Você está na página 1de 33

Eliane Cristina Deckmann Fleck

Jairo Henrique Rogge


Organizadores

A AÇÃO GLOBAL DA
COMPANHIA DE JESUS:
EMBAIXADA POLÍTICA E
MEDIAÇÃO CULTURAL

E-book

OI OS
EDITORA

São Leopoldo
2018
© Dos autores – 2018

Editoração: Oikos
Capa: Juliana Nascimento
Revisão: Dos autores
Diagramação: Mariana Schossler
Arte-final: Jair de Oliveira Carlos

Conselho Editorial (Editora Oikos)


Antonio Sidekum (Ed.N.H.)
Avelino da Rosa Oliveira (UFPEL)
Danilo Streck (Unisinos)
Elcio Cecchetti (UNOCHAPECÓ e GPEAD/FURB)
Eunice S. Nodari (UFSC)
Haroldo Reimer (UEG)
Ivoni R. Reimer (PUC Goiás)
João Biehl (Princeton University)
Luís H. Dreher (UFJF)
Luiz Inácio Gaiger (Unisinos)
Marluza M. Harres (Unisinos)
Martin N. Dreher (IHSL)
Oneide Bobsin (Faculdades EST)
Raúl Fornet-Betancourt (Aachen/Alemanha)
Rosileny A. dos Santos Schwantes (Uninove)
Vitor Izecksohn (UFRJ)

Editora Oikos Ltda.


Rua Paraná, 240 – B. Scharlau
93120-020 São Leopoldo/RS
Tel.: (51) 3568.2848
contato@oikoseditora.com.br
www.oikoseditora.com.br

A168 A ação global da Companhia de Jesus: embaixada política e media-


ção cultural [e-book] / Organizadores: Eliane Cristina Deck-
mann Fleck e Jairo Henrique Rogge – São Leopoldo: Oikos,
2018.
1625 p.; 13,97 x 21,59 cm.
ISBN 978-85-7843-846-3
1. Jesuítas – Ordem religiosa – História – Cultura. 2. Missiona-
ção – Educação. 3. Missões jesuíticas – Patrimônio – Arte. 4. Missões
jesuíticas – Produção intelectual – Memória. I. Fleck, Eliane Cristina
Deckmann. II. Rogge, Jairo Henrique.
CDU 271.5
Catalogação na Publicação:
Bibliotecária Eliete Mari Doncato Brasil – CRB 10/1184
DO GLOBAL AO LOCAL: CIRCULAÇÃO E DIFUSÃO
CULTURAL NA DECORAÇÃO DA CAPELA DO
ANTIGO ALDEAMENTO DE SÃO MIGUEL
ARCANJO (SÃO PAULO SÉCULOS XVII-XVIII)

Thais Cristina Montanari

Introdução

O presente artigo se apresenta como um recorte da pesquisa


de mestrado desenvolvida pela autora. Apresentaremos e
discutiremos as relações e as trocas culturais entre jesuítas e
indígenas no contexto das Missões Jesuíticas em São Paulo e
particularmente no antigo aldeamento de São Miguel. A Capela
existente neste antigo aldeamento cujo orago lhe dá o nome, é um
dos templos religiosos mais antigos da cidade de São Paulo.
Construída em taipa de pilão e apresentando seu peculiar
alpendre, a Capela de São Miguel nos revelou recentemente o que
pode ser considerada a sua maior jóia: as pinturas parietais que
permaneceram por séculos escondidas embaixo dos altares
laterais em madeira. Estas pinturas que simulam um retábulo de
talha, juntamente com outros elementos decorativos conservados
na capela, formam um conjunto de exemplares com referências
iconográficas e iconológicas, compreensíveis pela emblemática e

713
pelos repertórios de brutescos, recorrentes na arte europeia, ao
mesmo tempo em que também fazem referência à cultura
ameríndia. A isto, soma-se o possível emprego de mão-de-obra
indígena, negra e mestiça na construção e decoração da capela.
Tendo em vista suas especificidades locais e referências globais,
propomos a análise e discussão da interculturalidade nos
elementos decorativos da Capela de São Miguel Paulista entre os
séculos XVII e XVIII, considerando-se também as redes de trocas
culturais e os estudos já realizados sobre as Missões Jesuíticas na
América Hispânica e na Amazônia da América Portuguesa.

Os Jesuítas no aldeamento de São Miguel

A data de 1622 marcada na verga da porta de entrada da


Capela de São Miguel Paulista, situada na zona leste da cidade de
São Paulo, registra parte de sua história e sua antiguidade. 1622
seria o ano do fim da reconstrução da Capela de São Miguel, após
a demolição do antigo templo primitivo, construído de forma
precária por volta de 1560 pelos missionários jesuítas, no
estabelecimento de suas Missões na região do Planalto de
Piratininga (Holanda, 1941, p. 105). Com o objetivo de fixação e
evangelização dos indígenas, as chamadas aldeias de El-Rei,
baseadas em um regime de tutoria, colocava os índios sob a
proteção dos jesuítas. Inicialmente, confiaram-se quatro Aldeias
aos jesuítas em São Paulo: São Miguel, Pinheiros, Barueri e
Guarulhos (Leite, 2000, p. 227-230), as quais formavam uma rede
de aldeamentos, conforme o avanço e estabelecimento dos padres
da Companhia de Jesus na região.

714
A administração do aldeamento de São Miguel passou das
mãos dos jesuítas para a Câmara Municipal de São Paulo, com a
expulsão dos padres da Companhia de Jesus da Capitania de São
Vicente em 1640, devido a conflitos de interesses com a Coroa e
os colonos especialmente em relação à escravidão indígena.
Apesar de readmitidos em 1653, os jesuítas não teriam mais
jurisdição temporal nem espiritual sobre os aldeamentos régios.
No início do século XVIII, os franciscanos assumiram a assistência
temporal e religiosa do aldeamento de São Miguel. Por volta de
1780, Frei Mariano da Conceição Veloso teria orientado a reforma
da Capela deste aldeamento, a qual consistiu no acréscimo de 2,5
metros de adobe, elevando a estrutura de taipa de pilão do pé
direito da nave central, a abertura de duas janelas acima do
telhado fronteiro, a construção da capela lateral e seu altar, o
escoramento interno de madeira, a inserção de douramento nas
decorações no altar principal da sacristia e para a capela lateral, e
por fim, o arruamento da Aldeia. Assim se configurou a
espacialidade arquitetônica da Capela de São Miguel Arcanjo, tal
qual a conhecemos.
A religiosidade cristã foi um dos principais pilares da
sociedade colonial no Brasil. Consequentemente, a edificação e
manutenção de templos religiosos fazia parte da organização
social da colônia, sendo frequente o emprego da mão-de-obra
indígena como construtores e artífices de carpintaria (Amaral,
1981, 49), sendo estes também os responsáveis pela conservação
e melhoria das igrejas e capelas dos aldeamentos jesuíticos.
Considerada uma das obras artísticas e arquitetônicas mais
importantes do período colonial paulista, a Capela de São Miguel
tornou-se um dos primeiros bens tombados e restaurados pelo
Instituto do Patrimônio Artístico Nacional (IPHAN) entre 1938 e

715
1941. Apesar de ter passado por diversas obras de reparo e de
restauro ao longo dos séculos, a capela ainda preserva, além de
sua construção em taipa de pilão, parte da sua decoração do
período colonial, como as imagens, a pia batismal, o armário e
altar da sacristia, o alpendre em L, as pinturas do forro, e a grade
de comunhão com imagens antropomorfas talhadas em jacarandá.
Porém, seu elemento decorativo de maior relevância atualmente
são as pinturas murais encontradas embaixo dos altares laterais
em madeira, durante o último trabalho de restauro em 2007.
As pinturas da Capela de São Miguel Paulista simulam um
altar de talha em estilo nacional-português; 1 apresentando
40F

colunas torsas, ornatos fitomórficos (folhagens e cachos de


videiras), além dos capitéis com volutas. Em todo o espaço
adjacente da pintura retabular, temos pinturas em padrões
semelhantes a brutescos, predominando os desenhos em branco
com contornos em preto sob o fundo em vermelho. Na parte
interna do camarim e arco, temos pinturas de sol, lua, estrelas e
nuvens espirais preenchendo os espaços adjacentes, além do sol
como resplendor. Os elementos decorativos existentes na Capela
de São Miguel, apresentam referências iconográficas e
iconológicas provenientes de um repertório de origem europeia,
como a emblemática e os brutescos, transmitidos pelas oficinas
jesuíticas aos artífices — em sua maioria indígenas e mestiços —,
os quais também eram empregados na construção e decoração
dos templos religiosos. Desse modo, para se compreender a arte
produzida no contexto das Missões, é preciso adotar uma
perspectiva mais “global”, dada a grande dispersão geográfica dos

1 De acordo com a classificação feita por Robert C. Smith (1962, p. 49-89), ou

“estilo nacional” conforme nomenclatura mais recente.

716
jesuítas, e também pela Companhia de Jesus “ter figurado como o
canal de transmissão mais influente da cultura europeia para a
América portuguesa” (Bury, 2006, p. 64).

“Retábulos Fingidos”, Gravuras, Modelos e Pinturas: da


Europa às Américas

Sendo o retábulo elemento de grande destaque em um espaço


religioso, as pinturas encontradas na Capela de São Miguel
tornam-se, portanto, elemento artístico fundamental para o
espaço arquitetônico. O uso do dito “retábulo fingido”, 2 sugerindo
41F

a ilusão de um altar fixo de talha com suas colunas, mísulas e


arcos de coroamento, semelhante ao que encontramos na Capela
de São Miguel Arcanjo, foi objeto de estudo de Joaquim Inácio
Caetano em Portugal (Caetano, 2016). Este autor atribui o uso
deste tipo de decoração nas igrejas em Portugal à importância que
a pintura mural exerceu desde finais do século XV enquanto opção
decorativa nos espaços religiosos, podendo substituir de forma
imitativa todo e qualquer material construtivo e elemento
decorativo, por uma questão de moda e de um gosto generalizado.
Outro fator importante a ser considerado no uso dos retábulos
fingidos é o baixo custo e menor tempo para sua execução, em
relação ao preço e ao tempo de execução de um retábulo de talha
com douramento e estofamento.
Caetano também se atenta à questão provisória do emprego
deste tipo de pintura, sendo assim utilizada até se ter condições

2 Conforme denomina a historiografia portuguesa.

717
de paramentar o templo religioso com um retábulo talhado em
madeira. Vítor Serrão e Francisco Lameira citam o exemplo da
igreja do Colégio de Santo Antão de Lisboa (1653), que em sua
inauguração não possuía todos os paramentos: “na capela mor se
fingiu na parede fronteira um retábulo pintado, cuja obra se
imitou nos dois altares do cruzeiro” (Serrão e Lameira,
2002/2003). Esta questão provisória justificaria o declínio desta
arte a partir de meados do século XVII, perdendo também seu
protagonismo na função catequética, passando a ser,
essencialmente, elemento decorativo (Caetano, 2016). No caso da
Capela de São Miguel, Percival Tirapeli também sustenta que as
pinturas parietais seriam esboços, para os posteriores retábulos
em madeira (Tirapeli, 2015), como, segundo o pesquisador,
acontece em outros casos na América Hispânica, apesar de não
especificar nenhuma igreja em particular. Ademais, não temos
evidência alguma de ter existido retábulos de talha na Capela de
São Miguel com tipologia semelhante às pinturas parietais, ou
mesmo que os retábulos de madeira tenham sido pintados de
forma imitativa.
Ao período de declínio desta arte em Portugal, em meados do
século XVII, segundo Caetano, se enquadram os poucos
exemplares de produção barroca, com seus elementos clássicos
“onde estão presentes as colunas torsas que criam o espaço
central para a cena principal, remate com figuras de anjos,
atlantes cariátides a suportar o entablamento e a utilização de
folhas de acanto e enrolamentos de voluta na decoração, entre
outros” (Caetano, 2016). Caetano destaca três exemplares
conhecidos deste período, entre os quais, o retábulo fingido da
igreja de Santa Catarina de Soutilha (Mirandela), dedicado ao
culto das almas, datado do final do século XVII. Em relação ao

718
estilo retabular representado e à técnica empregada, este retábulo
fingido é muito semelhante ao da capela de São Miguel Arcanjo,
apresentando a mesma estrutura com dois pares de colunas
torsas, a pintura do barrado e o nicho lateral, além da
predominância da cor avermelhada e da contemporaneidade de
sua fatura.
A pintura de “retábulos fingidos” também seria recorrente na
América hispânica, porém, com suas devidas especificidades.
Nesta região, das chamadas pinturas murais, muito pouco se
preservou, devido às condições sísmicas e também pela
recorrência das construções em pedra, o que muitas vezes não
permitiu a boa preservação deste tipo de arte. No entanto, na
região andina, ainda se preservam algumas capelas e igrejas
inteiramente pintadas, como a igreja de San Santiago de
Carahuara de Carangas (século XVII) na Bolívia, conhecida como a
“capela sistina dos Andes”, e a menos conhecida igreja Virgen de la
Natividad de Parinacota (séculos XVII - XVIII) no sul do atual
território do Chile. Ambas as igrejas apresentam todo o seu
interior ornamentado com pinturas murais de repertório
iconográfico cristão, como o juízo final, os sacramentos e a paixão
de Cristo. A pintura enquanto ornamentação de edifícios
religiosos e demais construções públicas e civis, teve papel
importante e recorrente nas primeiras Missões jesuíticas na
América Hispânica. De acordo com Josefina Plá, nas capelas e
igrejas, tudo teve eventualmente sua decoração pintada; desde
quadros, paredes e tetos, até coros, púlpitos e confessionários
(Plá, s/d, p. 166). Assim, estas pinturas serviam de ferramenta
para a catequização e fixação da doutrina cristã entre os neófitos,
ao mesmo tempo em que se buscava recriar a estética do
esplendor interior das igrejas europeias por meio delas (Bailey,

719
2005), sobretudo em localidades menos centrais em que a
presença religiosa era esporádica (Corti et al., 2013, p. 27). Esta é
uma hipótese a ser considerada em relação às pinturas da Capela
de São Miguel Arcanjo, dado que neste aldeamento os padres
eram apenas visitadores, sem residência fixa, além dos possíveis
trânsitos culturais entre o altiplano boliviano e a vila de São Paulo
(Amaral, 1981; Kok, 2011; Tirapeli, 2015).
É preciso termos em conta que, na América hispânica, a
cidade de Cuzco foi o centro artístico mais importante da região
sul andina. De acordo com Rodolfo Vallín Magaña em seu estudo
sobre a pintura mural na América espanhola, no período colonial,
esta região teria atuado como centro irradiador, expandindo a
arte mural para outras regiões, tais como os atuais território do
Chile, Argentina e Bolívia (Magaña, 1995, p. 195). Por conseguinte,
esta arte também teria chegado em território Guarani,
abrangendo desde Santa Cruz de la Sierra (Bolívia), Paraguai até a
costa Argentina, nas Missões em Santa Rosa de Misiones, Moxos e
Chiquitos, Yaguarón e Capiatá; apesar de seus exemplares serem
mais esporádicos e limitados no tempo (Magaña, 1995, p. 195).
Também é preciso se considerar que um dos modos de circulação
desta arte foi por meio da transferência de artistas europeus,
trabalhadores, mestres e indígenas, de uma Missão a outra,
buscando uma maior eficiência e economia de tempo e energia.
Ademais, a escassez de mestres versados em belas artes também
fez com que os poucos jesuítas habilidosos nessa ou naquela
disciplinas — arquitetura, pintura, escultura — teriam que estar
constantemente mudando de uma Missão a outra, ensinando ou
dirigindo obras em cada uma delas (Plá, s/d, p. 77).
Desse modo, era frequente a circulação de trabalhadores
previamente instruídos ou com experiência em Missões anteriores

720
na organização das oficinas recém-fundadas ou reconstituídas.
Estes missionários teriam trazido consigo as técnicas e os modelos
a serem seguidos e (re)interpretados pelos indígenas aprendizes,
geralmente se utilizando de modelos provenientes de gravuras
europeias, especialmente as gravuras flamengas, ou imagens de
livros impressos (Bailey, 2005, p. 257). Logo, chegavam as modas,
as iconografias e os estilos europeus de cada época. A presença de
vários mestres jesuítas reconhecidos de diversas nacionalidades
nas Missões teria se dado desta forma. Na América hispânica
destacamos nomes como Verger, Primoli, Brassanelli, Grimau, entre
outros; e na América Portuguesa, o arquiteto Francisco Dias ainda
no século XVI, João Felipe Bettendorff no século XVII, e João Xavier
Traer, no século XVIII. Este último, escultor procedente do Colégio
jesuítico de Viena, que chegou a São Luís do Maranhão em 1703, e
foi chefe da oficina do colégio do Pará de 1705 a 1737, ano de sua
morte (Martins, no prelo).
Nas Américas, a organização das oficinas jesuíticas nas Missões
era semelhante às das oficinas europeias do período: os artistas
indígenas trabalhavam em grupos como aprendizes de um mestre
europeu ou indígena (no caso das Missões do Paraguai geralmente
era um nobre Guarani), supervisionados periodicamente pelos
padres jesuítas (Bailey, 2005, p. 256-257). As atividades artísticas
realizadas nestas oficinas eram pautadas primordialmente pelo
propósito do catecismo, seguido pela dignidade e esplendor do
culto (Plá, s/d, p. 58); e o sistema de trabalho era fundamentado
pela cópia, ou seja, os indígenas realizavam trabalhos previamente
determinados, instruídos pelos mestres. Assim, os artistas
indígenas assimilaram a iconografia cristã interpretando-a de
modo a refletir suas próprias preferências artísticas e de visão de
mundo, resultando em peças altamente expressivas (Plá, s/d, p.

721
71), por vezes figurando imagens europeias conjuntamente a
fundos decorativos imitando os padrões tradicionais têxteis
andinos pré coloniais, 3 atestando, de certa forma, a persistência
42F

das formas e concepções artísticas indígenas.


Tal evidência não se mostra absurda se considerarmos que
nas artes das Missões, tanto a retórica e a linhagem do mestre
europeu, quanto a mão indígena, se põem em relação no interior
de uma mesma oficina, de um mesmo ambiente e circunstância
(Plá, s/d, p. 110). E assim como os jesuítas conservaram algumas
tradições políticas, econômicas e rituais dos indígenas ao
fundarem as reduções, eles tacitamente permitiram que as
tradições técnicas, ou o uso de símbolos indígenas permeassem as
artes ali produzidas (Bailey, 2001, p. 144). Assim, ao fazer
concessões à cultura indígena, os missionários seriam bem-
sucedidos em sua empreitada de persuasão e captura dos
indígenas para suas reduções. A pintura foi um dos meios
utilizados pelos jesuítas para tal êxito, ao se utilizar de imagens —
geralmente gravuras — que apesar de europeias, seu repertório
iconográfico também seria previamente conhecido pelos
indígenas, como as imagens astrológicas.

O Sol, a Lua e as Estrelas: Os livros de emblemas nas


Missões Jesuíticas nas Américas

Sabe-se, a partir de textos como os do cronista Guamán Poma


de Ayala, que dentre as práticas ditas “idólatras” que os

3 Sobre a imitação de padrões têxteis andinos, ver: Bailey, 2005 e Magaña, 1995.

722
missionários buscaram erradicar, figurava a crença nos astros. 4 43F

Desse modo, o emprego das imagens de constelações, do sol e da


lua tornaria o trabalho de evangelização menos penoso. Dadas as
coincidências entre o imaginário católico e as crenças indígenas
pré-colombianas (Plá, s/d, p. 43), estas imagens já seriam
conhecidas e carregadas de significados para a cultura indígena. A
representação dos astros nas missões jesuíticas na América
Espanhola, sobretudo na região dos Andes, foi estudada pela
historiadora boliviana Teresa Gisbert em sua obra Iconografía y
mitos indígenas en el arte. Segundo Gisbert, a representação do sol
era uma das mais usadas nas decorações das igrejas andinas,
como pode ser visto em portadas, retábulos, e abóbadas, podendo
frequentemente aparecer junto a figuras de estrelas, lua, e sereias,
cuja relação remontaria às tradições mais antigas dos povos
indígenas (Gisbert, 200, p. 31). Nas pinturas, estas imagens dos
astros figuravam sobretudo na representação da Santíssima
Trindade (Gisbert, 2008, p. 30), aparecendo nas pinturas dos tetos
de sacristias e de retábulos (Martins, 2013), como também pode
ser observado nas igrejas das Missões Jesuíticas da Amazônia
(Martins, no prelo a).
O uso de representações da cosmologia enquanto
correspondentes simbólicos de Cristo, de Nossa Senhora e santos
na arte cristã, de acordo com Santiago Sebastián, remonta desde a
baixa idade média, passando pelo renascimento e barroco
(Sebastián, 1989, p. 17). Sebastián faz referência à obra de Julius

4“(...) sabemos por las crónicas, y en particular por la de Guamán Poma de Ayala,
que los indios practicaban la astrología; por otra parte, el Concilio de Lima de
1613 trató de atajar el problema, pero no se logró extirparlo porque la idolatría
pervivió en el siglo XVII mezclada con la hechicería y la astrología.” (Sebastián,
1989, p. 20).

723
Schiller, em seu atlas estelar Coelum stellatum christianum (1627),
no qual o autor faz a correspondência entre as doze constelações
do zodíaco e os apóstolos, entre as constelações do Norte e do Sul
e figuras do Velho e do Novo Testamento. Assim, o Sol seria o
Cristo, e a Lua seria a Virgem Maria (Sebastián, 1989: 17). Esta
tendência se perpetua na obra Esphera en común celeste y
terraquea (1679), do jesuíta espanhol José Zaragoza (Sebastián,
1989, p. 17). O próprio monograma da Companhia de Jesus,
rodeado de raios solares, aparece desde a primeira edição dos
Exercícios Espirituais (1549) de Santo Inácio, e também na
identificação das obras literárias e artísticas da Companhia ao
redor do mundo (Martins, no prelo b). Descritos como “raios
triangulares e retos, em alternância com outros ondulados”, de
acordo com Renata Martins, estes seriam semelhantes àqueles
encontrados nas pinturas parietais da Capela de São Miguel, bem
como em diversos retábulos de igrejas da Companhia, que
figuram no fundo dos nichos, em forma de resplendores que
emolduram as imagens dos santos (Martins, no prelo a). Temos
como exemplo, em Portugal, a igreja do Espírito Santo do Colégio
jesuítico de Évora, o retábulo de talha em estilo nacional, no qual
também figuram os motivos celestes do sol, lua e estrelas. No
Brasil, além da Capela de São Miguel, também podemos observar
a iconografia dos astros juntamente com um modelo de retábulo
em estilo nacional em outras igrejas paulistas do período colonial.
É possível que esta iconografia dos astros, presentes nas
decorações das igrejas e capelas jesuíticas do período colonial,
tenham sido retiradas de livros de emblemas como Mundus
Symbolicus de Filippo Picinelli, cujo Livro I é dedicado ao tema dos
astros; e também o livro La Philosophie des Images Enigmatiques
(1694), do jesuíta Claude-François Menestrier (1631- 1705), que

724
possui um repertório de emblemas advindo, sobretudo, da
cosmografia (Martins, no prelo a). De acordo com Renata Martins,
o primeiro estaria presente “tanto no manuscrito do inventário da
biblioteca do colégio da Madre de Deus em Vigia, quanto na
Biblioteca daquele que foi o antigo colégio do Rio de Janeiro”, e o
segundo constituía “parte da coleção de Diogo Barbosa Machado,
hoje na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro” (Martins, no prelo
a). É importante se considerar o forte aspecto visual e a
importância da ilustração e da impressão nas Missões, dadas “as
virtualidades psíquicas universais da imagem”, visto que estas
têm “a capacidade de chegar a áreas do espírito em que o texto
não alcança” (Plá, s/d, p. 149). As imagens de gravuras, seja em
madeira ou metal, incorporadas aos livros ou avulsas; foram
utilizadas na evangelização, tanto na América hispânica quanto na
Ásia, sendo usadas também para a meditação individual dos
jesuítas (Pfeiffer, 2003, p. 205). Em vista disso, se faz evidente a
ocorrência de circulações de imagens e símbolos de corpos
celestes, através das gravuras e livros ilustrados e da tradição
emblemática (Martins, no prelo a).
Assim como as reduções da América Espanhola eram bem
equipadas com tratados europeus de artes (Bailey, 2001, p. 160),
na América portuguesa também teríamos obras semelhantes nas
bibliotecas jesuíticas. O que não significa, porém, que os modelos
tenham ou devam ter sido copiados fielmente destes. As formas
de emprego destes motivos variam caso a caso (Martins, no prelo
a). Além das pinturas parietais da Capela de São Miguel, Renata
Martins também destaca a presença deste programa pictórico nos
tetos das sacristias das igrejas dos colégios de Belém e de Vigia no
Pará (século XVIII), assim como no retábulo da antiga igreja
jesuítica de Nossa Senhora da Luz (século XVII), que teria sido

725
desenhado pelo luxemburguês João Felipe Bettendorff, e
entalhado por um português, Manoel Mansos, e por um índio do
Maranhão de nome Francisco (Martins, 2009). Assim, a mão
indígena se faz presente neste trabalho orientado pela Companhia
de Jesus, comprovada por meio da documentação (Martins, 2009:
316).
A questão da mão indígena na fatura das pinturas
parietais de São Miguel é levantada pela antropóloga Glória Kok
(2011, p. 54), que afirma que “os motivos e as cores sugerem
padrões indígenas, provavelmente Guarani”. De acordo com Kok,
“(...) apesar dos ‘pintores’ indígenas terem sido orientados para
copiar os modelos europeus, as pinturas expressavam também a
recriação das tradições culturais ameríndias.” (Kok, 2011, p. 54).
Esta polêmica hipótese levantada por Kok suscitou
questionamentos no meio acadêmico sobre as relações entre as
culturas ameríndias e a cultura euro cristã presentes nestas
pinturas. Apesar da forte evidência em relação à presença de
índios e mestiços, e o uso destes enquanto construtores e artífices
no aldeamento de São Miguel, tais afirmações precisam ser
cuidadosamente analisadas. Como vimos, apesar dos motivos
celestes estarem associados à cosmologia indígena, estes motivos
também foram bastante explorados pela tradição emblemática,
presente nas bibliotecas e nas decorações das Missões da
Companhia de Jesus na América (Martins, 2013, p. 81-102). Isto
posto, estes motivos presentes nas pinturas em São Miguel
estariam mais ligadas a um duplo signo das imagens celestes, do
que a uma expressão indígena autóctone; contemplando, com
efeito, tanto a cultura cristã europeia, quanto as culturas
ameríndias.

726
Uma Dimensão Material das Trocas Culturais: Tintas
Minerais e Vegetais

Apesar das evidências apresentadas até aqui em relação à


circulação de um determinado repertório iconográfico e
decorativo nas Missões jesuíticas nas Américas, à luz das
produções da Companhia de Jesus na Europa e na América
Hispânica, é preciso ressaltar que o processo de circulação,
difusão e trocas culturais entre jesuítas, indígenas, negros e
mestiços, se deu de forma muito mais complexa do que alguns
estudiosos sustentaram durante décadas. Uma leitura tradicional
das transferências formais considerou as manifestações artísticas
e culturais americanas como fruto de uma relação periférica e de
dependência dos “centros criadores” de cultura, como se fosse um
prolongamento “provinciano” do que era realizado na Europa,
porém de forma “malfeita”. Portanto, ao se propor uma leitura
que se fundamente na mesma realidade colonial, entenderemos
sua arte como uma presença cultural que retrata os modos de
vida daquelas sociedades, em detrimento de uma cópia de um
modelo formal europeu.
O indígena indubitavelmente contribuiu para o trabalho
artístico das Missões com uma soma de conhecimentos empíricos:
ele conhecia melhor do que ninguém os materiais locais e onde
obtê-los; as qualidades de certas madeiras ou águas, etc. (Plá, s/d,
p. 127) Por conseguinte, os jesuítas teriam recorrido ao
conhecimento que os nativos tinham para obterem materiais para
suas construções, além da fabricação das tintas por meio dos
materiais vegetais e minerais, abraçando, desse modo, uma
variedade de soluções e técnicas indígenas. Temos como exemplo

727
na América portuguesa, a notícia de pigmentos vegetais
produzidos localmente, descritos pelo jesuíta português João
Daniel no século XVIII em sua crônica “Tesouro Descoberto no
Máximo Rio Amazonas”, 5 no qual também elabora um tratado
44F

intitulado “Das Tintas mais especiais do Rio Amazonas” (Martins,


2016, p. 70-84). Neste tratado, o jesuíta descreve os métodos de
obtenção de tintas e vernizes a partir de plantas e frutos
utilizados na Amazônia (Martins, 2016, p. 70-84).
Gabriela Siracusano em seu trabalho El poder de los
colores, analisa a dimensão material das representações coloniais
— notadamente nos Andes — a partir da identificação e do estudo
dos pigmentos utilizados. A autora aponta que cidades como
Cuzco, Potosí e Charcas teriam sido os maiores centros
provedores deste tipo de material até o início do século XVIII,
evidenciando a circulação de pigmentos minerais e vegetais como
resinas, óleos, auripigmento, vermelhão, pau-Brasil, etc., entre as
oficinas jesuíticas de Moxos e Chiquitos, 6 onde estes pigmentos
45F

eram processados por aprendizes indígenas se utilizando de


pedras ou tacanas (Siracusano, 2005, p. 157).
Por meio dos relatórios técnicos realizados durante o
trabalho de restauro da Capela de São Miguel, sabemos que os
pigmentos utilizados nas pinturas parietais são derivados
principalmente de material mineral, predominando o pigmento

5 Neste documento escrito entre 1757 e 1776, João Daniel relata o período em

que viveu no antigo Estado do Maranhão e Grão-Pará, entre os anos 1741 e 1757.
(Martins, 2009, p. 245).
6 “(...) polvos azules, albayalde, oropimente, resinas, aceites, abalorios de

distintos colores llamados chaquiras, bermellón, "colores finos del Perú",


‘encomiendas de Cuzco de colores’, magno, bol arménico, Palo de Brasil, todos
ellos junto a un conjunto de imágenes y lienzos de diferentes advocaciones.”
(Siracusano, 2005, p. 107).

728
vermelho — uma mistura do vermelhão (HgS) e do vermelho de
chumbo (Pb3O4). O pigmento preto indica ser um material
carbonoso ou negro vegetal, e o pigmento branco seria uma
mistura de caulim e carbonato de cálcio. A utilização das três
cores, vermelho, preto e branco para estas pinturas é uma das
particularidades de São Miguel. Tanto em obras na Europa quanto
nas Américas, sobretudo nos Andes, eram mais frequentes ou as
cores preto e branco, ou uma variação maior de cores, incluindo o
azul e o verde. O uso das três cores nas pinturas parietais da
Capela de São Miguel podem indicar um padrão estético, ao
mesmo tempo que também pode se tratar apenas de uma questão
de disponibilidade material naquele aldeamento, naquele
momento. Como já sabemos, o vermelhão, ou bermellón estava
entre os materiais que circularam entre as Missões nas Américas,
sendo largamente utilizado na pintura andina. Assim, é bastante
provável que o vermelhão usado na Capela de São Miguel não
fosse produzido localmente.
De acordo com Gabriela Siracusano, o uso do vermelhão
combinado com o vermelho de chumbo, indicaria que aqueles que
decidiram por esta combinação — entre outras —, dominavam a
práxis e detinham conhecimento especializado, provavelmente
advindo da leitura de manuais ou “livros de segredos”, e pela
troca oral e experimental entre os ofícios que também se
utilizavam destas “receitas”, como aqueles que trabalhavam com
metais, boticários e até mesmo médicos (Siracusano, 2005, p.
214). Em relação ao vermelhão, é importante ressaltarmos sua
utilização e conhecimento pelos indígenas, entre diversos outros
pigmentos. Antes mesmo da colonização, para os indígenas, este
derivado do cinábrio era utilizado nas pinturas murais e também
corporais, e para a cultura indígena também seria portador de um

729
poder sagrado, e assim como outros minérios, era usado em
cerimônias rituais de cura do corpo e da alma (Siracusano, 2005,
p. 304). E assim, para os indígenas,

As buscas experimentais, o conhecimento


compartilhado com outras práticas e a presença de uma
tradição indígena ligada ao uso de corantes e pigmentos
podem ter tido uma presença talvez não tão exposta
quanto a criatividade iconográfica que deu origem ao
que tem sido chamado 'arte mestiça', mas igualmente
digna de ser levada em conta para entender os
processos criativos que intervieram no campo das
oficinas. 7 (Siracusano, 2005, p. 161)
46 F

A Interculturalidade na região da antiga Vila de São


Paulo e Piratininga

Na Capela de São Miguel Arcanjo, a utilização da mão-de-obra


indígena, africana ou mestiça teria se dado na construção da
capela e muito provavelmente, também na decoração. Além das
pinturas parietais, é possível se notar o trabalho de artífices locais
em outros elementos artísticos e decorativos da Capela, ainda
hoje preservados, entre os quais se destacam: as imagens; a pia
batismal; o armário e o altar da sacristia; o altar da capela lateral,
além das pinturas do forro e da grade de comunhão em jacarandá.
As peças datadas entre os séculos XVII e XVIII, são consideradas

7 “Las búsquedas experimentales, los conocimientos compartidos con otras


prácticas y la presencia de una tradición indígena ligada al uso de colorantes y
pigmentos pueden haber tenido una presencia tal vez no tan expuesta como la
creatividad iconográfica que dio origen a lo que se ha dado en llamar ‘arte
mestizo’, pero igualmente digna de ser tenida en cuenta para comprender los
procesos creadores que intervenían en el ámbito del taller.” [Tradução nossa].

730
os últimos remanescentes da arte do período colonial paulista.
Apesar de termos algumas peças evidentemente um pouco mais
eruditas, 8 além das imagens importadas da Europa, ainda assim,
47F

grande parte dos elementos decorativos preservados na Capela de


São Miguel seriam resultantes de uma relação mediadora entre as
culturas europeia e ameríndia.
Outro elemento de destaque presente na Capela de São
Miguel são as duas figuras cariátides talhadas nas extremidades
da grade de comunhão em jacarandá. Tais figuras femininas se
misturam com elementos fitomórficos em seu corpo e base, e
apresentam vestígios de policromia. Sabendo-se do emprego de
indígenas como artífices de carpintaria dos aldeamentos da região
da antiga Vila de São Paulo de Piratininga (Kok, 2016, p. 272), é
muito provável que estas figuras, que despertaram a atenção de
Mário de Andrade e Lúcio Costa no final da década de 1930, sejam
fruto de mãos de aprendizes locais (indígenas, negros ou
mestiços). De acordo com a antropóloga Glória Kok, essas figuras
talhadas revelariam o domínio da técnica indígena, formando
“composições originais divergentes dos modelos jesuíticos” (Kok,
2011, p. 55). Porém, como já observamos anteriormente, é preciso
cautela ao se afirmar tais expressões como autóctones ao se tratar
de objetos artísticos fruto de uma relação intercultural.

8 Como observado por Mozart Bonazzi da Costa (2005) e também por Eduardo

Etzel (1974), na antiga Vila de São Paulo de Piratininga, a presença de oficiais


qualificados era rara

731
Considerações Finais

A historiografia da arte colonial, cujo enfoque privilegia


apenas as questões estilísticas, carregada de uma visão
eurocêntrica e formalista; característica do início do século XX,
sustentou durante décadas uma ideia de transferência formal dos
modelos europeus. No entanto, os estudos mais recentes, em
grande medida, superaram tais ideias ao adotar uma nova
metodologia mais abrangente, a qual também volta o olhar para
os processos de trocas culturais. Como sugere o historiador da
arte canadense Gauvin Alexander Bailey, ao se estudar as artes
das Missões Jesuíticas, é preciso que se compreenda o contexto
histórico, econômico, social e antropológico daqueles que tiveram
contato com a cultura dos jesuítas, em uma relação de trocas
culturais cuja contribuição na história das edificações
missioneiras “nunca poderá ser entendido fora de seu contexto e
sem a determinante mão do outro” (Bailey, 2001, p. 38-39). Não
se tratando de uma simples recepção e reprodução de modelos
europeus, teríamos portanto, como uma das especificidades das
artes das Missões, a recorrente mão-de-obra local (indígena,
africana, mestiça) orientada pelos missionários 9 a partir destes
48F

modelos.

9 Não apenas pelos jesuítas. Lembremos que em 1640, com a expulsão da


Companhia da Capitania de São Vicente, o aldeamento de São Miguel passou a
ser administrado pela Câmara, além da presença de franciscanos, e,
provavelmente também de artífices mestiços de formação local. No entanto,
consideramos a cultura jesuítica como aquela fundadora do aldeamento e da
Capela de São Miguel, tendo esta permanecido mesmo após a primeira expulsão
da Companhia.

732
Podemos portanto observar o resultado destas trocas nos
elementos artísticos da Capela de São Miguel, bem como nas
demais igrejas e capelas da região de São Paulo de Piratininga que
faziam parte de uma rede de aldeamentos jesuíticos. Assim,
podemos afirmar que as manifestações artísticas desta região, se
deu, em grande medida, pela atuação dos padres da Companhia de
Jesus por meio das oficinas jesuíticas, e também pela interação
entre as redes de trocas de materiais, técnicas e mão-de-obra, que
desempenharam importante papel interligando os diferentes
sujeitos e grupos ali presentes. Visando a catequização indígena,
os padres teriam se utilizado do repertório simbólico e
moralizante presentes nas gravuras e nos livros de emblemas,
enquanto os artífices assimilavam e interpretavam a cultura
europeia. Tais afirmações podem ser apreendidas pelas pinturas
de “retábulos fingidos”, bem como as pinturas de brutescos,
presentes na decoração de tetos e de sacrários na Capela de São
Miguel — e em outras igrejas como já mencionamos ao longo
deste trabalho —, que também aparecem tanto em Portugal,
quanto nas Américas no mesmo período entre os séculos XVI e
XVIII. Além da difusão dos símbolos, também notamos a difusão
de materiais, a partir das pinturas parietais da Capela de São
Miguel. Dado o uso de pigmentos ditos sofisticados, de acordo
com os indícios de que dispomos, o uso do vermelhão, ainda que
não integrasse o rol de conhecimentos ancestrais dos índios deste
aldeamento (visto que não existem jazidas de cinábrio no
Brasil), 10 era, com efeito, parte integrante de uma rede de
49F

10O mercúrio não é minerado no Brasil, sendo desconhecida a existência de


depósitos. Não sendo um produtor por meio da mineração primária, o Brasil
importa toda a quantidade consumida de mercúrio. O cinábrio é abundante no

733
circulação de materiais e técnicas; rede esta alimentada, como
vimos, pelo movimento de mestres e aprendizes entre as missões
e as regiões mineiras da América espanhola. Esta circulação e
estas trocas culturais poderiam ter resultado, com efeito, numa
forma de “cultura mestiça”; permitindo, além do suprimento da
demanda por mão-de-obra, o intercâmbio de conhecimentos e de
interpretações particulares do fazer artístico.
A partir da descoberta das pinturas parietais da Capela de
São Miguel, se evidenciou como essas redes de trocas culturais
podem ter atuado na região, ressignificando a história deste
templo religioso. A “Capela dos índios” 11, que até então ganhava
50F

destaque apenas pela sua peculiar arquitetura com alpendre em


“L” e pelas figuras cariátides entalhadas na grade de comunhão,
permitiu um novo olhar sobre as culturas ali presentes em sua
construção e decoração. Apesar de não estar documentada a
fatura ou a presença destas pinturas, e ainda pairar incertezas,
dadas as vicissitudes pelas quais os jesuítas passaram no período
colonial, 12 podemos afirmar que estas pinturas foram, muito
51F

provavelmente, executadas após a primeira expulsão dos jesuítas


em 1640. 13 Por terem permanecido escondidas, ou mesmo
52F

leste europeu, Espanha, México e Argélia. (Brasil. Ministério do Meio Ambiente,


s/d).
11 Dessa forma que a comunidade local carinhosamente se refere à Capela de São

Miguel.
12 Lembramos da expulsão dos jesuítas da capitania de São Vicente em 1640,

passando a administração da aldeia de São Miguel para a Câmara Municipal; a


readmissão da Ordem na Capitania em 1653; a transferência da administração
para os franciscanos por volta de 1796; e a expulsão da Ordem dos jesuítas das
colônias portuguesas em 1759.
13 A datação de quando as pinturas parietais devem ter sido feitas é muito

variada. As hipóteses levantadas por historiadores, antropólogos e pelos


profissionais responsáveis pelo restauro não seguem um consenso, variando

734
protegidas pelos retábulos de madeira, são obras praticamente
intocadas e preservam um modelo e iconografia tal qual havia
sido pensado nas últimas décadas do século XVII (Montanari,
2018, p. 197). Também não conhecemos até o momento a
presença de pinturas semelhantes nas igrejas ou capelas do
período colonial no território da antiga Capitania de São Vicente.
No entanto, temos ainda na região exemplares de talha que
carregam consigo semelhanças consideráveis em relação à sua
estrutura e ornamentação, onde podemos notar uma evidência da
circulação de modelos e repertórios ornamentais e artísticos nos
retábulos paulistas, como ocorrido nos grandes centros artísticos
da colônia, como Salvador, Olinda e Recife, dada as devidas
proporções (Bonazzi da Costa, 2005, p. 77-78).
Reconhecemos as dificuldades e a fragilidade de se preservar
este tipo de arte, que por vezes aparecem escondidas atrás de
retábulos e/ou encobertas com cal ou camadas de pintura, não
permitindo sua análise detalhada; ou simplesmente se deterioram
devido às intempéries, ou até mesmo, são deliberadamente
destruídas juntamente com seus edifícios. O caso das pinturas
parietais da Capela de São Miguel é visto por muitos como um
“milagre” por estas pinturas estarem perfeitamente legíveis na
ocasião da sua descoberta e por aparentemente não ter sofrido
nenhuma modificação ao longo dos séculos. Lembremos que
muito do que hoje se conhece em relação à arte do período
colonial, se perdeu ou deteriorou, ou sofreu alterações ou
mutilações com as mudanças de gosto e a “necessidade de
modernização” de cada época. Sem mencionar a precariedade da

entre as datas de 1622, 1640 e 1670. No entanto, em nossos estudos


encontramos evidências que descartam as duas primeiras como possíveis.

735
política de patrimônio cultural do Brasil, que sofre pelo descaso
institucional. Ao voltar o olhar aos grupos e sujeitos envolvidos na
produção artística e arquitetônica do período colonial, livre de
uma concepção eurocêntrica, ao se pautar nas relações
interculturais que permeavam as Missões jesuíticas, podemos
reconhecer a presença do que se poderia chamar de uma “cultura
mestiça” e permitir a construção de uma história que reconhece
os diversos grupos e sujeitos que construíram a arte e a sociedade
brasileira.

REFERÊNCIAS
AMARAL, A. 1981. A Hispanidade em São Paulo: da casa rural à
Capela de Santo Antônio. São Paulo, Nobel/Ed. Da Universidade de
São Paulo.
ARROYO, L. 1966. Igrejas de São Paulo: introdução ao estudo dos
templos mais característicos de São Paulo nas suas relações com a
crônica da cidade. 2. ed. rev. e atual. São Paulo, SP Comp. Ed.
Nacional.
BAILEY, G. A. 2000. Le style jèsuit n’existe pas: Jesuit Corporate
Culture and the Visual Art”. In: O’MALLEY, J. S.J. et al (Org.). The
Jesuits: Cultures, Sciences, and the Arts: 1540- 1773. Toronto,
University of Toronto Press, p. 38-89.
______. 2001. Art on on the Jesuit Missions in Asia and Latin
America. Toronto; Buffalo, University of Toronto Press.
______. 2005. Art of Colonial Latin America. Londres, Phaidon.
BAZIN, G. 1983. A Arquitetura Religiosa Barroca no Brasil. Rio de
Janeiro. Record.
BOMTEMPI, S. 1970. O bairro de São Miguel Paulista: a aldeia de
São Miguel de Ururaí na história de São Paulo. São Paulo, SP,
Secretaria de Educação e Cultura.
BONAZZI DA COSTA, M. A. 2005. A Talha Dourada na Antiga
Província de São Paulo: Exemplos de Ornamentação Barroca e

736
Rococó. In: TIRAPELI, P. (Org.) Barroco Memória Viva. Arte Sacra
Colonial. São Paulo, Ed. Unesp/Imprensa Oficial, p. 77-78.
BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. s/d. Segurança Química-
Mercúrio. Disponível em:
http://www.mma.gov.br/perguntasfrequentes?catid=28 Acesso
em: 4 abr. 2018.
BURY, J. 1991. Arquitetura e Arte no Brasil Colonial. São Paulo,
Nobel.
CAETANO, J. I. 2016. Retábulos fingidos na pintura mural
portuguesa. Disponível em:
https://www.academia.edu/21697216/Ret%C3%A1bulos_fingid
os_na_pintura_mural_portuguesa_vers%C3%A3o_n%C3%A3o_pu
blicada_com_todas_as_imagens_dos_ret%C3%A1bulos_referidos_
Acesso em: 2 abr. 2018.
CERQUEIRA, C. G. 2014. História de um monumento: Igreja Matriz
de Itanhaém. São Paulo, o autor, Disponível em:
https://patrimoniovaledoribeira.files.wordpress.com/2014/03/h
istc3b3ria-de-um-monumento-igreja-matriz-de-itanhac3a9m-
1c2aa-parte.pdf Acesso em: 4 abr. 2018.
CORTI, P.; GUZMÁN, F.; PEREIRA, M. 2013. La Pintura Mural de
Parinacota en el Último Bofedal de la Ruta de la Plata. Arica,
Edición de Fundación Altiplano Monseñor Salas Valdés y Centro
de Estudios del Patrimonio Universidad Adolfo Ibañez.
COSTA, L. 1941. A arquitetura jesuítica no Brasil. Revista do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro, 5, p. 09-
104.
ETZEL, E. 1974. O Barroco no Brasil: psicologia - remanescentes
em São Paulo,Goiás, Mato Grosso, Paraná, Santa Catarina, Rio
Grande do Sul. 2. ed. São Paulo, SP, Melhoramentos.
GISBERT, T. 2008. Iconografías y mitos indígenas en el arte. La
Paz, Editorial Gisbert y Cia.
HOLANDA, S. B. 1941. Capelas antigas de São Paulo. Revista do
Serviço de Patrimônio Histórico Nacional. Rio de Janeiro, 5, p.
105-120.

737
KOK, G. 2011. A presença indígena nas capelas da Capitania de São
Vicente (Século XVII). Espaço Ameríndio, Porto Alegre, 5(2), p. 45-
73 Disponível em:
http://seer.ufrgs.br/index.php/EspacoAmerindio/article/view/1
9732/13847. Acesso em: 08 mai. 2018.
______. 2016. Índios de ofícios e índios ‘encapelados’ da Capitania
de S. Vicente no século XVII. In: FERNANDES, E. (Org.). A
Companhia de Jesus e os Índios. Curitiba, Editora Prismas, pp.
216-231.
LEITE, S. 2000. História da Companhia de Jesus no Brasil (1938).
10 Vol. Belo Horizonte, Itatiaia.
MAGAÑA, R. V. 1995. La Pintura Mural en Hispanoamérica. In:
GUTIÉRREZ, R. (Coaut.). Pintura, Escultura y Artes Útiles en
Iberoamérica, 1500- 1825. Madri, Manuales Cátedra, p. 189-204.
MARTINS, R. M. A. 2009. Tintas da Terra, Tintas do Reino:
Arquitetura e Arte nas missões jesuíticas do Grão-Pará, 1653–
1759”. São Paulo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade de São Paulo [tese de doutorado. Orientador: Prof.
Dr. Luciano Migliaccio].
______. 2013. La Compagnia sia come un cielo: o sol, a lua e as
estrelas dos livros de emblemas para a decoração das igrejas das
missões jesuíticas na América Portuguesa. In: DUVE, T. et al. (Ed.).
Jahrbuch fur Geschichte Lateinamerikas/Anuario de Historia de
América Latina, vol. 50. Colônia/Weimar/Viena, Bohlau Verlag, p.
81-102.
______. 2014. Além do Olhar: as fontes para a apropriação das
técnicas e dos materiais das culturas indígenas nas artes da
Amazônia Colonial (séculos XVII e XVIII). In: KNAUSS, P.; MALTA,
M. Objetos do Olhar: História e Arte. São Paulo, Rafael Copetti
Editor, p. 139-154.
______. 2016. Uma cartela multicolor: objetos, práticas artísticas
dos indígenas e intercâmbios culturais nas Missões jesuíticas da
Amazônia colonial. Caiana. Revista de Historia del Arte y Cultura
Visual del Centro Argentino de Investigadores de Arte (CAIA). (8),
Primer semestre, p. 70-84. Disponível em:

738
http://caiana.caia.org.ar/template/caiana.php?pag=articles/articl
e_2.php&obj=233&vol=8 Acesso em 4 abr. 2018.
______. (no prelo a). Veredas de Luz. A imagem do sol, da lua e das
estrelas e a arte dos emblemas nas Missões Jesuíticas, da
Amazônia à Argentina. In: MELLO, M.(Org.). Belo Horizonte, Ed.
UFMG.
______. (no prelo b). Imagens de corpos celestes e a arte dos
emblemas na decoração de espaços jesuíticos da Amazônia à
Argentina. Boletin de Estudios y Investigaciones del Instituto de
Teoría y História del Arte Júlio Payró de la Facultad de Filosofia y
Letras de la Universidad de Buenos Aires, Buenos Aires.
MONTANARI, T. C. 2018. A Capela de São Miguel Arcanjo e suas
pinturas parietais: interculturalidade nas artes das missões
jesuíticas no estado de São Paulo. In: CONGRESSO
INTERNACIONAL DE AMERICANISTAS, 2018, Salamanca,
Memoria Del 56.º Congreso Internacional De Americanistas v. 3
Arte. Salamanca, Ediciones Universidad Salamanca, p. 187- 199.
Doi: http://dx.doi.org/10.14201/0AQ0251_3. Acesso em: 30 jan.
2019.
MORAES, J. 2015. O Restauro nos monumentos sacros paulistas.
In: TIRAPELI, P. (Org.). Patrimônio Sacro na América Latina.
Arquitetura / Arte / Cultura. São Paulo Arte Integrada, p. 317-324.
PETRONE, P. 1995. Aldeamentos paulistas. São Paulo, SP, EDUSP.
PFEIFFER, H. SJ. 2003, La Iconografía. In: SALE, G. S.J (Ed.), Ignacio
y el Arte de los Jesuitas. Bilbao, Ediciones Mensajero. p. 169-206.
PLÁ, J. (s/d): El Barroco Hispano-Guaraní. Assunção, Universidad
Católica Nuestra Señora de la Assunción/Editora Intercontinental.
ROWËR, F. B. 1957. Páginas de História Franciscana no Brasil.
Petrópolis, Ed. Vozes.
SERRÃO, V. 2000. A Pintura Protobarroca em Portugal, 1612-
1657. O Triunfo do Naturalismo e do Tenebrismo. Lisboa. Edições
Colibri.
SERRÃO, V.; LAMEIRA, F. 2002/2003. O Retábulo protobarroco.
Revista Promontoria. 1, 2002/2003. p. 68-86. Disponível em:

739
https://sapientia.ualg.pt/bitstream/10400.1/7025/1/05%20Tex
to%20Serr%C3%A3o%20Lameira.pdf Acesso em: 26 mar. 2018.
SMITH, R. C. 1962. A Talha em Portugal. Lisboa, Livros Horizonte.
TIRAPELI, P. 2003, Igrejas Paulistas: Barroco e Rococó. São Paulo,
Editora UNESP e Imprensa Oficial do Estado.
______. 2015. Pinturas Jesuíticas em São Miguel Paulista. In:
TIRAPELI, P. (Org.). Patrimônio Sacro na América Latina.
Arquitetura / Arte / Cultura. São Paulo, Arte Integrada, p. 325-
338.

740

Você também pode gostar