcionamento das 13:00 às 21:00 Marcelo Cerqueira e do antropólogo Luiz Mott;
hs, sendo o primeiro museu nesta temática em todo

Brasil trazendo, de maneira lúdica, todas informações Localização: situado temporariamente na Sede do Grupo
que você queria sempre saber sobre sexo e que não Gay da Bahia, no Centro Histórico de Salvador, à Rua Frei
tinha para quem perguntar para obter as respostas Vicente, 24, Pelourinho, aberto ao público nos dias úteis
bem explicadas em stands muito bem organizados. durante o horário comercial, entrada grátis;
Lá você encontrará máquinas dos séculos passados,

curiosidades sobre outras culturas (história do sexo Acervo: reúne mais de 500 peças e uma biblioteca
desde a era paleolítica até os dias de hoje), cenários para especializada em sexo, com 2.000 volumes incluindo ficção
fotos além de loja para compras de lembranças do local. e trabalhos científicos;
Venha você também matar sua curiosidade, tirar as suas

dúvidas e se divertir muito no “Sex Museum”24. Tipologia das peças: esculturas, desenhos, gravuras,
pinturas, objetos utilitários, instrumentos eróticos e material
Acervo prafrentex na conservadora Gramado tão associada de “safe sex”, vídeos, filmes, gravações, músicas, parafernália;
ao turismo familiar e imagem do Papai Noel...
Material das peças: cerâmica, porcelana, mármore, vidro,
O Pioneiro Museu do Sexo da Bahia metal, fibra, acrílico, madeira, cera, tecido;

Inaugurado em 2 de setembro de 1996, o Museu do Sexo Curadoria: coleção particular do bacharel em História,
da Bahia (também referido como Museu Erótico, Museu Marcelo Cerqueira, presidente do Grupo Gay da Bahia,
da Sexualidade) assim definiu em sua carta de curador do Museu, com assessoria de Luiz Mott, mestre
princípios suas intenções e objetivos, dados 24 Cf. site Sex Museum. em Etnologia pela Sorbonne e doutor em Antropologia pela
que foram repercutidos pela imprensa local 25 Conferir artigo GGB busca Unicamp, professor titular aposentado do Departamento
doação imóvel para instalar
e nacional25: Museu do Sexo em Salvador. de Antropologia da UFBa e fundador do GGB, conta
62 O Pioneiro Museu do Sexo da Bahia 63

com assessoria do restaurador e conservador do acervo 5. Reservar uma seção do museu e das exposições
Cristiano Santos; permanentes e temporárias, sobre temas correlatos
à Educação Sexual, Aids e às DSTs e seu impacto na
II. Objetivos do Museu do Sexo sexualidade e modus vivendi do povo brasileiro, levando tais
exposições para escolas, universidades e outras cidades e
1. Coletar, classificar e preservar as representações da se-
xualidade através da cultura material e intelectual, incluindo estados com vistas à superação da sexofobia e homofobia,
objetos da cultura popular e erudita com temática sexual e construindo um mundo mais feliz e sexualmente saudável;
erótica, tanto no Brasil, como em outras culturas do mun-
do, com vistas a expor tais produtos culturais e intercambiar 6. Estimular a discussão sobre a sexualidade humana e a
com museus congêneres; cultura sexual com vistas a tornar mais eficaz a prevenção
da Aids e Infecções Sexualmente Transmissíveis
2. Organizar uma biblioteca e coleção de posters, livros, através da realização de oficinas de sexo seguro (safer
revistas, jornais, folders, selos, cartões postais, filmes, sex) e palestras sobre educação sexual, erradicando o
discos, cds, vídeos, enfocando a sexualidade, o erotismo preconceito e discriminação baseados na orientação
e cultura LGBT, disponibilizando tal material à consulta de sexual e identidade de gênero.
pesquisadores;
III. Acervo do Museu do Sexo
3. Organizar salas e exposições temporárias e itinerantes
Atualmente, o Museu do Sexo da Bahia dispõe de aproxima-
com temas específicos, visando a reconstituição histórica
damente 500 peças, todas com temática erótica, conserva-
e contemporânea da cultura sexual brasileira (indígena, das num armário de ferro trancado, incluindo:
afro-descendente, europeia, lgbt), com vistas a captar sua
diversidade, dialética e evolução; Cerâmicas eróticas do Nordeste

4. Oferecer cursos e palestras sobre história e antropologia • Bahia: Nazaré das Farinhas, Maragogipe, Salvador
da sexualidade e do erotismo em geral e homoerotismo • Sergipe: Carrapicho e área ribeirinha do Rio São Francisco
em particular, visando abrir o diálogo com professores de • Pernambuco: Tracunhanhém, Caruaru, Recife e Olinda
educação sexual, universitários e pesquisadores desta área • Norte, Centro-Oeste e Sudeste do Brasil: Pará, Mato
do conhecimento; Grosso, Minas Gerais
64 O Pioneiro Museu do Sexo da Bahia 65

• Coleção de canecas em forma de pênis oriundas de Significado da arte erótica: Segundo especialistas em
diversas partes do Brasil e do mundo cerâmica popular e tribal, muitas das peças artesanais
hoje catalogadas como “eróticas” eram simplesmente
Terracotas provenientes do Peru e México, de inspiração representações de cenas da vida cotidiana ou, no caso das
nas culturas Incáica, Asteca e Maia esculturas de pênis e performances de cópula, continham
algumas vezes significação ritual ou propiciatória, uma espécie
Esculturas em bronze e ferro da África Ocidental de “ex-votos” visando a fertilidade dos seres humanos ou
agradecendo a proteção divina às funções genitais. É o caso
Porcelanas e metais da Holanda, França e outros dos Exus da Bahia representados com enormes pênis.
países europeus
Intercâmbio: O Museu da Sexualidade pretende intercam-
biar peças com outros museus congêneres nacionais e in-
Esculturas em metal e baixos relevos da Índia com ternacionais - coletando peças diretamente nos locais de
cenas do Kama-Sutra origem onde são confeccionadas ou em feiras regionais.

Diversos: Reproduções de esculturas italianas das Futuras exposições: Faz parte dos planos do Museu do
cidades de Pompéia e Herculano; peças eróticas da Sexo da Bahia realizar exposições nos próximos anos, uti-
Oceania, Estados Unidos etc. lizando peças tanto de sua reserva técnica como com ma-
terial coletado precipuamente para tais eventos. Eis alguns
Censura não! A maior parte dessas peças brasileiras temas que pretendemos privilegiar:

é vendida em feiras e mercados populares ou lojas de • O erotismo na cerâmica popular das feiras do Nordeste;
artesanato, portanto material destinado ao grande público • Da camisa-de-vênus à camisinha: volta ao mundo
através do preservativo;
e à visão em geral, e que, apesar do caráter explícito e às
• Exu: um orixá da fertilidade e masculinidade;
vezes exagerado das representações sexuais, nem por
• Sereias e Iemanjás: a nudez feminina na
isso tem sua exposição e venda proibidas ou censuradas 26 Cf. sites Museu da
Sexualidade | Exposições mitologia;
pelos órgãos de segurança - razão pela qual o Museu do | Pelourinho, Museu da • A evolução da Roupa Íntima no Brasil: da
Sexualidade da Bahia -
Sexo não tem por que temer qualquer tipo de repressão Guia das Artes, Museu da ceroula/calçola ao fio-dental;
Sexualidade da Bahia |
policialesca ao seu acervo e às suas exposições. #PartiuFeriado e Museu da • O sexo debaixo do pano: os fradinhos
Sexualidade | Exposições |
Pelourinho. sacanas26.
66 O Pioneiro Museu do Sexo da Bahia 67

Nesses 24 anos desde sua abertura, o Museu do Sexo Infelizmente, o Grupo Gay da Bahia ainda não teve êxito
do Grupo Gay da Bahia tem cumprido sua carta de até hoje em conseguir um espaço maior, com mais vitrines
intenções, realizando exposições temáticas, mantendo e recursos para manutenção do Museu do Sexo da Bahia,
ininterruptamente suas portas abertas no Pelourinho, inclusive a conclusão da classificação museológica
renovando suas vitrinas permanentes, sendo visitado de seu acervo. A crise provocada pela pandemia de
diariamente por turistas e soteropolitanos, notadamente covid-19 e pelo conservadorismo homofóbico do
estudantes interessados em realizar diferentes tipos de desastroso Presidente Homofóbico tornou ainda
pesquisa sobre o tema sexualidade, movimento LGBT, Aids mais difícil a obtenção de financiamento para ampliar
etc. Indicações sobre sua localização, horário e conteúdo nossas atividades.
são regularmente divulgados nos guias turísticos de
museus de Salvador e agendas culturais, recebendo boa Não obstante, entre 1993 e 2022, o GGB realizou um total
acolhida por parte de seus visitantes, como se pode ler de 28 exposições, algumas ainda na antiga sede do grupo,
nesses comentários publicados no site Tripadvisor: à Rua do Sodré, 45, no bairro Dois de Julho ou em espaços
públicos. A última mostra, em andamento, aconteceu
Interessante o Museu da Sexualidade da Bahia. de agosto a dezembro de 2022. Exposições com temas
Gostei dos espaços, a fácil localização e o valor. variegados atinentes à cultura e militância LGBT, Direitos
Muito interessante um espaço assim, nunca vi igual. Humanos e Prevenção das DSTs e da Aids, muitas
Vale a pena conhecer! (Data da experiência: 10/2014, fartamente divulgadas na mídia local e nacional, a saber:
Helton, Salvador);
Diversas peças eróticas de diversos países e feitos Exposições realizadas pelo GGB/Museu do Sexo,
[sic] com variadas matérias primas. Muito válida a 1993-2022
visita. Proibida a entrada de menores de 18 anos.
(Data da experiência: 1/2015, Rosinaldo, Aracaju); 1 - Aids, Informação e Prevenção
O Museu da Sexualidade da Bahia reúne fantástica coleção Biblioteca Pública da Bahia - 24 de maio a 12 de junho de 1993
arqueológica de arte erótica e as peças são provenientes 2 - Gay América - Latina
de várias culturas e de materiais diversos. Sede do GGB - 14 de julho a 10 de agosto de 1993
Vale a pena visitar este local (Data da 27 Cf. site Museu da 3 - Centenário de Mário de Andrade
Sexualidade da Bahia
experiência, 8/2015, Zilzil, Recife). 27 (Salvador) - Tripadvisor. Sede do GGB - 6 de outubro a 30 de outubro de 1993
68 O Pioneiro Museu do Sexo da Bahia 69

4 - O Sexo dos Anjos 16 - Políticos Brasileiros Travestis e Travestidos


Sede do GGB - 15 de dezembro 1993 a 30 de março 1994 26 de agosto a 4 de outubro de 2002
5 - AIDS 17 - Em Homenagem a São Sebastião: Cartazes e Postais
Biblioteca Central do Estado da Bahia 20 de janeiro a 20 de fevereiro de 200229
15 de janeiro a 30 de janeiro de 1995 18 - Fantasias de Clóvis Bornay. Praça Municipal de Salvador,
6 - Aids, Exposição Filatélica Concurso de Fantasia Gay no Carnaval
Biblioteca Central dos Barris 05 de fevereiro de 2005
1 de dezembro 1995 a 15 de janeiro de 1996 19 - Santo Antônio: O Divino Amante do Menino Jesus
7 - Caminhos da Mulher Lésbica. Em Comemoração de 8 de 12 de junho a 30 de junho de 2006
março Dia Internacional da Mulher 20 - O Nu Masculino Através do Mundo: Fotografias de Orion
8 de março a 8 de maio de 1996 Delain, Paris
8 - Internacional de Arte Postal sobre Aids 7 de fevereiro a 7 de março de 200730
1 de dezembro a 15 de dezembro de 199727 21 - A Homossexualidade na Corte de D. João VI. Exposição
9 - São Sebastião, Patrono Gay comemorativa ao bicentenário da chegada da Família Real ao
20 de janeiro a 5 de março de 1998 Brasil
10 - 8 de março - Dia Internacional da Mulher 21 de janeiro de 2008 a 29 de fevereiro de 200831
8 de março a 8 de abril de 1998 22 - Time de Futebol Gay da Argentina em Salvador.
11 - São Sebastião, Ícone Gay Exposição de fotografias na sede do GGB
19 de janeiro a 19 de março de 199928 18 de março a 30 de abril 2008
12 - GLB- Grupo Lésbico da Bahia - Mulheres na Arte Postal 23 - Camisinha na Mala. Exposição de postais e
5 de março a 5 de abril de 1999 29 Cf. artigo Gays baianos cartazes. Dia mundial de luta contra a Aids
vão declarar São Sebastião
13 - Cartazes e Livros do Mártir Gay Oscar Wilde padroeiro dos homossexuais. 01 de dezembro de 2008 a 31 de março de 2009
28 de novembro a 31 de dezembro de 2000 30 Cf. artigo Nu masculino 24- Sou Glamour.
exposto em fotos na sede do
14 - A Arte Gay de Keith Haring 27 Cf. artigo 1º de dezembro: Grupo Gay da Bahia. Fotos da austríaca Marianne Greber
em 1991 o GGB realizou 1º
18 de abril a 18 de maio de 2001 Concurso Internacional de 31 Cf. vídeo Os 29 de janeiro de 2009 a 28 de fevereiro de 2009
Arte Postal sobre Aids para Homossexuais na Corte de
15 - O Erotismo na Prevenção da Aids. Cartazes e marcar o Dia Mundial de D.João VI. 25 – Fora Feliciano: Caricaturas e Charges contra
Combate à Aids.
Fotografias 32 Cf. artigo Mostra “Fora a Homofobia
28 Cf. artigo São Sebastião - Feliciano” reúne cartuns e
17 de abril a 17 de maio de 2002 Padroeiro dos Gays. caricaturas no GGB. 1 de maio a 30 de julho de 201332
70 O Pioneiro Museu do Sexo da Bahia 71

Museus, intitulada Práticas e pensamento museológico


26 - Irã, o Inferno dos Homossexuais contemporâneo: Museus Eróticos, na qual enfatizamos como
25 de junho 30 de agosto de 201433 objetivo dos museus eróticos:
27 - Fotografias de Alair Gomes, Muito Prazer. Acervo da
Fundação Biblioteca Nacional, Diário íntimo Coletar, classificar e preservar as representações da
6 de dezembro de 2021 a 30 de março de 202234 sexualidade através da cultura material e intelectual,
28 - Franceses Escritores – Influências na Afirmação Gay no incluindo objetos da cultura popular e erudita com
Brasil temática sexual e erótica, tanto no Brasil, como em
Shopping da Bahia - 28 de fevereiro a 15 de março de 202235 outras culturas do mundo, com vistas a abrir espaço
29 - 24 Vips LGBT da Bahia: século XVI – XXI para discutir a sexualidade humana e sua relação com os
11 de agosto a 30 de dezembro de 202236 direitos humanos e a felicidade.

À guisa de conclusão Foi contudo em 2010,

Apesar de reconhecermos a pequenez e limitações do com o universo dos museus e das políticas públicas
Museu do Sexo da Bahia, não resta dúvida que, além culturais em plena efervescência que acontece na
do pioneirismo e resistência em manter até hoje em cidade de Brasília o 4° Fórum Nacional de Museus
funcionamento nosso museu por 26 anos com o tema Direito à Memória, Direito a Museus,
consecutivos, tendo realizado 29 exposições dentre as discussões diversas
de temas variados, tivemos significativo papel 33 Cf. artigo Exposição “Irã, 37 BAPTISTA, Jean; levantadas por mesas, painéis,
o Inferno dos homossexuais” BOITA, Tony. Museologia
inaugural no estímulo e na implementação do GGB expõe horror da e Comunidades LGBT: palestras e reuniões, acontece a
homofobia no Oriente Médio. mapeamento de ações
de importantes iniciativas direcionadas a de superação das fobias palestra de Luiz Mott, ativista e
34 Cf. artigo Grupo Gay à diversidade em museus
incluir a população e cultura LGBT entre da Bahia fará exposição do e iniciativas comunitárias fundador do Grupo Gay da Bahia e do
fotógrafo Alair Gomes. do globo. Cadernos de
as preocupações e pautas do movimento Sociomuseologia, [S.l.] Museu da Sexualidade, provocando a
35 Cf. artigo Grupo Gay Lisboa, Lusófona, v. 54, n.
museológico brasileiro. da Bahia celebra Dia 10, july 2017. Ladeia, Mayara. comunidade museológica a acordar
da Afirmação Gay com Castro, Thainá. A Museologia
exposição em Salvador. LGBT existe? Reconstruindo para o tema37.
os passos do movimento
Em 2007, apresentamos uma conferência 36 Cf. artigo Exposição na LGBT+ junto à museologia
sede da GGB apresenta 24 brasileira. Dossiê: Museus e
no Recife, no 16º Congresso Nacional de LGBTs ‘históricos’ da Bahia. Museologia LGBT+ v. 11 n. 21 E completa:
(2022).
72 O Pioneiro Museu do Sexo da Bahia 73

o fato de um ativista como Luiz Mott discorrer


sobre a necessidade de pensar os lugar da
Memória LGBT na sociedade brasileira, joga no
colo do campo museológico, sua responsabilidade
em pensar as questões envoltas na relação entre
os museus e a sexualidade no país, mais do que
isso, evidencia a ausência de ações e pesquisas
na construção da historicidade da museologia
brasileira que considerem a existência de pessoas
de sexualidades dissidentes, até então, marcando
o encontro do movimento/pensamento LGBT com
os estudantes, pesquisadores e profissionais de
museus que pertenciam a comunidade LGBT e que
atuavam em favor de uma Museologia Social38.

Que bom que uma sementinha plantada e germinada na


Bahia tenha provocado tantas reflexões acadêmicas e tão
salutares iniciativas na museologia brasileira! Que sejam
fundados novos museus da sexualidade em nosso país
e que os museus convencionais abram novos espaços
e realizem exposições com ênfase na cultura LGBT,
impedindo que aconteçam abomináveis manifestações
homotransfóbicas, como a censura e cancelamentos
praticados contra o Queermuseu em 201739.
Pois, como disse o papa São Clemente já no
38 Idem.
século 1, “não devemos ter vergonha de falar Figuras 1 a 4: exemplos de
39 Cf. artigo Santander: ações e peças do acervo do
– e exibir nos museus – o que Deus não teve Queermuseu: O dia em que Museu da Sexualidade.
a intolerância pegou uma
vergonha de criar” – e exibir no Paraíso! exposição para Cristo. Fonte: autor.
75

MUSEUS BRASILEIROS
E AS DISSIDENCIAS
SEXUAIS E DE GENERO:
UMA BREVE REFLEXAO
Leandro Colling

Professor do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor


Milton Santos, professor permanente do Programa Multidisciplinar
de Pós-graduação em Cultura e Sociedade e professor colaborador
do Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre
Mulheres, Gênero e Feminismo, da Universidade Federal da Bahia.
Integrante do NuCuS - Núcleo de Pesquisa e Extensão em Culturas,
Gêneros e Sexualidades. E-mail: leandro.colling@gmail.com
76 Museus brasileiros e as dissidências sexuais e de gênero: uma breve reflexão 77

Nos últimos dez, quinze anos, emergiu no Brasil o que e ampliação de diversas identidades trans, não binárias,
nomeei de “cena artivista das dissidências sexuais e bixas, sapatonas e outras tantas formas de identificação
de gênero” (COLLING, 2019). Em textos anteriores, eu e (COLLING, 2019).
outras pesquisadoras do Núcleo de Pesquisa e Extensão
em Culturas, Gêneros e Sexualidades (NuCuS), da A combinação desses cinco aspectos, que certamente
Universidade Federal da Bahia (UFBA), definimos o que não são os únicos, possibilitou que essa outra cena
seria essa cena, escrevemos sobre algumas das condições emergisse no país. Trata-se de uma cena que possui
que possibilitaram a sua emergência e analisamos alguns os seus antecedentes na história das artes da cena do
coletivos ou artistas e suas produções1. Brasil (ver Dzi Croquettes, cinema de Jomard Muniz de
Britto, Vivencial Diversiones, Teatro Oficina e Os Satyros,
De uma forma muito resumida, concluí que essa cena se por exemplo), mas que também apresenta as suas
constituiu no Brasil por várias razões: 1) como resposta à novidades2. No entanto, na última década, ocorreu um
onda conservadora e fundamentalista que se rearticulou boom de produções, de norte a sul do país, em múltiplas
no país por volta de 2011; 2) pela força dos movimentos linguagens artísticas, produzidas por uma multidão de
sociais, que conseguiram, com muito trabalho, aumentar pessoas que possuem nitidez sobre o caráter político e
a visibilidade das pessoas LGBT nas ruas, especialmente ativista das suas obras.
via paradas, na mídia e também nas artes; 3) a ampliação
do acesso às novas tecnologias e o uso sistemático e Trata-se de produções que explicitam tanto as
estratégico das redes sociais feito pelas pessoas artistas; sexualidades e os gêneros dissidentes, e outros
4) o espantoso crescimento dos estudos de gênero e marcadores sociais das diferenças, em especial raça,
sexualidade em nossas universidades, especialmente os classe e padrões corporais, quanto as suas intenções e
situados dentro das perspectivas dos feminismos negros, lutas políticas por uma sociedade que respeite e aprenda
queer e decoloniais, o que ocorreu também em função com a diversidade. Pelo fato de as produções artísticas
da própria ampliação do acesso ao ensino superior de operarem com ativismo e arte de forma
forma geral e pelo impacto da existência de uma maior 2 Várias pessoas já indissociável, pensamos que a chave de leitura
escreveram sobre os/as
diversidade de estudantes, ocasionada, precursores dessa cena do artivismo, já anterior a essas produções,
atual. Ver, por exemplo,
por exemplo, pela cotas para pessoas 1 Ler, por exemplo, a Freitas (2013), Cysneiros poderia ser acionada.
coletânea de artigos (2014), Sant’Ana (2016) e
negras, indígenas e trans; 5) a proliferação publicados em Colling (2019). Troi (2018).
78 Museus brasileiros e as dissidências sexuais e de gênero: uma breve reflexão 79

Ou seja, o artivismo não é uma identidade para ser que essas produções suscitam. Para além
carimbada em artistas ou obras, mas uma chave de leitura das ‘intenções’ dos artistas e ativistas, são os
que advém da própria análise das obras em que a dimensão enunciados e seus impactos que nos darão
artística e ativista está colada, imbricada, indissociada. Rose ferramentas para analisar essa emergência.
de Melo Rocha (2021), ao refletir sobre artivismo, diz que: Penso, por exemplo, ser mais lógico chamar
essa produção de a(r)tivismo do que considerar
Mais do que uma imbricação, configura-se uma ou chamar aqueles que executam as obras de
iniciativa de reflexão e de ação cujos princípios ‘artivistas’. (...) Há também, ao contrário, quem
norteadores são da não separação. (...) Trata-se não abomine o termo e já se denomine ‘artivista’,
de defender uma junção irrevogável entre arte e mas, na minha análise, não existe o ofício do
política, na proposição de não separar os dois polos artivista, os a(r)tivismos queer são produções de
(MELO, 2021, p. 18). acontecimentos que tratam de desestabilização
sexual, de gênero com caráter anticolonial
Marcelo de Troi (2018) prefere grafar a palavra “a(r) e, frequentemente, com caráter anarquista.
tivismo” e a liga com o queer para pensar as produções (TRÓI, 2018, p. 76)
que dialogam com as dissidências sexuais e de gênero.
No entanto, o autor não usa a expressão como uma Pensar essa nova cena da atualidade através da chave de
etiqueta ou identidade para determinados artistas, leitura dos artivismos, sejam eles focados nas dissidências
mas para pensar a emergência de produções com sexuais e de gênero ou em outras lutas, nos possibilita
determinadas características. diferenciar essas produções das movimentações mais
antigas do campo das artes e suas imbricações com a
A lógica não é dizer qual produção é ou não a(r) política, como as que ficaram conhecidas no Brasil pelo
tivismo, mas refletir sobre a emergência dessas rótulo de arte popular revolucionária, nos anos 1960. Como
produções nos permite notar como isso afeta todo detectou Charles Esche:
o contexto das artes e seu mercado, perceber
que a todo momento, artistas, ativistas, coletivos Os artistas socialmente engajados da década de
e o próprio mercado serão questionados quanto 2010, (...) parecem menos interessados que seus
a validade, a legitimidade e os agenciamentos antecessores em conscientizar ou despertar um
80 Museus brasileiros e as dissidências sexuais e de gênero: uma breve reflexão 81

senso de responsabilidade, e mais engajados em Já Ferreira Gullar renegou a sua experiência vanguardista
entender como movimentos existentes podem ser para atuar politicamente, junto ao CPC, em defesa da
apoiados e fortalecidos por meio da modelagem cultura popular e da participação do intelectual e do
daquilo que já existe. Esses artistas (pelo menos artista na luta pela autonomia do país. Enquanto isso, Hélio
em parte) fazem arte construindo estruturas, Oiticica defendia que a produção da jovem vanguarda
histórias, arquivos e comunidades que instituem o nacional tinha as seguintes características: a participação
tipo de estruturas comuns que poderiam emergir do espectador, que pode ser corporal, táctil, visual ou
em um futuro emancipado. Isso significa uma semântica; uma “abordagem e tomada de posição em
rejeição tanto da criatividade, no sentido capitalista relação a problemas políticos, sociais e éticos); tendência
de novos produtos inventivos para venda, quanto para proposições coletivas; ressurgimento e novas
da ideia de vanguardista tradicional da autonomia formulações do conceito de antiarte” (COUTO, 2012, p. 79).
artística que considera primordial a imaginação A autora também destaca que
livre e egocêntrica do artista. (ESCHE, 2021, p. 15)
[...] embora Oiticica reconhecesse o papel da arte
No entanto, sabemos que esse debate não foi inaugurado enquanto modificadora da realidade, jamais fez
na década de 2000. Apenas para retomar um exemplo mais qualquer tipo de concessão didática ao público
conhecido, vale lembrar que a exposição Nova objetividade ou aderiu a um ativismo político direto. (...) Como
brasileira, realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de sabemos, jamais houve da parte de Oiticica
Janeiro (MAM Rio), em abril de 1967, provocou um intenso qualquer intenção de submeter seu trabalho a
debate entre artistas sobre os rumos da arte e suas ideais político-partidários. Por outro lado, creio
relações com a política e os partidos. que podemos afirmar que, do grupo neoconcreto,
Oiticica foi um dos artistas mais preocupados,
Maria de Fátima Morethy Couto (2012) nos conta que Carlos durante a década de 1960, em conferir à sua
Estevam Martins, do Centro Popular de Cultura (CPC), da prática uma dimensão política capaz de interferir
União Nacional dos Estudantes (UNE), forjou a noção de uma no tecido social. Entendia a arte por um viés
arte popular revolucionária, que deveria priorizar o conteúdo utópico, considerando-a um meio eficiente de
sobre a forma, e pregava que artistas e intelectuais deveriam transformação do homem e da sociedade, capaz
assumir um lugar ao lado do povo na luta anti-imperialista. de levar o indivíduo a tomar consciência de sua
82 Museus brasileiros e as dissidências sexuais e de gênero: uma breve reflexão 83

situação de “ser social inteiro”. Em sua relação com Tiago Sant’ana (2017) realizou uma análise sobre a
o artístico, os indivíduos poderiam transformar-se exposição, explicou como se constituiu o ativismo queer
em sujeitos de sua história. (COUTO, 2012, p. 80) e questionou em que medida ela poderia ser considerada
queer. Para ele, a mostra se apropriou de um termo, porém,
E hoje como os museus brasileiros têm se relacionado com após a censura, inclusive os críticos progressistas tiveram
os movimentos sociais LGBTQIAP+ e essa cena artivista que defendê-la.
das dissidências sexuais e de gênero? Algumas dessas
instituições, inclusive de grande porte, perceberam o Queermuseu traz em seu contexto obras que
aumento do debate em torno desses temas e trataram possuem temáticas relacionadas ao gênero e à
de montar exposições em que as dimensões de gênero sexualidade, mas a representatividade da exposição
e sexualidade estivessem representadas. Em setembro é embaraçosa – já que a maioria das pessoas
de 2017, foi aberta a exposição Queermuseu - cartografia artistas sequer são LGBT ou, se são, muitas estão
das diferenças na arte brasileira, no Santander Cultural, na emaranhadas nos próprios sistemas da arte e do
cidade de Porto Alegre. capital. (...) Ao ver as entrevistas do curador da
mostra Gaudêncio Fidélis, além de todo material
Entretanto, o banco proprietário do espaço cedeu à institucional divulgado, a mostra tinha uma visão
pressão dos conservadores e fundamentalistas, que muito simplista e integracionista sobre a estranheza
alegavam que a mostra fazia apologia à pedofilia, à zoofilia queer, higienizando uma pauta que se insurgiu aos
e profanava símbolos religiosos cristãos. A mostra foi próprios modelos sociais e também de produção
censurada e instalou-se no país um imenso debate em artística. O desafio maior de Queermuseu, caso
torno do assunto e a exposição voltou a cartaz, no Rio de tivesse uma aderência e uma sintonia produtiva
Janeiro, no Parque Lage, em agosto de 2018. com a perspectiva queer, seria “estranhar o museu”
e não “musealizar” em um cubo branco e sem
A segunda edição foi viabilizada pela mobilização de muitas tensões as asperezas insurgentes queer. Se a
pessoas que participaram de um financiamento coletivo que exposição acontece num contexto esterilizado e
arrecadou cerca de R$ 1 milhão, algo inédito no país. Também em que a condição das pessoas subalternizadas
inédito foi o fato de a expressão queer ter sido utilizada como historicamente não é debatida, ela é pouco ou nada
tema aglutinador de uma grande mostra no Brasil. queer (SANT’ANA, 2017, SP).
84 Museus brasileiros e as dissidências sexuais e de gênero: uma breve reflexão 85

Logo depois da Queermuseu, o Museu de Arte de São Paulo de forma equivocada o conceito de performatividade
Assis Chateaubriand (MASP) abriu a exposição Histórias de gênero de Judith Butler4, operou com anacronismo
da sexualidade, realizada de 20 de outubro de 2017 a 14 de ao identificar o artista Paul Gauguin como pedófilo e
fevereiro de 20183. A mostra teve a curadoria de Adriano confundiu homossexualidade com gênero ao tratar das
Pedrosa, Camila Bechelany, Lilia Schwarcz e Pablo León pessoas muxes, do México. Ao final do texto, sintetizamos
de la Barra. Essa grande exposição contou com cerca de a pergunta título do nosso texto: o que acontece quando o
300 obras, reunidas em nove núcleos temáticos e não queer entra nos museus?
cronológicos: Corpos nus, Totemismos, Religiosidades,
Performatividades de gênero, Jogos sexuais, Mercados Pelo que vimos aqui, acontecem as seguintes
sexuais, Linguagens voyeurismos, Políticas do corpo e coisas: reação de fundamentalistas, críticas de que
Ativismos. Algumas obras de artistas centrais do acervo as obras fazem apologia à pedofilia e à zoofilia e
do MASP, como Edgard Degas, Maria Auxiliadora da Silva, que profanam símbolos religiosos cristãos, censura,
Pablo Picasso, Paul Gauguin, Suzanne Valadon e Victor união temporária de pessoas progressistas para
Meirelles, também foram utilizadas. fazer frente a essa onda conservadora que ataca
o campo das artes e a sociedade em geral, riscos
A exposição do MASP ganhou ainda mais importância de reificação de alguns estereótipos, riscos de
em função de todo o debate em torno da Queermuseu e anacronismo e/ou uso indevido ou forçado de
não ficou imune às críticas e pressões dos conservadores categorias da campo da sexualidade e do gênero,
fundamentalistas brasileiros. Tanto que, pela primeira vez equívocos conceituais e também tensionamentos
na história de 70 anos do museu paulista, ou ensinamentos às teoria de gênero (COLLING e
4 Por exemplo, ao invés
pessoas menores de 18 anos foram proibidas de destacar o quanto SANT’ANA, 2019b, p. 112).
3 Histórias da sexualidade Butler, ao criar o conceito
de ver a exposição mesmo acompanhadas abriu uma série de outras de performatividade de
grandes exposições de gênero, evidencia o caráter
pelos seus pais, mães ou responsáveis. cunho mais artivista no compulsório das normas Ainda que com apropriação, anacronismos
MASP, como Histórias afro- de gênero sobre todas as
atlânticas (2018) e História das pessoas, a mostra disse que e equívocos, esses dois exemplos mostram
mulheres, histórias feministas a teórica “enfatiza o fato de
Realizamos (COLLING e SANT’ANA, 2019b) uma (2019). Por ocasião dessas e constantemente inventarmos que os grandes museus brasileiros não
outras exposições, o MASP nossos corpos em vez de
análise sobre a exposição, em especial a seção também publicou, em 2021, o reproduzir o gênero a partir ficaram completamente imunes aos
livro Arte e ativismo: antologia, do sexo que nos é dado
Performatividades de gênero, e concluímos, organizado por André ano nascer - aquele do movimentos sociais e artísticos das
Mesquita, Charles Esche e corpo biológico”. (MASP,
entre outras coisas, que a mostra explicou Will Bradley. 2017,p. 152) dissidências sexuais e de gênero do país
86 Museus brasileiros e as dissidências sexuais e de gênero: uma breve reflexão 87

na última década. No entanto, ainda muito trabalho De julho a setembro de 2018, o local sediou a Mostra
precisa ser feito nesse sentido, o que envolve, além Devires, que contou com palestras, performances (de
de contemplar novas obras que questionam o próprio Elton Panamby, Maikon K, Roberta Nascimento, Maria Tuti
campo das artes, garantir a representatividade de Luisão, Yuri Tripodi, Michelle Mattiuzzi, entre outras/es/os)
artistas LGBTQIAP+ em suas interseccionalidades com e com a exposição Cu é lindo, do artista Kleper Reis6. Essa
raça, classe e outros marcadores sociais das diferenças. última foi duramente atacada pelo Movimento Brasil Livre
(MBL), que tentou impedir sua exibição7. Uma pequena
Enquanto isso não ocorre, museus menores, as pequenas sala de exposição na entrada do Teatro Gamboa também
salas de exposição e galerias ou espaços expositivos tidos costumava, antes da pandemia, receber periodicamente
como “alternativos” estão mais abertos para exposições exposições com temáticas das dissidências sexuais e de
das dissidências sexuais e de gênero. Além disso, museus gênero. Isso ocorreu especialmente nos meses de setembro
específicos, como o Museu da Diversidade Sexual (MDS), da última década, paralelamente à programação da Parada
em São Paulo, foram criados. São prioritariamente nesses LGBT de Salvador. Em 2019, por exemplo, aconteceu
espaços que o público brasileiro pode conhecer obras a exposição de Annie Ganzala, intitulada Pretas estão
de artistas LGBTQIAP+ da atualidade, que trabalham, se amando8.
geralmente, interseccionando questões de gênero,
sexualidade e raça. Grupos do movimento social organizado também acabam
por produzir e/ou colaborar para a criação de exposições.
Em Salvador, um desses espaços tem sido o Instituto Em 2016, em Porto Alegre, por exemplo, o
5 Cf. artigo CUS comemora
Cultural Brasil Alemanha - Icba (Goethe-Institut), que 10 anos com debates e nuances - Grupo pela Livre Expressão Sexual
mostra artística; confira
desde a ditadura cívico-militar tem sido um local de programação completa. protagonizou a organização da exposição
resistência na Bahia (LIMA, 2019). Em 2017, a instituição 6 Cf. artigo O que eu vi na intitulada Uma cidade pelas margens, no Museu
polêmica exposição Cu é
acolheu a Mostra CUS 10 anos, que contou com palestras, Lindo. de Porto Alegre Joaquim José Felizardo. Ela
performances e a exposição Campo de Batalha, com obras 7 Cf. artigo Após protesto foi composta por fotos, jornais, convites,
contra exposição 'Cu é lindo',
de Ana Verana, Miro Spinelli, Rafael Bqueer, Virgínia de Goethe-Institut fecha as cartazes e folders de festas, atos políticos
portas neste sábado (21).
Medeiros, além de dois arquivos: o Arquivo Padre Pinto e o e campanhas, especialmente do nuances e
8 Cf. artigo Salvador: Teatro
Arquivo Balizas5. A curadoria foi de Tiago Sant’Ana. Gamboa Nova celebra da Liga Brasileira de Lésbicas-RS. Imagens
diversidade no Setembro é
Gayboa. do acervo fotográfico dos museus de Porto
88 Museus brasileiros e as dissidências sexuais e de gênero: uma breve reflexão 89

Alegre e de Comunicação Hipólito José da Costa também Rita Colaço e Luiz Morando, presidente e vice-presidente,
foram utilizadas. Já em 2019, o nuances foi o cerne da respectivamente. Lançado em 2021, reúne um valoroso
exposição De Stonewall ao nuances: 50 anos de ação. A arquivo sobre a memória LGBT, em especial das cidades de
exposição ocorreu no Memorial do Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro, Belo Horizonte e São Paulo.
contou com uma composição cenográfica, o próprio acervo
do grupo, com escritos, objetos e imagens (ASSUMPÇÃO e Essas são apenas algumas das diversas formas com
POSSAMAI, 2022, p. 116). as quais ativistas e artivistas do Brasil têm tentado
valorizar, preservar e expor as suas histórias e obras.
Outra alternativa utilizada foi a criação de museus online. Em outros países, diversos grandes museus perceberam
Em novembro de 2020, foi lançado o Museu Transgênero a importância de produzir amplas exposições sobre as
de História e Arte (MUTHA), criado e produzido pelo dissidências sexuais e de gênero. Na Espanha, a vontade
pesquisador, artista e autor trans Ian Habib. Além de ter a de expor esses temas já ocorreu, não sem problemas, é
proposta de reunir a história das pessoas trans, o site tem o verdade (COLLING, 2021). Por aqui, a vontade ainda não
objetivo de produzir um arquivo brasileiro sobre história e arte bateu, muito ainda precisa ser realizado e, além disso, as
transgênera, que já conta com um arquivo digital de obras de poucas experiências têm sido muito combatidas. Apesar
vários artistas trans, a exemplo de Lino Arruda e Dodi Leal. disso, e por isso, resistiremos.

Uma outra seção é chamada de Arquivo Vivo e conta com


fotos, documentos e reportagens de ativistas e artistas
trans, como Keila Simpson e Fabiane Galvão. Mas o
material mais vasto encontra-se no livro Transespécie/
Transjardinagem, disponibilizado pelo museu e organizado
por Ian Habib. Segundo ele, trata-se da mais vasta obra
sobre a arte transgênera brasileira contemporânea, com
imagens de obras de quase 100 pessoas trans de todo o
Brasil e também de fora do país. O livro pode ser baixado 9 Para saber mais sobre o
MUTHA e também sobre
gratuitamente no site do MUTHA9. Outro museu online que Ponto de Memória Aquenda
as Indacas, ler Boita et al.
foi criado recentemente é o Museu Bajubá, dirigido por (2022)
90 Museus brasileiros e as dissidências sexuais e de gênero: uma breve reflexão 91

Referências MASP - Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand. Histórias da


sexualidade. PEDROSA, Adriano et. al. [org.]. São Paulo: MASP, 2017.

ROCHA, Rose de Melo. Artivismos musicais de gênero e suas interfaces


ASSUMPÇÃO, Elisângela Silveira de; POSSAMAI, Zita Rosane. Das margens
comunicacionais. In: ROCHA, Rose de Melo (org.). Artivismos musicais de
ao museu: narrativas expográficas LGBT no Sul do Brasil. Museologia &
gênero: bandivas, travestis, gays, drags, não-bináries. Salvador: Devires, 2021,
Interdisciplinaridade, volume 11, número 21, p. 110–129, 2022. Disponível
p. 15-30.
em https://periodicos.unb.br/index.php/museologia/article/view/41791 -
Acesso em: 1 ago. 2022 SANT’ANA, Tiago dos Santos de. Outras cenas do queer à brasileira: o
grito gongadeiro de Jomard Muniz de Britto no cinema da Recinfernália.
BOITA, Tony; BAPTISTA, Jean Tiago; HABIB, Ian e SABARÁ, Deborah.
2016. Dissertação (Mestrado em Cultura e Sociedade) - Instituto de
Museologia comunitária LGBT+: Museu Transgênero de História da Arte
Humanidades, Artes & Ciências Professor Milton Santos, Universidade
e Ponto de Memória Aquenda as Indacas no ensino de Museologia.
Federal da Bahia, Salvador, 2016.
Museologia & Interdisciplinaridade, volume 11, número 21, 2022, p. 18-28.
Disponível em https://periodicos.unb.br/index.php/museologia/article/ SANT’ANA, Tiago dos Santos de. “Queermuseu”: a apropriação que
view/41417/33174 - Acesso em: 1 ago. 2022 acabou em censura. Le Monde Diplomatique Brasil, São Paulo, 18 set. 2017.
Disponível em: https://diplomatique.org.br/queermuseu-a-apropriacao-
COLLING, Leandro. A vontade de expor – arte, gênero e sexualidade.
que-acabou-em-censura/
Salvador: EDUFBA, 2021.
Acesso em: 28 jul. 2022.
COLLING, Leandro (org.) Artivismos das dissidências sexuais e de gênero.
Salvador: EDUFBA, 2019. TRÓI, Marcelo de. Corpo dissidente e desaprendizagem: do Teat(r)o Oficina
aos A(r)tivismos Queer. 2018. Dissertação (Mestrado em Cultura e
COLLING, Leandro; SANT’ANA, Tiago. O que acontece quando o queer
Sociedade) - Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton
entra nos museus brasileiros? Revista Vazantes, v. 03, p. 95-114, 2019b
Santos, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2018.
COUTO, Maria de Fátima Morethy. Arte engajada e transformação social:
Hélio Oiticica e a exposição Nova Objetividade Brasileira. Est. Hist., Rio de
Janeiro, vol. 25, número 49, p. 71-87, janeiro-junho de 2012.

CYSNEIROS, Adriano Barreto. Da transgressão confinada às novas


possibilidades de subjetivação: resgate e atualização do legado Dzi a
partir do documentário “Dzi Croquettes”. 2014. Dissertação (Mestrado
em Cultura e Sociedade) – Instituto de Humanidades, Artes e Ciências,
Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014.

ESCHE, Charles. Prefácio à segunda edição: de 2007 a 2020. In: MESQUITA,


André; ESCHE, Charles; BRADLEY, Will (org.). Arte e ativismo. São Paulo:
MASP/Afterall, 2021, p. 13-16.

FREITAS, Artur. O corpo. In: Arte de guerrilha: vanguarda e conceitualismo no


Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013, p. 261-31

LIMA, Hanayana Brandão Guimarães Fontes. Instituto Cultural Brasil


Alemanha e sua produção simbólica na Bahia: pontos de partida. Anais do
XV Enecult, Salvador, UFBA, 2019. Disponível em http://www.xvenecult.
ufba.br/modulos/submissao/Upload-484/112299.pdf - Acesso em: 1 ago.
2022.
93

A MUSEALIZACAO
DA PERFORMANCE
DANCE WITH ME, DE
ÉLLE DE BERNARDINI
Anna Paula da Silva

Professora do Departamento de Museologia da Universidade Federal da


Bahia (UFBA) e doutora Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais
da Universidade de Brasília (PPGAV-UnB). Este texto compõe parte
do trabalho desenvolvido pela autora no âmbito do Edital Universal do
CNPq, Projeto Protocolos de musealização de ações performáticas em
museus públicos de arte. E-mail: anna.silva@ufba.br.
94 A Musealização da Performance Dance with me, de Élle de Bernardini 95

Durante viagem de estudo de Doutorado, em 2018, a


autora deste texto teve a oportunidade de acompanhar
a performance Dance with me, de Élle de Bernardini. A
obra foi performada em setembro daquele ano, no Sesc
Santo Amaro1, em São Paulo. Naquela época, a tese ainda
estava no campo das ideias, e o contato com essa obra,
Élle de Bernardini, outros artistas e tantas outras obras,
sejam performadas ou em reservas técnicas/centros de
documentação de museus, tornou possível a concepção
da tese final2, a qual apresentou perspectivas sobre a
musealização e o arquivamento da performance e de seus
vestígios nacionalmente e internacionalmente.

O argumento principal da tese é alterar a semântica


da performance, ou seja, problematizar a ideia de
aparição única e exclusiva à ação, e a insistência do
desaparecimento e da efemeridade como um fator
limitante para experiência com a obra. Nesse sentido,
propor alteração da semântica da linguagem é também
conceber outras formas de historicizar,
1 A performance fez parte da
programação com atividades musealizar e arquivar a performance e
relacionadas às pautas
LGBTQIAPN+ na instituição. seus vestígios.
Para informações sobre as
Figura 1 - Registro da atividades à época, acessar
Performance Dance with me o link.
(2018), de Élle de Bernardini, A discussão sobre os vestígios foi um dos
em 28 de setembro de 2018, 2 A tese Musealização
no Sesc Santo Amaro, São e Arquivamento da pontos centrais da tese, tendo em vista sua
Paulo. No centro da imagem Performance: as vicissitudes
está a artista (à direita) e a dos vestígios, sob orientação diversidade e presença nos acervos, bem
autora do texto à esquerda). do Professor Doutor
Emerson Dionisio Gomes de como a revisão sobre o sentido de posse de
Fonte: Fotógrafa: Bianca Oliveira, foi defendida em
Andrade Tinoco (2018). julho de 2021. uma obra de arte da performance. Afinal,
96 A Musealização da Performance Dance with me, de Élle de Bernardini 97

o museu não tem a ação, mas sim os vestígios3, o que da linguagem, bem como para a história da arte da
garante a ativação da obra, seja por meio de uma nova performance no Brasil.
ação, ou para exposição documental ou pesquisas.
Nesse sentido, este texto tem como objetivo apresentar a
Nós precisamos nos preocupar menos com obra Dance with me (2018-), de Élle de Bernardini5, a qual faz
o tempo da performance do que se era, no parte do acervo da Pinacoteca de São Paulo (Pina), desde
agora ou no sempre, e pensar mais sobre onde 2019. Para tanto, foram realizadas uma entrevista com a
acontece, o que reúne e como essa situação artista, pesquisa no Núcleo de Acervo Museológica da Pina
espacial tanto questiona quanto descreve a nossa e foi feito o uso de alguns referenciais teóricos.
própria perspectiva do nexo da arte e da vida.4
(WESTERMAN, 2015, n.p., tradução nossa). Ademais, destaca-se a importância de Élle de Bernardini
no sistema das artes visuais, por sua produção poética; sua
Assim como Jonah Westerman, na tese e identidade de gênero, enquanto mulher transsexual; e por
nas atuais pesquisas, defende-se que as 3 Foram estabelecidas duas algumas de suas obras estarem relacionadas diretamente à
noções para os vestígios,
obras de arte da performance precisam ser materiais e transcricionais. luta LGBTQIAPN+. Desse modo, o texto está divido em duas
Os vestígios materiais são
analisadas em diferentes circunstâncias, aqueles concebidos na ação, partes: a primeira aborda a visibilidade de Transexuais,
que podem ser musealizados
temporais e espaciais, e em termos de escalas e arquivados posteriormente, Travestis e Transgêneros no Acervos de Museus; e a
a exemplo, de objetos,
de aproximação e de distanciamento, a partir vídeos e fotografias. Já os segunda discorre sobre a musealização da obra de
vestígios transcricionais são
do agenciamento dos vestígios, ao invés produzidos pelo artista e pela Élle de Bernardini.
instituição, a exemplo de
dos estudos se concentrarem apenas no notação da performance e de
dossiê descritivo. Contudo,
primeiro momento, tendo como pressuposto a vestígios materiais podem Visibilidade de Transexuais/Travestis/
se tornar transcricionais, na
presença exclusiva no ato/na ação. medida em que se tornam Transgêneros nos Acervos de Museus
referência sobre a obra.

4 Citação original: “We need 5 Élle de Bernardini (Itaqui


Deste modo, apresentar obras de arte da to worry less about the time - RS, 1991) mora e trabalha Em maio de 2018, no primeiro contato que
of performance and whether em São Paulo, formada
performance musealizadas no Brasil, a it was then or now or always, em Filosofia e Jornalismo, a autora teve com a artista, foi perguntado
and think more about where também tem formação no
partir de contato com vestígios e com a it happens, what it brings balé clássico pela Royal a ela sobre a importância de ter obras
together and how that spatial Academy of Dance, Londres,
ação, contribui para a compreensão dos situation both questions and Reino Unido e em Butoh. Para musealizadas. Bernardini respondeu: “[...]
describes our own vantage outras informações sobre a
protocolos de musealização e de preservação onto the nexus of art and life”. artista, acessar seu portfólio. uma resposta triste, a expectativa de vida de
98 A Musealização da Performance Dance with me, de Élle de Bernardini 99

uma transexual no Brasil são 35 anos”, portanto, esta é uma no livro, Museologia LGBT: Cartografia das Memórias LGBTI+
forma de “[...] manter o meu trabalho seguro”. Durante a em acervos, arquivos, patrimônios, monumentos e museus
análise das obras, das entrevistas e de outros aspectos, transgressores, de Boita (2020), é evidenciada a luta
nota-se a relevância da documentação nos processos da constante por representatividade e legitimidade da pauta
artista, onde há detalhamentos sobre as obras, de modo a mencionada, além dos autores apresentarem valiosas
salvaguardar a trajetória dos trabalhos e a biografia de Élle iniciativas que representam a resistência LGBTQIAPN+.
de Bernardini.
Articular a relação entre a memória LGBT com
Diante do exposto, as obras da artista compõem um museus e o patrimônio é, antes de tudo, uma ação
cenário amplo sobre sua presença em acervos de museus e cidadã interessada em colaborar na superação
de coleções privadas nacionais e internacionais: Museu de de fobias à diversidade sexual impregnadas na
Arte do Rio Grande do Sul; Museu de Arte Contemporânea cultura nacional. Os profissionais de museus que
do Rio Grande do Sul; Museu de Arte Contemporânea assim o fazem, associam a questão do patrimônio,
de Niterói; Coleção Santander Brasil; Museu de Arte do reconhecendo que a presença LGBT é importante
Rio; Museu de Arte Moderna do Rio; Museu Nacional do e significativa para a construção do país, seja às
Complexo Cultural da República; Fundação Marcos Amaro; personalidades históricas, seja ao retrato de lutas
Embaixada da Itália; Museu de Arte Moderna comunitárias. Como em outros temas minoritários,
Aloisio Magalhães; Coleção do Governo os museus que aderem ao tema assumem uma
Francês – Biblioteca Nacional da França; e 6 Outra importante dimensão pedagógica que certamente não será
artista que tem obras
Pinacoteca de São Paulo. Contudo, no sistema institucionalizadas a que solucionará a discriminação cotidiana e
nacionalmente e
das artes visuais, Élle de Bernardini6 é uma internacionalmente é Lyz estrutural da cultura nacional, mas, possivelmente,
Parayzo. Para conhecer a
das poucas artistas transexuais que tem produção e a trajetória da contribuirá para os avanços contrários ao
artista, acessar o site da
obras institucionalizadas.7 Galeria Casa Triângulo. extermínio histórico da população LGBT, entre
7 Tony Boita (2020) aborda outras mazelas (BAPTISTA; BOITA, 2017a, p. 111-112).
algumas iniciativas sobre
Em mapeamento e projeto de memória LGBT a memória de transexuais,
travestis e transgêneros, tais
realizados por Jean Tiago Baptista e Tony como Arquivo Digital Trans Portanto, a inscrição da pauta por meio da musealização
dos Estados Unidos; Archivo
Willian Boita (2017a, 2017b), também junto à da Memória Trans; Museu de obras e de objetos, relacionados à cultura imaterial
Travesti; Museu da Pessoa; e
Camila Azevedo de Moraes Witchers (2021); e Revista Memória LGBTIQ+. e material, podem disseminar o combate às fobias.
100 A Musealização da Performance Dance with me, de Élle de Bernardini 101

Isto envolve não só ter obras e objetos relacionados corpo e gênero diversas nas artes; fomentar
diretamente à pauta, mas também a presença de novos modos de vida em paisagens em ruína;
agentes, a exemplo de artistas, como Élle de Bernardini, celebrar a imaginação; 5 - destruir, por vezes, o
o que possibilita o debate, o reconhecimento e a que for preciso; 6 - produzir eventos e suportes
representatividade das identidades e das memórias para debates sobre diversidade de gênero e suas
LGBTQIAPN+ dentro dos museus e das coleções. Dentre interseccionalidades, como processos étnico-
as experiências, que defendem esse ponto de vista e raciais, deficiência, classe, sexualidade, e outros; 7
apresenta a pauta transgênera, está o Museu Transgênero - criar paisagens radicais para outros futuros.8
de História e Arte (MUTHA), concebido por Ian Habib, em
2019, por meio do Programa Aldir Blanc Bahia. Esta experiência dialoga com outra importante iniciativa
do artista, drag queen, filósofo e pesquisador Giuseppe
MUTHA é um museu transformacional, ou seja, Campuzano (1969-2013), o Museu Travesti do Peru, cuja
continuamente em transformação, que objetiva: proposta é construir uma contra narrativa do status
1 - criar incentivos, ferramentas e alternativas à quo heteronormativo, branco, colonialista, coletando
produção de dados sobre violências cotidianas e exibindo objetos, documentos, imagens, textos
à vivências transgêneras no Brasil, pretendendo jornalísticos, histórias de “figuras transgêneras, travestis,
sugerir caminhos artísticos, educativos, políticos transexuais, intersexuais e andróginas” (LÓPEZ, 2014, p.
e sociais alternativos; 2 - resgatar memórias e 104). Atualmente, o curador Miguel López tem apresentado
investir em (re)escritas históricas de processos o legado de Campuzano e do Museu Travesti do Peru
que foram apagados desde o período colonial, pelo mundo.
suprimidos pela ditadura brasileira em outras
configurações e perduram como tentativas de Ressalta-se que as iniciativas citadas acima são
extermínio até os tempos atuais; investir na criação representativas, entretanto, há muito a ser feito. É
de um arquivo brasileiro sobre História e Arte necessário pensar sobre a visibilidade das pessoas
transgênera; 3 - valorizar memórias e produções transgêneras, travestis e transexuais, principalmente
artísticas dessas existências, que não são ainda quando refletimos sobre os discursos
8 Este texto e outras
reconhecidas e visibilizados em espaços de informações sobre patriarcais ainda vigentes nos museus e
MUTHA estão disponíveis
produção cultural; 4 - discutir epistemologias no site do museu. nas concepções de áreas do conhecimento
102 A Musealização da Performance Dance with me, de Élle de Bernardini 103

vinculadas aos estudos das memórias, dos patrimônios e Em meu trabalho, esses mecanismos são o uso
das identidades, como a Museologia. da beleza e da riqueza que adornam meu corpo,
considerado abjeto, e o atingem até o nível de
Assim, o compromisso de museus e de coleções pode estar aceitação, ou aproximação do outro, que ao final da
atrelado à visibilidade, mas compreendendo a importância dança leva ouro em suas mãos ou em partes de seu
do lugar de fala: “ferramenta de interrupção de vozes corpo que tocaram o meu.10
hegemônicas [...], desautorizando a matriz de autoridade
que construiu o mundo como evento epistemicida; [...] Durante a residência na Galeria Península, em Porto Alegre,
desautorizando a ficção segundo a qual partimos todas em fevereiro de 2018, Élle de Bernardini performou Dance
de uma posição comum de acesso à fala e à escuta” with me. No texto Transgenealogia: diário de residência
(MOMBAÇA, 2017). artística, a artista apresenta um relato sensível sobre sua
existência, luta, dificuldades e desafios constantes e a
presença nos espaços; o diálogo com outras transexuais,
Musealização de Dance with me
9
transgêneros, travestis, não-binários; os dados alarmantes
sobre a transfobia e os homicídios; e a concepção de Dance
Os corpos transexuais e não binários, como o meu, with me (BERNARDINI, 2019).
são lidos pela sociedade de forma abjeta, indecente
e depravada. Corpos que só servem para sujeitar e Quando me propus a fazer a performance Dance
prevaricar. Em Dance with me, eu cubro meu corpo With Me, no encerramento da residência, eu
com mel e folhas de ouro 18k, e ao som da bossa queria possibilitar, dentro da minha pesquisa,
nova e da mpb convido o público com os mecanismos de aceitação de um
9 A musealização é um
a dançar comigo, em um gesto de processo que engloba “[...] corpo, de um sujeito pela sociedade, como já
atualização, adesão, rutura,
aproximação e desfetichização. Eu afirmação, reorientação venho desenvolvendo em outros trabalhos, um
de discursos e práticas
brinco com o jargão ‘Eu não te aceito institucionais” (NORONHA, desdobramento para um contato mais próximo
2017, p. 19) e “consenso
nem coberto de ouro’, para questionar [e dissenso] sobre o valor com o outro, de preferência cis. Deste modo,
e sobre a matéria”, que
os mecanismos de aceitação e envolvem “[...] intenções não estaria ali vestida, ou coberta de ouro para
que podem ser regidas por
rejeição dos corpos trans e não diferentes atores sociais ser vista somente, mas estaria ali coberta de
e instituições culturais” 10 Este texto está disponível
binários pela sociedade normativa. (BRULO, 2018, p. 21-26). no portfólio da artista. ouro, inteiramente presente, pedindo aos que
104 A Musealização da Performance Dance with me, de Élle de Bernardini 105

viessem me ver que me tirassem para dançar, identidades transexuais, transgêneras e travestis. Portanto,
que trocassem esse momento de afeto e carinho é relevante ressaltar a importância de a obra em questão
comigo, que tocassem meu corpo trans desnudo estar em um acervo público. Além disso, os acordos
e dele levassem em seus corpos o metal mais estipulados sobre a obra, entre artista e instituição,
precioso que temos na terra, ouro. Dance With apresentam questões para os estudos da performance,
Me tem como proposta mostrar que não há o que História da Arte e Museologia, como também para a pauta
temer, não há sujeira, precariedade, desumanidade LGBTQIAPN+.
em um corpo trans, pelo contrário, há beleza
também, há riqueza também, e ele pode fazer e Ao digitar o nome da obra na base de dados do acervo
se transformar em algo belo. Com esse convite da Pinacoteca de São Paulo11, são encontradas duas
à dança, ao dançar comigo, nua e coberta de possibilidades de Dance with me, performance e registro de
ouro, esse convite para conhecer de perto, tocar, performance12, ambas consideradas acervo museológico,
se perguntar, entender e aceitar, eu terminei a inclusive para a artista “é tudo uma obra só, sendo a
residência. Para mim a mensagem positiva de performance um documento que está acervado, e o
tudo isso é a de que podemos. Sim! Nós podemos. registro em forma de fotografias” (BERNARDINI, 2022).
(ibidem, p. 12).
Na catalogação disponível na base de dados há alguns
Em entrevista, Élle de Bernardini (2022) conta que a ideia detalhes sobre a obra: na ficha do registro da performance,
da obra surgiu a partir do ditado popular “Não quero o trabalho está designado como fotografia, além de ter
ver aquela pessoa nem pintada de ouro” e da acepção especificações técnicas como o fato de ser
11 Para conhecer a base
“[...] desse jargão como ponto de partida para pensar a de dados da Pina, basta uma “impressão fine art em metacrilato”, há
acessar o site.
recepção do corpo trans pela sociedade. As pessoas trans número de inventário, título, uma imagem e
12 A distinção entre
e mulheres travestis são vistas dessa forma. Como corpos performance e registro autoria; já na ficha da performance, esta está
de performance,
que nem pintados de ouro são aceitos”. especificamente no caso designada como a linguagem mencionada,
de de Dance with me, é
que a primeira se trata sendo a “descrição folha de ouro 18k e mel
da possibilidade da obra
Assim, a concepção dessa obra é autobiográfica, ser ativada como ação, sobre corpo de performer e música ambiente”,
enquanto a segunda é o
ao mesmo tempo que é criada em uma perspectiva registro fotográfico da artista tendo os mesmos metadados citados na ficha
quando performou a obra em
coletiva, debatendo a presença e o reconhecimentos das outro momento. de registro da performance.
106 A Musealização da Performance Dance with me, de Élle de Bernardini 107

A intenção de doação da obra partiu da artista, era o Destaca-se alguns dos acordos e critérios de preservação
seu desejo que a obra fizesse parte da coleção da Pina e exibição, tanto da performance quanto dos registros: a
(BERNARDINI, 2022). A artista relata que junto à galeria que performance tem duração de 60 minutos; além do corpo
a representa e a dois colecionadores, os quais são patronos da performer, são necessários “mel, folha de ouro, um par
da coleção da Pina, foi criado o processo de pedido de de sapatos dourados, e trilha sonora de MPB (que pode
doação. “O conselho e a curadoria junto dos patronos ser executada ao vivo ou em som mecânico”; a Pina deverá
aprovaram a doação e ela foi realizada em meu nome e arcar com todos os custos para realização da ação, o que
nome da galeria. Foi doado tudo junto, a performance e o envolve passagem aérea, diárias, contratação de performer
registro em fotografia” (ibidem). etc; os registros — as fotografias — podem ser reimpressos
no tamanho estipulado pela artista; não há prova de artista,
[...] arquivamento da performance foi mediante ou seja, “a performance é edição única”; Élle de Bernardini
um documento redigido por mim, onde explico tem a prova de exibição dos registros, os quais podem ser
detalhadamente tudo que o museu precisa saber expostos em qualquer mostra; e o critério fundamental é
sobre a obra e sobre a sua realização. Os materiais, de que a performance pode ser performada “por qualquer
o tempo de duração, local, elementos em geral da pessoa trans e/ou travesti. Desde que a questão de gênero
performance. Um storyboard junto de um texto esteja marcada no corpo da pessoa (Não pode ser operada,
explicativo. Não foi necessário gravar um vídeo por exemplo)” (ibidem).
comigo porque a equipe de museologia já tinha
tudo que precisava saber nesse documento que eu A musealização dessa obra apresenta ao menos duas
redigi e enviei junto com as obras. As fotografias questões importantes aos estudos da performance: o
saíram direto da galeria para a o Museu, e eu primeiro, o fato de a instituição assimilar não só os vestígios
assinei um termo autorizando o Museu a fazer para ativação da obra por meio da reperformance, como
cópias de exibição da obra, em studio de fotografia também compreender e exibir o registro da performance
por mim indicado na cidade de SP, para que a como acervo; e o segundo é o fato do acontecimento da obra
original se mantivesse guardada, uma vez que as não estar intrinsecamente relacionado à presença da artista,
fotos estão na exposição de acervo que dura no ou seja, a obra pode ser performada, dentro dos acordos
mínimo 5 anos (ibidem). estabelecidos, por outra pessoa, o que garante uma maior
flexibilidade para instituição no momento de ativação da obra.
108 A Musealização da Performance Dance with me, de Élle de Bernardini 109

Algumas considerações finais representatividade em ter uma obra na coleção da Pina,


Élle de Bernardini (2022) responde:
No momento, eu tenho buscado olhar para a
realidade que me cerca e não tanto para as páginas É superimportante por dois motivos: A carreira
dos livros. Tenho me interessado nas relações institucional, a Pina é um dos maiores e mais
interpessoais no dia a dia nos locais e países que importantes museus da América Latina. Então, ter
frequento. E a questão da sexualidade no meu uma obra lá, e ainda mais de performance (uma
trabalho tem aberto espaço, ou talvez, perdendo vez que a Pina possui apenas duas obras dessa
espaço para outros assuntos que são mais urgentes natureza) é um fator histórico. E do ponto de vista
de serem falados, como a fome, a mineração, e a de mercado, valorizou o trabalho, reajustando
destruição dos modelos de vida (BERNARDINI, 2022). preços, após a entrada para a coleção.

Esta foi a resposta que Élle de Bernardini deu ao A institucionalização em museus possibilita a assimilação
questionamento: “Em termos de referencial teórico para no sistema, portanto a musealização de Dance with me
sua produção, o que você tem lido? Continua com as e de outras obras de Élle de Bernardini demonstra o
leituras de Paul Preciado? E artistas, algum?”. Em 2018, reconhecimento e a distinção da artista e de
13 Recentemente, o artista
a produção da artista tinha como um dos referenciais baiano Augusto Leal, de sua produção. Em certa medida, a agenda de
Simões Filho, postou
teóricos o Manifesto Contrassexual, de Paul B. Preciado. no Instagram um texto alguns espaços volta-se à pauta trans, o que,
arrematador sobre como
Isso pode ser observado na série de obras Formas os agenciamentos da por um lado, pode ser positivo em termos
produção artística ainda
Contrassexuais. Contudo, são reconhecidas as mudanças estão centralizados em de representatividade e também pode abrir
algumas regiões do país, e
de perspectivas, conforme a experiência, o contato com a importância de entender caminhos para outras artistas; por outro, é
que os aceites da presença
diversos referenciais e as relações sociais, que agregam de obras de arte fora do eixo preciso pensar na estrutura do sistema das
“não é um favor, ou caridade.
reflexões e valores na produção artística. [...] é um gesto de justiça. artes visuais e na produção teórica, com seus
[...] é também um gesto
de restituição. [...] paguem diferentes agentes e agências, que ainda
cachê, verba de produção,
Destaca-se a importância da presença não só das obras da passagens hospedagem... perpetuam violências.13
respeitem o trabalho, a
artista, que estão diretamente relacionadas às questões pesquisa e a humanidade dos
artistas. Não dá para discutir
da pauta trans, mas também a própria presença da artista decolonialidade sem oferecer Os estudos da musealização das obras de
o básico. Reproduzindo
nos espaços. Quando questionada sobre a importância da práticas extrativistas”. arte da performance podem reunir premissas
110 A Musealização da Performance Dance with me, de Élle de Bernardini 111

Referências bibliográficas
e protocolos de preservação, de modo a possibilitar
reconsiderações sobre as noções de musealização e
BAPTISTA, Jean; BOITA, Tony Willian. Museologia e Comunidades
da própria linguagem, permitindo readequações das
LGBT: mapeamento de ações de superação das fobias à diversidade
instituições; pesquisas específicas sobre cada obra e em museus e iniciativas comunitárias do globo. Cadernos de
Sociomuseologia, v. 54, p. 29-56, 2017b. Disponível em: https://doi.
suas exibições; modos de conservar e documentar a
org/10.36572/csm.2017.vol.54.02. Acesso em: 4 agosto 2022.
performance; e a historicização da performance a partir
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dos acervos e das trajetórias de agentes e agências. [...]. Porto Alegre, maio 2018. 1 arquivo .mp3 (1h07m33s).

BERNARDINI, Élle de. Transgenealogia: Diário de Residência


Artística. eRevista Performatus, Inhumas, ano 7, n. 20, abr. 2019. ISSN:
Por fim, o contato com a artista e com sua obra, seja por
2316-8102. Disponível em: https://performatus.com.br/dos-cadernos/
meio de entrevistas, em exibições, reservas técnicas, transgenealogia/. Acesso em: 5 agosto 2022.

centros de documentação e arquivos, possibilita a BERNARDINI, Élle de. Entrevista sobre Dance with me: Performance
e Fotoperformance [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por
mobilização dos referenciais e a construção de escalas
<anna.silva@ufba.br> em 13 julho 2022.
para a compreensão das narrativas e das trajetórias. Nas
BRULON, Bruno. Pesquisa em museus e pesquisa em museologia:
pesquisas desta autora, Élle de Bernardini tem sido uma desafios políticos do presente. In: MAGALDI, Monique B.; BRITTO,
Clóvis Carvalho. Museus & Museologia: desafios de um campo
importante colaboradora para compreender as escalas e a
interdisciplinar. Brasília: FCI-UnB, 2018, p. 19-36.
alteração das perspectivas dos estudos da performance.
BOITA, Tony Willian; BAPTISTA, Jean. Memória e esquecimento LGBT
Além disso, o vínculo entre obra e artista tangencia a nos museus, patrimônios e espaços de memória no Brasil. Revista
do Centro de Pesquisa e Formação SESC, v. 5, p. 108-119, 2017a. Disponível
importância da representatividade e de sua presença nas
em: https://portal.sescsp.org.br/files/artigo/70a5e644/a393/463e/
instituições museológicas. a32c/38a11c4c671c.pdf. Acesso em: 4 agosto 2022.

BOITA, Tony. 5 museus (+iniciativas) travesti e trans para visitar


online. Memória LGBT, 14 abril 2020. Disponível em: https://
memoriaslgbt.com/2020/04/14/5-museus-t/. Acesso em: 4
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BOITA, Tony William; BAPTISTA, Jean Tiago T. MORAES WICHERS,


CAMILA A. LGBT Memory Project: A -Queer of Colour Critique?
Approach in Latin America and Caribbean Museums. MUSEUM
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Giuseppe Campuzano. In: Mayo, N. E. &, Beltrán, E. (Org.). (2014). Guia 31
Bienal de São Paulo: como procurar coisas que não existem. São Paulo:
Fundação Bienal de São Paulo.
112 A Musealização da Performance Dance with me, de Élle de Bernardini 113

MOMBAÇA, Jota. Notas estratégias quanto aos usos políticos do


conceito de lugar de fala. 2017. Disponível em:

https://www.buala.org/pt/corpo/notas-estrategicas-quanto-aos-usos-
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Musealização da Arte Contemporânea. Porto: CITCEM – Centro de
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“Inframedium”. Tate Research Feature, jan. 2015. Disponível em: https://
www.tate.org.uk/research/features/between-action-and-image. Acesso
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115

O
3 ATO, O PRIMEIRO
GRUPO DE ATIVISMO
LGBT DE BELO
HORIZONTE
Luiz Morando

Pesquisador autônomo sobre a memória LGBTI+ de Belo Horizonte.


Autor dos livros Paraíso das Maravilhas: uma história do Crime do Parque
(Fino Traço, 2008) e Enverga, mas não quebra: Cintura Fina em Belo
Horizonte (O Sexo da Palavra, 2020).
116 3º ATO, o primeiro grupo de ativismo LGBT de Belo Horizonte 117

Nas duas últimas décadas, tem se consolidado uma Em Belo Horizonte, ainda que situada no Sudeste, existiam
movimentação para resgate da memória do ativismo de tênues sinais de alguma movimentação de pessoas
pessoas dissidentes de sexo e gênero no Brasil. De uma dissidentes de sexo e gênero no sentido de se organizarem
perspectiva mais hegemônica, toma-se como evento como militância naquele final de década. No entanto,
fundador desse ativismo o surgimento do Somos - Grupo de esses indícios não tiveram registros suficientes para
Afirmação Homossexual, em São Paulo, em maio de 1978. esclarecerem de forma consistente a maneira como essa
movimentação inicial ocorreu.
Ao mesmo tempo, o jornal Lampião da Esquina, fundado
em abril do mesmo ano, foi o porta-voz de uma frente de A imprensa local não se sensibilizou para cobrir essa
debates, reflexões, exposição e amplificação de temas de organização, e as próprias pessoas envolvidas, dadas
interesse do público referido naquele momento, de modo as circunstâncias culturais da época, não ganharam a
mais genérico, como homossexual.1 visibilidade e a mobilização necessárias para fortalecer
as ações, como será visto ao longo da apresentação
O então nascente Movimento Homossexual Brasileiro destas informações.
(MHB) se sustentou, nesse período inicial, pela ressonância
dos temas abordados nas páginas do Lampião e as Ao tentar preencher essa lacuna, este texto tem a intenção
iniciativas, fixadas sobretudo no eixo Rio de Janeiro-São de reunir o maior número de informações já obtidas a
Paulo, de criação de novos grupos. Nesse respeito da formação do grupo de ativismo homossexual 3º
sentido, nos dois últimos anos da década ATO2 em Belo Horizonte, bem como começar a preencher
1 A esse respeito, confira
de 1970, nove grupos formavam o MHB: três pelos menos estas um vazio deixado na memória do segmento LGBTQIA+ da
indicações: TREVISAN, João
na capital São Paulo (Somos, Eros e Grupo Silvério. Devassos no paraíso: capital mineira.
a homossexualidade no Brasil
Lésbico-Feminista); dois no interior paulista da colônia à atualidade. 4. ed.
rev., atual., amp. São Paulo:
(Somos Sorocaba e Libertos, de Guarulhos); Objetiva, 2018; GREEN, Em novembro de 1979, no Rio de Janeiro, em
James N.; QUINALHA, 2 Ainda não foi localizada
dois na capital Rio de Janeiro (Somos e Auê); Renan; CAETANO, Márcio; nenhuma peça gráfica uma reunião de pauta do jornal Lampião da
FERNANDES, Marisa (Orgs.). com o nome do grupo. No
um no interior do Rio (Grupo de Atuação e História do movimento LGBT no entanto, a opção por grafá- Esquina, firmou-se a intenção de promover um
Brasil. São Paulo: Alameda, lo dessa maneira se deve ao
Afirmação Gay – GAAG, de Duque de Caxias); 2018; QUINALHA, Renan. modo como foi utilizado nas encontro nacional de grupos homossexuais
Movimento LGBT+: uma breve correspondências de duas
Beijo Livre, de Brasília. Como se vê, apenas um história do século XIX aos de suas fundadoras trocadas brasileiros. Para essa proposta, convergiu o
nossos dias. Belo Horizonte: com grupos brasileiros no
grupo fora da região Sudeste. Autêntica, 2022. momento de sua fundação. grupo Somos Rio de Janeiro, que participou
118 3º ATO, o primeiro grupo de ativismo LGBT de Belo Horizonte 119

da organização do evento. A reunião aconteceu em 16 de e o Grupo de Atuação Homossexual (GATHO), em Recife. É


dezembro daquele ano, na sede da Associação Brasileira de alentador saber que esse desejo também já circulava entre
Imprensa (ABI). algumas pessoas belo-horizontinas, apesar de até hoje
não ter sido identificado o ativista presente à reunião de
Segundo a reportagem de Francisco Bittencourt, dezembro, tampouco como ele soube dessa reunião, quais
publicada na edição 20 do Lampião, em janeiro de 1980, 61 formas de contato ele tinha com os organizadores ou ainda
participantes (cinquenta gays e onze lésbicas) procedentes quais canais ele teve para acessar o evento.
de São Paulo, Guarulhos (SP), Sorocaba (SP), Brasília,
Belo Horizonte, Caxias (RJ) e Rio de Janeiro3 estiveram Por outro lado, é reconfortante também saber que ele não
presentes ao encontro, que durou sete horas.4 Em uma estava sozinho em sua intenção, embora aparentemente
segunda reportagem na mesma edição do jornal, Leila não soubesse de outra pessoa com o mesmo interesse. É o
Míccolis escreveu: que demonstra a carta datilografada e enviada em janeiro
de 1980 aos integrantes do Beijo Livre, de Brasília.
[...] Alguém lembrou que além dos grupos ali
representados (havia no auditório um ativista Belo Horizonte, 17 de janeiro de 1980
de Belo Horizonte, que viera anunciar a próxima Queridos amigos,
6 Esta carta foi publicada
criação de um grupo naquela cidade), sabia-se na edição de janeiro de Venho parabenizar vocês pela formação deste
1980, na seção “Cartas
que havia vários outros em fase de organização na mesa”, à página 18. A grupo e também lhes fazer um pedido.
remetente propunha seis
– em Salvador, Fortaleza e Recife, itens para consolidar o MHB: Tenho acompanhado nosso querido Lampião,
“tentativa de organização em
por exemplo. [...]5 3 BITTENCOURT, Francisco. grupos; a partir dos grupos, o qual coleciono e achei muito bom o ENAG
No Rio, o encontro nacional formação de movimento de
do povo guei. Lampião da âmbito nacional; condição – Encontro Nacional de Gueis, tendo gostado
Esquina, Rio de Janeiro, ano imprescindível para participar
O relato de Míccolis deixa clara a pluralidade II, n. 20, p. 7, jan. 1980. do grupo – ser guei, não imensamente das propostas de vocês e vibrado
excluindo a possibilidade
de intenções de criação de grupos 4 A respeito da memória de membros honorários; com a carta do(a) leitor(a) Lenima Portoguei que
desse encontro, cf. também movimento nacional com a
homossexuais em pelo menos três capitais do Boletim do Grupo Gay da finalidade de debate e luta é uma verdadeira Proposta da organização guei e
Bahia, Salvador, ano XIII, n. pelos direitos dos gueis, e
Nordeste e um em Belo Horizonte. É sabido 27, ago. 1993. também criar e divulgar uma seus objetivos.6
cultura guei; movimento
que no ano seguinte surgiriam o Grupo Gay 5 MÍCCOLIS, Leila. Seis horas nacional faria frente única É preciso realmente assumirmos, sairmos as
de tensão, alegria e diálogo: como todas as forças
da Bahia, criado pelo ativista, antropólogo e é a nossa política. Lampião da interessadas na instauração a ruas protestando diante da nossa situação
Esquina, Rio de Janeiro, ano democracia; conscientização
professor universitário Luiz Mott, em Salvador, II, n. 20, p. 7, jan. 1980. dos gueis”. incontestavelmente desumana numa sociedade
120 3º ATO, o primeiro grupo de ativismo LGBT de Belo Horizonte 121

onde um ser homossexual não pode existir mas, grupos de ativismo. Não consegui esclarecer a resposta
antes é preciso nos conscientizarmos desta que José Roberto recebeu para sua carta, como também
situação. não consegui saber o motivo pelo qual ele procurou o Beijo
Bem, o meu pedido é que vocês façam o favor Livre ou se enviou carta semelhante a outros grupos ou à
de me enviarem o nome e endereço do guei de redação do Lampião.
Belo Horizonte que esteve no Encontro Nacional
de Gueis, pois quero também fundar um grupo, Outra pessoa – desta vez uma mulher de nome Edy – fez
quero ver se os objetivos são os mesmos pois seria um gesto similar ao de José Roberto, provavelmente em
melhor fundarmos juntos uma vez que os gueis fevereiro de 1980. Ela escreveu ao Lampião da Esquina
mineiros que conheço são alienados. solicitando nome e contato do participante belo-
Desde já agradeço e desejo-lhes que continuem horizontino do encontro de dezembro do ano anterior. Além
progredindo em seus debates com disso, ela manifestou interesse de participar do encontro
nacional de homossexuais agendado para o feriado de
as saudações gueis Semana Santa em abril. Sua carta foi publicada na edição
(beijos e abraços) de março do jornal:

de: José Roberto Rabelo Goulart [...] Outra coisa, quando houve aquele encontro
[rua Caetés, 610]7 guei pintou um pessoal de B. Horizonte falando
em fundar um grupo guei aqui. Bom, o que eu
7 Agradeço vivamente a
Essa carta comprova o papel fundamental Luís Carlos Alencar, quem, quero é saber se é possível entrar em contato com
durante os trabalhos de
que o Lampião da Esquina teve de estabelecer pesquisa e gravação para esse pessoal e como [...] Queria também saber de
seu longa-metragem
e intermediar uma rede de informações entre Não é a primeira vez que você se vão avisar quando vai ser o 2º encontro
lutamos pelo nosso amor,
os/as leitores/as dissidentes de sexo e gênero sobre os primórdios da guei (dia, hora, lugar...) porque eu e o meu amor
história do movimento
no Brasil. A iniciativa de José Roberto Goulart homossexual brasileiro, estávamos pensando em ir. No mais gente, 889
localizou e fotografou
esclarece a mobilização que algumas pessoas com remanescentes do bichas e lésbicas pra vocês e um monte de coisas
Beijo Livre cinco cartas
tiveram para localizar outras com intenção recebidas por aquele grupo igualmente boas. Edy (rua do Ouro, 671/101 – Serra
enviadas por pessoas 8 Oh, Minas Gerais! – Seção
semelhante no que se refere a reunir pessoas interessadas em fundar Cartas na mesa. Lampião da – BH/MG 30000) [...]8
um grupo homossexual em Esquina, Rio de Janeiro, ano
com interesse em comum na fundação de Belo Horizonte. II, n. 22, p. 18, mar. 1980.
122 3º ATO, o primeiro grupo de ativismo LGBT de Belo Horizonte 123

Até o momento, não foi possível localizar Edy (que não BH 21/4/80
reside mais no local indicado na carta), nem identificar Ao Beijo Livre
seu sobrenome. Mas note-se que as duas manifestações - antes que alguém pergunte: quem fala aqui é o
direcionadas ao Lampião – as de José Roberto e Edy –, pessoal de Belô que esteve no Encontro (EGHO)
acrescidas da participação de um anônimo no encontro de 1º queremos comunicar a vocês que estamos com
dezembro de 1979, apontam claramente para interesses uma saudade deste tamanho, motivo pelo qual
dispersos que pré-anunciam uma intencionalidade devia haver um Encontro por semana.
e convergirão muito rapidamente a um resultado, 2º amamos tanto vocês que em homenagem
como veremos. pensamos em chamar o nosso grupo de Abraço
Solto. Gente, gente, é só brincadeira, não tem nada
A reunião preparatória ocorrida em dezembro de 1979 a ver com certos “esquecimentos” pelos quais
referendou os dias 4, 5 e 6 de abril para se realizar, nos vocês já foram até chamados de Beija Flor.10
dois primeiros dias, o I Encontro de Grupos Homossexuais 3º queremos comunicar que no dia 12/4 foi fundado
Organizados (I EGHO) e no terceiro dia o I Encontro o 3º ATO que conta até o presente momento com
Brasileiro de Homossexuais (I EBHO). As reportagens 10 pessoas (7 homens e 3 mulheres).
publicadas pelo Lampião da Esquina em sua edição de 10 A brincadeira de Edy pode Portanto gente, taí a região do cerrado mostrando
ser compreendida à luz de
maio de 1980 relatam a presença de duas mulheres belo- um documento produzido em que também existe.
22 páginas datilografadas e
horizontinas nos dois Encontros. No relato preparado identificado como “NOTAS 4º O PORQUE DO NOME: 3º ATO pressupõe a
RECOLHIDAS POR JOÃO
por Leila Míccolis, ela deixou este registro: “[...] deu de SILVÉRIO TREVISAN”. existência de um 1º e 2º que já foram, e de um 4º,
Está registrado o seguinte
tudo neste carnaval, de TUDO, gente! Conheci a Eddy, de na página 9, a respeito 5º, 6º, etc, que ainda vão ser.
da plenária final: “[...]
MG (um beijão procê), [...].”9 Edy manteve sua palavra e PARECE UM CONCURSO Explicando:
PARA VER QUEM É MAIS
compareceu ao Encontro, provavelmente acompanhada DISCRIMINADO. Existe briga 1º ATO – comportamento instintivo
pelos primeiros lugares. É
de sua namorada. A própria Edy informará, em carta muito folclórico e ridículo. 2º ATO – comportamento condicionado
Um pequeno bilhete de
datilografada de 21 de abril de 1980 ao Beijo Livre, a brincadeira, chamando 3º ATO – questionamento e opção
o Beijo Livre de Beijo
constituição do grupo 3º ATO em 12 de abril, ou Louco e Beija Flor gera um Portanto, o 3º ATO é um ato qualquer que
documento de protesto do
seja, seis dias após o I EBHO. grupo de Brasília, durante questiona cada um, o todo e os próprios atos, na
o almoço, com acusações
9 Cf. Lampião da Esquina, Rio grosseiras do tipo chamar luta pela liberdade de opção (não só sexual).
de Janeiro, ano II, n. 24, p. 7, o Somos de Éramos. [...]”
maio 1980. (Grifo do autor) 5º queríamos saber algumas coisas sobre vocês,
124 3º ATO, o primeiro grupo de ativismo LGBT de Belo Horizonte 125

especialmente porque o Beijo Livre é um grupo A carta parece sugerir que as duas belo-horizontinas
pequeno e recente como o nosso (embora vocês participantes dos dois encontros nacionais em São Paulo
não sejam tão recentes assim).11 se entrosaram mais com os representantes do Beijo Livre.
Bom, queríamos saber: - que rumo tomou o grupo As orientações demandadas no quinto item da carta geram
- quais os princípios objetivos a impressão de confiança e tentativa de articulação com
- qual o trabalho prático que já foi ou é realizado o grupo brasiliense. Edy esclarece ainda a
13 A ironia de Glória (que faz
- quais os maiores problemas do grupo questão de grifar a desinência formação inicial do grupo – sete homens e três
de gênero e número no
- quais os temas que já foram debatidos substantivo ‘meninos’) tem sua mulheres –, mas lamentavelmente não dá mais
origem no debate transcorrido
- se houve um trabalho de divulgação do grupo e no grupo de discussão sobre informações sobre como ocorreu a aproximação
lésbicas no I EGHO, no qual
como foi esse trabalho o desequilíbrio de gênero e e reunião dessas pessoas. Por outro lado, ela
representatividade se impôs
- e quaisquer outras informações que vocês com força. A polêmica se evidencia a desorientação inicial do grupo no que
instaurou quando se fez a
possam nos dar contagem e se observou o se refere a um programa, diretrizes e objetivos.
baixo número de lésbicas
ET: gostaríamos de saber também como foram as nos grupos homossexuais
constituídos até então.
primeiras reuniões de vocês, porque esta é a fase O relatório publicado na Quinze dias depois, Glória, a provável
edição 24 do Lampião da
pela qual estamos passando agora. Esquina (Rio de Janeiro, ano namorada de Edy, escreve novamente ao Beijo
II, p. 6, maio 1980) esclareceu
6º ficamos conhecendo uma garota de Goiânia que sobre isso: “[...] Durante toda Livre. A carta, manuscrita, relata o seguinte:
a discussão, foi ressaltada
está de passagem por Belô.12 Ela está interessada em a necessidade de trocas
de informações entre os
formar um grupo naquela cidade, por isso gostaria de grupos para que a partir B.H. – 08/05/80
desses dados se encontrem
entrar em contato com o Daniel. Se for os motivos da diferença
11 O Beijo Livre foi fundado numérica de mulheres nos
possível, mandem o endereço dele. em 1979, em Brasília, por grupos homossexuais. Cada Oi, meninos sérios
Alexandre Dumas Valadares grupo forneceu o número
7º brevemente mandaremos prá Ribondi e Romário Schettino de participantes: AUÊ/RJ: Coisas mais formais que vocês são, credo!!
e se dissolveu em algum 35 homens e 5 mulheres;
vocês maiores informações sobre o momento de 1982. Mais SOMOS/RJ, 60 homens e Ei, ainda são só meninos? Será que vocês não
informações, cf. TRINDADE, 8 mulheres; SOMOS/SP:
grupo. Ficamos por aqui, esperando é Welton. Beijo Livre, de 1979: 80 homens e o único a ter conseguiram fazer nenhuma aquisição feminina?!13
o grupo gay que iniciou o um grupo exclusivamente
claro, que vocês atendam a todos os ativismo LGBT no DF. de mulheres (AÇÃO Tô até com vergonha de escrever procês. De
LÉSBICO-FEMINISTA),
nossos “modestos” pedidos. 12 Uma carta publicada na com 20 componentes; bobagem não entramos em contato com o José
seção “Cartas na Mesa” na EROS: 5 mulheres e 11
edição 37 do Lampião da homens; CONVERGÊNCIA Roberto até hoje, vê se pode?!
Esquina (Rio de Janeiro, ano SOCIALISTA/SP (FRAÇÃO
Beijão prá todo mundo III, p. 2) me leva a acreditar GAY): 7 homens e 3 mulheres; Interrompi prá providenciar o telefone dele.
que a “garota de Goiânia” BEIJO LIVRE/Brasília, sem
Edy / 3º ATO seja esta Yonne. nenhuma mulher. [...]” Amanhã eu ligo, juro.
126 3º ATO, o primeiro grupo de ativismo LGBT de Belo Horizonte 127

Gostamos muito do artigo do Alexandre [Ribondi] Essa carta de Glória ajuda a compreender que José
sobre o Encontro, e de vocês terem se lembrado de Roberto Goulart – que desde janeiro daquele ano tentava
mandá-lo prá nós. Inclusive, estamos transando um conhecer outras pessoas interessadas em fundar um
arquivo de Q.Q. coisa que diga respeito a homos. grupo de ativismo homossexual em Belo Horizonte – não
Solicitamos colaboração (vale xerox). participou da fundação do 3º ATO, mas se aproximou de
Em B.H. a única reportagem a respeito do EBHO de seus integrantes (certamente logo após 8 de maio) por
que tomamos conhecimento foi a que saiu no Em meio de informações dadas pelos integrantes do Beijo
Tempo, que circula também em BSB, não? Mas se Livre. A carta também já caracteriza algumas marcas
vocês quiserem podemos mandar xerox. iniciais do grupo: a pouca integração dos participantes, a
Nasceu, como vocês já devem saber, o 3º ATO. dificuldade para se reunirem, a baixa prioridade dada ao
Tá meio desconjuntado ainda. É difícil reunir as grupo. Daí talvez a insistência, em tão pouco tempo, pelas
pessoas e fazer com que elas dêem, um pouco que orientações solicitadas na carta de 21 de abril.
seja, de prioridade ao grupo. Principalmente agora,
no começo, quando é necessário um impulso Apesar da impressão de o grupo estar “desconjuntado”,
inicial. Quero até reforçar o pedido, que a Edy fez a transmitida por Glória, tudo leva a crer que a divulgação de
vocês, de que nos falem a respeito da organização, sua existência foi uma medida julgada necessária para dar
trabalhos e dificuldades do Beijo Livre, desde visibilidade e despertar o interesse de outras pessoas se
as 1as reuniões. agregarem ao núcleo inicial.

Mandem notícias. Nesse sentido, ainda em maio foi enviada uma carta ao
Vamos nos manter em contato, falô? Lampião da Esquina solicitando ajuda em sua divulgação
Beijão procês todos. e caracterizando as diretrizes do grupo. O jornal, então,
inseriu o 3º ATO na recém-criada seção “Escolha seu grupo”,
Glória / 3º ATO na qual eram listados os grupos homossexuais do país. O
registro foi feito assim: “Terceiro Ato/BH – Caixa Postal
1720 – CEP 30000 – Belo Horizonte/MG”14. Na
14 Cf. Lampião da Esquina, mesma edição, foi publicada na seção “Cartas
Rio de Janeiro, ano III, n. 25,
p. 8, jun. 1980. na mesa” a seguinte correspondência:
128 3º ATO, o primeiro grupo de ativismo LGBT de Belo Horizonte 129

Cartas na mesa o TERCEIRO ATO. Está relacionado ao ato do


Terceiro Ato questionamento, enquanto o primeiro está
relacionado ao ato instintivo e o segundo ao
Caros Amigos. Por meio desta comunicamos a ato condicionado. Somos o Terceiro Ato e é o
formação de mais um grupo Homo, situado em questionamento dos valores que nos levou a
Belo Horizonte – M.G. Após um longo período apoiar os movimentos reivindicatórios dos direitos
de opressão, de cativeiro – neo-fascista – a humanos das mulheres, negros, pessoas com
sociedade brasileira está vivendo o momento de problemas físicos, índios, a massa de trabalhadores
“redemocratização”, não vamos discutir o significado e outros explorados e marginalizados deste nosso
ou realidade desse fato; vamos sim aproveitar o país. Acreditamos que a verdadeira democracia está
momento, o espaço conquistado, para contestar relacionada com a melhoria das condições de vida do
a ideologia vigente, independente de suas origens trabalhador, garantindo-lhe o fim da marginalidade.
e bases sobre as quais se assentam. O sistema é Nos posicionamos contra qualquer forma de
anti-humano, antinatural e queremos contribuir machismo, chamamos a atenção dos trabalhadores,
para a mudança. Reivindicamos o direito de crítica sindicatos, intelectuais, estudantes e todos os
sobre toda a estrutura social vigente, seja sobre militantes progressistas para os preconceitos que
a problemática econômica relacionada às formas fazem com que mulheres, negros, homossexuais,
de produção – exploradores x explorados –, seja índios, etc. fiquem alijados ou vistos de forma
ao nosso condicionamento comportamental. paternalista pelos “Homens Brancos”. Não basta
Nos organizamos para lutar contra todo o tipo de modificar a ordem econômica de uma sociedade
segregação, em particular pelo nosso direito de se não é realizado paralelamente um trabalho de
“ser”, nós que somos chamados de homossexuais, questionamento da ordem moral vigente. Se até
“doentes”, “bichas”, “sapatões”, etc., vítimas o momento o homem foi levado a se adaptar a
das ditaduras da direita ou da esquerda. Não nos “normas e leis” preestabelecidas e a situação não
colocamos contra as “ideologias progressistas”, melhorou nada, acreditamos que estas “normas e
nosso movimento faz parte delas, mas contestamos leis” podem ser mudadas e adaptadas às realidades
a moral burguesa das esquerdas, assunto que emanentes do homem. Nos posicionamos contra
discutiremos posteriormente. Nosso grupo é a separação entre homossexuais masculinos e
130 3º ATO, o primeiro grupo de ativismo LGBT de Belo Horizonte 131

femininos. Acreditamos que este antagonismo é o resultado de outra vez pecando contra a modéstia! A
uma sociedade onde predomina o individualismo e, que por sua grandiloqüência é um vício essencialmente
vez serve para garantir a desunião e o enfraquecimento dos grupos fascista. Põe isso na tua cachola, bicha obtusa:
marginais. Somos uma força, devemos estar unidos e conscientes. quem se diz oprimido não pode falar como os
Alertas contra o falso liberalismo que nos mantém como doentes donos do poder.”)15
ou segregados em guetos. Em Belo Horizonte é grande o número
de homos conscientes, é grande o número de heteros que nos Observe-se que o argumento central para justificar a escolha
estão apoiando e sabemos que os Hitlers ou Stalins terão mais do nome do grupo, já apresentado na carta de 8 de maio,
trabalho para nos destruir. Aos nossos amigos do Lampião é repetido na correspondência publicada pelo Lampião:
comunicamos que nossa Caixa Postal é n° 1720. Gostaríamos que “Está relacionado ao ato do questionamento, enquanto o
o Jornal transasse uma Coluna onde os vários grupos de todo o primeiro está relacionado ao ato instintivo e o segundo ao ato
Brasil pudessem manter uma correspondência. Ainda estamos condicionado. Somos o Terceiro Ato e é o questionamento
nos organizando, mas para o futuro pretendemos garantir a dos valores que nos levou a apoiar os movimentos
representação do “Lampa” em B.H., por aqui temos muito trabalho, reivindicatórios dos direitos humanos das mulheres,
mas também muita gente disposta. negros, pessoas com problemas físicos, índios, a massa de
trabalhadores e outros explorados e marginalizados deste
Grupo Terceiro Ato – BH nosso país.” Junto à explicação do nome, a divulgação da
intenção e consciência de se juntar ao movimento de outros
R - Nosso jornal é de vocês, amigos e amigas do Terceiro segmentos estigmatizados para ampliar alianças e ações.
Ato. Façam dele a tribuna de congraçamento com os demais
grupos oprimidos que estão surgindo em todo o Brasil. Ainda em junho de 1980, Edy enviou uma carta
Lampião precisa da cooperação de vocês todos, da crítica datilografada aos companheiros do Beijo Livre. A data está
constante e do auxílio também, como leitores atentos e, ilegível, mas seu conteúdo permite inferir isso, haja vista a
principalmente, como ASSINANTES. E não tenham dúvidas: referência à publicação da carta no Lampião da Esquina, que
nós, juntos, é que estamos fazendo a História. (Batucávamos tinha sido escrita e enviada em junho.
tranquilamente estas linhas quando La Mambaba surge na
15 Cf. Lampião da Esquina,
redação. Na sua curiosidade animal, veio direto na minha Rio de Janeiro, ano III, n. 25, Irmãozinhos do Beijo Livre, o 3º ATO quer por meio
p. 18, jun. 1980. Grifo original
direção, leu o que eu escrevia e apostrofou: “Apanhado do jornal. desta comunicar que recebemos a carta de vocês e
132 3º ATO, o primeiro grupo de ativismo LGBT de Belo Horizonte 133

como a demora foi justificada nós os perdoamos. Logo que nossa carta de princípios e objetivos fique
Bem, se vocês quase perderam o local da reunião, pronta mandaremos a vocês, prá que vocês saibam
saibam que nós nem temos o que perder. Estamos mais sobre o 3º ATO. Agradecemos o envio do
nos reunindo no Parque da cidade, o que prejudica- material e queremos continuar em contato.
nos em muito.
O 3º ATO está atualmente tratando da sua parte Mantenha a comunicação, tá?
“burocrática” – papéis para serem distribuídos, Beijos do 3º ATO a todo pessoal do BL.
cartas, mensalidade, funções, procura de local,
etc. Mas pretensões não nos faltam. Como vocês, Um mês e meio após o início de suas atividades, o grupo
queremos tb, ter a nossa biblioteca, transar teatro se ocupa de sua “parte burocrática”, buscando dar
e promoções. O trabalho prático mais imediato é visibilidade local e fora de Belo Horizonte. Chama a atenção
uma pesquisa que vamos realizar aqui em Belô, a localidade informada de reunião: muito certamente
sobre HOMOSSEXUALISMO e HOMOSSEXUAIS, em sem conhecer os antecedentes que ligam o Parque
especial – buscando material na própria fonte, mas Municipal Américo René Giannetti a um histórico distante
também fora dela. de sociabilidade LGBTI+ belo-horizontino, a escolha foi
Tem sido difícil a aquisição de novas pessoas. Já muito significativa. Provavelmente, havia o conhecimento
distribuímos 2 convocatórias nos locais homos de da sociabilidade de homossexuais praticada no parque no
Belô. Todos acham lindo a criação do grupo, mas período em que viviam a história de fundação do grupo,
ninguém aparece nas reuniões. Quanto as mulheres, mas nem ao menos isso foi mencionado na carta.
não sabemos onde andam – as duas únicas que
apareceram (além da Glória e Eu) já foram embora. Desde a década de 1940, um território específico no
Muitos dos que vieram trazidos por amigos, caíram Parque Municipal foi frequentado à noite por homens
naquele lance de sair do grupo e ir criticar o mesmo homossexuais e bissexuais para trocas afetivas e
lá fora. Como vocês, achamos que o melhor seria sociossexuais. Naquela época, esse território fora
cada um permanecer e colocar as suas críticas. Mas denominado Paraíso das Maravilhas16.
isso não acontece. 16 A esse respeito, confira
meu livro Paraíso das
Como vocês já devem ter visto, já comunicamos ao Maravilhas: uma história Essa carta de Edy ainda permite observar a
do Crime do Parque,
Lampa o nosso nascimento. mencionado na nota 1. baixa permeabilidade que os integrantes do
134 3º ATO, o primeiro grupo de ativismo LGBT de Belo Horizonte 135

3º ATO têm no público homossexual da capital mineira No mesmo mês, José Roberto Goulart manuscreve uma
no período de sua existência, o que pode significar, entre carta de agradecimento aos “amigos” do Beijo Livre pela
outros aspectos, baixo potencial de convencimento, ações intermediação feita com os integrantes do 3º ATO.
que não têm receptividade no público, uma dissonância
entre o discurso utilizado e a ação praticada. E ainda se Belo Horizonte, 16 de junho de 1980
percebem planos que estão para além das possibilidades Meus amigos do Beijo Livre
de execução e êxito em um grupo recém-fundado, como
uma pesquisa diagnóstica do universo LGBTI+ da cidade. Há muito estou querendo escrever-lhes, mas o
tempo é pouco.
No entanto, ações de pequena envergadura, como Quero aqui agradecer-lhes por terem dado o meu
panfletagem nos locais comerciais de sociabilidade LGBT nome ao pessoal do Terceiro Ato, grupo no qual
(bares e boates, principalmente) eram realizadas com certa estou atualmente e que apesar das antipatias
frequência. O ativista e jornalista Edson Nunes (1944-2011) surgidas espero continuar pois o que me refiro não
afirmou em entrevista que me concedeu em 14 de julho de é motivo para pessoas amadurecidas se desligarem
2004 não ter participado das atividades do 3º ATO. Porém, uma das outras e sim analisarem o sentimento que
em entrevista para o psicólogo Frederico Viana Machado, envolve seus relacionamentos e ainda num grupo
ele se referiu a essas ações do 3º ATO da seguinte maneira: isso deve ser superado para lutar para causa maior
que é a luta pelos direitos dos gueis.
Era uma ação exclusivamente em circuito Li em “Lampião da Esquina” sobre o I ENHO (sic) e
interno no próprio meio. O que eles buscavam a ideia que mais gostei foi a de um lançamento nas
eram conscientizar o próprio meio, então eles próximas eleições de um candidato guei que eu, se
convidavam né?, nos guetos eles for, e deve ser federal, só São Paulo tem condições
distribuíam folhetos chamando 17 Cf. MACHADO, Frederico de elegê-lo.
Viana. Para além do arco-íris:
para essas reuniões lá no parque a constituição e identidades
coletivas entre a sociedade
municipal, e ali havia troca de idéias civil e o Estado. 2007. 308 f. Achei lamentável, e parece que também o grupo, a
Dissertação (Mestrado em
e conscientização, dos direitos, da Psicologia) – Faculdade de (sic) racha no SOMOS/SP. A separação dos rapazes
Filosofia e Ciências Humanas
identidade homossexual, era um da Universidade Federal de é até compreensível mas a do subgrupo Lésbico-
Minas Gerais, Belo Horizonte,
trabalho assim, educativo.17 2007. p. 88. Feminista eu não aceitei muito, não dá para entender.
136 3º ATO, o primeiro grupo de ativismo LGBT de Belo Horizonte 137

E vocês, já têm moças no grupo? Aqui nos chegou, Há quase dois meses recebi uma carta de vocês,
aliás eu levei a terceira ontem, a frequência está escrita por Zezé, e cheguei a responder mas como
muito variada e ainda não temos um lugar para narrava uma coisa que estava para acontecer ainda
reunirmos o que estamos fazendo no Parque e eu não podia ter certeza não mandei a carta e
Municipal o que impede muita gente de ir pois eles fiquei à espera de um tempo para responder. E isso
não querem ser vistos por conhecidos. faço agora.
Espero ainda ter a oportunidade de conhecê-los. Olha pessoal, quanto ao racha no SOMOS/SP, eu
e meu companheiro do III Ato sentimos muito mas
Beijos e abraços talvez tenha sido o melhor. Agora, na minha opinião,
José Roberto acho que vocês não (e isso deve ser feito por vocês
paulistas devido ao grande número de homos aí
Logo ao início da carta é possível estimar a baixa existentes) e com isso teremos de optar por um
capacidade de resolver conflitos no grupo. Apesar de partido político. (sic) Agora o importante é criticar
não ficar explícito o que provocava as antipatias entre o (os partidos) e fazer com que eles incluam, sem
novato e o restante do grupo, o próprio fato de registrar paternalismos, a nossa luta em seus programas.
isso é sinal de que essas arestas não foram aparadas. Quanto a este deputado guei eu gostaria de saber a
Esse sentimento voltará mais à frente e possivelmente opinião de vocês, se vocês no momento concordam
será um dos motivos para o afastamento de José ou não. Eu sei que já pensaram nisso porque no I
Roberto em setembro. EGHO. E também se só S. Paulo tem a condição
de lançar um candidato ou o Rio também. Os
Dois meses depois, em 26 de agosto, José Roberto outros estados tem pouca chance ao que parece.
dirige uma carta escrita à mão aos companheiros do E se elegessemos um candidato guei (S.P. por
grupo paulistano Outra Coisa, formado por exemplo) não teria o problema deste deputado
dissidentes do Somos São Paulo em maio não querer denunciar uma situação em MG, PR,
18 Agradeço ao Remom
daquele ano.18 Matheus Bortolozzi pela Pernambuco etc.
localização das duas cartas
enviadas por José Roberto ao
grupo Outro Coisa no acervo
Belo Horizonte, 26 de agosto de 1980 desse grupo depositado no Aqui no grupo III Ato nada está funcionando as
Arquivo Edgar Leuenroth, na
Querido pessoal do Outra Coisa Unicamp. mil maravilhas, na minha opinião falta uma pessoa
138 3º ATO, o primeiro grupo de ativismo LGBT de Belo Horizonte 139

tipo Eduardo Guimarães SOMOS/RJ para levar preciso mandem me dizer quanto e eu pedirei. O
adiante nosso pessoal. Não há uma comissão III Ato vai fazer seu jornal e naturalmente mandará
de nosso grupo que funcionou até hoje. Por um para vocês é claro, parece que este trabalho
exemplo foi tirada uma para escrever uma carta do III Ato vai sair.
para vocês na época do racha no SOMOS/SP e só Bom um abração para vocês com o carinho e
compareceu no local uma das pessoas, que tinha
ido só uma vez ao grupo. Beijos e abraços do
O motivo que atrasou a ida da minha resposta José Roberto.
foi por eu achar que o III Ato estava querendo
me expulsar, coisa que quando eu coloquei Dois meses após a carta enviada ao Beijo Livre, José
eles negaram, mas eu continuo lá é porque Roberto continuou sentindo uma animosidade na
tenho muita vontade fazer uma coisa em favor convivência com o grupo, expressando que as relações dos
do pessoal homo e ainda não encontrei uma integrantes consigo são passionais. Ele chama a atenção
maneira de fazer sem ajuda de outros homos para a falta de uma forte liderança, ao mesmo tempo que
mesmos que estes não me dêem a mínima moral expõe planos que aparentemente estão fora do alcance
como acontece no III Ato que só faz reproduzir de realização pelo grupo: antes foi a pesquisa diagnóstica;
comportamentos de repressor. agora, a criação de um jornal.
O pessoal daqui é isto eu falo muito com o
pessoal do III Ato não lê muito sobre sexualidade Em 6 de dezembro de 1980, uma reunião preparatória para
e repressão o que torna difícil e até infantil o II Encontro de Grupos Homossexuais Organizados foi
debates, quando nós os temos, propus algo como realizada no Teatro da Casa do Estudante Universitário,
um emprestar um livro ao outro mas parece que no Rio, novamente preparada por representantes do
eles já conhecem uns aos outros e não confiam Conselho Editorial do Lampião e o Somos Rio. Duas
quanto a devolução do livro (eu já levei ferro por reportagens publicadas na edição 32 desse jornal, em
emprestar algo a uma das pessoas do grupo) janeiro de 1981, dão o tom de certo esfacelamento,
tanto que nem responderam a minha proposta. desânimo, esvaziamento e desorientação da maior parte
Pergunto a vocês se para receber o jornal do dos grupos de homossexuais constituídos no Brasil
“Outra Coisa” é preciso mandar dinheiro, se naquele momento.
140 3º ATO, o primeiro grupo de ativismo LGBT de Belo Horizonte 141

[...] de Grupos Homossexuais Organizados. Apesar do


Em todos os grupos ocorre hoje o fenômeno esforço da Comissão Organizadora do Encontro
do esvaziamento, que se torna incontrolável. feito no sentido de impedir que os grupos de São
Soluções para evitar este problema, não nos cabe Paulo trouxessem para dentro da prévia as suas
apresentar. Quem sabe até este fenômeno seja divergências políticas, foram os próprios grupos do
uma coisa “natural”, pois muitos ainda não estão ou Rio que tumultuaram as primeiras horas da reunião
não estarão nunca conscientes da necessidade de [...]
se agruparem. Vale também apenas discutir outras O representante do Terceiro Ato, de Belo Horizonte,
fórmulas alternativas, com a atuação individual, foi Ricardo, que relatou a fase de esvaziamento e
o combate ideológico, o trabalho de base e de estagnação que o grupo atravessa. “Não sabemos
periferia, etc... para onde o grupo vai, se fechamos ou não o
O que ocorre no M.H., principalmente no Rio e em grupo”, afirma. Para ele a crise que atravessa o
Belo Horizonte, é a total falta de perspectiva de grupo não é quanto ao número de pessoas, mas
uma atuação mais incisiva no seio da sociedade. é “uma crise de propostas práticas e ideias”.
Esta falta de perspectiva do movimento leva, Mostrando o desespero da situação disse que
consequentemente, ao desestímulo e ao “as reuniões tornam-se cansativas por falta
esvaziamento dos grupos. do que fazer. Precisamos de alguma ideia para
[...]19 continuarmos vivos”. O grupo possui 10 membros
[...]20
Um representante do 3º ATO esteve presente e
pôde registrar a experiência do grupo naqueles oito A própria presença de Ricardo comprova que o 3º ATO
meses de existência. ainda se mantinha ligado a uma rede de diálogo com outros
grupos, com o qual compartilhava a “fase de esvaziamento
No dia 6 de dezembro dezessete e estagnação”. Pelo depoimento daquele ativista, percebe-
grupos organizados, entre eles o se que a desorientação do grupo atravessa
Lampião, realizaram no Teatro da Casa 19 NUNES, Aristides. Afinal, o 20 FREITAS, Emanoel. Na sua história, que as propostas e ideias não
que é um grupo homossexual reunião dos grupos, os
do Estudante Universitário, no Rio, organizado. Lampião da reflexos da crise. Lampião são bem-sucedidas (e provavelmente não
Esquina, ano III, n. 32, p. 12, da Esquina, ano III, n. 32, p.
a reunião prévia para o II Encontro jan. 1981. 15, jan. 1981. funcionam como propulsores dos seus
142 3º ATO, o primeiro grupo de ativismo LGBT de Belo Horizonte 143

integrantes) e que o grupo continua com dez membros grupo estavam frequentando outro grupo que cuida
(seguramente não são todos os mesmos de sua fundação, só de debates mas não tem interesse em atuar, mas
em abril de 1980). o rapaz quando o encontrei negou pertencer ao
grupo dizendo que a moça que pertencia, a verdade,
Por fim, em uma segunda carta, dessa vez datilografada, no caso, não me interessa já que nada quero com
enviada ao Outra Coisa, José Roberto fala de seu pessoas como eles.
desligamento do 3º ATO: Quanto a vocês, parabéns pelo roteiro guei da
Pauliceia e uma sugestão juntar contos e poemas
Belo Horizonte, 20 de junho de 1981 de gueis em um livro para o público brasileiro
Grupo Outra Coisa guei ou não.
São Paulo – SP Um abração para todo o pessoal do Outra Coisa, em
especial para Zezé, Ricardo III e você Eliseu do
Sr. Eliseu,
Recebi sua carta há dias e só agora estou tendo José Roberto Rabelo Goulart
tempo de escrever. Já havia deixado de responder
uma carta do Dick, the Queen que muito me divertiu, Ainda não foi possível identificar com clareza quando e
mas que infelizmente não tive tempo para responder. de que maneira se deu o encerramento das atividades do
Sr., Sra. Srta., Srto Eliseu (Elisa) gostei muito de 3º ATO, como também não consegui colher informações
receber sua cartinha mas pouco posso informá-lo nem localizar os integrantes mencionados ao longo
do Grupo Terceiro Ato a não ser que saí do grupo deste texto. Porém, os fatos reunidos até aqui deixam
em setembro, quando os membros desse fizeram- transparecer, por um lado, certo voluntarismo de
me muita raiva o que vai me impedir para sempre pessoas engajadas inicialmente em torno da discussão
de frequentar qualquer outro grupo homossexual de direitos reivindicados e de fortalecimento da
do Brasil pois estes não estão querendo trabalhar identidade homossexual – questões que efervesciam
em entenderem-se e o sistema no qual vivemos, naquele momento – e, por outro lado, certo despreparo
mas a (sic) outras coisas com as quais se igualam a e desorientação para erguer e consolidar um grupo
qualquer pessoa careta de qualquer parte do mundo. minimamente constituído.
Soube por uma das meninas que dois membros do
Preservando e fabricando histórias de luta: acervos LGBTQIAP+ no Rio Grande do Sul 145

PRESERVANDO E
FABRICANDO HISTÓRIAS
DE LUTA: ACERVOS
LGBTQIAP+ NO RIO
GRANDE DO SUL
Caio de Souza Tedesco

Transhomem, transativista. Doutorando em História no Programa de


Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS), bolsista CNPq. Integra: o Close - Centro de Referência da
História LGBTQIAP+ do Rio Grande do Sul; o GENHI - Grupo de Estudos
e Pesquisas em História e Gênero do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas (IFCH) da UFRGS; o HTA - Coletivo Homens Trans em Ação; a
Rede LGBT de Memória e Museologia Social; a Rede de Historiadores(as)
LGBTQI+; e a Organização da Parada Livre de Porto Alegre.
146 Preservando e fabricando histórias de luta: acervos LGBTQIAP+ no Rio Grande do Sul 147

A historiografia instalou-se sempre na fronteira compreender como os processos sociais, econômicos,


do discurso e da força, como se tratasse de uma culturais e históricos que fazem com que determinadas
guerra entre o sentido e a violência [...] torna-se temáticas, hipóteses, fontes, perspectivas, metodologias
necessário atualmente reconhecer que o conflito e problemáticas, por exemplo, tornem-se questões
entre discurso e força mantém-se acima da concernentes à pesquisa histórica.
historiografia e, ao mesmo tempo, encontra-se em
seu bojo. (CERTEAU, 2011, p. 64) No que diz respeito às histórias lesbitransviadas,
parte das entidades de movimento social LGBTQIAP+2
Enxergo a movimentação da vida ao meu redor através de a mobilização para a criação de acervos, arquivos,
algumas perspectivas que, encaixadas, formam as lentes museus e projetos voltados para história e memória
que dão (ou tiram) tonalidade e nitidez para minha visão. LGBTQIAP+ (TEDESCO, 2018; 2022). Não é à toa que
Ser historiador, homem trans, branco, bissexual, professor inicio este texto com a citação de Certeau, pois se a
e ativista são alguns desses fatores que engendram minha historiografia encontra-se em meio a conflitos sociais,
maneira de compreender o mundo. Tais fatores, por sua certamente muitas bichas, sapatonas,
vez, levaram-me ao interesse pelos Estudos de Gênero 2 Apesar de “LGBT” ser travestis, transviados, bissexuais, assexuais,
a sigla mais comum para
dentro da historiografia o que, por conseguinte, me se referir a pessoas não- pansexuais e pessoas intersexo sabem muito
cisheteronormativadas, uso
conduziu para uma concepção transfeminista, decolonial e LGBTIQIAP+, considerando a bem a importância, há anos, de se posicionar
pluralidade de possibilidades
antirracista sobre história, memória e temas afins. de identificações em relação nesse campo de batalha e transgredir e
à identidade de gênero e/ou
orientação sexual para além fazer história nas ruas e, também, através
1 Em “A Escrita da História”, de Lésbicas, Gays, Bissexuais
Assim, entendo que os processos Michel de Certeau discorre, e pessoas Trans, abrangendo, da própria fabricação de uma historiografia
entre outras questões, também, indivíduos Intersexo
relacionados à construção de uma história, sobre as três etapas de uma (que possuem um código que fale sobre nós (TEDESCO, 2018; 2022).
operação historiográfica: genético não-binário, tal qual
tais quais a criação e preservação de primeiro, os processos que XXY, por exemplo), Assexuais Por isso, nesse texto irei, primeiro, realizar
permitem com que um (sujeitos que não sentem
acervos e coleções, encontram-se em uma tema se torne relevante atração romântica e/ou uma breve contextualização sobre a história
para a pesquisa histórica, sexual) e Pansexuais (assim
discussão ampla sobre o que é considerado denominado o “lugar social como a bissexualidade, do movimento social lesbitransviado gaúcho
da história”; segundo, os a pansexualidade é uma
“historicamente relevante”. Esse debate, por procedimentos, métodos maneira de categorizar para, posteriormente, abordar os acervos
e decurso das pesquisas, o desejo afetivo-sexual
sua vez, parte do que Michel de Certeau (1925- intitulado “prática não-monosexual). O sinal LGBTQIAP+ do Rio Grande do Sul.
historiográfica”; terceiro, as de soma, por sua vez,
1986) chamou de “lugar social da história” narrativas elaboradas com busca demonstrar que há
base nas pesquisas, chamado a possibilidade de outras
em A Escrita da História1, o que podemos de “escrita da história”. autoidentificações.
148 Preservando e fabricando histórias de luta: acervos LGBTQIAP+ no Rio Grande do Sul 149

A lesbitransviadagem gaúcha vai à luta estigmatizaram a Aids e a síndrome foi caracterizada


(1991-2022) como “câncer gay”, entre outros termos discriminatórios
(FACCHINI, 2005). Tal estigma intensificou a marginalização
O movimento social LGBTQIAP+ chegou ao Rio Grande do já sofrida por homens cisgêneros homossexuais e
Sul em 1989, com a fundação de um núcleo bissexuais e, sobretudo, por mulheres trans e travestis.
do Grupo de Apoio à Prevenção da Aids 3 Tais quais os procedimentos
realizados pelo cirurgião
(GAPA) no estado. Foram intensos os anos que Roberto Farina na mulher Por conseguinte, o combate à discriminação de
transexual Waldirene
antecederam a chegada do GAPA no território Nogueira (1976) e no homem soropositivos, bichas e travestis, bem como a importância
transexual João Walter
sul-riograndense, sobre os quais dou destaque Nery (1977). Ambos fazem da prevenção ao HIV e à Aids foi um elemento agregador
parte dos primeiros casos
para os seguintes acontecimentos: houve a registrados de pessoas trans de pessoas dissidentes da cisheteronormatividade. Assim,
a passarem por cirurgias de
emergência do movimento cishomossexual transição de gênero no Brasil na sede do GAPA/RS6, na década de 1990, surgiram as
(NERY, 2011; ROSSI, 2018).
no Brasil, através da criação do grupo Somos organizações não governamentais (ONGs) Nuances -
4 A exemplo de uma matéria
(São Paulo, 1978), na mesma época da abertura veiculada no Programa de Grupo pela Livre Expressão Sexual (1991) e Igualdade RS
Domingo, da TV Manchete,
política do período da ditadura militar; ainda em 03 de março de 1985. (1999) (OLIVEIRA, 2018; 2022).
Nela, foram entrevistades
no final da década de 1970, até meados dos João Walter Nery (psicólogo
e homem transexual),
anos 1980, ocorreram as primeiras cirurgias de Joana (bioquímica e Nascido como “Movimento Homossexual Gaúcho”, o
mulher transexual); um
transição de gênero no Brasil3, bem como as psicanalista e uma assistente Nuances alterou seu nome logo no princípio da sua
social que trabalhavam
primeiras aparições e discussões em veículos com pessoas trans e não trajetória. O grupo trabalha desde o início em um viés
foram identificados/as; e
midiáticos nacionais sobre a temática4; além Antônio Houaiss, o autor da radical, na luta pela cidadania plena de pessoas LGBTQIAP+
apresentação do livro Erro de
disso, em 1983 irrompeu a pandemia do HIV/ Pessoa (de autoria de João e no combate à LGBTfobia sem buscar assimilação com
Walter Nery) e conheceu
Aids no Brasil. a obra de Nery através do a cultura cisheteronormativa, mas sim rompendo com a
vínculo de ambos com
Darcy Ribeiro. ideia de normalidade em si, através de ações que buscam
Toda essa conjuntura faz com que as entidades 5 Utilizo o termo visibilidade, tensionamento do Estado por políticas
“lesbitransviadagem”
de movimento social lesbitransviado5 como um sinônimo públicas, ações judiciais contra casos de LGBTfobia
de “LGBTQIAP+”.
gaúchas surjam em um momento politizado, Modifico-o de acordo etc. Para exemplificar, destaco o Jornal do Nuances,
com a frase, alternando
radicalizado e comprometido com a luta pela para “lesbitransviado” distribuído gratuitamente desde 1998, com mais de 50
ou “lesbitransviada”, por
cidadania do movimento LGBTQIAP+. Afinal, a exemplo, a fim de intercalar edições e cerca de 10.000 exemplares por
com a supracitada sigla 6 Para saber mais, acesse
mídia e os setores conservadores brasileiros “LGBTQIAP+”. o site Viva o GAPA. tiragem. Outro pioneirismo do grupo foi a
150 Preservando e fabricando histórias de luta: acervos LGBTQIAP+ no Rio Grande do Sul 151

organização da primeira Parada Livre de Porto Alegre, em pessoas LGBTQIAP+ e pessoas vivendo com HIV/Aids
1997, que na época contou com cerca de 100 pessoas e, (NÚÑEZ, 2017).
na última edição (em junho de 2022), teve mais de 100.000
participantes (ÁVILA, 2022; OLIVEIRA, 2022). Dois anos depois foi criada a Liga Brasileira de Lésbicas,
no III Fórum Social Mundial que ocorreu em Porto Alegre,
A ONG Igualdade, por sua vez, foi a primeira entidade em 2003. A Liga mobilizou-se até 2019 na região Sul,
de movimento social trans fundada no Rio Grande do lutando pela garantia efetiva e cotidiana da livre orientação
Sul. Através das reuniões do GAPA/RS, mulheres trans e e expressão afetivo-sexual entre mulheres lésbicas e
travestis passaram a formar um coletivo e se organizar bissexuais sob um viés feminista (NÚÑEZ, 2017).
e, em 1999, as ativistas Marcelly Malta e Cassandra
Fontoura fundaram a ONG com objetivo de lutar contra No decorrer dos anos 2000, até meados de 2010, apenas a
a discriminação sofrida por travestis e combater a Igualdade realizava um trabalho voltado para a população
desumanização e marginalização da população trans. As trans sul-riograndense, e com foco em mulheres trans
mobilizações da Igualdade atravessam o campo jurídico, de e travestis. Somente em 2015 que outras entidades
saúde, educação, política e assistência para pessoas trans. de movimento social trans instituíram-se no estado: o
Certamente, direitos que conquistamos nos últimos anos, Coletivo pela Educação Popular TransENEM e o Coletivo
como o uso de nome social, retificação de documentação e Homens Trans em Ação (HTA), já em outro momento da
acesso à transição de gênero pelo Sistema Único de Saúde luta lesbitransviada, menos voltada para o combate ao
(SUS) não seriam possíveis sem a coragem da Igualdade HIV/Aids e complexificada e diversificada de acordo com
(OLIVEIRA, 2018). o surgimento de novas identidades sociais dissidentes
da cisheteronormatividade (TEDESCO; ALMEIDA, 2021;
Ainda no contexto da luta contra a Aids, em dezembro TEDESCO; LEMES, 2022).
de 2001 foi fundada a ONG Somos - Comunicação,
Saúde e Sexualidade, por profissionais ligados às Com o objetivo de proporcionar um ambiente de ensino-
áreas da Comunicação, Direito e Saúde. Suas ações aprendizado seguro, acolhedor e inclusivo, o TransENEM
transdisciplinares têm enfoque nos direitos sexuais e atua no combate ao processo de desumanização sofrido
reprodutivos, por meio da produção de conteúdos, difusão pela população trans através da humanização vinculada ao
de informações e assistência jurídica e psicológica para direito à educação. O HTA, por sua vez, iniciou como um
152 Preservando e fabricando histórias de luta: acervos LGBTQIAP+ no Rio Grande do Sul 153

núcleo do Instituto Brasileiro de Transmasculinidades do A lesbitransviadagem gaúcha constrói a


Rio Grande do Sul (IBRAT-RS), mas tornou-se um coletivo sua história
independente a fim de realizar um trabalho de base
regional, fomentando a formação de uma comunidade Atualmente, há acervos, arquivos e/ou coleções
transmasculina gaúcha politizada que exercite a sua lesbitransviadas institucionais - de âmbitos públicos
cidadania e tensione o Estado para a criação de políticas e privados - e pessoais no Rio Grande do Sul. Sabe-
públicas que deem conta de nossas demandas (TEDESCO; se que o Arquivo Histórico do RS (AHRS), o Arquivo
ALMEIDA, 2021; TEDESCO; LEMES, 2022). Público do Estado do RS (APERS), o Núcleo de Pesquisa
7 A ONG Outra Visão, o
Coletivo Amoras e a Liga de em História da Universidade Federal do Rio Grande do
Homens Trans de Caxias do
É interessante perceber como a tessitura Sul e Região são algumas Sul (NPH/UFRGS) e o Centro de Referência da História
das outras entidades não
dessa história vai se formando através de dois mencionadas, tendo em vista LGBTQIAP+ do RS (CLOSE) são instituições que vêm
os limites e limitações desta
eixos intrinsecamente conectados. Primeiro, escrita. trabalhando para resguardar a memória dos movimentos,
as mobilizações das entidades de movimento 8 Uma cidade pelas margens comunidades, espaços de sociabilidade e sujeitos
ficou exposta de novembro a
social — e, evidentemente, aqui mencionei dezembro de 2016 no Museu LGBTQIAP+ do estado.
de Porto Alegre Joaquim
apenas algumas7. Segundo, por meio da Felizardo e abordou uma
história das relações de
criação de materiais, acervos, coleções, gênero em Porto Alegre, No que condiz ao Nuances, seus jornais encontram-se no
com foco em pessoas com
pesquisas e escritas da história que provêm do identidades de gênero NPH/UFRGS e, no AHRS, há mais de 2000 documentos
e sexuais dissidentes da
seio do próprio movimento social LGBTQIAP+, norma; De Stonewall a que registram a história do grupo: sua correspondência
Nuances, por sua vez, ficou
a exemplo das exposições Uma cidade pelas exposta no Memorial do Rio (1991-1997); relatórios, questionários, pesquisas, registros
Grande do Sul entre junho e
margens (2016), De Stonewall ao Nuances: 50 julho de 2019 e versou sobre de cursos ministrados, documentos administrativos —
a história do movimento
anos de ação (2019) e Nega Lú: um frenesi na LGBTQIAP+ estadunidense, como regulamentações e listas de presença (1993-2002
brasileiro e sul-riograndense,
maldita Porto Alegre (2021)8. discorrendo sobre Stonewall, e 2006); recortes de jornais com notícias relacionadas
o grupo Somos e o grupo
Nuances; já Nega Lú, um à temática LGBTQIAP+ (1991-2006 e 2013) ; livros
frenesi na maldita Porto
Alegre é uma exposição elaborados por nuanceires9; panfletos, folders e cartazes;
que encontra-se em
lugares públicos de Porto material fotográfico e audiovisual (1991, 1993-1998, 2000-
Alegre, foi inaugurada no
segundo semestre de 2021 e 2008); exemplares do Jornal do Nuances
homenageia a trajetória de 9 Forma com que integrantes
Nega Lu, bicha preta e artista do Nuances referem-se uns (1998, 2000-2008 e 2019); informativos (2002-
porto-alegrense (BAPTISTA aos outros: “nuanceiro”,
et al, 2022). “nuanceira” ou “nuanceire”. 2003, 2005 e 2009).
154 Preservando e fabricando histórias de luta: acervos LGBTQIAP+ no Rio Grande do Sul 155

Para além da salvaguarda de acervos LGBTQIAP+, também


tem sido desenvolvido o processo de catalogação e/ou
criação de fontes históricas de temática lesbitransviada
em algumas instituições e grupos do estado. No Arquivo
Público do Estado, por exemplo, o historiador Rodrigo
de Azevedo Weimer10 elaborou o Catálogo LGBT+. Em
entrevista11, Weimer compartilhou comigo alguns dos
desafios encontrados durante o processo de produção
deste catálogo, tais quais a maneira de investigar e
qualificar as fontes como concernentes a uma história
de sujeitos que divergiram da cisheteronormatividade no
passado. Em suas palavras:

[...] os desafios são de toda ordem. Tem desafios


práticos e metodológicos. [...] Claro que estão
ligados… Mas, assim, a função é abrir caixa por caixa
e olhar documento por documento e escolher os
que envolvem pessoas LGBT. Eu tô usando LGBT
10 Weimer é licenciado
e bacharel em História porque no período que eu pesquisei, que é (19)42
pela UFRGS (2000; 2002),
mestre em História pela a (19)64 eu achei difícil encontrar pessoas que a
Universidade do Vale do Rio
dos Sinos (2007) e doutor em gente poderia entender como queer ou intersexo,
História pela Universidade
Federal Fluminense (2013). intersexuais, assexuais ou pansexuais. Então eu tô
Figura 1: exemplares do Atualmente é historiador
Jornal do Nuances na no APERS e professor trabalhando com “LGBT”, [...] com “+”, claro, mas
Hemeroteca Digital do colaborador no Programa de
Núcleo de Pesquisa em Pós-Graduação em História é uma sigla um pouco mais restrita. Então, isso já é
História da UFRGS da UFRGS.
uma questão metodológica [...]. Outra [...] questão
Fonte: Núcleo de Pesquisa 11 Efetuada em agosto de
em História da UFRGS. 2022, de modo virtual. metodológica importante é que muitas vezes as
156 Preservando e fabricando histórias de luta: acervos LGBTQIAP+ no Rio Grande do Sul 157

coisas não estão intituladas com nome, é “o amor representatividade, pois é difícil encontrar diversidade nas
que não ousa dizer seu nome”, né, então às vezes fontes. O professor elucida que, em relação ao catálogo:
não aparece nome, não diz explicitamente o que
está em jogo. [...] a gente vê que tem alguns crimes [...] o nome original do trabalho era “documentos
em que aparece “fulano pederasta”, “pederasta da diversidade” e acabou não se chamando
ativo” ou “pederasta passivo”... Ou a gente vê assim porque eu não vejo diversidade. Tem
uma pessoa trans quando percebe que no auto de muitos processos envolvendo o que chamavam
qualificação estão qualificando ela no masculino e de pederastas, que seriam os homens gays
tem nome social no feminino, uma alcunha, esses cisgêneros, vários com mulheres trans e quase
casos são mais claros, mas tem outros que são muito nada de lésbicas, quase nada de bi. Encontrei um
dissimulados. Então, ao contrário de um documento só de homens trans que acabou ficando fora do
da escravidão, por exemplo, que a gente encontra período abrangente do catálogo, mas eu botei na
muito claramente “o fulano escravizado”, “beltrano introdução pras pessoas que se interessarem irem
de nação congo, avaliado em sei lá quantos mil réis”, atrás desse processo, que é um processo que é
na documentação de História LGBT tem um papel considerado uma mulher que se vestiu de homem,
interpretativo muito maior do historiador que faz a então isso aí que fique aberto ao leitor, à leitora ou
pesquisa (WEIMER, 2022, texto digital). leitore para interpretar se era um homem trans ou
não, enfim. Eu tentei sempre deixar o mais aberto
Através da explicação de Weimer podemos refletir sobre possível, para que as pessoas interpretem o que
a importância das perspectivas teórico-metodológicas elas julgam como convincente ou não. (WEIMER,
na hora de se pensar em História LGBTQIAP+. Esse “papel 2022, texto digital)
interpretativo” ao qual o historiador se refere, a meu
ver torna-se necessário devido aos processos sócio- Mais uma vez, a interpretação entra em cena devido aos
históricos de naturalização do cistema gênero/sexo e apagamentos históricos que sofrem pessoas
desejo. Afinal, o “amor que não ousa dizer seu nome”, entre 12 Com essa expressão, LGBTQIAP+, com uma intensidade maior para
busco abranger mulheres
outros silêncios e silenciamentos, são mecanismos de (re) cisgêneras e pessoas pessoas designadas como mulheres12, tendo
transmasculinas —
produção da estrutura de poder cisheteronormativa. Ainda, homens trans e pessoas em vista o atravessamento do machismo. Para
transmasculinas
Weimer também coloca como um desafio metodológico a não-binárias. além destes desafios, Weimer aponta que
158 Preservando e fabricando histórias de luta: acervos LGBTQIAP+ no Rio Grande do Sul 159

o fato de ele ser um homem cisgênero homossexual, se necessidade de haver o engendramento de um lugar social
interessar pelo tema e ter recebido o apoio da instituição que impulsione a produção de trabalhos relacionados à
fez uma grande diferença na hora de enfrentar essa história e memória lesbitransviadas.
empreitada e elaborar o Catálogo LGBT+, o que evidencia a
Outra instituição que tem trabalhado na linha de frente
da História LGBTQIAP+ do Rio Grande do Sul é o CLOSE,
o Centro de Referência da História LGBTQIAP+ do RS,
vinculado ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e
ao Programa de Pós-Graduação em História da mesma
Universidade. Dividido em três eixos — CLOSE na Sala de
Aula, CLOSE nas Ruas e CLOSE nas Fontes, o Centro busca
articular pesquisa histórica, educação e história pública.
Desse modo, no que condiz às fontes, closeires13 têm
criado um Acervo Oral e, também, buscado tornar o site do
Centro um local de fácil acesso a documentação referente
à História LGBTQIAP+.

Em relação ao acervo oral, desde 2020 têm sido realizadas


entrevistas de História Oral com dois grupos de militantes:
lésbicas e transmasculinos. A escolha em iniciar por
representantes destas “duas letras da sigla” se deu pela
compreensão coletiva, formada durante as reuniões do
CLOSE, de que há uma maior invisibilização de homens
trans, transmasculines e mulheres que
Figura 2: imagem de
divulgação do Catálogo LGBT 13 Forma com a qual se relacionam com mulheres. No que diz
integrantes do CLOSE
Fonte: Blog do APERS. referem-se uns aos outros, respeito ao Acervo Externo, têm sido feitas
Arquivo LGBT+: levantando de modo informal: “closeiro”,
documentos para outras “closeira” e/ou “closeire”. pesquisas similares à feita pelo professor
histórias.
160 Preservando e fabricando histórias de luta: acervos LGBTQIAP+ no Rio Grande do Sul 161

Rodrigo Weimer, mencionada anteriormente, a fim de direto pelas “nuvens” dos coletivos desde seus princípios -
criar catálogos disponíveis online e facilitar o acesso à e-mail, armazenador online e redes sociais, por exemplo.
pesquisa, ao conhecimento e à discussão das histórias
lesbitransviadas gaúchas. Por fim, há acervos sobre trajetórias individuais de
pessoas LGBTQIAP+. Para exemplificar, menciono: o
Outros acervos LGBTQIAP+ são aqueles pertencentes e Acervo Caio Fernando de Abreu, localizado no Espaço de
administrados pelas próprias entidades de movimento social, Documentação e Memória Cultural (DELFOS) da Pontifícia
como as ONGs Igualdade, SOMOS e a Liga Brasileira de Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS)14; e o
Lésbicas. Constituídos por documentos diversos, de suporte acervo pessoal de Clô, mulher travesti e idosa, integrante
físico e digital — objetos, livros, documentos administrativos, da ONG Igualdade RS, que conta com um vasto acervo
panfletos, fotografias, produtos audiovisuais etc. Há fotográfico e de recortes de jornal de sua trajetória artística
um esforço das entidades em preservar suas memórias, e militante no Rio Grande do Sul e no Brasil15.
dificultado pela falta de infraestrutura e sustentabilidade
financeira que prejudicam os movimentos sociais no Brasil
de modo geral. A ONG SOMOS, por exemplo, criou o Centro
de Documentação Adelmo Turra (CEDOC) em 2008 e, com
o passar dos anos, por instabilidades financeiras e falta de
investimento do Estado no trabalho voltado para a garantia 14 Disponível no site.

dos direitos humanos da população LGBTQIAP+, precisou 15 No processo de


elaboração da exposição
se desfazer do CEDOC e da maior parte dos 2.000 itens que No Âmago da Transgressão:
histórias trans no Rio Grande
compunham seu acervo (NÚÑEZ, 2017). do Sul (exposta no Memorial
do RS de julho a agosto de
2022), em que fui curador,
pude conhecer Clô (que se
Há, também, acervos estritamente digitais, como os apresenta dessa maneira
informal, sem sobrenome) e,
acervos dos coletivos TransENEM e Homens Trans em também, seu rico acervo.

Ação. Visivelmente, essa diferença se dá por uma questão


“geracional” das entidades, sendo estas últimas mais jovens Figura 3: fotografia de Clô
em desfile. Pelotas (RS), final
que as outras, o que faz com que os documentos, registros e da década de 1980.

aparições nas mídias tenham sido centralizados e/ou ocorrido Fonte: Acervo pessoal.
162 Preservando e fabricando histórias de luta: acervos LGBTQIAP+ no Rio Grande do Sul 163

Referências bibliográficas
História nas ruas e nos acervos: uma luta
constante pelos direitos LGBTQIAP+
ÁVILA, Hack Basilone Ribeiro de. Sapatonas, Lésbicas, Entendidas e Hétero-
Simpatizantes: Pé na porta 30 anos dando as caras por aí. In: SCHMIDT,
A partir do que foi abordado até esse momento, torna-se
Benito Bisso; WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Histórias Lesbitransviadas do Rio
perceptível a importância, para o movimento LGBTQIAP+, Grande do Sul. Porto Alegre: Editora Taverna. 2022. p. 297-311.

da preservação e fabricação da sua própria história. Não BAPTISTA, Jean Tiago; CASTRO, Thainá; BOITA, Tony; BRAGA, Jezulino Lúcio
Mendes; ESCOBAR, Jeanine Vargas; TEDESCO, Caio de Souza. Ensino,
há dúvidas de que há uma compreensão da importância
Pesquisa e Extensão em Museus e Museologia LGBT+: recomendações
dos trabalhos de história e memória para o combate Queer à formação museológica. Revista Museologia & Interdisciplinaridade.
Brasília, vol. 11, n. 21. 2022. p. 29 - 52. Disponível em: <https://periodicos.unb.br/
à LGBTfobia e à construção de mundos mais dignos e
index.php/museologia/article/view/41427/33175>. Acesso em: 18 junho 2022.
habitáveis para nós.
CERTEAU, Michel de. A Operação Historiográfica. In: ______. A Escrita da
História. Rio de Janeiro: Forense-Universitária. 1982. pp. 105-119.

É interessante perceber como essas mobilizações CERTEAU, Michel de. História e Psicanálise: entre ciência e ficção. 2ed. Belo
Horizonte: Autêntica. 2011.
iniciam no seio dos movimentos sociais e a partir dos
FACCHINI, Regina. Sopa de Letrinhas? Movimento homossexual e produção de
interesses pessoais e políticos de sujeitos LGBTQIAP+
identidades coletivas nos anos 90. Rio de Janeiro: Garamond. 2005. 301p.
para, posteriormente, se tornar um “assunto” de “teor
NÚÑEZ, Sharon Daniela. A luta pela diversidade sexual e de gênero: os
acadêmico” ou “institucional”. Ainda assim, falta muito arquivos resultantes do movimento LGBTT em Porto Alegre. Monografia
(Bacharelado em Arquivologia, Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação,
para que as histórias lesbitransviadas sul-riograndenses e
Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Porto Alegre, 2017. 95p.
brasileiras, de modo geral, recebam incentivo o suficiente
OLIVEIRA, Augusta da Silveira de. A Parada Livre de Porto Alegre nas páginas
- sobretudo suporte financeiro, material, infraestrutura - do Jornal do Nuances (1998-2016): do armário para as ruas. SCHMIDT,
Benito Bisso; WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Histórias Lesbitransviadas do Rio
para que sejam preservadas e fabricadas de forma mais
Grande do Sul. Porto Alegre: Editora Taverna. 2022. p. 313-343.
adequada. Todavia, seguimos na luta, engendrando-a e
OLIVEIRA, Augusta da Silveira de. “TENHO O DIREITO DE SER QUEM EU
rexistindo de todas as formas possíveis. SOU”: o movimento de travestis e transexuais em Porto Alegre (1989-
2010). Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-Graduação em
História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2018.

ROSSI, Amanda. ‘Monstro, prostituta, bichinha’: como a Justiça condenou


a 1ª cirurgia de mudança de sexo do Brasil. In: BBC Brasil. Março de 2018.
Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/geral-43561187>. Último
acesso em: 3 agosto 2022.

TEDESCO, Caio de Souza; ALMEIDA, Diana. Por um ensino de História que


transgrida a cisnormatividade: reflexões provocativas e provocadas pela
164 Preservando e fabricando histórias de luta: acervos LGBTQIAP+ no Rio Grande do Sul 165

experiência docente no Coletivo pela Educação Popular TransENEM (2016-


2019). In: WIRTH, Ioli Gewehr; FONTOURA, Julian Silveira Diogo de Ávila;
PRESTES, Liliane Madruga (orgs.). Diálogos insurgentes durante a pandemia:
vozes para uma educação (trans)formadora. Marília: Lutas Anticapital, 2021, p.
123-139.

TEDESCO, Caio de Souza; LEMES, Morgan Santos. Transmasculinidades no


Rio Grande do Sul: movimentos, comunidades e rexistências. In: SCHMIDT,
Benito Bisso; WEIMER, Rodrigo de Azevedo (orgs). Histórias Lesbitransviadas do
Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora Taverna. 2022.

TEDESCO, Caio de Souza. “Nós somos complexos”: historiografia queer na


contemporaneidade - uma análise da operação historiográfica no National
Museum: LGBT History and Culture. Monografia (Licenciatura em História),
Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, 2018.

TEDESCO, Caio de Souza. Por uma historiografia transgressora:


problematizando a operação historiográfica no National Museum: LGBT
History and Culture. Revista Museologia & Interdisciplinaridade. Brasília, vol.
11, n. 21. 2022. p. 182 - 208. Disponível em: <https://periodicos.unb.br/index.php/
museologia/article/view/41428/33304>. Acesso em: 18 junho 2022.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Entrevista concedida a Caio de Souza


Tedesco. Agosto de 2022. Texto digital.
167

A CONSTITUICAO DO
ACERVO DIGITAL DO
ALB: PROCEDIMENTOS
TÉCNICOS E MEMÓRIAS
POLÍTICAS
Julia Aleksandra Martucci Kumpera

Cofundadora do Arquivo Lésbico Brasileiro, primeira diretora financeira


da instituição e articuladora da comissão que criou o acervo digital
do ALB. É mestra em História pela Unicamp e pesquisadora com
interesse em história das mulheres, lesbianidades, ditadura e memória.
Atualmente, é professora de História na rede pública de ensino básico.
168 A constituição do acervo digital do ALB: procedimentos técnicos e memórias políticas 169

“O que não se registra o tempo leva, No início de 2021, criar o acervo digital do ALB constituía
Mãe Stella de Oxóssi (2013)1” a primeira tarefa da Comissão, formada por uma equipe
de voluntárias integrantes da instituição. Havia entre
O Arquivo Lésbico Brasileiro (ALB) surgiu em dezembro de nós pessoas de diversas áreas de formação e atuação
2020, a partir da iniciativa de um grupo de pesquisadoras profissional, sobretudo oriundas das Ciências Humanas,
e ativistas lésbicas que desejavam compartilhar os mas não necessariamente ligadas ao campo arquivístico.
materiais sobre lesbianidades que haviam recolhido Esta configuração foi interessante e desafiadora ao mesmo
durante os últimos anos. A instituição foi criada com tempo: por um lado, ideias criativas surgiam para organizar
o objetivo de dedicar-se à preservação e difusão da a documentação disponível; por outro, foi necessário
memória lésbica, por meio de um projeto arquivístico e investir em nossa formação técnica para aprendermos a
iniciativas de formação política e intervenção cultural. manejar as ferramentas que utilizaríamos.
Neste ensaio, relato a experiência de constituição do
acervo digital do ALB, dando ênfase aos procedimentos Antes da estruturação do acervo digital, a Comissão
técnicos adotados e tecendo algumas reflexões sobre trabalhou em duas frentes. Primeiro, era necessário criar
memória e lesbianidade. uma ferramenta de catalogação do acervo do ALB. À
época, os itens encontravam-se dispersos nas residências
A proposta do acervo digital do ALB é armazenar de algumas integrantes e estávamos recebendo doações
integralmente a documentação sob a guarda da instituição. de materiais. Adicionalmente, uma parte encontrava-se em
Todo o processo de elaboração do acervo digital - lançado suporte digital e outra em suporte físico, especialmente
em 19 de dezembro de 2021 junto com o site do os livros. Assim, era primordial criar um sistema de registro
1 Yalorixá negra e lésbica,
ALB2 - foi um trabalho coletivo, organizado no em discurso de posse na do acervo do ALB para uso interno. Isso foi realizado com
Academia de Letras da Bahia
âmbito da Comissão de Acervo e Patrimônio, (2013). Confira a íntegra do o desenvolvimento de um banco de dados em Excel,
pronunciamento aqui.
a qual coordenei no primeiro semestre de posteriormente adaptado para o Access, usando como
2 O desenvolvimento do site
2021. A Comissão é responsável pela política e sua integração com o plugin modelo a taxonomia de uma ficha catalográfica padrão.
de acervo digital foi realizado
de acervo do ALB, de forma que é de sua pela programadora Mariana
Assis, lésbica e integrante do
incumbência fazer a gestão do recebimento, Coletivo Cássia, de Curitiba. Com isso, a Comissão iniciou a catalogação dos materiais,
A identidade visual, por sua
organização e tratamento da documentação vez, foi idealizada por Thaís especialmente dos livros que o ALB possuía. A opção por
Esmeraldo, também lésbica,
da instituição. designer e integrante do ALB. começar pelo acervo bibliográfico deveu-se a dois motivos:
170 A constituição do acervo digital do ALB: procedimentos técnicos e memórias políticas 171

primeiro, porque a coleção de livros é vasta numérica desde os anos 1980. A coleção conta com produções
e tematicamente (há obras de literatura, produções como o Visibilidade, periódico produzido pelo Coletivo de
acadêmicas, teses médicas, entre outros); segundo, Lésbicas do Rio de Janeiro (COLERJ) no final dos anos
pois isso aceleraria a disponibilização dessas obras para 1990, e o Tia Concha, revista editada pelo Coletivo 44, de
empréstimo na sede da instituição. Devido a questões de São Paulo, a partir de 2018.
segurança e à fragilidade da fonte digital, o ALB decidiu
pela manutenção de seus itens em suporte físico, mesmo
depois de finalizada a digitalização.

Como o site institucional do ALB também hospedaria


o acervo digital, optamos por desenvolvê-lo utilizando
a plataforma WordPress, pois além de ser um sistema
conhecido, era possível customizar o site de acordo com
as nossas necessidades. Além disso, consideramos que a
principal vantagem era a possibilidade de incorporação do
Tainacan. Trata-se de um software livre, de código aberto,
desenvolvido pelo Laboratório de Inteligência de Redes Figura 1: Tela de visualização
do acervo com itens da
da Universidade de Brasília (UnB), e que é utilizado para a coleção Imprensa Lésbica

criação de acervos digitais.3 Adiante, abordarei conceitos Fonte: Da autora (2022)

básicos para utilizar o Tainacan.


A decisão de inaugurar o acervo virtual do ALB com a
À medida que o site estava sendo coleção Imprensa Lésbica remete tanto a uma teia de
desenvolvido, a Comissão decidiu qual laços afetivos quanto a uma decisão estratégica. Por um
seria o primeiro fundo documental a ser 3 O plugin também tem lado, a constituição formal do Arquivo se vincula à própria
apoio da Universidade
organizado e disponibilizado ao público. Federal de Goiás (UFG), existência e circulação dos itens que compõem a coleção.
do Instituto Brasileiro de
Intitulado Imprensa Lésbica, o conjunto Informação em Ciência A partir do compartilhamento de materiais e “achados”
e Tecnologia (Ibict) e do
reúne revistas, jornais e boletins produzidos Instituto Brasileiro de Museus de pesquisas em um grupo informal, constituiu-se uma
(Ibram). Para conhecer o
majoritariamente por lésbicas brasileiras Tainacan, acesse seu site. rede profissional e de amizade entre as futuras integrantes
172 A constituição do acervo digital do ALB: procedimentos técnicos e memórias políticas 173

da Comissão Fundadora do ALB. Assim, o lançamento da Estes são compostos por coleções, que por sua vez são
coleção revestia-se de alta carga simbólica. formadas por determinada quantidade de itens – isto
é, uma coleção contém um conjunto de documentos. O
Por outro lado, a escolha era oportuna, considerando que Tainacan permite a configuração das coleções de acordo
se tratava do corpus documental com o qual estávamos com as particularidades de cada tipo de documento.
mais familiarizadas – conhecemos os aspectos materiais
dessas fontes, os temas que abordam, os grupos que A organização de cada coleção se dá por meio de criação
as produziram e afins. Esta familiaridade seria central de metadados, utilizados para determinar as características
para classificar os materiais e inserir as informações e especificidades das informações que serão inseridas
que ficariam disponíveis para os/as usuários/as do junto com o documento original. Portanto, os metadados
acervo digital. definem quais informações sobre o documento estarão
disponíveis para quem for utilizá-lo.
Além disso, o formato desses itens era mais favorável
para a digitalização do que outros materiais, como Dentro de cada coleção, pode-se ajustar quais serão os
livros e cartas, por exemplo. Afinal, materiais desse tipo metadados adotados como opção de filtros. Estes são
demandam cuidados mais específicos em seu tratamento utilizados para selecionar determinados itens baseados em
técnico, além de uma política de divulgação própria, com um metadado específico nas coleções. No caso da coleção
vistas à preservação do direito autoral e à intimidade das Imprensa Lésbica, utilizamos filtros como título, autoria,
figuras envolvidas. procedência, periodicidade e data.

A seguir, abordo alguns conceitos básicos para a utilização


do Tainacan, no que se refere à organização de coleções.
Com isso, pretendo compartilhar o conhecimento que
adquirimos ao utilizar a ferramenta e, quem sabe, facilitar
iniciativas em surgimento4.

O Tainacan consiste em uma ferramenta que


4 Para mais informações,
permite a criação de repositórios digitais. acessar a Wiki do Tainacan.
174 A constituição do acervo digital do ALB: procedimentos técnicos e memórias políticas 175

A inserção de novos itens em uma coleção pode ser feita


basicamente de duas maneiras: individualmente (item
por item) ou em massa (diversos itens de uma só vez) e
diretamente do computador ou por via externa, utilizando
um importador. Além disso, é possível importar itens para
uma coleção utilizando um arquivo “.csv”.

Trata-se de um formato de arquivo utilizado para armazenar


dados e que pode ser importado e exportado de programas
como Excel e Google Planilhas. No Tainacan, cada coluna
do arquivo “.csv” se refere a um metadado específico e
Figura 2: Boletim Visibilidade
exibido no acervo digital cada linha guarda a informação de um item. A vantagem
do ALB
do uso deste tipo de arquivo é a importação em massa de
Fonte: Da autora (2022)
grande volume de informação sobre os itens do acervo.
Por sua vez, as taxonomias são utilizadas para classificar
os itens, como gênero literário, país, idioma etc. Cada Nossa experiência com o Tainacan foi muito positiva, pois
taxonomia possui um conjunto de termos: por exemplo, suas funcionalidades são extremamente versáteis e de fácil
“idioma” pode incluir os termos “português”, “inglês”, uso. A integração com o WordPress é boa, de modo que, do
“espanhol” etc. A ferramenta também permite estabelecer ponto de vista das pessoas visitantes, a navegação pela
uma hierarquia interna entre os termos, o que permite ferramenta é bastante acessível.
incluir resultados com os chamados termos filhos.
Com a criação do acervo digital, o ALB busca, além
Assim, ao fazer uma busca por “carnaval”, por exemplo, de preservar registros históricos de natureza diversa
os resultados incluiriam termos filhos como “carnaval sobre as lesbianidades, contribuir para a
de rua”. Para a coleção supracitada, a taxonomia inclui: 5 É importante destacar democratização do seu acesso a esses itens.
que o ALB não disponibiliza
coletividade, direitos civis, feminismo, homoafetividade os itens de seu acervo para Por isso, todos os materiais estão disponíveis
download, mas apenas para
feminina, homossexualidade, lésbicas feministas, literatura consulta na área restrita do de forma pública e gratuita e o acesso se dá
site, respeitando a Lei de
lésbica, entre outros. Direitos Autorais. mediante cadastro no site5.
176 A constituição do acervo digital do ALB: procedimentos técnicos e memórias políticas 177

Nesse aspecto, é importante pontuar que após No que diz respeito à memória lésbica, pode-se afirmar
digitalizados, os materiais em texto recebem o filtro que a atuação do ALB também contribui para a ampliação
de reconhecimento ótico de caracteres (OCR, na sigla e diversificação das narrativas sobre a atuação de
em inglês), facilitando a busca de palavras dentro dos lésbicas nos campos político, social e cultural. A coleção
documentos. Imprensa Lésbica nos interpela a observar, por exemplo,
a construção da agenda do movimento lésbico brasileiro
Assim, o ALB estimula a realização de pesquisas e as práticas de comunicação alternativa realizadas pelos
dentro e fora da academia. Trata-se de uma maneira grupos ativistas.
de contribuir com a produção de conhecimento
socialmente referenciado. A coleção Arquivo Lésbico Fotográfico, por sua vez, chama
a atenção para as expressões da cultura lésbica nos modos
Convém ressaltar ainda que os esforços do ALB constituem de celebrar o carnaval carioca, com registros do bloco de
uma iniciativa ativista de preservação e divulgação carnaval Sapabloco6.
dos registros históricos das existências lésbicas e que
se insere no campo da construção da memória. Desta Há, ainda, a coleção especial do Clube de Leitura da
maneira, a instituição almeja intervir nas narrativas instituição. Essa é uma iniciativa que promove a cultura,
culturais hegemônicas sobre as lesbianidades, marcadas a memória e a socialização lesbiana, enquanto visa à
por estigmas e preconceitos construídos e reiterados por aceleração do tratamento do acervo bibliográfico da
muito tempo. instituição. Mensalmente, o grupo se reúne para discutir
textos escritos por lésbicas ou que abordem sua existência,
A memória não constitui um relato estanque e acabado contando com o acesso gratuito às obras e à mediação de
sobre o passado, nem é elaborada de forma homogênea. uma convidada especial.
Ao contrário, ela é resultado de um processo coletivo, por
meio do qual as interações entre os sujeitos permitem a Atualmente, o site conta com 197 pessoas cadastradas7.
construção de significados e narrativas compartilhadas. O desafio presente é facilitar a usabilidade,
6 Saiba mais sobre o bloco
Portanto, em sua condição de relato, a memória constitui acessando seu perfil no já que o Tainacan só costuma exibir os itens
Instagram.
um campo de disputa para o estabelecimento de verdades das coleções após clicarmos em “ordenar
7 Última consulta realizada
sobre o passado e para a construção do presente. em 05 de dezembro de 2022. por”. Sem isso, quem acessa o acervo se
178 A constituição do acervo digital do ALB: procedimentos técnicos e memórias políticas 179

depara com um aviso de “erro de sintaxe”. Apesar de o


ALB ter passado o último ano buscando soluções dentro
e fora da wiki do plugin, ainda não conseguiu resolver
esse impasse. Tal limitação não impede a busca, mas
acrescenta uma etapa desnecessária ao processo que
pode desestimular as pessoas interessadas.

Nesse sentido, a Comissão de Acervo e Patrimônio,


liderada pela museóloga, especialista em divulgação
científica e voluntária do ALB, Júlia Botelho Pereira,
estuda a migração dos itens para um outro sistema, nos
moldes da BibliON, inaugurada em junho de 2022 pelo
Governo do Estado de São Paulo8.

Por fim, destaco que, enquanto prática social, a memória


é ao mesmo tempo resultado de um processo coletivo
e constituinte dos sujeitos que a produzem – trata-se
de um caminho de mão dupla. Portanto, a ampliação
do acesso às memórias lésbicas em sua multiplicidade
permite que lésbicas e demais pessoas possam se
reconstituir enquanto sujeitos, transformando sua forma
de habitar e compreender o mundo.

8 Para saber mais, acesse


o artigo BibliON, biblioteca
digital em forma de app, é
inaugurada com 15 mil livros
em SP.
181

REFLEXOES E
DESAFIOS PARA
SALVAGUARDAR
MEMÓRIAS LGBTQIA+
EM RONDONIA
Lauri Miranda Silva

Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História pela


Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e graduanda em
Serviço Social (UNINTER). Email: laurifenty@gmail.com.
182 Reflexões e desafios para salvaguardar memórias LGBTQIA+ em Rondônia 183

Introdução A construção da memória LGBTQIA+ em


Rondônia a partir do Camaleão
Os estudos sobre gênero e diversidade sexual, apesar
de muitos avanços, ainda são marginalizados na ciência Este tópico é resultado de minha monografia de
brasileira. A resistência ao debate sobre esses assuntos nas bacharelado intitulada Ong Tucuxi na luta contra o
universidades pode ser explicada não só por questões de preconceito e pelo reconhecimento da cidadania LGBT em
escolha pessoal da parte da/do pesquisadora/pesquisador Porto Velho (2003 a 2009)1, em que me dediquei a um recorte
de temas a serem problematizados no campo científico, histórico sobre o primeiro movimento homossexual em
mas também em função de uma cisheteronormatividade Porto Velho, denominado Camaleão, que surgiu em meados
institucional e epistêmica relativa ao assunto. Isso vai ao dos anos 1990, no contexto da explosão da contaminação
encontro do que Pierre Bourdieu (1983) comenta sobre os pelo vírus do HIV/Aids.
campos de saberes, que, em sua cientificidade, partem
de interesses particulares e/ou pessoais, e de pressões Camaleão era um bar alternativo, que se situava na zona
institucionais e conservadoras. norte da capital, no bairro Liberdade. O espaço tinha
uma decoração psicodélica, era meio diferente de outros
A exposição e reflexão aqui expostas nascem da espaços de sociabilidade gays que existiam em Porto
vontade de conhecimento e diálogo a partir de um corpo Velho nos anos 1990. Era um lugar onde se ouvia as divas
com marcadores sociais, carregados de opressões da música popular brasileira, como, por exemplo, Maria
interseccionadas, como também um corpo que é Bethânia e Marisa Monte. No bar também acontecia a Noite
subversivo e transgressor. Eu sou uma mulher trans do Cupido, de paquera, mas também rolavam conversas
afroamerindígena, ribeirinha, cabocla, nortista, amazônida, sobre as questões de preconceitos e discriminações.
rondoniense, professora, atualmente doutoranda em Era frequentado por gays, lésbicas e
História e graduanda em Serviço Social. São desses lugares 1 SILVA, Lauri. Miranda. “simpatizantes”, naquele momento usava-se a
Ong Tucuxi: na luta contra
que este texto foi fabricado para pensarmos a ausência de o preconceito e pelo sigla GLS.
reconhecimento da cidadania
acervos e museus LGBTQIA+ em Rondônia. LGBT em Porto Velho. 2010.
108f. Trabalho de Conclusão
de Curso (Graduação Então, um grupo de amigas/os sensibilizadas/
em História) – Fundação
Universidade Federal de os com a situação de exclusão social e a
Rondônia/UNIR, Porto
Velho, Rondônia. perda de muitas pessoas próximas no início
184 Reflexões e desafios para salvaguardar memórias LGBTQIA+ em Rondônia 185

da epidemia iniciou debates, discussões a respeito do HIV/ geral do referido trabalho foi analisar historicamente a
Aids que se alastrava no Brasil. Começaram a organizar e mencionada instituição e as suas ações para a comunidade
criar as primeiras estratégias de resistência aos estigmas, LGBTQIA+, de 2003 até 2009, averiguar as contribuições
discriminações e exclusões contra homossexuais na época. dos projetos sociopolíticos por lá desenvolvidos na luta
As/os integrantes do Camaleão eram muitos jovens ainda, contra a LGBTfobia e a criação de políticas públicas
mas começaram a entrar nas universidades, e, assim, o voltadas para esse segmento. Contudo, não realizei
grupo foi ganhando dimensão. entrevistas com as/os militantes na época, devido ao curto
prazo do bacharelado, e, também, pelas especificidades
A partir desses encontros, homossexuais que metodológicas do trabalho.
frequentavam tanto o bar quanto as reuniões para discutir
a disseminação da epidemia começaram uma articulação Percebi que ficaram algumas lacunas, e elas abriram
para criar uma instituição não governamental, até porque o brechas para a continuidade da pesquisa. Assim que eu
grupo não tinha um caráter institucional. terminei o curso de História, em 2011, fui direto assumir
meu primeiro concurso público efetivo para o cargo de
É somente em 2003, após a participação em um professora municipal no interior de Rondônia, em Ouro
treinamento proporcionado pelo Projeto SOMOS na cidade Preto D’Oeste, para “alegria” do cistema3, onde trabalhei em
de Belém, de um dos membros do extinto grupo Camaleão, escolas localizadas na zona rural e zona urbana até 2013.
que se deu andamento à ideia de institucionalizar o Grupo
Tucuxi – Núcleo de Promoção da Livre Orientação Sexual.2 Um ano antes, fiz outro concurso público para a Secretaria
A instituição adotou uma nova filosofia, não somente o Estadual de Educação de Rondônia (SEDUC RO), e me
combate à epidemia do HIV/Aids, como objetivava o grupo preparei para ingressar no mestrado em História e Estudos
Camaleão, mas sim, também, a defesa da cidadania e dos Culturais na Universidade Federal de Rondônia (UNIR),
direitos dos LGBTQIA+. passei nos dois para a tristeza do cistema, e
3 De acordo com Vergueiro
(2016), o cistema- retornei à capital para continuar trabalhando,
mundo é ocidentalizado/
A minha pesquisa monográfica foi realizada a partir cristianocêntrico, moderno/ estudando e me autoatualizando.
colonial e capitalista/
de análise documental de atas, relatórios, projetos, patriarcal, e produz
hierarquias epistêmicas
cartilhas, folders e imagens coletadas no nas quais perspectivas não A minha dissertação de mestrado teve por
2 Infelizmente, a Ong Tucuxi cisgêneras são excluídas,
acervo da extinta ONG Tucuxi. O objetivo encontra-se desativada. minimizadas e/ou silenciadas. intuito investigar e analisar como os estudos
186 Reflexões e desafios para salvaguardar memórias LGBTQIA+ em Rondônia 187

multidisciplinares de gênero construíram representações momento eu havia encontrado apenas 12 dissertações que
de mulheres e LGBTQIA+ na UNIR entre os anos de 1990- abordavam gênero e/ou sexualidade.
20104. O trabalho foi construído a partir do levantamento
bibliográfico na instituição (artigos, relatórios de iniciação Somente no início do século 21 que se iniciaram os debates
científica, resumos expandidos, monografias, dissertações, sobre a questão da sexualidade e identidade de gênero nos
teses e capítulos publicados em livros). estudos de gênero da UNIR. O primeiro trabalho encontrado
foi realizado por Eloíse L. Siqueira, graduada em Psicologia,
Os estudos de gênero e sexualidade na Universidade cujo Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) recebeu o título
Federal de Rondônia iniciaram-se em meados da década A História da Subjetividade em Torno do Homoerotismo.
de 1990 com pesquisas de iniciação científica e artigos
que tiveram como figura de análise a mulher na Amazônia Ainda assim, até o ano de 2010 foram apenas quatro
Ocidental, mas especificamente a mulher ribeirinha trabalhos relacionados a pesquisas sobre LGBTQIA+ em
que vive nas comunidades amazônicas. A partir dessa Rondônia. Entre esses estudos, fora o que já foi citado,
década, várias/os pesquisadoras/es surgiram no cenário há outro TCC de Psicologia intitulado A Psicanálise, e o
acadêmico para explorar a temática de dissidentes, Transexualismo e a Clínica Estrutura, publicado em 2006.
preocupados com as relações de gênero em Rondônia, no Outro estudo, mais denso e que será tratado mais adiante,
tocante a políticas públicas e no combate a violência de é a dissertação de mestrado As contribuições linguísticas
minorias no estado. dos povos de religião de matrizes etno-africana na formação
da linguagem de homossexuais em Porto Velho – Rondônia
Encontrei 75 trabalhos sobre a temática de gênero, publicada em 2010. E eu, preocupada com a discriminação
sexualidade e feminismo, em sua maioria escrita por e violência contra a comunidade LGBTQIA+ em Porto
mulheres nos cursos de graduação de Velho, realizei minha pesquisa de bacharelado no curso de
4 SILVA, Lauri Miranda.
Enfermagem, Psicologia, Geografia, História, Revelações e ocultamentos: História, já mencionada anteriormente.
as representações de
Ciências Sociais e Pedagogia. Já nos gêneros nos estudos
multidisciplinares realizados
programas de pós-graduação pertencentes à na Universidade Federal de Constatei uma ausência e/ou um silêncio, uma
Rondônia (1990-2010). 2015.
instituição ( mestrado em Geografia, mestrado 162 f. Dissertação (Mestrado invisibilidade na produção de uma escrita acadêmica
em História e Estudos
em Ciência da Linguagem e mestrado Culturais) – Universidade sobre LGBTQIA+ nos estudos e pesquisas em Rondônia.
Federal de Rondônia, Porto
em Desenvolvimento Regional), naquele Velho, 2015. Nesse sentido, unificada com as/os poucas/os intelectuais
188 Reflexões e desafios para salvaguardar memórias LGBTQIA+ em Rondônia 189

(re) existentes dos estudos dissidentes no estado, Tal situação deixa transparecer a desconfiança
continuamos pesquisando e sensibilizando tanto a que ronda a produção teórica dessas profissionais,
sociedade quanto a academia no tocante aos estudos colocando sob suspeita não apenas a legitimidade
LGBTs e de mulheres nos estudos regionais. O presente de suas pesquisas, mas também a capacidade de
texto é uma contribuição nesse sentido. atuação [...] (OLIVEIRA, 2020, p. 154).

Como eu queria muito dar prosseguimento à minha O ato de narrar e/ou pesquisar sobre si e sobre as/os
formação acadêmica e, infelizmente, em Rondônia não nossas/os companheiras/os implica em uma refutação
temos doutorado na área de História, me restavam duas da historiografia tradicional contra a hierarquização de
opções: dar uma pausa nos estudos e me dedicar somente saberes e sociais ainda existentes no campo da história.
à docência no ensino básico ou me inscrever para seleção Igualmente, Megg Rayara Gomes de Oliveira, ao investigar
em doutorados na área de história de outras regiões do país. genealogicamente travestis e transexuais negras no Brasil
e na África até o século 19, deixa claro que há diversas
Então, escolhi a segunda opção e me joguei sem medo, situações que desfiguram e deslegitimam as percepções
mas receosa por não conhecer ninguém nas instituições. sobre as existências trans, sobretudo nas produções
Tentei duas vezes ingressar. O processo de seleção de travestis, transexuais e transgêneras/os sobre a
em algumas universidades não é tão fácil, ainda mais coletividade em que se inserem.
para quem é de fora. Além disso, em se tratando de
pesquisadoras/es trans, ainda há certa desconfiança de Precisamos ser otimistas e se jogar. Eu vi no Programa de Pós-
nossa capacidade intelectual. Parece que não somos Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande
capazes de produzir e fazer ciência como qualquer pessoa do Sul (PPGH/UFRGS) uma grande oportunidade de galgar
cisgênera. Megg Rayara Gomes de Oliveira argumenta: os mais altos lugares do conhecimento e, ao mesmo tempo,
uma estratégia de ingressar via ação afirmativa (cotas), que
Quando conseguimos um espaço na academia, vejo como um meio indispensável para um possível reparo
‘os poucos pesquisadores e pesquisadoras trans histórico de nosso seguimento na educação brasileira.
sofrem questionamentos velados quanto à sua
inserção’ [...], principalmente quando estudam o Travestis e transexuais são minorias nas universidades
universo onde estão inseridas. públicas. Um levantamento realizado em 2019 pela
190 Reflexões e desafios para salvaguardar memórias LGBTQIA+ em Rondônia 191

Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições comportamento, nas práticas socioculturais,
Federais de Ensino Superior (Andifes) nos mostra que o oferecem novos desafios éticos, estéticos [...]
número de graduandas/os LGBTQIA+ é 16,4%, em um país faz-se urgente não apenas para a população
com 63 universidades públicas e 424 mil estudantes. As/ trans, mas, definitivamente, para enfrentar a crise
os que se declararam graduandas/os trans constituem uma democrática e institucional que vivemos (YORK,
porcentagem infelizmente muito menor: 0,02% do total5. 2020, p. 19).

Nesse sentido, a universidade pública continua sendo Então, me inscrevi e fui aprovada. Migrei da minha querida
um espaço de estudantes cishéteras/os, mesmo com a região Norte para a região Sul desse país. Onde aqui
criação de algumas ações afirmativas voltadas à inclusão me estabeleci para dar continuidade à minha formação
e inserção de pessoas trans através do sistema de cotas acadêmica, onde fui muito bem acolhida por parte
em instituições federais. Há ainda resistência por parte do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, e, claro,
da comunidade acadêmica e de grupos conservadores e pelo PPGH.
LGBTQIfóbicos (dentro e fora da universidade) na maioria
dos estados do Brasil com relação ao sistema de cotas Eu ingressei no doutorado com uma proposta de pesquisa
para negros, pardos, indígenas, quilombolas, pessoas inicial, mas, no decorrer do curso, surgiram novas
com deficiência e trans, grupos que historicamente foram “descobertas” em torno do projeto e das leituras, e,
excluídos do sistema educacional brasileiro. Porém, Sara com isso, ela ganhou novos contornos através das novas
Wagner York ressalta: perspectivas teórico-metodológicas das disciplinas
cursadas. Recebi influências também do meu estágio
Mesmo com resistências por parte da academia e docente e, com as bem-vindas orientações do meu
de grupos conservadores [...] Ações afirmativas orientador, o projeto se reconfigurou, ou seja, novos
nas universidades (ou na pós), como cotas para elementos extremamente necessários e significativos
travestis e transexuais [...] vem passaram a fazer parte do trabalho.
gerando impactos e avanços na
educação superior (e com importante Nesse sentido, percebi a necessidade e a importância
5 Confira o artigo Ao
impacto para a educação básica). menos 12 universidades em dar continuidade à pesquisa, mantendo-a numa
federais do país têm cotas
Elas auxiliam na mudança de para alunos trans. perspectiva de resistência acadêmica, a fim de contribuir
192 Reflexões e desafios para salvaguardar memórias LGBTQIA+ em Rondônia 193

para o debate historiográfico em torno das relações Um dos desafios da construção de acervos LGBTQIA+
de gênero e diversidade sexual na história. E, não em Rondônia é a pouca documentação encontrada em
somente isso, mas também ampliar as discussões acerca arquivos, bibliotecas e na imprensa sobre a existência e
dos estudos sobre os movimentos de mulheres e/ou resistência de nossos corpas/corpos, o que corrobora
feministas e os movimentos LGBTQIA+ em Rondônia, por para um ocultamento dessa população na historiografia
perceber que eles têm um inimigo em comum: o sistema regional e nacional, bem como para a criação de espaços
de dominação que discrimina, exclui e oprime essas/ institucionais de memória e museologia dissidentes. Mas
es sujeitas/os, por meio de diversas formas de violência já percebemos alguns avanços nesse sentido. Logo, tenho
que atravessam e corroboram para as desigualdades trabalhado no doutorado a partir de uma concepção da
sociais no estado. pesquisa situada e interseccional, e de narrativas orais
para a criação de fontes, assim como para salvaguardar
É nesse contexto que tenho lutado para salvaguardar memórias subterrâneas e transgressoras.
nossas memórias, é um projeto não somente acadêmico,
bem como de vida, e está relacionado com as diversas Nesse sentido, penso em uma história subversiva para
formas de opressão interseccionadas que sofri durante transformar as nossas vivências em textos ao tecermos
a minha infância até a fase adulta, a partir das minhas relatos de vidas, de luta e de resistência ao cistema em
vivências e experiências de vida enquanto mulher trans Rondônia, por meio de entrevistas (registradas em áudio
afroamerindígena, professora, historiadora e militante e vídeo, e por escrito). Entrevistas essas pautadas no
acadêmica. Noto, ainda, como o cistema acadêmico a engajamento, nas ações socioculturais, na localização
forma como ainda opera com relação aos estudos LGBTs+ social, nas vivências e experiências de travestis e mulheres
e de mulheres na historiografia na Amazônia Ocidental, trans, visando a constituição de (micro)biografias e
mesmo já percebendo alguns avanços. (micro)autobiografias.

Contudo, diante de tudo que foi exposto até aqui, fincar Tenho por intuito compartilhar algumas das experiências
meus lugares sociais e das/dos colaboradoras/es desta e ações das/dos personagens que tiveram um
pesquisa é legitimar nossas lutas, nossas vozes, (re) reconhecimento e relevância social coletiva, em
existências individuais e coletivas nos espaços de poder, na determinado tempo e espaço histórico, a partir de
sociedade, na história e na memória. diálogos com pessoas próximas das (micro)biografadas,
194 Reflexões e desafios para salvaguardar memórias LGBTQIA+ em Rondônia 195

da imprensa e de outras fontes que têm me ajudado na amazônica. A primeira justificativa para esse
construção dos textos, em respeito à memória e à história procedimento diz respeito à escassez de fontes escritas
daquelas/es que vieram antes de nós. relativas aos sujeitos em estudo, pois, infelizmente, temos
poucas documentações escritas para um estudo de
A (micro)autobiografia pode ser entendida como um memória e história LGBTQIA+ em Rondônia. Afinal, como
novo fazer na historiografia, na qual escrevo e relato a afirma Magali Engels:
minha história de vida e as das/dos colaboradoras/es
da tese, não em um sentido ficcional, mas sim a partir [...] a ausência ou escassez de documentos
de narrativas construídas ao longo da pesquisa, dos diretamente produzidos pelos camponeses, pelos
ditos e dos não ditos. É o “eu” em processo de (des) artesãos, pelos operários, pelas mulheres, pelos
construção e legitimação de saberes, pois falar de nós homossexuais, enfim, pelos setores dominados ou
mesmas/os enquanto pessoas fora da cisnorma6 não é marginalizados nas diferentes sociedades, coloca-
necessariamente difícil, mas com certeza é desafiador se como um primeiro obstáculo ao historiador
e subversivo. (ENGELS, 1997, p. 443).

(Micro)biografias e (micro)autobiografias são pensadas e O recurso a essa metodologia, contudo, é buscado aqui não
fabricadas a partir de narrativas de experiências vividas, só pela raridade de fontes escritas e imagens, mas também
não são histórias inventadas, e sim lembranças de pela perspectiva mais geral adotada neste trabalho. Creio
determinados momentos de vidas em tempos específicos, que o desenvolvimento da história oral permitiu, junto a
do modo pelo qual as/os sujeitas/os existenciais as criam, outras transformações teóricas e metodológicas, uma
constroem, desfazem, cortam e recortam. A mudança de enfoque nas pesquisas históricas, quebrando
6 Trata-se de um conceito
subjetividade é fundamental nesse processo. que ganha abrangência uma visão rígida da objetividade do fato histórico. Com isso,
nas produções acadêmicas
brasileira na segunda década abriu a possibilidade de recuperação de maneiras diversas
do século XXI e denota a
Tenho utilizado o procedimento metodológico “normalidade” que legitima de viver a história, conforme o gênero, a idade, a classe, a
como saudáveis, naturais e
da história oral de vida, para contribuir na verdadeiras apenas as raça e a sexualidade, entre outros marcadores sociais.
pessoas que se identificam
construção das (micro)autobiografias e com o sexo que lhes foi
designado ao nascimento,
discussões de assuntos que são poucos sempre assumindo a Em Manual de História Oral, José Carlos Sebe Bom Meihy
binariedade homem/mulher.
estudados e pesquisados na historiografia (BONASSI, 2017). comenta que a história oral é um recurso moderno usado
196 Reflexões e desafios para salvaguardar memórias LGBTQIA+ em Rondônia 197

para a elaboração de documentos, arquivamentos e participantes imprescindíveis, sem os quais este trabalho
estudos referentes à experiência social de pessoas e de não seria possível.
grupos. Para o autor, “ela é sempre uma história do tempo
presente e, também, reconhecida como história viva” A história de vida é pensada enquanto perspectiva que
(MEIHY, 2005, p. 17). Já Michael Pollak ressalta: explora as relações entre memórias, histórias, narrativas e
textos, desta vez rompe com os paradigmas estruturalistas,
Aplicada à memória coletiva, essa abordagem redefinindo as relações entre passado e presente. Nela, as
irá se interessar portanto pelos processos e narrativas são consideradas construções localizadas dos
atores que intervêm no trabalho de constituição sujeitos de sua própria identidade e subjetividade. Por isso,
e de formalização das memórias. Ao privilegiar leva-se em consideração não somente as informações
a análise dos excluídos, dos marginalizados contidas nos relatos, mas o próprio modo de narrar.
e das minorias, a história oral ressaltou a
importância de memórias subterrâneas que, Portanto, busco nas histórias de vida das/dos militantes
como parte integrante das culturas minoritárias LGBTQIA+ as experiências, a construção de suas memórias,
e dominadas, se opõem à “Memória oficial”, no de suas identidades, das lutas e das resistências desse
caso a memória nacional. Num primeiro momento, segmento em suas narrativas contra o cistema de
essa abordagem faz da empatia com os grupos dominação. É dessa forma que tenho aplicado o método,
dominados estudados uma regra metodológica e com a finalidade de apreender o cruzamento entre gênero,
reabilita a periferia e a marginalidade. (POLLAK, classe, raça, geração e sexualidade das/dos militantes,
1989, p. 2, grifo nosso). bem como as experiências, as dificuldades, o vivido,
a subjetividade e os elementos de sociabilidade que
Nesse sentido, a importância de um trabalho com um grupo constituem as suas (micro)autobiografias.
de dissidentes vai além do simples “resgate do oprimido”
ou de uma “história dos excluídos”. Essa metodologia A oralidade constitui um meio imprescindível para
deixa as/os nossas/os “colaboradora/es” bem mais perto compreender a realidade das/dos colaboradoras/es que
de nós, revolucionando o papel das/dos entrevistadas/os participam do meu trabalho de doutorado, especialmente
ao colocá-las/los no centro da pesquisa, não mais como os sentidos e significados presentes durante a relação
simples depoentes, mas como efetivos colaboradoras/es, dialógica que se dá no momento das entrevistas.
198 Reflexões e desafios para salvaguardar memórias LGBTQIA+ em Rondônia 199

No que diz respeito às dimensões políticas e éticas, e nos jornais impressos e on-line, e das instituições
por se tratar diretamente das vivências e singularidades representativas de cada militante como: matérias da
das minhas personagens LGBTQIA+ que contribuem imprensa, imagens e vídeos, bem como das redes sociais
e contribuirão da tese, há o respeito aos lugares de e blogs de coletivos e Organizações Não Governamentais
fala (RIBEIRO, 2019) de cada uma, e aos seus saberes (ONGs).
localizados (HARAWAY, 1995), afirmando, por meio disso,
um compromisso e engajamento com uma história A respeito das etapas metodológicas deste trabalho
de dissidentes na luta contra as diversas opressões que estão em andamento, destaco que as entrevistas
interseccionadas e desigualdades sociais em prol dos têm sido transcritas, textualizadas e transcriadas9,
direitos humanos. Tenho muitas expectativas com relação sendo que esta é a última etapa da transcrição, na qual
ao retorno social da minha pesquisa. Parafraseando a o meu comprometimento é o de recriar um texto em
historiadora Fabíola Holanda7, suponho que sua plenitude. Desse modo, há a interferência da/do
tenho alguns caminhos de possibilidades. 7 É Doutora em História pesquisadora/or no texto, já que pode ser refeito algumas
pelo Programa de Pós
Um deles é a história pública, ao pensar em Graduação em História Social vezes, pois tudo deve obedecer a acertos combinados com
da USP. Tem experiência
uma história oral que reconheça e legitime o na área de História, com a/o colaboradora/or, que vai legitimar o texto no momento
ênfase em História Oral,
processo de construção das narrativas e que atuando principalmente nos da conferência.
seguintes temas: História
tenha concepções epistemológicas claras Oral e Narrativas em Saúde
e Memória Institucional.
através da colaboração, mediação, dimensão Métodos qualitativos em Considerações
Pesquisa, Prática de pesquisa
pública do texto e demais materiais produzidos em História. E atualmente
atua como docente do Curso
enquanto documentos, procurando romper os de Odontologia e Medicina Ao expandir as possibilidades do que tenho estudado
na Faculdade São Leopoldo
muros da academia (HOLANDA, 2006). Mandic -Campinas/Araras, e pesquisado, vejo também o desejo de fazer um
do Núcleo de Formação
Geral e como Orientadora e documentário com os materiais que estão
facilitadora pedagógica no 9 Há a interferência da/
Já realizei algumas entrevistas presenciais em Núcleo de Apoio Discente do pesquisadora/or no em minha posse, até como forma de divulgar
e Experiência Docente- texto, já que esse pode
áudio e vídeo e tenho obtido informações via NAPED/MANDIC ser refeito algumas vezes, e salvaguardar o trabalho e a história de vida
pois tudo deve obedecer a
redes sociais com militantes que ainda não 8 A minha proposta inicial acertos combinados com das/dos militantes, pensando em uma história
era entrevistar dez militantes, a/o colaboradora/or, que
foram entrevistadas/os devido à pandemia mas pelos problemas nos vai legitimar o texto no oral e uma história pública construtivas, que
quais estamos vivenciando momento da conferência
da Covid-198. Além disso, tenho feito e pelas questões de duração fazendo correções e viabilizem um retorno social e reconhecimento
do trabalho, consegui realizar complementações,
levantamentos e análises de documentos oito entrevistas. se necessárias. dessas/es sujeitas/os transgressores.
200 Reflexões e desafios para salvaguardar memórias LGBTQIA+ em Rondônia 201

Referências bibliográficas
É de extrema necessidade pesquisar, escrever e
documentar a partir dessas narrativas e das observações AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen, 2019.

que estão e/ou serão feitas, da escuta e compreensão dos BONASSI, Brune Camillo. Cisnorma: acordos societários sobre o sexo
binário e cisgênero. 2017. 123 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) –
ditos e não ditos, o mundo vivido, a experiência, a luta,
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2017.
a resistência, a conexão entre ambos os movimentos, a
BOURDIEU, Pierre. O campo científico. In: ORTIZ, R. Coleção Grandes
subjetividade e a formação da identidade desses militantes Cientistas Sociais. São Paulo: Editora Ática, 1983.

no lugar e no espaço que ocupam, com visibilidade e ENGELS, Magali. História e Sexualidade. In: CARDOSO, Ciro Flamarion;
VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da história: ensaios de teoria e
representatividade às lutas do movimento LGBTQIA+ na
metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p. 430-450.
história contra as opressões do cistema cisheteropatriarcal.
HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o
feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, (5),
1995. p. 7-41. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.
Pretendo com o meu trabalho colaborar no debate
php/cadpagu/article/view/1773. Acesso em: 11 novembro 2021.
relacionado à questão da diversidade sexual, das relações
HOLANDA, Fabíola. Experiência e Memória: a palavra contada e a palavra
de gênero na história para pensarmos na possibilidade cantada de um nordestino na Amazônia. 2006. 182 f. Tese (Doutorado em
História Social) - Universidade de São Paulo - USP, São Paulo. 2006.
e construção de acervos LGBTQIA+ na Amazônia
MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de história oral. São Paulo: Loyola,
Ocidental. Por fim, negligenciar histórias e vivências
2005.
LGBTQIA+ é apagar a nossa existência, é corroborar com
OLIVEIRA, Megg Rayara Gomes de. Nem ao centro, nem à margem!
a marginalização de sujeitas/os transgressoras/es nos Corpos que escapam às normas de raça e de gênero. Salvador: Editora
Devires, 2020.
campos dos saberes, precisamos mudar e revolucionar
POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos históricos, RJ,
a forma como opera a produção e divulgação do
Vol. 2, n. 10, 1992.
conhecimento brasileiro.
________________. Memória, esquecimento e silêncio. Estudos Históricos, Rio
de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.

RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.

SILVA, Lauri. Miranda. Ong Tucuxi: na luta contra o preconceito e pelo


reconhecimento da cidadania LGBT em Porto Velho. 2010. 108f. Trabalho
de Conclusão de Curso (Graduação em História) – Fundação Universidade
Federal de Rondônia/UNIR, Porto Velho, Rondônia.

SILVA, Lauri Miranda; SCHMIDT, Benito Bisso. Conquistas e desafios: as


políticas públicas para a comunidade LGBTIQ+ no Brasil, em especial
na cidade de Porto Velho/RO, do final da década de 70 aos dias atuais.
In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – ANPUH/Brasil, 30, 2019, Recife.
202 Reflexões e desafios para salvaguardar memórias LGBTQIA+ em Rondônia 203

SILVA, Lauri Miranda. Revelações e ocultamentos: as representações


de gêneros nos estudos multidisciplinares realizados na Universidade
Federal de Rondônia (1990-2010). 2015. 162 f. Dissertação (Mestrado em
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VERGUEIRO, Viviane. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades


de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade
como normatividade. 2015. 244 f. (Dissertação de Mestrado) – Instituto
de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos, Universidade
Federal da Bahia, Salvador, 2015.

YORK, Sara Wagner. TIA, VOCÊ É HOMEM? Trans da/na educação:


des(a)fiando e ocupando os “cistemas” de Pós-Graduação. 2020. 185 f.
Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2020.
205

REFLEXOES MUSEOLÓGICAS
SOBRE A FORMACAO DO
ACERVO ASSOCIACAO DE
TRAVESTIS UNIDAS NA LUTA
PELA CIDADANIA (UNIDAS),
EM SERGIPE
Douglas Santos Neco e
Rafael dos Santos Machado.

Douglas Santos Neco é Bacharel em Museologia, Mestrando


em Arqueologia e Licenciado em História;

Rafael dos Santos Machado é Bacharel e Mestre em Museologia


e Licenciado em História.
206 Reflexões museológicas sobre a formação do acervo Unidas 207

O presente texto tem como objetivo apresentar um Introdução


debate a respeito da existência de acervo LGBT em
Sergipe, tendo como exemplo a formação do acervo da No mês de junho rememoramos o Orgulho LGBT2, em
primeira organização não governamental de pessoas alusão ao episódio denominado Revolta (ou Rebelião) de
trans e travestis de Sergipe, a Unidas1. Considerando o Stonewall, ocorrido em 28 de junho de 1969, em Nova
fenômeno em questão enquanto processo de consciência, York, nos Estados Unidos. O dia em questão é considerado
necessidade e importância de preservar os suportes de um marco histórico no que diz respeito à representação
memória como parte indissociável dos fragmentos da simbólica da luta organizada pelos direitos civis e sociais
memória da sociedade em que estão inseridas. Diante da dessa comunidade, quando frequentadores/as LGBT do
realidade do cenário nacional sobre LGBTfobia museológica bar Stonewall inn, cansados/as da violência e perseguição
destacada por Tony Boita (2020), é fundamental policial de modo reiterado, decidiram resistir e enfrentar
ressaltarmos as iniciativas culturais e espaços de as violências físicas e prisões ocorridos no local, sob
memórias que propõem positivação das memórias LGBT protagonismo de pessoas como Marsha P. Johnson,
em superação das LGBTfobias e da transformação social. O travesti, preta, trabalhadora do sexo, artista drag queen
percurso metodológico do trabalho envolveu levantamento e ativista, e Sylvia Lee Rivera, filha de imigrantes latinos,
literário, entrevista semiestruturada e consiste em uma entre outras/os imigrantes. O referido fato
abordagem qualitativa. 2 A sigla aqui adotada provocou uma eclosão do movimento LGBT em
refere-se a Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Travestis, todo o mundo.
Transexuais e Transgêneros.
Em 2009, a sigla LGBT
foi usada nos debates e
ações de políticas públicas Em junho de 2022, um desabafo publicado
efetivadas pelo Estado
Brasileiro, situada na pelo primeiro grupo organizado por pessoas
proposta do Programa
Brasil sem Homofobia, sem trans de Sergipe, o Unidas, por meio de
desconsiderar as diversas
sexualidades e identidades sua conta institucional na rede social3, nos
de gênero não normativas e/
ou dissidentes, que, inclusive, chamou a atenção. De modo geral, o conteúdo
previu ações voltadas para a
1 Unidas refere-se a
preservação de acervos e da publicado destaca a importância do lembrar -
memória LGBT, inspirado nas
Associação de Travestis
Unidas na Luta pela
justificativas de Tony Boita memória - os processos de luta, resistências,
(2020).
Cidadania, o termo é
utilizado como nome
pioneirismo e protagonismos de lideranças e
3 Conferir seu perfil
fantasia da entidade.
do Instagram. organizações coletivas em prol dos direitos
208 Reflexões museológicas sobre a formação do acervo Unidas 209

civis da comunidade LGBT. Bem como, discursa. Da mesma de comunicação e informação, como a internet
forma, evidencia a atuação social e política do grupo ao (GOHN, 2011, p. 335-336).
longo dos anos na luta por espaços e respeitabilidade das
pessoas trans na sociedade sergipana e que tem sido alvo Em uma perspectiva museológica, o presente texto aborda
de críticas reducionistas a uma atuação restrita à entrega a existência e formação do acervo da primeira associação
de cestas básicas. de pessoas trans e travestis de Sergipe, a Unidas. Desse
modo, busca-se evidenciar como essa memória trans,
Diante da exposição situacional e investida discursiva, bem como a LGB, tem sido negligenciada nos processos
compreendemos em seu sentido concreto e subjetivo de gestão, salvaguarda e preservação museológica em
a importância social e política desempenhada pelos Sergipe e no Brasil.
espaços de memória na dinâmica das relações sociais
contemporâneas, alinhada aos processos de reivindicação, Nuances do cenário das instituições
informação e conhecimento. Museológicas em Sergipe e no Brasil

Para compreensão sobre a relevância dos movimentos De acordo com o último mapeamento publicado pelo
sociais, partilhamos do entendimento da pesquisadora Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) no ano de 2011, o
Maria Gohn (2011): estado de Sergipe possuía 25 instituições museológicas
registradas no Cadastro Nacional do órgão. E entre os 75
Nós os encaramos como ações sociais coletivas de municípios que compõem o território sergipano, somente
caráter sociopolítico e cultural que viabilizam formas sete4 estão contemplados, incluindo a capital Aracaju,
distintas de a população se organizar e expressar que concentra 60% das instituições. Ainda de acordo com
suas demandas (cf. Gohn, 2008). Na ação concreta, o mapeamento do Ibram, 80% dos museus
4 Aracaju, Areia Branca,
essas formas adotam diferentes estratégias que Boquim, Estância, Frei Paulo, sergipanos são geridos pelo poder público
Laranjeiras e São Cristóvão.
variam da simples denúncia, passando pela pressão (50% pela esfera estadual, 20% pelo governo
5 Para além de obter
direta [...] Na atualidade, os principais movimentos informações sobre os federal e 10% pela gestão municipal) e os demais
museus brasileiros, a
sociais atuam por meio de redes sociais, plataforma permite que 20% são fracionados pela iniciativa privada.
o usuário possa indicar
locais, regionais, nacionais e internacionais ou instituições museológicas Mas na Plataforma Nacional de Identificação
não cadastradas e
transnacionais, e utilizam-se muito dos novos meios atualização de informações. de Museus5, disponibilizada pelo Ibram desde
210 Reflexões museológicas sobre a formação do acervo Unidas 211

2015, constam 30 instituições museológicas de Sergipe de violências contra a comunidade LGBT6. Diante disso,
cadastradas. podemos observar a negligência do Estado e das
gestões institucionais dos museus como destacado pelo
O estado sergipano não é uma curva diante a realidade referido pesquisador.
dominante do país, no que tange às invisibilidades de
nossas memórias e histórias passíveis de ser representadas Prova disso, no dia 29 de abril de 2022 o Museu da
e positivadas nos espaços públicos oficiais de memórias, o Diversidade Sexual teve que fechar as portas do espaço
fato é que: institucional por decisão judicial e tempo indeterminado,
quando seria inaugurada a exposição “Duo Drag”,
No Brasil, existem mais de 3.000 (mil) museus e composta a partir de acervo fotográfico7. A liminar da
menos de 1% desenvolvem ou já desenvolveram justiça atendeu a uma ação judicial promovida pelo
alguma ação voltada à comunidade LGBT deputado estadual por São Paulo conhecido como
nos últimos 10 anos. Ao todo identifiquei 46 “Carteiro Reaça”, questionando o contrato de gestão do
instituições museológicas que desenvolveram Museu firmado entre o governo estadual e a organização
ações destinadas a essa comunidade. Além social Instituto Odeon (responsável pela gestão do espaço
disso, há no Brasil, três museus exclusivos para institucional). Após quatro meses, a justiça
a comunidade LGBT: o Museu da Diversidade, 6 De acordo com o Relatório suspendeu a decisão provisória por meio do
do Grupo Gay da Bahia (2021)
em São Paulo, e o Instituto de Arte e Cultura “300 LGBT+ sofreram morte parecer emitido do Ministério Público e, no dia
violenta no Brasil em 2021,
LGBT em Brasília, além do Museu da Sexualidade, 8% a mais do que no ano 2 de setembro de 2022, o equipamento cultural
anterior: 276 homicídios
o qual mantém suas portas fechadas (BOITA, (92%) e 24 suicídios (8%). O reabriu as portas e inauguração da amostra,
Brasil continua sendo o país
2020, p. 110). do mundo onde mais LGBT permanecendo o contrato legal de gestão com
são assassinados: uma morte
a cada 29 horas” (p. 2). o Instituto Odeon.
Para o museólogo e pesquisador Tony Boita (2022), os 7 Agência de Notícias da
AIDS. Museu da Diversidade
museus, os espaços de memórias, a educação e os Sexual em São Paulo Outra situação, no âmbito federal de políticas
é fechado por tempo
demais campos da cultura são fundamentais no processo indeterminado. Disponível públicas de culturas voltada à positivação das
em: <https://agenciaaids.
de mudança estrutural que nutrem fobias e produzem com.br/noticia/museu-da- memórias subalternizadas e invisibilizadas,
diversidade-sexual-em-
violências contra as pessoas LGBT no Brasil, considerando sao-paulo-e-fechado-por- temos a experiência do Programa Ponto de
tempo-indeterminado/>.
o fato de que o país possui um dos índices mais altos Acesso em: 14 jul. 2022. Memória. De acordo com Marcele Pereira (2020):
212 Reflexões museológicas sobre a formação do acervo Unidas 213

A iniciativa do Programa Pontos de Memória [...] Memória e preservação aproximam-se.


tem como finalidade a participação dos Preservar é ver antes o perigo da destruição,
grupos, coletivos e movimentos sociais no valorizar o que está em perigo e tentar evitar
desenvolvimento das práticas de memória em que ele se manifeste como acontecimento fatal.
favor das reivindicações sociais por saúde, Assim, a preservação se manifesta em um jogo
moradia, educação, cultura e, nesse caso, o direito permanente com a destruição, um jogo que se
à memória (PEREIRA, 2020, p. 119). assemelha, totalmente, ao da memória com o
esquecimento. A adoção de procedimentos,
Em análise dos únicos três editais do programa, lançados resultantes de deliberação de vontade individual ou
em 2011, 2012 e 2014 com prorrogação até 2015, entre as coletiva, visando à preservação de bens tangíveis
comunidades, grupos e povos subalternizados, a sigla da e intangíveis, constituiu o que se chama “Política
comunidade LGBT não é mencionada no corpo textual, de Preservação” [...] Se aquilo que se preserva
o que reforça e reitera o apagamento das iniciativas e concebido como suporte de informação e
de memórias LGBT no registro oficial do estado em como alguma coisa passível de ser utilizada para
reconhecimento a tais realidades (MACHADO, 2021). O transmitir (ou ensinar) algo a alguém, pode se falar
fato é que as experiências e ações do Programa Ponto em documento e memória. Nesse caso, pode se
de Memória não se converteram em políticas efetivas de falar em política de memória. Nos museus, uma
estado e foram descontinuadas. política de memória está em pauta: sintonizada ou
não com as diretrizes políticas de outros museus
Diante das nuances desse cenário museológico e museal e de outras instituições. Que atuam como lugares
apresentado, bem como do fechamento do Museu da de memória; comprometidas ou não com o projeto
Diversidade Sexual, trata-se de um projeto político e de que originalmente concentrou neles os fragmentos
poder operante em prol do apagamento e invisibilidade de memória política (CHAGAS, 2009, p.160).
das memórias, histórias e das construções coletivas do
movimento LGBT. Um projeto político antimemória e direito
LGBT. Podemos relacionar a política de memória discutida Ou seja, a política de preservação está relacionada com
por Mário Chagas (2009), que diz: uma série de princípios específicos que envolvem um
conjunto de procedimentos como aquisição, restauração,
214 Reflexões museológicas sobre a formação do acervo Unidas 215

documentação, pesquisa, entre outros processamentos As convicções LGBTfóbicas internalizadas guiam as


técnicos. Já a política de memória está conectada com escolhas de quem tem o poder de selecionar e eleger os
uma dimensão ampla da cadeia operatória que envolve a bens culturais, museológicos e patrimoniais. Em virtude
função social e política desenvolvida pelas instituições que disso, vale (re)pensarmos o campo da Museologia, a gestão
lidam com a memória e apresentam/constroem discursos de acervos e as práticas museais.
por meio dos referidos documentos - suportes de
memórias. Nesse sentido, Tony Boita (2020) destaca que: Museologia e gestão de acervos

As práticas museológicas e patrimoniais/patriarcais Nas últimas décadas do século 20 e na atualidade,


foram produzidas em contextos fóbicos, nos quais tem sido discutido amplamente na área da Museologia
alguns grupos foram silenciados e exilados. De fato, brasileira inúmeros métodos e técnicas que propõem
esse olhar cultural contaminado de fobias da diversidade inovações e resoluções para o gerenciamento de acervos
invisibiliza diversos grupos, entre eles a população LGBT. públicos e particulares nos espaços dos museus, centros
Essas fobias técnicas estão presentes em todo setores culturais, entre outros espaços de memória. Contudo, é
do museu: pesquisa, documentação, conservação, um exercício de cidadania refletir sobre esses espaços e
ação educativa, expografia, comunicação e até suas materialidades.
mesmo a gestão [...] Chamo de homolesbotransfobia

museológica todo e qualquer procedimento da cadeia Na prática, predominam as decisões de gerenciamento e


operatória que é utilizado como argumento para institucionalização dos acervos que decorrem a partir dos
invisibilizar e/ou ignorar as pessoas LGBT, priorizando, interesses dos governantes, profissionais e das classes
escondendo ou até estimulando a desinformação dominantes, excluindo da tomada de decisões os grupos
ou a deterioração dos bens culturais museológicos. inferiorizados até então não contemplados oficialmente
Em resumo, ao estimular a invisibilização, os museus pelo poder público nos espaços de memória.
incentivam a homolesbotransfobia. Ignorar um objeto

pertencente a esse grupo é negar a memória da Nesse sentido, podemos mencionar a Mesa-Redonda de
população LGBT, tão humilhada e maltratada pela Santiago no Chile, em 1972, que discutiu os propósitos que
sociedade e pelo Estado (BOITA, 2022, p. 107). deveriam ser adotados pelos museus em sua gestão de
acervo, correlacionando-os com o meio social e produzindo
216 Reflexões museológicas sobre a formação do acervo Unidas 217

uma guinada na variedade de perspectivas e abordagens. mesmo os elementos que lhe permitem participar
Neste contexto, o objeto não é representado apenas pelo na formação da consciência das comunidades
seu caráter atribuído por ser de raridade, tendo o objeto que ele serve; que ele pode contribuir para o
pelo objeto, mas passa a ser mediador de uma construção engajamento destas comunidades na ação,
simbólica entre sua materialidade e a realidade social. situando suas atividades em um quadro histórico
que permita esclarecer os problemas atuais, isto
Ao falarmos de gestão de acervos, abordamos os objetos é, ligando o passado ao presente, engajando-se
musealizados em museus e/ou nos espaços de memória. nas mudanças de estrutura em curso e provocando
Contudo, são diversas as possibilidades que ultrapassam outras mudanças no interior de suas respectivas
tais instituições, o pesquisador Juno Nedel (2020) realidades nacionais (ICOM, 1972, p. 112-113).
tenciona essas perspectivas de gestão ao mencionar a
possibilidade de que “corpo é um arquivo”, a fim de efetuar Em meados da década de 1970, propostas e reflexões
uma fundamentação das possibilidades de memórias e museológicas surgiram sobre a questão dos museus
acervos da comunidade trans, a qual o autor chama de com o desenvolvimento social, o lugar que a sociedade
historiografia e memória trans. ocupa nos museus, a gestão de acervos, entre outras
problematizações. Nesses termos sobre a gestão de
De tal modo, quando paramos e pensamos nos processos acervos, destacam-se aspectos dos processos técnicos
constitutivos que embasam as perspectivas dos espaços desenvolvidos pelos profissionais da cultura, dos
de memória na atualidade, poderíamos dizer que embora museus e da museologia como: as políticas de aquisição,
alguns grupos sejam possuidores dos mesmos elementos acondicionamento, documentação, conservação e restauro
simbólicos e materiais, tendo seus corpos como que irão garantir a integridade física das materialidades
materialidade viva das representações socioculturais, nem a longo prazo, mantendo a engrenagem institucional em
todos os corpos, histórias e memórias são consideradas pleno funcionamento:
no enredo da representação da narrativa cultural. Embora
sejam discutidos os preceitos de que: Princípio: Os acervos dos museus refletem o
patrimônio cultural e natural das comunidades de
O museu é uma instituição a serviço da sociedade, onde provêm. Dessa forma, seu caráter ultrapassa
da qual é parte integrante e que possui nele aquele dos bens comuns, podendo envolver fortes
218 Reflexões museológicas sobre a formação do acervo Unidas 219

referências à identidade nacional, regional, local, musealizadas em espaços institucionais oficiais como os
étnica, religiosa ou política. Consequentemente, é museus. Também é possível materializar sua ampliação
importante que a política do museu corresponda a a partir do caráter dinâmico das ações culturais nos
essa possibilidade (PADILHA, 2014, p. 24). espaços de sociabilidade, resistência e sobrevivência
(des)ocupados e (des)construídos pela ação comunitária
Com isso, é necessário levar em consideração os processos LGBT que escapam muitas vezes às concepções
que envolvem a gestão do acervo, atrelados à relação convencionais. Nesse aspecto, abordamos no próximo
contextual-espacial oriunda do acervo antes do processo tópico a existência e formação do acervo do primeiro
de musealização. Outro ponto a ser considerado é o grupo organizado e institucionalizado de travestis
aspecto da materialização dos processos em relação ao em Sergipe.
alcance, participação e envolvimento do público e da
comunidade no processo e através das exposições e suas Unidas: um espaço de memórias e resistência
concepções narrativas. Esses pontos de conexão podem trans para produção de conhecimento,
alcançar uma narrativa simbólica e/ou contemplativa aos informação e narrativas museológicas
interesses de ordem e às questões sociais e históricas.
De acordo com dossiê publicado pela Associação Nacional
Nessa linha, para efetivar uma reparação museológica/ de Travestis e Transexuais (Antra), o Brasil foi, pelo 13º
histórica aos grupos negligenciados nos espaços públicos ano consecutivo, o país onde mais pessoas trans foram
oficiais de memórias, é fundamental reconhecer a assassinadas em 2021. O documento aponta que, do total
importância de promover o respeito à diversidade humana dos 140 assassinatos de pessoas trans, 81% eram travestis
e cultural enquanto noções propulsoras no preservar a vida e mulheres trans negras, oriundas das periferias e com
e a dignidade humana. baixo grau de escolaridade. Na distribuição geográfica, a
região Nordeste teve a maior concentração de assassinatos
Dito isso, podemos relacionar o direito à memória e a (34%) nos últimos cinco anos, exceto no ano de 2021,
negligência das políticas públicas culturais voltadas para quando o Sudeste liderou essa estatística, com 35% dos
a população e comunidades LGBT. Conforme abordado na casos. A maioria dessa população possui como única fonte
dissertação de Rafael Machado (2011), é possível aspirar de subsistência o exercício da prostituição.
políticas públicas de gestão de acervos que não estão
220 Reflexões museológicas sobre a formação do acervo Unidas 221

Em meio a um cenário historicamente marcado por violências Nesse contexto social da década de 1990, irrompeu
e negligência do poder público do Estado, em 1992, surgiu a primeira organização não governamental (ONG) de
no Rio de Janeiro o primeiro grupo de organização política travestis de Sergipe, a Associação de Travestis Unidas
de travestis do país, a Associação de Travestis e Liberados na luta pela Cidadania (Unidas) (LARA; NASCIMENTO,
(ASTRAL). Sob idealização de Jovanna Baby, travesti, negra, 2003). A ONG foi fundada em 12 de julho de 1999, no
nordestina e à época profissional do sexo, junto com outras Bairro Siqueira Campos, zona oeste de Aracaju. Sua
desenvolveram várias ações e encontros nacionais8 que gestão institucional é composta por uma presidenta,
culminaram na formação nacional do movimento político uma secretária, uma tesoureira e três membros no
social da população T no Brasil (CARRARA; CARVALHO, 2013). Conselho Fiscal.

De acordo com Mario Carvalho e Sérgio Carrara (2013), a Esta ONG mantém um convênio com o Ministério
relação do Estado estabelecida com as pessoas travestis por da Saúde através de três Projetos: um de
meio das ações de combate às DSTs e à AIDS favoreceu a intervenção comportamental, outro de assessoria
construção do Movimento Trans organizado de modo que: jurídica e o último, que visa sustentabilidade e
a geração de renda dos [sic] travestis. Recebe,
O apoio para criação da ASTRAL veio de um também, doações de pessoas da comunidade e
projeto de prevenção DST e AIDS chamado “saúde outros valores com a venda de camisas e botons,
na Prostituição”, que realizava reuniões com salão de beleza e o atelier de corte e costura (LARA;
profissionais do sexo no Instituto Superior de NASCIMENTO, 2003, p. 47).
Estudos da Religião (ISER), local onde
8 Em 1993, o grupo foi
passaram a acontecer as primeiras responsável por organizar A Unidas foi concebida por meio de suas integrantes
o I Encontro Nacional de
reuniões da associação. A influência Travestis e Liberados, como uma ação de intervenção social, através de uma
denominado posteriormente
de ações de resposta à epidemia de ENTLAIDS (Encontro intensa agenda de atividades e processo de realização
Nacional de Travestis na
da AIDS foi também crucial na Luta contra a AIDS) em e desenvolvimento de debates, palestras, encontros,
1995, quando passou a ser
constituição de outras organizações financiado pelo Governo acolhimento, orientações de saúde, apoio jurídico, oficinas,
Federal através do Programa
de travestis que surgiram nos anos Nacional de DST/AIDS. entre outros, na busca de gerar oportunidades e mudanças
Atualmente, o encontro
seguintes (CARVALHO; CARRARA, é chamado de Encontro socioculturais em prol da cidadania das pessoas trans.
Nacional de Travestis e
2013, p. 327). Transexuais No ano de 2004 após submeter projeto em edital lançado
222 Reflexões museológicas sobre a formação do acervo Unidas 223

pelo Ministério da Saúde junto com a Unesco9 , a Unidas A criação da Unidas é um marco para a história do
foi contemplada com o prêmio para aquisição de uma casa movimento social organizado de Sergipe. Uma trajetória
de apoio a pessoas que vivem com HIV/Aids, ofertada pela de ações e atividades que não se restringem somente às
Fundação Bill Gates. Assim, fundou a Casa de Apoio Janaina questões voltadas ao campo da prevenção e combate
Dutra. Em 2006, obteve reconhecimento do município de às infecções sexualmente transmissíveis. O acervo
Aracaju como instituição de utilidade pública, através da Lei salvaguardado da instituição revela a dinâmica em
nº 3353 de 22 de junho daquele ano. articulação das temáticas sobre empregabilidade,
educação, respeitabilidade social, moradia, entre outros
Em entrevista, a cofundadora e atual presidenta da Unidas, temas tão caros e atuais para a comunidade LGBT.
Jessica Taylor (2022):

Resolvemos criar a Unidas pelo fato de não nos


sentir de fato acolhida pelo movimento gay. Eu e
outras travestis fundadoras da Unidas, participamos
de algumas reuniões do Dialogay, mas o que
era o Dialogay? O nome já dizia. Os gays tinham
espaço de fala, as travestis participavam sem
nenhuma inclusão. Não saíamos durante a luz do
dia, não tínhamos acesso aos cuidados médicos e à
educação. Então, começamos a se organizar no ano
de 1998, justamente para construção da Associação
das Travestis com intuito de provocar mudanças no
cenário de abandono social que vivíamos. Fundamos
em 1999 a Unidas para incluir e visibilizar nossas
pautas e gerar oportunidades (TAYLOR. Entrevista
concedida a Douglas Santos Neco
e Rafael dos Santos Machado. 16 de 9 Organização das Nações
Unidas para a Educação, a
Julho de 2022). Ciência e a Cultura.
224 Reflexões museológicas sobre a formação do acervo Unidas 225

Com sede própria no bairro do Luzia, a associação


tem desenvolvido e ampliado ao longo do tempo suas
intervenções e acolhimento não somente de pessoas
trans e travestis, como também de pessoas lésbicas, gays,
bissexuais, não bináries e demais outras identidades sexuais
e de gênero, com alcance no território estadual, na medida
das possibilidades. Apesar de enfrentar desafios em relação à
captação de recursos financeiros e à sobrecarga na execução
de atividades e funções. A partir desse aspecto, atualmente
a ONG passa por um processo de reformulação e debates
internos a fim de contemplar a diversidade de gênero, com a
sugestão de mudança do seu nome para TransUnides.

Nesse processo dinâmico de reconstrução e resistência,


Figura 1 - fachada do imóvel 10 Sob identificação das a Unidas constituiu um rico material iconográfico de
institucional da Unidas10. pessoas na imagem por
Jéssica Taylor, da esquerda fotografias, vídeos, panfletos, cópias de documentos
Fonte: Acervo fotográfico a Anastácia (blusa preta)
digital da Unidas. e ao seu lado a primeira e administrativos, livros etc. (a exemplo da figura 2 abaixo).
ex-presidenta, Luciana Lins
(vestido estampado com Esses materiais coletados ao longo de duas décadas
as cores branco e preto e
óculos de cor vermelho, na trazem informações sobre a instituição, bem como as
armação), atrás de Anastácia
Fabricia (ex-membra da relações socioculturais da sociedade sergipana, marcadas
diretoria), a pessoa atrás de
Fabricia não foi identificada, por relações LGBTfóbicas no tempo-espaço. A respeito
acima e ao lado direito
de Luciana, Manuela Lins disso, Jéssica Taylor (2022) diz que:
(ex-membra), em seguida
na mesma direção, Vanusia
(shorts branco), atrás da
estátua e na janela Priscila, Esses acervos possuem uma grande importância
na janela seguinte temos
Jessica Taylor, no meio para que nossa história e memórias não sejam
Greyce Paula (ex-membra)
e após Sharon Gomes. apagadas. É o registro de nossa história, das
Na imagem é possível
também visualizar as placas travestis, quando começamos a se organizar na
de fundação da Casa de
Assistência Janaina Dutra e luta por direitos. Justamente por isso, começamos
ao lado da Janela da Unidas.
226 Reflexões museológicas sobre a formação do acervo Unidas 227

a conversar com pessoas vinculadas à universidade


para organizar esse acervo que possui fotografias,
livros, boletins de ocorrências e vários tipos de
materiais que precisam ser preservados (TAYLOR.
Entrevista concedida a Douglas Santos Neco e
Rafael dos Santos Machado. 16 de Julho de 2022).

Nesse sentido, podemos observar que a ação em


constituição do acervo da Unidas traduz-se como parte
indissociável no processo de auto-organização por
reivindicações e visibilidades. Assim, a memória surge
como pauta de reivindicações a partir da consciência sobre
a importância e necessidade de preservá-la como parte da
sociedade em que estão inseridas. Uma memória que tem Figura 2 - capa do livro Documentar esse acervo é, para nós, uma
aberto.
cor, corte e a história da produção desse lugar. possibilidade de construir o primeiro ponto de
Figura 3: páginas do livro.
memória LGBT do estado de Sergipe. Portanto,
Fonte: Acervo literário da
Nas figuras 2 e 3 temos imagens fotográficas de uma obra Unidas esse projeto objetiva realizar o arrolamento,
literária publicada em 2003 que aborda a Unidas e que registro e organização de um acervo constituído na
integra o acervo da instituição. luta cotidiana da população trans, frequentemente
marcada por diversos acontecimentos históricos
Desse modo, é importante destacar o Projeto de Extensão de resistências e conquistas. Reconhecendo a
do Departamento de Museologia da Universidade Federal importância dos movimentos sociais das classes
de Sergipe (UFS) intitulado A Associação de Travestis e mais vulneráveis, o projeto também pretende
Transexuais Unidas na Luta pela Cidadania: o debate sobre demarcar a importância do patrimônio humano e
sexualidade e gênero que possibilita o registro da memória- cultural da comunidade LGBTQIA+ para, caso elas
cidadã, coordenado pela professora Ana Karina Calmon compreendam oportuno, ofereçam a cidade de
de Oliveira Rocha, que por meio do uso de recurso Aracaju mais um local cultural de turismo educativo
museológico o projeto é justificado: e consciente (ROCHA, 2021, p. s/n).
228 Reflexões museológicas sobre a formação do acervo Unidas 229

O projeto acima foi iniciado no mês de outubro de 2021, Ao salvaguardar diversos tipos de materiais iconográficos,
com previsão de duração de um ano. Ainda de acordo a pauta da memória é evidenciada pelo próprio ato e
com Rocha (2021) sobre os objetivos, consiste em reafirmada na fala em entrevista concedida pela atual
“selecionar, classificar e registrar cerca de duas mil fotos presidenta da instituição a esses autores que vos
e documentos do acervo” (p. s/n), além de possibilitar a escreve. Nela, foi possível entender a importância do
partir desse processo a montagem de exposições. Em acervo enquanto suporte de memória no enfrentamento
torno dessa dinâmica, é notável a importância social das ao apagamento e invisibilização de memórias trans no
materialidades/imaterialidades enquanto recurso útil e de contexto sociocultural ao longo dos tempos em Sergipe.
trato museológico alinhado à participação ativa do grupo
de interesse subalternizado. Com recorte para o exemplo da Unidas, é possível notar o
caráter político, social e simbólico atrelados e indissociáveis
Uma das principais violências naturalizadas e praticadas à materialidade/imaterialidade que constituem os suportes
contra a população LGBT é a ocultação e a tentativa de memória no processo de reivindicações e visibilidades
de apagamento de seu patrimônio material e imaterial, por justiça social. Com isso, coloca-se em questão o caráter
implementados pelos agentes de manutenção dos processos de gestão de acervos, do patrimônio, dos
do status quo. museus e dos espaços públicos de memória oficiais no
que diz respeito aos direitos de cidadania e de memória,
Considerações Finais considerando os processos dominantes de inviabilização das
memórias, histórias e representação positiva da população
Neste artigo foram apresentadas algumas reflexões LGBT em geral.
museológicas em torno da gestão de acervo e do cenário
da LGBTfobia museológica predominante no Brasil e Nesse percurso de pensar e o fazer da prática museológica,
reverberado em Sergipe. Em torno disso, ressaltamos é possível contribuir para uma cultura e política de memória
a existência de acervo relacionado e constituído no cidadã sem que sejam respeitados os direitos de cidadania
processo de luta cotidiana por cidadania da população garantido na nossa Constituição brasileira?
trans e travesti de Sergipe, por meio do primeiro grupo de
organização social de travestis, a Unidas.
230 Reflexões museológicas sobre a formação do acervo Unidas 231

Referências
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e Memória Trans. Revista Eletrônica Ventilando Acervos, Florianópolis, v.
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2014, p. 23-24.
estratégias simbólicas utilizadas nos museus para invisibilizar
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Associação de Travestis e Transexuais Unidas na Luta pela Cidadania:
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o debate sobre sexualidade e gênero que possibilita o registro da
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Mercado de Trabalho para as Travestis de Aracaju. 2003, p. 1-72.

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processos museológicos em Casas de Acolhida LGBT no Brasil.
Orientador: Clovis Carvalho Britto. 2021. 226 f. il. Dissertação (Mestrado
em Museologia), Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade
Federal da Bahia, Salvador, 2021.
232 Ficha técnica 233

GOVERNO DO ESTADO INSTITUTO ODEON ACERVOS E REFERÊNCIAS


DE SÃO PAULO DE MEMÓRIA LGBTQIAP+
Governador do Estado de São Paulo Diretor Presidente Concepção Geral
Tarcísio de Freitas Carlos Gradim Leonardo Vieira

Vice-Governador Diretoria de Operações e Finanças Conteúdo


Felício Ramuth Roberta Kfuri Anna Paula da Silva
Caio de Souza Tedesco
Secretária de Estado de Cultura e Economia Diretoria de Equipamento Instituto Odeon
Criativa Marisa Bueno Julia Aleksandra Martucci Kumpera
Marilia Marton Lauri Miranda Silva
Coordenação de Museologia e Acervo Leandro Colling
Secretário Executivo Leonardo Vieira Leila Cristina Antero Cordeiro
Frederico Mascarenhas Leonardo Vieira
Museologia Luiz Morando
Chefe de Gabinete Leila Antero Luiz Mott
Daniel Scheiblich Rodrigues Marcelo Cerqueira
Coordenação de Relações Institucionais e Rafael Machado
Coordenadora da Unidade de Preservação do Projetos
Patrimônio Museológico Luiz Henrique Amoêdo Projeto Gráfico
Maria Beatriz Henriques Pedro Brucz
Assessoria de Comunicação
Diretora do Grupo de Preservação do Eduardo Cordeiro Revisão de texto
Patrimônio Museológico Henrique Santiago
Vanessa Costa Ribeiro Coordenação do Núcleo de Ação Educativa
Val Chagas
Diretora do Grupo Técnico de Coordenação do
Sistema Estadual de Museus Coordenação Administrativo Financeiro
Renata Cittadin Luiz Custódio da Silva Junior

Diretora do Núcleo de Apoio Administrativo Administrativo Financeiro


Denise dos Santos Parreira Vanda Maria Batista
Alexia Bastos Souza
Equipe técnica da Unidade de Preservação Jhonatha Lucas
do Patrimônio Museológico
Angelita Soraia Fantagussi Compras
Edna Lucia da Cruz Jeferson Rocha de Lima
Eleonora Maria Fincato Fleury
Fabiana Josefa da Silva Equipe de Apoio
Magalhães Araújo
Kelly Rizzo Toledo Cunegundes Produção
Luana Gonçalves Viera da Silva Denise Soares
Luiz Fernando Mizukami Heitor Gabriel
Marcia Pisaneschi Sorrentino
Mirian Midori Peres Yagui Núcleo de Ação Educativo
Marcos Antônio Nogueira da Silva Nay Costa
Rafael Egashira Ramon Lima
Regiane Lima Justino
Roberta Martins Silva
Sofia Gonçalez
Tayna da Silva Rios
234 Ficha técnica 235

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Acervos e referências de memória LGBTQIAP+


[livro eletrônico] / organização Leonardo Vieira. -- 1. ed. -- São Paulo :
Museu da Diversidade Sexual, 2023.
PDF.

Bibliografia.
ISBN 978-65-999113-1-6

1. Acervos 2. LGBTQIAP+ 3. Memórias 4. Museologia


5. Museu da Diversidade Sexual I. Vieira, Leonardo.

23-142284 CDD-069

Índices para catálogo sistemático:


1. Museus : Preservação da memória e cultura : Museologia 069
Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129

Livro composto nas fontes


Snare Unicase (títulos) e
Elza Text (textos).
Março de 2023.

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