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A AÇÃO GLOBAL DA
COMPANHIA DE JESUS:
EMBAIXADA POLÍTICA E
MEDIAÇÃO CULTURAL
E-book
OI OS
EDITORA
São Leopoldo
2018
© Dos autores – 2018
Editoração: Oikos
Capa: Juliana Nascimento
Revisão: Dos autores
Diagramação: Mariana Schossler
Arte-final: Jair de Oliveira Carlos
Introdução
713
pelos repertórios de brutescos, recorrentes na arte europeia, ao
mesmo tempo em que também fazem referência à cultura
ameríndia. A isto, soma-se o possível emprego de mão-de-obra
indígena, negra e mestiça na construção e decoração da capela.
Tendo em vista suas especificidades locais e referências globais,
propomos a análise e discussão da interculturalidade nos
elementos decorativos da Capela de São Miguel Paulista entre os
séculos XVII e XVIII, considerando-se também as redes de trocas
culturais e os estudos já realizados sobre as Missões Jesuíticas na
América Hispânica e na Amazônia da América Portuguesa.
714
A administração do aldeamento de São Miguel passou das
mãos dos jesuítas para a Câmara Municipal de São Paulo, com a
expulsão dos padres da Companhia de Jesus da Capitania de São
Vicente em 1640, devido a conflitos de interesses com a Coroa e
os colonos especialmente em relação à escravidão indígena.
Apesar de readmitidos em 1653, os jesuítas não teriam mais
jurisdição temporal nem espiritual sobre os aldeamentos régios.
No início do século XVIII, os franciscanos assumiram a assistência
temporal e religiosa do aldeamento de São Miguel. Por volta de
1780, Frei Mariano da Conceição Veloso teria orientado a reforma
da Capela deste aldeamento, a qual consistiu no acréscimo de 2,5
metros de adobe, elevando a estrutura de taipa de pilão do pé
direito da nave central, a abertura de duas janelas acima do
telhado fronteiro, a construção da capela lateral e seu altar, o
escoramento interno de madeira, a inserção de douramento nas
decorações no altar principal da sacristia e para a capela lateral, e
por fim, o arruamento da Aldeia. Assim se configurou a
espacialidade arquitetônica da Capela de São Miguel Arcanjo, tal
qual a conhecemos.
A religiosidade cristã foi um dos principais pilares da
sociedade colonial no Brasil. Consequentemente, a edificação e
manutenção de templos religiosos fazia parte da organização
social da colônia, sendo frequente o emprego da mão-de-obra
indígena como construtores e artífices de carpintaria (Amaral,
1981, 49), sendo estes também os responsáveis pela conservação
e melhoria das igrejas e capelas dos aldeamentos jesuíticos.
Considerada uma das obras artísticas e arquitetônicas mais
importantes do período colonial paulista, a Capela de São Miguel
tornou-se um dos primeiros bens tombados e restaurados pelo
Instituto do Patrimônio Artístico Nacional (IPHAN) entre 1938 e
715
1941. Apesar de ter passado por diversas obras de reparo e de
restauro ao longo dos séculos, a capela ainda preserva, além de
sua construção em taipa de pilão, parte da sua decoração do
período colonial, como as imagens, a pia batismal, o armário e
altar da sacristia, o alpendre em L, as pinturas do forro, e a grade
de comunhão com imagens antropomorfas talhadas em jacarandá.
Porém, seu elemento decorativo de maior relevância atualmente
são as pinturas murais encontradas embaixo dos altares laterais
em madeira, durante o último trabalho de restauro em 2007.
As pinturas da Capela de São Miguel Paulista simulam um
altar de talha em estilo nacional-português; 1 apresentando
40F
716
jesuítas, e também pela Companhia de Jesus “ter figurado como o
canal de transmissão mais influente da cultura europeia para a
América portuguesa” (Bury, 2006, p. 64).
717
de paramentar o templo religioso com um retábulo talhado em
madeira. Vítor Serrão e Francisco Lameira citam o exemplo da
igreja do Colégio de Santo Antão de Lisboa (1653), que em sua
inauguração não possuía todos os paramentos: “na capela mor se
fingiu na parede fronteira um retábulo pintado, cuja obra se
imitou nos dois altares do cruzeiro” (Serrão e Lameira,
2002/2003). Esta questão provisória justificaria o declínio desta
arte a partir de meados do século XVII, perdendo também seu
protagonismo na função catequética, passando a ser,
essencialmente, elemento decorativo (Caetano, 2016). No caso da
Capela de São Miguel, Percival Tirapeli também sustenta que as
pinturas parietais seriam esboços, para os posteriores retábulos
em madeira (Tirapeli, 2015), como, segundo o pesquisador,
acontece em outros casos na América Hispânica, apesar de não
especificar nenhuma igreja em particular. Ademais, não temos
evidência alguma de ter existido retábulos de talha na Capela de
São Miguel com tipologia semelhante às pinturas parietais, ou
mesmo que os retábulos de madeira tenham sido pintados de
forma imitativa.
Ao período de declínio desta arte em Portugal, em meados do
século XVII, segundo Caetano, se enquadram os poucos
exemplares de produção barroca, com seus elementos clássicos
“onde estão presentes as colunas torsas que criam o espaço
central para a cena principal, remate com figuras de anjos,
atlantes cariátides a suportar o entablamento e a utilização de
folhas de acanto e enrolamentos de voluta na decoração, entre
outros” (Caetano, 2016). Caetano destaca três exemplares
conhecidos deste período, entre os quais, o retábulo fingido da
igreja de Santa Catarina de Soutilha (Mirandela), dedicado ao
culto das almas, datado do final do século XVII. Em relação ao
718
estilo retabular representado e à técnica empregada, este retábulo
fingido é muito semelhante ao da capela de São Miguel Arcanjo,
apresentando a mesma estrutura com dois pares de colunas
torsas, a pintura do barrado e o nicho lateral, além da
predominância da cor avermelhada e da contemporaneidade de
sua fatura.
A pintura de “retábulos fingidos” também seria recorrente na
América hispânica, porém, com suas devidas especificidades.
Nesta região, das chamadas pinturas murais, muito pouco se
preservou, devido às condições sísmicas e também pela
recorrência das construções em pedra, o que muitas vezes não
permitiu a boa preservação deste tipo de arte. No entanto, na
região andina, ainda se preservam algumas capelas e igrejas
inteiramente pintadas, como a igreja de San Santiago de
Carahuara de Carangas (século XVII) na Bolívia, conhecida como a
“capela sistina dos Andes”, e a menos conhecida igreja Virgen de la
Natividad de Parinacota (séculos XVII - XVIII) no sul do atual
território do Chile. Ambas as igrejas apresentam todo o seu
interior ornamentado com pinturas murais de repertório
iconográfico cristão, como o juízo final, os sacramentos e a paixão
de Cristo. A pintura enquanto ornamentação de edifícios
religiosos e demais construções públicas e civis, teve papel
importante e recorrente nas primeiras Missões jesuíticas na
América Hispânica. De acordo com Josefina Plá, nas capelas e
igrejas, tudo teve eventualmente sua decoração pintada; desde
quadros, paredes e tetos, até coros, púlpitos e confessionários
(Plá, s/d, p. 166). Assim, estas pinturas serviam de ferramenta
para a catequização e fixação da doutrina cristã entre os neófitos,
ao mesmo tempo em que se buscava recriar a estética do
esplendor interior das igrejas europeias por meio delas (Bailey,
719
2005), sobretudo em localidades menos centrais em que a
presença religiosa era esporádica (Corti et al., 2013, p. 27). Esta é
uma hipótese a ser considerada em relação às pinturas da Capela
de São Miguel Arcanjo, dado que neste aldeamento os padres
eram apenas visitadores, sem residência fixa, além dos possíveis
trânsitos culturais entre o altiplano boliviano e a vila de São Paulo
(Amaral, 1981; Kok, 2011; Tirapeli, 2015).
É preciso termos em conta que, na América hispânica, a
cidade de Cuzco foi o centro artístico mais importante da região
sul andina. De acordo com Rodolfo Vallín Magaña em seu estudo
sobre a pintura mural na América espanhola, no período colonial,
esta região teria atuado como centro irradiador, expandindo a
arte mural para outras regiões, tais como os atuais território do
Chile, Argentina e Bolívia (Magaña, 1995, p. 195). Por conseguinte,
esta arte também teria chegado em território Guarani,
abrangendo desde Santa Cruz de la Sierra (Bolívia), Paraguai até a
costa Argentina, nas Missões em Santa Rosa de Misiones, Moxos e
Chiquitos, Yaguarón e Capiatá; apesar de seus exemplares serem
mais esporádicos e limitados no tempo (Magaña, 1995, p. 195).
Também é preciso se considerar que um dos modos de circulação
desta arte foi por meio da transferência de artistas europeus,
trabalhadores, mestres e indígenas, de uma Missão a outra,
buscando uma maior eficiência e economia de tempo e energia.
Ademais, a escassez de mestres versados em belas artes também
fez com que os poucos jesuítas habilidosos nessa ou naquela
disciplinas — arquitetura, pintura, escultura — teriam que estar
constantemente mudando de uma Missão a outra, ensinando ou
dirigindo obras em cada uma delas (Plá, s/d, p. 77).
Desse modo, era frequente a circulação de trabalhadores
previamente instruídos ou com experiência em Missões anteriores
720
na organização das oficinas recém-fundadas ou reconstituídas.
Estes missionários teriam trazido consigo as técnicas e os modelos
a serem seguidos e (re)interpretados pelos indígenas aprendizes,
geralmente se utilizando de modelos provenientes de gravuras
europeias, especialmente as gravuras flamengas, ou imagens de
livros impressos (Bailey, 2005, p. 257). Logo, chegavam as modas,
as iconografias e os estilos europeus de cada época. A presença de
vários mestres jesuítas reconhecidos de diversas nacionalidades
nas Missões teria se dado desta forma. Na América hispânica
destacamos nomes como Verger, Primoli, Brassanelli, Grimau, entre
outros; e na América Portuguesa, o arquiteto Francisco Dias ainda
no século XVI, João Felipe Bettendorff no século XVII, e João Xavier
Traer, no século XVIII. Este último, escultor procedente do Colégio
jesuítico de Viena, que chegou a São Luís do Maranhão em 1703, e
foi chefe da oficina do colégio do Pará de 1705 a 1737, ano de sua
morte (Martins, no prelo).
Nas Américas, a organização das oficinas jesuíticas nas Missões
era semelhante às das oficinas europeias do período: os artistas
indígenas trabalhavam em grupos como aprendizes de um mestre
europeu ou indígena (no caso das Missões do Paraguai geralmente
era um nobre Guarani), supervisionados periodicamente pelos
padres jesuítas (Bailey, 2005, p. 256-257). As atividades artísticas
realizadas nestas oficinas eram pautadas primordialmente pelo
propósito do catecismo, seguido pela dignidade e esplendor do
culto (Plá, s/d, p. 58); e o sistema de trabalho era fundamentado
pela cópia, ou seja, os indígenas realizavam trabalhos previamente
determinados, instruídos pelos mestres. Assim, os artistas
indígenas assimilaram a iconografia cristã interpretando-a de
modo a refletir suas próprias preferências artísticas e de visão de
mundo, resultando em peças altamente expressivas (Plá, s/d, p.
721
71), por vezes figurando imagens europeias conjuntamente a
fundos decorativos imitando os padrões tradicionais têxteis
andinos pré coloniais, 3 atestando, de certa forma, a persistência
42F
3 Sobre a imitação de padrões têxteis andinos, ver: Bailey, 2005 e Magaña, 1995.
722
missionários buscaram erradicar, figurava a crença nos astros. 4 43F
4“(...) sabemos por las crónicas, y en particular por la de Guamán Poma de Ayala,
que los indios practicaban la astrología; por otra parte, el Concilio de Lima de
1613 trató de atajar el problema, pero no se logró extirparlo porque la idolatría
pervivió en el siglo XVII mezclada con la hechicería y la astrología.” (Sebastián,
1989, p. 20).
723
Schiller, em seu atlas estelar Coelum stellatum christianum (1627),
no qual o autor faz a correspondência entre as doze constelações
do zodíaco e os apóstolos, entre as constelações do Norte e do Sul
e figuras do Velho e do Novo Testamento. Assim, o Sol seria o
Cristo, e a Lua seria a Virgem Maria (Sebastián, 1989: 17). Esta
tendência se perpetua na obra Esphera en común celeste y
terraquea (1679), do jesuíta espanhol José Zaragoza (Sebastián,
1989, p. 17). O próprio monograma da Companhia de Jesus,
rodeado de raios solares, aparece desde a primeira edição dos
Exercícios Espirituais (1549) de Santo Inácio, e também na
identificação das obras literárias e artísticas da Companhia ao
redor do mundo (Martins, no prelo b). Descritos como “raios
triangulares e retos, em alternância com outros ondulados”, de
acordo com Renata Martins, estes seriam semelhantes àqueles
encontrados nas pinturas parietais da Capela de São Miguel, bem
como em diversos retábulos de igrejas da Companhia, que
figuram no fundo dos nichos, em forma de resplendores que
emolduram as imagens dos santos (Martins, no prelo a). Temos
como exemplo, em Portugal, a igreja do Espírito Santo do Colégio
jesuítico de Évora, o retábulo de talha em estilo nacional, no qual
também figuram os motivos celestes do sol, lua e estrelas. No
Brasil, além da Capela de São Miguel, também podemos observar
a iconografia dos astros juntamente com um modelo de retábulo
em estilo nacional em outras igrejas paulistas do período colonial.
É possível que esta iconografia dos astros, presentes nas
decorações das igrejas e capelas jesuíticas do período colonial,
tenham sido retiradas de livros de emblemas como Mundus
Symbolicus de Filippo Picinelli, cujo Livro I é dedicado ao tema dos
astros; e também o livro La Philosophie des Images Enigmatiques
(1694), do jesuíta Claude-François Menestrier (1631- 1705), que
724
possui um repertório de emblemas advindo, sobretudo, da
cosmografia (Martins, no prelo a). De acordo com Renata Martins,
o primeiro estaria presente “tanto no manuscrito do inventário da
biblioteca do colégio da Madre de Deus em Vigia, quanto na
Biblioteca daquele que foi o antigo colégio do Rio de Janeiro”, e o
segundo constituía “parte da coleção de Diogo Barbosa Machado,
hoje na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro” (Martins, no prelo
a). É importante se considerar o forte aspecto visual e a
importância da ilustração e da impressão nas Missões, dadas “as
virtualidades psíquicas universais da imagem”, visto que estas
têm “a capacidade de chegar a áreas do espírito em que o texto
não alcança” (Plá, s/d, p. 149). As imagens de gravuras, seja em
madeira ou metal, incorporadas aos livros ou avulsas; foram
utilizadas na evangelização, tanto na América hispânica quanto na
Ásia, sendo usadas também para a meditação individual dos
jesuítas (Pfeiffer, 2003, p. 205). Em vista disso, se faz evidente a
ocorrência de circulações de imagens e símbolos de corpos
celestes, através das gravuras e livros ilustrados e da tradição
emblemática (Martins, no prelo a).
Assim como as reduções da América Espanhola eram bem
equipadas com tratados europeus de artes (Bailey, 2001, p. 160),
na América portuguesa também teríamos obras semelhantes nas
bibliotecas jesuíticas. O que não significa, porém, que os modelos
tenham ou devam ter sido copiados fielmente destes. As formas
de emprego destes motivos variam caso a caso (Martins, no prelo
a). Além das pinturas parietais da Capela de São Miguel, Renata
Martins também destaca a presença deste programa pictórico nos
tetos das sacristias das igrejas dos colégios de Belém e de Vigia no
Pará (século XVIII), assim como no retábulo da antiga igreja
jesuítica de Nossa Senhora da Luz (século XVII), que teria sido
725
desenhado pelo luxemburguês João Felipe Bettendorff, e
entalhado por um português, Manoel Mansos, e por um índio do
Maranhão de nome Francisco (Martins, 2009). Assim, a mão
indígena se faz presente neste trabalho orientado pela Companhia
de Jesus, comprovada por meio da documentação (Martins, 2009:
316).
A questão da mão indígena na fatura das pinturas
parietais de São Miguel é levantada pela antropóloga Glória Kok
(2011, p. 54), que afirma que “os motivos e as cores sugerem
padrões indígenas, provavelmente Guarani”. De acordo com Kok,
“(...) apesar dos ‘pintores’ indígenas terem sido orientados para
copiar os modelos europeus, as pinturas expressavam também a
recriação das tradições culturais ameríndias.” (Kok, 2011, p. 54).
Esta polêmica hipótese levantada por Kok suscitou
questionamentos no meio acadêmico sobre as relações entre as
culturas ameríndias e a cultura euro cristã presentes nestas
pinturas. Apesar da forte evidência em relação à presença de
índios e mestiços, e o uso destes enquanto construtores e artífices
no aldeamento de São Miguel, tais afirmações precisam ser
cuidadosamente analisadas. Como vimos, apesar dos motivos
celestes estarem associados à cosmologia indígena, estes motivos
também foram bastante explorados pela tradição emblemática,
presente nas bibliotecas e nas decorações das Missões da
Companhia de Jesus na América (Martins, 2013, p. 81-102). Isto
posto, estes motivos presentes nas pinturas em São Miguel
estariam mais ligadas a um duplo signo das imagens celestes, do
que a uma expressão indígena autóctone; contemplando, com
efeito, tanto a cultura cristã europeia, quanto as culturas
ameríndias.
726
Uma Dimensão Material das Trocas Culturais: Tintas
Minerais e Vegetais
727
na América portuguesa, a notícia de pigmentos vegetais
produzidos localmente, descritos pelo jesuíta português João
Daniel no século XVIII em sua crônica “Tesouro Descoberto no
Máximo Rio Amazonas”, 5 no qual também elabora um tratado
44F
5 Neste documento escrito entre 1757 e 1776, João Daniel relata o período em
que viveu no antigo Estado do Maranhão e Grão-Pará, entre os anos 1741 e 1757.
(Martins, 2009, p. 245).
6 “(...) polvos azules, albayalde, oropimente, resinas, aceites, abalorios de
728
vermelho — uma mistura do vermelhão (HgS) e do vermelho de
chumbo (Pb3O4). O pigmento preto indica ser um material
carbonoso ou negro vegetal, e o pigmento branco seria uma
mistura de caulim e carbonato de cálcio. A utilização das três
cores, vermelho, preto e branco para estas pinturas é uma das
particularidades de São Miguel. Tanto em obras na Europa quanto
nas Américas, sobretudo nos Andes, eram mais frequentes ou as
cores preto e branco, ou uma variação maior de cores, incluindo o
azul e o verde. O uso das três cores nas pinturas parietais da
Capela de São Miguel podem indicar um padrão estético, ao
mesmo tempo que também pode se tratar apenas de uma questão
de disponibilidade material naquele aldeamento, naquele
momento. Como já sabemos, o vermelhão, ou bermellón estava
entre os materiais que circularam entre as Missões nas Américas,
sendo largamente utilizado na pintura andina. Assim, é bastante
provável que o vermelhão usado na Capela de São Miguel não
fosse produzido localmente.
De acordo com Gabriela Siracusano, o uso do vermelhão
combinado com o vermelho de chumbo, indicaria que aqueles que
decidiram por esta combinação — entre outras —, dominavam a
práxis e detinham conhecimento especializado, provavelmente
advindo da leitura de manuais ou “livros de segredos”, e pela
troca oral e experimental entre os ofícios que também se
utilizavam destas “receitas”, como aqueles que trabalhavam com
metais, boticários e até mesmo médicos (Siracusano, 2005, p.
214). Em relação ao vermelhão, é importante ressaltarmos sua
utilização e conhecimento pelos indígenas, entre diversos outros
pigmentos. Antes mesmo da colonização, para os indígenas, este
derivado do cinábrio era utilizado nas pinturas murais e também
corporais, e para a cultura indígena também seria portador de um
729
poder sagrado, e assim como outros minérios, era usado em
cerimônias rituais de cura do corpo e da alma (Siracusano, 2005,
p. 304). E assim, para os indígenas,
730
os últimos remanescentes da arte do período colonial paulista.
Apesar de termos algumas peças evidentemente um pouco mais
eruditas, 8 além das imagens importadas da Europa, ainda assim,
47F
8 Como observado por Mozart Bonazzi da Costa (2005) e também por Eduardo
731
Considerações Finais
modelos.
732
Podemos portanto observar o resultado destas trocas nos
elementos artísticos da Capela de São Miguel, bem como nas
demais igrejas e capelas da região de São Paulo de Piratininga que
faziam parte de uma rede de aldeamentos jesuíticos. Assim,
podemos afirmar que as manifestações artísticas desta região, se
deu, em grande medida, pela atuação dos padres da Companhia de
Jesus por meio das oficinas jesuíticas, e também pela interação
entre as redes de trocas de materiais, técnicas e mão-de-obra, que
desempenharam importante papel interligando os diferentes
sujeitos e grupos ali presentes. Visando a catequização indígena,
os padres teriam se utilizado do repertório simbólico e
moralizante presentes nas gravuras e nos livros de emblemas,
enquanto os artífices assimilavam e interpretavam a cultura
europeia. Tais afirmações podem ser apreendidas pelas pinturas
de “retábulos fingidos”, bem como as pinturas de brutescos,
presentes na decoração de tetos e de sacrários na Capela de São
Miguel — e em outras igrejas como já mencionamos ao longo
deste trabalho —, que também aparecem tanto em Portugal,
quanto nas Américas no mesmo período entre os séculos XVI e
XVIII. Além da difusão dos símbolos, também notamos a difusão
de materiais, a partir das pinturas parietais da Capela de São
Miguel. Dado o uso de pigmentos ditos sofisticados, de acordo
com os indícios de que dispomos, o uso do vermelhão, ainda que
não integrasse o rol de conhecimentos ancestrais dos índios deste
aldeamento (visto que não existem jazidas de cinábrio no
Brasil), 10 era, com efeito, parte integrante de uma rede de
49F
733
circulação de materiais e técnicas; rede esta alimentada, como
vimos, pelo movimento de mestres e aprendizes entre as missões
e as regiões mineiras da América espanhola. Esta circulação e
estas trocas culturais poderiam ter resultado, com efeito, numa
forma de “cultura mestiça”; permitindo, além do suprimento da
demanda por mão-de-obra, o intercâmbio de conhecimentos e de
interpretações particulares do fazer artístico.
A partir da descoberta das pinturas parietais da Capela de
São Miguel, se evidenciou como essas redes de trocas culturais
podem ter atuado na região, ressignificando a história deste
templo religioso. A “Capela dos índios” 11, que até então ganhava
50F
Miguel.
12 Lembramos da expulsão dos jesuítas da capitania de São Vicente em 1640,
734
protegidas pelos retábulos de madeira, são obras praticamente
intocadas e preservam um modelo e iconografia tal qual havia
sido pensado nas últimas décadas do século XVII (Montanari,
2018, p. 197). Também não conhecemos até o momento a
presença de pinturas semelhantes nas igrejas ou capelas do
período colonial no território da antiga Capitania de São Vicente.
No entanto, temos ainda na região exemplares de talha que
carregam consigo semelhanças consideráveis em relação à sua
estrutura e ornamentação, onde podemos notar uma evidência da
circulação de modelos e repertórios ornamentais e artísticos nos
retábulos paulistas, como ocorrido nos grandes centros artísticos
da colônia, como Salvador, Olinda e Recife, dada as devidas
proporções (Bonazzi da Costa, 2005, p. 77-78).
Reconhecemos as dificuldades e a fragilidade de se preservar
este tipo de arte, que por vezes aparecem escondidas atrás de
retábulos e/ou encobertas com cal ou camadas de pintura, não
permitindo sua análise detalhada; ou simplesmente se deterioram
devido às intempéries, ou até mesmo, são deliberadamente
destruídas juntamente com seus edifícios. O caso das pinturas
parietais da Capela de São Miguel é visto por muitos como um
“milagre” por estas pinturas estarem perfeitamente legíveis na
ocasião da sua descoberta e por aparentemente não ter sofrido
nenhuma modificação ao longo dos séculos. Lembremos que
muito do que hoje se conhece em relação à arte do período
colonial, se perdeu ou deteriorou, ou sofreu alterações ou
mutilações com as mudanças de gosto e a “necessidade de
modernização” de cada época. Sem mencionar a precariedade da
735
política de patrimônio cultural do Brasil, que sofre pelo descaso
institucional. Ao voltar o olhar aos grupos e sujeitos envolvidos na
produção artística e arquitetônica do período colonial, livre de
uma concepção eurocêntrica, ao se pautar nas relações
interculturais que permeavam as Missões jesuíticas, podemos
reconhecer a presença do que se poderia chamar de uma “cultura
mestiça” e permitir a construção de uma história que reconhece
os diversos grupos e sujeitos que construíram a arte e a sociedade
brasileira.
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