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DOI livro – 10.

48006/978-65-5973-031-5-1

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COMISSÃO EDITORIAL DE LIVROS ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA
CIENTÍFICOS ABA – CELCA DE ANTROPOLOGIA

Coordenador: Carlos Alberto Steil (UFRGS) Presidente


Patricia Birman (UERJ)
Antônio Carlos Motta de Lima (UFPE)
Bernardo Fonseca Machado (Unicamp) Vice-Presidente
Nathanael Araújo da Silva (Unicamp) Cornelia Eckert (UFRGS)
Rodrigo Toniol (UFRJ)
Tânia Welter (UFSC) Secretaria Geral
Carla Costa Teixeira (UnB)
CONSELHO EDITORIAL
Andrea Zhouri (UFMG) Secretaria Adjunta
Antonio Augusto Carly Barboza Machado (UFRRJ)
Arantes Neto (Unicamp)
Carla Costa Teixeira (UnB) Tesoureira
Carlos Guilherme Octaviano Valle (UFRN) Andrea de Souza Lobo (UnB)
Cristiana Bastos (ICS/Universidade de Lisboa)
Cynthia Andersen Sarti (Unifesp) Tesoureiro Adjunto
Fabio Mura (UFPB) Camilo Albuquerque de Braz (UFG)
Jorge Eremites de Oliveira (UFPel)
Maria Luiza Garnelo Pereira (Fiocruz/AM) Diretor
María Gabriela Lugones (Córdoba/Argentina) Fabio Mura (UFPB)
Maristela de Paula Andrade (UFMA)
Mónica Lourdes Franch Gutiérrez (UFPB) Diretora
Patrícia Melo Sampaio (Ufam) Patrícia Maria Portela Nunes (UEMA)
Ruben George Oliven (UFRGS)
Wilson Trajano Filho (UnB) Diretor
João Frederico Rickli (UFPR)

Diretora
Luciana de Oliveira Dias (UFG)

www.portal.abant.or.br

UNB - Campus Universitário Darcy Ribeiro - Asa nortePrédio do ICS - Instituto


de Ciências SociaisTérreo - Sala AT-41/29 - Brasília/DFCEP: 70910-900

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Brasília
2021

3
Copyright ©, 2021 dos autores

Organização
Emerson Giumbelli e
Fernanda Arêas Peixoto

Coordenação Editorial
Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social
Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Revisão
Izabella Bosisio

Diagramação
Osmair Pereira

Capa
Fabíola de Carvalho Leite Peres

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


A786 Arte e religião : passagens, cruzamentos, embates [recurso eletrônico] /
Organização Emerson Giumbelli e Fernanda Arêas Peixoto. — Brasília, DF :
ABA Publicações, 2021.
302 p. : il.

Coordenação editorial: Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social


da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - PPGAS/UFRGS.

ISBN: 978-65-5973-031-5

1. Antropologia. 2. Arte. 3. Religião. I. Giumbelli, Emerson. II. Peixoto,


Fernanda Arêas.

DOI livro – 10.48006/978-65-5973-031-5-1 CDD 300

Catalogação na publicação: Aline da Silva Argenta – CRB 10/1725

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SUMÁRIO

7 Apresentação
Emerson Giumbelli e Fernanda Arêas Peixoto

19 La Virgen de los mil y un rostros: del mimetismo


colonizador al ultrabarroco guadalupano
Renée da la Torre

55 Circulações e aparecimentos da forma altar entre arte e religião


Fernanda Arêas Peixoto e Júlia Vilaça Goyatá

87 Sentidos de transformação na street art: religião, arte e política


nos Anjos de Wark da Rocinha
Christina Vital da Cunha e Paola Lins de Oliveira

121 Do Holocausto à terra prometida: a criação de um


memorial na paisagem carioca
Edilson Pereira

159 Monumentais imperfeições: arquitetura e estética de


dois grandes templos católicos
Emerson Giumbelli

193 Ver, visitar, participar: a produção do “bíblico”


com base em telenovelas brasileiras
Jorge Scola Gomes

235 Entre o fundamento e o popstar: concepções de arte em


circulação no contexto religioso afro-gaúcho
Leonardo Oliveira de Almeida

271 A adoração na “cultura”: margens e mediações entre música


congregacional, arte religiosa e produção comercial na atuação
de uma banda de jovens evangélicos
Taylor de Aguiar

299 Sobre as Autoras e os Autores

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DOI: 10.48006/978-65-5973-031-5-2

APRESENTAÇÃO

Emerson Giumbelli e Fernanda Arêas Peixoto

Episódios recentes no Brasil colocaram em rota de colisão “sen-


sibilidades religiosas” e “liberdade artística”. Dentre os mais repercu-
tidos, podemos citar: a exposição QueerMuseu (Rio Grande do Sul,
2017); a peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu (São Paulo e
Pernambuco, 2018); o episódio sobre o Natal dos vídeos do coletivo
Porta dos Fundos (2019); a exposição Todxs xs santxs - renomeado - #eu-
nãosoudespesa (Rio de Janeiro, 2020). Em todos esses casos, produções
apresentadas como “artísticas” geraram reações em nome da “religião”,
envolvendo grupos e pessoas ligadas a confissões cristãs.1 Coroando o
clima de tensões instaurado, em 2020, o plenário da Câmara Legislati-
va do Distrito Federal aprovou, em primeiro turno, um projeto de lei
que visa proibir manifestações “artísticas e culturais” que “vilipendiem
símbolos religiosos em espaços públicos”.2
Esses e outros casos podem reforçar uma interpretação baseada na
oposição moderna entre arte e religião. De acordo com essa narrativa,3
a modernidade, tendo a arte como uma de suas expressões, avançaria
contra a religião – ou, mais propriamente, contra uma determinada
ordem social hegemonizada pela religião, emblema de um ancien régi-
me. A arte, nesse contexto, teria sua autonomia, mais do que reconhe-
cida, promovida – poder blasfemar constituindo-se em demonstração
de competência artística. Em contrapartida, espera-se que os religiosos
cerrem fileiras contra a arte, ou que ao menos lutem para mantê-la
longe da religião.
1 Um relato desses casos pode ser encontrado em: http://censuranaarte.nonada.com.br/. Acesso em: 30 out. 2020.
2 Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/diversao-e-arte/2020/08/4869437-cldf-aprova-projeto-que-
-proibe-nudez-e-simbolos-religiosos-em-exposicoes.html. Acesso em: 30 out. 2020.
3 Sem desconsiderar os múltiplos sentidos que os termos “moderno” e “modernidade” carregam, eles são utilizados
aqui na acepção latouriana, para quem no coração da “constituição moderna” situam-se práticas “purificadoras”,
que estabelecem partilhas e constituem zonas ontologicamente distintas, fundamentalmente entre humanos e não
humanos, natureza e cultura, mas que proliferaram, assumindo diferentes contornos e designações (Latour, 1994).
Além disso, não devemos esquecer as diversas teorias sociais que preconizaram a secularização do mundo moderno
(industrial e capitalista), que contribuíram, a seu modo, para a definição de limites e separações entre a religião e
outras esferas da vida social.

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Se essa narrativa pode fazer sentido em linhas gerais, ela não dei-
xa de ser permanentemente contestada. A despeito das diversas opera-
ções discursivas de constituição de fronteiras e domínios apartados, os
contatos (e contágios) entre arte e religião estão por todo lado, basta
prestarmos atenção no mundo ao redor, flagrando suas aparições. Quer
dizer, as relações entre arte e religião na modernidade envolvem lógicas
e intercâmbios mais complexos do que a simples oposição pode fazer
supor. Não esqueçamos que parte das expressões da arte moderna do
século XX em diante se desenvolve incorporando temas religiosos a seu
acervo, gerando novas interpretações sobre eles e conferindo-lhes per-
manência cultural. A religião, por sua vez (referimo-nos basicamente ao
cristianismo no contexto ocidental), não deixou de se relacionar com
a arte, mesmo quando declarou suas desconfianças em relação às suas
expressões modernas-modernistas.
Contatos e contágios ficam mais evidentes quando exploramos,
ainda que brevemente, cada um dos termos da oposição que nos ocupa.
Do lado da religião, um caminho para isso é acentuar suas dimensões
materiais. Isso significa entender a religião não apenas como crença ou
doutrina, mas por meio de práticas que mobilizam objetos e situam-se
espacialmente.4 Evidentemente, não se trata mais da religião em geral,
mas de práticas referidas a tradições específicas, raramente integradas
como blocos monolíticos.5 Partindo dessa perspectiva, parece factível
encontrar modos pelos quais objetos e espacialidades religiosas, de for-
ma mais ou menos autorizada, dialogam com a arte, entendida como
um campo socialmente definido. Também é possível sugerir uma apro-
ximação ainda maior, quando consideramos que cada religião produz
artefatos ou envolve uma estética. Ou seja, uma abordagem material
da religião oferece pistas e ferramentas para percebermos determinadas
relações com a arte, inclusive aquelas percorridas por tensões e reservas.
Do lado da arte, sem desconhecer os vínculos estreitos que estabele-
ceu com a religião ao longo da história da arte cristã – que se expressa nas
diversas formas de “arte sacra” –, é possível entrever novas relações entre
elas desde que evitemos tomá-las como “modos de verdade” ou “modos
de existência” discretos e opostos (Latour, 2013), isto é, desde que des-
4 Ver a revista Material Religion e, entre outros, o trabalho de Birgit Meyer (Giumbelli, Rickli e Toniol, 2019).
5 A noção de tradição, na perspectiva sugerida aqui, segue de perto a elaboração de Talal Asad (2001).

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loquemos o foco perspectivo, vendo arte e religião não como campos ou
domínios, mas como ars, criações que envolvem materiais e procedimen-
tos técnicos, alguns deles similares. A reformulação do ângulo de análise e
a adoção de uma perspectiva que se quer pragmática liberam a pesquisa,
que pode colocar sua atenção na descrição de práticas diversas e, com isso,
flagrar contaminações recíprocas entre formas, repertórios e modos de
fazer, tecnicamente “encantados”,6 da arte e da religião.
Religião e arte são temas que remetem para dois campos extrema-
mente profícuos da produção antropológica, os quais têm se beneficia-
do das recentes viradas contemporâneas, que privilegiam ontologias e
materialidades.7 Como apontamos acima, cada um desses temas permi-
te explorações que levam ao outro. As contribuições deste livro, con-
tudo, não se assentam em apreciações gerais sobre arte e religião, mas
partem de situações etnográficas que expõem ou sugerem a sua imbri-
cação. Com base neste recorte, é possível reivindicar que apresentamos
um conjunto original de intervenções que refletem sobre os limites e
interações entre arte e religião com resultados que suscitam diálogos e
ressonâncias com outros trabalhos, também publicados no Brasil (Gon-
çalves, Guimarães e Bitar, 2013; Reinheimer e Sant’Anna, 2013; Mene-
zes e Rabelo, 2015; Gomes e Oliveira, 2016; Peixoto, 2016; Oliveira,
2016; Giumbelli, 2016; Van de Port, 2016; Pereira et al., 2018).
Reconhecidas as imbricações entre religião e arte em suas variadas
possibilidades, apostamos na necessidade de reexaminá-las. Não par-
timos de uma orientação uniforme em termos teóricos, pois julgamos
que esse projeto pode ser empreendido sobre bases variadas, como de-
monstram os capítulos. Refletir sobre passagens e cruzamentos; seguir
apropriações, usos e circulação de repertórios; descrever embates (estéti-
cos e políticos) entre formas e regimes de conhecimento distintos, eis o
desafio central do livro. A exploração detida de materiais e casos muito
diversos que o volume propõe leva à problematização das práticas de
estabelecimento de fronteiras e à reflexão sobre o que se passa nas zonas
limítrofes (toda fronteira, como sabemos, separa e une, interdita e per-
6 Nos termos de Alfred Gell (1994).
7 Para visões gerais e recentes sobre esses campos, referências pertinentes são, para a antropologia da arte, Lagrou
(2003) e Sansi (2015); para a antropologia da religião, Lambek e Boddy (2013), especialmente a parte sobre
“práticas e mediações”, e Teixeira e Menezes (2020), particularmente os capítulos sobre mídia, arte, performance e
materialidades.

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mite travessias, fazendo proliferar empréstimos e conflitos). E mais, se
as fronteiras são feitas e refeitas, os próprios domínios que elas ambicio-
nam distinguir se mostram permanentemente afirmados e contestados,
definidos e redefinidos.

Fazendo e desfazendo fronteiras


Os oito capítulos reunidos neste volume enfrentam o desafio de
pensar passagens, cruzamentos e embates, sucessivos ou simultâneos,
entre expressões artísticas e religiosas, olhando-os seja do ângulo das
religiões, seja do prisma das criações artísticas – cada um deles ofere-
cendo configurações originais de relações entre zonas que ora se que-
rem esferas contíguas, orientadas por princípios ou valores que podem
entrar em colisão, ora se mostram terrenos híbridos, mas possivelmente
tensionados por dissociações e choques.
O texto de Renée de la Torre, “La Virgen de los mil y un rostros”,
privilegia as controvérsias em torno daquele que se consolidou como
símbolo dominante do catolicismo nacional mexicano: Nossa Senho-
ra de Guadalupe. Na sua imagem, convivem significados vários, liga-
dos às cosmovisões indígena e europeia, a sentidos de feminilidade, de
território, etnicidade, entre outros. Amplamente reproduzida ao longo
da história e objeto de intervenções artísticas sistemáticas, a imagem
mostra-se polissêmica, polimórfica e policromática, reivindicada seja
como expressão da nação, seja como manifestação de povos indígenas
e/ou de um povo mestiço, transmutando-se, assim, “de símbolo nacio-
nal a criollo, de mestiça a castiça, de mãe abnegada a jovem feminista
e liberada, de submissa a rebelde, de pacificadora a rebelde”. O texto
acompanha especialmente o episódio tenso em torno da escultura Sin-
cretismo, instalada nas ruas de Guadalajara, de autoria de Ismael Vargas
(1947-). Um dos grandes interesses do caso e da análise é colocar a sua
ênfase nos devires da imagem que, quando parece se estabilizar com
determinada forma e face, já é outra – situação que remete à noção de
iconoclash (Latour, 2008). As apropriações artísticas têm como contra-
ponto as reações de grupos católicos em sintonia com políticas religio-
sas que operam em múltiplas escalas, do local ao nacional.

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Os dois capítulos seguintes – um assinado por Fernanda Arêas Pei-
xoto e Júlia Vilaça Goyatá, “Circulações e aparecimentos da forma altar
entre arte e religião”, e outro por Christina Vital da Cunha e Paola Lins
de Oliveira, “Sentidos de transformação na street art: religião, arte e po-
lítica nos Anjos de Wark da Rocinha” – abordam obras individuais e en-
fatizam o trânsito de formas, repertórios e ideias (estéticas e políticas),
com o auxílio de criações que se querem artísticas. No primeiro caso,
algumas obras do haitiano Frantz Jacques, mais conhecido como Guyo-
do (1973-), e do mineiro Farnese de Andrade (1926-1996) são trazidas
à baila em função do modo como fazem uso dos altares e objetos vodu
(Guyodo) e dos arranjos devocionais católicos (os objetos-oratórios de
Farnese), o que deixa ver a maneira como composições e motivos reti-
rados das práticas religiosas cotidianas reaparecem, transformados, nas
criações artísticas. O texto de Christina Vital da Cunha e Paola Lins de
Oliveira, por sua vez, discute a propagação de uma imagem historica-
mente associada ao universo místico judaico e cristão (a do anjo) pelos
muros grafitados da cidade do Rio de Janeiro. O responsável pelo feito,
Wark da Rocinha, usa e reinterpreta o símbolo (também presente em
oratórios de Farnese), embora declarando expressamente o seu afasta-
mento da religião (como faz igualmente Guyodo). Diferenças à parte,
os três artistas revelam grande apreço pelo lixo, o que parece ser elo-
quente da aposta que fazem no potencial transformador das criações ar-
tísticas, operando sobre coisas e sobre o mundo ao redor. Se o primeiro
artigo problematiza os novos sentidos e práticas que cercam os objetos
quando deslocados dos espaços rituais e domésticos para os espaços de
exposição, o segundo retoma, de outro ângulo, a estética urbana (en-
frentada especialmente nos dois capítulos seguintes), só que o faz pelo
exame do grafite e do seu potencial crítico.
Os ensaios de Edilson Pereira, “Do Holocausto à terra prome-
tida: a criação de um memorial na paisagem carioca” e de Emerson
Giumbelli, “Monumentais imperfeições: arquitetura e estética de dois
grandes templos católicos”, colocam o foco sobre artefatos arquiteturais
específicos. O primeiro segue o plano e a construção recente do Me-
morial às Vítimas do Holocausto, um conjugado de monumento e es-
paço expositivo, cravado no topo do Morro do Pasmado, em Botafogo,

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Rio de Janeiro. O segundo se debruça sobre o projeto de duas igrejas:
uma, parte do Santuário Santa Paulina, localiza-se no sul do Brasil e
foi construída entre 2003 e 2006; a outra, iniciada em 2007, situa-se
nos arredores da cidade de Guadalajara, México, e abrigará o Santuário
dos Mártires. Estamos diante de realizações de timbre monumental que
associam e opõem atores diversos, e que dramatizam, em suas formas
e enredos, tensões e dissensões entre desenho arquitetônico moderno e
demandas religiosas; entre arquitetura e paisagem urbana; entre estética
urbana, religião e política. O monumento bíblico, no primeiro texto,
desvela uma trama de relações entre atores políticos, comunidades ét-
nico-religiosas, arquitetos, especialistas do patrimônio, associações de
moradores etc. Os “megatemplos” católicos, por seu turno, analisados
do ponto de vista da estética e de sua aparência, lançam uma reflexão
sobre o ideal (como telos) e a imperfeição (como resultado não preten-
dido). Embaralhar sagrado e profano é um dos efeitos paradoxais dessas
construções religiosas.
As contribuições de Pereira e Giumbelli ilustram a possibilidade
acima mencionada de religião e arte estarem confundidas ou sobrepos-
tas em determinadas situações. Tratam, o primeiro, de um memorial
que, em suas formas estéticas e sua relação com a paisagem urbana,
assume sentidos religiosos, culturais e políticos; o segundo, de templos
analisados como artefatos estéticos. Já os três capítulos anteriores acom-
panham pessoas e obras que se situam no terreno da arte (embora haja
significativas diferenças nessa inserção quando se comparam Vargas,
Farnese, Guyodo e Wark) e que dialogam com elementos, imagens e
estéticas religiosas. Dessa perspectiva, nota-se um contraponto com os
capítulos finais, mais próximos entre si ao enfocarem universos defini-
dos pela religião, ou a ela referidos, para perceber como eles avançam
na direção de produções no campo do entretenimento ou da indústria
cultural – que podemos considerar afins ao mundo da arte.
Os textos de Taylor de Aguiar, “A adoração na ‘cultura’: margens
e mediações entre música congregacional, arte religiosa e produção co-
mercial na atuação de uma banda de jovens evangélicos”, de Leonardo
Oliveira de Almeida, “Entre o fundamento e o popstar: concepções de
arte em circulação no contexto religioso afro-gaúcho”, e de Jorge Scola,

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“Ver, visitar, participar: a produção do ‘bíblico’ com base em telenove-
las brasileiras”, propõem novos deslocamentos analíticos e ampliações
perspectivas em função da consideração da produção musical evangé-
lica, que ganha vulto a partir dos anos 1980 (capítulo de Aguiar); da
profissionalização dos tocadores de tambor, que atuam nas religiões
afro-brasileiras do Rio Grande do Sul (texto de Almeida); e das adap-
tações televisivas de histórias bíblicas, na origem de roteiros turísticos a
elas relacionados (que Scola acompanha).
O primeiro desses três capítulos segue um grupo de jovens evangé-
licos de Porto Alegre/RS, cujo culto se inspira em uma tendência teoló-
gico-musical (worship), na base de uma “estética da adoração”, que con-
fere novos sentidos à experiência religiosa e ao ser evangélico no Brasil
contemporâneo. O segundo volta-se para o modo como as categorias
“arte” e “artístico” circulam com as carreiras dos jovens “tamboreiros”,
lançando-se também ao exame de um mercado religioso específico e
de sua profícua produção (roupas, brasões, adereços etc.). O terceiro
dedica-se à teledramaturgia da rede Record de televisão voltada para a
construção autenticada de “paisagens bíblicas” e seus desdobramentos
na promoção de viagens a locais cujo peso simbólico tem crescido em
políticas religiosas. Os três casos nos obrigam a incursionar por univer-
sos religiosos percorridos por configurações que podem envolver dis-
putas ou ao menos concepções interpretativas diversas. Além disso, as
análises nos colocam diante de uma série de mediações e traduções que
se operam quando das fricções entre religião, mídias e mercados; entre
produção e consumo de artefatos; e entre os próprios sentidos de “arte”
e “religião” – que se alteram, se afastam ou se aproximam ao ritmo dos
trânsitos realizados.

Perspectivas plurais
Se os recortes são diversos (uns privilegiam casos específicos, ou-
tros desenham percursos mais horizontais), os textos seguem etnogra-
ficamente “performações” da arte e da religião, levando a vê-las menos
como domínios discretos, mas sobretudo em função de suas metamor-
foses. A atenção às zonas de fronteiras e às traduções (e traições de sen-
tido) que aí se operam tem como mérito primeiro o próprio desloca-

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mento das noções e sentidos correntes de “arte” e “religião”. Afinal,
nessas “performações”, a religião pode se comunicar ou se transformar
em arte, assim como as artes podem se associar à religião, em processos
frequentemente marcados por ruídos e dissonâncias. E mais: colocan-
do-se nos espaços do meio, no “entre”, os autores e suas análises fazem
ver modos de existência da religião fora de controles e molduras insti-
tucionais, bem como outras formas de ser da arte, que se multiplicam
em manifestações diversas, além da “alta cultura”, de gêneros e espaços
canonicamente estabelecidos.
Evocamos mais acima o pluralismo teórico que acompanha as aná-
lises desenvolvidas nos capítulos reunidos neste livro. Vale destacar que
uma das fontes desse pluralismo é a articulação entre referências mais
recentes no campo da antropologia e referências mais afastadas no tempo
e mais diversas por suas vinculações disciplinares. Entre estas últimas,
percebe-se a presença de Georg Simmel, de Walter Benjamin, de Michel
Leiris, de Georges Bataille, de Jesús Martín-Barbero, entre outras. Sem se
basear em uma orientação coordenada, tais referências traduzem a per-
cepção compartilhada de que a discussão da relação entre religião e arte
não se vincula a tendências ou a modas contemporâneas específicas.
Observação semelhante pode ser feita em relação à dimensão po-
lítica. Não por acaso, iniciamos esta apresentação registrando casos nos
quais atividades artísticas são denunciadas em nome de sensibilidades re-
ligiosas, pois compartilhamos o incômodo que tais reações provocam,
um incômodo que expressa preocupações claramente políticas. Quando
propomos que as relações entre religião e arte sejam discutidas para além
de embates mais explícitos, tais preocupações continuam a se manifestar.
Os episódios, situações e configurações abordados nos vários capítulos
estão repletos de agências e implicações políticas. Ou seja, estamos apon-
tando que a política, constitutiva da vida social, se faz presente não apenas
quando arte e religião estão em colisão, mas em diversos modos de intera-
ção. Evidenciar essa pluralidade é um dos objetivos desta obra.
A brevíssima apresentação dos capítulos do livro, que convidamos
o leitor a percorrer com mais vagar, não deixa dúvidas em relação aos
muitos vínculos existentes entre eles. A organização, ao tomar como
critério o ponto de partida das situações analisadas – começando pela

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arte e terminando com a religião –, não pretende anular outras aproxi-
mações, que os leitores saberão localizar (algumas já foram apontadas,
como a relação com paisagens urbanas em seus variados fatores de com-
posição – política, memória, ocupação etc.). Vale mencionar ainda a
diversidade de referências religiosas; embora a maioria dos casos envol-
va o universo cristão, religiões de matriz africana e elementos judaicos
também marcam presença. Algo semelhante pode ser afirmado sobre o
universo artístico, representado por expressões ora mais “eruditas”, ora
mais “populares”, além de se desdobrar em realizações que se vinculam
à arquitetura e ao entretenimento.
Este livro consolida e amplia diálogos realizados desde 2015 no âm-
bito do “MARES – Religião, arte, materialidade e espaço público: Grupo
de Antropologia”, ao qual a maioria dos autores pertence.8 A exceção é
Renée da la Torre, convidada a participar desta coletânea, e cuja presença
nela evidencia o valor que conferimos aos diálogos latino-americanos. Tal
valorização se expressa também no enfoque de situações que extrapolam
o Brasil como território – como mostram os textos de Giumbelli (que
inclui um caso mexicano) e de Peixoto e Goyatá (que aborda um artista
haitiano). A referência latino-americana encontra-se ainda na raiz da pro-
posta deste livro, já que os recursos empregados na sua diagramação têm
como origem a XIII Reunião de Antropologia do Mercosul, a cujos orga-
nizadores agradecemos. Estendemos nossos agradecimentos ao Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, que elaborou a chamada que contemplou nosso pro-
jeto de publicação. Izabella Bosisio contribuiu com a revisão da maioria
dos capítulos, financiada com recursos do CNPq.
Esperamos que a contribuição do MARES para as discussões pro-
postas por este volume ganhe, na sua repercussão, a mesma atenção
que dedicamos em sua preparação. Se quisermos sintetizar o propósito
central do projeto, é possível dizer que se trata de reafirmar que arte e
religião não constituem províncias distantes e antagônicas. Como indi-
cam os capítulos deste livro, elas continuam a habitar mundos contí-
guos ou a se encontrar em configurações variadas, o que propõem que
olhemos para elas menos por meio de postulados e assertivas (do tipo
8 O MARES está registrado no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq. Para informações sobre sua composição
e suas atividades, ver: https://maresantropologia.wordpress.com/.

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“a arte é” ou a “religião se define por”), mas sobretudo em função de
práticas que efetivam passagens, cruzamentos e embates, na origem de
novas criações artístico-político-religiosas, muitas delas de resultados e
efeitos surpreendentes.

Referências Bibliográficas
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16
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TEIXEIRA, F.; MENEZES, R. (org.). Antropologia da religião. Petrópolis: Vo-
zes, 2020. No prelo.
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ciência: desafios etnográficos e dobras reflexivas. Porto Alegre: Sulina, 2016.
p. 99-116.

Jornal consultado
CLDF aprova projeto que proíbe nudez e símbolos religiosos em exposições.
Correio Braziliense, Brasília, 18 ago. 2020. Disponível em: https://www.cor-
reiobraziliense.com.br/diversao-e-arte/2020/08/4869437-cldf-aprova-proje-
to-que-proibe-nudez-e-simbolos-religiosos-em-exposicoes.html. Acesso em:
30 out. 2020.

Site consultado
OBSERVATÓRIO de Censura à Arte. Disponível em: http://censuranaarte.
nonada.com.br/. Acesso em: 30 out. 2020.

17
18
DOI: 10.48006/978-65-5973-031-5-3

LA VIRGEN DE LOS MIL Y UN ROSTROS:


DEL MIMETISMO COLONIZADOR AL ULTRABARROCO GUADALUPANO

Renée de la Torre

La Virgen de Guadalupe como símbolo entre-medio


Mucho se ha dicho sobre la densidad simbólica que encarna el
ícono de la Virgen de Guadalupe, el cual, sin lugar a duda, constituye
un símbolo dominante del catolicismo nacional mexicano. Un símbolo
dominante de acuerdo con Victor Turner (1990) tiene tres propiedades:
la primera es que es una unidad que condensa significaciones y acciones
rituales; la segunda es que unifica significados contrastantes e incluso
opuestos; y la tercera es que contiene oposiciones en dos aspectos: el
“polo ideológico” (relativo a ideas y relatos) y el “polo sensorial” (relati-
vo a emociones y reacciones).
La Virgen de Guadalupe es un símbolo dominante en cuanto conden-
sa los sentidos de un catolicismo sincrético resultado por la fusión de cos-
movisiones indígenas y cristianas europeas; pero además unifica y conden-
sa significados provenientes de distintos campos especializados como son
la religión (cosmologías indígenas y católica), la etnicidad (apropiaciones
étnicas y europeas), la nacionalidad (México, hispanos, latinos, chicanos,
latinoamericanos), la feminidad (madre, mujer, sumisa, feminista, sexuada
o asexuada), e incluso la idea de territorio (proviene de su asimilación a
Tonantzin como referencia pagana a la Madre Tierra). Al mismo tiempo
se convierte en un símbolo frontera en la medida en que excluye a otras
minorías religiosas como son las evangélicas y protestantes.
Guadalupe es un símbolo de unidad identitaria nacional que con-
densa significados y representaciones diversas. A la vez es un símbolo po-
lisémico abierto a la reinterpretación del hecho guadalupano (De la Torre,
2008). Es un icono polifórmico y policromático constantemente inter-
venido estéticamente. La constante intervención artística o estética de
algunos rasgos de su imagen permite inscribir y reconocer las diferencias
culturales en un símbolo identitario religioso, nacional (étnico-racial) y
de género. Sugiero que se analice como un frente cultural entre-medio

19
donde se disputa el reconocimiento tanto de identidades hegemónicas
como de disidencias culturales que pugnan por reconocer sus diferencias
en un emblema de unidad. Mediante una coyuntura reciente en torno a
la escultura Sincretismo (Ismael Vargas, 2017) que sintetiza la imagen de
la Virgen de Guadalupe con la imagen de la diosa prehispánica Tonantzin
describiré cómo estas intervenciones generan negociaciones, tensiones y
conflictos entre los distintos sectores (frecuentemente opuestos y contra-
dictorios) que se identifican con ella y que pugnan por redefinirla.
Atender la imagen guadalupana como frente cultural permitirá
analizar las disputas por las diferencias y desniveles culturales ya que es
el lugar simbólico por excelencia en el cual “se lucha por la legitimidad
de una cierta forma de definición (visión/di-visión) de la vida, básica-
mente a través de algún o algunos aspectos o formas culturales elemen-
talmente humanas (…)” (González, 1987, p. 20). Estos registros o re-
presentaciones culturales que encuentran definición y reconocimiento
en su imagen mantienen la oposición a manera de un frente cultural,
es decir un lugar de lucha por la representación de posturas opuestas y
en conflicto que buscan redefinir tanto sus rasgos estéticos como sus
contenidos a fin de legitimar sus diferencias como identidad. En torno
al icono de la Virgen de Guadalupe se lucha por la definición legitima y
por la representación de las minorías en torno a lo católico, lo nacional,
lo racial y las representaciones de género.
La Virgen de Guadalupe es un símbolo cargado de memorias, his-
torias y tradiciones. Su particularidad de Virgen mestiza articuló las
diferencias históricas en una representación con pretensiones homoge-
neizantes de las culturas nacionales modernas (De la Torre, 2014). Pero
a su vez, y quizá por lo mismo, unifica el mito que articula una repre-
sentación de la cultura nacional homogénea, principalmente producto
del encuentro entre dos visiones del mundo (la indígena y la europea).
A lo largo de su historia ha sido un ícono resemantizado permanente-
mente, y de forma más reciente también continuamente resimboliza-
do.1 ¿A qué se debe el hecho de que esta Virgen (como ninguna otra) sea
continuamente reformulada mediante intervenciones artísticas?
1 Por resignificar entendemos la mudanza del contenido o significado bajo un mismo significante. Por resimboliza-
ción el uso o modificación de la forma icónica que amplía los significados asociados al símbolo mismo (Segato,
2010).

20
Como símbolo fundacional, la Guadalupe no es sólo el frente cul-
tural negociado y disputado por las identidades “originarias” o “tradi-
cionales” que gozan de mayor hegemonía cultural, sino que es también
un espacio donde se negocian los dominios de la diferencia y donde
tanto las subjetividades hegemónicas o dominantes buscan mantener
su legitimidad y dominio sobre los modelos estandarizados de reconoci-
miento; a la vez que las subjetividades emergentes, marginales e incluso
discriminadas buscan ingresar redefiniendo el símbolo para conquistar
representación, legitimidad y visibilidad a través de su apropiación e in-
cluso transmutación hibrida del símbolo. En este sentido, y retomando
a Homi K. Bhabha (2012), presentaré la manera en que nuevos sujetos
entre medio (referidos a las subjetividades hibridas que son ambivalen-
tes en término de raza, nacionalidad, religiosidad y género) establecen
estrategias de representación e inclusión mediante la reelaboración esté-
tica de la Virgen de Guadalupe. Citando a Bhabha, lo que en los frentes
culturales se juega es:
La articulación social de la diferencia, desde la perspectiva de
la minoría, es una compleja negociación en marcha que bus-
ca autorizar los híbridos culturales que emergen en momentos
de transformación histórica. El “derecho” a significar desde la
periferia del poder autorizado y el privilegio no depende de la
persistencia de la tradición; recurre al poder de la tradición para
reinscribirse mediante las condiciones de contingencia y con-
tradictoriedad que están al servicio de las vidas de los que están
“en la minoría”. (Bhabha, 2012, p. 18-19).

En este capítulo presentaré primero algunos elementos que mues-


tran la historia en que la imagen de la Virgen se fue constituyendo en
un símbolo dominante en México, buscando resaltar las articulacio-
nes de las diferencias en una unidad. Posteriormente, elegí analizar las
disputas en torno a la obra artística Sincretismo, donde intervinieron
distintos actores (hegemónicos y subalternos) y enmarcadas en distintos
campos de sentido.

21
Elementos históricos de construcción de unidad y
condensación de sentido patrio
En el plano del mito encarna la fe de los conquistadores que trajeron
consigo a la Virgen de Guadalupe de Extremadura (que en 1322 se ha-
bía aparecido nada menos que en el poblado del cual era originario Her-
nán Cortés, el conquistador español de México). Más de doscientos años
después, aparecería, con otro aspecto, pero con el mismo nombre y similar
relato, en México en el año de 1531. Su historia de aparición y su coinci-
dencia en el nombre no es casualidad milagrosa sino causalidad histórica
(González de Alba, 2002). En ambos casos, la Virgen de Guadalupe (la de
Extremadura y la del Tepeyac) se le aparece a un hombre humilde, en un
terreno de peñascos rodeado de yacimientos de agua, y su petición es que
le construyan su iglesia. En ambos casos los obispos y clérigos piden una
prueba del milagro. En el caso español la prueba es una escultura, en el caso
mexicano es un lienzo (la tilma del indio Juan Diego) del cual hasta la fecha
se argumenta (casi como dogma de fe) que no fue pintado por interven-
ción humana, sino que fue plasmado por un extraordinario e inexplicable
milagro.
En sus inicios el culto mexicano en torno a la Virgen de Guadalupe se
instauró mediante la sustitución: los frailes construyeron sus templos sobre
los templos indígenas, cambiando a los ídolos por las imágenes de cristos,
santos y vírgenes. Como lo relataron distintos cronistas de la conquista la
sustitución se basó en que los templos católicos se edificaron en los lugares
sagrados de los indígenas y fueron construidos con la misma piedra que
sostenía a los templos indígenas y el calendario festivo cristiano se montó en
las fechas de celebración nativas vinculadas a los ciclos agrarios. En este caso
específico se construyó sobre el adoratorio de la diosa Tonantzin (la madre
de todos los dioses aztecas). Por otro lado, la práctica de los indígenas se
realizó mediante un simulacro de conversión. Aunque en apariencia prac-
ticaban fervientemente los rituales en torno a las imágenes católicas, en la
realidad practicaban una doble religión, pues seguían en secreto venerando
a sus antiguos dioses. Así lo advirtió Fray Bernardino de Sahagún, cronista
de la conquista, quien llegó a México a evangelizar a los indios en 1529:
“De esta manera se inclinaron con facilidad a tomar por dios al Dios de los
españoles; pero no para que dejasen los suyos antiguos, y esto ocultaron en

22
el catecismo cuando se baptizaron” (Sahagún, 2003, p. 383). Torquema-
da, el inquisidor católico, notó en 1645 que hacían como que adoraban a
Guadalupe, pero seguían adorando a Tonan (Zires, 1994). De esta manera,
Guadalupe se convirtió en el principal instrumento de evangelización hacia
los indígenas, quienes a su vez la apropiaron como parte de una religiosidad
barroca. Y se constituyó en un símbolo de negociaciones a través del cual
los españoles buscaban exfoliar la idolatría indígena sustituyendo ídolos por
imágenes católicas y los indígenas practicaron el simulacro ritual escondien-
do a sus antiguos dioses bajo el manto de la Virgen morena.
Serge Gruzinski (1990) explica que el barroco fue la estrategia imple-
mentada por los evangelizadores españoles durante el periodo colonial que
logró extender la fe católica mediante la clonación de imágenes canónicas
(siendo en México la imagen de Guadalupe la principal) que buscaban sus-
tituir la idolatría de los pobladores indígenas. Este autor describe cómo el
dispositivo barroco alentó la reproducción de imágenes, vehículos de fe y
devoción, con capacidad de ubicuidad mediante una meticulosa clonación,
pero aunque se buscaba tener control sobre la representación formal de las
imágenes de devoción, los indígenas mantuvieron sentidos de resistencia
cultural al reproducir las imágenes usando los mismos materiales con que
fabricaban los antiguos ídolos indígenas. De esta manera continuaron ado-
rando a sus antiguos dioses bajo las formas de las imágenes católicas.
La aparición y el culto guadalupano fueron vistos con sospecha por
el clero español que negaba la veracidad de su aparición. Al inicio era
practicada por los indios, mientras que los españoles asentados en México
eran devotos a la Virgen de los Remedios. No obstante, en el siglo XIX su
culto fue retomado por los criollos (españoles nacidos en México) como
símbolo de un patriotismo católico (Zires, 1994). Algunas intervenciones
estéticas de la época suplieron al águila posándose sobre el nopal (símbolo
fundacional del Tenochtitlán) por la Virgen reconvertida en mujer águila
Guatuhtli (De la Maza, 1981, p. 70 apud Zires, 1994). Por ello no fue
una coincidencia que la Virgen enarbolara al movimiento de la Guerra
de Independencia en 1810, impresa en un estandarte con el cual el cura
Don Miguel Hidalgo (considerado el Padre de la Independencia) gritaría
“¡Viva la Virgen de Guadalupe, mueran los gachupines!” para dar inicio a
la guerra contra la corona de España.

23
La Virgen de Guadalupe se convirtió desde entonces en un símbolo
dominante patriótico que vinculaba la idea de nación católica (Florescano,
2004) y en el ámbito cultural fue reconocida como emblema de unidad
nacional (Wolf, 1958). En él se reconocieron los indígenas que se identifi-
caron con ella como la antigua diosa Tonantzin: nuestra madre en náhuatl;2
los españoles que la vieron como una versión mexicanizada de la Virgen
de Guadalupe de Extremadura; y posteriormente los criollos (españoles na-
cidos en México) quienes transformaron su tradición oral en escrita y pos-
teriormente la eligieron para abanderar la independencia (Brading, 2002,
p. 27). Un siglo después, en 1910, Guadalupe fue también retomada en su
estandarte por Emiliano Zapata, líder de la Revolución mexicana.El antro-
pólogo Victor Turner captó que Nuestra Señora de Guadalupe representa

un símbolo mixto criollo-indio, que incorporó a su sistema de im-


portancia no sólo ideas sobre la tierra, la maternidad, las potencias
indígenas, sino también nociones criollas de libertad, fraternidad
e igualdad, algunas de las cuales fueron tomadas de los pensadores
ateos franceses de los períodos revolucionarios. (Turner, 1974, p.
152).

En el presente, la Virgen de Guadalupe es una de las imágenes más
clonadas en el mundo y por tanto con mayor capacidad de omnipresencia.
Como icono católico, se le puede encontrar en las capillas de las principales
catedrales de todo el mundo. En México y entre las poblaciones latinas de
Estados Unidos no hay un templo que no tenga un altar para su imagen. La
devoción también se multiplica en una religiosidad popular que se practica
en millones de hogares donde se montan pequeños altares que sirven como
adoratorios domésticos de su imagen canónica. Casi la mitad de los mexica-
nos tienen un adoratorio a su imagen en casa, aunque claro es también un
símbolo que representa la frontera que desarraiga a los evangélicos, protes-
tantes y no afiliados de la unidad nacional que otorga (datos de la Encuesta
ENCREER en Hernández, Gutiérrez Zúñiga y De la Torre, 2017).
Su iconicidad no sólo está en los templos, debido a su carácter patrió-
tico se encuentra en los espacios públicos, como una imagen protectora
2 El historiador Nebel destaca que los indígenas encontraron en Guadalupe-Tonantzin una fusión compensatoria,
que: “Por un lado, la Virgen de Guadalupe del Cerro del Tepeyac, remplaza a las deidades maternas o telúricas
(Coatlicue, Tonantzin, Teteoinnan, entre otras) del antiguo sistema religioso, por otro lado, permiten de tal manera
un cierto grado de continuismo espiritual que se muestra en fuertes sincretismos religiosos” (Nebel, 1995, p. 29).

24
de sus hijos: está estampada en bardas, esquinas pedregosas, parabrisas de
automóviles y camiones. En oficinas, mercados, restaurantes e incluso en
bares y cantinas. Y de manera sorprendente su aparición continúa siendo
un hecho milagroso que actualiza el milagro de origen (mito-praxis, según
Sahlins, 1987) en los lugares menos esperados: una estación de metro, call-
es, árboles, postes, banquetas, comales, ollas, hasta en los platones de los
microondas. En conjunto su aparicionismo coincide con refundar territo-
rio identitario en sitios inseguros, anónimos, peligrosos o sin identidad. Su
mito-praxis parece contribuir a colonizar el anonimato propiciado por la
vida contemporánea (De la Torre, 2012).
La tez morena de la Virgen estampada en la tilma representa una vir-
gen mestiza que se compadece del indio Juan Diego. Si bien su mimetiza-
ción con la virgen de Extremadura no dio como resultado una réplica de
la Virgen española (sus iconografías son distintas, aunque sus narrativas
míticas son casi iguales), ya que Guadalupe se mostró como “la morenita”,
la que eligió el Tepeyac para teñir su rostro con el color de la tierra y com-
padecerse del indio Juan Diego, un sencillo indígena, a quien llamó “el más
querido de mis hijos”. Podemos sintetizar que es el símbolo que sostiene el
indigenismo romantizado como rasgo que colorea a la ideología mestiza, la
misma que fue retomada en el México posrevolucionario como política de
ciudadanización. Pero como atinadamente lo expresó Lafaye “‘el indigenis-
mo’ ha sido originariamente, a partir de los años treinta del siglo XX, una
ideología de mestizos, no de indios ni de criollos” (2009, p. 259).

El despertar de México guadalupano por la defensa de la fe


La mayoría de los católicos no consideran que la imagen de la Virgen
de Guadalupe sea una obra artística creada por un ser humano, sino que la
consideran un hecho milagroso.3 Por ello los católicos extremistas la consi-
deran un objeto extraordinario y su imagen un objeto de culto. La imagen
3 La creencia católica sostiene que la imagen no fue pintada (entre los enigmas es que no contiene pigmentos na-
turales), sino que se estampó milagrosamente en la túnica del indio Juan Diego. En el mundo católico es la única
aparición mariana que dejó constancia visual de su epifanía. Algunos creyentes consideran que la imagen está viva.
Entre los hechos extraordinarios que resultan ser verosímiles para muchos de sus fieles y que son divulgados por
los medios de comunicación: es que la imagen de Juan Diego está reflejada en el iris del ojo derecho de la Virgen,
que la imagen está embarazada y para probarlo un doctor le hizo un ecosonograma, que su manto es una réplica
de la posición de las constelaciones el día en que se apareció; que ha sido indestructible y ha sobrevivido a catás-
trofes (Disponible en: https://noticieros.televisa.com/historia/cosas-que-no-sabias-sobre-la-virgen-de-guadalupe/ y
http://blogs.hoy.es/ciencia-facil/2015/04/23/enigmas-de-la-virgen-guadalupana/?ref=https:%2F%2Fwww.google.
com%2F. Consultado el: 6 out. 2020).

25
original del ayate (que se puede visitar en la Basílica del Tepeyac) plasmó
una Virgen de tes morena con facciones finas y ésta es la imagen canónica
por la cual incluso sus fieles la llaman “la morenita”.
Constantemente la imagen se replica, e incluso es objeto de inter-
venciones estéticas. En la era actual, las tecnologías de la información
han vuelto a recolocar el imperio de lo visual y de la imagen (Debray,
2004). A diferencia de épocas anteriores regidas por el dispositivo ba-
rroco las imágenes no sólo se replican y se recontextualizan, sino que se
deja atrás la reproducción de la imagen y se libera la creatividad de la
intervención artística para crear distintas representaciones de una ima-
gen. Ello propicia la deconstrucción del icono como estrategia de repre-
sentación de identidades discriminadas, disidentes, ambivalentes que
generan enconadas recreaciones, enmarcadas por las disputas en torno
al imaginario. A ello llamaré “ultrabarroco”.
El caso de la imagen Guadalupana es objeto de intervenciones ar-
tísticas constantes que generan su transmutación de símbolo español
a criollo, de mestiza a castiza, de madre abnegada a joven feminista y
liberada, de sumisa a rebelde, de pacificadora a revolucionaria. Es un
icono entre-medio de etnicidad-raza-nación.
Estas intervenciones muchas veces están atravesadas por activismos
sociales y políticos que buscan imponer una concepción del mexicano
enmarcada en el debate entre pertenencia étnica y nación; pertenencia
religiosa y nación. El ultrabarroco consiste en la incesante clonación y
transformación estilística de la imagen de la Virgen de Guadalupe que
contribuye a desregular la gestión eclesiástica sobre el culto guadalupa-
no, a la vez que lo libera, lo pone en circulación, y revitaliza la religiosi-
dad popular ampliando los rangos de creatividad y apropiación cultural
(De la Torre, 2016).
En México el mestizaje cultural fue durante el siglo XIX y XX una
solución aparente que garantizaba la ciudadanía nacional, pero que se
realizaba mediante un proyecto indigenista tendiente a la aculturación
de los grupos indígenas y marginados para unificarlos y homogenei-
zarlos en el cuerpo de una nación “mestiza” (Bonfil Batalla, 2004). No
obstante, el mestizaje, o mejor dicho la identidad mestiza, no resuelve
los desniveles culturales contemporáneos, ni remedia las tensiones entre
la polarización étnica-racial pre-existentes en México, en cambio:
26
Hoy en día el mestizo en México es una construcción ideo-
lógica compleja y profundamente arraigada, con aspectos bio-
lógicos y culturales que se encuentran bajo escrutinio. Hay la
creciente percepción en algunos cuarteles que, como noción
identitaria, el mestizo está en franca caída y crisis, ya que la su-
puesta uniformidad etno-racial no responde a la diversidad hoy
reconocida, y las ocultas xenofobias que alberga en su matriz
se han vuelto indefendibles (López-Beltrán y Vivette García,
2013, p. 393).

Imagen 1 – Virgen zapatista, anónima

Fuente: Pinterest.4

Como lo reconoció Victor Turner, el ícono guadalupano sostiene


tanto proyectos que pugnan por la estabilidad y continuidad del status quo,
como alienta proyectos revolucionarios que exigen libertad e igualdad.
Como ejemplo, los recientes movimientos revolucionarios de izquierda
han incorporado a la Virgen de Guadalupe. Uno de ellos fue el Ejército
4 Disponible en: https://www.pinterest.com.mx/pin/183521753536536632/?d=t&mt=signup. Consultado el: 6 out.
2020.

27
Zapatista de Liberación Nacional (EZLN) que, en enero de 2013, a unas
horas de que el entonces presidente de la República concluyera la firma
del Tratado de Libre Comercio con Norte América, una puerta de ingreso
al neoliberalismo, un sector indígena se levantó en armas en el estado de
Chiapas (que colinda con Guatemala y es un estado con altos porcentajes
de población indígena y de marginalidad y desigualdad). El movimien-
to zapatista adquirió un reconocimiento no sólo nacional sino mundial
como insurgencia antiglobalifóbica. El subcomandante Marcos, siempre
resguardando su rostro detrás de un pasamontañas, alcanzó popularidad
como icono de la izquierda (casi a la altura del Che Guevara). Distintos
indígenas cubrían sus rostros con pasamontañas y en sus cuellos portaban
pañuelos de paliacate color rojo que se hicieron íconos de insurgencia.
La Virgen zapatista es una intervención estética en la cual la ima-
gen aparece con un paliacate rojo cubriéndole la boca (imagen 1). En
lugar de su cinto negro a la cintura - que dicen los expertos simboliza
maternidad - le colocaron carrilleras de las balas cruzadas en el pecho
que fueran símbolo de las “adelitas” que acompañaban a los villistas en
la revolución mexicana. Y los angelitos se convirtieron en tres indígenas
con pasamontañas. Y las estrellas de su manto tornaron del amarillo al
negro para simbolizar el más reconocible símbolo presente en la bande-
ra zapatista: la estrella negra sobre fondo rojo. La madre de Jesucristo
fue intervenida para ser transformada en una soldada indígena e insur-
gente. Pero el antecedente de esta reconfiguración estética se encuentra
en el relato que Margarita Zires (2000) recoge el testimonio del propio
subcomandante Marcos (publicado en El Financiero, 30 de marzo de
1995), quien explicó que un día los pobladores de Guadalupe-Tepeyac
recibieron la imagen de la virgen traída de la ciudad de México y en
un consejo indígena se tuvo que tomar la decisión de dónde depositar
a la virgen. El relato narra que la versión de la anciana Hortencia fue
la más aceptada: “La Virgen  querrá  ir  a donde  vayan los de  ‘Guada-
lupe Tepeyac’, que si la guerra los avienta a las montañas, a las mon-
tañas irá la Virgen, hecha soldado como ellos, para defender su digni-
dad morena”. Esta decisión permitió apropiarse de la Virgen como un
combatiente más, “permite que los zapatistas guadalupanos hablen de
ellos mismos en nombre de ella” (Zires, 2000, p. 63).

28
De manera similar, en el año 2006, la Virgen fue transfigurada al
colocarle una máscara antigases y una aureola de púas y en suplir las es-
trellas por neumáticos incendiados en su manto. A esta intervención se
le reconoce como la Virgen de las Barricadas que surgió para proteger al
movimiento Asamblea Popular de los Pueblos de Oaxaca (APPO) fren-
te a la represión militar a los inconformes: “Para resguardarse, la pobla-
ción simpatizante del movimiento insurrecto levantó barricadas en cada
esquina y avenida cercana o periférica al centro de la ciudad” (Ramírez
López, 2019). El icono guadalupano adquirió elementos insurrectos
que fueron retomados por una religiosidad popular cuyos fieles estaban
adheridos al movimiento magisterial. Esta imagen se transportó “altares
improvisados en las calles, mítines, marchas y barricadas que se llevaban
a diario en la ciudad” (Ramírez López, 2019).
En relación con las redefiniciones de género la Virgen representa
para la mayoría de los católicos una madre piadosa que vela por sus
hijos y los protege. En ella están presentes los valores tradicionales de la
feminidad vinculada a la maternidad. Desde hace años estos valores son
reclamados por grupos católicos conservadores e incluso recientemente
es abanderada como insignia por el movimiento provida y profamilia.
Algunas intervenciones artísticas asociadas con la erotización de la
figura femenina de la Virgen han provocado controversias y reacciones
vandálicas por parte de católicos integristas. Tal fue el caso de la imagen
guadalupana con rostro de Marilyn Monroe (la cual se llamó la Virgen
Marilyn), acompañada de la leyenda “Ni mi Hermana. Ni mi Madre”
que causó reacciones de desagravio (ver imagen 2);5 la presión para cen-
surar la película “El Crimen del Padre Amaro”,6 que exhibía una escena
donde una chica, tras mantener relaciones sexuales con un sacerdote,
se cubría el cuerpo desnudo con un manto con estrellas, construyendo
una metáfora visual en analogía con el manto estrellado de la Virgen. Y
el dibujo de “La Patrona” (ver imagen 3) de Manuel López Ahumada
exhibido en el Museo del Periodismo y la Gráfica en Guadalajara en
5 El autor de la exposición fue el pintor guatemalteco Rolando de la Rosa y se llevó a cabo en el Museo de Arte
Moderno en la ciudad de México, en el año de 1987.
6 El crimen del padre Amaro es una película mexicana dirigida por Carlos Carrera en 2002 basada en la novela ho-
mónima del escritor portugués Eça de Queirós, escrita en 1875. Hubo fuertes presiones para censurar la película y
que no fuera exhibida en las salas de cine de México, pero la película fue exhibida y en su momento logró un éxito
en taquillas sin precedente. Fue además nominada como mejor película extranjera en los premios Oscar de 2002.

29
agosto del 2000: La Patrona (nombre con el cual se le denomina a la
Virgen de Guadalupe) se trataba de un dibujo donde aparecía el indio
Juan Diego (ya canonizado como San Juan Diego) con la tilma exten-
dida y en ella se imprimía la imagen de Marilyn Monroe desnuda (ver
Ramírez Sáiz y De la Torre, 2009).

Imagen 2 – Collage “Ni mi hermana. Ni Imagen 3 – Grabado “La patrona”,


mi madre”, de Rolando de la Rosa, 1987 de Manuel López Ahumada, 2000

Fuente: Publicadas en Ramírez Sáiz y De la Torre (2009).

Pero también hay otras representaciones libertarias, como la rea-


lizada por el movimiento de artistas femeninas chicanas (movimiento
político cultural de los pobladores mexicanos en Estados Unidos), que
han rediseñado una iconografía con formas asociadas a la mujer con-
temporánea para apropiarse de la imagen religiosa como un emblema
político para representar narrativas en contra de la desigualdad de géne-
ro y del racismo - en este colectivo artístico se encuentran las obras de
Yolanda López, Laura E. Pérez, Alma López y Esther Hernández (Zi-
res, 2000, p. 65). De esta manera la intervención estética ha generado
un nuevo símbolo disponible en las redes sociodigitales, que permite
romper dicotomías prevalecientes inherentes a los discursos de género,
nación, clase social y raza (Román-Odio, 2012, p. 283).
30
Una de las artistas chicanas más emblemáticas de Los Ángeles, Ca-
lifornia, Yolanda López, plasmó en 1978 a “Lupita” (nombre coloquial
con que los fieles llaman a la Virgen), representada por una Virgen de
Guadalupe encarnada en una joven contemporánea que viste tenis y corre
hacia el frente, pisando al ángel, con la falda abierta. La obra muestra una
mujer con actitud liberacionista y no una posición pasiva, que simboliza
los valores del activismo feminista. Los colectivos de artistas de las femi-
nistas chicanas han recreado a la Virgen para introducir ideas y valores
asociados a las expectativas asociadas a la mujer contemporánea: wonder
woman, madre de las maquilas, dama de la noche, o mujer lesbiana. Las
redes sociales se han encargado de retomar dichas imágenes y de producir
nuevas apropiaciones, tal fue el caso de la imagen también obra de Yolan-
da López en la que aparece la Virgen de Guadalupe besándose en la boca
con otra mujer. Esta imagen fue retomada por un colectivo gay en el año
2016 y se viralizó en Facebook cuando un usuario escribió: “Amigos, la
Virgencita de Guadalupe es también la reina de los gays, ¡AMÉN! Una
imagen poderosa”. Las reacciones también se multiplicaron, al considerar
que dicha imagen era un agravio a la fe, y desató “mensajes de odio hacia
las personas pertenecientes al colectivo LGBTTTI. Usuarios de la página
‘stalker’ con más de 200 mil usuarios, pidieron expulsar al miembro que
subió imagen de ‘La Virgen reina de los gays’” (Astrolabio, 2016).
En el presente en las redes sociales sociodigitales circulan múltiples
imágenes que transforman a la imagen canónica de la Virgen de Guada-
lupe, como es la Mari Juana (una Virgen con el manto conformado por
las hojas de la mariguana). En los cultos populares también se gestan
asimilaciones de su imagen con la del Niño Fidencio (quien aparece con
el manto de la Virgen) e incluso hay recreaciones artísticas que colocan
a la Santa Muerte en el traje de la Virgen.7 De manera más reciente,
algunos círculos de espiritualidad femenina han simbolizado la vagina
asociada con la silueta de la Virgen guadalupana8 en un intento de de-
colonizar el cuerpo y los tabús en torno a los ciclos menstruales (Valdés
7 La Santa Muerte es una figura esquelética femenina que es venerada como si fuera una santa en círculos populares
de México. La mayoría de sus fieles provienen de sectores marginales y están vinculados con la informalidad y la
ilegalidad. Por tanto, se le considera un culto transgresor que recientemente ha tenido un gran crecimiento. No es
una santa propiamente dicha, pues no ha sido canonizada por la iglesia, además de que la iglesia la sanciona cons-
tantemente ha sido estigmatizada por la prensa por su vinculación con el narcotráfico y el crimen organizado. Para
más información se recomienda ver: Hernández (2016).
8 Disponible en: https://www.instagram.com/p/BPoE23KDMp_/. Consultado el: 6 oct. 2020.

31
Padilla, 2018). Algunas mujeres de los “círculos de sagrado femenino”
se identifican con ella como una manera de consagrar su ciclo mens-
trual y su sexualidad. Por otra parte, la imagen de la Virgen aparece
en distintas prácticas rituales ya que la reconocen como un poderoso
arquetipo de la feminidad sagrada.
Ni siquiera es confrontada cuando se convierte en un objeto de
consumo (como es su versión de Virgencita Plis).9 Estas intervenciones,
dependiendo los contextos en que se realizan, han generado tensiones y
conflictos pues unos apelan a la libertad de la expresión artística y otros
perciben que se profana el objeto que representa para ellos un sentido
sacro, y constantemente resultan sentirse ofendidos, argumentando in-
cluso que están siendo atacados a los elementos pilares donde descansa
de su fe (De la Torre, 2016).

Sincretismo: arte polémico que reescribe los renglones


borrados de la historia
En el mes de agosto de 2017, un programa municipal de promo-
ción del arte urbano en distintas avenidas de la ciudad de Guadalajara
financió la colocación de obras escultóricas de reconocidos artistas lo-
cales. La colocación de la escultura Sincretismo ocasionó un fuerte con-
flicto entre autoridades locales, comunidad artística y creyentes católi-
cos. Junto con aislados debates sobre la calidad estética de las distintas
obras que emergieron dentro del ámbito artístico; del cuestionamiento
de periodistas y políticos de oposición al gasto ejercido con presupuesto
público en arte urbano y no en solucionar necesidades básicas; el con-
flicto mayor se generó entre el campo del arte, que apelaba a la libertad
de expresión para plasmar estéticamente un pasaje histórico que forma
parte de la identidad mexicana (como lo es la fusión de la cultura in-
dígena y la cultura europea en la cultura mestiza) con la postura ecle-
siástica de percibir la obra como una falta de respeto a la fe católica
guadalupana de los mexicanos.
9 Virgencita plis es una imagen caricaturizada de la Virgen de Guadalupe mercantilizada por la empresa Distroller,
una exitosa franquicia, con 30 tiendas en México, Estados Unidos y Europa. La virgencita (en diminutivo) ha sido
estilizada con formas y colores vivos y contemporáneos que la hacen un producto pop. Retoma la tradición de los
exvotos para pedir y agradecer favores milagrosos, pero traducidos a las formas cotidianas con que hablan los jóve-
nes, plagado de Spanglish (“plis” viene de please: por favor) y con contenidos de peticiones para resolver pequeños
problemas del día a día.

32
Imágenes 4, 5 y 6

De la izquierda a la derecha: Imagen 4. La Coatlicue. Monolito Prehispá-


nico encontrado en el centro de la Ciudad de México en 1790. Se exhibe
en el Museo de Antropología de México, fotografía de Renée de la Torre;
Imagen 5. Escultura Sincretismo obra de Ismael Vargas 2017, fotografía de
Renée de la Torre; Imagen 6. Nuestra Señora de Guadalupe, anónima, siglo
XVI, se exhibe en la Basílica de Guadalupe en la Ciudad de México.10

Sincretismo es creación de Ismael Vargas (un artista plástico me-


xicano con amplio reconocimiento nacional e internacional). Su colo-
cación en la Avenida Federalismo, una calle pública muy transitada, en
septiembre de 2017 generó una batalla campal. Se trata de una escul-
tura urbana, hecha en metal que mide 9 metros de altura. Un sector
católico tradicional lo consideró una falta de respeto a la fe y al símbolo
de la Virgen de Guadalupe. Según la propuesta del artista para repre-
sentar el sincretismo se remitió a plasmar una figura que condensara:
“el origen de un todo: a la madre”. El creador buscó recrear este con-
cepto retomando dos imágenes mexicanas que representan a la madre:
la diosa Coatlicue (también conocida como Tonantzin) y la Virgen de
Guadalupe. La primera incluye elementos icónicos presentes en una
escultura de piedra que se muestra en el Museo de Antropología de la
ciudad de México, y la segunda coloca algunos signos característicos de
la imagen de la Virgen Guadalupana.

10 Disponible en: https://virgendeguadalupe.org.mx/. Consultado el: 6 oct. 2020.

33
Ismael Vargas nunca ha sido un artista disidente, ni menos un ar-
tista provocador. Es el tipo de artista que hace una alegoría de objetos
artesanales, colores y texturas que conforman el folklor mexicano. Se-
gún su propio testimonio, nunca hubo intención de generar polémica,
menos aún de ofender creencias, pues él mismo se define como un
devoto de la Virgen de Guadalupe. Para él su obra debe ser entendida
como una creación que sintetiza: “Un retrato de la madre de los mexi-
canos antiguos (Coatlicue) y un retrato de la madre de los mexicanos
modernos (Guadalupe)” (El Informador, 2017a). Sin duda, más allá de
la intención estética del artista su creación era una clara deconstrucción
histórica de un símbolo dominante del patriotismo católico mexicano
y por tanto su puesta en escena en el espacio público constituyó un
símbolo entre-medio que articula dos polos opuestos y contradictorios
de la propia noción del mestizaje y sincretismo mexicano, a la vez que
permite develar su contradicción histórica y se convierte en una narra-
tiva transgresora del patriotismo católico (Bhabha, 2012). La provoca-
ción de la obra de arte Sincretismo pone en la superficie las huellas de
la Coatlicue-Tonantzin ambas diosas prehispánicas que simbolizaban a
la madre de los dioses y que fueron asimiladas por la sobre-posición de
la imagen de Guadalupe en el santuario del Tepeyac donde se le rendía
culto a Tonantzin (De la Torre, 2014). La obra artística devela el drama
de un pasado de imposición cultural y religiosa. No obstante, fue leída
como un insulto a la fe de un grupo de católicos.

La herejía como excusa para la politización de la derecha


católica conservadora
A los pocos días de inaugurada la obra, surgió un movimiento de
católicos en oposición a la obra artística. Argumentaban que la consi-
deraban un insulto a su fe católica, una blasfemia y una falta de res-
peto para la imagen de la Virgen de Guadalupe. Este grupo, aunque
es muy minoritario, goza de gran capital social y cuenta con el apoyo
del Opus Dei; y el respaldo del Cardenal Juan Sandoval Iñiguez, Arzo-

34
bispo emérito de Guadalajara;11 y del liderazgo de militantes católicos
conservadores que tuvieron un papel político local (como es el caso de
Fernando Guzmán, quien fue Secretario del Gobierno del estado de Ja-
lisco durante 1998-2000 por el Partido Acción Nacional). No obstante,
no representa a toda la jerarquía, pues el actual arzobispo de Guadala-
jara, José Francisco Robles Ortega, también expresó no respaldar a los
demandantes, pues para él la pieza no representa una afrenta contra la
comunidad católica.
El encono derivó en la conformación de una asociación que se
llamó México Guadalupano. En su página web, se define como: “Una
Asociación de Católicos seglares de carácter nacional, que, conociendo
su fragilidad, encuentran en la Santísima Virgen el medio para alcanzar
a Cristo, haciendo labores a favor y en defensa de la doctrina social de
la Iglesia y la moral Cristiana”.12 Esta asociación surge con el objetivo
de “destruir la escultura Sincretismo”. Pero asocian objetivos más am-
plios como son encender y promover la devoción a Nuestra Señora de
Guadalupe en toda la nación mexicana y defender la religión Católica,
a la Iglesia y sus ministros.
Sus primeras acciones fueron locales. Se hicieron escuchar en los
medios de comunicación y en las redes sociales. La agrupación convocó
a una manifestación de desagravio que logró reunir a cientos de católicos
frente a la escultura Sincretismo para exigir al edil que retirara de inmedia-
to la escultura del espacio público. El alcalde no cedió al reclamo del gru-
po de católicos argumentando que México es un país laico y que la obra
es una expresión artística, aun cuando el reclamo de católicos adquirió
tintes políticos. Hicieron una campaña contra el funcionario que buscaba
ser candidato por la gubernatura de Jalisco amenazando con llamar a los
católicos, los cuales son guadalupanos, para votar en su contra.

11 El cardenal Juan Sandoval Iñiguez fue el arzobispo de Guadalajara entre 1994 y 2011. Se le reconoce como el más
intransigente y conservador de los obispos actuales en México. Es ultraconservador en temas relacionados con la
defensa de la vida y la familia. Es además muy intolerante, llegando incluso a proteger vandalismos de católicos
ofendidos por la herejía o la ofensa a sus símbolos. Ha escenificado diferentes campañas, boicots y cruzadas en
donde entra en conflicto con los gobernantes de izquierda, con los defensores de Derechos humanos, con los co-
lectivos de feministas y en pro de la diversidad sexual. Se le vincula con una sociedad secreta llamada Yunque que,
según Delgado (1993), se fundó en 1954 para reconquistar el poder de la iglesia en la esfera política de México. Su
principal infiltración exitosa fue el Partido Acción Nacional.
12 Disponible en: https://www.mexicoguadalupano.com.mx/objetivos/. Consultado el: 6 oct. 2020.

35
Posteriormente, la escultura Sincretismo fue retomada como obje-
to central del arranque de campaña en 2018 de Miguel Ángel Martínez
Espinosa, candidato del Partido Acción Nacional (PAN), a la guberna-
tura de Jalisco, quien acompañado de alrededor de 100 simpatizantes
anunció la clausura simbólica de la obra. El rechazo a la escultura se po-
litizó, primero a nivel local. Con este acto el candidato se comprometió
con los católicos conservadores a remover la obra del espacio público
pues a su parecer es una falta de respeto a la ciudadanía que da por
sentado que es católica y que comparte el sentir del Cardenal Sandoval,
quien utilizó en varias ocasiones el recurso de denunciar la obra como
un agravio hacia la fe católica y una blasfemia hacia la imagen de la Vir-
gen de Guadalupe, con el fin de contrarrestar las campañas del Partido
Político Movimiento Ciudadano, al cual pertenece el entonces edil de
Guadalajara Enrique Alfaro.
El movimiento México guadalupano radicalizó su mensaje en cáp-
sulas de Facebook donde explicaban que los símbolos usados en la es-
cultura (calaveras y serpientes) hacían referencia a un culto diabólico e
incluso que podían interpretarlo como la legitimación del culto actual
a la Santa Muerte. El mensaje era que los católicos exigían el respeto a
sus creencias y sentenciaban:

Católico basta de ataques a la religión, no habrá arte ni cultura


que justifique faltar el respeto a lo sagrado. Algunos te llamarán
fanático pero para Dios nunca será un fanático pero para Dios
nunca será un fanático quien defienda a su madre y su religión.
Es nuestro deber como católicos. Y que quede muy claro antes
de los cambios de gobierno que exigimos respeto a la religión,
la vida y la familia. Ahora y siempre.13

Es importante considerar lo delicado que puede resultar el movi-
lizar la sensibilidad de los católicos hacia el sentimiento de persecución
religiosa por una simple obra artística, en una región en la que referirse
a la persecución de los católicos puede despertar ecos de sensibilidades
radicales, pues en esta zona se vivió una Guerra de defensa de la Fe
católica (la Guerra Cristera de 1926 a 1929) contra la aplicación de las
13 Disponible en: https://www.facebook.com/MexicoGuadalupano/?hc_ref=ARRBTMF4nC3l0nVv81bkR7GXSk-
9fakNS4Cg1y4RlLXXzikazEH2c3JQwxQhrORVxxpk&fref=nf. Consultado el: 10 jul. 2020.

36
Leyes de Reforma. Y durante mucho tiempo se vivió también perse-
cución religiosa a los católicos practicantes.
Los grupos católicos empezaron a realizar mítines y otro tipo de
acciones. Todos los martes en la tarde se reunían un grupo de mujeres
católicos a rezar el Rosario como manifestación de desagravio. Llega-
ban en carros, rezaban y se iban. El 12 de diciembre, día de la Virgen
de Guadalupe, organizaban procesiones pro defensa de la fe. Durante
2017 y 2018 hubo seis actos vandálicos (algunos durante los actos y
otros durante las madrugadas) que llevaban a cabo distintos católicos
ofendidos que arrojaban pintura verde y roja (los colores de la bandera
nacional) en la escultura (El Informador, 2017b). En otra ocasión pin-
taron cruces blancas, y una vez más se pintó en la escultura “puerco”,
“cerdo” y blasfemia (Ornelas, 2018).
La oposición a la escultura aparecía acompañada de un discurso
de defensa a la fe y a “nuestra madre” en nombre de los mexicanos ca-
tólicos. Este discurso fue utilizado en distintos momentos en las redes
sociales. Sin el deseo de mostrar todos los casos porque sería imposible,
selecciono uno en el que el 29 de junio, dos días antes de las elecciones,
apareció en las redes como un simple anuncio: “A Dios rogando y con
el voto Dando”, que iba acompañado de dos fotografías. La primera era
una foto del mitin organizado por el movimiento México Guadalupa-
no frente a la citada escultura. Muestra en el primer plano una mano
femenina que porta un rosario (por sus colores azul y blanco es maria-
no). Detrás de ella aparece gente que participó en el mitin frente a la
citada escultura. Los denunciantes portan las pancartas con la imagen
de la Virgen Guadalupana que indican “México Guadalupano”. En la
imagen, las asistentes visten de blanco (como ya es costumbre en las
cruzadas católicas de los grupos conservadores en contra del aborto y los
derechos de adopción de los homosexuales). Debajo de esta fotografía
viene otra que muestra el dedo entintado, signo de que ya emitió su
voto. Aunque no hay un texto que oriente explícitamente al voto de
los católicos contra Enrique Alfaro (el alcalde que promovió la escul-
tura Sincretismo), las imágenes se complementan con el dicho “a Dios
rogando y con el voto dando” (en referencia a “A Dios rogando y con el
mazo dando”). Rescato uno de los comentarios de los usuarios de esta

37
página de Facebook, para mostrar la orientación política electoral que
efectivamente tenía el mensaje religioso-político.

Hola, soy de Guadalajara y quiero preguntarles por quien me


recomiendan votar para gobernador, que defienda 100% la fa-
milia y la vida desde la concepción hasta la muerte natural. He
estado muy ocupada analizando a los candidatos a la presiden-
cia y no he analizado las propuestas de los candidatos a gober-
nador de Jalisco. Por supuesto por el masón Enrique AVARO
NO VOTARE. ¿me podrían recomendar a alguno? Muchas
gracias.

Respuesta:

EL CARDENAL YA FUE CLARO!,


ALFARO ATACA A LA IGLESIA CATÓLICA, ESTÁ A FA-
VOR DEL ABORTO, NO DEFIENDE A LA FAMILIA!!
NI UN VOTO CATOLICO PARA ALFARO!!
PASA LA VOZ!!
EL ÚNICO PARTIDO QUE ESTÁ A FAVOR DE LA VIDA
Y DEFIENDE A LA FAMILIA ES ACCION NACIONAL!
MIGUEL ÁNGEL MARTÍNEZ ES UN BUEN CANDIDA-
TO
VOTA PAN!!
SALVA A MEXICO!!!!
RECEN ES MUY IMPORTANTE!!!14

Esta animación al rezo para salvar al país se reforzaba de manera


indirecta con los anuncios espectaculares que aparecieron en distintos
puntos de la ciudad (de manera anónima, sin firma alguna) con una
imagen de la Virgen guadalupana en los cuales se anunciaba: “Salva
nuestra patria y aumenta nuestra fe” (misma imagen que también se
difunde en su portal de Facebook). Su campaña a favor del candida-
to panista a gobernador no lo llevó al triunfo. Tampoco han logrado
retirar la escultura. De hecho, la ciudadanía votó por el antiguo edil
Enrique Alfaro del Movimiento Ciudadano quien actualmente es el
Gobernador de Jalisco.
14 Disponible en: https://www.facebook.com/MexicoGuadalupano/?hc_ref=ARRBTMF4nC3l0nVv81bkR7GXSk-
9fakNS4Cg1y4RlLXXzikazEH2c3JQwxQhrORVxxpk&fref=nf. Consultado el: 10 jun. 2018.

38
Podríamos pensar que su oposición fue un fracaso a corto plazo.
Pero a mediano plazo representó el punto de partida de un movimiento
católico nacional, que se opone a los valores de la laicidad, y que pugna
por defender valores provida en nombre de la Virgen de Guadalupe. La
apropiación de la defensa del símbolo guadalupano los ha habilitado
para constituirse en un movimiento católico nacional de oposición con-
servador provida, a la vez que político con presencia regional y nacional
(De la Torre, 2020).

El rescate de Cuatlicue y la feminidad sagrada

Con el ascenso de Guadalupe,


quizás ese momento ha llegado.
Ella es la planta que me habla de la raíz que hay debajo.
Más que cualquier otro ícono,
Guadalupe personifica una religiosidad popular
no confinada a ninguna institución.
Ella es un símbolo actual de un espíritu antiguo,
una piedra de toque para lo que es colorido,
primitivo y fundamental para la vida misma.
Para mí, ella es un símbolo del ideal espiritual universal,
el potencial sin explotar de lo que se encuentra
en el centro de cada individuo.
(Cobb, 2010, p. 8)

A una cuadra de donde se ubica la escultura Sincretismo se encuen-


tra la sede de una “colectiva” de mujeres que se reúnen a realizar danzas
y cantos ceremoniales para recuperar “el sentido sagrado de su esencia
femenina”. Esta colectiva se llama Ixchel, en honor a una divinidad
maya que representa la fertilidad y la abundancia, diosa de la luna, del
amor, de la gestación, de la medicina y los trabajos textiles. Al poco
tiempo de que se erigió la escultura, decidieron retomarla como lugar
sagrado de sus rituales. A diferencia de los católicos que vieron en ella
una deformación y un agravio a la imagen de la Virgen de Guadalupe,
reconocieron en la escultura una diosa prehispánica: la Coatlicue. El
grupo de mujeres comenzó a convocar a sus integrantes para realizar
rituales de la feminidad sagrada los días martes. Un día de reunión

39
coincidió con la manifestación de desagravio de los católicos indigna-
dos frente a la escultura. Fue entonteces que:

Estábamos reunidas en nuestro círculo de canto y nos dimos


cuenta de que estaba las compañeras católicas rezando el ro-
sario, dándole la espalda a sincretismo y alguien dijo estaría
bueno ya que terminen ir ahí y hacer una ronda de cantos ¿no?
Hicimos una contra- manifestación. Nos asomamos para ver
que ya se hubiera retirado y llevamos a la “ jefa tambor” y en-
tonamos cuatro cantos, y ta ta empezamos a cantar… entonces
cuando abrimos el ojo yo me di cuenta que estábamos rodea-
das de estas compañeras (las católicas), terminamos los cantos y
ellas estaban así: “nos pueden explicar qué acaban de hacer, que
idioma era para empezar” pero bueno tuvimos un encuentro
en memorable historia y encuentro de faldas porque íbamos
nosotras con nuestras faldas y ellas también.
Nos decían cosas en las que hacían mención de la madre patria
de España. Que la madre patria nos había orientado, guiado
a cómo llevar nuestra espiritualidad. Que cómo era posible
que tantos años después siguiéramos como en el paganismo, y
adorando a esas formas que solo traían muerte. Y por más que
les decíamos que para nosotros las calaveras y las serpientes de
esta estatua no significaban lo que ellas decían, que para no-
sotros simbolizaban la vida, que eran vida y muerte, que eran
fertilidad que eran la tierra, nos respondían: “son muerte y son
del diablo”. Entonces no pudo haber un diálogo porque esta-
ban muy molestas y ya al final les dijimos que lo que impor-
taba que todas siguiéramos un camino espiritual, que si era lo
espiritual donde nos íbamos a encontrar un bienestar y así pues
que no importaba de qué color fuera ni qué figura tuviera pero
su última recomendación fue que rezáramos el Ave María para
despertar en nosotros la bondad y dejar esas cosas […]. Ahí
empezamos a realizar rituales todos los martes durante varios
meses. Nos percatábamos de que ya se hubieran ido las católi-
cas y nos instalábamos. Pero luego ellas descubrieron de donde
salía el tambor, de qué casa, y entonces en algunas ocasiones
que venían de sus manifestaciones que yo venía de mis perros a
pasear, ósea me las llegué a encontrar y me decían “¿hoy no van
a traer su tambor verdad, hoy somos muchos? Y yo le respondí:
no amiga ni ganas con permiso.15

15 Entrevista de Nadia Ávila Salazar, Círculo Femenino Ixchel, Guadalajara, 25 jun. 2018.

40
La escultura se convirtió en un frente cultural. Por un lado, las ca-
tólicas iban y rezaban el Rosario implorando por la Madre Patria. Otro
grupo de católicos realizaron actos de vandalismo pintando la escultura
con los colores de la bandera mexicana. Las congregantes del círculo
femenino Ixchel realizaban su ritual de feminidad sagrada con cantos
y el toque del tambor. Al tiempo fue también retomada por grupos
de danzantes aztecas de uno de los barrios vecinos que se daban cita
en el pequeño camellón para ofrendarle sus danzas sagradas a la diosa
Tonantzin.

La Guadalupana blanqueada como símbolo provida


El uso político del emblema guadalupana se instrumentó en las
redes sociales para favorecer el voto político a aquellos candidatos que
sí eran guadalupanos (es decir católicos y provida) para convencer a
los simpatizantes del candidato Andrés Manuel López Obrador a no
votar por él haciendo propaganda de que éste era un enemigo de la fe
guadalupana.El movimiento conservador guadalupano que inició de-
fendiendo la escultura de Guadalajara escaló a la política nacional y par-
ticipó en la contienda para la presidencia de la República, en donde los
defensores de la fe guadalupana expresaban su temor por la candidatura
del Andrés Manuel López Obrador, propuesto por una coalición de tres
partidos: MORENA, PT y PEZ. Los dos primeros representaban la
izquierda, y el tercero un partido fundado por evangélicos.
La campaña política-católica-guadalupana consistió en un video
de un sacerdote que difundía un supuesto volante emitido por MORE-
NA, PES Y PT en el que se denunciaba a la Iglesia católica como parte
de la mafia del poder, alertando: “No permitamos la manipulación que
hace la Iglesia católica a través del fanatismo y la utilización de diversos
símbolos como el cuento de la Virgen de Guadalupe. Por una auténtica
libertad religiosa e iglesias al servicio del pueblo”. Firmaban la Comuni-
dad Cristiana de México, la Iglesia Pentecostal y la Confraternidad Na-
cional de Iglesias evangélicas. De lado derecho se colocó la imagen de la
Virgen morena con un círculo que anunciaba no votar por ella. El día
18 de mayo de 2018, comenzó a circular en las redes sociales un video
donde el sacerdote Francisco López Coronado denunciaba el panfleto

41
como una infamia. Invitaba a que los mexicanos levantaran la voz pues
no podían soportar que pisotearan a la Virgen porque “es el emblema de
México, es la bandera de México. Es la que nos dio patria”. Para termi-
nar su video entonó el himno Guadalupano, cuyas estrofas llamaban a
una guerra de defensa a la patria y a Dios.16 La denuncia fue desmentida
al día siguiente por la coordinadora de la campaña presidencial de Ló-
pez Obrador, y el propio candidato desmintió su responsabilidad acu-
sando su difusión como parte de una guerra sucia para deslegitimarlo, y
aseveró que “en su proyecto de gobierno se respetan las religiones de la
militancia, así como a los no creyentes”.17
El riesgo al culto guadalupano fue parte de la estrategia de fake
news promovida por los católicos de derecha. De esta manera lograron
expandir el temor de que Andrés Manuel López Obrador (el candidato
de la izquierda moderada) era un peligro para la nación, pues además
con llevar a la nación al populista bajo el modelo venezolano era un
peligro para la fe católica.
En vísperas de las votaciones en distintas redes sociales se invitaba
a rezar e invocar a la Virgen de Guadalupe (madre protectora de la naci-
ón) para cambiar los resultados electorales esperados por los resultados
de las encuestas que anunciaban un éxito arrollador de Andrés Manuel
López Obrador (AMLO) en las urnas. No obstante, ni los rezos, ni las
invocaciones lograron cambiar el efecto de los votos en las urnas a favor
de AMLO.
Como presidente Andrés Manuel no ha sido ni un comunista y
menos un anticlerical enemigo del culto católico. En reiteradas ocasio-
nes retoma a Cristo y sus enseñanzas como parte de una nueva agenda
política. Y en cuanto a la Virgen de Guadalupe, ha dicho constante-
mente: “yo me hinco donde se hinca el pueblo”.
No obstante, el año 2019 fue especialmente controvertido por las
campañas feministas y las marchas de mujeres que sucedieron no solo
en la capital sino en toda la república denunciando la violencia de géne-
ro, exigiendo la despenalización del aborto y demandando una sociedad
no patriarcal. El sector conservador católico provida ha salido a la calle
16 Disponible en: https://www.msn.com/es-mx/noticias/elecciones/volantes-contra-la-iglesia-y-la-Virgen-con-logo-
-de-morena-son-guerra-sucia-acusa-amlo/ar-AAxwgGT?ocid=sf. Consultado el: 6 oct. 2020.
17 Disponible en: https://www.facebook.com/jtpunleon/videos/pcb.1704890842881346/1704890229548074/?-
type=3&theater Consultado el: 6 oct. 2020.

42
para proteger con sus cuerpos los templos que han sido vandalizados
por pintas de las feministas, y posteriormente decidieron movilizarse
y tomar las calles para defender la vida y la familia “natural”. Bárcenas
(2020) narra cómo el 21 de septiembre de 2019, encabezaron su mar-
cha cargando un estandarte de la Virgen de Guadalupe, una bandera de
México y un crucifijo con una pañoleta azul.
El uso de las pañoletas ha adquirido un valor simbólico en las mar-
chas y luchas por los derechos sexuales y reproductivos de las mujeres.
En Argentina desde 2005 la pañoleta verde se convirtió en un símbolo
de demanda política en pro de la legalización del aborto. Su uso fue
retomado en distintos países acompañando las exigencias feministas.
Los católicos provida lo re-simbolizaron con el color azul celeste (color
mariano) insertando la frase “Salvemos las dos vidas” (Felitti y Ramí-
rez, 2020). En febrero de 2020, el movimiento provida mexicano sacó
al mercado la pañoleta azul de la Virgen de Guadalupe como insignia
de su movimiento. Esta pañoleta es una re-simbolización no sólo de la
pañoleta, sino de los elementos indígenas presentes en la figura de la
Virgen mexicana. En la imagen original de la Virgen aparece con un
listón negó a la cintura que en la cultura mexica era un signo de emba-
razo, por tanto algunos teólogos aluden a que los indígenas reconocie-
ron en la iconografía el símbolo de fertilidad que asociaban con la diosa
Tonantzin (Castillo, 1996). En un video promocional se presentan dos
pañoletas: una para damas (más amplia y larga que cubre los hombros
hasta la cintura del cuerpo de las mujeres y contiene las estrellas de
manto de la virgen) y una para varones (más corta) que tiene el símbolo
del Nahui Ollin. Con esto demarcan la diferenciación de sexos, y co-
locan el valor del pudor. Retoman algunos símbolos aztecas presentes
en la iconografía guadalupana, pero reinterpretados a favor de la vida.
Explican las simbolizaciones de esta pañoleta aludiendo a que el sím-
bolo Nahui Ollin (que significa los cuatro puntos cardinales) simboliza
la anunciación del quinto sol “que no iba a morir” porque “representa
la vida que vence a la muerte; la luz que vence a las tinieblas y la verdad
que vence a la mentira”. Según su narrativa los indígenas abrazaron la
fe cristiana porque reconocieron que la Virgen estaba embarazada del
Quinto Sol.

43
Por otra parte, la asimilación de la Virgen a los símbolos patrios
ha sido una constante en las cruzadas de la derecha católica (durante el
trabajo de campo realizado en la década de los noventa en las marchas
por la decencia usaban como estandarte la bandera mexicana, pero en el
centro habían suplido el símbolo del Águila por la efigie guadalupana).
Con ello conquistan el emblema patrio, transformándolo en un emble-
ma católico y europeizante.
Días antes de que redactara este artículo una imagen de la Virgen
“banqueada” causó controversias en las redes sociales (imagen 7). Si
para los católicos es una blasfemia su analogía con Tonantzin o con Ma-
rilyn Monroe, para un gran número de mexicanos es una aberración el
que se decolore la tez de la Virgen morena y que sus ojos luzcan claros.
Es la imagen de una criolla, no de una Virgen indígena. Sus manos ya
no aparecen unidas sino cargando a tres neonatos indígenas. La imagen
va acoplada de la leyenda: “México es PRO-VIDA”. Y promueve la
campaña de rezos de rosario para intervenir en pro de la no despena-
lización del aborto. Esta imagen provocó muchas críticas en las redes
sociodigitales y medios de comunicación por el hecho de blanquear a
la Virgen.

44
Imagen 7 – Volante de México es provida, julio de 2020

Fuente: Zócalo.18

Esta imagen se suma a la campaña de rezos de rosario guadalupa-


19
no que fue promovida por Eduardo Verástegui, un influencer católico
provida que busca sumar un millón de personas en el rezo virtual del
rosario guadalupano para pedir a la virgen que proteja a los mexicanos
de la pandemia covid-19.

Reflexiones finales
Con este ensayo he querido mostrar al símbolo de la Virgen de
Guadalupe como un frente cultural donde se libran distintas batallas
por la definición misma del símbolo respecto a la etnicidad nacional
y el significado de la feminidad. Como describí en la parte histórica,
la imagen de la virgen de Guadalupe emergió como un símbolo de
unidad cargado de historia e identidad patria, pero es también un sím-
bolo fundacional que recuerda el encuentro y fusión mestiza entre dos
civilizaciones: la indígena y la europea. Encarna un mito que expresa
18 Disponible en: https://www.zocalo.com.mx/new_site/articulo/grupo-provida-causa-polemica-por-foto-de-una-vir-
gen-de-guadalupe-blanca-y-d. Consultado el: 6 oct. 2020;
19 Disponible en: https://www.publimetro.com.mx/mx/destacado-tv/2020/02/23/panoleta-provida-guadalupana.
html. Consultado el: 6 oct. 2020.

45
un catolicismo mestizo. No obstante, lo mestizo -aunque ha sido una
fórmula adoptada por las políticas culturales nacionales para arropar
la ciudadanía- no es una solución finiquitada. Se encuentra constante-
mente en disputa entre la mestización criolla y la mestización indígena.
Como símbolo de unidad condensa no sólo las diferencias sino tam-
bién los antagonismos. Sus apropiaciones estilísticas, re-simbolizaciones y
re-significaciones son intervenciones insertas en una lucha política por el re-
conocimiento legítimo de las diferencias nacionales. No sólo es un símbolo
usado para conservar y mantener el dominio del status quo, sino también
para dar lugar al reconocimiento de las disidencias, de las diferencias radica-
les que surgen en los márgenes, e incluso de las voces subversivas.
Me gustaría pensar el símbolo guadalupano como un palimpsesto
que asimiló lo indígena en un símbolo católico sincrético, pero donde
los elementos del pasado prehispánico y de la inclusión nacional de las
diferencias se reavivan a lo largo de la historia con las intervenciones ar-
tísticas y plásticas que lo transforman en un símbolo mutante, con múl-
tiples rostros, pero también con múltiples significados asociados a cada
intervención artística. Las distintas recreaciones guadalupanas claman
el reconocimiento de las diferencias nacionales. Muchos de ellos inser-
tos en tramas políticas disidentes que exigen reconocimiento y respeto.
La metáfora del palimpsesto introducida por Jesús Martín Barbero
(1996) resulta útil para pensar la identidad y la memoria popular mexi-
cana en un frente cultural que al transformarse despliega las diferencias
y con ellas los antagonismos. Es un símbolo que no sólo alude a la re-
presentación de la dominación, sino que está en perpetuo dinamismo y
siempre en proceso (no como algo ya dado o terminado). Al igual que
un palimpsesto, la iconografía guadalupana puedes ser considerada un
lienzo donde se intentó borrar el pasado indígena asimilándolo en la
figura de la Virgen de Guadalupe; pero con los siglos vuelve la imagen
a emerger tenazmente con las intervenciones artísticas que lo actualizan
y transforman. En un artículo escribí que:

Al igual que los antiguos pergaminos, la imagen, junto con la


creencia de su aparición milagrosa y extraordinaria y la práctica
de su culto ha sido ilustrado en capas superpuestas, con las que
la cubierta católica de la imagen de la Madre de Jesús ha busca-

46
do borrar las líneas del pasado prehispánico, de la cultura de los
aztecas y de sus imaginarios y cosmovisiones, pero a pesar de los
siglos, y de los múltiples trazos, las huellas del pasado se con-
servan de manera tenue y en ciertos momentos, como el actual,
vuelven a salir a superficie para dar lugar a una nueva escritura
de la historia y la identidad. (De la Torre, 2018).

Aunque el mito de la aparición guadalupana surge de la estrategia


colonizadora de mimetización entre el culto de Extremadura y el culto
del Tepeyac; hemos visto que su imagen y lo que simboliza no tiene
un estatus colonial momificado. Sus usos y recreaciones artísticas peri-
féricas o populares descolocan constantemente su fijación colonial de
unidad iconográfica. En el fondo el sentido de ser la madre de Dios y
la madre de los más insignificantes la torna compasiva y abrazadora de
cualquiera que sea su hijo, aunque no goce de aceptación social.
Ello sugiere entenderlo como lo propone Bhabha como un discur-
so de mimetización, que explica de la siguiente manera:

El mimetismo colonial es el deseo de Otro reformado, recono-


cible como sujeto de una diferencia que es casi lo mismo, pero
no exactamente. Lo que equivale a decir que el discurso del
mimetismo se construye alrededor de una ambivalencia; para
ser eficaz, el mimetismo debe producir continuamente su des-
lizamiento, su exceso, su diferencia. La autoridad de ese modo
de discurso colonial que he llamado mimetismo es saboteada
en consecuencia por su indeterminación: el mimetismo emerge
como la representación de una diferencia que es en sí misma
un proceso de renegación. El mimetismo es entonces, el signo
de una doble articulación; una compleja estrategia de reforma,
regulación y disciplina, que “se apropia” del Otro cuando éste
visibiliza el poder. El mimetismo, no obstante, es también el
signo de lo inapropiado, una diferencia u obstinación que cohe-
siona la función estratégica dominante del poder colonial, in-
tensifica la vigilancia, y proyecta una amenaza inmanente tanto
sobre el saber “normalizado” como sobre los poderes disciplina-
rios”. (Bhabha, 2002, p. 112).

Lo que actualmente nos muestran los ejemplos que aquí coloque
es la intervención artística que alejada de los soportes eclesiales logra

47
la re-simbolización de la imagen colonial-colonizadora de la virgen de
Guadalupe. Su continua trasfiguración busca redefinir nuevos modelos
de ser mexicano (que van desde la Tonantzin indígena hasta el rostro
blanqueado de la virgen provida), introducen nuevos matices de ser
mestizo (como el de los indígenas zapatistas o el de las mujeres chica-
nas), y nuevas maneras de asumir la feminidad (consagrando su sexuali-
dad natural, manifestándose por las libertades sexuales, o movilizándose
en defensa de la vida). La intervención estilística no sólo tiene impactos
estéticos, sino culturales e incluso libertarios al abanderar tanto insur-
gencias y resistencias, al instrumentar la defensa de la fe en las contien-
das políticas partidistas, y al colocarse como símbolo provida en las cru-
zadas contra la despenalización del aborto. Sus distintas intervenciones
están enmarcadas en un frente cultural donde se disputa la legitimidad
de los diferentes, sea desde posiciones hegemónicas y conservadoras
como desde movilizaciones de resistencia y de disidencia revolucionaria
y feminista.
Si en el pasado Guadalupe fue el gran ejemplo del barroco, en el
presente emerge la estrategia del ultrabarroco que transforma sentidos
y colocar nuevas visibilidades de aquel Otro no aceptable ni visible en
el mimetismo colonial iconográfico. La diferencia en la unidad se busca
interviniendo al símbolo, pero manteniendo algunos rasgos básicos re-
conocibles. Por ejemplo, la virgen feminista, zapatista, de las barricadas
son apropiaciones desde los márgenes institucionales. Son reclamos de
patria desde espacios en conflicto con el Estado y con la institución
eclesial católica.
Por un lado, la estética recurre a su ambivalencia de origen deri-
vada de la asimilación colonial católico y del simulacro barroco indíge-
na para poner a la superficie la contradicción histórica negada, como
lo pudimos ver en las disputas en torno a la escultura Sincretismo. La
diferencia es que ahora la intervención artística exhibe la dualidad (To-
nantzin-Guadalupe) que anteriormente había sido incorporada para ser
asimilada y ocultada en un icono instrumento de la colonización y la
evangelización. El ultrabarroco contemporáneo ya no se conforma con
disimular los conflictos, sino que busca sacar a la luz aquellas ambiva-
lencias contradictorias que desde el origen el mimetismo buscó soterrar,

48
borrar y asimilar. Por ejemplo, la obra de arte pone en la superficie las
huellas de la Coatlicue-Tonantzin, una sobre-posición barroca para im-
poner una asimilación de las religiones indígenas soterradas pero tolera-
das bajo la figura mestiza de la Virgen de Guadalupe. La obra artística
devela el drama de un pasado de imposición cultural y religiosa que un
grupo de católicos consideró que ya estaba borrado de la memoria, pero
casi cinco siglos después resurge con el arte, el mismo instrumento que
plasmó imágenes novohispanas que han sido consideradas milagrosas
y que son veneradas como iconos de fe. Por su parte, los movimientos
conservadores católicos, como es el caso de provida, también re-simboli-
zan a la virgen blanqueándola y re-semantizando los elementos paganos
presentes en su iconografía original. La virgen rubia de ojos azules es
parte de una estrategia de “des-mestizar” para recolonizar al símbolo.
En síntesis, el ultrabarroco re-simboliza constantemente la icono-
grafía guadalupana para re-significar su imagen inserta en una guerra de
sentidos que pugnan por la redefinición radical de las diferencias. Las
intervenciones plásticas transforman un símbolo de unidad en un fren-
te cultural donde se expresan y confrontan las diferencias subversivas,
pero también los radicalismos conservadores. Algunas, como son las
que se colocan en la definición étnica, fueron originalmente asimiladas
en una unidad que niega sus rasgos; en otras como es principalmente
la categoría de género y vinculada a ella los modelos de feminidad, ac-
tualiza los roles y aspiraciones de la mujer para colocarlos en el espacio
público donde se dirimen los derechos sexuales y reproductivos. De esta
manera, sus recreaciones colocan nuevas disputas nacionales.

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Entrevista
ÁVILA SALAZAR, Nadia. Entrevista concedida a Renée de la Torre, Guada-
lajara, 25 jun. 2018.

Revisão: Dafne Jazmin Velazco

53
54
DOI: 10.48006/978-65-5973-031-5-4

CIRCULAÇÕES E APARECIMENTOS DA FORMA ALTAR ENTRE ARTE E RELIGIÃO1

Fernanda Arêas Peixoto


Júlia Vilaça Goyatá

Na abertura de sua etnografia inaugural sobre a prática do vodu


haitiano2 na Nova York do fim dos anos 1980, Karen McCarthy
Brown apresenta, em uma espécie de imagem condensada, a descrição
dos altares de Mama Lola, sua principal interlocutora de pesquisa.
Instalados em um dos cômodos de sua casa no bairro do Brooklyn, os
altares da sacerdotisa compunham o cenário daquilo que McCarthy
Brown chamou de um “artesanato de cura”:
[…] tampos de mesas lotados de pequenas chamas cintilantes,
pedras imersas em óleos de banho, um crucifixo, garrafas es-
curas com raízes e ervas mergulhadas em álcool, garrafas novas
e brilhantes de rum, whisky, gim, perfume e xarope de açúcar
de amêndoa. De um lado, havia um altar organizado em três
andares e todo coberto com papel contact preto e dourado.
No último andar, um pacote aberto de Pall Mall sem filtro
repousava perto de uma vela rachada e empoeirada em forma
de crânio. Uma bengala com uma cabeça esculpida para des-
crever um grande e ereto pênis se inclinava contra a parede
ao lado. Do outro lado do quarto, um pequeno gabinete com
o topo cheio com frascos de pós e ervas. No teto e nas pare-
des do quarto, havia cestos, cachos de folhas penduradas para
secar e litografias coloridas de santos esfumaçadas e escuras.
(McCarthy Brown, 2001 [1991], p. 3-4).3

1 Este artigo se beneficiou das leituras e sugestões de Emerson Giumbelli e das discussões com os integrantes do
MARES, aos quais agradecemos. Parte das reflexões aqui projetada se relaciona a um projeto de pesquisa apoiado
pelo CNPq (bolsa de produtividade em pesquisa).
2 O vodu haitiano é uma religião e forma de conhecimento de matriz africana amplamente difundida no Haiti desde
a sua colonização pela França no século XVIII. Sobre o vodu e as práticas religiosas e sociais a ele ligadas existe
uma bibliografia extensa, que vai desde os trabalhos inaugurais de Jean Price-Mars (2011 [1928]), Milo Rigaud
(2015 [1953]) e Alfred Métraux (1958), até leituras contemporâneas como as de McCarthy Brown (2001), Karen
Richman (2005) e Claudine e Bellegarde-Smith (2006). No Brasil, destacam-se os trabalhos reunidos na coletânea
organizada por Neiburg (2019), que abordam direta ou indiretamente o tema.
3 Destacamos que esta e todas as outras traduções presentes no texto são de nossa autoria.

55
Além da descrição de uma composição heteróclita, a antropó-
loga diz ser este um “altar vivo”, que se transforma com a passagem
do tempo, ganhando sistematicamente novos objetos, inclusive os
presentes que ela mesma dera a Mama Lola; objetos que, ao serem
incluídos na composição, ampliam e reorganizam o conjunto, crian-
do novas relações entre eles. O que nos leva a pensar que os altares
colocam lado a lado elementos de procedências variadas que se ligam
em função daqueles que os preparam (Mama Lola, no caso), mas que,
em função das relações que estabelecem entre si, produzem efeitos uns
sobre os outros e sobre o mundo ao redor.
Sentidos e intenções precisas envolvem a montagem dos altares
nas mais diversas religiões, ao longo da história. Lugar de sacrifício,
de celebração de ritos e de comunicação com as divindades em geral,
em torno dos altares proliferam-se práticas e atitudes, de indivíduos
e coletividades, nos templos, interiores das casas e espaços exteriores,
os mais diversos. Diferenças à parte, os altares circunscrevem loci es-
pecíficos, lugares que se destacam por certa topografia,4 pelo feitio
compósito que tendem a assumir e pelas sucessivas relações que mobi-
lizam: entre humanos, coisas e divindades. Se eles podem ser mais ou
menos exuberantes, se destinar à admiração pública (como nos altares
católicos), ou permanecer protegidos das miradas não iniciadas (como
no caso dos altares e assentamentos das religiões de matriz africana),
há sempre engenho criador envolvido na forma altar. Dessa maneira,
os altares parecem interessantes para pensarmos as imbricações entre
arte e religião, criação e devoção, pois eles mobilizam técnicas rituais,
além de (sobretudo em alguns casos) proporcionarem fruição e prazer
estético, funcionando ainda como elemento decorativo e afetivo no
interior das casas, parte do rol de relíquias e devoções familiares.5
Ainda que haja muitos tipos e estilos de altar, ligados a práti-
cas devocionais específicas, a imagem trazida por McCarthy Brown
é sugestiva para introduzir a reflexão que pretendemos realizar nes-
te artigo sobre a forma altar e suas circulações, já que ela indica a
indissociabilidade dos aspectos propriamente religiosos envolvidos na
4 Em latim, altare deriva de altus, que significa elevação, ligando-se também aos sentidos de “enraizamento”, “pro-
fundidade” e à “intensidade” dos sentimentos.
5 Sobre as relações entre família e religião, ver Duarte (2006). Para uma reflexão sobre os pontos de contato entre o
sagrado familiar e o público por meio da ideia de patrimônio, ver Oliveira (2017).

56
produção e manutenção de um altar, assim como as artes mobilizadas
em sua criação e recriação constantes. Ao lado disso, a breve descri-
ção feita pela antropóloga, em consonância com a bibliografia sobre
o assunto, assinala que as dádivas são parte da vida dessas composi-
ções: presentes e oferendas feitas aos espíritos, santos e aos criadores
dos altares (como Mama Lola) se acumulam e convivem, no caso de
certos altares, com utensílios pessoais e fotografias de família. E ao
engendrarem dons, enredando coisas, pessoas e divindades, os altares,
como os de Mama Lola, ganham vida e se transformam, carregando
histórias, produzindo novas configurações e novos enredos.6
Se esse breve preâmbulo deixa claro que nossas interlocuções pri-
meiras são retiradas da antropologia, o exercício analítico proposto
toma as artes como fontes de sugestões. Em função dos caminhos de
nossas pesquisas e de predileções pessoais, escolhemos exemplos que
nos inspiram a pensar as apropriações da forma altar, assim como
seus reaparecimentos em distintos lugares. Eles foram retirados das
obras do brasileiro Farnese de Andrade (1926-1996) e daquelas do
haitiano Frantz Jacques, mais conhecido como Guyodo (1973-). Sem
pretender dar conta das produções desses artistas, separados no tempo
e no espaço, trata-se de colocar lado a lado algumas de suas criações,
interpelando-as à luz do universo religioso em geral, e dos altares em
particular, testando seus usos e efeitos (estéticos, sociais e políticos) e
lançando questões para a reflexão que fazemos em antropologia.
Não se trata de análise estética de timbre formal nem de exame
sociológico (que nos levaria às condições sociais das produções das
obras), tampouco de empreender comparações sistemáticas entre os
artistas. Munidas de olhar atento e aproximado que a bússola etno-
gráfica ensina a exercitar, e de literatura voltada às relações entre artes,
materialidades e religião, o desafio é associar criações e criadores em
função do modo como aludem (mais ou menos diretamente) à forma
altar. Trata-se de pensar os trânsitos engendrados por formas e reper-
tórios retirados das práticas religiosas cotidianas, atentas às alterações
de sentidos que têm lugar ao longo de certos percursos, como os de-
6 A forma altar, lembra Ewelter Rocha em sua análise dos altares do Horto na região do Cariri cearense, compreende
uma iconografia que, longe de ser aleatória, fala de “reciprocidades afetivas em que objetos (velas, flores, toalhas,
cortinas etc.), imagens religiosas, retratos de família e os moradores compõem uma única rede de interação” (Ro-
cha, 2012, p. 43).

57
finidos pelos objetos-altares de Farnese e pela chamada “escultura de
recuperação” de Guyodo7.
Nossa motivação de fundo ancora-se na aposta de que as expres-
sões artísticas são formas de conhecimento do mundo; formas vigoro-
sas, acreditamos, para o exame de questões caras à antropologia, que
nos auxiliam a alargar a imaginação e a deslocar perspectivas. Em outras
palavras, pensar problemas que nos dizem respeito com a ajuda de ar-
tistas que, se não dialogam expressa e deliberadamente com conceitos,
teorias e procedimentos da antropologia – o que se observa em certa
produção contemporânea a partir dos anos 19908 –, se oferecem (por
que não?) ao escrutínio antropológico.

Os oratórios de Farnese e o sagrado cotidiano


Se os “objetos” produzidos obsessivamente por Farnese de Andra-
de a partir dos anos 1960 são muito diversos, eles deixam à mostra al-
9

gumas recorrências. Trata-se de modo geral de composições de elemen-


tos retirados de certo imaginário religioso – oratórios, ex-votos, santos
– que ele associa a objetos cotidianos de uso utilitário ou decorativo:
ferramentas de trabalho (tornos, lançadeiras, instrumentos de costura);
pedaços de móveis e florões de madeira; esqueletos de animais; vegeta-
ções calcificadas; fotografias; cartões postais etc. - coisas arrematadas em
bricabraques, ou garimpadas nas praias do Rio de Janeiro e de Barcelo-
7 Nessa direção, remetemos o leitor a dois outros artigos que integram este livro: “La virgen de los mil y un rostros:
del mimetismo colonizador al ultrabarroco guadalupano”, de Renée de la Torre, sobre os trânsitos e usos religiosos,
estéticos e políticos da imagem da Virgem de Guadalupe no México, e “Sentidos de transformação na street art:
religião, arte e política nos Anjos de Wark da Rocinha”, de autoria de Christina Vital da Cunha e Paola Lins de
Oliveira, sobre a “estética da transformação” nos trabalhos do artista carioca. O texto de De la Torre descreve um
movimento de circulação de símbolos e imagens que vemos no trabalho de Farnese de Andrade; Farnese que se
vale de objetos e símbolos católicos, transformando-os e redefinindo-os, em suas obras. O artigo de Vital da Cunha
e Oliveira, por sua vez, faz ecoar a arte “periférica” de Guyodo, que, embora não seja declaradamente religiosa,
dialoga com motivos sagrados, tal como faz o trabalho de Wark.
8 As afinidades e colaborações empreendidas entre a antropologia e a produção artística contemporânea são exami-
nadas por Roger Sansi (2015) em função do modo como certos conceitos – fundamentalmente a noção maussiana
de dádiva, retomada por Alfred Gell e Marilyn Strathern – transitam entre os domínios.
9 Nascido em Araguari, Minas Gerais, Farnese de Andrade teve uma formação primeira com Alberto da Veiga Guig-
nard na Escola do Parque em Belo Horizonte – pela qual passaram também artistas de renome como Amílcar de
Castro, Franz Weissmann e Mary Vieira – antes de se mudar para o Rio nos anos 1950. Na capital carioca, marcada
pelas expressões do neoconcretismo e por engajamentos artísticos de diversos tipos durante os anos 1950 e 1960,
Farnese se manteve algo à margem, mostram os críticos, desenvolvendo um trajeto muito pessoal e produzindo
obras de difícil classificação. Sua produção é variada do ponto de vista técnico e temático: pintou, fez gravuras
e ilustrações, também desenhos e esculturas. “Objetos” é como ele define as realizações que tomamos aqui como
material de análise, que começam a ser ensaiadas nos anos 1960 e ganham força a partir de 1970. Sobre o artista,
ver, entre outros, os textos reunidos em Andrade (2002, 2005) e Morais (1992).

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na (onde viveu nos anos 1970), em depósitos de demolição e cemitérios
de navios.
Em função desse procedimento, ao artista é associada a ideia de
“arqueologia existencial” (título de uma exposição a ele dedicada em
2014), e seus objetos frequentemente relacionados aos objets trouvés
surrealistas.10 De fato, o interesse de Farnese pelos resíduos de tempos
e experiências pretéritas faz ecoar as escavações arqueológicas, embora
as motivações do artista não se confundam com a reconstrução fiel de
espaços e mundos passados; trata-se, antes, de criações do tipo brico-
lagem, sem projeto prévio como ele declara em diversas ocasiões, que
reinscrevem cacos e restos em novos conjuntos, que evocam memórias
familiares em função de alguns conteúdos (as fotografias tiradas por um
tio fotógrafo, por exemplo) e de procedimentos: a contração de tem-
poralidades no tempo presente da feitura da peça. Memória sutilmente
citada também no movimento do mar e das marés – que Farnese acom-
panha e dos quais se beneficia – que traga coisas, devolvendo-as à su-
perfície, em expulsões periódicas e relativamente casuais. Relativamente
casuais, é bom frisar, porque há uma série de fatores que incidem sobre
a reaparição à primeira vista “natural” das coisas com as quais Farnese
topa em suas andanças, guiado por desejos precisos, o que aproxima
os seus objetos dos objets trouvés surrealistas e daqueles “encontrados”
pelos devotos do candomblé, todos eles carregados de potências ativas
que incidem sobre os encontros (Goldman, 2009; Sansi, 2009). Mas
os objetos de Farnese são também criações mnemônicas, pois contêm a
história pessoal do artista e a história das coisas, disparando evocações
diversas naqueles que as contemplam.
Tomemos à título de exemplo alguns “objetos oratórios”, dentre
os vários por ele produzidos: Oratório do demônio (1976), Oratório de
mulher (1980-2) e Oratório do índio (1982-5). No primeiro, vemos um
boneco em plástico (um anjo?) sentado num torno-parafuso de madeira
que atravessa o ânus da figura, sob fundo decorado por relevo floral em
madeira (imagem 1).
10 Durante as peregrinações dos surrealistas por mercados, feiras de antiguidades ou quinquilharias, alguns objetos
são “encontrados”, em função de sua beleza, estranheza ou singularidade. Mas tais encontros, para eles, nunca
são completamente casuais, mas ditados pelas leis do inconsciente e pelas designações da libido, que comandam
reuniões de pessoas e coisas. Estamos assim diante de descobertas aparentemente fortuitas, mas que obedecem a
certos princípios de determinação; por isso mesmo, André Breton refere-se a elas como “acasos objetivos”. Sobre
os objetos surrealistas, ver Guigon et Sebagg (2013).

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Imagem 1 – Oratório do Demônio (1976)

Reprodução fotográfica de autoria desconhecida.


Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras (2020a).

No segundo, o oratório converte-se em corpo que sustenta a cabe-


ça a ele acoplada e expõe gamelas superpostas em tons róseos-averme-
lhados com bola de vidro ao centro, que definem os contornos de uma
vulva, que é também boca, lábios e olhos. O terceiro oratório – aberto
como os demais –, contém a parte inferior de um corpo (pernas e sexo
masculino) que toma praticamente todo o interior da peça e a imagem
fotográfica de um índio, também nu, paramentado com pinturas e ade-
reços, colada a uma das portas (imagem 2). Nos três casos, nota-se a
associação de elementos diferentes em um mesmo tipo de receptáculo,
o que nos dirige às relações entre religiosidade e sexualidade, presente
em seus trabalhos em geral e nesses em particular. Sexo e erotismo e,
antes de mais nada, corpo “coisificado”, aos pedaços, mutilado. O ora-
tório do índio especificamente perturba as hierarquias que presidem à
construção dos oratórios, nos quais o santo de devoção tende a ocupar
posição central ou lugar superior. No caso do oratório criado por Farne-
se somos alertados para a imagem do índio, diminuta e lateral, somente

60
pelo título da obra: é dele (e para ele) o oratório, embora o corpo central
da peça focalize o sexo do “anjo”. Além disso, o índio a quem se presta
homenagem está presente por meio de uma fotografia, como acontece
com os entes queridos e os mortos, e não por meio de peça esculpida,
como figuram em geral os santos nos oratórios.11

Imagem 2 – Oratório do Índio (1982-5)

Reprodução fotográfica Rômulo Fialdini.


Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras (2020b).

O modo como Farnese se apropria de diversos tipos de oratórios –


associando-os ao sexo e às mutilações do corpo – evoca as interdições e
opressões religiosas, sobretudo aquelas experimentadas na vida familiar.
Sim, porque seus objetos nos fazem pensar imediatamente nas devoções
privadas, nos altares e espaços de reza, cuidadosamente montados no in-
terior das casas; também nos santos e objetos sagrados, partícipes ativos
da vida cotidiana e estreitamente associados a uma série de objetos que

11 A foto é também um artefato adicional da composição – “aprisionada”, “fossilizada” no objeto, nos termos de
Helouise Costa (2000) – congelada pelos revestimentos e cápsulas de resina de poliéster aos quais Farnese frequen-
temente recorre em outros objetos, em um esforço de fixação da imagem e do tempo. As imagens fotográficas se
sucedem em diversos oratórios, convivendo com ex-votos e partes de bonecos.

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compõem o “sacrário familiar”: fotos, álbuns e coleções.12 Coleções de
coisas que os oratórios são e que eles igualmente contém, indica expres-
samente a obra Minas 4 (1978), que dispõe cuidadosamente na gaveta
localizada na parte inferior do oratório um conjunto de itens colecio-
nados: cascalhos, inseto morto, pedaços de bonecos, colar. Esse objeto
em particular alude ainda à duplicidade dos oratórios, ora destinados à
exibição e às práticas mais coletivas, ora comprometidos com o segredo
e com a intimidade dos espaços recônditos, reservados a poucos.13
Os objetos-oratórios de Farnese propõem, assim, uma reflexão so-
bre o ainda pouco explorado cotidiano religioso doméstico, lançando
interrogações importantes sobre eles, especialmente sobre a forma al-
tar, para a qual Ewelter Rocha (2012) já nos advertira. Se os oratórios,
como sabemos, não são altares, mas um de seus componentes, termi-
nam a eles associados: seja citando-os no feitio compósito, seja fazendo
as vezes deles em celebrações e atos devocionais, seja se expandindo
em arranjos mais amplos que engendram altares. Afinal, no momen-
to mesmo em que se instalam no espaço doméstico, os oratórios são
imediatamente rodeados por “quadros, corpos d’água, jarro de flores,
pedras e livros de orações”; isso sem esquecer as “lembrancinhas”, velas
e essências, os paninhos e toalhinhas bordadas (Santos, 2014, p. 27).
O caso de Italva Figueiredo, em Feira de Santana, Bahia, descrito
por Viviane Santos, é exemplar dessa convivência entre santidades dife-
rentes e diversos elementos dentro, e em torno, do oratório:

Na parte interna central do oratório uma imagem do Senhor


do Bonfim. À sua frente, do lado direito, duas imagens de San-
to Antônio, em tamanhos diferentes. Do lado esquerdo, uma
imagem de Nossa Senhora da Conceição e, à sua frente, uma
imagem de São Cosme e Damião que está sobre um livreto de
nome: Nova Doutrina da Cartilha Cristã […]. À frente des-
te livreto, uma pequena caixa com medalhas com imagens de

12 Luiz Fernando D. Duarte (2006, p. 24) amplia a discussão das materialidades tocadas pelo sagrado no seio da famí-
lia, incluindo neles uma série de objetos que expressam e carregam o “mana familiar”, como livros, joias e bibelôs,
e mesmo bens imóveis, a depender da classe social; todos eles, e cada qual à sua maneira, alimentam o sagrado da
(e para) a família, fundamental para a sua sustentação.
13 Lembremos que na história do cotidiano religioso das Minas Gerais, ao qual as obras de Farnese tanto se reportam,
convivem três categorias de “templos domésticos”: os oratórios, as ermidas e as capelas, os primeiros tendendo a
beneficiar um número mais restrito de fiéis, principalmente aqueles ligados por laços de parentesco e afetos (Ma-
chado, 2019, p. 277).

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santos, flores secas, crucifixos, um boneco que representa um
bebê. Ao lado, uma imagem do Menino Jesus deitado sobre um
saquinho de incenso. Ainda neste mesmo plano, dois pequenos
objetos que simulam igrejinhas góticas e na sua parte central
imagens em papel de Nossa Senhora Aparecida e Nossa Senho-
ra das Candeias. […] Anexadas às “paredes” do oratório dos
dois lados estão pequenas imagens com santos diversos. Foram
encontrados também orações escritas à mão, pedaços de ramos
utilizados na missa de Ramos, recortes de jornal relacionados à
devoção popular da beata Maria Milza Santos Fonseca – Mãezi-
nha, santinhos de falecimento de parentes e livretos de oração.
Sobre a mesa encontramos pedras de rio, jarros de barro, copos
com água, jarras com flores artificiais, um rosário para velas e
uma imagem de Iemanjá. (Santos, 2014, p. 99-100).

Os oratórios de Farnese recriam esses arranjos, que tomam feitios


distintos a depender das casas e dos responsáveis por eles, mas que apre-
sentam estruturas relativamente recorrentes. Formas heterogêneas por
excelência, que crescem e se modificam, essas criações domésticas subver-
tem sistematicamente as fronteiras entre religiões e devoções, e entre estas
e a vida cotidiana. O artista reencena esse universo de coisas em oratórios
que reúnem objetos religiosos de diversos tipos: imagens barrocas, santos
de vestir, ex-votos e também divindades das religiões de matriz africana
que se associam a objetos de uso corriqueiro, como gamelas, fotos de fa-
mília, chaves de ferro, ferramentas de trabalho, bonecas, bibelôs etc. (por
exemplo, o oratório Oxóssi, de 1981, cujo fundo vermelho exibe a cabeça
de um cavalo de brinquedo e um machado de madeira).
Estamos diante de montagens de elementos sacros de procedências
distintas e de utensílios diversos, que convivem no interior de séries
semânticas ampliadas. Mas estes, longe de se fundirem ou se confun-
direm, estabelecem entre si relações de continuidade e de transforma-
ção: oratórios (que são caixas e armários); gamelas (que são oratórios);
oratórios que contêm corpos (pedaços) e que são corpos. Processos de
conversão e reconversão das coisas, que as deslocam e libertam de sua
condição primeira; procedimento, aliás, experimentado pelos surrea-
listas em seus objetos e exposições.14 No caso de Farnese, os oratórios
14 Para uma análise das exposições surrealistas como montagens alimentadas pela transformação e conversão das
coisas, ver Peixoto (2016).

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indicam um modo de existência das coisas marcado por agenciamentos
e metamorfoses diversos, além de processos sucessivos de sacralização
(de objetos de uso doméstico) e de dessacralização de símbolos religio-
sos. A contenção de elementos díspares nos limites de caixas, redomas,
armários e oratórios, por sua vez, sublinha os segredos e interdições que
rondam as relíquias sagradas, mas que o artista deliberadamente escan-
cara, exibindo seus interiores.
Com esses trabalhos, Farnese nos convida a refletir sobre o sagra-
do cotidiano, enraizado na vida comezinha e intimamente enlaçado às
demais atividades domésticas, que envolvem práticas de cuidado (dos
vivos e mortos, humanos e divindades, lugares e materialidades), cria-
ção, produção e reprodução da vida. Suas peças expressam, de forma
concentrada e eloquente, o mundo da casa que se apresenta nelas como
amplo e complexo espaço de convivência de seres e coisas díspares, ani-
mado por histórias e experiências. Com a ajuda desses oratórios, po-
demos ver apetrechos variados recebidos em nichos devocionais e, de
modo concomitante, imagens, santos e objetos sagrados deixando os
seus espaços exclusivos e espalhando-se pelos espaços da casa, onde coe-
xistem com outros objetos, sobretudo (mas não apenas) nos interiores
“populares”, e não somente no Brasil.15
A imagem abaixo, da sala de uma casa em Houilles, na região da
Ilha da França, é expressiva do modo como elementos retirados de uni-
versos distintos (religiosos, objetos de trabalho, fotografias, bibelôs etc.)
convivem em um mesmo espaço (imagem 3).

15 O registro fotográfico das “moradas populares” em diversas regiões brasileiras indica a inseparabilidade das
imagens religiosas, ou de religiosos, de outros objetos no interior das casas, que convivem em todos os cômodos
e espaços (Costa, 2009).

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Imagem 3 – Sala de casa em Houilles, França

Autora: Fernanda A. Peixoto, jan. 2017.

A pesquisa de Carlos Eduardo Machado realizada no interior de


São Paulo (2012) é exemplar nessa mesma direção. Ele mostra como,
penduradas na parede, apoiadas sobre cômodas, estantes, televisores ou
geladeiras, as peças devocionais dividem o espaço doméstico com fo-
tografias de família e de amigos, com objetos decorativos e utilitários,
nos levando a pensar a casa como espaço de exposição de objetos –
parte deles religiosos –, destinados também à fruição estética.16 Nos
arranjos domésticos inventariados pelo autor, as bonecas são frequentes,
decorando mesas e camas e convivendo com os santos, como acontece
também nos presépios.17 O mesmo ocorre nos oratórios de Farnese, só
que nestes o elemento decorativo é perturbado pelo desconforto que os
bonecos decepados e com os olhos vidrados provocam, ao aludirem à
destruição e à morte.
Mas voltamos a insistir, com a ajuda da bibliografia – como Rocha
(2012) e Sansi (2018) –, que os oratórios-altares não apenas valorizam
16 Em seu livro Gênero e artefato, Vânia C. Carvalho (2007) indica ser a casa também um espaço de exibição de
objetos, mas sem que se detenha especialmente nos objetos religiosos.
17 Os presépios são presenças recorrentes no interior das casas nos meses de dezembro e janeiro, como indica a imagem
3. Se eles são construções que mobilizam figuras e materiais para representarem uma cena específica (o estábulo em
Belém e os episódios que se seguiram ao nascimento de Jesus), nos levam também a pensar em uma forma de arranjo,
ordenada e caprichada, que integra à narrativa religiosa elementos da vida familiar e cotidiana. Nesse sentido, Lourdi-
nha, uma amiga de São Félix, Bahia, referiu-se à casa de sua vizinha como “um verdadeiro presépio”.

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a morada, oferecendo-se ao olhar, ao prazer e à imaginação de quem
os vê, mas agem sobre a família: os santos protegem, curam, fortale-
cem certos laços, afastam outros, lembram passados, projetam futuros.
Mobilizam relações de reciprocidade, envolvem atitudes de respeito, de
cuidado e afetos diversos. Além de limpas, as imagens são acariciadas,
beijadas, às vezes carregadas; seus lugares cuidadosamente escolhidos e,
frequentemente, alterados. Como disse Rosinha, no contexto de uma
pesquisa etnográfica realizada em 2018, a reforma de sua casa em Água
de Meninos, em São Félix, Bahia (que ganhou mais um andar, porce-
lanato branco, cozinha americana e sofás de couro), deslocou o altar
dedicado a São Roque para um nicho sob a escada, e o lugar antes re-
servado a ele, no centro da sala, passou a ser ocupado por uma televisão
de grandes dimensões. Mas trata-se de local provisório, ela insiste, já
que o altar está agora “de costas para a entrada principal da casa”, o que
constitui um problema a ser resolvido.
A eficácia e o poder persuasivo da “forma-altar” nos endereçam
à convivência de dois sentidos implicados na ideia de representação,
aquele mais próximo da vocação mimética, e outro que convoca a “pre-
sentificação” do ser divino, duplo sentido da noção para o qual Vernant
(2008) e Ginzburg (2001) há muito chamam nossa atenção.18 Objetos
de fervor e culto religioso como os presentes nos altares domésticos
não apenas representam por semelhança a divindade; eles são insepa-
ráveis da prática ritual. Estamos aí fundamentalmente na presença de
um sagrado transmitido pela posse e pelas relações pessoais, de troca e
reciprocidade, com a divindade. Em suma, como conjuntos potentes e
agentes, os altares mobilizam práticas, nos fazendo pensar a casa como
espaço relacional de devoção, criação, exibição e fruição.
Ao migrarem dos espaços e rotinas domésticas para o interior de
galerias e museus, os objetos-oratórios de Farnese carregam consigo a
18 Carlo Ginzburg localiza o duplo sentido da noção de “representação” no verbete dedicado ao termo no Dictionnaire
Universel de Furetière, na edição de 1690: um sentido que apelaria à substituição da coisa “representada” por um
sucedâneo (que “presentifica” a coisa ou o objeto ausente) e outro que se refere à representação por semelhança. Os
ensaios de Vernant sobre o estatuto social e mental da imagem na Grécia, por sua vez, enfrentam o duplo sentido da
noção em função do desenho de um percurso histórico (da “presentificação do invisível à imitação da aparência”),
que tem seu ponto de inflexão com o advento das cidades e o concomitante surgimento dos cultos e templos públi-
cos. Mas, ele adverte, não se trata de pensar na substituição de uma forma de representação pelo outra, como se eles
fossem mutuamente excludentes. Um dos desafios que se coloca para os intérpretes em geral e para o antropólogos
em particular, acreditamos, é examinar a convivência das diferentes formas de representação, a imagem adquirindo
autonomia, sem perder, em diversos casos, sua ligação com o ritual e com o compromisso de “presentificar” e fazer
atuar forças invisíveis.

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dupla inscrição que essas coisas possuem: o seu caráter primeiro de ob-
jetos devocionais e rituais – que as obras manifestam e fazem lembrar
– e o caráter de fruição estética, que parece se acentuar quando eles se
postam em espaços destinados às exposições artísticas. Mas a convivên-
cia dessas duas faces de seus objetos é no mínimo tensa, e o mal-estar
que eles produzem também tem a ver com isso: eles fazem recordar os
mortos, a finitude humana, as relações íntimas e cotidianas com o sa-
grado – no seu caso, mais cercadas de violência e dor do que ligadas a
qualquer sentimento de comunhão. Os corpos decepados, santos e ima-
gens encerradas em caixas-gamelas-oratórios não apelam a sentimentos
de reconciliação ou conjunção, caros aos rituais; impossível aliviar as
perdas, as chagas e sofrimentos que eles expõem sistematicamente, e
com os quais o observador é confrontado, por meio de construções
que não apenas representam simbolicamente, mas que guardam traços
e sinais de histórias e experiências.19

O jardim de Guyodo e os altares vodu


De modo menos explícito que os objetos-oratórios de Farnese
de Andrade, que fazem alusão direta a um tipo de objeto religioso (os
oratórios, espécies de altares em miniatura), as esculturas de Guyodo
permitem, à sua maneira, um reencontro com a forma altar.20 Em fun-
ção de seu caráter heteróclito e híbrido, mas também dos objetos que
articulam, as peças e o processo criativo do artista podem ser apro-
ximados dos procedimentos que envolvem a feitura dos altares vodu
que, como mostra a descrição de Karen McCarthy Brown com a qual
abrimos o texto, são composições amplamente conhecidas e praticadas
quotidianamente no Haiti. Parte do grupo de artistas reunidos no Atis
Rezistans (Artistas em resistência), o trabalho de Guyodo, assim como
19 Remetemos o leitor à análise de Sansi sobre os altares católicos e assentamentos de candomblé, suas diferenças e
proximidades, no qual ele propõe, à luz das sugestões de Alfred Gell, que “imagens assim como altares são índices
[…] já que são também o traço ou a incorporação de uma história particular de trocas entre os devotos e os santos”.
Aprofundando a inspiração retirada de Gell adiante – sobretudo de sua noção de “pessoa distribuída” –, o autor
acrescenta que o santo é pessoa (e não mero objeto) da relação de troca (2018 [1998], p. 19).
20 Guyodo nasceu em 1973 em Porto Príncipe, no Haiti, onde ainda vive e trabalha. Ele conta que realiza trabalhos
artísticos – especialmente o desenho e a pintura – desde criança, e que antes de ingressar na carreira artística era
um jogador de futebol dedicado. Foi a partir do ingresso no grupo de artistas Atis Rezistans, a convite de Céleur
Jean Hérard (1966-), que seus trabalhos passaram a encontrar um público ampliado e a circular internacionalmente.
Guyodo diz ter produzido até 2015 mais de 3 mil esculturas, além de conduzir desde 2006 um ateliê escola, Timou-
nklere, na região onde mora (apud Cuzin; Pérodin-Jérôme, 2015, p. 126).

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os de outros membros do coletivo, se caracteriza por forte adesão à
região onde são realizados – local onde também cresceram e vivem – e
aos materiais com os quais são feitos: lixo, escombros, restos em geral.
O encontro com o lugar onde esses artistas moram, criam e ven-
dem seus trabalhos pode impressionar os forasteiros. Situadas nas ime-
diações da avenida Jean-Jacques-Dessalines (comumente chamada de
Grand Rue), zona de intenso comércio no coração de Porto Príncipe, as
casas-ateliês dos Atis Rezistans em nada se assemelham às lojas e galerias
de arte localizadas em Pétion Ville, região nobre da capital. Na entrada
das comunidades de Ghetto Leanne e Lakou Cheri, uma grande placa
suspensa em ferro e uma enorme escultura de Legba, divindade vodu
das passagens e encruzilhadas, recebem os visitantes e lembram que
aquela não é uma área qualquer: trata-se de um território marcado pela
pobreza, como é comumente conhecido, mas também por imponentes
criações artísticas (imagem 4). Ao passarmos pelas estreitas ruas que
compõem a região, nos deparamos com uma infinidade de esculturas
em processo de feitura e com materiais variados: de carcaças de carros
a vigas de ferro, pneus, tonéis e objetos cotidianos (panelas, bonecas,
sapatos, garrafas de bebida e caixas).21

21 Localizado em uma zona de ferros-velhos da cidade, que tradicionalmente abrigou mecânicos, ferreiros e artesãos
da madeira, o movimento dos Atis Rezistans foi inicialmente inspirado por oficinas de reciclagem realizadas com os
moradores da área no final dos anos 1980, e acabou se tornando uma das faces do que é hoje a cena da arte contem-
porânea no Haiti. Além de nos últimos anos terem seus trabalhos expostos em mostras internacionais, os também
chamados de artistas da Grand Rue tiveram uma importante atuação política e comunitária: são responsáveis pelo
projeto Timoun Rezistans (Crianças em resistência), que reúne crianças em seus ateliês ensinando-as o ofício da
escultura; criaram ainda, em parceria com a curadora inglesa Leah Gordon (1959-), a Ghetto Biennale, um festival
de artes a céu aberto que desde 2009 recebe artistas do mundo todo convidados a produzir em diálogo com o espaço
do “gueto”. Para mais detalhes sobre os artistas da Grand Rue e sobre as edições da Ghetto Biennalle, tocadas es-
pecialmente por Gordon e André Eugène (1959-), ver suas páginas oficiais: http://www.atis-rezistans.com/; http://
ghettobiennale.org/. Mireille Pérodin-Jérôme (2015) e Carlo Célius (2015b) abordam com mais detalhes a cena da
arte contemporânea no Haiti a partir dos anos 1970 e o surgimento dos Atis Rezistans.

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Imagem 4 – Placa dos Atis Rezistans nas
imediações da Grand Rue em Porto Príncipe

Autora: Júlia Goyatá, 2016.

Em entrevista de 2008, Guyodo refere-se ao lugar “como se fosse um


jardim de artistas”; aí, em local marcado tanto pelo “malè” (infortúnio, in-
felicidade) quanto pela “bonè” (sorte, felicidade), continua, eles realizam
“criações mágicas”.22 Em vídeo realizado alguns anos depois para a exposi-
ção Haiti: deux siècles de création artistique (2014-2015), salienta que suas
criações, especialmente as esculturas, não são necessariamente voltadas para
o tema do vodu, pelo qual boa parte da arte haitiana ficou conhecida no
exterior, mas que o seu compromisso é “fazer reviver” coisas descartadas ou
deixadas para trás.23 Em outro relato, publicado no catálogo da mesma ex-
posição, faz a seguinte declaração: “Nunca sei de antemão o que vou fazer.
Quanto mais procuro mais acho, vou montando e vou avançando. Basta
uma pessoa ou um objeto que me intrigue para me inspirar” (apud Cuzin
& Pérodin-Jérôme, 2015, p. 126). E termina afirmando que, ao contrário
dos outros parceiros da Grand Rue, que usam sobretudo o metal e a madeira
como matérias-primas, ele se vale de todo tipo de materiais: plástico, metal,
madeira, borracha, tecido, vidro e paetês.
22 A entrevista faz parte do filme The sculptors of Grand Rue, de Leah Gordon (2008). O trecho citado encontra-se
situado aos 11 minutos e 32 segundos do filme, disponível no endereço: https://vimeo.com/51848464. Acesso em:
11 ago. 2020. Usamos aqui, e ao longo de todo o texto, a grafia atualizada do crioulo haitiano, tornado língua oficial
do Haiti ao lado do francês apenas em 1979.
23 Vídeo disponível no endereço: https://www.youtube.com/watch?v=G6Qe9DhgMVU. Acesso em: 11 ago. 2020.

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Embora diga explicitamente que seu trabalho não faz parte do que
se convencionou chamar “arte vodu”,24 é possível aproximar os méto-
dos de criação de Guyodo daqueles presentes na feitura dos altares que
colocam em relação pessoas e espíritos, procedimento marcante na vida
cotidiana haitiana. Tanto os materiais quanto os procedimentos que o
artista utiliza para compor suas grandes esculturas antropomórficas, a
exemplo da imagem 5, remetem às dimensões compósitas e transitivas
dos altares vodu. Mais do que isso: a compreensão de Guyodo de seu
próprio trabalho parece articular um vocabulário e uma maneira de es-
tar no mundo que evocam o conhecimento vodu, não exclusivamente
religioso, mas referido a saberes cotidianos, que falam, entre outros, das
relações íntimas entre vida e morte.
O vodu, ressaltava Alfred Métraux em seu estudo inaugural so-
bre o tema (1958), é uma religião e um sistema de conhecimento em
constante transformação no Haiti. A relação entre as pessoas e os lwa
ou mistè, divindades e espíritos vodu, são tanto articuladas por um per-
tencimento religioso, realizado coletivamente por meio de uma série de
rituais, quanto herdadas por laços familiares específicos, fazendo parte,
como chama a atenção Flávia Dalmaso (2018, p. 103), das eritaj (he-
ranças) de grupos consanguíneos, conformando relações de parentesco,
afetos e trocas. Além disso, o vodu se associa ao que se convencionou
chamar de “cultura haitiana”, sobretudo em função da construção de
narrativas politicamente interessadas a seu respeito e que o tornaram,
para o bem e para o mal, uma metonímia do Haiti (Hurbon, 1988;
Ramsey, 2005). Não por acaso, o próprio Guyodo destaca o fato de o
vodu fazer parte de sua “cultura”, embora não seja a sua “religião” (apud
Cuzin & Pérodin-Jérôme, 2015, p. 126).

24 Arte vodu é o nome pelo qual ficou conhecido, desde pelo menos os anos 1940, um conjunto de trabalhos produ-
zidos por adeptos da prática religiosa, muitos deles houngans e mambos – sacerdotes vodu –, bem como um tipo de
arte inspirada em contextos rituais e devocionais, mas não necessariamente religiosa. Carlo Célius chama a atenção
para essa confusão, que criou uma tendência de identificação da arte haitiana ao vodu, quando nem sempre as
práticas artísticas têm uma inspiração religiosa. Em suas palavras: “No curso dessa renovação [da arte haitiana], de
uma redefinição da comunidade nacional, se encontra o vodu, por muito tempo desprezado, recusado, ameaçado e
mesmo combatido. A haitianidade artística é então medida por este polo identificador; a arte haitiana se torna uma
arte vodu (arte religiosa, mágica, segundo os outros). Daí a confusão entre o domínio da criação própria ao vodu e
aquele da criação que nele se inspira” (2015b, p. 113). A importância do vodu na construção de uma narrativa sobre
a produção artística haitiana, especialmente a partir do surgimento da chamada pintura popular ou naïf, foi temati-
zada especialmente por Célius (2007, 2015a) e trabalhada mais recentemente por Goyatá (2019).

70
Imagem 5 – Escultura sem título. Guyodo, 2012

Reprodução fotográfica de autoria desconhecida.


Fonte: Cuzin e Pérodin-Jérôme (2015, p. 79).

A imagem 5 (escultura especialmente criada por Guyodo para uma


exposição ocorrida na França) chama atenção, de saída, pela diversidade
de materiais empregados. Trata-se de uma peça feita com uma coleção
de fragmentos que, não necessariamente relacionados entre si, são pos-
tos em articulação. Na obra em questão, vemos elementos utilizados
na fabricação de estruturas maiores, como máquinas e casas (as rodas
e as estruturas em ferro são constantes em seus trabalhos), e objetos
menores e ordinários, tais como óculos, fitas cassetes quebradas e peda-
ços de panelas. Essas coisas, que antes serviam ao uso ou compunham
os ambientes corriqueiros, passam agora, em sua versão decomposta e
tornada lixo, a constituir e decorar o corpo desse sujeito um tanto fan-
tasmagórico criado por Guyodo.

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Os crânios especificamente são elementos que, presentes nessa e
em outras esculturas do artista, se destacam por sua relação com os al-
tares vodu. Nos arranjos devocionais, eles são instrumentos de contato
com os espíritos, funcionando não apenas como personificações, mas
sobretudo como meios de presentificação e de comunicação com os
mortos. Na escultura de Guyodo, curiosamente, o crânio não ocupa o
lugar da cabeça da figura, mas sim as suas entranhas, ao lado de coisas,
que, também supostamente inertes e/ou inúteis, são trazidas por ele
novamente à vida.
Os espíritos dos mortos, como sabido, são fundamentais para a com-
preensão das articulações entre vida e morte no cotidiano haitiano e na
composição dos altares caseiros; chamados de gèdè e guiados pelo mestre
Bawon Samdi, um dos lwa do panteão vodu, eles fazem parte tanto das
práticas rituais celebradas em hounfò (santuários) quanto daquelas reali-
zadas no âmbito de sociedades secretas e nas casas das famílias. Populares
e muito conhecidos, eles são também reverenciados anualmente em festas
públicas e em cemitérios de todo o país. Cuidar dos espíritos dos mortos,
que podem ser ao mesmo tempo fonte de proteção e de perigo é tarefa
essencial e rotineira para muitos (Hurbon, 1993).
Caveiras, crucifixos, túmulos, bengalas, esculturas fálicas, garrafas
de bebidas alcóolicas e pacotes de cigarro são objetos associados aos
gèdè e frequentemente encontrados nos altares, tal como mostra a ima-
gem 6, um altar caseiro na cidade de Jacmel, ao sul do Haiti. Chapéus,
óculos, lenços roxos, talcos e cadeiras (representando tronos) também
costumam se fazer presentes, especialmente quando o altar é dedicado a
Bawon Samdi.25 Esses elementos, que materializam a força das divinda-
des e recriam “paisagens mnemônicas” para os espíritos, são igualmente
encontrados nos trabalhos dos artistas da Grand Rue (Cruz, 2020).26 No
caso da escultura de Guyodo mostrada acima, embora não se trate ex-
plicitamente de uma representação de Bawon Samdi (ao menos ela não
25 Os altares caseiros raramente são dedicados a um único espírito, sendo normalmente compostos para uma série
deles, contendo também elementos da iconografia católica, diretamente associada ao vodu.
26 Lucas Marques, em sua pesquisa sobre as ferramentas de orixás no candomblé, chama a atenção para essa questão
quando salienta que: “manipular as formas das ferramentas é ativar as próprias forças pelas quais elas são capazes
de agir no mundo. É como se cada forma, mais do que simbolizar a divindade, fosse a própria materialização da
força que ela possui – força esta fundamental para ativar determinadas relações” (2018, p. 226-227). Alline da
Cruz enfatiza que, além disso, elementos arranjados em alguns altares afro-caribenhos não apenas representam e
materializam os espíritos, mas buscam recriar “paisagens mnemônicas”, relembrando-os do tempo em que “eram
vivos” (2020, p. 9).

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nos é revelada), é possível encontrar elementos importantes para os gèdè
e especialmente para seu chefe: a cadeira, onde repousa no centro um
crânio; os óculos e o chapéu, dispostos em uma figura antropomórfica
que parece guiar a caveira, e outras parafernálias. Intencionalmente ou
não, é interessante perceber como componentes dos altares se fazem
presentes nas esculturas do artista, e como essa escultura especificamen-
te faz uma remissão, ainda que não intencional, a Bawon.

Imagem 6 – Um altar vodu caseiro em Jacmel, Haiti

Autora: Flávia Dalmaso, 2016.27

Outros objetos e materiais referidos tradicionalmente à arte vodu


(como garrafas, bonecas, cetins e paetês) mostram-se nos trabalhos dos
artistas da Grand Rue e especificamente no de Guyodo, a exemplo da
imagem 7, escultura intitulada Saint Jacques. As garrafas especificamen-
te, que no universo religioso vodu ou são bordadas com paetês, ou mais
raramente contêm cabeças e corpos de bonecas, servem aí de suporte
aos corpos do santo protetor e das criaturas menores que ela abraça
(todas também decoradas com alfinetes, miçangas, cabelos e fios colo-
ridos). Lembremos ainda que, no âmbito religioso, as garrafas são uti-
lizadas e manipuladas como amuletos condensadores de pwen, a força
derivada dos espíritos, servindo tanto para atraí-los e agradá-los quanto
para dispersar os malefícios que porventura possam causar (MCalister,

27 À Flávia Dalmaso, agradecemos a cessão da imagem.

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1995). Assim como os drapo, bandeiras vodu tipicamente decoradas
com paetês e miçangas, as garrafas tornaram-se exemplos paradigmáti-
cos de certa arte religiosa do Haiti.28

Imagem 7 – Saint Jacques. Guyodo, 2009. Coleção Jean Dornéval

Reprodução fotográfica de autoria desconhecida.


Fonte: Célius (2015b, p. 132).

O procedimento da “amarração” de elementos com linhas e fios –


empregado por outros artistas, como o casal Pierrot Barra e Marie Cas-
saises – se faz presente no Saint Jacques de Guyodo.29 Mas nele, ao con-
trário do que ocorre no trabalho anterior, o artista usa primordialmente
28 Sobre as bandeiras, Nancy Joseph (2007) salienta que há muitas histórias sobre suas origens, mas que certamente
elas foram desenvolvidas e comercializadas inicialmente no bairro de Bel-Air, região de Porto Príncipe que foi
tradicionalmente berço de santuários vodu. Segundo a autora: “Dentro da comunidade vodu, a bandeira é um objeto
ritualístico sagrado, que identifica o hounfò e honra os espíritos aos quais está associada. A centelha da lantejoula
ou do espelho prendia a atenção dos lwa invocados nos templos. As drapo vodu são desenroladas no início de uma
cerimônia. Elas são os pontos de poder usados tanto para identificação quanto para transformação” (Joseph, 2007,
p. 15).
29 O trabalho do casal de artistas Pierrot Barra (1942-1999) e Marie Cassaises (?-2011), estes sim iniciados no vodu
e declaradamente inspirados por sua relação com os espíritos, ajuda a iluminar certos procedimentos dos Atis Re-
zistans, em especial de Guyodo. Em composições que mesclam uma série de elementos presentes nos altares em
esculturas e bandeiras tridimensionais, esses artistas e sacerdotes lograram criar “coisas vodu”; combinando um
repertório de objetos, cores e texturas, tais peças eram inteiramente novas e jamais vistas nos hounfòs da cidade,
como destaca Cosentino (1998) em um livro inteiramente dedicado a eles. Suas peças misturam bordados – tra-
dicionais na arte das bandeiras e garrafas, elementos de decoração natalina, bonecas, cartas de santos, espelhos,
utensílios de cozinha, veludos e cetins.

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tecidos e linhas, fazendo uma remissão direta ao vodu já no título da
obra: Saint Jacques, uma das figurações do lwa Ogou Ferray, espírito
guerreiro e divindade do ferro. Devido ao uso dos materiais, o trabalho
lembra ainda os famosos pakèt vodu, pacotes de tecido e atados com fios
e barbantes que, como as garrafas, servem de amuletos, pois guardam a
força dos espíritos. Funcionando como “armadilhas”, para usar uma das
imagens caras à antropologia da arte de Alfred Gell (2001), eles servem
para capturar e manter presentes as divindades na terra, nos santuários
e nas casas. Chamam atenção ainda no Saint Jacques de Guyodo as co-
res usadas na composição, outro sistema de significação importante no
vodu haitiano. Como lembra Elizabeth MCalister (1995), as cores são
um modo de pensar, e sua ciência envolve uma engenhosa compreensão
dos limites entre os mundos dos vivos e dos mortos. O preto e o roxo,
por exemplo, são associados aos gèdè e remetem ao universo dos mortos;
já o vermelho, usado predominantemente no Saint Jacques, significa a
passagem ao mundo dos vivos. Cor de predileção do espírito guerreiro,
o vermelho associa-se ainda ao poder político e à chefia, aspectos que
parecem estar tematizados na escultura.
Em relação aos altares vodu, Donald J. Cosentino atenta para a
“estética improvisacional” que os define e que faz com que nunca es-
tejam acabados. Numa analogia com os instrumentos musicais, conti-
nua, eles são manipulados e rearranjados a cada nova encenação ritual:
“altares são palcos e os sacerdotes atores”, conclui (1996, p. 67). Tal
característica instável remontaria à história social do vodu, marcada
pela resistência dos escravizados e por sua inventividade, capaz de fa-
bricar uma religião complexa o suficiente para sobreviver às condições
coloniais hostis e para, posteriormente, enfrentá-las. A combinação de
elementos díspares, observável tanto nos altares vodu quanto na arte ca-
ribenha, seria, segundo Cosentino, um modo de reconfiguração de uma
história fragmentada.30 Seguindo linha interpretativa semelhante, que
30 A narrativa de que o vodu teria sido um fermento e uma forma de organização política para a realização da Revo-
lução Haitiana (1791-1804), que deu fim à escravidão e ao regime colonial no país, está bastante presente nas for-
mulações cotidianas de haitianos e haitianas. Essa ideia se catalisa na imagem mítica da cerimônia do Boïs Caïman,
que, conta-se, teria ocorrido pouco antes do início da revolta de escravizados, marcando seu início. Como destacam
Mintz e Trouillot, menos que saber se o ritual ocorreu ou não, importa “[…] reconhecer que o papel do vodu na
Revolução e na vida haitiana em geral foi desde o princípio assunto de influências não religiosas e ideológicas de
toda sorte” (1995, p. 138). É importante destacar que o vodu só se torna patrimônio cultural do Haiti oficialmente
em 2003, tendo sofrido ao longo de sua história uma série de contínuas perseguições por parte do Estado e da Igreja
(Ramsey, 2005).

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toma a produção artística como uma espécie de representação agonísti-
ca do real, Jana Evans Braziel qualifica os trabalhos dos Atis Rezistans de
“bricolagem vodu”, expressão que, inspirada na clássica noção de Lévi-
-Strauss (2013 [1962]), caracterizaria tanto o processo artístico quanto
a técnica utilizada pelos artistas. Os trabalhos desses bricoleurs seriam
capazes de espelhar “os níveis multifacetados de realidade – espiritual,
material, histórico, político e cultural – bem como espelhariam as hi-
per-realidades do militarismo, da violência, da pobreza e da existência
em perigo em Porto Príncipe” (Braziel, 2016, p. 423).
Se é verdade que a dimensão “improvisacional” e “bricoleur” está
presente nos trabalhos dos Atis Rezistans, como salientam Cosentino e
Braziel, as criações e declarações de Guyodo sugerem um deslocamen-
to na interpretação da arte haitiana como representação da fragmen-
tação histórica e política do país. O que parece estar em jogo é menos
a tentativa de recompor um mundo esfacelado em uma unidade, mas
sobretudo um processo de trabalho que evidencia a potencialidade dos
fragmentos. Trata-se, como ressalta o próprio Guyodo, de tornar vivo o
que estava morto, e tal processo se expressa em esculturas que mostram
as transformações progressivas e virtualmente infinitas de coisas. Aliás,
parece ser nesse sentido preciso – da potencialidade das transformações
– que Lévi-Strauss evoca a imagem do bricoleur ao confrontar o pensa-
mento mítico às ciências modernas.31 Não se trataria de restituir coisas
anteriormente destruídas, mas de manipular elementos concretos para
a criação de esculturas que contêm, em potência, todas as outras e todo
o “jardim”, ele também sempre em construção.
A imagem do “jardim” é empregada por Guyodo para descrever a
região da Grand Rue e para traduzir a plêiade de coisas que fazem parte
da vida cotidiana das pessoas, de seus altares e, também, de seu lixo, que
são a matéria-prima essencial dos trabalhos dos Atis Rezistanz. A ima-
gem não é fortuita; com a sua ajuda, Guyodo apresenta a região como
zona de cultivo e de restos de antigos objetos que, redefinidos, passam
a conviver entre si e com os moradores, nas ruas e em suas casas, que
são também seus ateliês e lojas. Tal “jardim”, cultivado nas imediações
31 Em oposição à figura do engenheiro, que projeta antes de construir, o bricoleur lida com uma composição que é,
segundo o antropólogo, “[…] o resultado contingente de todas as oportunidades que se apresentaram para renovar
e enriquecer o estoque ou para mantê-lo com os resíduos de construções e destruições anteriores” (Lévi-Strauss,
2013, p. 34).

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da Grand Rue e nas esculturas de Guyodo, deve ser incrementado com
novos insumos, exigindo a mesma atenção e zelo que um altar; nos
dois casos, as práticas de cuidado engendram outras, assim como novas
relações entre pessoas e coisas, humanos e divindades. Ainda que os
trabalhos artísticos mobilizem especialmente relações entre o artista, as
criações e o público, e os altares, entre pessoas, as coisas e espíritos, em
ambos parece haver um exercício de ativação, de composição de formas
que, antes mortas, adquirem anima. Por isso mesmo Karen McCarthy
Brown diz que “os altares vodu acontecem” (1996, p. 67), salientan-
do o seu aspecto ao mesmo tempo plástico e vivo. Não importa onde
estejam, eles devem ser alimentados ou “esquentados” para que possam
respirar, contar histórias e, principalmente, constituir um lugar de en-
contro entre vivos e mortos.
É assim que a relação com os espíritos e a criação artística en-
volvem práticas de cuidado: cuidar da disposição dos objetos, agregar
novas sementes ao jardim, mudar as antigas peças de lugar. O cuidado
é um modo de interação com a divindade, que será chamada a “descer”
ao espaço onde se encontra o altar; movimento semelhante dá-se na
escultura, que só “acontece” diante do cultivo de objetos que, antes
parte do lixo, “revivem” em um novo conjunto, após serem previamente
experimentadas, selecionadas, classificadas. Chamada de “arte de recu-
peração” por alguns (Ulysse, 2015), o trabalho dos Atis Rezistans e de
Guyodo mostra-se, sobretudo, uma arte da transformação. Tal como os
altares e os jardins, essas criações lidam com coisas que, se manipuladas
de forma adequada, ganham vida provocando efeitos sobre o mundo
ao redor. Desse modo, ao contrário da imagem da escassez que funda-
menta boa parte da interpretação crítica das obras dos Atis Rezistans,
Guyodo evoca uma imagem de abundância, de vida e de cuidado para
falar das obras por eles produzidas. A Grand Rue não é um local de
escombros, mas um jardim repleto de “mágicos”, que, tal qual os sacer-
dotes vodu, são capazes de mudar o estado da matéria. Como chamara
a atenção Malinowski em Coral Gardens (1966 [1935]), o trabalho da
magia está intimamente ligado às técnicas de cultivo, e por isso mesmo
os jardins dos trobriandeses são percebidos por ele como verdadeiras
obras de arte.

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Não se trata de classificar o trabalho de Guyodo como sendo, ou
não, arte vodu, no sentido como esta foi compreendida nos últimos
anos (Célius, 2015b; Ulysse, 2015), mas de sugerir como alguns de
seus procedimentos criadores – que, acreditamos, se estendem a outros
artistas da Grand Rue – podem ser iluminados pela manufatura inven-
tiva e transformacional dos altares vodu. Especialmente a relação que
os altares estabelecem entre os universos dos vivos e dos mortos remete
à transformação realizada pelas esculturas feitas com restos de lixo, que
fazem viver a matéria morta e inutilizada.

Casas e jardins: o sagrado ao rés do chão


Este capítulo, de caráter tentativo e exploratório, procurou trazer
à baila dois modos de aproximação da forma altar, por meio de dois
artistas muito distintos, mas que lançam questões interessantes (e al-
gumas correlatas) para a reflexão sobre as circulações e aparecimentos
desses arranjos entre as artes e a religião. Se, ao longo desses trânsitos,
tais composições reaparecem transformadas e dotadas de novos senti-
dos, elas continuam a carregar referências, mais ou menos explícitas,
à sua procedência ou a alguns de seus elementos primeiros. No caso
dos objetos-oratórios de Farnese de Andrade, trata-se de uma aproxi-
mação direta: as obras referem-se aos nichos com imagens de santos
católicos e de divindades variadas, que não apenas citam sinteticamente
as disposições de tipo altar, como fazem proliferá-las ao seu redor, nos
cantos e cômodos da casa. No exemplo das esculturas de Guyodo, essa
aproximação não é evidente, mostrando-se de modo mais alusivo. Sem
pretender fazer “arte vodu”, o artista se vale de elementos do vodu, en-
fatizando a sua presença na vida cotidiana do país e ressaltando o seu
caráter de conhecimento ampliado do mundo.
A inscrição do sagrado em solo cotidiano se faz presente nos dois
artistas, de maneiras diversas. Os oratórios de Farnese nos reportam
às paisagens mineiras da infância e ao mundo doméstico, relançando
memórias e experiências pretéritas. Os seus objetos povoados de san-
tidades, sexo e corpos mutilados criam uma atmosfera de violência e
fantasmagorias, ao mesmo tempo que se referem a objetos e práticas
rotineiras. Além de subverter fronteiras entre religiões e devoções, ele

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aproxima sagrado e vida cotidiana, ajudando também a pensar a casa si-
multaneamente como espaço de devoção, criação e exposição. O exem-
plo de Guyodo, por sua vez, nos endereça ao “jardim” de suas criações,
no qual o universo vodu é de algum modo recriado; nele, as relações
entre a vida e a morte, presentes nas interações cotidianas com seus es-
píritos, são recuperadas e revividas. O cuidado com a manutenção das
coisas, sua constante reposição e reconfiguração de modo a criar objetos
artísticos novos e vivos (as esculturas não por acaso são, em sua maioria,
figuras antropomórficas) evocam o zelo com o qual se cuida de um altar
vodu, este igualmente uma estrutura viva, dotada de força e agência.
Tais questões fazem ecoar os problemas levantados de maneira pre-
cursora por Michel Leiris em O sagrado na vida cotidiana (2017 [1938]),
quando ele não apenas expande os sentidos do sagrado para além da
esfera religiosa, como o enraíza em solo comum, ligado às lembranças
de infância, a pessoas e objetos, assim como às relações que estabelece-
mos com eles. O sagrado, menos do que esfera apartada do mundo, é
presença no solo da vida ordinária, deflagrando sentimentos e criações.
Não parece descabido afirmar que tanto os artistas tratados quanto Lei-
ris interrogam a “sacralidade profana”, experimentada cotidianamente.
Se as composições do tipo altar reaparecem nos trabalhos de Far-
nese e Guyodo, citadas e experimentadas, as suas criações se querem
artísticas, engendrando, portanto, trocas distintas com aqueles que com
elas se deparam, o que nos leva a pensar os trânsitos entre os espaços
da casa, do “jardim” e os lugares usualmente destinados às artes. No
universo doméstico e nos espaços religiosos, os altares definem práticas
e reciprocidades específicas – os santos protegem e cuidam das pessoas,
bem sabemos. No interior dos espaços expositivos públicos (museus e
galerias), por seu turno, outro tipo de rituais e trocas tem lugar. No caso
de Farnese, tenderíamos a dizer que, ao proporem uma cogitação sobre
as relações entre domesticidade e sagrado, revestindo-as de sentimentos
de incômodo e desconforto, os seus objetos-oratórios fazem disparar
memórias pessoais e familiares, sublinhando as ambiguidades que ron-
dam o sagrado, revestido de sentimentos de proximidade e distância,
respeito, desejo e temor, estranheza e familiaridade (ambiguidades para

79
as quais Leiris chamara a nossa atenção). As esculturas de Guyodo, de
seu lado, recriam o cotidiano de Porto Príncipe com base na precarieda-
de e nos escombros. Mas ao invés de sublinhar a carência, ele converte
a suposta terra arrasada em um grande jardim. Suas esculturas, espécies
de homens-fantasmas-santos, colocam em questão as fronteiras entre
um sagrado propriamente religioso e um sagrado profano, subvertendo
ainda certas concepções de senso comum que tendem a opor a brutali-
dade das ruas à delicadeza da criação artística.
As formas e elementos do universo religioso que esses artistas mobili-
zam em suas obras – mas que nem por isso convertem suas produções em
“arte religiosa” ou “arte vodu” – nos auxiliam a perturbar fronteiras entre
os universos. Se, de um lado, expandimos a compreensão do religioso,
pensando-o para além de uma dimensão instituída e coletiva alargando-o
no sentido da experiência sagrada, como propõe Leiris, de outro, am-
pliamos o entendimento da arte, tratando-a para além da representação
e de certa concepção estética, como propõe Alfred Gell (2018 [1998]). É
possível entrever novas formas de relação entre os domínios, que se tocam
e se transformam, sem no entanto se confundirem.
Os exemplos analisados sugerem como altares e criações artísticas
são artefatos complexos que circulam entre espaços domésticos e públi-
cos, entre a casa e a rua, carregando forças e agindo sobre quem com eles
se relaciona, ainda que de modos distintos. Em termos de seus efeitos,
poderíamos, mais uma vez inspiradas no exercício de Alfred Gell (2001
[1996]) em torno da armadilha de caça zande, indagar: se altares podem
funcionar como obras de arte expostas em museus, será que obras de
arte podem funcionar como altares?32 Mesmo que nossa intenção não
seja responder à questão (para isso teríamos que analisar de perto expe-
riências expositivas envolvendo os altares, tarefa que ultrapassa o escopo
deste artigo),33 a pergunta mostra-se interessante para refletirmos sobre
as proximidades entre criação artística e religiosa, ambas envolvendo

32 Neste artigo, Alfred Gell, partindo da exposição Art/Artifact, organizada por Susan Vogel em 1988, se pergunta,
em um debate com o historiador da arte Arthur Danto, sobre as homologias entre obras de arte e instrumentos téc-
nicos ou utilitários. Em função da exibição de uma rede de caça zande “como se fosse” uma obra de arte, Gell faz o
exercício de pensar se as obras de arte também não funcionariam como armadilhas que, ao acionar relacionalidades
complexas, “impediriam a passagem”, capturando o espectador tal qual uma presa (2001, p. 190).
33 Lembremos, entre outras, a exposição Altars: Art To Kneel Down realizada em 2001 em Dusseldorf na Alemanha
(Kunst Palace) com curadoria de Jean Hubert Martin, que expôs 68 altares do mundo todo com a intenção de dar
relevo ao seu aspecto artístico.

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procedimentos técnicos, alguns inclusive similares. Isso porque, para
Gell, artistas e mágicos (ou sacerdotes) são aqueles que, fazendo uso
de técnicas e encantamentos precisos, transformam a matéria, sendo
capazes de capturar, por abdução, aqueles que se relacionam com suas
criações – estas sempre investidas recursivamente de outras relações.
Levando adiante tal inspiração, não parece fortuita a localização
de homologias entre materiais e métodos presentes na feitura de altares
e de objetos de arte. Ao colocarmos a ênfase em seu caráter artefatual e
técnico, esses objetos mostram-se menos representações (embora pos-
sam também representar) do que artefatos que produzem efeitos sobre
o mundo. Os altares-oratórios de Farnese, assim como os “jardins” e
esculturas de Guyodo, embora muito diferentes entre si, expressam as
relações entre vida e morte (entre destruição e criação) que, longe de se
excluírem, convivem nas peças. Se, por meio do engenho técnico, eles
logram devolver vida à matéria inerte e descartada (lixos, destroços),
as coisas criadas não perdem sua dimensão fantasmática, deixando à
mostra a violência dos aniquilamentos (de corpos e paisagens) que os
fragmentos e o modo como são associados evidenciam. Afinal, longe de
se fundirem ou se confundirem nas composições, os elementos primei-
ros podem ser nelas identificados. As obras configuram-se, assim, como
potentes instrumentos de ativação de coisas e memórias, imbuídos de
força persuasiva que capturam aqueles que com elas se relacionam.

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DOI: 10.48006/978-65-5973-031-5-5

SENTIDOS DE TRANSFORMAÇÃO NA STREET ART: RELIGIÃO, ARTE E POLÍTICA NOS


ANJOS DE WARK DA ROCINHA1

Christina Vital da Cunha


Paola Lins de Oliveira

Imagem 1 – Abraço, de Wark da Rocinha e Amanda Naru, no muro da


Sociedade Hípica Brasileira, Jardim Botânico, Rio de Janeiro, 2020

Autora: Christina Vital.2

Neste capítulo, temos como objetivo refletir sobre sentidos atri-


buídos aos grafites de anjos de Wark da Rocinha, artista carioca cujos
trabalhos vêm ganhando destaque no Brasil e no exterior na última

1 Agradecemos ao MARES a oportunidade de integrarmos momentos tão auspiciosos de discussões de textos, ob-
servação de exposições de arte, entre outras atividades que resultam, periodicamente, em produções coletivas de
fôlego. A leitura atenciosa feita pelos colegas, em especial pelos organizadores desta coletânea, foi fundamental
para a elaboração do texto que segue.
2 Este mural (imagem 1) foi confeccionado em novembro de 2019. Sobre ele, Wark disse em entrevista concedida
a nós em 2020: “Eu tive o prazer de pintar com a Ananda Naru que fez o fundo do painel e esse novo trabalho se
chama Abraço. Tem um anjo gigante abraçando a cidade. E abraçando as pessoas que passam ao redor. É confra-
ternização. É o retorno, o triunfo do anjo. É o abraço, a gratidão. Em um momento desses que está afastado um do
outro retrata muito a falta que faz um abraço, a falta que faz uma atenção. Parecia até que eu… não podia imaginar
que esse trabalho faria tanto sentido na cidade: retrata o momento que estamos passando e o valor de um abraço.”

87
década. Desde meados dos anos 2000, a pintura de anjos em diferentes
suportes na cidade do Rio de Janeiro se consagrou como uma marca
distintiva desse artista. Duas representações de anjos povoavam nosso
imaginário quando iniciamos a produção deste texto, a saber, o anjo da
história, de Walter Benjamin, e aqueles presentes no consagrado filme
de Wim Wenders, Asas do Desejo.
Nas “Teses sobre Filosofia da História”, de Benjamin (1987), texto
produzido em período imediatamente anterior a sua morte, em 1940, a
figura de um anjo emerge como representação fundamental a revelar o
espírito de sua época. A expressão máxima da tensão apresentada nessa
obra entre passado e futuro emerge, de modo messiânico e teológico
(Funari, 1996), na conhecida nona tese na qual Walter Benjamin se an-
cora em uma pintura de Paul Klee de 1920 chamada Angelus Novus. Na
interpretação de Benjamin, esse anjo observa assustado e impotente os
horrores do passado no qual um acúmulo irrefreável de fatos conduziu
ao presente em que ruínas se avolumavam sob seus pés, fruto de regimes
autoritários impostos na Europa da Segunda Guerra Mundial. O cará-
ter agonístico se estende ao futuro para o qual o anjo é empurrado por
uma tempestade e que se apresentaria sob a égide da modernidade e do
desenvolvimento do capitalismo.
Na tradição hebraica, um novo anjo é criado para executar uma or-
dem de Deus ou cantar um cântico original e se extinguir em seguida.
Segundo Scholem (1993), Benjamin, como judeu, tinha uma espécie de
identificação mística com o Angelus Novus e incorporou-a em seus escritos
sobre o “anjo da história”, o que lhe valeu grande reconhecimento entre
pensadores críticos e ativistas de esquerda naquele período e desde então.
Quase trinta anos depois das teses serem escritas por Benjamin,
outro alemão, este de descendência católica, cineasta, revela a presença
de anjos na Berlim do pós-Segunda Guerra. No drama fantástico de
Wim Wenders, Asas do Desejo, uma produção franco-alemã de 1987 já
considerada um clássico do cinema, anjos sobrevoavam a capital do país
então dividida. O desejo último dos anjos era experimentar a intensida-
de da dor e do delírio humanos.
A dimensão de revelação da dor, da angústia e destruição presentes nas
obras de Benjamin e Wenders, assim como os desejos de transformações

88
emergenciais, ganha relevo também no personagem Anjos de Wark. Sobre
estes, interessou-nos compreender o contexto de sua produção e os signifi-
cados a eles atribuídos pelo artista. Quais são as chaves com base nas quais
esse artista se pronuncia sobre o ambiente urbano em que realiza sua obra?
Como a crítica social tão comumente associada ao grafite e à pichação e
uma mensagem motivacional se combinam nas formas cute de seus Anjos?
Como a religião se revela nessas obras? Qual a inspiração do artista para a
confecção desses anjos, imagem historicamente associada ao universo mís-
tico judaico e cristão? Nosso insight inicial foi na direção de refletir sobre
fronteiras, conexões e tensões entre religião, arte e política a partir da explo-
ração da ideia de transformação no trabalho de Wark. Ela parecia nos per-
mitir olhar para as várias fases de sua produção artística, assim como para o
diálogo do conjunto de sua obra com diferentes dimensões da vida social.
Iniciamos este capítulo apresentando a trajetória de Wark enfati-
zando pontos de inflexão como seu début na prática do grafite, a forma-
ção na Escola de Artes Visuais e sua carreira como artista de projeção
internacional. A discussão que propomos explora essas passagens à luz
de perspectivas artísticas e antropológicas revelando modalidades de um
fazer específico: a street art. Em um segundo momento, os Anjos de
Wark são explorados com base em desejos e enquadramentos expressos
pelo artista. Para ele, seus anjos seriam importantes veículos de transfor-
mação de pessoas e territorialidades produzindo motivação, alegria, de-
nunciando desigualdades sociais. Nas duas últimas seções deste capítulo,
nossa atenção recai sobre interfaces situadas entre arte, religião e política
tomando como referência murais, pinturas em quadros, transformações
de ruínas e lixo e o projeto social conduzido pelo artista. Em todas
as nossas elaborações, observamos aproximações empíricas e analíticas
com Peixoto e Goyatá (2020) e De la Torre (2020), textos integrantes
desta coletânea. Os jogos de revelação e ocultação do religioso estão
presentes em todos os casos contribuindo para considerações sobre os
lugares do “sagrado na vida cotidiana” (Leiris 2017 [1938]) diante de
interesses, narrativas e suportes variados.
Para a realização deste texto contamos com a colaboração do artis-
ta que nos concedeu entrevistas em dois momentos distintos: a primeira

89
delas realizada em 2015;3 a segunda em 2020, por meio virtual, durante
o período de confinamento relativo à pandemia de Covid-19. Além das
entrevistas realizadas, acompanhamos o trabalho de Wark desde 2013
em redes sociais, na mídia tradicional, fazendo registros fotográficos
de suas obras na rua e observação direta em eventos de grafite como o
MOF (Meeting of Favela).4

Sobre Wark e sua obra


Marcos Rodrigo, conhecido como Wark da Rocinha, nasceu em
1985. Durante toda a vida morou na Favela da Rocinha, na Zona Sul
do Rio de Janeiro. Começou como pichador aos 12 anos. Aos 15, se
inicia no grafite após acompanhar, como nos contou, o work in progress
de um artista em evento de hip hop na cidade. Em entrevista, revelou
um fascínio com sua performance e com o resultado por ele alcançado.
Seguindo em sua interpretação sobre seu ofício, disse: “Na verdade, foi
a pichação que me escolheu, não fui eu quem escolhi ela. O nome veio
realmente da rua. Realmente o movimento que fazia com o braço, com
aquela forma ali”. Além de conceber sua assinatura baseada na observa-
ção de traços no interior de suas próprias pichações (ver próxima seção),
fazia questão de compô-la com a territorialidade à qual pertencia: “Eu
sempre gostei de assinar minha localidade, meu bairro, sou um pouco
dessa onda do território que tem na pichação, né? Deixar marca do local
de onde você é, sua quebrada, eu gosto disso” (Wark, 2015).
Dos 15 aos 25 anos, aproximadamente, esteve empregado em uma
gráfica. Nesse período, fazia trabalhos por encomenda sem se orientar
por conceitos ou estilos reconhecidos, uma característica considerada
comum à produção artística das classes populares por pesquisadores
como Dabul (2014). Sobre essa época, Wark disse:

Fiz alguns cursos de desenho. Trabalhei muito tempo com rea-


lismo, com ilustrações de livros também, mas pouco entendia
do que eu fazia. Eu pouco me importava com o sentido da
história. Fui aprender História da Arte, concepção, enfim, con-
3 Esta entrevista foi realizada pelo bolsista de iniciação científica (2015-2016) Henrique Pinho, durante sua partici-
pação no projeto “Arte de rua e religião: um estudo sobre produções de cidadania e projetos de cidade através do
grafite no Rio de Janeiro”, sob coordenação de Christina Vital.
4 Paola Lins de Oliveira passou a acompanhar a pesquisa mais recentemente, a partir de 2020.

90
ceito, quando entrei no Parque Lage. Fui pra Escola de Artes
Visuais. Aí mudou tudo. (Wark, 2015).

Após sua formação escolar passou a conceituar o que vinha “de


dentro para fora”: “Foi lá [na EAV] que comecei a entender como tirar
de dentro pra fora. Antes eu reproduzia o que me pagavam pra repro-
duzir”. Foi então que passou a executar o que chamou de uma arte
comunicativa na qual estabelecia um “diálogo com a sociedade”. Até
então, relembra: “O olhar da sociedade sobre o meu trabalho nunca me
importou. Eu nunca fiz nada no início da caminhada pra que eu tivesse
um diálogo com a rua. Era pra sustentar o meu próprio eu. Colocar
num prédio o meu próprio rascunho, meu próprio status de ver algo
lá”. Da pichação à street art a compreensão de sua produção mudou:
“Quando eu comecei a estudar arte no Parque Lage eu entendi que a
arte de rua em si era muito mais do que eu fazia. Para mim o que faltava
naquela época era informação. Realmente hoje em dia o trabalho que
eu faço é para passar uma informação” (Wark, 2020).
Em diversos aspectos, a trajetória de Wark replica a transformação
por que passa a arte ocidental em sua transição de um regime profis-
sional para um regime vocacional, que enfatiza os valores da singula-
ridade, excelência e originalidade, inseparáveis da condição do artista
moderno (Heinich, 2005). O Romantismo inaugura uma nova etapa
da atividade artística, na qual o conhecimento profissional organizado
sob a forma de regras que reproduzem um fazer técnico compartilhado
numa comunidade de artesãos é substituído pela vocação ancorada no
dom individual inato. Essa mudança desempenha um papel importante
na consolidação do sentido da arte como expressão da originalidade e
liberdade do artista.
O deslocamento de Wark da pichação, sua profissionalização nas
artes gráficas, realizando trabalhos no estilo realista, até o grafite tem a
passagem pela EAV como ponto de inflexão, a partir do qual ele adqui-
riu ferramentas para rever e reconfigurar sua atuação. A reprodução é
deixada de lado para que ele possa extrair e manifestar o que tem dentro
de si, ponto fundamental do regime de singularidade artística. No mes-
mo sentido, Wark assume o papel do criador vocacionado portador de
um dom que o transcende quando afirma que não escolheu a pichação,

91
mas que foi escolhido por ela. Essa acepção se desdobra em um entendi-
mento da inspiração como uma espécie de espírito criativo que arrebata
o artista. Voltaremos a esse ponto mais à frente.
Quando Wark pensa seu trabalho em relação a outros, avalia que
sua maior referência no grafite são Os Gêmeos.

[…] Os caras são muito bons tanto na origem do grafite que


é o grafite vandal,5 quanto o grafite, enfim, mundial. […] Eu
gosto muito dos murais que eles fazem. Gosto muito das via-
gens que eles têm em relação aos personagens, a forma como
eles… enfim. O universo que eles conseguem entrar junto. E
como são dois irmãos, é de se admirar os dois terem a mes-
ma viagem. Deveria pensar diferente, né? Mas eles são iguais
e fazem arte. Como é que um consegue fazer arte idêntica ao
outro independente se tão pintando juntos ou não? É a mesma
levada, mesma pegada. Acho que isso aí é único assim, de se
admirar dentro do grafite. (Wark, 2015).

Atualmente, Wark dispende boa parte do tempo em seu próprio


ateliê na favela da Rocinha. A partir de meados dos anos 2010, sua
carreira teve grande ascensão, quando ele passou a ser convidado para
exposições no Brasil e no exterior. Sua arte está exposta em grandes
murais como o do Boulevard Olímpico,6 e em medianeiras, como o
recente trabalho realizado em um prédio de cinco andares em Berlim,
Alemanha.7 É muito convidado também para integrar festivais e busca
comparecer aos encontros que acontecem em periferias, como é o caso
do Meeting Of Favela (MOF) no qual centenas de grafiteiros nacionais
e internacionais se reúnem em dois dias inteiros para cobrir os muros de
uma favela em Duque de Caxias, Baixada Fluminense (imagem 2). As
entrevistas que realizamos com Wark foram justamente entre o período
5 O estilo vandal recobre uma variedade de intervenções, mas, usualmente, é referido àquelas feitas sem autorização,
ou seja, ilegais. Em muitos casos, são chamados de pichações ou pixo. Há autores e artistas que não reconhecem
o vandal como grafite. O estilo bomb ou bombing é muito comum nos muros das cidades e pode ser identificado
pela pintura usando letras arredondadas, também chamadas “gordas” no métier. Apresentam-se em uma harmonia
singular conjugando letras maiores e outras menores em um só bomber.
6 A cobertura da mídia sobre os grafites do Boulevard Olímpico foi grande. Os destaques eram para o trabalho de
Eduardo Kobra, um mural chamado “Etnias”. Também obtiveram muita repercussão os murais da grafiteira Panmela
Castro e de Wark, este intitulado “Cabeçada”. Sobre o personagem anjo de Wark, uma matéria da BBC destacava: “A
repercussão em torno de seus anjos foi tanta que ele foi convidado a grafitar uma parede no Boulevard Olímpico – e
até carregou a tocha”. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-37054714. Acesso em: 10 ago. 2020.
7 Para ver este e outros trabalhos de Wark da Rocinha, acessar: http://wark.com.br/artista.html.

92
imediatamente posterior a sua formação na Escola de Artes Visuais do
Parque Lage e sua consolidação como artista com sensível afastamento
do grafite bomb e vandal.

Imagem 2 – Work in progress de Wark da Rocinha,


MOF, Duque de Caxias, Rio de Janeiro, 2014

Autora: Christina Vital.

Se antes ele produzia na rua, de forma espontânea e pontual, os


trabalhos de hoje são realizados com curadoria, no mais das vezes neces-
sitando de andaimes, carros, tesouras elevadas que chegam a 40 metros
de altura. O desafio representado por estes novos modos de viver a sua
arte o entusiasma. Em suas palavras:

Como artista fico muito feliz porque é um desafio. Cada vez


mais a evolução do meu trabalho. Antigamente eu andava na
rua olhando pros muros. Hoje eu ando olhando pros prédios.

93
Já vejo o trabalho numa escala maior. Já é outro pensamento
de como ampliar o trabalho porque é como o surfista: quando
começa a dropar umas ondas maiores ele não quer saber de on-
das menores, ele quer dropar ondas maiores devido ao desafio.
Então é muito gostoso ver o trabalho em grande escala. (Wark,
2020).

Pichação e grafite na criação do lúdico


A chamada arte de rua é um guarda-chuva que cobre uma imensa
variedade de técnicas e estilos de expressão visual urbana (Ross, 2016).
Dentro dela, o que conhecemos como pixo e grafite se aproximam, se
fundem ou se distinguem conforme o contexto local (Liebaut, 2012;
Pereira, 2018; Campos, 2017). Um fator de distinção frequentemente
apontado na bibliografia é a relação com a ilegalidade e a criminalidade,
atribuídas à pichação, e a crescente aproximação do grafite ao universo
das “artes visuais chanceladas” (Pizzinato; Tedesco; Hamann, 2017). O
trânsito do grafite em circuitos de arte contemporânea é um dos fatores
que mais contribuem para a sua artificação (Liebaut, 2012). Há ainda o
poder da aliança (também percebida como cooptação) com o mercado
da arte, da publicidade e propaganda impulsionando a uma “economia
do Graffiti” por meio da sua legalização (Pires; Santos, 2018).8
Numa tentativa de dar contornos ao tema, Liebaut (2012) iden-
tifica duas acepções para o que se popularizou como grafite ou arte de
rua. A primeira, mais genérica, reúne escrita, desenho ou pintura reali-
zados sobre qualquer tipo de suporte sem autorização do proprietário.
Trata-se de uma definição ancorada na relação tensa dessa modalidade
de expressão visual com a lei. Um sentido mais estrito, focado nos as-
pectos formais, designaria

[…] um universo gráfico preciso caracterizado pela estilização


mais ou menos complexa das letras de um pseudônimo, sem ser
necessariamente ligado ao movimento hip-hop. Esse universo

8 Mesmo com todas as legitimações pelas quais o grafite passa, as tensões entre a lei e as diferentes modalidades de
artes de rua não desaparecem e continuam sendo um elemento determinante nas suas análises. Um simples exemplo
é sintomático: o organizador da coletânea de artigos sobre Grafite e Arte de rua da coleção de handbooks da editora
Routledge, Jeffrey Ian Ross, é professor de justiça criminal da Universidade de Baltimore, nos Estados Unidos. No
Brasil, uma série de decretos legalizando a prática do grafite foram elaborados para que os próprios entes públicos
fizessem uso desta forma de arte em eventos e em campanhas governamentais (Vital da Cunha, 2017).

94
gráfico é composto por três formas maiores que são, por ordem
de elaboração crescente: a tag, o throwup, e o afresco, cada um
disponível em vários estilos. (Liebaut, 2012, p. 154).

Em linhas gerais, a tag é uma assinatura ou marca estilizada, fre-


quentemente feita em uma única cor. Já o throwup seria uma versão
elaborada da assinatura com letras desenhadas com um contorno, mui-
tas delas em estilo que lembra bolhas, e um preenchimento de cor. O
afresco engloba os desenhos com temas e formas variadas e eventual-
mente também podem ser murais de letras e outros elementos gráficos.
Além de sofrerem constantes revisões, dado o dinamismo da prá-
tica, esses termos comunicam características globais de um movimento
que ganha sentidos específicos a depender do contexto de realização.
Para além das disputas em torno das classificações e dos termos que
organizam os diferentes estilos, existem alguns pontos que dialogam
diretamente com as práticas expressivas de Wark dentro desse cenário.
Sua trajetória produz distinções e continuidades específicas entre a pi-
chação e o graffiti que são atualizadas em seu estilo. Vejamos a questão
da assinatura ou marca. Ela desempenha um papel central na biografia
de Wark, pois, como já foi mencionado, batizou o artista.

Certo dia meus amigos me questionaram, o que significava


aquela escrita que eu fazia, aquele enrolado, o pixe carioca ele
é bem caracterizado pelo seu lance de ser enrolado, de ser uma
forma meio que gráfica, única… E eu fui ler o que tava escrito
dentro, e estava “W”, “A”, “R”, “K”. Eu falei, cara eu sou o
Wark. E assim surgiu. […]. Primeiro veio a técnica e depois
veio o nome. (Wark, 2015).

A assinatura como uma marca frequentemente ininteligível faz


parte do enigma da pichação (Oliveira, G., 2015). Considerando o ris-
co da prisão, da violência policial, e dos perigos e alturas vertiginosas,
mensagens cifradas dificultam a identificação dos seus autores. Mais do
que isso: esse estilo de escrita, seja ele simplificado, seja elaborado, pri-
vilegia a comunicação entre pichadores e o status alcançado dentro do
grupo ao deixar sua marca em lugares desafiadores. No caso de Wark,
o significado da marca que pichava era um mistério para si próprio. Ao

95
mesmo tempo, até a passagem pela formação em artes, não se interessa-
va em se comunicar com o público. Seu objetivo era o status de se ver
nos lugares que marcava.
Algumas pistas sugerem que a assinatura da pichação não deixou
apenas o nome de Wark, mas também o estilo que permaneceu com ele
em seu trabalho com desenhos. Pinho (2018) já havia notado a seme-
lhança no traço e na rapidez da produção ao comparar a assinatura e
os anjos de Wark. Estes possuem uma combinação específica de traços
para formar o corpo, as asas e a aureola que atende a um padrão, como
uma assinatura (imagens 3 e 4). Essas semelhanças entre o pixo e o
grafite em Wark falam sobre estilo e sobre uma dimensão da produção
artística. Sobre sua época de pichador, Wark afirma: “fazia um rascunho
e pouco me importava o que estava escrito dentro. Me ligava mais nos
movimentos mesmo. Fazia sempre aquele mesmo movimento, a mesma
marca” (Wark, 2015). Essa introjeção de uma técnica corporal especí-
fica vai ser continuamente desenvolvida no seu trabalho com grafite,
como quando expressa a saudade que sente da liberdade para pintar:
“com um cronometrozinho, um marcador de numeração, eu ia de um
bairro para o outro e fazia de 100 a 150 personagens, sabe? Um perso-
nagem dá para fazer em fração de minutos. Então eu ficava disputando
comigo mesmo a questão de fazer um bairro e outro” (Wark, 2015).

Imagens 3 e 4 – Tag (assinatura) de Wark e anjo

Fontes: Pinho (2018) e Instagram do artista, respectivamente.9

9 Disponível em: https://www.instagram.com/p/B2oSNS-IDfp/. Acesso em: 27 set. 2020.

96
Para Ingold, “a mão que escreve não para de desenhar” (2007, p.
124).10 Da mesma forma, Wark dilui os limites entre escrita e desenho,
desdobrados em pichação e grafite. Fica evidente, com Mauss (2003),
que estamos diante de uma técnica corporal dominada por meio de
uma prática repetida inúmeras vezes e apreendida na rapidez e fluidez
do gesto. Muito embora a passagem pela Escola de Artes Visuais tenha
redimensionado interesses temáticos e a linguagem do artista, vemos
aqui um legado expressivo consolidado no repertório artístico de Wark.
Um outro ponto importante, que explicita a elaboração do estilo do
artista da Rocinha, diz respeito ao desenvolvimento dos seus personagens.
A idealização e registro em black book (o caderno de desenho dos artistas)
do Anjo data de 2001, mas sua apresentação nos muros da cidade acon-
tece apenas alguns anos depois. Retomando o primeiro encontro com o
grafite, Wark destaca uma das coisas que o impactou no episódio: “eu
vi o cara fazendo com a lata de spray, que era uma ferramenta que eu
utilizava pra pixar, eu vi ele fazendo um boneco, falei ‘nossa! Olha esse
desenho’. […] e eu vi o cara grafitando na minha frente eu falei ‘nossa,
quero isso aí pra mim. Como é que eu vou fazer isso aí?’” (Wark, 2015).
Assim como Crapanzano afirma que “nossa percepção está impregnada
de possibilidades imaginativas” (2005, p. 368), ao que nos parece, aquele
momento suspendeu a realidade do aqui e agora e lançou o jovem Wark
no horizonte da fantasia e do sonho. E o boneco, os personagens de dese-
nho animado, os super-heróis desempenharam um papel essencial nessa
abertura para a imaginação e a criatividade.
Pinho (2018, p. 83) destaca a importância do mundo da fantasia a
que Wark teve acesso pela televisão, grande influência em sua obra. “Ali
foi uma infância que eu só ouvia falar no Snoopy” (apud Pinho, 2018,
p. 83). Ao comentar seu grafite realizado no muro do CAP-UFRJ (ima-
gens 5 e 6), o artista afirma que o trabalho fala sobre sonhos:

10 Nessa obra, Ingold produz uma espécie de arqueologia antropológica das linhas, pensando em escalas muito dife-
rentes, que vão desde trabalhos manuais envolvendo linhas (tecelagem etc.), passando pela escrita, desenho, com-
posição musical, até as linhas formadas pela circulação das pessoas no espaço ao longo da vida. Na rica discussão
sobre as distinções entre desenhar e escrever, ele afirma que o capitalismo industrial mudou a divisão do trabalho,
decompondo as habilidades em “inteligência criativa e imaginação de um lado e técnicas corporais rotineiras ou
habituais de outro. Quanto mais o conceito de arte se torna reservado ao primeiro, mais o último foi reduzido ao
que agora foi considerado como ‘meras’ operações tecnológicas”, como a arte aplicada da escrita (Ingold, 2007, p.
127). Em sintonia com a discussão da seção anterior, ele completa afirmando que algo produzido precisa escapar
das determinações do sistema tecnológico para ser considerado arte e expressar o gênio do seu criador.

97
[…] esse trabalho está dando início a uma outra fase que eu fui
desenvolver depois, que fala sobre sonhos. A mãe ali cheia de
filhos, dentro daquele cesto. Ela com o sonho dela e os filhos
também começando a olhar para fora e ter o sonho deles. En-
tão, quando eles olham pra fora eles começam a perceber que
existe todo um outro universo. Esse universo está sendo retrata-
do ali por heróis, como tem o Ciclope, tem o Homem-Aranha,
outros anjos chamando eles pra passear, todo um universo ali ao
redor deles, que vai ser o mundo que eles vão desbravar ainda.
(Wark, 2020).

Imagens 5 e 6 – Anjo, de Wark da Rocinha, no muro do


CAP-UFRJ, Lagoa Rodrigo de Freitas, Rio de Janeiro, 2014, e em detalhe

Autora: Christina Vital.

Quando o anjo jovem aprender a voar, o universo que o espera


é habitado pelos super-heróis que fizeram parte da sua infância. Se as
cores, os desenhos vivazes e os temas motivados podem enquadrar o
trabalho de Wark no que o grafiteiro Norte caracteriza como estilo cute,
essas características também dialogam com o universo do grafite e da
arte de rua que abordam os desenhos animados e videogame. Eles são
referência constante, seja pelo design, pelos personagens, seja pela “lu-
dificação física” (Márquez; Tosca, 2017) que transforma o espaço da rua
num jogo. Uma figura representativa desse estilo é um dos artistas de
rua parisienses mais reconhecidos, Jérôme Mesnager. Ele criou o Space
Invaders, obra que consiste em mosaicos de cerâmica que reproduzem
personagens do jogo homônimo, popular no final dos anos de 1970.
Seus “invasores do espaço” estão presentes em diversas ruas de Paris e

98
do mundo, assim como em galerias e museus (Fieni, 2016). Em uma
viagem para Hong Kong, Mesnager aproveitou a ocasião para produzir
trabalhos em diversas ruas da cidade baseados no personagem de ani-
mação estadunidense dos anos 1970, Hong Kong Phooey de Hanna
Barbera (no Brasil, Hong Kong Fu), mostrando o intercâmbio entre
os universos do videogame e do desenho animado, bem como “adicio-
nando camadas de transculturalidade” ao trabalho do artista (Valjakka,
2016, p. 383).
Com base em Wilson (2016) e Márquez e Tosca (2017), notamos
que personagens de desenhos animados e jogos de videogame na arte de
rua estão ligados tanto a um desejo de entretenimento e diversão quan-
to a uma nostalgia da infância. Em uma versão ampliada, poderíamos
pensar que um “imaginário (tele)videolúdico” (Márquez; Tosca, 2017)
compreenderia todo esse repertório colorido, animado e interativo, que
desperta a criatividade nos artistas de rua, lançando-os no plano de um
passado alegre (ou em sua parte alegre) vivido não apenas pessoalmente,
mas também coletivamente. A pesquisadora e artista Boym afirma que
nostalgia é “um anseio por um tempo diferente – o tempo da nossa in-
fância, os ritmos mais lentos dos nossos sonhos” (Boym apud Márquez;
Tosca, 2017, p. 115). Simultaneamente, ela é uma rebelião contra a
ideia moderna de tempo.11 Nos anjos de Wark, esse imaginário (tele)
videolúdico articula não apenas passado e presente, mas igualmente o
futuro, de modo que o horizonte do futuro imaginado seja uma atuali-
zação dos sonhos de descobertas e aventuras da sua infância.
A qualidade das relações entre imaginação, nostalgia da infância
e futuro fica mais evidente quando pensamos nas transformações dos
personagens dentro da obra de Wark. Antes do anjo, o primeiro per-
sonagem desenvolvido pelo artista foi o palhaço Bolinha (imagem 7).

11 Num sentido semelhante, estudos em psicologia social têm mostrado que a nostalgia pode atuar como um recurso
para a saúde psicológica e bem-estar geral, assim como exercer um papel importante no combate ao sentimento de
solidão (Campoamor, 2020).

99
Imagem 7 – Wark desenha seu primeiro personagem

Fonte: Blog de Wark.12

O palhaço é uma referência constante no mundo das crianças,


principalmente combinado à alegria e à festa do circo. Ao direcionar
sua energia criativa para desenvolver o personagem Anjo, mantendo
elementos lúdicos da cultura visual infantil, Wark vincula a infância a
outros sentidos como a proteção, o cuidado, a família. Em nosso ponto
de vista, os anjos-crianças possuem uma espécie de ambiguidade pro-
dutiva: por um lado, dão uma sensação de que protegem os caminhos
dos passantes que se deparam com eles nos muros da cidade; por outro,
encarnam uma inocência e fragilidade que demanda por proteção. Essa
composição ganha ainda outro elemento fundamental: a relação com
o território frequentemente apresentado como vulnerável. Reunidos,
esses aspectos nos revelam uma evocação à alegria e à inocência e, por
outro lado, ao risco. As diferenças temporais, da nostalgia e dos sonhos,
por sua vez, inspiram a imaginação a projetar futuros utópicos, diferen-
tes da vulnerabilidade, violência e risco do presente, em que as crianças
possam ser crianças, com suas fantasias encantadas.

12 Publicado no blog do grafiteiro no dia 3 de junho de 2011. Disponível em: http://wark-rocinha.blogspot.com/.


Acesso em: 14 ago. 2020.

100
Anjos e a transformação como desejo e prática social
Grafiteiros e pichadores buscam reconhecimento próprio muitas
vezes mediante a irreverência e a criatividade reveladas nos locais que
usam para se expressarem, as formas e histórias que contam, os mate-
riais que utilizam (Caldeira, 2012; Tiburi, 2013; Campos, 2013; Souza,
2011; Diógenes, 2015; Pereira, 2010). Nesta busca continuada apos-
tam em traços marcantes e em personagens.
No caso de Wark, foi com a sua formação na EAV que passou a
levar o personagem Anjo para as ruas. Eles são definidos pelo artista
como “uma luz”, uma forma de energia que se transforma e é também
transformadora do outro e do entorno no qual se encontra. Nas pala-
vras de Wark:

Ah, ele é uma luz né, cara? Ele é uma luz. É um ponto de luz,
espalhado por toda a cidade. Seja num poste, seja numa parede,
seja numa tela, seja num quadro… Ele emana aquela energia
que eu te falei, sabe? A energia que se transforma em matéria.
Agora, pra ver a claridade dessa luz, ou pra ver a forma dessa
luz, ou intensidade dessa luz, depende da sua luz. Depende de
você mesmo. E tem gente que vai passar por ali, passar como
passou, e tem gente que vai passar, vai parar e vai falar “calma
aí”. A pessoa vai absorver aquela luz um pouco mais com a luz
dela. E aí vai somar. Agora, nesse sentido que também vai ter
gente que vai passar e não vai ter aspecto nenhum, não vai ter…
(Wark, 2015).

Segundo Proverbio (2007), anjos são os temas mais comuns em


obras de arte ao longo da história, sendo muito populares em pinturas
e esculturas bizantinas e europeias. As primeiras representações de seres
em forma de anjos foram reveladas na arte grega e na Mesopotâmia
produzindo a hipótese de que ali surge a inspiração para a imagem cristã
popular. Nessa representação que vai se consolidando ao longo da his-
tória, anjos emergem como seres superiores aos homens, incapazes de
experimentarem sensações carnais (angústia revelada por Wim Wenders

101
na película citada acima), além de não terem gênero definido.13 Essas
referências cristãs são aqui brevemente apresentadas com o propósito
de anunciar um certo quadro com base no qual olhamos os anjos de
Wark nos muros da cidade. Inicialmente, imaginávamos que havia uma
mensagem religiosa cristã em sua arte. Essa impressão era reforçada por
composições específicas como a que encontramos nos tapumes que cer-
cavam as obras na Biblioteca Nacional, localizada no Centro do Rio
(imagem 8).

Imagem 8 – Anjos, de Wark da Rocinha, em tapume de


obras da Biblioteca Nacional, Centro do Rio, 2014

Autora: Christina Vital.

13 Somente a partir do século XIX os anjos começam a ganhar uma forma predominantemente masculina nas artes.
Nas representações mais longínquas os anjos não tinham asas. Assim aparecem na imagem cristã mais antiga,
datada de meados do século III, presente no Cubicolo dell’Annunciazione na Catacumba de Priscila, em Roma (cf.
Mazzei, 1999).

102
Na pintura,14 estão dois anjos em genuflexão diante de um livro
negro com destaque ao redor de si em amarelo/dourado. Sobre a capa
desse livro, cuja referência estética à tradicional Bíblia parecia evidente,
um grande B em rosa era pintado conjugando com N, referindo-se às
iniciais de Biblioteca Nacional. Parecia se tratar de um jogo de revelação
e ocultação do religioso na forma de um grafite motivacional. Esses gra-
fites seriam caracterizados pela abundância de cores, pela apresentação
de formas referidas à natureza, ao belo, aos “afetos positivos”, às vezes
por escritas de incentivo (Vital da Cunha, 2014).
Quando perguntamos a Wark sobre a relação de seu trabalho com
religião ele fez questão de afastar sua arte desse campo: “Grafite religio-
so? Fala em ‘Anjos’ e agora é grafite religioso?” (Wark, 2015). Já sobre
sua própria fé, disse: “Eu acredito numa força divina. Eu acredito que
Deus realmente existe e… mas enfim. Acho que é… essa é a positivida-
de da coisa que… eu acredito que há uma força maior, criadora, e cons-
trutora disso tudo, sabe?” (Wark, 2015). Sua concepção deísta-espiritu-
alista se aproxima de um fenômeno crescente no Brasil há duas décadas
e identificado na literatura e nos Censos do IBGE como os autodecla-
rados “sem religião”. Entre estes, predominam crenças em energias, em
um Deus customizado no qual diferentes concepções religiosas podem
ser identificadas na forma de mixes variados e singulares (Novaes, 2004,
2018; Fernandes, 2009, 2011). Sobre esse ponto, Wark prossegue:

Acredito na energia, sabe? Que há dentro de mim uma energia


[…] Me sinto como um fio condutor, tá? Eu transformo essa
energia, porque quando você me dá uma tela branca, é um tan-
to de mim que vai transbordar pra ela. Quando me apresentam
uma parede, é um tanto de mim que vai utilizar aquela ferra-
menta… e colocar ali. É algo de dentro pra fora. É o lance da
técnica, tempo de amadurecimento, mas sem essa energia nada
14 Oferecemos a imagem para Wark comentar. O artista fez uma interpretação da fotografia nos seguintes termos: “A
pintura da Biblioteca Nacional é maior [do que aparece na foto]. Quando eu pintei, cada parte conta uma história.
Isso é um resumo da parte do livro que é a nossa história. O livro está ali ilustrado como se fosse a nossa história
e ali dois arcanjos, não são anjos, até porque eles são maiores… eles fazem o papel da biblioteca que é o papel de
conservar, de proteger a nossa história ali que seria o livro. A nossa humanidade vem com sua evolução olhando o
seu passado. Ela tem tudo a ver com nosso presente. Acredito que a foto da sua filha ali ficou tudo a ver. Trata da ju-
ventude que vai desfrutar da conservação e da prevenção desta história. Na fotografia, a tua filha deu a composição
exata. Estamos tratando do passado, falando um pouco do presente que são os arcanjos na proteção da biblioteca
e ali também a sua filha que representa o futuro, que vai desfrutar dessa história. Então para mim esta foto está
completa” (Wark, 2020). Mais uma vez, vemos o recurso de uma articulação entre passado, presente e projeto de
futuro, por meio da valorização do passado (enquanto história) e da infância.

103
disso iria se concretizar. Então eu me sinto um fio condutor
que transforma energia em matéria. Agora como classificar essa
energia, como classificar se isso é arte, se isso é belo, se isso é
religioso, aí acho que varia de cada um. Agora que isso é uma
energia, é. Cada tela dessa minha carrega uma luz, disso eu não
tenho dúvida. (Wark, 2015).

Além do alinhamento de Wark com um universo religioso mais


difuso, não institucionalizado, é possível identificar em seu discurso
uma proximidade com uma retórica frequente entre artistas que associa
a inspiração criadora a uma espécie de arrebatamento místico (Oliveira,
P., 2020; Soares, 1979). Nesses casos, o sujeito da criação se percebe
tomado por algo que lhe é exterior e o conduz, num sentido análogo à
possessão religiosa, de modo que o artista se torna médium, um canal
para a manifestação do dom da criatividade (Oliveira, P., 2020). O re-
curso a alegorias religiosas, corrente no mundo da arte, ganha contor-
nos específicos no contexto social laicizado do modernismo. Autores
como Elkins e Morgan (2009) têm chamado a atenção para o modo
como a sacralização da arte, que tomou forma entre o final do século
XVIII e o final do XIX, enfatizou seu potencial de produzir uma expe-
riência edificante, alternativa à religiosa, do que se caracterizava como o
sublime, o infinito ou o divino. Esse processo, entretanto, não ocorreu
sem reforçar as fronteiras, sedimentadas pelo “mito da avant-garde” e
sua visão dos artistas como “oponentes críticos da respeitabilidade bur-
guesa e das instituições reacionárias da autoridade de classe média como
a Igreja e o Estado” (Morgan, 2009, p. 17). Embora os autores reco-
nheçam que esse mito não seja mais um paradigma constringente, seu
capital simbólico não se esgotou completamente. Com a permanência
do imperativo secular da contestação religiosa, assumir um vínculo reli-
gioso poderia ameaçar o reconhecimento e a institucionalização do ar-
tista no mundo da arte contemporânea. Assim, faz sentido que, embora
os temas e linguagens sagradas continuem inspirando trabalhos, artistas
adotem uma postura de “ambiguidade produtiva”, explorando o tema
criativamente pelo viés de uma percepção ampliada de humanidade e
se esquivando de assumir uma adesão religiosa institucionalizada, como
no caso de Wark.

104
Ao lado da luz que representam, do caráter espiritual sobre o qual
falamos, os anjos de Wark, segundo desejo expresso pelo próprio artista,
teriam um caráter educativo. Além de uma longa história no campo das
artes, também na educação essas criaturas revelam uma importância,
neste caso, como guardiães e auxiliares no processo de aprendizagem
e produção de conhecimento pelos humanos (Comenius, 2016; Yates,
1972; Hilsdorf, 2012; Aguiar; Pereira, 2018). Para Wark, as formas e
cores empregadas teriam potencial pedagógico na educação de uma
nova sociedade.
Deste modo, seus anjos podem ser representados como meni-
nas, mulheres grávidas. Outros são como crianças no colo. Às vezes
são meninos. Traços raciais são marcados com a colocação de cabelos
ou tecidos africanos. A conjugação dos personagens nos muros encena
histórias, e algumas delas Wark gostaria de ver transformadas. Segundo
o artista, sua inspiração tem origem nas experiências de pessoas em sua
favela de origem. Em suas palavras, levar esses personagens para a rua é
povoá-la de amor e felicidade. Neste sentido, busca revelar a força das
pessoas, sobretudo mulheres, das periferias urbanas. Apresenta seus dra-
mas e lutas como meio de enaltecê-las, criticar a desigualdade social que
suas existências expõem, propor uma nova realidade. Assim, as concep-
ções e desejos do artista gravitam entre produzir uma sensação positiva
no receptor e provocar uma reflexão sobre o contexto social. Em última
instância, um anseio por transformação social se apresenta:

Então, quando eu levo meu trabalho pra rua, eu gosto de falar


um pouco sobre o comportamento humano, sabe? Eu gosto
muito de retratar como as pessoas se relacionam. Os espaços
onde se convive, comunidade, asfalto, tal. Às vezes eu falo sobre
as mães, quando eu boto umas senhoras com filho, acho que
isso lança meio que um choque assim na sociedade. Tá andando
no meio da rua e tu vê uma personagem grávida, nossa! Rodea-
da de filhos, fazendo papel de mãe e pai ao mesmo tempo. Que
é a coisa natural que a gente vê em comunidade. Muitas vezes
tem mães que criam sobrinhos, filhos, cachorro, enfim… Tem
até uma obra minha lá no ateliê que retrata um pouco isso.
Muitas vezes mães solteiras que… A minha foi uma. Minha
mãe criou sobrinho, criou os filhos. Fora os cachorros que a
gente tinha, os gatos. Na comunidade ainda vejo muito isso

105
sabe? Acho que levar isso pra rua é um lance também do casal,
também, falar um pouco de amor, falar um pouco de felicida-
de… […] Como o meu personagem vale como uma ferramenta
de transmitir uma… às vezes até mesmo uma crítica. Que parte
também um pouco da origem né? Da pichação… muitas vezes
meu trabalho vem como uma crítica à sociedade. (Wark, 2015).

Em linha de continuidade com a reflexão acima, Wark salienta o


potencial transformador de cores e sombreados:

[…] A beleza da Baixada [Fluminense] são as cores. Os artistas


de lá fazem um trabalho mais delicado, é um painel mais pen-
sado no sentido de cor, de sombreamento. […] A [Zona] Sul
já é bela. Não que a baixada não seja, mas lá tem esse protago-
nismo do grafite, dos grafiteiros trazerem essa vida. Agora você
imagina essa Baixada sem grafite… Você vê que em São Paulo
o grafite é uma coisa essencial, né? Em São Paulo a praia é uma
coisa escassa, né? É cinza, cinza, cinza, prédio, prédio, prédio e
o que traz a cor, o que te tira desse mundo aqui, num simples
olhar te transporta pra um outro universo da beleza, até mesmo
um universo, pode ser agressivo ou singelo ou uma coisa que te
remete a sua infância, é o grafite. Ele te carrega, ele te transpor-
ta, ele pega você e te coloca num outro patamar. (Wark, 2015).

Outra intencionalidade se revela em seus anjos: a denúncia da per-


da. Na esfera política, a retórica da perda poderia ser tomada como
um mecanismo que identifica mudanças sociais em curso sobre padrões
de gênero e família como uma das ameaças do tempo presente (Vital
da Cunha, 2020). A demanda pela recuperação de valores morais de
referência, da autoridade, se anuncia pelos propagadores dessa retórica
como recurso eficaz no combate àqueles que são identificados como
riscos na atualidade. Uma melancolia em relação ao passado ocupa
mentes e corações reverberando em comportamentos que negam novas
composições sociais e até mesmo direitos alcançados por determinados
grupos. Para Wark, as perdas não se circunscrevem ao campo moral. O
artista acentua o esmaecimento dos sentidos, das motivações para a vida
cotidiana. Seu trabalho seria, em alguma medida, uma via de acesso ao
sonho, à utopia, uma forma de transcender à realidade social tão cara à
religião. Nas palavras do artista:
106
Então eu venho tentando colocar a importância do valor. Que
é uma coisa que eu percebo que tá se esfarelando, se acabando,
né? E é importante, é muito importante, a fé, o acreditar, a con-
quista, o sonhar. O sonhar ele é muito importante, sabe?… É
complicado, eu acho que cada dia você tem que ter a sua meta,
o seu sonho… Eu tento passar muito isso no meu trabalho,
sabe? (Wark, 2015).

A Santa Ceia de Cristo segundo Wark


Wark revela grande apreço pela transformação de lixo e de ruínas
como meio de crítica à globalização. Em sua tela Apocalipse (imagem
9), sua elaboração sobre esta questão atinge um ponto alto. Em suas
palavras:

Esse aqui [mostrando a obra] estava num prédio abandonado


que eu fui com outro camarada meu fazer umas artes lá e aí
tinha esse quadro aqui também velho, surrado, que ninguém
dava nada pelo quadro. E nesse quadro que um amigo me ven-
deu, esse catador, eu peguei e deixei lá no ateliê um tempo e
depois eu comecei a colocar importância dentro desse quadro.
Aí eu pensei: “Por que não colocar uma Santa Ceia atual assim
do nosso tempo, sabe?”. (Wark, 2015).

Imagem 9 – Quadro Apocalipse, de Wark da Rocinha, 2015

Autor: Henrique Pinho.

107
Ele se pergunta sobre o que deveria estar representado em A Última
Ceia se fosse feita hoje, mais de quinhentos anos depois de seu original
ser pintado em uma parede do convento de Santa Maria delle Grazie, em
Milão. Da Vinci trouxe na obra (feita entre 1494 e 1498) uma passagem
do evangelho de João na qual Jesus anunciava aos apóstolos que seria
traído por um dos que ali estavam presentes. O original já passou por
inúmeros restauros, evidenciados, na década de 1990, por um trabalho
minucioso em que identificaram cinco camadas de tinta sobre o afresco.15
Na adaptação feita por Wark em uma réplica da obra de Da Vinci, são
apresentados cardeais, políticos, ícones pop. Nela, são treze os apóstolos:
um político do PT; um Chapolin Colorado; um representante da FIFA; o
Tio Sam no lugar que Judas Iscariotes ocupa no original de Da Vinci. Jesus
tem uma TV no lugar da cabeça. Ao seu lado, um black bloc. Alguns dos
apóstolos estão olhando celulares em suas mãos, pacotes de batata frita de
um dos mais conhecidos fast-foods do mundo, McDonald’s, estão sobre a
mesa. No ar, flutuam símbolos do Facebook, Twitter, WhatsApp. Red Bull
e Coca Cola são as bebidas presentes. À frente de todos, na mesa, um globo
terrestre que se dissolve como uma imagem surrealista. Da janela, é possível
ver aviões e um helicóptero. Parece que deles saem mísseis, o que sugere um
cenário de guerra (no original de Da Vinci aparece um entardecer bucóli-
co). Diante da mesa, sorrateiramente saindo debaixo de um manto, Peppa
Pig, conhecido personagem infantil criado no Reino Unido.
Ao converter A Última Ceia em Apocalipse, Wark lança mão da
ironia de modo que os apóstolos da história sagrada são substituídos
por personagens da cultura pop, personalidades públicas, religiosas, po-
líticas, dos esportes. O ambiente é recheado de símbolos da paisagem
cultural digital, saturados em cor, estímulos eletrizantes e ambíguos:
excessivamente alegres, como a personagem de desenho infantil ou os
corações que sinalizam “curtidas”; excessivamente inquietantes, como
os aviões, mísseis e o derretimento do planeta. Longe de sacralizar esses
personagens, as transmutações em jogo apostam na inversão mediante
a revelação de uma verdade insidiosa: a de que atualmente se esses per-
sonagens querem se “fazer passar” por apóstolos e santos, por anjos, na
verdade, eles seriam o mal do mundo, como defende Wark:

15 Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-36484529. Acesso em: 13 out. 2018.

108
E aí começou a vir o lance dos apóstolos, sabe? Os apóstolos
cada um representar um país, cada um representar uma impor-
tância. E aí a gente começa a entender o que é que tá acontecen-
do no mundo, ali está vendo. Fala um pouco da guerra, fala um
pouco da tecnologia, fala um pouco também da roubalheira, da
falcatrua, da honestidade, da justiça que foi comprada… Tem
todo um lance que mexe com toda parte e aí eu passei cerca de
um mês colocando importâncias e valores, e aí ela deixou de ser
Santa Ceia pra se chamar Apocalipse. (Wark, 2015).

Para Wark, as pessoas acreditam “cegamente” naquilo que veem na


televisão. Ela se tornou uma “religião”, enquanto sinônimo de “fé cega”.
A televisão se torna a nova face e nova voz do filho de deus:

Como é que as pessoas veriam Jesus Cristo hoje, né, cara? O


que as pessoas acreditam? Aí virou no caso uma televisão que a
mídia consegue, né, passar uma informação, na qual as pessoas
pegam aquele conteúdo ali e levam pra sua vida, pro resto da
vida, muitas das vezes, né? Acredita de uma forma na mídia que
não é brincadeira. (Wark, 2015).

Se, como nos lembra Taussig (1999), o maior segredo público é


saber o que não se deve saber e que ao mesmo tempo sua revelação
lança uma chama de atenção corrosiva sobre o que se pretendia escon-
der, somos aqui apresentados à verdadeira face daqueles que seriam os
“donos do poder”. O teor e a qualidade dessa crítica podem e devem
ser contextualizados. Por um lado, trata-se de uma obra produzida na
esteira histórica das jornadas de junho de 2013, em que se avolumou
uma contestação difusa da política organizada e diversas formas de po-
der instituído. Ainda estamos lidando com o espólio desse período para
aferir as consequências desse movimento, mas algo se torna cada vez
mais consensual: a condenação generalizada da ação política organizada
abriu espaço para a emergência de líderes “antiestablishment” e suas re-
tóricas salvacionistas e eventualmente fascistas. Por outro lado, mesmo
que difusa, trata-se de uma crítica ao poder instituído, uma afirmação
elaborada como ponto fora da curva dentro da produção estética do
artista, que, na maioria de suas obras, trabalha a contestação social de
forma mais implícita.

109
Um outro ponto interessante diz respeito à televisão. Ao mesmo
tempo que é criticada, enquanto difusora de uma versão deturpada do
real vendida como verdade, é uma grande influência na obra do artista,
como já mencionado. De todo modo, é interessante pensar também
essa crítica à luz da grande chave da transformação social, que apare-
ce fortemente conectada à realidade das famílias residentes em favelas
tematizadas por Wark com frequência, sobretudo das mães sobrecar-
regadas com múltiplas funções de sobrevivência e cuidado. Essas mães
e crianças recebem marcadores raciais pontuando e qualificando um
registro de luta bastante objetivo.
Em entrevista realizada com Wark posteriormente ao movimento
“Vidas negras importam”, cujo centro de dispersão foram os EUA com
repercussões em diferentes países do globo, as transformações realizadas ou
esperadas pelo artista se revelaram por essa temática racial. Segundo Wark:

Atualmente estou falando sobre o racismo. Qualquer fase que


esteja passando a sociedade me intriga. Eu sou negro e eu sei o
que é ser preto num país como o Brasil que é totalmente pre-
conceituoso. Então eu estou abordando este tema agora. Estou
me sentindo mais confortável. Eu estou estudando um pou-
co sobre isso e invadindo um pouco mais esta fase. Momentos
atrás eu estava estudando outras fases, outros tipos de textura,
até mesmo um pouco sobre a história da arte… mas quando eu
vou pra rua eu gosto de expressar um pouco sobre o comporta-
mento humano […] Meu trabalho é um pouco esse: tirar a pes-
soa da zona de conforto e fazer ter uma reflexão. (Wark, 2020).

Deste modo, o sentido de um chamado16 para transformar por


meio da arte se apresenta no trabalho de Wark em muitas camadas.
Desde a estilização de anjos (transformação das referências estéticas
mais comuns encontradas em obras de arte, cadernos, lápides e no mer-
cado publicitário para uma adaptada ao grafite com cores e formas pró-
prios), passando pela transformação de espaços e materiais degradados

16 Parte deste caráter até messiânico surge na entrevista de 2020: “O que a sociedade vai pensar é um pensamento
que eu não desfruto tanto quanto. Pode me desconcentrar do que eu tenho para fazer nesta minha passagem pela
vida, nesta minha passagem pela terra, pelo mundo. Então eu tenho uma mensagem para deixar. E isso pode ser
atrapalhado pelo que os outros pensam em relação ao que eu faço. E aí deixar para os curadores, para os críticos, aí
sim vai ser o papel deles. Falar sobre o meu trabalho: o que eles pensam, o que eles acham. O meu trabalho é deixar
a arte falar por si só” (Wark, 2020).

110
em peças com valor afetivo e no mercado das artes, até o desejo de
transformar o receptor e a sociedade com base em uma mensagem a
um só tempo crítica e motivacional. Somada a essas dimensões, emerge
outra na qual o desejo de transformação direta na vida das pessoas é di-
recionado para uma atuação coletiva em um projeto social com sede na
Rocinha, sua favela de origem (@warkinstituto), reforçando o caráter
potencialmente educativo da arte.
Esta visão reveladora de um caráter edificador, muito frequente no
universo da educação artística, por exemplo, tende a enfatizar o papel
da arte como “instrumento terapêutico, capaz de melhorar as relações
entre os indivíduos e o coletivo” e mesmo “capaz de suscitar o desen-
volvimento pessoal, de indicar o caminho para uma plenitude harmo-
niosa” (Coli, 2004, p. 19). Porém, como destaca o professor de História
da Arte Jorge Coli, ela “pode ser um peso e uma maldição para os cria-
dores, portas para a angústia mais terrível” (2004, p. 19). Coli chama
a atenção para a ambiguidade da arte e que se ela tem algum poder de
cura também pode ser um flerte com o abismo. Esse sentido cáustico
e de ruptura (com as correntes anteriores, com os poderes instituídos,
com o sistema), de “desconstrução sistemática dos quadros mentais de-
limitando tradicionalmente as fronteiras da arte” (Heinich, 1997), tem
sido enfatizado por artistas, críticos e historiadores para reforçar o com-
promisso da arte contemporânea com a desestabilização de verdades e
certezas. Sua vertente moderna já possuía esse sentido, potencializado
na contemporânea. 
Num plano complementar, a crítica a uma função terapêutica
da arte pode ser compreendida como parte de uma condenação mais
geral à atribuição de qualquer função a ela. Defender uma finalidade
específica vai contra a ideia da arte pela arte, sinônimo da expressão
da interioridade, sem valoração ética ou moral, que se suporta como
instância autônoma da vida social (Heinich, 2005). Por outro lado,
não podemos deixar de notar uma mudança nos ventos, baseada em
novas modalidades de engajamento, no chamado artivismo e nas no-
vas linguagens criativas em ascensão, na chave do protesto e da trans-
formação social (Raposo, 2015; Stubs; Teixeira-Filho; Lessa, 2018). A
abertura para o diálogo com as expressões artísticas vindas da rua teve

111
um papel importante nesse processo, convertendo a arte em uma plata-
forma para engajamentos políticos e identitários com variadas agendas
(Didi-Huberman, 2017; Grunvald, 2019). Desse modo, vemos emer-
gir uma produção artística interessada em explorar linguagens, meios,
superfícies, mas também rever imagens consagradas como A Última
Ceia e transformar o mundo. Transformação que pode se consumar em
múltiplos sentidos.

Entre arte, religião e política


Os anjos de Wark contam histórias. Certamente não a história dos
vencedores, como denunciava Benjamin sobre a história oficial. Tam-
pouco seriam a história de derrotados, mas de pessoas para as quais a
categoria luta compõe o modo de ação cotidiano (Comerford, 1999).
São mulheres e crianças desamparadas socialmente que encontram em
seus iguais redes de apoio fundamentais. Essas pessoas e suas lutas emer-
gem sob uma estética animada por cores e sacralizada pela forma em
que se revelam.
Com sua arte, Wark busca transformar vidas seja pela comunica-
ção de suas obras com os apreciadores urbanos, seja, ainda, pelo engaja-
mento no trabalho social que realiza na favela da Rocinha há quase uma
década. Neste sentido, como na interpretação de Benjamin sobre o anjo
de Paul Klee, os anjos de Wark questionam o presente. Nas entrevistas
realizadas com o artista, esse presente seria marcado por profundas de-
sigualdades sociais, pelo descaso político, por um modelo econômico
excludente.17 Sonho, nostalgia, ludicidade e ação política seriam ele-
mentos no tratamento deste presente apontando novas formas de exis-
tência possíveis.
Como grafiteiro, expressou inúmeras vezes o anseio de transformar
pessoas, mas também a cidade. Acreditava que seu trabalho poderia
levar beleza a espaços degradados e ruínas. As reflexões de Simmel no
texto “A Ruína” (1998 [1911]) parecem singularmente potentes para

17 O trabalho de Wark se aproxima de Guyodo e dos Atis Rezistans (artistas em resistência) apresentados no capítulo
de Fernanda Peixoto e Julia Goyatá nesta coletânea. Em ambos os casos, uma forte adesão entre arte e território (no
qual emergem questões sociais a serem transformadas, segundo desejo dos artistas) e o uso de materiais como lixo,
escombros. Chama atenção igualmente o recurso a imagens, objetos ou materiais religiosos sem que essa dimensão
seja explorada diretamente pelos artistas.

112
analisar esta faceta da noção de transformação na obra de Wark. No
texto, Simmel apresenta uma rica reflexão sobre processos de transfor-
mação de ruínas num jogo entre vontade do espírito e necessidade da
natureza. Segundo o autor, embora algumas edificações antigas possam
ser consideradas ruínas, em sua acepção, a sua existência e sedução espe-
cíficas estão determinadas pela ação da natureza sobre a matéria produ-
zida pelo humano. Em algumas ruínas urbanas, os homens exerceriam
uma espécie de passividade positiva que, para Simmel, seria perceptível
na situação em que ruínas são habitadas por pessoas que não impedem
o curso da natureza, antes, deixam-no fluir.
A intervenção de Wark em ruínas aponta para uma atividade po-
sitiva do artista sobre a matéria, para usar os termos de Simmel. Neste
caso, uma alma lhe é despejada, uma energia, uma luz, passando, assim,
a compor uma nova presença no entorno. Sua atividade crítica combi-
na representações do contexto com elementos humorados trazidos (ou
não) da própria memória do artista.18 A utilização do humor em algu-
mas obras de Wark em ruínas ou outros espaços da cidade retomaria um
sentido inicialmente presente em seu uso na história ocidental: forma
de ironia e crítica social das margens em relação ao establishment. Hu-
mor e ludicidade combinados em uma arte que quer se comunicar com
indivíduos e com a sociedade.
A transformação da cidade cinza e caótica em uma territorialidade
nova, motivacional, inspiradora de sonhos e fé, ainda que de modo
efêmero, compõe os anseios do artista. Desejo explícito de que suas pin-
turas exerçam uma agência sobre o ambiente, sobre as pessoas. Trans-
formar a cidade por um movimento espiritual e artístico integrando
em si dimensões sociais e políticas, não as excluindo em um esforço de
separação entre esferas, mas como um compósito no qual a arte seria ao
mesmo tempo missão e fruição da alma.
Sem pretender fazer arte religiosa, Wark alude a este universo seja
pela mobilização de uma referência tão cara ao judaísmo e ao cristia-
18 O humor vem sendo cada vez mais abordado na bibliografia especializada como mecanismo de ação política.
Assim, para Roperto (2010), o humor emerge como uma forma de arte, ferramenta para crítica aos poderes es-
tabelecidos nas sociedades democráticas. Na antiguidade grega, por exemplo, o humor foi usado como parte de
estratégias satíricas e irônicas do povo para criticar os maus governos. No entanto, nem sempre foi mobilizado
pelas vozes dissonantes de cada período. Neste sentido, o humor foi usado como parte das estratégias de elites para
entreter e agradar as pessoas ou dissuadi-las de criticar o poder estabelecido, como nos lembram Zepeda, Franco e
Preciado (2014, p. 246).

113
nismo, como já dissemos em momento anterior no texto, seja pela pre-
tensão à transformação de pessoas e suas vidas, de ambientes por uma
energia positivada. Observa-se que, na modernidade, as artes também
buscam desempenhar esse papel transformador. Como em Schumann
(apud Kandinsky, 1996, p. 30): “Projetar a luz nas profundezas do cora-
ção humano, eis a vocação do artista”. Afinado a esse sentido vocaciona-
do, Wark se percebe como um fio condutor entre uma energia transcen-
dente que se materializa em formas variadas de anjos por sua mediação.
Um tenso jogo de ocultação e revelação do religioso se anuncia. Se por
um lado rechaça qualquer emergência religiosa em seus trabalhos, em
consonância com os ventos secularizantes, por outro, investe na apro-
ximação de sua criação a energias, próprias e transcendentais. Este re-
forço do caráter místico, espiritual, fortalece o capital de Wark tendo
referência, inclusive, na obra de artistas consagrados. A valorização da
espiritualidade em detrimento da religião é uma tendência observada
não só nas artes, mas, igualmente, em outros campos da vida social, nos
fazendo refletir sobre processos de “limpeza moral” da religião no mun-
do contemporâneo e que lhe permitiriam sobreviver em uma forma
pós-estrutural, não institucionalizada, plural, secularizada.
Como vimos ao longo do texto, se o engajamento religioso recebe
um sinal negativo na street art, o mesmo não se pode dizer em relação
à política. O compromisso político do artista e seu anseio de motivar
os receptores, transformando as cidades e eles, mediante cores e formas,
somam positivamente na carreira do artista integrando os aspectos que
tornam o trabalho de Wark singular em meio a tantos outros grafites
presentes no cenário urbano carioca.

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neiro, 2015.
WARK DA ROCINHA. Entrevista concedida a Christina Vital da Cunha e
Paola Lins de Oliveira, via internet, 2020.

120
DOI: 10.48006/978-65-5973-031-5-6

DO HOLOCAUSTO À TERRA PROMETIDA: A CRIAÇÃO DE UM MEMORIAL


NA PAISAGEM CARIOCA1

Edilson Pereira

Toda a história evangélica está escrita sobre o solo.


Maurice Halbwachs (1990, p. 380)

Imagem 1 – Divulgação do Memorial do Holocausto do Rio

Fonte: Instituto de Desenvolvimento e Gestão (2020).

Desponta na paisagem carioca um novo monumento: o Memorial


às Vítimas do Holocausto. Em contraste com outros memoriais do gê-
nero existentes no Brasil, como o de São Paulo, que é circunscrito ao
interior de uma antiga sinagoga, o exemplar carioca se localiza em área
pública, no Morro do Pasmado, em Botafogo (imagem 1). Nesse local,
ele se avizinha a dois grandes símbolos da cidade: o Cristo Redentor
e a pedra do Pão de Açúcar, introduzindo-se como um novo ponto
de atenção no horizonte. Situado em um mirante próximo à baía da

1 Uma versão desta análise foi apresentada na 32a Reunião Brasileira de Antropologia, em 2020, no grupo de traba-
lho Religião e Materialidades: novos horizontes empíricos e desafios teóricos, coordenado por Renata de Castro
Menezes e Rodrigo Toniol. Agradeço a interlocução e, no MARES, especialmente a Emerson Giumbelli e Fernanda
Arêas Peixoto pelos generosos comentários ao texto.

121
Guanabara, ele ocupa uma posição privilegiada para ser visto ao longe
e, dele, poder contemplar o entorno urbano – que passa a ser mediado
simbólica e materialmente pelo tema do Holocausto.
Analiso neste capítulo as condições de criação do memorial, consi-
derando os atores que se interligam desde seu projeto até sua edificação
recente. O texto é organizado com base nos principais agentes relacio-
nados com a biografia do memorial e do local onde ele foi instalado,
incluindo políticos, comunidades étnico-religiosas, arquitetos, especia-
listas do patrimônio, moradores do bairro, curadores etc. Além de ter
feito algumas idas ao canteiro de obras, baseio minha análise no levan-
tamento de materiais textuais e imagéticos que ressaltam sua dimensão
de artefato construído por meio do poder público. Este é, aliás, um
elemento determinante da existência do próprio memorial, que levou
décadas para sair do papel e ser erigido com o apoio do prefeito muni-
cipal e bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD),
Marcelo Crivella (mandato 2017-2020).
Dentro das redes acionadas pelo novo equipamento urbano, segui-
rei três frentes principais. A primeira engloba representantes da comu-
nidade judaica no Rio, incluindo o deputado estadual Gerson Bergher
(falecido em 2016), responsável pela proposta de realização de um con-
curso para a construção do Memorial no fim dos anos 1990, e sua viúva,
a vereadora Teresa Bergher, que integrava a gestão de Crivella quando a
pedra fundamental das obras foi lançada, em 2017. Em contraposição a
eles, o segundo grupo se compõe pelos críticos do local escolhido para a
edificação, em sua maioria profissionais vinculados aos órgãos de prote-
ção do patrimônio cultural e paisagístico. Esses atores argumentam que
o memorial foi projetado originalmente para ser instalado ao nível do
mar, e não no alto de um morro. Com sua transposição para o mirante
do Pasmado, o equipamento se destacaria e afetaria negativamente a
paisagem patrimonializada pela Unesco – a mesma que se tornou, his-
toricamente, uma metonímia da “cidade maravilhosa”. Na perspectiva
do patrimônio, o cerne do problema criado pelo memorial estaria na
edificação de um obelisco com mais de 20 metros de altura.
A terceira frente considerada nos aproxima da Igreja Universal,
instituição que se consolidou como um dos principais expoentes do

122
neopentecostalismo internacional e que têm, junto a outras institui-
ções evangélicas, deslocado continuamente as fronteiras entre religião,
política e cultura no país. Nos últimos anos, a Universal vem alterando
sua identidade visual de modo a enfatizar referências e símbolos do
Antigo Testamento e do judaísmo. Dentre eles, destacam-se nos altares
de seus templos réplicas das tábuas dos Dez Mandamentos que, segun-
do a tradição judaica e bíblica, foram entregues por Deus a Moisés em
um monte sagrado. Pois bem, na base do totem que se configura como
o item de maior destaque do novo memorial carioca está inscrito o
mandamento “Não matarás”, remetendo em forma monumental e não
figurativa às dez leis divinas.
De maneira análoga a certos monumentos modernos que redefi-
niram a paisagem e o imaginário associado às cidades que os abrigam
(Barthes, 1993), a disposição verticalizada do memorial – com um obe-
lisco no alto de um morro – nos coloca diante de sua potencial transfor-
mação em um símbolo urbano que aponta simultaneamente para o céu
e para a terra, para o passado (histórico ou bíblico) e para o presente.
Nesse sentido, considero que o caso seja interessante pela sua recente
materialização em um espaço público e por sua contribuição, enquanto
tema de estudo, aos esforços de compreensão das redefinições políticas
e religiosas atuais, incluindo sua articulação a dispositivos da memória
coletiva e sua expressão estética na cidade.
Localizado entre o Pão de Açúcar e o Cristo Redentor, o memorial
interage com o panorama que engloba esses grandes monumentos (na-
turais e de arquitetura) podendo se contaminar simbolicamente com
eles. Sobre o último, em particular, lembro que sua construção há quase
um século foi mediada pelo poder público em sintonia com lideranças
religiosas, católicas, que descreveram a fixação da grande imagem no
alto do Corcovado como se este fosse o seu pedestal, um altar criado
pela natureza (Giumbelli, 2014). Já no tempo presente, a relação entre
o memorial e seu entorno natural também ganha atenção do poder
público. O projeto incluiu, por parte da gestão de Crivella, uma etapa
de “requalificação” do morro carioca. No local onde um dia existiu uma
favela, a do Pasmado, planeja-se criar um “jardim bíblico”, isto é, uma
área verde com árvores, pedras e trilhas que mantenham uma relação

123
de semelhança com paisagens da Terra Santa – um dispositivo visual de
conexão Brasil-Israel que já é utilizado em espaços como o Templo de
Salomão, em São Paulo.
Por fim, saliento que o uso do termo Holocausto em vez de Shoah,
“a catástrofe”, preferido por setores da comunidade judaica internacional
para nomear o profundo trauma da perseguição nazista, se justifica pelo
fato de que os atores que analiso se valem sempre da primeira expressão.
Tal uso reforça, ademais, a dimensão ambivalente do termo, que serve
para se referir tanto ao genocídio que marcou o século XX quanto aos
procedimentos rituais da tradição judaica, narradas desde as Escrituras.
Minha análise, portanto, volta-se menos à literatura especializada sobre
os eventos históricos da Segunda Guerra na Europa e mais às interpreta-
ções de tais eventos por figuras de destaque no cenário carioca e nacional,
observando suas formas de atualização e tradução sensorial.

Holocausto como tema (da) Universal



De madrugada Abraão se levantou
Três dias no deserto caminhou
Ninguém sabia o que ele ia fazer
E o quanto lhe custava obedecer
Guiado pela fé a voz de Deus
Sentiu tornar em cinzas os sonhos seus
Subiu o monte santo Moriá
E pôs o próprio filho no altar
E quando Abraão ergueu a mão
Tocou em Deus no céu o coração
E um anjo
Bradou em alta voz […]
Deus proverá, Deus proverá
Pra quem lutar e mesmo exausto
Entregar a própria vida
No altar do holocausto

Os versos acima compõem a música “Altar do Holocausto”, ento-


ada por um conhecido cantor gospel carioca. Ele atua no meio musical
desde 1992, tendo gravado mais de dezesseis álbuns e duzentas canções.
Mais recentemente, ele passou a dividir a carreira musical com o emi-
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nente cargo de prefeito da cidade do Rio de Janeiro (2017-2020, PRB).
Devido à posição assumida no poder público, Marcelo Crivella se licen-
ciou temporariamente da posição de bispo da Igreja Universal do Reino
de Deus. Apesar da formalidade da licença demandada para assumir
o posto político, Crivella voltou a soltar a voz em 2018, no segundo
ano de seu mandato. Cantou para cerca de duas mil pessoas que foram
assistir a ele em uma casa de espetáculos situada a poucos metros da Pre-
feitura Municipal.2 Tratava-se de um show promovido com o intuito de
angariar fundos para a construção do “Memorial do Holocausto Rio”,
também chamado de “Memorial às Vítimas do Holocausto”.
A música entoada pelo prefeito na ocasião recupera a história do
Antigo Testamento, na qual Deus ordena a Abraão que sacrifique seu
próprio filho, Isaac. O local destinado para o filicídio era o monte Mo-
riá, que reaparece em outras passagens das Escrituras e que, posterior-
mente, foi o território escolhido para abrigar o Templo de Salomão, um
dos reis mais importantes na formação da antiga Israel. No presente, o
monte integra a paisagem admirada pelos visitantes do Muro das La-
mentações, em Jerusalém. Pois, naquele monte sagrado, Abraão deveria
realizar um holocausto, termo derivado do grego holó-kaustos – “todo”
e “queimado” – que na tradição judaico-cristã assumiu o sentido de sa-
crifício, de trabalho sagrado. Na história narrada no Pentateuco, isto é,
nos cinco livros que compõem a Torá judaica e o início do Antigo Tes-
tamento, Abraão sobe ao monte e coloca seu filho no altar. Antes que o
sacrifício se cumprisse, porém, um anjo interrompe a mão paterna que
avançava com um punhal em direção a Isaac. Por cumprir sua promessa
– mesmo interrompida –, Abraão e sua prole são abençoados e se firma
a aliança entre a divindade e o primeiro patriarca do povo judeu.
A história antiga faz parte do rol de narrativas acionadas por dife-
rentes religiões, dentro e fora do país3. No contexto brasileiro, a escolha
do tema para embalar as canções de Crivella marca um momento de
inflexão em sua trajetória pública. Nos idos dos anos 1990, quando ini-
ciou sua carreira, as letras das canções do bispo estavam afinadas com as
2 O “Show da Solidariedade” foi realizado no Espaço Sulamérica, situado próximo à avenida Presidente Vargas, em
14 de junho de 2018.
3 Denominam-se “religiões abraâmicas” as três vertentes monoteístas surgidas no oriente próximo: judaísmo, cris-
tianismo e islamismo. No Brasil, histórias do Antigo Testamento são acionadas tanto por evangélicos, de várias
linhagens, quanto por católicos (Pereira, 2014, 2020).

125
controvérsias nas quais sua igreja se envolveu. Entre elas, a que remete
ao episódio conhecido como “o chute na santa”, ocasião na qual um
bispo da Universal proferiu um ato iconoclasta contra uma réplica da
“padroeira do Brasil”, no dia de sua festa, em 12 de outubro de 1995.
O ato transmitido pela Rede Record gerou comoção de católicos e não
católicos, com forte repercussão midiática (Giumbelli, 2003). Quatro
anos depois, Crivella gravou “Um chute na heresia”, música composta
por uma suave melodia de violão acompanhada da canção: “Na minha
vida dei um chute na heresia/Houve tanta gritaria de quem ama a idola-
tria/[…] Se ela é Deus, ela mesmo me castiga/Aparecida, Guadalupe ou
Maria”. A música atualizava, em versos, o ato que havia sido proferido
primeiro em imagens. Juntos, gesto e canção sinalizavam uma reconfi-
guração do campo religioso brasileiro na virada do último século.
Nas últimas décadas, a maior visibilidade evangélica no espaço
público confirmou a tendência de mudança que se refletia na atuação
de lideranças como Crivella. A primeira postura, que se voltava a uma
comunidade de fiéis para se contrapor ao mundo secular e à hegemo-
nia católica – recorrendo aos preceitos iconoclastas que remontam ao
tempo de Abraão, que “aos seis anos de idade destruiu a oficina de
ídolos de seu pai” (Latour, 2008, p. 126) –, passou a coexistir com
a ação no mundo da política. Ao ingressarem em partidos e disputas
eleitorais, muitas figuras evangélicas e da IURD expandiram seu raio
de ação como mediadoras do protagonismo divino, estendendo-o para
a esfera pública (Birman, 2012). Elegendo-se por meio dos pleitos de-
mocráticos e se articulando com grupos conservadores, eles ascenderam
ao patamar de agentes na disputa de projetos políticos para o Rio de
Janeiro e para a nação (Vital da Cunha; Lopes; Lui, 2017).
Tal processo é marcado por diferentes formas de articulação en-
tre atores religiosos e não religiosos, permitindo que a heterogeneidade
característica do universo evangélico, com suas muitas denominações,
passe a dar lugar a uma noção de “evangélico” ou “cristão” que se articu-
la a um discurso de maioria. Os evangélicos aparecem então como um
coletivo difuso, que se torna hábil na articulação com outros segmen-
tos, inclusive católicos, para concorrer no delineamento de projetos que
acionam certa ideia de “cultura brasileira” – uma cultura, segundo tais
atores, que seria inextrincavelmente cristã.
126
Giumbelli (2008) abordou uma faceta dessa dinâmica ao analisar
as investidas evangélicas na “cultura”, como no projeto de lei proposto
por Crivella, em 2005, quando ele ocupava o cargo de senador, para
inclusão dos “templos” como possíveis beneficiários de recursos da Lei
Rouanet. Apesar de o projeto não avançar naquele momento, revelando
certa dificuldade dos evangélicos se valerem da noção de cultura para
determinados propósitos, seis anos depois a música gospel foi englo-
bada nas políticas da mesma lei “cultural”. Ao se vincular às formas de
financiamento da cultura definidas pelo Estado, o “evangélico” deixa
de referir à religião exclusivamente, podendo ser pensado tanto como
parte de um projeto político amplo quanto uma frente de mercado e
entretenimento (Sant’Anna, 2013).
Por essa razão, deve-se compreender a performance de Crivella can-
tando “Altar do Holocausto”, em 2018, como parte de um movimento
maior e mais complexo que articula religião, cultura e política por mui-
tas vias. Uma delas opera uma interessante modificação na forma e na
escala daquilo que a literatura especializada chamou de “cultura bíblica”
(Velho, 1995; Steil, 1996). Originalmente utilizada para se referir ao
imaginário popular brasileiro, sobretudo católico e rural, a noção pode
ser atualizada à realidade dos grandes centros urbanos, incluindo suas
periferias e práticas de consumo. O acesso ao repertório narrativo e
visual da Bíblia, que era feito dentro de igrejas ou grupos religiosos,
ganhou nova magnitude – conforme discutido por Jorge Scola (2020),
em outro capítulo deste livro. O imaginário bíblico e suas paisagens são
acionados em shows e rituais de grande público, na comunicação midi-
ática, no consumo cultural e no turismo religioso. Juntos, esses eventos
produzem uma partilha estética (Rancière, 2009) do conteúdo religioso
para além dos círculos e usos tradicionais.
Ao mesmo tempo, a popularização do repertório evangélico se re-
aliza com procedimentos seletivos que orientam quais personagens ou
enredos devem ser enfatizados e como. Dentro dos inúmeros repertó-
rios e interpretações possíveis de se fazer com base na narrativa bíbli-
ca, nota-se que a produção estética e ritual de igrejas como a IURD
enfoca temas-chave para a reapropriação contemporânea de elementos
da tradição judaica (Pereira, 2020). O processo de valorização cultural

127
de símbolos e histórias do Antigo Testamento e de políticas do atual
Estado de Israel, configurando uma modalidade de filojudaísmo ou sio-
nismo cristão, já se refletia na construção das megacatedrais da Univer-
sal, como a Catedral da Fé, no Rio de Janeiro, e o Templo de Salomão
paulistano (Gomes, 2011; Mafra, 2011). Em ambos os templos, parte
do revestimento foi arrematado com pedras calcárias trazidas dos arre-
dores da Terra Santa, visando estender sua sacralidade e aparência no
território brasileiro.4
Nesse cenário, a criação do Memorial do Holocausto do Rio assu-
me a posição de uma notável via de expressão do filojudaísmo evangé-
lico – intervindo no espaço público e na paisagem urbana sob o signo
da “memória”. Nesse ponto, cabe lembrar que Mafra (2011) havia assi-
nalado a similitude existente entre as estratégias curatoriais empregadas
em museus judaicos e a maneira como os assembleianos construíram
um de seus memoriais. Segundo a autora (2011, p. 616), ambos estabe-
leciam um “estilo de materialização da memória” que enfoca a dimen-
são diaspórica dos coletivos, sejam eles tomados pela sua conjunção
étnica e/ou religiosa. Assim como em museus da história judaica, os
assembleianos organizavam uma narrativa temporal que enfatizava sua
condição de comunidade ou “minoria perseguida” – um discurso que se
reproduz igualmente entre os iurdianos (Camurça, 2020).
No caso da Universal, a história judaica é abordada de maneira a
conectá-la com o cristianismo neopentecostal e torná-lo seu herdeiro,
criando um sentido de continuidade. Um exemplo interessante desse ex-
pediente foi a criação do Centro Cultural Jerusalém em 2008, em área
contígua à Catedral de Del Castilho, na zona norte carioca. Em sua au-
todescrição, o centro se identifica “como um espaço proativo de apoio
à educação e desenvolvimento cultural do Rio de Janeiro. Construído,
para discutir arte, cultura da imagem, educação e práticas curatoriais”.5 O
projeto, de autoria de Crivella, inclui entre suas atrações “a maquete da
cidade de Jerusalém do século I d. C.”, replicando um protótipo israelen-
se. Ao lado da detalhada reprodução da cidade em miniatura, os visitantes
4 O obelisco do memorial carioca foi recoberto com blocos de granito em tonalidade amarelada, próxima à coloração
que caracteriza as pedras trazidas de Israel. No caso do templo paulistano, o maior da IURD, as pedras calcárias
foram importadas da cidade de Hebrom, que abriga o Túmulo dos Patriarcas com os restos mortais de Abraão. Ver:
https://noticias.uol.com.br/colunas/rogerio-gentile/2020/10/14/tribunal-isenta-universal-de-pagar-imposto-por-pe-
dras-consideradas-sagradas.htm/. Acesso em: 15 out. 2020.
5 Disponível em: http://centroculturaljerusalem.com.br/about-2/. Acesso em: 10 ago. 2020.

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acessam uma exposição com textos e imagens que resumem a história (bí-
blica e não bíblica) de Israel até o tempo presente, incluindo a persegui-
ção nazista na Europa. Desde 2009, o centro cultural se configura como
um “ponto turístico oficial” do estado do Rio de Janeiro (lei nº 5.375).
E embora a conexão espacial e temática com a IURD seja evidente no
caso desse centro, deve-se atentar que sua autodescrição dá mais ênfase à
dimensão “cultural” e “educacional” do que à “religiosa”.
Esse é um dado interessante para voltarmos nossa atenção ao Memo-
rial do Holocausto do Rio, posto que ele expande a rede de instituições
interessadas na sua construção e existência. A cerimônia de lançamento da
pedra fundamental do memorial, em 14 de julho de 2017 – cerca de um
ano antes do show gospel do prefeito – oferece um indício da multiplicida-
de de atores envolvidos no projeto que se iniciava formalmente. Junto ao
chefe do Executivo e seus assessores, os convidados de destaque da ocasião
incluíam o embaixador de Israel, Yossi Shelly, o presidente da Federação
Israelita do Estado do Rio de Janeiro (FIERJ), Herry Rosenberg, a Secretá-
ria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos, Teresa Bergher, o
arquiteto idealizador do projeto, André Orioli, e a cantora israelita Varda,
que havia se apresentado anteriormente no Templo de Salomão.
A divulgação oficial do evento afirmava que o monumento iria
inserir o Rio de Janeiro no rol de metrópoles “que rendem homenagens
às vítimas do genocídio nazista, como Paris, Berlim, Nova York, Wa-
shington e Londres”.6 No mesmo dia, o Diário Oficial do Município
informava que

[O memorial] contará com anfiteatro, galeria para exposição e sala


de mídia digital. A construção do memorial está prevista na lei
4665, promulgada em 2007, de autoria de Teresa Bergher. O local
terá rampas de acesso, área para solenidades, galeria circular com
três divisões, abrigando a galeria da Memória, com 300 m², espaço
de mídias interativas de 182 m², auditório para 130 pessoas.7

Abordarei adiante o caminho desde a idealização até a implemen-


tação do projeto. Por ora, gostaria de voltar a atenção para o seu lança-
6 “Crivella lança pedra fundamental do Memorial às Vítimas do Holocausto”, de 14 de julho de 2017. Disponível em:
http://www.rio.rj.gov.br/web/guest/exibeconteudo?id=7169691. Acesso em: 10 ago. 2020.
7 Diário Oficial do Município do Rio de Janeiro, ano XXXI, n. 82, sexta-feira, 14 jul. 2017. Disponível em: https://
doweb.rio.rj.gov.br/portal/visualizacoes/pdf/3476/#/p:1/e:3476/. Acesso em: 10 ago. 2020.

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mento pelo poder público. No evento, havia um considerável número
de pessoas vinculadas à comunidade judaica carioca, cuja participação
no rito colaborava para dar o tom dos discursos que apresentavam os
judeus como vítimas exemplares do Holocausto. Ao mesmo tempo, fi-
guras como a então Secretária de Direitos Humanos ressaltavam que
o rol de vítimas homenageadas pelo memorial seria amplo, incluindo
“homossexuais, ciganos, deficientes físicos e testemunhas de Jeová”.8
Exclamando “Holocausto, nunca mais!” em coro com os presentes, o
prefeito fazia ressoar um slogan que tem sido utilizado por vários apoia-
dores do projeto, independentemente de sua vinculação efetiva com as
vítimas (judaicas ou não) do nazismo.
De fato, a aproximação de Crivella com a causa e a história judai-
ca é anterior à sua atuação como prefeito. A partir de 2002, quando
passou a dividir a carreira de cantor com a política ocupando a cadeira
de senador pelo Rio de Janeiro, ele fez vários pronunciamentos sobre o
tema. Em 2006, Crivella discursou no plenário sobre a participação do
Brasil na autoria da resolução da ONU que instituía o dia 27 de janeiro
como o Dia Internacional de Recordação das Vítimas do Holocausto.
Na ocasião, o senador defendeu a tese de que relembrar a história era
necessário para evitar a sua repetição. Embora ele estivesse imbuído de
sua persona política, sua interpretação dos acontecimentos históricos
estava em sintonia com a perspectiva religiosa de suas canções. Segundo
Crivella: “A morte de milhões de judeus, assim como a morte de muitos
outros milhões de pessoas, deve ser vista como imolação de mártires no
altar da construção de um planeta mais harmônico e justo. Martírio
que não se deve repetir”.9 (grifo nosso).
Nessa fala, os fatos que marcaram o século XX são abordados
como uma situação negativa e exemplar que deve ser convertida em
aprendizado às novas gerações, independentemente de sua origem ou
identidade étnico-religiosa. Assim como no caso dos “evangélicos”, a
noção de “vítimas” e mesmo a do “Holocausto” têm sido objeto de vá-
rias apropriações, servindo para se referir a um coletivo ou comunidade
8 “Botafogo vai ter Memorial às Vítimas do Holocausto”, de 15 de julho de 2017. Disponível em: https://diariodorio.
com/botafogo-vai-ter-memorial-as-vitimas-do-holocausto/. Acesso em: 10 ago. 2020. Em outras notícias da época
e posteriores, a vereadora Teresa Bergher reiterou essa lista e, algumas vezes, incluiu “negros” e “inimigos políti-
cos” como parte das vítimas em questão, sem mencionar “comunistas” entretanto.
9 Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/pronunciamentos/-/p/texto/359731/. Acesso em: 10
ago. 2020.

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particular, notadamente a judaica, bem como para evocar uma figura
difusa, mas bastante adequada para as instâncias de ação política na
esfera pública, que repercute uma noção de humanidade. Naquele dis-
curso, o senador dizia que “relembrar essa data é um dever de todos nós,
que buscamos a sobrevivência e a perenidade como espécie humana”.
No ano seguinte, Crivella tomou o microfone do Senado para ho-
menagear o Rosh Hashaná, o ano novo hebraico. Na ocasião, ele fez uma
síntese dos eventos mais relevantes da história do Antigo Testamento e
explicou aos colegas que “nós estamos no ano 2007 depois de Cristo,
e eles [os judeus] estão no ano 5768”.10 Em 2008, o senador voltou a
contar a história de Israel, partindo de Abraão e da Bíblia para avançar
ao contexto histórico da Segunda Guerra.11 Em 2010, já no segundo
mandato como senador, Crivella continuou tematizando a narrativa bí-
blica e histórica israelense. Ele discursou sobre os vínculos estabelecidos
entre aquele país e o Brasil, referindo-se a posições compartilhadas no
plano político e ao interesse turístico manifestado por muitos brasileiros
na Terra Santa. Além disso, suas falas destacavam as datas oficiais que
visam produzir memória sobre a participação judaica na história brasi-
leira, como o Dia da Imigração Judaica, definido para 18 de março (lei
nº 12.124).12
Em conjunto, seus discursos e projetos indicam que fosse como
senador, como cantor ou como bispo (que viajou para Israel dezenas
de vezes), havia de sua parte uma afinidade manifesta com certas ques-
tões judaicas antes de sua eleição a prefeito do Rio de Janeiro. Assim,
ao encabeçar a chefia do Executivo e presidir o lançamento da pedra
fundamental do Memorial do Holocausto, Crivella aprofundava uma
relação específica mantida com o judaísmo e com setores da comuni-
dade judaica. Nessa relação, os atores da IURD, entre outros cristãos,
atuam como sujeitos políticos que partilham estéticas e a “ideia da his-
tória como destino comum” (Rancière, 2009, p. 58), da qual parti-
cipam como agentes, influindo em projetos públicos de produção de
memória. Eles mediam e reposicionam fronteiras político-culturais-re-
10 Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/pronunciamentos/-/p/texto/370057. Acesso em: 10
ago. 2020.
11 Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/pronunciamentos/-/p/texto/373807. Acesso em: 10
ago. 2020.
12 Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/pronunciamentos/-/p/texto/387042. Acesso em: 10
ago. 2020.

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ligiosas ao reconstituir a história do Holocausto de maneira a conectar
a narrativa historiográfica moderna com elementos de uma escatologia
baseada em símbolos e lugares da tradição judaico-cristã.

Arquitetura de um projeto judaico


Na cerimônia de lançamento da pedra fundamental antes mencio-
nada, Teresa Bergher figurava como Secretária de Assistência Social e Di-
reitos Humanos do município, cargo assumido em 2017, no início do
governo Crivella. Embora eles estivessem unidos naquele momento, a
história de suas motivações para apoiar a construção do memorial era
distinta uma da outra. De sua parte, Teresa acumulava uma trajetória de
vários mandatos como vereadora municipal (PSDB), dando prossegui-
mento à vocação e aos projetos iniciados pelo seu falecido marido Gerson
Bergher (1925-2016). Gerson era filho de imigrantes de origem judaica,
formado em medicina e foi vereador do Rio por três mandatos (PSDB),
dos anos 1990 ao início dos 2000, sendo depois eleito deputado estadual.
Num discurso em sua homenagem, o ex-prefeito carioca Cesar Maia disse
que “nenhum político fez a representação da sua base” como ele.13
Na primeira gestão de Maia (1993-1996), Gerson estava em sin-
tonia com a nova política de urbanismo que passava a se valer da le-
gislação ambiental para evitar a ocupação de diferentes áreas urbanas
por favelas, então designadas pelo poder público como uma “ameaça
ambiental” (Compans, 2007). Depois da inauguração da Secretaria
Municipal do Meio Ambiente, em 1994, a Prefeitura passou a utilizar a
legislação condizente com tal órgão para criar unidades de conservação
e tombá-las via Executivo municipal, definindo-as como áreas não edi-
ficantes. Nessa conjuntura, Gerson assinou o projeto de lei para criação
do Parque Bosque Jerusalém na Barra da Tijuca (lei nº 2.331/95) e fez
campanha para a criação do Parque Yitzhak Rabin, em Botafogo (decre-
to municipal nº 14.457/95), ambos aprovados.
No mandato seguinte, já sob a gestão de Luiz Paulo Conde (1997-
2000), Gerson propõe à Prefeitura a realização de um concurso de pro-
jetos para a construção de um memorial às vítimas do Holocausto. Ideia
13Disponível em: https://mail.camara.rj.gov.br/APL/Legislativos/discvot.nsf/5d50d39bd976391b83256536006a250
2/73a1453d71ff763383257fc40060c4f7?OpenDocument. Acesso em: 10 ago. 2020.

132
aceita, o concurso foi organizado pela regional carioca do Instituto de
Arquitetos do Brasil (IAB-RJ), à qual o prefeito era vinculado. O pro-
jeto vencedor foi o de autoria do arquiteto e urbanista André Orioli,
recém-egresso da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Nos planos
apresentados, o Memorial às Vítimas do Holocausto seria criado em
espaço aberto, localizado junto à praia de Botafogo, no qual se destaca-
ria um obelisco composto por dez cubos de concreto empilhados ver-
ticalmente, sendo o da base cortado diagonalmente e com a inscrição
“Não matarás”, remetendo aos Dez Mandamentos presentes na Torá e
no Gênesis da Bíblia (imagem 2).

Imagem 2 – Croqui do primeiro local escolhido para


a construção do memorial, na enseada de Botafogo

Fonte: Site de Gerson Bergher.14

Naquele momento, o Parque do Flamengo, projetado por Affonso


Eduardo Reidy e Roberto Burle Marx, era objeto de uma política de
revitalização que visava acentuar o caráter turístico da cidade. Ao longo
dos quase quatro quilômetros de sua extensão, o parque já abrigava o
Museu de Arte Moderna (1948), o Monumento a Estácio de Sá (1973)
projetado por Lucio Costa, o Museu Carmem Miranda (1976) e o Mo-

14 Disponível em: http://www.gersonbergher.com.br/2016/12/07/memorial-as-vitimas-do-holocausto/. Acesso em:


20 out. 2020.

133
numento Nacional aos Mortos da Segunda Guerra Mundial (1960),
mais conhecido como Monumento aos Pracinhas, em referência às ví-
timas que integravam a Força Expedicionária Brasileira. Considerando
as instalações preexistentes, o vereador Gerson Bergher apresentava a
proposta de construção do novo memorial como uma demanda da co-
munidade judaica local. O memorial seria um marco urbano que cola-
boraria na valorização de sua identidade e história.
Depois do concurso, André Orioli, autor do projeto vencedor, foi
contratado pelo Instituto Pereira Passos (IPP), responsável por políticas
urbanísticas na cidade. Começaram então a ser feitos estudos sobre a
viabilidade do projeto, sua relação com o Parque do Flamengo (inscrito
no Livro do Tombo Paisagístico do Iphan desde 1965), além de sua
interferência na circulação das pessoas na orla. Segundo a atual Coorde-
nadora de Estudos e Planos da Prefeitura Municipal do Rio, Cláudia de
Freitas Escarlate, arquiteta vinculada ao IPP na época de análise do pro-
jeto, concluiu-se que o memorial deveria ser edificado em outra área. O
plano de construção sofre seu primeiro esfriamento.15
Anos depois, a equipe envolvida no projeto passa a aventar a sua
implementação em área próxima à praia de Botafogo, mas em topo-
grafia distinta, no alto do Morro do Pasmado, na área que engloba o
Parque Yitzhak Rabin. De acordo com Escarlate, as razões para a esco-
lha derivavam, primeiro, do fato de se tratar de uma área aberta e sem
nenhum tipo de circulação ou edificação no entorno imediato que seria
afetada pela disposição do memorial. A construção era vista também
como uma benfeitoria à “área degradada” (voltarei a esse tema adiante).
Em terceiro lugar, a região seria propícia ao memorial porque abaixo
do morro se encontra o edifício da Associação Religiosa Israelita (ARI),
construído em 1958 com projeto do modernista Henrique Mindlin.16
Assim, a escolha desse terreno tanto confirmava quanto reforçava uma
toponimização judaica do espaço urbano.
Apesar das várias afinidades alegadas entre o memorial e o morro,
considerava-se que o custo da edificação seria elevado, razão pela qual o
15 Informações fornecidas na Audiência Pública promovida pela Comissão de Cultura da Câmara Municipal do Rio
de Janeiro em 4 de junho de 2019 para debater as obras do “Memorial às Vítimas do Holocausto”. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=WR1IwP0ttVU&t=3542s. Acesso em: 10 ago. 2020.
16 Formado em São Paulo, Mindlin trabalhou por anos no Rio, tendo sido diretor-secretário do MAM-Rio (1956) e
autor de projetos do edifício Avenida Central, no Largo da Carioca (1957-58).

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poder público engaveta o projeto novamente. Não obstante, Gerson e
Teresa Bergher seguem em campanha nos seus mandatos subsequentes
como vereadores. Em 2007, Teresa aprova um projeto de lei, que define
que “fica criado o Memorial às Vítimas do Holocausto e respectivo Cen-
tro Cultural, a ser instalado no Aterro do Flamengo” (lei nº 4665/07),
ou seja, voltando ao projeto original, de André Orioli. Mesmo com a
criação em termos legislativos, a construção efetiva permanece irreali-
zada. Nesse meio tempo, aventa-se a instalação em uma terceira área,
bem afastada do Morro do Pasmado e do Parque do Flamengo. Em
2014, Gerson Bergher conta em entrevista que o local escolhido para
as obras seria o Bosque Jerusalém, na Barra da Tijuca – espaço que ele
havia transformado, em projeto aprovado pela Câmara, em parque mu-
nicipal. Na matéria jornalística, afirma-se que as obras custariam cerca
de R$ 4,5 milhões à Prefeitura Municipal.17
Entre as idas e vindas do projeto e dos locais para sua edificação,
foi somente quando Crivella ocupou o cargo de prefeito que os planos
do memorial começaram a se materializar. Segundo Teresa Bergher, teria
sido o próprio Crivella quem escolheu o mirante do Pasmado como local
definitivo para o memorial.18 Foi também o prefeito que apoiou a criação
da Associação Memorial do Holocausto, presidida por Arnon Velmovit-
sky,19 que passaria a gerir os custos da obra bancada pela iniciativa priva-
da, e não mais pelo poder público. Em 2017, a Prefeitura usa seus canais
de comunicação para divulgar a retomada do projeto do memorial. Em
2018, Crivella cede o uso do terreno do Parque Yitzhak Rabin à Associa-
ção por trinta anos e realiza o show gospel cuja renda, no valor de 130 mil
reais, iria ajudar no projeto.20 Duas décadas depois de sua idealização, o
memorial finalmente saía do papel. De sua parte, Teresa celebrou o fato
como a realização de um sonho idealizado pelo marido.
17 Disponível em: https://odia.ig.com.br/_conteudo/noticia/rio-de-janeiro/2014-08-29/barra-tera-memorial-sobre-o-
-holocausto.html. Acesso em: 10 ago. 2020.
18 Informações fornecidas na Audiência Pública promovida pela Comissão de Cultura da Câmara Municipal do Rio
de Janeiro em 4 de junho de 2019 para debater as obras do “Memorial às Vítimas do Holocausto”. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=WR1IwP0ttVU&t=3542s. Acesso em: 10 ago. 2020.
19 Atual presidente da Federação Israelita do Estado do Rio de Janeiro (Fierj), instituição que apoiou a campanha
de Jair Bolsonaro à presidência em 2018. Em 2015, Arnon Velmovitsky e o Pastor Everaldo integraram a comitiva
de Eduardo Cunha (PMDB), então presidente da Câmara dos Deputados, em viagem a Jerusalém. Disponível
em: https://oglobo.globo.com/brasil/presidente-da-camara-viaja-israel-com-pastor-everaldo-comitiva-de-9-depu-
tados-16349651. Acesso em: 10 ago. 2020.
20 Disponível em: https://blogs.oglobo.globo.com/ancelmo/post/saiba-quanto-arrecadou-o-show-de-crivella-para-o-
-memorial-do-holocausto.html. Acesso em: 10 ago. 2020.

135
A conjunção entre os interesses de Crivella e os do casal Bergher,
representando parte da comunidade judaica, encontrou naquele mo-
mento um ápice. Poucos meses depois do rito de lançamento da pedra
fundamental, Teresa foi exonerada do cargo de Secretária de Assistên-
cia Social e Direitos Humanos da Prefeitura sem nenhuma notificação
prévia. De volta à Câmara Municipal, a vereadora passou a atuar como
oposição ao governo. Ela apoiou um pedido de impeachment aberto
contra Crivella e, em discurso feito sobre ele na tribuna da Câmara,
disse que “a igreja perdeu um grande cantor gospel; e a cidade, infeliz-
mente, não ganhou um grande prefeito”.21 Apesar do afastamento entre
eles, a convergência de seus interesses na criação do memorial foi deci-
siva para a viabilização do projeto. Uma dinâmica semelhante marcou
a posição da comunidade judaica no Rio em relação ao novo local de
memória. Em contraste com o cisma interno observado há alguns anos
durante a campanha presidencial de Bolsonaro, que foi apoiada por
setores sionistas e criticada por outros,22 a construção do memorial não
provocou maior dissenso dentro da comunidade.

Monumento contra a paisagem


Depois de oficializado o destino do memorial, vários atores co-
meçaram a protestar contra a decisão da Prefeitura, evocando questões
de representatividade e das regulamentações do patrimônio. Entre eles,
estava a Associação de Moradores de Botafogo (AMAB), que reclamava
uma consulta aos residentes do bairro e sua participação nos processos
decisórios relacionados à construção. A associação criou a petição on-
-line “Pela proteção do Mirante do Pasmado”, com mais de 200 mil
assinaturas. Na descrição do documento com as firmas de apoiadores, a
AMAB ressalta que “o projeto foi idealizado para um local térreo e não
para o topo de um Mirante com visibilidade nacional e internacional,
prejudicando uma das mais belas paisagens do Rio”.23
21 Discurso realizado no dia 28 de novembro de 2019. Disponível em: https://mail.camara.rj.gov.br/APL/Legisla-
tivos/discvot.nsf/5d50d39bd976391b83256536006a2502/fb352926fc99d17b832584c0006217d9?OpenDocumen-
t&ExpandSection=1#_Section1. Acesso em: 10 ago. 2020.
22 Disponível em: https://extra.globo.com/noticias/brasil/manifestantes-fazem-protesto-na-hebraica-contra-palestra-
-de-jair-bolsonaro-21154692.html. Acesso em: 10 ago. 2020.
23 Disponível em: https://www.change.org/p/prefeito-marcelo-crivella-pela-prote%C3%A7%C3%A3o-do-miran-
te-do-pasmado. Acesso em: 10 ago. 2020.

136
Nesse ponto, o argumento utilizado pela AMAB replicava o elabo-
rado por arquitetos e profissionais do Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional (Iphan-RJ) e do comitê brasileiro do International
Council on Monuments and Sites (Icomos).24 As duas instituições par-
ticiparam do processo para a obtenção do título de Patrimônio Mun-
dial pelo Rio de Janeiro junto à Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Para tanto, elas propuseram
a utilização de uma nova tipologia, a de “Paisagem Cultural”, que per-
mitiria englobar o “valor universal excepcional” que resulta da compo-
sição urbana, natural e cultural da capital fluminense (Ribeiro, 2020,
p. 32). O título foi alcançado em 2012, e a cidade se tornou a primeira
“paisagem cultural” do Patrimônio Mundial.
A manutenção desse título internacional, que reforça uma imagem
de excepcionalidade do Rio de Janeiro, inclusive como destino turísti-
co, se revelou um ponto nevrálgico nas críticas à escolha do Morro do
Pasmado para instalação do memorial. No argumento defendido por
arquitetos, geógrafos e especialistas do patrimônio, enfatiza-se que o
projeto original dos anos 1990 foi pensado para estar no nível do mar.
Ao deslocarem o memorial e seu monumento vertical de mais de 20
metros de altura para o topo de um elevado, Prefeitura e seus aliados
no projeto estariam colocando em risco a integridade de um conjunto
paisagístico patrimonializado em diferentes âmbitos.
Em relação ao título mais recente, obtido junto à Unesco, o obe-
lisco revestido em granito em tom amarelado acarretaria uma alteração
visual nas “zonas de amortecimento” que compõem o entorno próximo
das “áreas exemplares” do patrimônio mundial.25 No caso carioca, essas
áreas englobam dois núcleos: um destacado pela floresta da Tijuca, o
Corcovado e o Cristo Redentor, e outro composto pelo conjunto do
Parque do Flamengo, o Pão de Açúcar, a orla da praia até Copacabana e
as pedras e imediações do outro lado da baía de Guanabara, até Niterói.
Na categorização criada especificamente para o Rio de Janeiro, aquilo
que participa do horizonte, seja resultado da intervenção humana, seja
da natureza, incluindo o mar, constitui a “paisagem cultural” – cujo
entorno colabora em sua preservação.
24 O Icomos é um conselho não governamental, criado em 1965, que integra diversos fóruns de discussão internacio-
nais sobre a nomeação e conservação do patrimônio cultural mundial (Castriota, 2020).
25 Disponível em: https://docomomo.org.br/wp-content/uploads/2016/01/067-1.pdf. Acesso em: 10 ago. 2020.

137
A ideia de proteção do “entorno” dos locais patrimonializados está
presente também nas políticas nacionais de tombamento, sobretudo
quando se abordam sítios inscritos como patrimônios paisagísticos,
como no caso carioca. Segundo aqueles que protestam contra o local
destinado ao memorial, o mirante do Pasmado segue sob proteção fe-
deral e a Prefeitura Municipal estaria violando as definições do Patri-
mônio. Para a ex-vereadora, Sônia Rabello (PV), que já atuou como
conselheira de instâncias do patrimônio estadual do Rio de Janeiro e
do Iphan, o mirante do Pasmado pode ser incluído nos tombamen-
tos feitos em 1938 e 1973.26 O primeiro, realizado no ano seguinte à
criação do Serviço do Patrimônio, refere-se aos “Morros da cidade do
Rio de Janeiro”, então Distrito Federal, tombados como “Patrimônio
Natural”. Em 1973, o tombamento pelo órgão federal individualiza e
nomeia os Morros do Corcovado, da Urca e o Pão de Açúcar, entre ou-
tros (Processo 869-T-73), produzindo um mecanismo legal para evitar
iniciativas como a da concessionária do Caminho Aéreo Pão de Açúcar
que planejava, na época, construir uma edificação de três andares no lo-
cal. No último tombamento, o morro do Pasmado seguiria coberto pela
legislação ao fazer parte do entorno paisagístico de áreas que compõem
o imaginário de cartão-postal.
Nesse aspecto, a perspectiva contrária à edificação do memorial no
Pasmado revela um olhar que enfoca a paisagem historicamente conso-
lidada da cidade. Desde o século XIX, a região da baía de Botafogo e do
Pão de Açúcar vem sendo reproduzida por vias oficiais e vernaculares
de modo a estabilizar um clichê do Rio de Janeiro. Os panoramas dos
antigos daguerreótipos de Marc Ferrez e os posts nos aplicativos de ima-
gem como o Instagram são dois extremos de um processo complexo no
qual a singularidade da cidade foi traduzida em termos de uma unidade
estética. À medida que a urbe se expandiu para a atual zona sul, região
com alta concentração de capital simbólico e financeiro, a composição
visual do seu horizonte assumiu a função metonímica da cidade, assim
como o retrato o faz em relação à totalidade da pessoa.

26 Disponível em: http://www.soniarabello.com.br/morro-do-pasmado-o-tombamento-ignorado/. Para acessar a lista


de bens/sítios inscritos no IPHAN: http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Lista%20de%20Proces-
sos%20de%20Tombamento.pdf. Acessos em: 10 ago. 2020.

138
O recorte do visível que configura a condição de existência de toda
fotografia possui, aliás, uma afinidade com a forma como Georg Sim-
mel concebia a ideia mesma de paisagem. Para o autor (1996 [1912]),
enquanto o que se chama de “natureza” seria caracterizado por uma
continuidade infinita, sem início ou fim, a “paisagem” resulta de uma
composição particular entre o existente, fruto da ação humana ou não,
e a percepção de um observador que apreende aquilo que vê como uma
unidade. Cada paisagem seria, assim, um recorte que pode ser individu-
alizado em relação a outros e que, ao afetar o observador, é apreendido
como homogêneo em si mesmo (característica que não resulta de ne-
nhuma composição natural prévia). Simmel sublinhava que a paisagem
nasceu com a formação do olhar romântico e moderno, que delineia
aquilo que apareceria como excepcional ou pitoresco na natureza. Logo,
a paisagem resulta de convenções que interligam dimensões espaciais,
sua experiência, e o próprio olhar.
Baseados nesse raciocínio, podemos considerar que a paisagem que
se colocava em questão na controvérsia que se formou em torno da área
urbana escolhida para o memorial se configurava como uma unidade
estética cuja excepcionalidade foi acentuada estrategicamente. Ao acio-
narem as categorias do patrimônio para se falar da paisagem, os críticos
ao local do memorial não apenas a viam, como espectadores, mas se
posicionavam como observadores, cuja visão resulta de “um determi-
nado conjunto de possibilidades, estando inscrito em um sistema de
convenções e restrições” (Crary, 2012, p. 15). Assim, junto à existência
de representações visuais consolidadas sobre o Rio de Janeiro, nota-se
que a contenda em torno do memorial evidenciava um atrito entre um
sistema de (re)conhecimento do espaço urbano-natural, baseado na lin-
guagem do patrimônio, com outras formas de apreensão e enquadra-
mento desse espaço. No ponto de vista dos críticos, o obelisco dotado
de uma austeridade estética próxima ao estilo modernista, marcado pela
rigidez das formas não figurativas, se torna uma obstrução ao olhar. Em
suma, aquela forma de transposição plástica dos Dez Mandamentos
equivaleria a uma intervenção iconoclasta sobre a paisagem do Rio de
Janeiro na medida em que afetaria a autenticidade de um patrimônio
consagrado. Segundo os profissionais do Iphan-RJ e do Icomos-Brasil,

139
diversas medidas protetivas dos tombamentos e títulos já adquiridos
pela cidade estavam sendo desrespeitadas pelo projeto em curso.

Críticos e apoiadores reunidos


A partir de 2018, atores favoráveis e contrários ao local da edificação
passaram a fazer declarações públicas de modo a compor um cenário de
controvérsias. Em 4 de junho de 2019, já com a construção avançada,
boa parte dos discursos em disputa foram reunidos em uma audiência
pública promovida na Câmara Municipal. Na coordenação da audiência,
estavam os vereadores de esquerda, e oposição a Crivella, Reimont (PT) e
Tarcísio Motta (PSOL). Em suas falas, ambos ressaltaram que a audiência
resultava de uma demanda manifestada pelas instituições e grupos que
questionavam a escolha do Morro do Pasmado para a edificação.
O vereador petista que presidia a mesa usava no paletó um broche
do monumento do Cristo Redentor, um símbolo-chave do imaginá-
rio moderno associado ao Rio (Giumbelli, 2014). Naquele ambiente, a
miniatura do Redentor aparecia como uma insígnia que identificava o
político como um mediador do poder público capaz de produzir algum
efeito sobre o andamento das obras de um memorial que interfere no
patrimônio. O papel mediador se confirmava na organização das falas
de opositores e apoiadores do plano executado pela Prefeitura e pela
Associação Memorial do Holocausto. Entre os críticos, estavam a ex-ve-
readora municipal e ex-colaboradora do Iphan, Sônia Rabello (PV), o
arquiteto e urbanista Julio Sampaio, vinculado ao Icomos-Brasil, além
de uma representante da Associação dos Moradores de Botafogo (iden-
tificada na audiência, mas que não discursou). Entre os apoiadores, es-
tavam vários profissionais da gestão Crivella (como a arquiteta Cláudia
de Freitas Escarlate), que faziam coro às posições defendidas por Teresa
Bergher e Arnon Velmovitsky, também presentes. Além deles, Marcelo
Rotenberg, representante do escritório de arquitetura responsável pelas
obras em curso, Carlos Reiss, curador do Memorial do Holocausto de
Curitiba, o primeiro do gênero no Brasil, e Beatriz Kushnir, historiado-
ra e diretora do Arquivo Geral da cidade do Rio de Janeiro, avoluma-
ram os argumentos favoráveis ao prosseguimento das obras.

140
Os reclamantes da audiência diziam haver problemas técnicos nos
processos que autorizaram a instalação no Morro do Pasmado e que eles
violavam princípios de preservação do patrimônio vigentes em escala
nacional e internacional. Além de estar englobada na zona de amor-
tecimento de sítios tombados, aquela parte alta de Botafogo teria se
tornado uma “área não edificante” desde que se criou no local o parque
municipal Yitzhak Rabin. De sua parte, os defensores das obras trata-
ram de desqualificar esses argumentos por duas frentes: na primeira,
reiteravam que tudo estava sendo feito de acordo com as leis que regi-
mentam a construção naquele espaço urbano. Como vários se vinculam
ao poder público, eles estavam lidando diretamente com os trâmites
burocráticos necessários para concretizar o projeto dentro dos termos
da lei – inclusive alterando-a, se necessário (Melo, 2020, p. 147). Na
segunda frente de argumentos, os favoráveis às obras deixavam de falar
da questão patrimonial e jurídica para realçar os benefícios culturais,
urbanos e turísticos que resultariam do novo memorial.
A sucessão de discursos compôs um ambiente no qual as alega-
ções contrárias eram minimizadas e as favoráveis aplaudidas pelo pú-
blico presente. Perante tal contraposição de forças, Sônia Rabello e Ju-
lio Sampaio abandonaram o plenário na metade da audiência. Após
sua retirada, o evento prosseguiu como uma elegia ao memorial e suas
qualidades. Entre os que defendiam o projeto, havia figuras autoiden-
tificadas como representantes de grupos cigano, negro e LGBT, um
sobrevivente judeu do Holocausto e muitos integrantes da Assembleia
de Deus. Nenhuma das falas feitas no púlpito da Câmara mencionou
publicamente a Igreja Universal – um silêncio que talvez resultasse de
uma estratégia para evitar possíveis críticas à confluência de interesses
religiosos e políticos manifestada por personagens como o bispo licen-
ciado Crivella. Os assembleianos se identificavam usando camisetas nas
cores da bandeira israelense e portavam réplicas dela, que tremulavam
em apoio às falas que enalteciam o memorial e sua conexão com Israel.
A audiência pública se encerrou oferecendo uma oportunidade
para vários setores manifestarem seu apoio à criação do memorial na
cidade. Se, a princípio, o projeto foi identificado como resultado de
uma demanda antiga de representantes da comunidade judaica carioca,

141
finalmente atendida, as justificativas para sua recente realização con-
fluíam ao projetar um papel educativo e cultural mais amplo ao espaço
de memória. O novo equipamento urbano foi descrito reiteradamente
como um instrumento de ensino para as novas gerações. Seus ensina-
mentos, embora partissem do repertório das vítimas judaicas do Ho-
locausto, abordariam outros grupos perseguidos e contribuiriam à for-
mação dos visitantes independentemente de suas origens e identidades
étnico-raciais ou religiosas.
Em síntese, a perspectiva mais reforçada na audiência enquadrava
o memorial como um instrumento “cultural” que tematiza um trau-
ma histórico e “humano” em geral. Apontei anteriormente que essa foi
uma estratégia discursiva empregada também por Crivella em outras
ocasiões. Em seus mandatos como senador, ele fez menção à persegui-
ção nazista aos judeus e outras minorias para evocar os “princípios da
dignidade humana” e dos “direitos humanos”, concluindo que “todos
somos iguais, independente de raça, credo, sexo ou origem social”.27
Reproduzindo um argumento semelhante, os defensores do memorial
enfatizaram sua inserção na paisagem urbana como ferramenta para
construir uma memória pública, atribuindo a ele uma função análoga a
outros monumentos voltados à história contemporânea.

Dispositivos estéticos e marcos para a memória


Na medida em que o memorial deixa de ser pensado em relação
à paisagem e ao patrimônio, alternamos entre uma perspectiva que o
observa de longe e de fora, como figura que se destaca indevidamente
em um horizonte excepcional preexistente, para enxergá-lo de perto e
dentro. Para seus defensores, o memorial deve se tornar um marco e
um repositório de uma memória que se quer tornar pública, não apenas
em termos de sua visibilidade, mas da inclusão do Holocausto como
um tema difundido amplamente, de maneira semelhante aos conte-
údos expositivos de outros centros culturais e museus que colaboram
na formação de seus visitantes. Esse dado se reforça com a entrada do
Instituto de Desenvolvimento e Gestão (IDG), entidade privada espe-
27 Pronunciamento realizado em 25 de janeiro de 2006. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/
pronunciamentos/-/p/texto/359731. Acesso em: 10 ago. 2020.

142
cializada em gestão de projetos e centros culturais, na coordenação das
exposições e curadoria do memorial. No Rio, a empresa é responsável
pela gestão do Museu do Amanhã e participa da restauração do Cais do
Valongo. Em relação ao Memorial do Holocausto, o IDG informa que
“o objetivo do espaço será proporcionar reflexão sobre a importância
dos direitos humanos, da democracia, da justiça, da tolerância, da liber-
dade, do respeito à diversidade e ao pluralismo”.28
Nota-se, outra vez, como as falas oficiais em torno do memorial
evitam a particularização étnico-religiosa enfatizando seu caráter plura-
lista. Ocorre, não obstante, que o caráter generalista atribuído ao tema
do Holocausto coexiste com os vetores e interesses que representam
grupos específicos. Um olhar atento à biografia do memorial e à sua
materialidade nos indica que as redes que condicionam sua forma atual
de existência estão ancoradas em instituições e saberes compartilhados
pela comunidade judaica. Diante dos diversos grupos também per-
seguidos, antes e durante a Segunda Guerra na Europa, muitos pes-
quisadores judeus e israelenses se destacaram tanto para promover a
contínua historicização daqueles eventos de grande magnitude quanto
para visibilizar publicamente esse conhecimento, inclusive por meio de
aparelhos urbanos – como monumentos, museus e memoriais – que
colaboram na ampliação do público potencialmente atingido pelo con-
teúdo histórico. Como era possível notar na audiência pública de 2019,
não raro os especialistas e representantes das instituições que trabalham
com o tema do Holocausto manifestam ter ascendência judaica.
No planejamento do memorial no Rio, cuja inauguração foi pror-
rogada em decorrência da pandemia mundial, o know-how judaico-
-israelense sobre o Holocausto teve preponderância na orientação dos
parâmetros narrativos e estéticos acionados para contar sua história. De
acordo com o arquiteto Marcelo Rotenberg e o curador Carlos Reiss, o
modelo expositivo que guiará o trabalho curatorial no memorial carioca
é baseado no museu Yad Vashem,29 de Jerusalém, que também serve de
28 Disponível em: https://www.idg.org.br/pt-br/node/666. Acesso em: 10 ago. 2020.
29 O Yad Vashem foi criado, em 1953, pelo parlamento de Israel como memorial oficial para a recordação dos már-
tires, heróis e vítimas judaicas do Holocausto. Quarenta anos depois, em 1993, ele se ampliou e passou a integrar a
Escola Internacional para o Estudo do Holocausto. Em 2005, o memorial foi reinaugurado como Museu Histórico
do Holocausto e, aproximando-se do tempo presente, passou a ser um dos museus do gênero mais visitados do
mundo, contando com diversas ferramentas expositivas e multimídia. Disponível em: https://www.yadvashem.org/
museum/holocaust-history-museum.html. Acesso em: 10 ago. 2020.

143
referência para o Museu do Holocausto de Curitiba, inaugurado em
2011, e para o museu homônimo de São Paulo, aberto em 2017.
Segundo Rotemberg e Reiss, o memorial carioca busca mimetizar
certos efeitos que a arquitetura e as exposições do Yad Vashem provo-
cam em seus visitantes. Embora as formas arquitetônicas no caso bra-
sileiro e israelense sejam bem distintas, uma em formato redondo e
plano, outra piramidal e aberta em seu topo, um dado comum entre as
construções de cada país estaria no fato de que parte da edificação de
ambas se situa abaixo do solo – integrando-se à topografia local. Assim,
enquanto os profissionais do patrimônio enfocavam os efeitos mate-
riais e estéticos negativos do memorial com seu obelisco, o arquiteto
encarregado pelo projeto acentuava a contiguidade entre o memorial
e o terreno que o abriga (imagem 3). A relação dos memoriais com o
solo é complementada, ainda, pelo contraste da experiência mantida
nos ambientes internos, com luz artificial e controlada, onde se toma
contato com a história sombria do Holocausto, e o cenário que se des-
vela ao fim das visitas: no Yad Vashem, o tour se encerra com uma vista
panorâmica da planície onde está a cidade de Jerusalém; no Rio, ele se
completa com a baía da Guanabara e parte da cidade, que ganham uma
nova mediação e enquadramento.

Imagem 3 – Vista aérea do Morro do Pasmado, em


divulgação do Memorial do Holocausto do Rio

Fonte: Instituto de Desenvolvimento e Gestão (2020).

144
Assim como no museu israelense, a exposição no exemplar cario-
ca será organizada, segundo seus curadores, em um sequenciamento
narrativo que tematiza “a vida” antes, durante e depois do Holocausto.
Os visitantes deverão entrar por uma porta e sair por outra, fazendo no
entremeio um trânsito entre obras, documentos, artefatos e projeções
multimídia. Ao se espelhar na curadoria do Yad Vashem, adequando-a
às dimensões do memorial carioca, os responsáveis pelo projeto visam,
primeiramente, colocar os visitantes em contato com as rotinas de co-
munidades judaicas antes da guerra, permitindo que os não vinculados
a esse coletivo ou não conhecedores de sua história possam estabelecer
uma conexão preliminar com eles. Depois dessa contextualização é que
a exposição avança rumo ao momento mais sinistro do nazismo.
Ao adotar tal expediente, a curadoria do memorial se aproxima de
outros museus de arte ou de história que também constroem um dra-
matis personae com base em seus acervos e exposições (Duncan, 2008).
E, assim como essas instituições se valem de várias ferramentas estéticas
para produzir “uma experiência profundamente transformadora, um
ato de identificação imaginativa entre o espectador e o artista” (Dun-
can, 2008, p. 128), igualmente o memorial busca afetar seus públicos
intelectual e emocionalmente. Ao enfocar a morte em uma dimensão
monumental, representada pelas milhões de vítimas do nazismo, a
curadoria visa provocar uma conexão entre os repertórios emocionais
dos visitantes, com suas formas de expressão socialmente orientadas, e
o tema enfocado naquele espaço-tempo particular. Se o empreendimen-
to for bem-sucedido, o Holocausto será percebido sensorial e intelec-
tualmente por uma combinação de dispositivos que atualizam seu luto
junto aos visitantes.
No caso exemplar do Yad Vashem, cujo nome remete a uma pas-
sagem do Antigo Testamento (Isaías, 56:5), na qual Deus promete aos
que lhe renderem homenagem “um memorial e um nome”, uma etapa
marcante na visitação envolve o acesso ao Hall dos Nomes: um espaço
circular, vazado para o alto e para baixo, no qual se acumulam catálogos
que visam incluir os nomes de todos os seis milhões de judeus assas-
sinados na guerra e nos campos de concentração. A forma expositiva
e arquitetônica do espaço, junto com a assustadora cifra de vítimas,

145
colaboram na produção de um sentimento de anormalidade. Essa sen-
sação de estranhamento é, justamente, um dos recursos mais eficazes na
produção e acionamento de memórias.
Ao falar sobre o tema da memória, Mary Carruthers (2011) ressal-
ta que não só as experiências de maior relevo (como as de um trauma)
tendem a ser mais duradoras do que as da vida cotidiana, mas que a
memória se vale de artefatos e lugares para se organizar internamente e
se expressar criativamente. Nesse ponto, a autora sublinha algo que vai
além do caráter inventivo de toda recuperação mnemônica, que rein-
terpreta certo passado com as lentes do presente. Distinguindo o ato
de recordar das “‘coisas’ que os seres humanos podem usar para situar
e sinalizar suas memórias” (2011, p. 75), Carruthers sugere que certos
memoriais servem como marcadores espaciais que ajudam a mapear e
acionar imagens dentro de um repertório mental preexistente.
Em contraste com o argumento sobre a função “educativa” do
memorial carioca, utilizada pelos seus defensores para se falar de um
público hipoteticamente pouco familiarizado com o tema, a abordagem
de Carruthers nos ajuda a pensar as materialidades do memorial –
incluindo ele próprio – com base em sua “função localizadora”, como
coisas que “situam o que pensamos” (2011, p. 72). Em seu argumento,
a autora recupera o exemplo de Halbwachs (1941) sobre a constituição
da topografia sagrada de Jerusalém nos primeiros séculos da era cristã
para demonstrar como um sítio se torna um “lugar comum” nos “mapas
mentais” de peregrinos e fiéis que se deslocavam até à Terra Santa para
encontrar os lugares, ou vestígios dos lugares, já presentes em suas lem-
branças (Carruthers, 2011, p. 77). O dado “comum” dos espaços não
remete a uma banalidade evidentemente, mas à sua busca por públicos
heterogêneos ao longo de séculos para fins semelhantes. Os lugares sa-
grados atuando como marcos espaciais da memória e história religiosa.
De volta ao caso que nos interessa, parece correto considerar ana-
logamente que, entre os visitantes do memorial do Holocausto, aqueles
que detenham alguma informação prévia sobre os eventos históricos e/
ou que valorizem a identidade judaica poderão estabelecer uma relação
com ele que sirva para recuperar e reforçar conhecimentos e imaginários
já formados. A própria criação do memorial se torna um testemunho

146
que ratifica, no espaço urbano, a importância e a veracidade de um con-
junto de informações e imagens partilhadas por diferentes coletivos.

Perigo e purificação da topografia


Para encerrar a análise sobre o novo memorial, gostaria de acessar
outras camadas de história do terreno em que ele se encontra. Diferen-
temente de monumentos voltados a vítimas da Segunda Guerra, como
o Monumento das Passagens dedicado a Walter Benjamin, construído
junto ao cemitério onde seu corpo foi sepultado, na zona fronteiriça
entre a Espanha e a França (Taussig, 2006), o local destinado para a
edificação do memorial carioca não possui nenhum vínculo prévio com
as vítimas do Holocausto. Em verdade, o passado do morro em questão
ressoa a memória obliterada de outras vítimas: aquelas que têm sido
historicamente violentadas por políticas de marginalização e de remo-
ção urbana.
Conforme descreveu Valladares (2000), a história do Rio de Ja-
neiro do final do século XIX e início do XX enquadrou a favela como
um “lócus da pobreza”, da vagabundagem e do crime. Essa representa-
ção, projetada sobre diversos morros, englobava também o Pasmado,
que teve registro de moradores desde 1906, pelo menos. Naquele ano,
foi realizado um Censo na cidade que indicava haver 13 construções
e 65 moradores no local (Gonçalves, 2020, p. 2). A data de realização
do recenseamento remete ao momento da “grande reforma urbana do
prefeito Pereira Passos, […] [que] se propunha a sanear e civilizar a ci-
dade” (Valladares, 2000, p. 7). Datam do mesmo período as primeiras
estigmatizações dos espaços de moradia urbana popular, incluindo o
imaginário estabelecido sobre os “cortiços” e favelas, tidas como regi-
ões que englobam “alguns trabalhadores” e muitos da “classe perigosa”
(Valladares, 2000). Em síntese, espaços abordados como insalubres em
termos sanitários e morais.
A ocupação habitacional do Morro do Pasmado perdurou por vá-
rias décadas, sendo inclusive fotografada e sua imagem utilizada na capa
de uma edição do jornal O Correio da Manhã (23 mar. 1959). Nela, se
anunciava que “Crescem as favelas da cidade não obstante promessas
em contrário da municipalidade” (apud Bizarria, 2014). Uma visibili-

147
dade negativa, portanto, em relação à paisagem urbana. O viés crítico
na abordagem do jornal sobre o Pasmado se reproduz em 1963, quan-
do o diário carioca tematiza a questão “dos favelados” afirmando que
havia uma “gravidade crescente do problema”. Na edição do dia 26 de
março de 1963, argumenta-se que “nem 30% dos favelados precisam
realmente morar em locais tão sórdidos”, sua permanência nos morros
resultaria da “facilidade de burlar a lei” e não pagar impostos (apud
Bizarria, 2014).
A história pregressa do local escolhido para o memorial do Holo-
causto, com seu obelisco disposto no alto de um morro diante do mar,
nos conecta, em verdade, com um passado subterrâneo. Ao analisar a
história do Pasmado, Bizarria (2014) mostra que a narrativa elabora-
da pelo Correio da Manhã contra as favelas e, especialmente, contra o
Pasmado, era veiculada ao mesmo tempo que se produziam campanhas
publicitárias sobre as modernizações da área. Uma estratégia que visava
estimular a especulação imobiliária na região. Primeiro, a criação e a
iluminação do túnel na parte baixa do morro foram anunciadas pela
General Eletric como “um empreendimento que beneficia toda a po-
pulação”. Anos depois, o diário carioca anuncia a “urbanização do Pas-
mado” – em momento em que os seus primeiros moradores, da favela,
ainda permaneciam no local.
A matéria em questão era uma propaganda imobiliária vinculada ao
projeto do arquiteto carioca Sergio Bernardes (edição de 24 nov. 1963).
No jornal, o anúncio do novo empreendimento imobiliário vinha acom-
panhado do retrato de uma socialite da época, exemplificando o tipo de
morador ao qual se destinava o edifício. Já no projeto arquitetônico em
si, nota-se a influência modernista do desenho em que são erigidas duas
torres cercadas por um complexo que integraria o novo condomínio.
A representação gráfica da nova edificação apaga qualquer vestígio das
moradias populares então existentes. Em seu lugar, destaca-se o Casa
Alta isolado e em perspectiva monumental (imagem 4).

148
Imagem 4 – Croqui do Casa Alta (1963), por Bernardes Arquitetura

Fonte: Bernardes Arquitetura.

Para que a especulação imobiliária alcançasse seu objetivo, a es-


tratégia narrativa mantida pelo Correio da Manhã, antes e na época de
publicização do projeto de Bernardes, foi reforçar o estigma e a mar-
ginalização dos moradores de morro (Bizarria, 2014). Estabeleceu-se
a imagem de uma “zona degradada” social, moral e urbanisticamente.
Nessa conjuntura, aquilo que se anunciava como “urbanização” repre-
sentava uma forma de limpeza simbólica e material, como uma modali-
dade de aversão pública impulsionada pela mídia na época.
A expulsão dos moradores do morro ocorreu poucos meses antes
da instauração da ditadura civil-militar no país, dando início ao proces-
so de segregação espacial urbana conhecida como “Era das Remoções”
no Rio, que durou até os anos 1970. Nela, as políticas de remoção dos
governos federal e da Guanabara atingiram níveis inéditos até então, fa-
zendo com que a expulsão se tornasse uma “ameaça sempre presente na
vida das favelas”, sendo executada com “uma repressão nunca vista an-
tes” (Brum, 2012, p. 358). No caso do Pasmado, a violência era vivida
não só na experiência dos moradores que foram deslocados a conjuntos

149
habitacionais a dezenas de quilômetros do local, mas também como
expressão do poder instituído. Um poder político e financeiro que se
expressava de maneira ritualística, assim como num “holocausto”, se
tomarmos a expressão em seu sentido religioso, judaico-cristão, de sa-
crifício oferecido às chamas sagradas. No dia 29 de janeiro de 1964, o
Correio da Manhã anuncia “A fogueira de Botafogo”:

Do morro só restam cinzas e a escada íngreme, desconjuntada,


apontando para o alto. Não podia ser diferente. […] Que venham
abaixo, em cinzas, todas as favelas. Nem por isso a saudade é me-
nor. Nem por isso as lágrimas deixarão de correr, numa tentativa
infrutífera de apagar a fogueira. Uma fogueira que iluminou a noi-
te de Botafogo no Morro do Pasmado. (apud Bizarria, 2014).

Como nos rituais que produzem inferências contraintuitivas em re-


lação às expectativas baseadas na experiência ordinária e, com isso, são
gravadas na memória de seus atores (Boyer, 1999, p. 57), o incêndio que
encerrou com as habitações da favela foi promovido pelo Corpo de Bom-
beiros do Estado da Guanabara. Os homens treinados para evitar os efeitos
destrutivos do fogo eram os responsáveis por ateá-lo. O rito pirotécnico
foi a última etapa das ações de despejo, iniciadas dois meses antes. Nesse
ponto, vale a pena recuperar a tradição antropológica interessada nos rituais
para lembrar que “segundo certas lendas bíblicas o fogo do sacrifício não
é outra coisa senão a própria divindade que devora a vítima ou, para dizer
mais exatamente, o sinal da consagração que a inflama” (Mauss; Hubert,
2005, p. 32). No incêndio em Botafogo, a divindade estatizada sacrificava
o existente para criar algo novo e consagrado em seu lugar. As moradias
populares substituídas pelos apartamentos de luxo.
Nos anos seguintes ao incêndio no Pasmado, as torres do condo-
mínio Casa Alta foram construídas em parte lateral do morro,30 fazendo
com que o seu topo permanecesse sem ocupação para moradia. Justa-
mente esse espaço é que se tornou, nos anos 1990, o parque municipal
Yitzhak Rabin. Portanto, antes de sua ocupação pelas obras do Memo-
rial do Holocausto, o espaço permaneceu sendo utilizado como mirante
e zona de lazer. Quando o projeto do memorial foi reavivado, na gestão
30 O acesso ao condomínio do Edifício Casa Alta pode ser feito pela Praia de Botafogo, nº 528, e pelo Morro do
Pasmado.

150
de Crivella, uma nova modalidade de estigmatização do local passou a
ser feita. Nas justificativas elencadas pelos atores favoráveis tanto ao me-
morial quanto à sua localização em Botafogo, é recorrente o argumento
de “revalorização” da área, que estaria “degradada”.
A produção da aversão dirigida aos pobres no passado, inclusive
com argumentos sanitários, voltou-se no momento recente às identi-
dades e sexualidades dissidentes, tomadas como condutas moralmente
condenáveis e socialmente perigosas. A vereadora Teresa Bergher, na
audiência pública citada anteriormente, afirmou que o memorial iria
“dar dignidade ao local abandonado”, a um “ponto de consumidores de
drogas e prostituição” e onde havia ocorrido um estupro. Embora não
oferecesse nenhum tipo de indício que comprovasse sua fala naquela
ocasião, a vereadora descrevia o parque como sendo um lugar onde se
realiza o “exibicionismo”, no qual “vão pra lá homens e mulheres nus e
ficam desfilando naquele local”. Logo, o perigo estava não no espaço,
mas nas pessoas que se encontram e socializam nele.
Os idealizadores do memorial, que anunciam seu caráter inclusivo
e sua contribuição na defesa “dos direitos humanos”, são os mesmos que
recriminam práticas de sociabilidade e erotismo dissidentes, incluindo
aquelas que podem ser partilhadas consensualmente por minorias como
homossexuais, travestis e outros grupos que se valem da possibilidade
do anonimato para explorar parques urbanos e suas aventuras. Em cada
ocasião, um dos argumentos antagônicos pode ser acionado, segundo os
interesses de seus enunciadores. Crivella, ao longo de sua trajetória como
político-e-religioso, exprime publicamente seu apoio à “manifestação de
um pensamento crítico contra o homossexualismo em geral”. 31 Para ele,
a justificativa para tal afastamento, do “homossexualismo”, estaria no An-
tigo Testamento, que traz a “palavra escrita por Moisés que nos adverte,
há milênios, que o homem que deita com outro homem como se mulher
fosse comete diante dos olhos de Deus uma abominação”.32
Moisés, conforme narrado na Torá e no Antigo Testamento, é o lí-
der dos hebreus na fuga do exílio rumo à Terra Prometida. Assim como
na história de Abraão, Moisés entra em contato com Deus em montes
31 Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/pronunciamentos/-/p/texto/367015. Acesso em: 10
ago. 2020.
32 Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/pronunciamentos/-/p/texto/367015. Acesso em: 10
ago. 2020.

151
sagrados, como o Monte Sinai no Egito, “o monte de Deus” (Freud,
2018, p. 68). É nesse local que ele recebe de Deus as tábuas dos Dez
Mandamentos, a serem ensinados aos hebreus e seus descendentes. Um
aspecto interessante a ser sublinhado nessas referências antigas é que a
imagem de Deus em questão remetia a um deus belicoso. Freud, em seu
estudo sobre Moisés, ressalta que “Jeová era um deus vulcânico” (2018,
p. 67) – não por acaso a divindade era frequentemente representada
como o fogo. Complementarmente, Moisés é narrado nas Escrituras
“como um homem colérico” (Freud, 2018, p. 48), característica que
assume uma posição-chave em apropriações contemporâneas da tradi-
ção judaico-cristã, como na Teologia da Batalha (Mariz, 1999). Uma
teologia que percebe a alteridade como inimigo a ser combatido com as
armas do proselitismo.
No campo das disputas simbólicas e urbanas no Rio de Janei-
ro, a ereção do memorial e de seu totem no Morro do Pasmado é
acompanhada por uma sacralização da topografia. Os processos de es-
tigmatização, conversão e purificação do local se completam com os
planos municipais de “revalorização” da área por meio da criação do
Bosque de Israel e do Bosque das Oliveiras no entorno do memorial.33
Sob o título de “requalificação-ambiental”, o parque já existente poderá
se assemelhar a um dos jardins bíblicos da Igreja Universal. Conforme
informa o poder público, uma área de 200 m2 do morro vai ser cober-
ta por árvores típicas de Israel, incluindo tamareiras, figueiras, cedros
do Líbano e oliveiras. No Rio, o Bosque das Oliveiras será o ponto de
culminância da nova trilha que deve ser formada desde o pé do morro,
avançando rumo ao alto. A depender dos usos que o memorial e seu en-
torno venham a ter nos próximos anos, eles podem se estabelecer como
uma nova região moral da cidade. Uma área convertida esteticamente
para fins “edificantes” em termos urbanos, religiosos ou históricos, re-
querendo códigos de conduta adequados ao novo território.

33 Disponível em: http://portalpcrjwp.hom.rio.gov.br/primeira-dama-sylvia-crivella-lanca-plano-de-requalificacao-


-ambiental-do-morro-do-pasmado/. Acesso em: 10 ago. 2020.

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MONUMENTAIS IMPERFEIÇÕES: ARQUITETURA E ESTÉTICA DE DOIS GRANDES


TEMPLOS CATÓLICOS1

Emerson Giumbelli

Na via sacra [que ornamenta a nave da nova igreja do Santuário


Santa Paulina] está faltando um quadro… o do “Cristo despido
de suas vestes”. Eu apresentei um Cristo em que aparece metade
do bumbum. A irmã guardou. Eu disse: aproveite isso aí para
fazer uma catequese, não esconder… (Fernandes, J., 2019).

A Igreja da Divina Providência, uma das primeiras igrejas mo-


dernas feitas em Guadalajara, muito alta, tinha quatro grandes
vitrais. O pároco era um homem muito crítico, muito moder-
no. Em um dos vitrais, o Cristo foi retratado inteiramente des-
nudo. As pessoas o quebraram com pedradas. Pareceu-lhes uma
falta de respeito. (González Escoto, 2019).

Neste capítulo, intento provocar uma reflexão considerando as


formas arquiteturais de duas igrejas cristãs. Ambas recorrem a desenhos
e materiais modernos e suas dimensões foram concebidas para abrigar
multidões; além disso, estão vinculadas a projetos católicos de santuari-
zação.2 Uma dessas igrejas, construída entre 2003 e 2006, está localiza-
da no sul do Brasil, sendo a principal estrutura do Santuário Santa Pau-
lina. A outra, iniciada em 2007, ainda está em construção; situada nos
arredores da cidade de Guadalajara, no centro-oeste mexicano, servirá
para abrigar o Santuário dos Mártires. Embora o foco do texto sejam as
formas arquiteturais desses templos católicos, algumas características da
devoção às figuras que os inspiram precisam ser consideradas. Quanto à
arquitetura propriamente dita, ela será analisada e problematizada com
base em uma discussão sobre estética.
1 Este texto beneficiou-se de leituras feitas por Renée de la Torre e Fernanda Peixoto, além de ter se alimentado
das trocas de ideias em atividades do MARES (Religião, Arte, Materialidade e Espaço Público: Grupo de Antro-
pologia). Trata-se ainda de resultado da pesquisa apoiada por projeto de produtividade do CNPq, “Arquiteturas
monumentais: religiões e espaço público”.
2 A santuarização envolve dois processos coordenados, associados a políticas da Igreja Católica em vários âmbitos:
beatificações e canonizações de pessoas pelo Vaticano e construção ou ampliação de santuários em locais específi-
cos. Ver, para uma abordagem inicial, Menezes (2012).

159
Para essa discussão, sirvo-me basicamente de dois textos de Geor-
ges Bataille, publicados originalmente em 1929 na revista Documents.
Ainda que Bataille não reclame o tema da estética para designar suas
elaborações, estas conectam dimensões que lhe estão associadas: ideais,
formas, convenções de beleza. São exatamente as conexões que servem
tanto para vincular esses textos com a estética quanto para efetuar al-
guns deslocamentos na sua abordagem. O primeiro deles trata de ar-
quitetura, ou melhor, daquelas composições nas quais se exprime “o ser
ideal da sociedade, aquele que ordena e proíbe com autoridade” (Ba-
taille, 2018a, p. 65). Ao exemplificar o ponto, Bataille escreve sobre os
monumentos como tais ou sobre sua expressão na “forma das catedrais
e dos palácios”. Monumentos, catedrais e palácios são “composições
arquiteturais” na medida em que expressam ideais sociais e estéticos.
O breve texto conclui traçando uma continuidade entre a “evolução
das formas terrestres” e a “ordenação matemática imposta à pedra” (p.
66), pois ambas consagram a estabilidade e são desafiadas por invenções
artísticas – concretamente, a pintura de vanguarda daquela época – que
não respeitam as formas elegantes e estáticas.
O segundo texto do polímato francês trata da “linguagem das flo-
res” (Bataille, 2018b). Novamente, o que está em questão é o ideal de
beleza, ou a beleza como ideal: “se dizemos que as flores são belas, é
porque elas parecem conformes ao que deve ser, isto é, representam, por
aquilo que são, o ideal humano” (p. 75). Bataille dedica-se a desman-
char esse entendimento, seja despedaçando rosas para fazer aparecer
apenas “um tufo de aspecto sórdido”, seja lembrando da fragilidade
das corolas que se revela na murchidão, seja aproximando os elementos
mais elevados das plantas de suas folhagens, talos e, mais fundo ainda,
de suas raízes “que fervilham […] nojentas e nuas como vermes” (p.
78). Assim, a “mais admirável das flores” se reduziria a “um sacrilégio
imundo e fulgurante” (p. 76), pois aponta para o alto quando a maio-
ria de seus elementos depende do que mais baixo há na natureza. Sua
elaboração, é importante mencionar, está vinculada com uma recusa de
interpretações simbólicas em favor de uma abordagem do aspecto – ou
das aparências, mesmo que seja necessário revirar os seres e objetos para
fazê-las emergir.

160
Há nas formulações de Bataille duas indicações que tomarei como
orientações analíticas. Primeiro, essa atenção voltada às aparências, que
corresponde exatamente a uma valorização do aspecto e das formas que
converge com abordagens antropológicas inspiradas em certos enten-
dimentos da estética.3 Em relação às igrejas que pretendo analisar, isso
se traduz no privilégio concedido às soluções arquitetônicas e aos re-
sultados alcançados em cada caso. No santuário brasileiro, uma igreja
que “se parece” com a santa e está vinculada ao lugar em que viveu tem
partes que, pela sua distribuição, destoam das concepções ideais de um
templo – especificamente, a relação entre sagrado e profano. No santuá-
rio mexicano, é a própria aparência geral do templo que sugere formas
outras que não as que caracterizam uma igreja católica. Apresentadas
nesses termos, ambas as construções apontam já para a segunda suges-
tão retirada dos textos de Bataille: a busca pelo ideal gera realizações
que têm a imperfeição como consequência. Em se tratando de templos
cristãos, podemos dizer que sua dedicação ao sagrado convive com a
propensão ao sacrilégio.
A imperfeição, nesses casos, adquire um sentido diferente do ela-
borado por Verkaaik (2014) na instigante análise de duas sinagogas na
Europa. A reconstrução ou restauração dessas sinagogas admite a im-
perfeição, seja na relação com o passado humano, seja baseada em certa
concepção da criação divina. Em minha abordagem, a imperfeição é
um resultado não pretendido, cuja revelação depende da consideração
de aspectos arquitetônicos e de sua relação com os lugares onde se im-
plantam os templos e com as características das devoções. Se essa abor-
dagem não segue apenas as intenções e concepções dos atores sociais
diretamente envolvidos com a construção das igrejas, ela não os des-
considera. Conheci diretamente os santuários, realizei entrevistas com
arquitetos e religiosos nos dois casos, busquei por apresentações textuais
dos respectivos projetos, além de compilar materiais (de primeira ou
segunda mão) que nos dão informações sobre os lugares e as devoções.
É exatamente por uma caracterização das devoções que devo começar
minha análise.
3 Em especial, as elaborações de Meyer (2019) em torno da ideia de “formações estéticas”, que enfatizam a partici-
pação das coisas e das sensações na sustentação de mundos coletivos. Ver neste volume o texto de Aguiar (2020)
para outra utilização dessas elaborações.

161
Devoções incertas, templos salientes
Os dois santuários não resultam de devoções bem estabelecidas ou
antigas. Mais do que isso, trata-se devoções incertas na sua extensão ou
no seu enraizamento, pelos motivos que serão apresentados aqui. Há
uma diferença importante entre as situações, pois o Santuário Santa
Paulina encontra-se em pleno funcionamento, ao passo que o Santuário
dos Mártires Mexicanos está em construção. O primeiro localiza-se na
pequena cidade onde viveu a religiosa no final do século XIX e que já
abrigava estruturas devocionais anteriores ao estabelecimento do novo
templo. O segundo é um empreendimento recente, dedicado ao culto
de um coletivo de beatos e santos de origens diversas, nas imediações
de uma metrópole, em um sítio onde nada religioso havia previamente.
Vejamos por que, nessas situações distintas, os santuários mobilizam o
que denomino devoções incertas, condição que a arquitetura dos tem-
plos não pode desconsiderar.
Antes do ano 2000, existiam não mais que dez santos na Améri-
ca Latina reconhecidos pelo Vaticano.4 Nesse mesmo ano, o México
contribui para mudar significativamente as estatísticas, quando são ca-
nonizados 25 mártires. O que os junta na santidade é terem morrido
no contexto de conflitos ocorridos entre 1910 e 1940 que resultaram
de iniciativas estatais que endureceram o anticlericalismo e das reações
promovidas em nome do catolicismo. O ápice desses conflitos foi a
Guerra Cristera, entre 1926 e 1929, quando desapareceram a maioria
dos canonizados. Sua santificação foi o produto da convergência de dois
processos: de um lado, a política vaticana de santuarização, impulsiona-
da pelo Papa João Paulo II (1978-2005); de outro, a revisão das relações
entre Estado e Igreja Católica no México. O ano de 1992 constitui
um marco desses processos, quando ocorreram as beatificações dos 25
mártires e passou a viger uma nova lei (Ley de Asociaciones Religiosas y
Culto Público) que revisou a laicidade estatal.5

4 Conforme Pérez e Téllez (2011), fonte que utilizo como principal guia no caso mexicano.
5 Esse é também o momento em que chega a termo o longo período dominado por presidentes do partido político
(PRI) que assumiu as posturas anticlericais. Note-se ainda que o México recebeu especial atenção do Vaticano,
tendo sido o país que mais registrou visitas de João Paulo II. Agradeço a Renée de la Torre por essas observações.
Ver o quadro geral sobre as relações entre Estado e Igreja Católica no México contemporâneo que ela desenha em
De la Torre (2012).

162
O Santuário dos Mártires Mexicanos apresenta-se como uma con-
sequência das canonizações, que foram acrescidas de outras treze bea-
tificações em 2005 (uma já resultando em santificação em 2016). A
localização na região de Guadalajara, segunda metrópole mexicana com
quase cinco milhões de habitantes, justifica-se pelo fato de boa parte
dos 38 mártires terem perdido suas vidas em distintas localidades do
estado de Jalisco (de que Guadalajara é a capital). O Santuário reivindi-
ca-se ainda como referência dos demais santos e beatos mexicanos (total
de 55, incluindo alguns que morreram no estrangeiro), e chegou-se a
anunciar que suas instalações abrigariam os restos mortais da maioria
deles.6 Desde 2015, o andamento das obras permite que alguns eventos
ocorram já dentro do templo em construção, embora as atividades mais
frequentes tenham lugar em uma capela provisória nas proximidades.
Quando estiver concluído, o Santuário promete ser o vértice derradeiro
de um triângulo devocional de que os outros dois pontos são a Basílica
de Guadalupe, na Cidade do México, e o monumento do Cristo Rei,
outro santuário no estado de Guanajuato (Castellanos, 2012).
Essa pretensão indica a aposta, nutrida por parte da hierarquia ca-
tólica, de que o Santuário dos Mártires conquiste o estatuto de referên-
cia nacional. Algo que parece estar longe de ser alcançado, em função de
condições que assolam tanto o projeto quanto a devoção relacionados
aos mártires. No que diz respeito à devoção, um primeiro ponto é que
os mártires estão no centro de disputas sobre seu significado, incluin-
do a sua santidade (Silva, C., 2015; González Escoto, 2019; González,
2017). Sua memória é reivindicada por distintos setores do catolicismo
mexicano, podendo assumir valores opostos e pouco conciliáveis (Pérez;
Téllez, 2011). Em outro plano, mais geral, está em jogo a reivindicação
católica sobre seu lugar na memória nacional de um Estado laico. En-
tretanto, o fundamento da santificação depende do argumento de um
envolvimento passivo das vítimas nos conflitos entre Estado mexicano e
Igreja Católica, o que é objeto de empedernido debate no caso de certos
mártires. Outro ponto a ser observado é que, dos 33 santos e beatos,
apenas um ou dois desfrutam de culto significativo. E a razão que ali-
6 Atualmente, a fonte oficial de informação sobre o Santuário dos Mártires Mexicanos é uma página de Facebook:
https://www.facebook.com/smartirescristo/. Quando estive no sítio em dezembro de 2019, recebi alguns materiais
impressos em que também me baseio. Agradeço, por isso, ao Pe. Gerardo Aviña, reitor do Santuário; Pe. Antonio
Gutierrez, do setor de comunicação da Arquidiocese de Guadalajara; Yara Martínez, assessora de imprensa.

163
menta sua popularidade não tem a ver diretamente com as circunstân-
cias de sua morte, e sim com sua associação à causa dos migrantes (De
la Torre; Levitt, 2016).7
Em relação ao projeto de construção do santuário, são outros dois
fatores que o fragilizam. Em primeiro lugar, como a devoção popular é
inexpressiva ou, quando existe, está voltada para santuários já instalados
em outros sítios, os eventos que por ora vêm se realizando no Santuário
dependem de indução eclesiástica (González Escoto, 2019). Paróquias
ou grupos católicos específicos são convocados a se dirigirem até o san-
tuário e a prestarem homenagem ao quadro de relíquias que a cape-
la provisória abriga.8 Outros eventos multitudinários são esporádicos,
como ordenações e celebrações que atraem familiares e visitantes para o
templo em construção. Em segundo lugar, o Santuário está fortemente
associado aos planos de Juan Sandoval Iñiguez, arcebispo de Guadalaja-
ra entre 1994 e 2011. A maneira como esses planos foram conduzidos
geraram desconfianças e reações dentro e fora da igreja local.9 Apesar
dessas questões, o avanço das obras não deixou de ocorrer nos últimos
anos. A conclusão do santuário não é, entretanto, garantia de que a
devoção aos mártires se amplie.
No caso brasileiro, Santa Paulina já tem seu santuário, mas a
devoção a ela tampouco deixa de enfrentar obstáculos. Paulina foi o
nome assumido por Amábile Lúcia Visintainer ao fazer os votos que
consolidaram seu compromisso com uma ordem religiosa. Essa ordem,
cujo nome atual é Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Concei-
ção, teve como principais propulsoras a própria Amábile e mais duas
companheiras, com o acompanhamento de padres jesuítas. O local da
fundação, no interior de Santa Catarina, foi para onde a família de
Amábile migrou, em 1875, da região de Trento (hoje na Itália). A or-
dem transferiu sua sede para São Paulo pouco tempo depois, para onde
mudou Paulina em 1903. Ele só voltaria a estar em Nova Trento por

7 Considere-se ainda que o estado de Jalisco abriga os três principais santuários marianos de peregrinação no México
(em San Juan de los Lagos, Talpa e Zapopan), ultrapassados em prestígio popular apenas pelo santuário da Virgem
de Guadalupe na capital federal. Agradeço a Renée de la Torre por essa observação.
8 Ou seja, é uma incógnita se o santuário abrigará os restos mortais dos santos que reivindica congregar, uma decisão
que vai implicar disputas no âmbito de devoções e políticas católicas locais.
9 Esse ponto marcou a conversa que mantive, em novembro de 2019, com Tomás de Hijar, intelectual católico, e Pe.
Abel Castillo, que já foi o secretário executivo da construção do santuário. Volto a mencionar o protagonismo de D.
Sandoval na próxima seção.

164
dois anos, instalando-se, em seguida, em uma instituição assistencial da
Congregação situada em Bragança Paulista, até sua morte em 1942.10
O processo de santificação de Paulina foi iniciado na década de
1960, mas sua beatificação ocorre apenas em 1991, seguida da canoni-
zação em 2002. Percebe-se que a mesma política vaticana que benefi-
ciou os mártires mexicanos levou à criação da “primeira santa brasilei-
ra”. A iniciativa foi da própria Congregação a que pertenceu Paulina e
foi acompanhada da produção de hagiografias, culminando na biogra-
fia oficial publicada em 1987. A canonização é resultado de um esforço
institucional que inclui uma reparação, uma vez que, não muito depois
de sua mudança para São Paulo, Paulina foi destituída da posição de
madre superiora e condenada a não mais exercer cargos de governo na
Congregação que havia ajudado a fundar. Sua resignação foi contabili-
zada como atributo de sua santidade.
Segundo Silva (2004), houve hesitações sobre o lugar do santuário,
que acabou sendo fixado em Nova Trento, ficando os restos mortais da
santa em São Paulo, onde permanece a sede da Congregação. A beatifica-
ção acarretou o aumento do fluxo de visitantes para a pequena cidade ca-
tarinense (14 mil habitantes em 2018), colocando a necessidade de uma
estrutura maior para a sua recepção. O santuário, instituído em 1998, foi
remodelado entre 2003 e 2006. Estimativas apontam um número entre
70 mil e 100 mil pessoas por mês, o que colocaria o Santuário Santa Pau-
lina como o segundo destino de “turismo religioso” no Brasil, perdendo
apenas para Aparecida do Norte (Soares; Ramos, 2018).
Esse destaque está, contudo, em contraste com outras feições do
Santuário. Além do fluxo de visitas não ter aumentado significativa-
mente nos últimos anos, há indicações reiteradas de que a maioria dos
visitantes vêm de outras cidades do mesmo estado de Santa Catarina,
número seguido por cidades paranaenses e gaúchas, restando quantida-
des ínfimas de outras proveniências (Rita, 2002, p. 61; Silva, R., 2004,
p. 71; Ardigó; Caetano; Damo, 2016, p. 366; Behling; Wolf; Bona,
2019, p. 53). Ou seja, o culto de Santa Paulina parece ter alcance regio-
nal, em uma escala muito distinta daquela que caracteriza o santuário
de Nossa Senhora Aparecida. Os visitantes chegam como pedestres vin-
10 São muitas as fontes sobre Paulina. Sigo principalmente o exposto em Custódio (2011).

165
dos de cidades próximas ou utilizando automóveis, e não raramente em
excursões. Algumas dessas excursões incluem Nova Trento em um ro-
teiro no qual Aparecida é o destino principal, confirmando a hierarquia
entre os dois santuários. Além disso, Santa Paulina precisa lidar com a
concorrência de outras devoções, inclusive de novos candidatos a san-
tos.11 Se para Nossa Senhora Aparecida, cultuada desde o século XVIII,
essa convivência não é problemática, o mesmo não se pode afirmar para
a recente Santa Paulina.
Em suma, as devoções reivindicadas pelos santos mártires mexi-
canos e por Santa Paulina não estão asseguradas – ao menos na escala
almejada por seus principais promotores. Essas condições são, de minha
perspectiva, essenciais para entendermos as características dos templos
que consistem nas estruturas centrais dos respectivos santuários. Ou
seja, em vez de se traduzirem em construções inexpressivas, as incer-
tezas implicadas nas devoções impulsionam projetos com dimensões
materiais significativas, incluindo arquiteturas audaciosas. É como se,
aos templos, fosse atribuída a tarefa de atrair devotos. Nisso e para isso,
sua aparência é essencial. A elaboração, inspirada em Gell (2001), que
em outro texto (Giumbelli, 2018) me fez aproximar os monumentos
de “armadilhas”, parece se aplicar ao caso desses templos.12 Serem mo-
numentos ativos, no sentido de reivindicarem outra coisa além da indi-
ferença, faz parte de suas pretensões. Não por acaso, fotografias e dese-
nhos estilizados que tomam as igrejas por modelos são frequentemente
adotados na divulgação oficial dos respectivos santuários.13 Passemos
então à análise e à problematização das arquiteturas desses modelos.

Santuário dos Mártires: a igreja que aparenta ser outras coisas


Quando estive no local em dezembro de 2019, o templo do San-
tuário dos Santos Mártires passou-me a impressão de algo grandioso
e inacabado. A extensa escadaria que futuramente dará acesso ao átrio
11 Em Santa Catarina, há uma beata (desde 2007) e dois processos já abertos (2019 e 2020). Outros santuários estão
estabelecidos em regiões próximas. No Rio Grande do Sul, há mais dois beatos (desde 2007), devendo-se ainda
considerar o santuário principal de Nossa Senhora de Caravaggio como uma importante devoção regional.
12 Neste volume, o capítulo de Peixoto e Goyatá (2020) discorre sobre o mesmo texto de Gell, do qual também se
apropria para sua análise.
13 Para Santa Paulina, ver Ardigó, Caetano e Damo (2016, p. 365); para os mártires, baseio-me no material impresso
que acessei em minha visita em 2019.

166
onde caberão mais de 50 mil pessoas só podia ser, na ocasião, imagina-
da. Circundei o edifício e nele ingressei perto do presbitério, de onde
era possível avistar toda a nave e os vitrais principais quase concluídos.
O piso ainda não recebera nenhuma cobertura. Perto do lugar por onde
entrei, o globo que foi descartado para coroar a mais alta das cúpulas
jazia quase como uma ruína. Alguns dias antes, o engenheiro responsá-
vel pelas obras havia atualizado as informações que eu vinha reunindo
desde 2017. Aquela nave, com diâmetro de 105 metros e 70 metros
de altura máxima, deverá abrigar, em dois níveis, 12 mil pessoas. Sob
o átrio, haverá uma construção com quatro pavimentos, três deles de-
dicados a estacionamentos; no quarto, espaços que servirão à paróquia
ali instalada, auditórios, um museu sobre os mártires, além de cerca de
100 mil columbários. Outras estruturas podem se juntar ao complexo,
em locações ainda a serem definidas: sedes de programas assistenciais,
serviços de saúde, alojamento de peregrinos e um setor comercial.14
A monumentalidade da construção permite que tenha sido anun-
ciada como “uma das maiores cúpulas da cristandade, em particular por
seu volume totalmente fechado e sem pilares. De fato, trata-se da igreja
de forma arquitetônica livre de maior dimensão de toda a cristandade”
(Bozzo, 2011). Segundo o engenheiro já citado, Héctor Castellanos,
“construído desde 2007 […], o Santuário se converterá no edifício mais
alto da Zona Metropolitana de Guadalajara, desde onde se avista plena-
mente todo o perímetro do Valle de Atemajac” (mencionado em Cam-
pos, 2014). O lugar está situado no Cerro del Tesoro, que fica no mu-
nicípio de Tlaquepaque, e pode ser alcançado pelo trem urbano desde
o centro de Guadalajara em cerca de 30 minutos. Suas dimensões com-
petem com as do templo da Igreja La Luz del Mundo, concluído em
1992 e também capaz de abrigar 12 mil pessoas sentadas. Esse templo
se eleva a mais de 80 metros utilizando uma estrutura piramidal, mas
não está construído sobre uma elevação.15 O Cerro del Tesoro não é um
morro muito alto, e a altura dos prédios e a poluição impedem que seja
contemplado de vários pontos da cidade. Mas sua visibilidade é maior
14 A imagem que melhor reproduz a versão atual do projeto arquitetônico é a de uma maquete: https://www.skys-
crapercity.com/threads/proyecto-tlaquepaque-santuario-de-los-m%C3%A1rtires-mexicanos-e-c.437112/post-
148417717. Acesso em: 23 set. 2020.
15 Ver, sobre o templo, San Martín Córdova (2019); para a história da Luz del Mundo, igreja neocristã mexicana de
maior expressão internacional, ver De la Torre (1995).

167
quando comparada à sede do grupo neocristão. Esta pode ser avistada
como parte da cidade desde o Santuário dos Mártires, o qual desponta
no horizonte e cuja construção já vem impactando o seu entorno.
O argumento do desenvolvimento urbano e os supostos benefí-
cios do turismo religioso serviram para aproximar o empreendimento
de iniciativas governamentais. Se não houvesse esses fatores, a força do
catolicismo na região e os laços familiares que aproximam elites civis e
religiosas poderiam ter cumprido o mesmo papel. Em 2008, o governador
de Jalisco anunciou que uma doação milionária seria feita como uma con-
tribuição estatal para a construção do santuário. A notícia foi comemora-
da pelo cardeal Sandoval, desde 2011 Arcebispo Emérito de Guadalajara
e ainda o principal animador da obra. Mas o anúncio também gerou
enorme reação entre diversos setores sociais, amparada no princípio da
laicidade estatal, o que levou à devolução dos recursos em 2009.16 Desde
então, a construção tem sido mantida graças a outras fontes e se arrasta ao
longo dos anos. De todo modo, intervenções estatais não estão ausentes.
A municipalidade de Tlaquepaque investiu na melhoria da infraestrutura
da área, que vem atraindo mais moradores. E o governo de Jalisco con-
tinua a manifestar seu apoio ao turismo religioso, ao qual dedica um de
seus setores. Um dos projetos divulgados pela administração é a “Ruta
Cristera”, que buscará integrar o Santuário dos Mártires a outros pontos
de devoção religiosa na região.17
A dimensão arquitetônica da obra impõe que se considere a longa
história do projeto de construção do Santuário dos Mártires. Embora a
data mencionada na maioria dos relatos indique 2007 como o ano ini-
cial, é possível recuar com o auxílio de outras referências.18 O primeiro
anúncio de um “santuário dos mártires” parece ter ocorrido em 2000,
acompanhando as notícias da canonização dos 25 santos. Mas a ideia de
um espaço para acolher multidões está entre as demandas de um evento
de 1992 que traçou as diretrizes para a Arquidiocese de Guadalajara.
Esta sedia um dos maiores seminários do mundo, o que transforma
16 Sobre esse episódio e suas repercussões, ver De la Torre (2017). Seu texto neste volume acompanha outra ação de
D. Sandoval (De la Torre, 2020).
17 Ver https://secturjal.jalisco.gob.mx/nuestro-estado/turismo-religioso. Acesso em: 23 set. 2020. Pessoas próximas
ao Santuário que entrevistei mencionam outro projeto, “El Camino de los Martires”, que interliga o santuário de
Tlaquepaque com outros situados no estado de Jalisco.
18 Sigo, em suas linhas gerais, os dados apresentados por Vaca (2017), complementados por outras fontes de impren-
sa e minhas entrevistas.

168
as ordenações de novos padres em eventos que reúnem grandes con-
tingentes. O uso de espaços não religiosos para essas e outras ocasiões
gerava insatisfações. D. Sandoval buscou conciliar tal demanda com a
perspectiva de tornar Guadalajara a principal referência no culto dos
mártires. Assim nasceu a ideia do santuário, tornada pública apenas em
2000. A atribulada história do que veio depois pode ser dividida em três
momentos, considerando as definições e redefinições arquitetônicas.
O ano 2000 trouxe não apenas o anúncio da construção do santuá-
rio, mas também a colocação de sua pedra fundamental e a apresentação
de um projeto de templo. Atribuído ao arquiteto Federico González Gor-
tázar,19 o projeto já incorporava a concepção de um complexo, unindo
lugar de culto a centro de eventos, além de prever espaços para serviços de
várias naturezas. O desenho destaca um conjunto de cúpulas articuladas
de modo a formar os gomos de uma abóboda de 100 metros de altura.
Contornando essa abóboda, uma estrutura de formato hexagonal, aberta
no lado em que está a porta principal do templo – assim, seria possível
entrar diretamente nas cúpulas. As dimensões internas eram igualmente
maiores do que as do projeto atual: uma nave circular com 160 metros
de diâmetro e forte inclinação no espaço da assembleia prevista para abri-
gar 20 mil pessoas. Apesar dessas características, o arquiteto reivindicou
como inspiração a Basílica de São Pedro, do Vaticano.
No entanto, já em 2001 ocorreram várias mudanças, a começar
pelo arquiteto, que passou a ser José Manuel Gómez Vázquez Aldana,
associado à empresa GVA.20 Mudou-se também o local da construção
para onde continua a ocorrer até hoje, o Cerro del Tesoro. Antes, o
sítio era outro morro, aquele que abriga um conjunto de antenas de
comunicação, que talvez entrassem em uma competição visual com o
templo do santuário. Mas o motivo alegado para o deslocamento do
local foram questões fundiárias. Por fim, as mudanças vieram com um
novo projeto, anunciado pelo arquiteto como “renascentista, mais clás-
sico e conservador”. Desse projeto, temos acesso a um esboço e a uma
19 Sobre Gortázar, ver Palomar (2013). Segundo San Martín Córdova (2019), houve ainda dois outros arquitetos
envolvidos, Luis Miguel Argüelles Alcalá e o frade Gabriel Chávez de la Mora, que voltou a ter participação
recentemente com o desenho do vitral principal e do presbitério. De acordo com González Escoto (2019), outro
templo, situado próximo à região central de Guadalajara – o que teve seus vitrais apedrejados, como relata uma das
epígrafes deste texto – foi cogitado para abrigar o Santuário dos Mártires.
20 Sobre Gómez Vázquez Aldana, um arquiteto com projetos de grande porte conhecidos em Guadalajara e outras
cidades, inclusive fora do México, ver Castro (2016).

169
maquete. Nele, a cúpula é inteiriça e não vai até o piso; na maquete, o
desenho é um pouco diferente, semelhante ao formato de um chapéu
cujas abas se aproximam mais do solo. Nos dois casos, essa estrutura cir-
cular é cercada por outra estrutura quadrilátera, onde estaria instalada a
entrada principal do templo.
Tampouco esse segundo projeto prospera, frustrando as expecta-
tivas de que o santuário estivesse pronto para um grande evento a ser
realizado na Arquidiocese de Guadalajara em 2004. Questões admi-
nistrativas, financeiras e fundiárias fazem com que as obras não des-
lanchem, de modo que a construção fica suspensa entre 2002 e 2007.
Nesse ano, novas notícias dão conta da retomada das obras, que desde
então prosseguem sem grandes descontinuidades, a depender do ritmo
permitido pela disponibilidade de recursos. Embora nem o local nem
a autoria tenham sido modificados, o projeto anunciado em 2007 traz
características bem distintas das anteriores (imagem 1). Trata-se do pro-
jeto que guia as obras até o presente, mas não sem sofrer alterações. É
sobre as formas e aparências dele originadas que discorro a seguir.

Imagem 1 – Desenho do Santuário dos Mártires, 2007

Fonte: Ícono… (2015).

170
Como referência, tomemos a descrição de 2011 oferecida pelo en-
genheiro responsável pelos cálculos estruturais.21 Segundo essa descri-
ção, o projeto “contempla três cúpulas consecutivas (de forma livre) en-
cerradas em sua entrada principal por uma cúpula semiesférica” (Bozzo,
2011). Essas cúpulas não compõem mais uma abóboda, mas parecem
encaixadas, a maior cúpula estruturando os fundos do templo com um
espaço para os vitrais, a menor abrindo-se para formar a entrada princi-
pal em composição com uma semiesfera que seria translúcida. Ao longo
da parte frontal e das laterais da estrutura principal, há uma outra, em
desenho de semicírculo. A entrada na semiesfera comunica-se com uma
passagem no semicírculo para dar acesso ao átrio, abaixo do qual se de-
senvolvem os pavimentos descritos no início desta seção. Fui informa-
do durante minha visita em 2019 que essa segunda estrutura não será
construída. Outra modificação ocorreu há mais tempo com a supressão
de um alongamento da cúpula mais alta, que serviria para suportar um
globo com a cruz. Esse alongamento destaca-se em um desenho que
provavelmente acompanhou a retomada dos trabalhos em 2007.22 Em
2008, falava-se ainda em uma nave para 20 mil pessoas, o que foi re-
visto, mas – ponto importante – sem deixar que sua capacidade ficasse
abaixo do que a do templo da Igreja La Luz del Mundo. Outras modifi-
cações ocorreram no formato das três cúpulas e no encaixe entre elas – o
resultado parecendo-se mais com um fractal do que com um invólucro
(imagem 2). Como sabemos, o globo no qual se apoiaria a cruz foi des-
prezado. Por ora, o teto do santuário não enverga cruz alguma.23

21 O melhor guia visual com informações agregadas baseadas no mesmo projeto é o seguinte: http://i02.vpc02.infor-
mador.com.mx/interactivos/jalisco/santuariodelosmartires/. Acesso em: 23 set. 2020.
22 Para uma reprodução desse desenho, ver https://lauracampos.wordpress.com/tag/santuario-de-los-martires/. Aces-
so em: 23 set. 2020.
23 Atrás do edifício do templo, há uma elevação incorporada ao projeto, com a indicação ora de uma grande cruz, ora
de uma imagem do Cristo Redentor. Ainda não há uma definição sobre a solução a ser adotada.

171
Imagem 2 – Foto das obras do Santuário dos Mártires, 2016

Fonte: Grupo Hiemesa (2016).

A questão que intriga quem olha para a estrutura resultante desse


desenho é: a que isso se parece? Por parte do arquiteto responsável pelo
projeto, não há pronunciamentos públicos sobre o assunto. O máximo
que encontrei foram as palavras “moderno” e “contemporâneo”, que se
aplicam também a outros aspectos da construção, comprometida em
oferecer “comodidade” a seus visitantes e frequentadores (Santuario…,
2012). Assim, materiais, tecnologias e serviços trazem essa marca, como
destacou o engenheiro responsável pelas obras (Castellanos, 2019).
Quando lhe perguntei sobre as semelhanças com outros edifícios reli-
giosos, ele apontou a relação entre as antigas basílicas cristãs e as cúpu-
las: “mas aqui temos cúpulas pós-modernas, de diferentes alturas”. Ele
continuou: “não estamos fazendo aqui uma igreja de corte gótico, nem
renascentista, nem neoclássica, nada disso. Estamos no século XXI”.
Entretanto, também destacou que a contemporaneidade do desenho e
o uso de tecnologias de ponta não anulam “elementos tradicionais” –
além das cúpulas, referiu-se ao uso de vitrais e à orientação do templo
com sua entrada voltada para o leste. As referências renascentistas, pre-
sentes em projetos anteriores, deixam de ser mencionadas.

172
E o que pensam outras pessoas sobre as aparências do Santuário dos
Mártires? Reúno elementos das entrevistas que realizei durante minha
visita à Guadalajara, agregando dados provenientes de comentários pos-
tados entre 2007 e 2009 em um fórum virtual de discussão sobre projetos
arquitetônicos.24 A referência desses comentários é o desenho com base
no qual se origina o projeto vigente, com a cúpula alongada por eixo em
que se sustenta a cruz. As opiniões se dividem entre boas e más impres-
sões, e pairam muitas dúvidas acerca da situação topográfica e de detalhes
arquitetônicos. Em meio a isso, há vários comentários que aproximam o
templo da famosa Opera House, inaugurada em 1973, que é um ícone
da cidade australiana de Sydney.25 Essa semelhança foi também apontada
pelo arquiteto que acompanha a construção do santuário mexicano desde
o início (Mercado, 2019). Para ele, o primeiro e o segundo projetos, an-
teriores a 2007, já traziam elementos que dialogavam com o modo pelo
qual a Opera House redefine a forma-cúpula. Considerando o resultado
obtido com o terceiro projeto, ele aponta similitudes com outro edifí-
cio, um centro de eventos localizado em Glasgow, Escócia, concluído em
1997. O encaixe entre suas cúpulas rendeu-lhe uma designação em con-
formidade com sua aparência, SEC Armadillo – literalmente, “tatu”.26
Outros comentários associam o desenho do templo a um capacete.
Há, nessa vertente, elementos irônicos que apelam para referências da
cultura pop. É o caso de um dos personagens da animação de temáti-
ca futurista Os Jetsons e de outro personagem, este um extraterrestre,
que povoa animações e outros produtos da Warner Bros. Ambos usam
capacetes. Outro comentário assemelhou as cúpulas do templo a um
“capacete futurista”. Em direção similar, opinam duas pessoas: “me pa-
rece mais um planetário do que uma catedral” e “me parece uma nave
espacial que acaba de aterrissar”. Já um entrevistado associou o projeto
de Gómez Vázquez Aldana a um capacete de soldado medieval (Gon-
zález Escoto, 2019). No fórum de 2007, um participante sintetizou a
disputa: “é o capacete de Dom Quixote contra o capacete de Marvin, o
marciano” (o já mencionado personagem da Warner Bros).27
24 Foram analisados os primeiros quatrocentos posts no tópico https://www.skyscrapercity.com/threads/proyecto-tla-
quepaque-santuario-de-los-m%C3%A1rtires-mexicanos-e-c.437112/, cobrindo o período entre janeiro de 2007 e
outubro de 2009. Acesso em: 15 jul. 2020.
25 Entre eles, os posts #16 e 64 no site indicado na nota 24.
26 Ver https://www.fosterandpartners.com/projects/sec-armadillo/. Acesso em: 15 jul. 2020.
27 São os posts #2, 21, 35, 72, 246 e 247 no site indicado na nota 24.

173
O ponto recorrente no modo como se descreve e se percebe o as-
pecto do Santuário dos Mártires é exatamente o não parecer uma igreja.
É significativo que os arquitetos responsáveis pelos diferentes projetos
vinculados ao templo não tenham em seu currículo outras obras
religiosas. O portfólio da GVA, empresa de Gómez Vázquez Aldana,
apresenta diversos projetos com propostas e linhas contemporâneas, em
estilos que arrojam os princípios que orientam o desenho do santuá-
rio.28 Mas, ao produzir um templo “contemporâneo”, ou ao ter como
ideal tal tipo de arquitetura, esse desenho acaba evocando semelhanças
com formas e referências que não remetem a um templo cristão. Dois
comentários do fórum de arquitetura evidenciam essa aporia.29 Nesses
comentários, a referência à religião vem diretamente associada a apre-
ciações estéticas. Afirma um participante do fórum: “gostava mais do
projeto anterior [não há certeza sobre qual], que parecia uma mesqui-
ta”. Já o outro faz reclamação distinta: “Bom projeto. Pena que tenha
a ver com religião”. Por fim, uma perspicaz observação do entrevistado
acima mencionado não deixa de dialogar com esses comentários. Ela
decorre da constatação de que a devoção aos mártires canonizados ou
beatificados, por ora, não é “espontânea” nem “popular”. Lembra tam-
bém que o lugar escolhido para abrigar o templo não tem qualquer re-
lação com hierofanias ou episódios das hagiografias. A igreja pode estar
orientada para o leste, como prezam as regras canônicas, mas nenhum
mártir morreu ou passou por ali. Daí a conclusão de meu interlocutor:
“Não é um santuário em sentido estrito. É um monumento aos márti-
res” (González Escoto, 2019). Pode-se acrescentar: um templo-monu-
mento cuja aparência não evoca referências religiosas.

Santuário Santa Paulina: o profano no sagrado


A pessoa que visita o Santuário Santa Paulina é de muitos modos
lembrada que se encontra no local onde a santa viveu. Trata-se de um
bairro distante seis quilômetros do centro da cidade de Nova Trento. É
um pequeno vale, dominado, desde sua construção iniciada em 2003,
pela nova igreja erigida em uma elevação do terreno. Esta passou a ser
28 Ver o catálogo em http://gvi.archi/es/, que não confere destaque ao santuário nem inclui outras obras com finali-
dade religiosa. Acesso em: 15 jul. 2020.
29 Posts #4 e 5 no site indicado na nota 24.

174
o elemento central de um complexo que integra várias estruturas distri-
buídas pela localidade, cujo nome (Vígolo) guarda as marcas das origens
italianas. A referência mais antiga é a capela levantada no século XIX,
quando Amábile ainda vivia ali. A memória de sua presença é ativada por
diversos marcos, estátuas, monumentos e museus. O local abriga ainda
um grande restaurante, assim como um pequeno hotel, mantidos pela
Congregação que administra o santuário. O estabelecimento “oficial” de
produtos religiosos convive com outras formas de comércio. Parte dessa
dispersão foi atenuada quando o Santuário inaugurou em 2016 um “cen-
tro comercial” com 62 lojas. Veredas percorrem os espaços verdes e os
córregos que sustentam as reivindicações ecológicas do lugar.30
A nova igreja, inaugurada em 2006, quatro anos após a canoniza-
ção de Santa Paulina, tem sua entrada principal voltada para o oeste, tal
como a capela do século XIX. Ela foi construída em cerca de três anos,
sem paralisações, baseada no projeto desenvolvido por uma empresa de
Blumenau, cidade que fica próxima a Nova Trento. Assim como no caso
mexicano, a HS Arquitetos não tinha experiência anterior com edifica-
ções religiosas.31 O projeto buscou responder ao “programa de necessida-
des” indicado pela Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição.
Mais adiante, entrarei nos detalhes da concepção arquitetônica, interes-
sando, por ora, conhecermos algumas dimensões do templo (Santuário
Santa Paulina, 2007). Em sua nave principal e suas duas capelas cabem
cerca de 3.500 pessoas. A altura máxima é 28 metros, ponto de onde par-
tem as duas metades do telhado em direção ao solo. Da entrada ao fundo,
são 60 metros de vão livre, o que permite uma visão desimpedida de
quaisquer obstáculos. O arquiteto com quem conversei (Herwig, 2019)
apresenta com muito orgulho as soluções encontradas para a construção
do templo, destacando o resultado em termos de comodidade e funcio-
nalidade, bem como a conciliação entre tecnologias e materiais modernos
e baixo custo de construção e manutenção.32

30 Para informações e imagens sobre as diversas estruturas e setores do santuário, ver o site oficial: https://santuario-
santapaulina.org.br/. Acesso em: 23 set. 2020.
31 A maioria dos projetos da HS Arquitetos incide sobre plantas industriais. Mas hoje seu catálogo já inclui outras
obras de arquitetura religiosa e confere destaque ao Santuário Santa Paulina. Ver https://www.facebook.com/hsar-
quitetos/. Acesso em: 23 set. 2020.
32 Segundo o arquiteto, o projeto foi premiado em 2006, o que rendeu a publicação de notícia sobre o Santuário Santa
Paulina no prestigiado site de arquitetura ArchDaily Brasil (2013). Em outro texto (Giumbelli; Aguiar, 2020), é
abordada a relação entre a arquitetura interna do templo e as formas devocionais que ela busca estimular.

175
Houve, no entanto, um projeto anterior ao que foi realizado. Ele
foi concebido nos últimos anos da década de 1990, na mesma época em
que a localidade em torno da capela do século XIX foi elevada a um san-
tuário pela Arquidiocese de Florianópolis, à qual pertence Nova Trento.
Não há muitos detalhes sobre esse primeiro projeto,33 apenas registros
que apontam uma capacidade de 6.500 pessoas na nave principal, ou-
tras 4 mil em uma galeria e mais uma praça para 60 mil pessoas. As
duas únicas imagens a que tive acesso mostram uma estrutura em dois
pavimentos, a galeria sendo provavelmente o andar térreo. Na parte
superior, um templo com desenho circular; a vista frontal faz parecê-lo
um cone invertido, totalmente coberto por vidros azuis, cercado por
três torres. Essas torres, que em sua base contornam a nave envidraçada,
elevam-se acima dela em pontas que terminam em material que aparen-
ta também ser vidro. “Os três volumes, onde se erguem os campanários,
representam as irmãs que fundaram a organização” (Silva, R., 2004, p.
122) – a mais alta das torres correspondendo a Paulina.
De acordo com a religiosa da Congregação com quem conversei,
o projeto foi elaborado por alguém de Brasília, um admirador da então
beata Paulina. Embora reconheça o diálogo do templo com a história
da santa, pois não se queria “apenas um galpão, ou uma apoteose sem
sentido”, Irmã Anna relatou que o desenho não causou boa impressão
entre as religiosas que viviam em Vígolo: “era muito vidro, muito…
atual demais, a gente achava que era muito moderno, que não se enqua-
drava em nossa realidade” (Tomelin, 2018). A antipatia pelo projeto se
estendia para a relação com o entorno, percebida como desarmoniosa.
Os incômodos fizeram que a Congregação recorresse a uma consulto-
ria de arquitetura; chegou-se assim ao “programa de necessidades” com
base no qual se buscou atrair propostas de projetos. Algumas empresas
fizeram esboços, mas apenas a HS Arquitetos prosseguiu respondendo
às exigências e aos ajustes levantados pelas religiosas (Herwig, 2019).
Além de questões estéticas, o primeiro projeto levantou resistên-
cias associadas à relação entre o empreendimento religioso e os poderes
públicos. Conforme Nascimento (2006, p. 104), “o governador queria
construir o Santuário de Santa Paulina segundo um modelo próprio,
dividindo o prédio em dois setores, tendo o subsolo um centro de con-
33 As informações provêm das seguintes fontes: Zanatta (2001), Silva (2004) e Nascimento (2006).

176
venções destinado a reuniões e encontros e a parte superior do prédio o
espaço para a função religiosa”. Tal proposta foi contestada pelas religio-
sas, que desejavam evitar essa sobreposição de finalidades. A divergência
resultou no encerramento das atividades de uma comissão que existiu
em 2000, da qual tomaram parte autoridades religiosas e civis, com o
objetivo de melhorar as condições de recepção de visitantes em Nova
Trento. Embora tenha se mantido certa separação, instâncias governa-
mentais não deixaram de ter participação nas estruturas e condições que
cercam o Santuário. Exemplos disso são benfeitorias na infraestrutura
do bairro e a promoção de Santa Paulina como o principal atrativo de
“turismo religioso” de toda a região. Em 2010, a cidade de Nova Trento
foi reconhecida por uma lei estadual como a “Capital Catarinense do
Turismo Religioso” (Soares; Ramos, 2018, p. 395).34
Quanto ao projeto aprovado pela Congregação, ele resultou de sua
negociação direta com a HS Arquitetos. Indagado sobre as inspirações
para a concepção e desenho do projeto, o arquiteto apontou a história
da santa: “a trajetória de vida dela, uma pessoa muito simples e humilde,
mas muito forte na sua espiritualidade e bondade” (Herwig, 2019). O
projeto retrata “a simplicidade e a humildade dela através da forma do
templo, que remete a um casebre em duas águas onde tudo começou.35
E também a solidez, a força dos valores dela, através dos materiais, espe-
cialmente o uso de muito concreto aparente” (Herwig, 2019). No texto
que apresenta o projeto, lemos que a ênfase na simplicidade resultou
em uma “releitura da arquitetura sacra tradicional”. Eis outro trecho: “a
cobertura de linhas ascendentes estimula a meditação e a busca da espi-
ritualidade, como se fosse um manto que, singelamente lançado sobre
a construção, abriga a nave principal, capelas e área de apoio, além de
definir os acessos ao santuário” (ArchDaily Brasil, 2013).
Percebemos, então, que, distintamente do que ocorreu no caso de
Guadalajara, a concepção do templo nova-trentino dialoga fortemente
com atributos de Santa Paulina, impactando a escolha de formas e ma-
teriais. Ainda que o vidro seja bastante utilizado, são os desenhos feitos
34 Desde 1997, o município de Nova Trento já era, com base em um decreto estadual, uma “estância turístico-reli-
giosa” (Nascimento, 2006, p. 63).
35 O arquiteto refere-se aqui ao casebre no qual as três companheiras que criariam a congregação cuidaram de uma
enferma. Ele é parte da narrativa que sustenta a hagiografia de Paulina. O santuário mantém uma réplica desse
casebre junto à capela construída no século XIX.

177
com o concreto e com o telhado de metal que definem a morfologia da
construção (imagem 3). Amparada nessa morfologia, proliferam leitu-
ras simbólicas. O mesmo texto que se refere a um “manto” sugere que a
cobertura em duas águas “remete visualmente às tradicionais vestimen-
tas de algumas ordens religiosas” (ArchDaily Brasil, 2013). Irmã Anna
enfatizou que as discussões na Congregação que orientaram a demanda
do projeto chegaram na ideia de uma tenda – “já que aqui é um lugar de
peregrinação”. Ela acrescentou outras imagens a depender das interpre-
tações: “o povo diz que é muito parecida com um véu […] E também
mãos para o infinito, que não se encontram porque seguem para o alto”
(Tomelin, 2018).

Imagem 3 – Foto do templo principal do Santuário Santa Paulina

Fonte: Oliveira (2015).

A relação com a história de Paulina é afirmada também pela inte-


gração entre o novo templo e as estruturas já existentes em Vígolo. Em-
bora a ereção da grande igreja tenha desmatado parte da área adjacente
às construções anteriores, o projeto reivindica estar em harmonia com a
natureza. Nas fachadas laterais, o vidro é transparente, fazendo a comuni-

178
cação entre o interior e o exterior. Quanto à sua orientação, ela não segue
as regras canônicas que aconselham o leste como referência para a entrada
principal. O templo mais recente imita a da igreja mais antiga, com a qual
interage por meio de uma passarela curvilínea. Essa estrutura, partindo
da área onde também está a réplica do casebre, como disse o arquiteto,
“tenta ligar onde tudo começou com o novo” (Herwig, 2019).36 A orien-
tação voltada para o oeste faz com que o templo principal dialogue ainda
com outra área do santuário. Ela se localiza no alto de um morro oposto
ao que abriga a igreja. Ali estão alguns serviços, além de uma estátua de
Santa Paulina, e o lugar já foi o destino de um teleférico que funcionou
por alguns anos. Desse morro, a pessoa que o visita tem uma perspectiva
cenográfica da fachada frontal do novo templo.
A fim de explorarmos algumas dimensões da aparência do templo,
partamos exatamente da sua fachada principal. Embora o texto do pro-
jeto mencione que as três partes formadas por estruturas de concreto
representariam a Santíssima Trindade, a explicação que me ofereceu o
arquiteto reitera a presença de Paulina. Para tanto, ele pede que olhe-
mos todo o desenho formado pelas linhas do telhado, as vigas entre as
quais estão os sinos e a cruz no seu cume. Tal desenho sugere a imagem
de uma pessoa vestida de hábito religioso. Ele conclui: “Então, concei-
tualmente falando, Santa Paulina está representada nos pilares frontais”
(Herwig, 2019). Originalmente, o projeto previa inclusive que nos vi-
trais dessa fachada frontal estivesse reproduzida uma fotografia do rosto
da santa,37 ideia que foi abandonada durante a construção (Fernandes,
J., 2019). De todo modo, considerando as sugestões do arquiteto e as
estátuas de Paulina que se encontram no acesso e no interior do tem-
plo, podemos afirmar que há algo de fractal na distribuição da imagem
da santa, multiplicada nos, e pelos, espaços do santuário. Em relação à
fachada, essas concepções conferem plausibilidade à interpretação gene-
ralizante de Flávio de Carvalho (2005, p. 49): “a porta da igreja é uma
representação da vagina e a igreja em si uma figuração da mulher”.
Enquanto a aproximação entre a igreja e uma mulher apresenta-
-se acertada para o caso desse santuário, tomemos a interpretação de
36 A passarela ou rampa acaba também produzindo uma semelhança entre o Santuário Santa Paulina e o Santuário
de Aparecida.
37 Ver o desenho em https://www.instagram.com/p/vyB3BFDHWO/. Acesso em: 23 set. 2020.

179
Carvalho não em seu sentido literal, mas como uma incitação para que
busquemos coexistências entre sagrado e profano na morfologia do
templo.38 O arquiteto referiu-se várias vezes, em sua entrevista, à “regra
de ouro” para explicar as proporções adotadas pelo projeto da igreja.39
A regra foi aplicada à fachada, gerando a identificação com uma figura
humana; ela valeria igualmente, segundo o arquiteto, para a planta do
edifício, traduzida na relação entre a área destinada à assistência e a área
do presbitério. Tal configuração foi possibilitada pelo recurso à forma
quadrada como base da planta, reforçado pela opção por um mono-
bloco. Tive acesso a dois esboços que apontam para outras alternativas
aventadas: em uma delas, reitera-se o desenho do telhado, mas com a
torre dos sinos separada do edifício; na outra, o formato do telhado é
bem diferente e o conjunto como um todo se distancia de um quadri-
látero.40 O arquiteto me explicou que o quadrado é “a forma mais eco-
nômica” (considerando a relação entre área e perímetro) e que a opção
pelo monobloco, “uma edificação única”, preserva a referência à trajetó-
ria de vida de Santa Paulina, “uma pessoa única” (Herwig, 2019).
A perfeição dessa matemática simbólica e construtiva é, entretan-
to, abalada pela distribuição dos espaços na planta (imagem 4). A ques-
tão incide sobre a relação entre dois de seus “setores” – a nave principal
e as capelas adjacentes – com o terceiro, a “área de apoio”. Essa área de
apoio agrega espaços bem distintos. Nela se incluem os confessionários,
que foram alocados atrás do presbitério, com um acesso pelos fundos da
igreja. Isso significa que, embora tenham a ver com funções religiosas,
foram distanciados da nave e das capelas. Efeito simétrico inverso – ou
seja, a adjacência entre sagrado e profano – é o resultado da alocação
de uma área administrativa na parte frontal do templo. Vistas do altar,
as áreas localizadas na face oposta (ou seja, junto à entrada principal)
são pouco definidas. No mesmo nível, temos portas que dão passagem,
de um lado, para salas de atendimento individual ou familiar e, de ou-
tro, para uma área administrativa; em nível mais elevado, acessíveis por
38 Penso ainda ser essa a pista apontada pelo arquiteto litúrgico, Pe. José Fernandes, em seu comentário – registrado
na epígrafe deste texto – acerca do destino de um dos quadros da via sacra.
39 Também conhecida como “proporção áurea”, é uma constante matemática aplicada em projetos de várias nature-
zas. Enfatiza o arquiteto: “Na questão de volumetria e proporção, nós temos o retângulo de ouro nos pontos visuais
principais, tanto em elevação quanto em planta” (Herwig, 2019).
40 Desenhos acessíveis em: https://www.instagram.com/p/wlbq7xjHSt/ e https://www.instagram.com/p/wk-usQDH-
TV/. Acesso em: 23 set. 2020.

180
meio de escadas, há outras portas para espaços destinados ao controle
de captação de imagem e ao controle de som e outros tipos de serviços
técnicos. O arquiteto comentou que a área administrativa não estava
prevista para esse espaço, mas, dada a sua disponibilidade, houve essa
modificação no projeto, o que garantiu que se preservasse o conceito do
monobloco (Herwig, 2019).

Imagem 4 – Planta baixa do templo principal do Santuário Santa Paulina

Fonte da planta: ArchDaily Brasil (2013). Legenda acrescen-


tada: verde = nave e capelas; laranja = confessionários; azul =
área administrativa; lilás = banheiros na área frontal.

Meu argumento é que o recurso ao monobloco e o modo como se


distribuiu os espaços no interior da planta do templo provocaram sepa-
rações e conjunções que subvertem a relação entre sagrado e profano.
De um lado, os confessionários ficaram afastados da nave principal e
das capelas; de outro, a área administrativa terminou colada à assem-
bleia religiosa. Há também um acesso pelo lado externo da igreja – ou
seja, a fachada frontal comporta não apenas a entrada principal, mas,
ainda, portas e janelas que se comunicam com a área administrativa e

181
de atendimento. O preço cobrado pela integração entre esses setores é
a desfiguração da fachada do ponto de vista da “arquitetura sacra tra-
dicional”, a qual o projeto reivindica respeitar. A subversão da relação
entre sagrado e profano é reiterada pelo posicionamento dos banheiros
coletivos, dispostos não em outro edifício, mas nos quatro cantos da
planta do próprio templo – no caso dos que ficam junto à fachada
principal, o acesso é pelas laterais, mas as janelas são frontais. Em suma,
se essa fachada pretende recorrer à “regra de ouro” para sugerir a figura
sagrada da santa, faço notar que, aos seus pés e em suas bordas, estão
espaços dedicados às necessidades profanas.

Conclusões: a relevância da aparência


A discussão de Tamimi Arab (2013) sobre “megamesquitas” ofe-
rece um apoio valioso para estas considerações conclusivas. O autor
analisa algumas controvérsias sobre a mesquita Essalam, construída na
cidade holandesa de Roterdã e aberta em dezembro de 2010. Trata-se
de um contexto muito distinto daquele que cerca os templos cristãos
aqui focalizados. Na Europa, as “megamesquitas”, mais do que um ob-
jeto, são um tropo que envolve sentimentos opostos – ansiedade e or-
gulho – como parte dos desafios enfrentados por uma minoria religiosa
caracterizada como estrangeira. Mas algumas questões levantadas por
Tamimi Arab, em forte diálogo com Meyer (2019), continuam válidas
para refletirmos sobre a construção de megatemplos cristãos em uma
América Latina que (ainda?) continua predominantemente católica.
Tais questões têm a ver com o impacto da presença de lugares associa-
dos à prática e ao pertencimento religioso no espaço urbano. Estão em
jogo não apenas preocupações com as dimensões, mas também com
estilos arquitetônicos e com as condições que produzem a visibilidade
de um objeto – sugerindo um diálogo com dimensões problematizadas
no texto que neste volume interpela um monumento (Pereira, 2020).
Reitera-se assim o ponto a que chegamos com o apoio de Bataille: as
aparências são fundamentais.
O Santuário dos Mártires Mexicanos é uma aposta da Arquidio-
cese de Guadalajara nas controversas figuras dos mártires cristeros. A
definição de suas formas arquitetônicas foi delegada a uma empresa

182
que, após hesitações, optou por um desenho “contemporâneo”. Espe-
ra-se que sua consecução monumental resulte em “um ícone para a ci-
dade”, beneficiando-se de uma visibilidade privilegiada, ainda que não
onipresente. Isso permitiria que a Igreja Católica deixasse uma marca
no espaço urbano acompanhada de uma declaração de modernidade.41
No terreno religioso, significa uma resposta ao outro megatemplo que
existe em Guadalajara, a da Igreja La Luz del Mundo, cujo estilo é
mais indefinido e cuja visibilidade é menor. De acordo com a análise
aqui proposta, o risco dessas configurações assumidas pelo Santuário
dos Mártires é o de não ser reconhecido como uma igreja. O reconhe-
cimento, nesse caso, nada tem a ver com sua oficialidade institucional,
algo que não está em questão. O que sim está em jogo é a identificação
dos possíveis devotos com esse objeto arquitetônico, cuja aparência su-
gere várias coisas, mas raramente um templo religioso.
No caso do Santuário Santa Paulina, a situação é diferente. O novo
templo coroa monumentalmente um conjunto de estruturas religiosas,
algumas delas seculares, que derivam diretamente do empreendimento
de memorialização de Paulina. A modernidade arquitetônica do templo
não entra em colisão com sua identificação como um templo católi-
co. Tampouco há uma preocupação de fazer frente a competidores no
campo religioso ou a outros marcadores urbanos. A iconicidade alme-
jada pelo elemento principal do santuário parece ameaçada apenas pela
eventual estagnação da devoção à santa. Na dimensão arquitetônica,
como busquei apontar na análise, o diálogo da Congregação com a
empresa encarregada do projeto teve como resultado um objeto consti-
tuído por tensões cruciais. De um lado, há uma economia, tanto repre-
sentacional quanto material, que deseja retratar e replicar a santidade
de Paulina. De outro, a distribuição dos espaços na planta do templo
subverte a separação entre sagrado e profano. Talvez essa tensão não seja
peculiar ao Santuário Santa Paulina, mas aponte para algo que se faz e
se fará presente em outras intervenções arquitetônicas que tentam, com
o aval de instituições religiosas, efetuar, uma “releitura da arquitetura
sacra tradicional”.
41 A Catedral de Guadalajara é uma imagem icônica na cidade, mas se trata de um templo antigo, cuja arquitetura,
assim como a de outras igrejas católicas, ganha reconhecimento por seu valor histórico. Sobre tais igrejas na capital
de Jalisco, ver Checa-Artasu (2012).

183
Nessa direção, podemos vislumbrar desafios que colocam exatamen-
te em jogo a relação entre sagrado e profano. Isso estaria longe de ser
uma novidade para o catolicismo, que, segundo leituras arraigadas, se
fundamenta não tanto no isolamento do sagrado, mas na sua interação
com o profano (Fernandes, R., 1982). No universo dos santuários, as
peregrinações seriam um exemplo disso, além das próprias festas. Isso
não significa, contudo, que as devidas relações entre sagrado e profano
estejam livres de controvérsias. Um exemplo interessante nessa direção é
o do comércio que acompanha a atividade de muitos santuários. Trata-se
de aspecto sensível para a Igreja Católica, que, no entanto, não nega a sua
presença e até mesmo dele se beneficia. Assim, busca contornar acusações
das quais jamais ficará plenamente ilesa.42 Aqui também a arquitetura
tem o seu papel, quando as instituições religiosas procuram organizar e
padronizar áreas comerciais, como ocorre em Nova Trento. O que desejo
enfatizar, ao abordar o caso do templo do Santuário Santa Paulina, é que
essas intervenções arquitetônicas reconfiguram as relações espaciais entre
sagrado e profano, propiciando situações potencialmente controversas.
No caso de Guadalajara, são de outra natureza os desafios suscitados
por uma abordagem que tem o seu foco na arquitetura. A questão é: o que
será necessário para sustentar o estatuto religioso de um templo como o
do Santuário dos Mártires? A situação do Cristo Redentor, o monumento
no Rio de Janeiro, nos traz alguns elementos para processarmos a pergun-
ta. Apesar de ter sido projetado e inaugurado como um objeto religioso, a
imagem teve essa dimensão atenuada em favor de outras interpretações e
apropriações. Sua recente transformação em santuário pela Arquidiocese
do Rio de Janeiro é uma tentativa de reinstaurar um estatuto especifica-
mente religioso (Giumbelli, 2014; Menezes, 2012). Se mesmo a imagem
do Cristo não está protegida de leituras alternativas, o que esperar de um
templo que parece, desde sua construção, ser outras coisas? Com base
nisso, podemos prever que a Igreja Católica terá algum trabalho para con-
solidar o estatuto de um objeto que reivindica como seu.

42 É significativo que os únicos aspectos negativos indicados por visitantes do Santuário Santa Paulina estão re-
lacionados com as práticas comerciais no seu entorno. Minha fonte é o site Tripadvisor, o qual registra, entre as
avaliações predominantemente positivas, o seguinte comentário de janeiro de 2019: “O prédio do Santuário é uma
obra de arte, pela sua grandeza e beleza de sua construção”. Disponível em: https://www.tripadvisor.com.br/Attrac-
tion_Review-g2577862-d6116683-Reviews-Santuario_De_Madre_Paulina-Nova_Trento_State_of_Santa_Catari-
na.html. Acesso em: 23 set. 2020.

184
Retomando a discussão levantada na introdução deste capítulo,
creio ser possível afirmar que as análises aqui propostas insistiram em
tomar templos como flores – que é como Bataille sugere que nos apro-
ximemos de qualquer objeto de arte. No primeiro caso, as formas ex-
ternas foram tomadas como o elemento mais significativo do aspecto
assumido por um templo. “Com que isso se parece?” foi a pergunta
fundamental para se encontrar outras coisas que uma igreja. No segun-
do caso, foi necessário despedaçar a corola para que outro aspecto se
tornasse aparente. “O que atravessa a busca de um ideal?” tornou-se a
questão mais importante para surpreender o profano nas bases ou nas
bordas do sagrado. Talvez possa se argumentar que essas análises per-
dem de vista o que seria mais relevante na existência desses megatem-
plos – por exemplo, sua força simbólica ao expressar uma hegemonia
ou dominância religiosa em aliança mais ou menos aberta com poderes
civis. Eu responderia que isso ficou nas entrelinhas. Em um movimen-
to que poderia recorrer à ideia deleuziana da minoração (Goldman,
2015), preferi dar o primeiro plano às coisas e às percepções sobre a
sua existência possível. Ao proceder desse modo, guiei-me por Bataille
(2018a, p. 65-66) que, diante da “admiração e estupefação”, “a ordem
e a obrigação”, a estaticidade e a estabilidade, disposições todas essas
impostas por arquiteturas monumentais, empreende uma busca por
“elementos perturbadores”.

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Guadalajara, 25 nov. 2019.
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11 abr. 2019.
GONZÁLEZ ESCOTO, A. Entrevista concedida a Emerson Giumbelli,
Guadalajara, 25 nov. 2019.
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TOMELIN, A. Entrevista concedida a Emerson Giumbelli, Nova Trento, 18
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191
192
DOI: 10.48006/978-65-5973-031-5-8

VER, VISITAR, PARTICIPAR: A PRODUÇÃO DO “BÍBLICO” COM BASE EM


TELENOVELAS BRASILEIRAS1

Jorge Scola

Em minha pesquisa de doutorado, venho acompanhando as for-


mas com que a produção de séries e telenovelas de temática bíblica pela
Record TV (2010-atualmente), emissora de televisão aberta e de pro-
priedade da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), constrói audi-
ências em sua atuação por meio de distintos trajetos no espaço público.
Este texto intenta salientar a relacionalidade entre dois processos. Um
deles tem a ver com as formas de seleção, apresentação e mobilização de
elementos estéticos relacionados às histórias bíblicas (cenários, lingua-
gem, figurino, sonoplastia) para a recomposição destes nas filmagens
dessas narrativas. O outro é a promoção comercial de “viagens bíbli-
cas” que se utilizam, também, da referência à teledramaturgia bíblica
produzida para a televisão. Embora mantenham certa autonomia en-
quanto fenômenos, estou interessado aqui em perceber a maneira como
eles trazem implicações recíprocas e constituem um público comum,
no sentido de reforçarem um circuito de produção de autenticidade e
de vinculação baseado na construção das “paisagens bíblicas”. A aposta
deste texto é a de que, pela atenção ao que “vem” e ao que “vai” nesse
trânsito, se pode enfatizar como materialidades e significados são mobi-
lizados como modos de conferir efeitos de autenticidade às iniciativas.
Com certo recuo temporal, pode-se identificar que iniciativas ante-
riores entrelaçam formas próximas de autenticação nos demais projetos
movidos pela Universal e que trazem consequências para o debate sobre
materialidades, publicização, arquitetura, Estado e religiões, como o
Templo de Salomão e seu Jardim Bíblico e o Centro Cultural Jerusalém,
no Rio de Janeiro (Giumbelli, 2014b, p. 203). Além disso, a IURD rea-
1 Esta investigação é um recorte de minha pesquisa de doutorado em andamento, realizado no Programa de Pós-
-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com orientação de Emerson
Giumbelli e financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Agradeço
aos professores Emerson Giumbelli, Fernanda Peixoto e Edilson Pereira os comentários e sugestões às versões
anteriores deste trabalho. O texto é produto de diálogos fomentados no âmbito do “MARES – “Religião, arte,
materialidade, espaço público: grupo de antropologia” (CNPq) –, a cujos membros agradeço a acolhida generosa.

193
liza visitas a Israel desde a comemoração dos seus 20 anos de existência,
e o próprio bispo Macedo foi recebido pelo Ministro do Turismo sa-
lientando o desejo de “levar dezenas de milhares de pessoas anualmente
para Israel” (Birman, 2003, p. 244). A construção de templos segundo
um padrão estético bem definido (Gomes, 2011), produzindo exibição
pública de uma fé monumentalizada (Giumbelli, 2014b) também traz
essa referência: a própria sede mundial da Igreja Universal tem por ob-
jetivo ser uma “cópia perfeita da Jerusalém dos tempos de Jesus” e busca
essa autenticidade na “exportação” de elementos de Israel tais como
pedras e plantas (Contins; Gomes, 2008, p. 191).2
Esses eventos citados podem ser vistos como projetos que seriam
outras faces do mesmo processo que envolve relações e reivindicações
com e no espaço público e o âmbito da publicização (Warner, 2002;
Engelke, 2013; Montero; Silva; Sales, 2018; Giumbelli, 2008, 2014b;
Pereira, 2020). O que aponto como “publicização” parte da ideia de
Warner (2002) de que há uma dissociação entre “o público” (enquanto
totalidade social) e “um público” (uma audiência, circunscrito ao even-
to ou ao espaço compartilhado). O processo de constituição de coletivi-
dades mediante uma ação endereçada ao espaço público tem colocado
desafios para uma investigação a respeito da religião (Engelke, 2013) e,
no caso brasileiro, a Universal tem fomentado episódios importantes
para a reflexão sobre as formas de atuação no espaço público por meio
de projetos que visam instituir “públicos” (Montero; Silva; Sales, 2018;
Pereira, 2020). Tal atenção aos modos de constituir públicos e de atuar
em espacialidades e com base em espacialidades também contribui para
análises que dessubstancializem uma visão antinômica entre “religião”
e “espaço público”, procurando, ao contrário, perceber como esses ele-
mentos se conectam espacialmente.
Uma vez salientada essa continuidade em relação aos empreendi-
mentos da Universal antes mencionados, e resguardando a diversidade
de suas formas públicas de atuação, o objetivo aqui, baseado em meu
material de pesquisa, é recortar certa especificidade do processo que im-
plica as paisagens bíblicas, a saber, as diferentes formas de envolvimento
da audiência que sua exibição propicia. De certo modo, o que está em
2 A respeito do tema da “monumentalização” no espaço público movida por agentes ligados à Igreja Universal, con-
ferir também o exemplo do Memorial do Holocausto no Rio de Janeiro, em texto de Edilson Pereira, neste volume.

194
jogo – tanto do lado de quem produz essas mídias de teledramaturgia
quanto dos agentes envolvidos na promoção e no consumo das “via-
gens bíblicas” – são processos de seleção de imagens e de maneiras de
olhar e interpelar espaços e materialidades, daí a importância de pen-
sar a produção de ficção bíblica da Record e as “viagens bíblicas” em
sua relacionalidade. Convém atentar, ainda, para o fato de que existem
atravessamentos mercadológicos (como consumo e produção, índices
de audiência televisivos, venda de pacotes de viagem) num recorte (as
narrativas bíblicas) que está associado ao universo religioso. Assim, um
debate que importa às reflexões propostas por este texto é o de pensar
o que está sendo deslocado e como esses processos se acomodam, sem
assumir, portanto, definições anteriores aos fenômenos sobre o religio-
so. Trata-se de atentar para as maneiras contingenciais pelas quais se
dá a regulação do religioso (Giumbelli, 2013, 2014a) por meio de di-
mensões midiáticas, em que a questão da autenticidade ganha relevo
(Meyer, 2018). Como se refere Machado:

Ao produzirem mídias religiosas […] diferentes grupos não


apenas formulam expressões de um conteúdo religioso estático,
pronto e acabado, para uma determinada audiência ávida por
recebê-lo como forma de confirmação de suas presumidas cer-
tezas. Em lugar disso, a relação entre religião e mídia aciona um
processo dinâmico de produção e reinvenção desses próprios
conteúdos religiosos, de seu lugar na esfera pública, da relação
entre o religioso e o secular, do surgimento de audiências (ines-
peradas e mesmo inusitadas), […] na formação de subjetivida-
des, da produção de políticas públicas, e das relações de grupos
religiosos e laicos com o “Estado”. (Machado, 2014, p. 141).

Em um conjunto de trabalhos, a antropóloga Birgit Meyer (2015,


2018, 2019a [2009], 2019b [2012]) centraliza parte de sua produção
com base em um entendimento da religião enquanto mediação, que é
envolvida em meios/mediações (medias), em sentido amplo, abarcando
materialidades de diversos tipos e também meios de comunicação e a
corporalidade. Em diálogo com essa perspectiva, o trabalho se reporta a
alguns conceitos operadores formulados por Meyer, como formas sen-
soriais (sensational forms), compreendidas como:

195
[…] modos autorizados de organizar e invocar acesso ao trans-
cendental que moldam o conteúdo (crenças, doutrinas, conjunto
de símbolos) e as normas religiosas. Essas formas possuem um
papel central na modulação dos praticantes como sujeitos reli-
giosos, envolvendo-os em práticas particulares de culto e padrões
de sentimento. Em consequência, formas sensoriais são parte
de uma estética religiosa específica, a qual comanda um enga-
jamento sensorial dos seres humanos entre si e com o divino,
gerando sensibilidades específicas. As religiões atuam através de
formas sensoriais historicamente geradas que são distintivas e que
induzem padrões repetitivos de sentimento e ação. Essas formas
se constituem com o tempo e estão frequentemente sujeitas a
contestação e até mesmo ao abandono (como na Reforma Pro-
testante, que substituiu a imagem pelo texto). Elas são, então,
um excelente ponto de partida para a observação de processos
de transformação religiosa. Mesmo se as religiões mobilizam nu-
merosas formas sensacionais, certas destas alcançam um status
especial que sustenta uma identidade religiosa distinta, como os
ícones de veneração para os ortodoxos, a leitura da bíblia para os
calvinistas, ou o “louvor e adoração” e a glossolalia para os pente-
costais. (Meyer, 2018, p. 29-30).

Também me utilizo, de Meyer, da concepção de mediação (deriva-


da da compreensão latouriana do mediador,3 distinto do mero interme-
diário em uma rede) e da estética da persuasão (aesthetics of persuasion).
Pela expressão estética da persuasão, a autora enfatiza a estética segundo
uma compreensão clássica (aristotélica) do termo, remontando a uma
teoria da percepção e do engajamento sensorial enquanto uma operação
de conhecimento que tem relação com as imagens, com as materiali-
dades e com a percepção dos sentidos. Ao enfatizar como as religiões
ocidentais estão embebidas em práticas de mediação e de como depen-
dem delas para produzir “efeitos de verdade da religião” (2018, p. 37),
Meyer enfatiza o efeito persuasivo das formas sensoriais. Quando forem
3 Sobre a distinção entre mediadores e intermediários na constituição de coletivos, ver Latour (2012). Ainda pensan-
do com esse autor, suas elaborações sobre o engajamento contemporâneo com as imagens e suas consequências am-
bíguas para os campos religiosos, artísticos, políticos e científicos (Latour, 2005) também oferecem bons pontos de
debate que influenciaram alguns argumentos deste texto. Por sua vez, o debate sobre materialidades e objetos como
“assembleias” no sentido político do termo (Latour, 2008) oferece reflexões importantes para o tema das formas de
vínculo, mediações materiais e política na contemporaneidade. As imagens e objetos atinentes ao “bíblico”, assim,
poderiam ser pensados como formas de assembleia, mas também estariam sujeitos a contestação, caminhando no
limite entre a iconoclastia e a iconofilia, que Latour identifica como uma tensão constitutiva da modernidade. No
caso específico da religião e sua relação com as imagens, ver também Besançon (1997).

196
referidas neste texto questões de “autenticação” e “persuasão estética”,
o que busco apontar é, com o apoio dessa bibliografia, como a auten-
ticidade e a persuasão são processos que não são anteriores às media-
ções, mas estão sendo reatualizados continuamente e que as mídias em
questão dependem fundamentalmente da construção de um sentido de
autenticidade em relação ao “bíblico”. O objetivo é atentar para como
as mediações “fazem fazer” certas formas de persuasão e são tidas como
legítimas ou intentam assim ser para diferentes atores, num esforço que
tem sua própria ordem e que intento aqui seguir.
Metodologicamente, o material aqui analisado provém dos pró-
prios produtores destes itens culturais, as novelas e as viagens. Seria pos-
sível, sem dúvida, trazer materiais externos a esses agentes produtores e
que os interpelam. Ao enfatizar, porém, aquilo que eles estão produzin-
do, este texto recorta percepções êmicas sobre o projeto e a promoção
dessas “paisagens bíblicas”, assim como as chaves acionadas pelos seus
produtores para aferir sua autenticidade e legitimidade.
Nas primeiras partes do texto, são destacadas as formas de mobi-
lização, seleção e apresentação de elementos relativos às histórias bíbli-
cas (cenários, linguagem, figurino, sonoplastia) que são recompostos
na filmagem dessas narrativas no Brasil. Também discuto como a au-
tenticidade e a grandiosidade são emicamente aferidas e significadas
de modo a constituir um público para a teledramaturgia bíblica. Na
terceira seção, enfoco o tema das paisagens estrangeiras como locais e
ambiências para a conformação do tema bíblico partindo das questões
anteriormente levantadas sobre a autenticação e a persuasão estética.
Em seguida, discuto a promoção das “viagens bíblicas” para diferen-
tes audiências com base na intersecção com a teledramaturgia bíblica
brasileira, especialmente preocupado em perceber como as paisagens
e os locais citados pelas teleficções bíblicas da Record produzem um
sentido de “bíblico” autêntico e compartilhado. Na quinta seção, busco
delimitar a proposição de seguir os “estados bíblicos”, formulação que
procura pôr relevo em como esses processos possibilitam certa varieda-
de de projetos e de reivindicações baseados na instituição de algo como
“bíblico”. Essa instituição resultaria na produção de um “estado” novo
originado dessas operações, com ênfase na performance. Em termos de

197
inspiração teórica, a elaboração da análise dos “estados bíblicos” é reali-
zada cruzando o tema da estética e da performance com os trabalhos de
Spivak e Butler (2018) e de Foucault (2009). O intuito é salientar como
este debate clássico na filosofia sobre as relações entre estética e política
pode ser retomado acionando produções contemporâneas que abordam
o pertencimento, a ocupação do espaço público e a criação de condições
e “estados” que são sensoriais e constituem modos de relação com ma-
terialidades e localidades, podendo ser compreendidos, também, como
mediações, para retomar o debate com os trabalhos de Birgit Meyer.

Constituir públicos e reconstituir materialmente “a bíblia”

Olá, eu sou o Cauã e tenho dez anos. Venho através dessa carta
para pedir que o Senhor realize o meu sonho de conhecer os
bastidores da novela Os Dez Mandamentos. Não deixo de assis-
tir nenhum capítulo, pois sou muito fã dessa história. Por favor,
realizem este meu sonho. Muito obrigado.

Com esta mensagem, o garoto Cauã, morador de São Paulo, era


apresentado ao público do programa Balanço Geral, da Record TV, exi-
bido ao meio-dia, com temas jornalísticos, policiais e de entretenimen-
to. A reportagem foi veiculada em 1º de fevereiro de 2016 e começa
com Cauã vestindo uma roupa que ele próprio teria confeccionado com
o auxílio de sua mãe “igualzinha à dos egípcios da novela Os Dez Man-
damentos” (imagem 1).
A edição da reportagem (Balanço Geral, 2016) de mais de dez
minutos é bastante sugestiva, mesclando cenas da novela com imagens
de Cauã e sua roupa “de egípcio”. Quando perguntado pelo repórter
sobre quais seriam suas personagens favoritas na novela, ele menciona
quatro. Entre eles, Moisés, o herói da narrativa, e Amenhotep, o filho
do algoz de Moisés, Ramsés. Durante a entrevista, ele está vestindo
roupas comuns, mas o repórter convida-o a mostrar os figurinos que ele
confeccionou, o que faz Cauã retornar com uma roupa muito parecida
com a do figurino do filho do faraó Ramsés.
O programa levou Cauã e sua mãe de São Paulo aos estúdios da
Record no Rio de Janeiro, que o repórter caracterizou como “a cidade

198
dos sonhos do Cauã”. O menino é convidado a conhecer o setor de fi-
gurino da produção da novela e conversa com a coordenadora do setor
no programa, mostrando a ela a roupa que ele mesmo havia feito com a
ajuda da mãe. O programa mostra o menino andando pelas araras dos
figurinos, onde podem ser vistas placas com os nomes dos atores e dos
personagens junto às indumentárias correspondentes.
Depois disso, o repórter anuncia que o menino ainda não conhe-
ceu “o líder dos hebreus” e o leva à sala de caracterização, perguntando
“Será que Moisés está aí?”. Eles entram juntos na sala e o menino ca-
minha até o ator Guilherme Winter (Moisés), que está recebendo os
apliques de cabelo e barba de seu personagem. O menino abraça for-
temente o ator, que o agradece pelo carinho e conversa um pouco com
Cauã: “Tá vendo o processo que é? Quanta peruca, quanta barba…
todo dia é esse processo, pra virar aquele Moisés que você vê”. Cauã
também é convidado pelo ator a colar parte da sua barba. O momento
final da reportagem é o da “transformação” de Cauã, que passa a trajar o
figurino “egípcio” confeccionado pela própria emissora. “Um momento
mágico”, anuncia o repórter.

Imagem 1 – Cauã em sua roupa de egípcio confeccionada em


casa com repórter da Record (Balanço Geral, Record)

Fonte: Balanço Geral (2016).

199
Ele é convidado a caminhar pelos estúdios e conhecer equipamen-
tos, atores, figurantes e cenários, sendo que o ponto final do percurso é
o cenário do palácio do faraó Ramsés. Cauã é filmado posando sentado
no trono do personagem faraó e cenas da novela com o ator Sérgio Ma-
rone, intérprete de Ramsés, são intercaladas com as de Cauã no mesmo
local. “Voltamos alguns milhares de anos no tempo”, anuncia o repórter
encerrando a reportagem com imagens alternadas de Cauã nos cenários
do palácio de Ramsés com cenas da novela, na sequência em que o Mar
Vermelho é aberto pelo cajado de Moisés (imagem 2):

O faraó Cauã e nós do Balanço Geral já estamos no clima desse


momento que foi literalmente um divisor de águas da história
da humanidade. E a recriação desse momento é também um
divisor de águas na história da televisão brasileira: é a primeira
vez que uma emissora aqui do país recria com toda essa gran-
diosidade esse momento tão importante da bíblia. Hoje à noite
tem mais um capítulo de Os Dez Mandamentos. (grifo nosso).

Imagem 2 – Cauã posando no cenário da novela, no


trono do faraó Ramsés (Balanço Geral, Record)

Fonte: Balanço Geral (2016).

200
Este tipo de veiculação pela emissora, que produz as telenovelas e
séries bíblicas de que trato aqui, não é um ponto fora da curva na sua
programação de jornalismo e entretenimento. Com alguma frequência,
programas como Hoje em dia (jornalismo e entretenimento, exibido
pelas manhãs durante a semana) e Domingo Espetacular (jornalismo, nas
noites de domingo, concorrente do Fantástico, da TV Globo) veiculam
aproximações com o setor de dramaturgia da emissora.4 Trata-se de um
material que busca frequentemente selecionar elementos das séries e
telenovelas bíblicas e aproximá-los dos públicos, não raro com um ar
historiográfico ou arqueológico, de modo a explanar relações das nar-
rativas apresentadas com questões históricas e culturais, inclusive com
a presença de especialistas nos temas situados. Também há reportagens
como aquelas com que abri esta seção, indicando outro tipo de aproxi-
mação: relacionando o público com a telenovela, bem como reportando
“êxitos” comerciais como recordes de audiência, exibições internacio-
nais e a repercussão da versão em filme de Os Dez Mandamentos, cujas
expressivas bilheterias foram alvo de controvérsia por setores que co-
brem o cinema no país.5
Mas há outro tipo de apresentação das séries e novelas bíblicas,
que talvez esteja na intersecção entre a celebração do seu êxito comer-
cial (por seus próprios produtores) e este enquadramento nas narrativas
como concernentes ao presente, como coisas relevantes ao momento
atual embora sejam “históricas”. Refiro-me às reportagens que inten-
tam salientar a monumentalidade das produções, da sua “grandiosida-
de” técnica, das viagens e importações que tais produções demandaram,
bem como dos aspectos de reconstituição dessas narrativas nos estú-
4 Alguns exemplos a fim de ilustrar essa veiculação de temas bíblicos com base nas séries e novelas bíblicas na
programação jornalística e de entretenimento da Record podem ser vistos em: “Saiba mais sobre algumas das tribos
de Israel” (tematizadas em A Terra Prometida e reportagem do matinal Hoje em Dia em 23 de agosto de 2016 e
disponível em https://www.youtube.com/watch?v=bKXpz1Nauyc); “As explicações da ciência para a abertura do
mar Vermelho” (evento importante em Os Dez Mandamentos e reportagem do jornalístico Domingo Espetacular
em 2 de novembro de 2015, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=vwcvuBQLpZQ); “Saiba como
eram as ceias de Natal na época da Bíblia no [quadro] Mitos e Verdades”, também do Domingo Espetacular, em
17 de dezembro de 2017, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=5psMnUsSxio; e “Joias das egípcias
de Os Dez Mandamentos fazem sucesso entre cariocas”, em que aparecem bijuterias inspiradas nas personagens da
novela no comércio popular da Saara, Centro do Rio de Janeiro, no Balanço Geral do dia 3 de setembro de 2015
(disponível em https://recordtv.r7.com/balanco-geral-rj/videos/joias-das-egipcias-de-os-dez-mandamentos-fazem-
-sucesso-entre-cariocas-17022020). Acessos em: jul. 2020.
5 Em números de bilheteria, o filme Os Dez Mandamentos teria vendido 11,269 milhões de ingressos, sendo o filme
nacional mais visto da história até ser batido pela comédia Minha mãe é uma peça 2, em 2017 (ver https://www.
terra.com.br/diversao/cinema/minha-mae-e-uma-peca-2-ultrapassa-renda-de-os-dez-mandamentos-o-filme,8750f-
7f49411829fa55790c3cf1ccce2ns8iq7y9.html).

201
dios da emissora no Rio de Janeiro. Estou me referindo aos esforços de
reconstituição pela cenografia, linguagem, figurino, efeitos especiais e
sonoplastia das histórias pela emissora brasileira.
Importante destacar que o ciclo de teledramaturgia bíblica é um
empreendimento movido pela Record TV desde 2010 com relativa es-
tabilidade, tendo se consolidado como um “estilo” de teledramaturgia,
no horário nobre da emissora.6 Apesar das diferentes repercussões de
cada produto, existe uma permanência na sua exibição em horário no-
bre. Inicialmente foram exibidos em horários secundários da veiculação
de teleficção, na forma de minisséries (às 23h, com A História de Ester,
Sansão e Dalila, Rei Davi e José do Egito, respectivamente em 2010,
2011, 2012 e 2013) e uma série semanal (no mesmo horário, Milagres
de Jesus), até serem implantadas como telenovelas em 2015, com Os
Dez Mandamentos (às 20h30), centralizando a grade noturna da Re-
cord. As novelas seguintes a Os Dez Mandamentos (A Terra Prometida,
O Rico e Lázaro, Apocalipse, Jesus) não tiveram tanto êxito quanto esta.
No contexto da pandemia de Covid-19, as gravações de duas novelas
então no ar (não bíblicas, mas com supervisão de texto de Cristiane
Cardoso, roteirista e filha do bispo Edir Macedo) foram canceladas e
reprises estão sendo veiculadas às 20h30 e às 21h30 (Apocalipse e Jesus,
respectivamente).7

O papel da linguagem na autenticação de cenas “bíblicas”

Gente, aqui atrás de mim nós temos o Templo de Herodes.


Aqui são 3 mil metros de cidade cenográfica, são 55 cenários
que podem sofrer alterações ao longo da novela. Do lado de
cá estou vendo uma galera preparando o figurino, fazendo a
lavagem das roupas com chá para ficar como as roupas eram
naquela época.

6 Abordei em outro trabalho (Scola, 2017) a existência de um tipo distinto de teledramaturgia de tema religioso (mi-
nisséries curtas e ambientadas contemporaneamente, marcadas pelo pouco êxito e baixo investimento de produção,
se comparadas com as mídias aqui tratadas) anterior ao ciclo que abordo aqui e que teve espaço na programação da
Record entre 1997 e 1998. Contudo, entre aquelas produções, duas delas podem ser vistas como antecessoras que
já anunciavam elementos presentes nesse movimento, que viria a partir de 2010, e que foram as últimas incursões
de séries religiosas daquele período: O Desafio de Elias e uma primeira versão de A História de Ester. Para essas
produções e seus contextos, ver Scola (2017) e Oosterbaan (2003).
7 Apocalipse foi reprisada de forma compacta entre os dias 21 de abril e 21 de setembro de 2020 às 20h45 em 110
capítulos. Jesus teve sua reexibição iniciada em 14 de abril de 2020 às 21h30.

202
Esta foi a fala da apresentadora da emissora Ana Hickmann ao
mostrar parte dos cenários da novela Jesus, em reportagem veiculada em
23 de julho de 2018 no programa Hoje em dia.8 “Nós vamos conhecer
a cidade cenográfica, a grandiosidade disso tudo, e também o realismo
dessa produção que estreia terça-feira, às 20h e 45 da noite!”, “a história
do homem que mudou a humanidade”. As palavras “grandiosidade” e
“realismo” são frequentemente mencionadas na reportagem. Vejamos
como determinados itens são apresentados como uma “retratação” dos
tempos bíblicos, segundo os diferentes materiais mobilizados em torno
dessas produções e os sentidos mais comumente acionados nessas for-
mas de publicização.
Como veremos, um trabalho importante em direção à questão da
autenticidade do ponto de vista dos produtores dessas mídias tem rela-
ção direta com as formas de linguagem. Isso se dá tanto na linguagem
visual (paisagens, figurinos e cenografia) como também em paisagens
“sonoras” da bíblia, o que envolve a linguagem utilizada nos diálogos
para as personagens, bem como a sonoplastia e as músicas empregadas
para compor as cenas.
Um ponto que considero importante em relação à busca por rea-
lismo na performance dessas produções é a presença da língua hebraica
em determinadas narrativas, como em Os Dez Mandamentos. Persona-
gens cantam em hebraico em determinadas cenas, o que parece ter uma
importância na performance da verossimilhança. Quer dizer, embora
o roteiro esteja em português, o cantar em hebraico empresta legitimi-
dade, afinal, se está assistindo a uma história da libertação do povo he-
breu. O jornalístico da Record Domingo Espetacular noticiou também o
mesmo esforço de colocar o hebraico em circulação pela novela com a
reportagem “Músicas de Os Dez Mandamentos conquistam fãs de todo
o Brasil” (31 de março de 2016).9 Nela, menciona as canções de ninar
com que uma mãe acalanta sua criança. Nestes momentos, uma legenda
em português aparece na cena. Atores também tiveram que aprender a
cantar em hebraico em alguns momentos da novela.

8 “Ana Hickmann passeia pela cidade cenográfica da novela Jesus”, disponível em https://www.youtube.com/wat-
ch?v=BX3fteYcrHQ. Acesso em: jul. 2020.
9 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=snYPMsD72ig. Acesso em: jul. 2020.

203
Imagem 3 – Personagem Miriã (Larissa Maciel) canta em hebraico
enquanto toca uma pequena harpa (Domingo Espetacular, Record)

Fonte: Domingo Espetacular (2016).

Em relação à ambientação sonora dessas mídias, há de se salientar


a existência de uma comunidade de fãs da novela Os Dez Mandamentos
que gravam os cantos dos personagens em hebraico e os disponibilizam
em playlists em plataformas como o YouTube.10 Nelas, se destacam os
vídeos em que a atriz Larissa Maciel (Miriã, irmã de Moisés) toca harpa
e canta a Deus (imagem 3). A atriz comentou o êxito junto ao público:
“As pessoas ficam emocionadas quando escutam o canto da Miriã”.11
Nos links citados, percebe-se nas descrições dos vídeos o esforço de
aproximar os cantos entoados na novela de distintas audiências, com a
disponibilização da letra “no original hebraico” e em versões não só em
português, mas em espanhol, inglês e francês.
E o tema romântico central da mesma novela (do casal Moisés
e Zípora) possuía versão em português e em hebraico. A música “No
poço te encontrei” foi composta por Daniel Figueiredo e Renato Car-
doso (bispo da Universal e genro de Edir Macedo, também atuante no
10 Um exemplo disponível no momento (agosto de 2020) pode ser visto em: https://www.youtube.com/watch?v=G-
foC7f-pHA4&list=PLrT74sGH1f9qLNMq5oEgRRGNKtf6Tgpof. Acesso em: jul. 2020.
11 “Larissa Maciel comemora sucesso de Miriã em novela da Record”, 12 de maio de 2015. Disponível em: https://
www.falabarreiras.com/sem-categoria/larissa-maciel-comemora-sucesso-de-miria-em-novela-da-record/. Acesso
em: jul. 2020.

204
meio musical com álbuns e DVDs próprios) e cantada, em português
por Moysés Macedo e, em hebraico, por Fortuna (nome artístico de
Fortunée Joyce Safdié), apresentada ao público como cantora brasileira
e judia, que morou em Israel por dois anos e que pesquisa o cancioneiro
sefardita desde 1992. Na reportagem, a cantora relata que o êxito da
canção no Brasil vem do fato de a conexão ser “muito forte” e que “a
música não tem fronteiras, se comunica de coração para coração” (Do-
mingo Espetacular, 2016).
A música também recebeu uma versão para o espanhol (“En el pozo
te encontré”) que embala as cenas do casal no mercado hispânico pelo
qual a novela passou. No vídeo disponibilizado no canal do YouTube
da Record com o clipe da música,12 encontram-se vários comentários de
espectadores latino-americanos saudando a novela. Um primeiro usuário
escreve: “Impresionante tema, este sera mi cancion cuando me case”. Em
outro, lê-se “que linda música, Dios le bendiga. Moises y los diez man-
damientos es la mejor serie que he visto, desde Peru”. Outro comentário
ao vídeo chama a atenção para o uso da música no casamento de uma
parenta do usuário: “hermoso. mi tía se casó con esa canción como no
estaba presente como ella vive lejos”.
Moyses Macedo, cantor do tema mencionado, é filho adotivo de
Edir Macedo e de sua esposa Ester,13 tem uma carreira artística gospel
estabelecida e músicas suas integram a trilha sonora de Os Dez Manda-
mentos e de Jesus. Dois dos comentários do vídeo citados acima falam da
execução de “No poço te encontrei” em casamentos. A reportagem do
Domingo Espetacular voltada ao “encanto dos brasileiros pelas músicas
em hebraico” também noticia o mesmo fato: “A versão foi tão bem rece-
bida que passou a ser usada em cerimônias de casamento em todo país”
(Domingo Espetacular, 2016). Em seguida, são utilizadas imagens de
cerimônias de casamentos disponibilizadas na internet em que três ca-
sais usam essa música. A reportagem relata que “eles não se conhecem,
todos celebram a união com a mesma trilha”.
O tema romântico de Os Dez Mandamentos deixa ver conexões
possíveis entre linguagem, autenticidade e sonoplastia. Deste modo,
12 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=lsMKi_fq7lE. Acesso em: jul. 2019.
13 Disponível em: https://blogs.universal.org/bispomacedo/historia-do-bispo/a-chegada-do-filho-moyses/. Acesso
em: jul. 2019.

205
a produção musical relacionada à teledramaturgia bíblica torna-se um
índice para pensar as formas de enquadramento e de elaboração por
diferentes agentes. Como a produção a respeito da “música gospel”
(Cunha, 2014) já havia salientado, teria ocorrido uma passagem, no
meio evangélico, de uma ênfase cristocêntrica neotestamentária a uma
ênfase teocêntrica vetereotestametária (Cunha, 2014, p. 14) – passagem
esta em que a produção de mídias (música e audiovisual) tem forte
importância. Além disso, Cunha fala da ornamentação de templos e
de instrumentos musicais (como o shopar, de origem hebraica, feito de
chifre de carneiro) na música evangélica.
No caso das séries bíblicas, existe também um trabalho de enco-
menda de pesquisa linguística e histórica com a participação de vários
especialistas. Dentre os que consegui rastrear até o momento, destacaria
Marcella Castor, apresentada em entrevista com Vivian de Oliveira14
como consultora de hebraico e especialista no Antigo Testamento e na
cultura judaica. Marcella é formada em Letras Hebraico pela Univer-
sidade Federal do Rio de Janeiro e ministra cursos on-line numa pla-
taforma chamada Bnei Roma. O site do empreendimento fala da sua
proposta para além da religião, mas com base na bíblia.15

O que se ensina na Bnei Roma? Aqui na Bnei Roma ensinamos


a Bíblia a partir dos Idiomas Originais (Hebraico, Aramaico e
Grego), da História, da Arqueologia, da Antropologia, da Filo-
sofia e da Literatura, mas não ensinamos do ponto de vista da
Teologia e não ensinamos do ponto de vista da Religião.
A Bnei Roma pertence a alguma religião? Não!
Então, por que é uma Escola Bíblica? Porque amamos a Bíblia, so-
mos fascinados por ela e pela maneira como ela influencia o mun-
do moderno. Porque apesar de todos os problemas que a religião já
causou, apesar de todas as dúvidas impostas sobre sua composição,
ela continua sendo o livro mais vendido e lido do mundo.

A ideia de uma “bíblia” que excede um sentido restrito de “reli-


gião”, conforme elaborado pela organização a que se vincula a consul-
14 Vivian de Oliveira é a autora e roteirista titular de grande parte das novelas e séries produzidas pela Record desse
ciclo bíblico, tendo trabalhado em A História de Ester, Rei Davi, Os Dez Mandamentos e Apocalipse, até a sua
saída da emissora em 2018.
15Cf. https://br.linkedin.com/in/marcella-castor-232b912b e https://www.bneiroma.com/quem-somos. Acessos em:
jul. 2020.

206
tora de hebraico da Record, tem grande afinidade com a forma como a
empresa Viagens Bíblicas se apresenta à audiência, como será abordado
em outra seção do texto.

Produzindo presenças bíblicas com mediações “grandiosas”


Voltando à questão da busca pela “grandiosidade” na reconsti-
tuição dos locais e passagens bíblicas, um âmbito que parece bastante
mobilizador é o dos efeitos especiais, procedimento em que Os Dez
Mandamentos se destacou. A emissora fez parceria, então, com uma
produtora norte-americana: a Stargate, que tem no currículo projetos
de efeitos visuais em produções como Spartacus e The Walking Dead.
Ela criou para a Record cenas emblemáticas, como a abertura do Mar
Vermelho e a infestação de rãs e gafanhotos no Egito (Izel, 2017). Para
Apocalipse, foram buscados especialistas nacionais em efeitos especiais.
Segundo matéria de Adriana Izel no Correio Brasiliense de 24 de dezem-
bro de 2017, o objetivo era apresentar desastres e catástrofes ao público
baseados em exemplos reais, reproduzindo tsunamis e terremotos.

Diferentemente do que aconteceu em Os dez mandamentos, a


emissora buscou profissionais brasileiros para os efeitos espe-
ciais: uma equipe com 400 pessoas em São Paulo que traba-
lham unindo técnica e a arte para buscar a verossimilhança nas
cenas. O desafio era mostrar efeitos visuais de coisas que não
aconteceram, não de coisas que, supostamente, já aconteceram,
explica Solange Cruz, diretora de efeitos visuais de Apocalipse.
Logo no primeiro capítulo, a novela mostrou uma cena que
utilizou diferentes tipos de efeitos durante um tsunami que de-
vastou uma praia e deu início à história. Esse foi o primeiro
desastre mostrado no folhetim, em uma cena que contou com
ajuda de engenheiros, dublês e diversas filmagens, sendo uma
delas em Angra dos Reis e outra na sede da emissora, no Rio
de Janeiro. Essa última contou com painéis de cromaqui, três
rampas que disparavam 27 mil litros de água, uma piscina de
100 metros de comprimento com entulhos, galhos de árvores e
carros; tudo isso em seis dias de gravação para apenas 30 segun-
dos de cena. (Izel, 2017).

207
O desastre citado no trecho acima, e que ocupava parte do primei-
ro capítulo de Apocalipse, acontecia, na trama, na Ásia, mas foi gravado
em Angra dos Reis, com o uso de efeitos especiais. A novela tinha nú-
cleos de personagens em Jerusalém, Roma e no Rio de Janeiro, repro-
duzidos em cidade cenográfica. O processo de localização dos cenários
para exibição em locais “onde se passa a bíblia” é, assim, produzido
segundo uma leitura que não é totalmente literal, a qual implicaria gra-
vações exclusivamente nesses locais. O procedimento adotado aqui é o
da reconstituição, da recriação em cenários das paisagens e ambientes
que remetem àqueles lugares. Na verdade, é possível reconstituir as pai-
sagens bíblicas estando parcialmente nesses locais, em viagens e frentes
de gravação contingentes em lugares como o Marrocos, o Egito e a Jor-
dânia. E voltar aos estúdios no Rio de Janeiro, para as cenas de cidade
cenográfica e cenários, estes também reconstituídos dentro da lógica da
“grandiosidade”. É o caso, por exemplo, da novela Jesus, que teve gra-
vações em Ouarzazate, no Marrocos, próximo do deserto do Saara. A
região é famosa pelo turismo decorrente da ambientação de produções
audiovisuais, como Lawrence da Arábia, Gladiador e Game of Thrones.16
No caso da produção mais exitosa desse ciclo até o momento, Os
Dez Mandamentos, as gravações ficaram restritas ao Brasil e à Améri-
ca Latina. Foram gravadas cenas em Guarapuava, interior do Paraná,
em uma região de trigais; a passagem da abertura do Mar Vermelho
foi reconstituída com efeitos especiais, mas gravada numa fazenda em
Itaguaí, Rio de Janeiro, em longas madrugadas (‘Os Dez…, 2015).17
No âmbito internacional, destacam-se as filmagens realizadas no Chile,
como no vilarejo São Pedro do Atacama. Segundo o portal R7, as equi-
pes técnicas da novela plantaram no lugar cerca de mil metros quadra-
dos de totora e junco para reproduzir a vegetação original do rio Nilo,
no Egito. Ali, o rio chileno Loa fazia as vezes do Rio Nilo.18
O recurso a locações internacionais e a efeitos especiais é utilizado
principalmente em momentos-chave das produções. Essas gravações se
dão segundo critérios de organização pela produção bem definidos: a
16 Disponível em: https://recordtv.r7.com/2018/06/28/record-tv-inicia-gravacoes-da-novela-jesus-em-marrocos/.
Acesso em: jul. 2020.
17 Sobre as filmagens no Paraná, ver https://portalovertube.com/noticias-da-tv/elenco-da-novela-os-dez-mandamen-
tos-grava-em-guarapuava. Acesso em: jul. 2020.
18 Disponível em: https://recordtv.r7.com/os-dez-mandamentos/fotos/veja-os-detalhes-das-gravacoes-de-os-dez-
-mandamentos-no-chile-15092018#!/foto/5. Acesso em: jul. 2020.

208
sequência da via crúcis da novela Jesus gravada em Ouarzazate no Mar-
rocos, por exemplo, embora tenha sido exibida na reta final, foi gravada
antes mesmo de a produção começar a ir ao ar (imagem 4).

Imagem 4 – Sequência gravada no


Marrocos da novela Jesus (R7/Record TV)

Fonte: Record TV… (2018).

Em depoimento ao jornal Extra, o ator Dudu Azevedo (intérprete


de Jesus) falou sobre os desafios da sequência.

— Tivemos algumas diárias para gravar a Via Crúcis. Foram


momentos muito difíceis, mas eu me sentia feliz e emocionado
ao fim de cada gravação. Até porque a nossa profissão exige ta-
lento, sem dúvida, e vocação. Mas também perseverança. Cada
dia a gente está num lugar diferente com condições diferentes.
Então é importante não esmorecer — afirma Dudu: — Enfren-
tei uma sensação térmica de 53 graus, com uma maquiagem
pesada e carreguei uma cruz de 70 quilos.19

19 Disponível em: https://extra.globo.com/tv-e-lazer/a-via-crucis-em-jesus-veja-fotos-do-sofrimento-de-dudu-aze-


vedo-em-cena-23556090.html. Acesso em: jul. 2020.

209
As gravações em distintas locações iriam, então, voltar à Record
no Brasil para serem editadas junto a outras sequências filmadas nas ci-
dades cenográficas e estúdios; como dito antes, nesses espaços também
está em curso um empreendimento de grandiosidade, no recurso de
grandes espaços destinados nos cenários e nos esforços em constituir es-
sas mídias como “superproduções”. Estas maneiras de produzir “presen-
ça autêntica” bíblica pela via da materialidade (Meyer, 2019b [2012]),
de modo grandioso e monumental, parecem fundamentais para a ope-
ração que aqui analisamos, tendo em vista a participação qualificadora
das mediações citadas para a autenticação de algo como “bíblico”.
É possível atentar, ainda, para a “remidiatização” desses elementos,
em função de sua circulação, também material. Por remidiatização, en-
tendo a produção de novas mídias com base nessas já existentes, pen-
sando especialmente no que é produzido por meio do acesso do público
a essas mídias em imagens e o engajamento presencial com elas. Cito o
caso da “Exposição Os Dez Mandamentos” (imagens 5 e 6), que viajou
pelo Brasil em shoppings entre 2016 e 2019, com “figurinos usados na
novela e estátuas dos personagens que conquistaram o Brasil”.20 A expo-
sição teve entrada gratuita, conforme dados disponíveis no Portal R7, e
era apresentada ao público com os seguintes módulos.

A mostra, que leva o nome da produção bíblica, terá cerca de


50 itens e está dividida em oito módulos, que [tem] início no
Portal, com estátuas que estavam na entrada do palácio. […]
O público também poderá ver de perto um sarcófago fechado,
uma vitrine com joias da múmia, o cajado de Moisés usado na
abertura do Mar Vermelho e a tábua com Os Dez Mandamentos.
Na área central da mostra está a quinta seção, com estátuas de
cera em tamanho real dos principais personagens da trama:
Ramsés, Moisés, Nefertari. Há ainda as áreas da Vila dos He-
breus, com os figurinos dos escravos Anrão e Amália e a Sala
das Amas, que exibe vestimentas da vilã Yunet, joias e ainda a
roupa de uma meretriz. No módulo Moisés Egípcio, são exibidos
o cesto em que o herói foi encontrado pela princesa egípcia
Henutmire e peças usadas por ele na infância e na juventude
vivida no palácio […]. (grifo do autor).21
20 Disponível em: https://entretenimento.r7.com/pop/exposicao-de-os-dez-mandamentos-chega-ao-rio-de-janei-
ro-06102019. Acesso em: jul. 2020.
21 Ibid.

210
Imagem 5 – Exposição de Os Dez Mandamentos em
São José dos Campos, Shopping Vale Sul (R7)

Fonte: Record abre… (2016).

Nas redes sociais, podem ser encontrados numerosas fotos com


a hashtag “ExposiçãoOsDezMandamentos” (no Instagram, por exem-
plo), com registros das pessoas interagindo com a exposição.

211
Imagem 6 – Exposição de Os Dez Mandamentos no Rio
de Janeiro, no Parque Shopping Sulacap (R7)

Fonte: Exposição… (2016).

Conforme aponta Gama (2012), a produção de imagens por gru-


pos sociais pode ser compreendida como um processo criativo que sa-
lienta a imaginação como uma prática social (Appadurai, 2004). Vol-
tarei a este tema, mas gostaria de sublinhar aqui que a apresentação
(pela emissora) de algo como bíblico ou relativo à bíblia, a participação
visual (pelas audiências) e engajamento sensorial (com uso de músicas
das trilhas, visitação a exposições e o acompanhamento das paisagens e
efeitos especiais, que são apresentados como concernentes à bíblia) se
dão por meio de mediações heterogêneas. Tais mediações possibilitam
adaptações, com filmagens fora das regiões estritamente bíblicas, mas
que são próximas ou adequadas do ponto de vista estético. As mediações
acionadas também possibilitam circulações, como os cenários e figuri-
nos que se aproximam ainda mais do público em exposições gratuitas.
E diante do caso em exame, os meios empregados não tiveram suas mí-
dias rejeitadas (Meyer, 2015), mas, ao contrário, têm êxito ao operarem
como estéticas da persuasão (Meyer, 2018).
De um ponto de vista materialmente orientado, como o de Birgit
Meyer, que influencia esta análise, a questão da autoridade na produção

212
de mediações também é importante, tendo em vista que a adição de
“novas mídias” a determinadas práticas tidas como religiosas incorre
em riscos de rejeição e de negociação diante do inédito (Meyer, 2015).
Em suas elaborações sobre a “estética da persuasão”, a autora aponta
que existe um forte trabalho nas tradições religiosas de, por meio das
mídias, sancionar “presenças” religiosas (Meyer, 2018, p. 26), as quais
se dão mediante materialidades sancionadas pelo grupo. Ao salientar
que possibilidades de adesão, negociação e rejeição estão em jogo para
os exemplos acima tratados, e tendo em vista um conjunto de reações
de interesse por um grande número de agentes, percebe-se um êxito na
constituição de públicos (Warner, 2002) e na aceitação de certas me-
diações como legítimas ou adequadas do ponto de vista da persuasão
estética baseada na aferição da autenticidade e da grandiosidade.

Da reconstituição bíblica à experiência in loco


Israel, Jordânia, Egito. Pensando do Brasil, o que se pode aferir
sobre como tais países inspirem um público brasileiro a visitá-los? O en-
quadramento de destinos citados enquanto “lugares bíblicos” tem sido
uma operação movida por diferentes agentes e, além do turismo, o que
em ciências sociais costuma ser chamado de indústria cultural (filmes,
televisão, literatura de massas) também parece ter participação nesse
processo. O turismo brasileiro a esses países vem crescendo nos últimos
anos. Segundo dados da Câmara de Comércio Árabe-Brasileira, a Jor-
dânia recebeu 18.654 turistas brasileiros ao longo de 2019, um aumen-
to de 49,9% sobre 2018. O Egito teve em 2018 mais de 20 mil turistas
brasileiros, de acordo com o Jornal de Brasília, um aumento de 59%
no interesse se comparado a 2017 – isso apesar de não haver, até então,
voos diretos do Brasil ao Egito. Israel tem números ainda mais expressi-
vos: em 2019, cerca de 82,1 mil brasileiros visitaram o país (foram 5,1
mil só em dezembro), 31% a mais do que em 2018 e com crescimento
de 50% nos dois últimos anos, terceiro aumento anual consecutivo.22

22 Sobre os dados relativos a Jordânia, ver https://anba.com.br/numero-de-turistas-brasileiros-na-jordania-aumen-


tou-50; para o caso do Egito, conferir https://jornaldebrasilia.com.br/mundo/egito-quer-atrair-mais-turistas-brasi-
leiros-em-2019; e para Israel, https://diariodoturismo.com.br/israel-fecha-2019-com-recorde-historico-de-turistas.
Acessos em: jul. 2020.

213
Os três países receberam atores do elenco de produções bíblicas da
Rede Record recentemente para campanhas da empresa Viagens Bíblicas
e produziram o material que analisaremos nesta seção. Essa empresa não é
a única que traz a ideia de viagem bíblica no título e em seus roteiros. Para
fins de comparação, a Terra Santa Viagens fomenta um turismo mais assu-
midamente religioso, com mais destinos do que a Viagens Bíblicas: além
do Egito, de Israel e da Jordânia, os pacotes incluem a Turquia e a Grécia.23
Essa empresa assume também a valorização da “inclusão social, da educa-
ção, da evangelização e do desenvolvimento dos indivíduos com os quais
se relaciona”. Na apresentação do site, a Terra Santa Viagens se coloca ain-
da como um empreendimento produto da “missão” por seus donos: “Em
2008, através de um chamado de Isaías 43:6, os empresários entenderam
o turismo religioso como uma missão e decidiram criar a Terra Santa Via-
gens”.24 Observa-se que a empresa oferece também pacotes específicos para
pastores e descontos a este público em viagens.
A Viagens Bíblicas, que levou os atores de José do Egito e de Jesus a
alguns dos locais de seus pacotes turísticos, adota um discurso em que as
palavras sobre religião são bem menos frequentes. A presença dos atores
nas viagens está registrada em vlogs25 de viagem disponíveis no site da
empresa e na plataforma YouTube. Junto a alguns atores, aparecem acom-
panhantes, como a esposa do ator Dudu Azevedo, sempre orientados de
guias que falam português – o que é um diferencial promovido pela em-
presa em seu site.
No vídeo26 sobre a viagem à Jordânia, os dois destinos são a cidade de
Petra e o deserto de Wadi Rum. Na primeira, Dudu Azevedo (papel-título
em Jesus) e Ricky Tavares (José em José do Egito) são acompanhados pelo
guia turístico na “cidade rosa”, como é conhecida. Petra também é situa-
da como uma das novas sete maravilhas do mundo. No deserto de Wadi
Rum, os atores recebem um jantar típico de comida beduína e são insta-
lados numa tenda. O guia salienta o fato de a região não ter bom sinal de
celular e de internet, o que facilitaria a introspecção, a fruição do momento
e da paisagem. Este estado ajudaria a “esquecer a vida normal” e “desligar”.
23 Disponível em: https://terrasantaviagens.com.br/locais-visitados/#. Acesso em: jul. 2020.
24 Disponível em: https://terrasantaviagens.com.br/sobre-a-terra-santa-viagens/. Acesso em: jul. 2020.
25 Espécie de blog em vídeo. Ou seja, o produtor de conteúdo – o vlogger ou vlogueiro – escolhe alguns temas, faz
produções audiovisuais a respeito deles e publica na web, em espaço próprio. Geralmente, esses vídeos são posta-
dos em plataformas como o YouTube e Vimeo.
26 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=W7kz1J8Ey6s. Acesso em: jul. 2020.

214
O destino principal da viagem do elenco ao Egito é a cidade de
Luxor. O vídeo27 começa com os atores sendo acompanhados no aero-
porto do Cairo. Ricky Tavares comenta que estão chegando em “mais
uma cidade, (para) mais histórias da humanidade”. Os atores conhecem
o Templo de Luxor e de Karnak, que são, nos conta um guia narrador,
o terceiro destino mais procurado do Egito, depois do Monte Sinai e
das pirâmides de Gizé.
Há ainda um vídeo28 mais geral e que mostra um abrangente pa-
cote de viagem, que contempla conhecer o Egito e Israel em dez noites:
duas no Cairo, duas na Galileia, uma no Monte Sinai, quatro em Jeru-
salém e uma no Mar Vermelho.29 O pacote que inclui passagens aéreas
partindo de São Paulo, passeios com guias especializados e que falam
português, as refeições de café da manhã e jantar e a hospedagem em
hotéis, para a data de saída de 9 de novembro de 2020, custa R$ 18.645
por pessoa (ou, em dólares, U$3.300). A empresa traz em seu material
o apoio do Ministério do Turismo de Israel. Também é enfatizado que
turistas brasileiros não precisam de visto para a entrada em Israel, e
essa é uma obrigação somente para a visitação ao Egito – o que torna
pacotes apenas para Israel interessantes. A empresa, porém, ainda pode
providenciar o visto para o Egito aos clientes.
O vídeo sobre esse pacote turístico tenta resumir a quantidade
de experiências possíveis que a viagem propiciaria. Ela é caracteriza-
da como “Um roteiro baseado no Êxodo e na vida de Jesus”, em que
as pessoas vão “visitar os locais dos mais importantes acontecimentos
históricos, arqueológicos e bíblicos”. O narrador também diz que nesta
viagem “Conheceremos as pirâmides do Egito, uma das sete maravi-
lhas do mundo. O Monte Sinai. A Galileia. O Mar Vermelho. Nazaré.
Tel-Aviv. Jerusalém”. E, ademais, o Rio Jordão, onde “você poderá se
batizar” (imagem 7).

27 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=UvgTSSNmMoo. Acesso em: jul. 2020.


28 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=pFK0s2q0bro&ab_channel=ViagensBiblicasm. Acesso em:
jul. 2020.
29 Cf. https://www.viagensbiblicas.com.br/pacote-de-viagem-a-israel-completo-com-guia-sidney-sampaio-a-terra-
-prometida/. Acesso em: jul. 2020.

215
Imagem 7 – Batismos no Rio Jordão no material
promocional de Viagens Bíblicas (YouTube de Viagens Bíblicas)

Fonte: Vídeo “Egito e Israel” (YouTube: Viagens Bíblicas).

O batizado nas águas do Jordão não está incluído no pacote, custa


dez dólares e, por esse valor, no local, também se alugam toalha, bata e
uso do vestuário, para o momento do batizado. Uma depoente é rapi-
damente situada no vídeo após essa informação, dizendo que a experi-
ência “é muito emocionante, renovar na fé, renascer”.
O material em questão faz mais duas ressalvas sobre a viagem.
Uma delas é sobre o preparo físico exigido para subir o Monte Sinai,
trajeto que leva em média seis horas em caminhada. A outra é sobre o
fato de que não há, acompanhando os grupos brasileiros, a presença de
líderes religiosos de nenhuma denominação. Mesmo sendo uma viagem
bíblica e que propicia rituais associáveis a tradições religiosas (como o
batismo), há um esforço por parte dessa empresa em não se associar a
uma religião ou grupo religioso. Comentando a viagem para a câmera,
o ator Dudu Azevedo afirma: “Foi com certeza uma das maiores expe-
riências da minha vida”.
O ator Ricky Tavares dá um depoimento mais longo no alto do
Monte Sinai:

216
Isso aqui é Deus. É Deus. Eu fico até arrepiado de falar. Poder
fazer essa viagem pra mim tá sendo incrível. Porque eu fiz um
personagem que foi muito especial pra mim, que foi o José do
Egito. E estar aqui, poder conhecer um pouco mais da Bíblia…
parece que as histórias saltam em 3D. Isso aqui é incrível, quem
pensa em fazer, não pensem duas vezes. É incrível.

Ricky foi o jovem José em José do Egito (a minissérie tem duas


fases), que foi gravada no deserto do Atacama, no Chile, como outras
produções (como Os Dez Mandamentos), que faziam as vezes das pai-
sagens egípcias. O caso de José do Egito é interessante, pois a minissérie
recebeu grande investimento da emissora à época. Segundo apurou o
site Teledramaturgia:

A Record investiu R$ 7 milhões na construção de cenários de


José do Egito. Mais da metade desse dinheiro, R$ 4 milhões,
foi gasto para erguer a cidade de Avaris, que reproduzia uma
cidade grande do Egito Antigo. Maior cidade cenográfica da
Record até então, Avaris ocupava uma área de 5.500 metros
quadrados. Apesar de todo esse investimento, o departamento
de computação gráfica entrou em ação: no computador, Avaris
recebeu mais de 45 mil casas em 3D.30

O esforço de reconstituição, contudo, parece ser suplantado no dis-


curso do ator pelo “estar lá”. Estar na região, “poder conhecer um pouco
mais da Bíblia… parece que as histórias saltam em 3D” em sua frente.
Pode-se dizer, assim, que esta é uma perspectiva que coloca o turismo
como uma operação de conhecimento, movida por sujeitos ativos, en-
volvidos na produção do que está sendo criado, e não apenas recebendo
significados anteriormente fixados por outros agentes (Crang, 1999).
Junto a essa imagem, o site de Viagens Bíblicas (imagem 8) ainda
situa a ação com os atores com o seguinte texto:

A vida de Jesus e Jose impactaram o Brasil através das novelas


da Tv Record.
Os atores DUDU AZEVEDO e RICKY TAVARES embarca-
ram conosco ao Egito, Jordânia e Israel para conhecer de perto
os lugares mais importantes da história bíblica.
30 Disponível em: http://teledramaturgia.com.br/jose-do-egito. Acesso em: jul. 2020.

217
Juntos tivemos dias maravilhosos na Terra Santa que marcaram
a vida dos atores.
“Acho que ainda vou entender muito mais sobre esta viagem
daqui alguns dias… mas eu posso dizer que se não foi a maior,
foi uma das maiores experiências da minha vida” DUDU AZE-
VEDO.

Imagem 8 – Elenco da Record em banner do


site com a empresa Viagens Bíblicas

Fonte: Viagens a Israel… (s.d.).

Nesta ação, a empresa também convida em seu site para que acom-
panhemos o material que os atores produziram em suas redes sociais
sobre a viagem: “Veja mais fotos e momentos desta viagem nos Stories
do Instagram dos artistas os atores DUDU AZEVEDO e RICKY TA-
VARES”, disponibilizando os links.31 O site igualmente disponibiliza
muitas fotos de grupos de viagem nesses destinos.
Nesta seção, estive interessado em perceber como viagens a des-
tinos identificados como concernentes à bíblia foram, por uma dada
empresa, vinculados a imagens e referências de determinados produtos
da ficção bíblica produzida pela Record (como nomes de produções e
atores de seu elenco) a fim de suscitar uma forma de constituir relações
junto a distintos públicos.
Pode-se perceber que em grande parte essa vinculação entre pú-
blicos e formas de relação se dá por meio de imagens e circulações de
imagens. O recurso às redes sociais dos atores envolvidos na campanha
31 Disponível em: https://www.viagensbiblicas.com.br/fotos-de-nossa-viagem-de-setembro-2018-egito-e-israel/.
Acesso em: jul. 2020.

218
da empresa de viagens, por exemplo, pode sugerir como essas imagens
reforçam registros do seu trabalho como atores nas produções bíblicas
da Record, articulando um sentido de “biblicidade”. Tal recurso oferece
possibilidades de ampliação e aproximação de um caráter de “biblicida-
de” em relação à participação visual com o turismo e as viagens, o regis-
tro dessas imagens e vídeos das viagens e publicação em redes sociais e
a associação do bíblico com o “turístico”, o “histórico” e o “arqueológi-
co”, conforme coloca a Viagens Bíblicas no seu esforço de oferecer aos
viajantes informações especializadas nessas áreas, mas expressamente
sem a presença de “padres ou pastores”.
Abaixo do slogan “Excelência e experiência em viagens a Israel”,
a empresa traz esse aviso em seu site (em letras vermelhas negritadas):
“Em nossas viagens não há realizações de missas ou cultos nem acompa-
nhamento de padres ou pastores!”.32 Conforme entendo, o que está em
jogo aqui é um sentido de “bíblico” (na ação das “viagens bíblicas”) que
não deve ser resumido, portanto, ao de “religioso”, mas compreendido
como algo novo, em si carregado de significados que, embora possa
encontrar disputas com outros agentes (como a comparação com o que
é feito pela Terra Santa Viagens sugeriu), deve ser pensado em bases
autorreferentes, como as formas de interpretação e vinculação que os
agentes envolvidos nas Viagens Bíblicas intentam conformar.

Seguindo estados bíblicos


Escrevendo em 2011, Clara Mafra lembra a difícil situação dos
setores evangélicos brasileiros de se apropriarem legitimamente da cate-
goria de “cultura” e contextualiza que as investidas desse segmento em
relação à monumentalização da fé (como no caso do Templo de Salo-
mão) criam uma comunidade de pertencimento para além dos domí-
nios do Estado-nação e contornam referências europeias de cristandade;
ao contrário, tal movimento “liga Israel ao (bairro do) Brás”, na cidade
de São Paulo (2011, p. 618). Não contemplados por certas acepções
da noção de cultura (mais afinadas com o catolicismo e as religiões
afro-brasileiras), setores evangélicos estariam produzindo seus próprios
32 Disponível em: https://www.viagensbiblicas.com.br/pacote-de-viagem-a-israel-completo-com-guia-sidney-sam-
paio-a-terra-prometida/. Acesso em: jul. 2020.

219
“universalismos parciais” com iniciativas de outra monta em direção à
cultura. Um efeito particularmente original desse tipo de iniciativa é a
possibilidade de apontar para uma comunidade de pertencimento “au-
tenticamente cristã” que não tem a Europa como referência fixa.

A força de persuasão da magnificência do Templo de Salomão


está, se seguirmos as palavras de Edir Macedo, na sugestão de
outro “entendimento” do cristianismo, segundo o qual, na lon-
ga narrativa judaico-cristã, Roma e Europa seriam largamente
ignoradas. Com o templo, uma linha espaço-temporal cruzará
o Mediterrâneo e o Atlântico, ligando Israel ao Brás, em São
Paulo, sem desvio em terras europeias. Há aqui um diálogo
com a tese do “mal-estar da civilização” — se a Europa filtrou
a mensagem cristã de tal forma que ela se autorrepresentou no
topo da hierarquia do mundo, sustentando a reprodução de
uma humanidade crescentemente desigual, está na hora de ig-
norar estes interlocutores consagrados e reler a mensagem cristã
em novos termos.
Com o Terceiro Templo de Salomão, por exemplo, eles estão
sugerindo uma conexão direta com uma remota história judai-
ca e, ao mesmo tempo, repudiando um modo convencional de
construção da história cristã, que necessariamente passa pela
Europa. (Mafra, 2011, p. 618-619).

Tendo esse movimento em vista, meu objetivo neste texto foi situ-
ar como processos suficientemente autônomos – o empreendimento de
teledramaturgia bíblica e as viagens a locais identificados como cenários
bíblicos – e com diferentes fins (cada um a seu modo, podendo ser uma
forma de consumo religiosa e não religiosa33) – constroem intersecções e
interferências mútuas. Ambos os esforços são levados a cabo por agentes
heterogêneos e não se prestam a apenas um fim, de modo que consi-
dero insuficientes meras noções como a de “proselitismo religioso” e
de certa produção sobre as mídias religiosas de corte evangélico que as
compreende, de forma genérica, enquanto “gospel”, como se a categoria
fosse suficientemente transparente e pudesse explicar uma ampla gama
de processos.34 O que me parece mais afinado com esses fenômenos
33 Sobre formas não religiosas de enquadramento das ficções bíblicas da Record, ver Scola (2017).
34 Veja-se ainda, sobre a discussão a respeito da produção de música evangélica e sua pluralidade interna de projetos
e de públicos, o trabalho de Taylor Aguiar nesta coletânea.

220
em exame é uma autonomização do bíblico em relação ao religioso e o
fomento ao interesse de distintos públicos em se colocar em relação de
participação com o que é tido como bíblico. Resumir tais eventos a uma
ampliação do “gospel” ou a formas de proselitismo religioso poderia nos
fazer perder de vista certas especificidades da constituição de públicos,
em que a religião não é o único significado importante e nem o mais
determinante, mas uma leitura possível, entre outras.
Propus, assim, uma leitura materialmente orientada (Latour,
2005; Kopytoff, 2009; Meyer, 2019b) de modo a compreender como
distintos públicos são engajados nas práticas de apresentação, seleção e
mobilização de espaços, imagens e objetos relativos à temática “bíblica”.
Algumas consequências poderiam ser tiradas dessas reflexões, pensan-
do, com Foucault (2009), a questão do espaço, e também com Spivak
e Butler (2018), os efeitos produtivos de articular estudos globais e for-
mas estéticas. Um deslocamento importante que as autoras propõem
é o de pensar o âmbito do político para além de certos marcos usuais
para a formação de coletivos, como as religiões (em seu sentido estrito,
como uma religião específica) e o Estado-nação. Refletindo especial-
mente sobre a palavra “Estado”, as autoras consideram compreendê-lo
como adjetivo, como “as condições em que estamos”. Ao enfatizar o
que chamam de formas não autorizadas de reiterar a nação, Spivak e
Butler (2018, p. 58) nos convidam a atentar para as reinvindicações
que se fazem de forma estética (pela ocupação do espaço público com
palavras e cantos) de modo a reclamar pertencimento, segundo o que
consideram “contradições performativas”, entendidas como formas de
agir que se dão para além do registro normativamente previsto.35
Tal atenção ao discurso e à performance, sem reduzir a segunda
ao primeiro, possibilitaria ver como esta produção de mídias (seja nas
viagens de turismo, seja na teledramaturgia bíblica) coloca em jogo um
35 O exemplo do hino estadunidense explicita o que as autoras estão chamando de “contradições performativas”.
Resumidamente, a lei norte-americana proíbe a execução do hino nacional em uma língua que não seja o inglês.
Imigrantes, contudo, cantaram uma versão traduzida para o espanhol do hino em estado de multidão. Ver Spivak
e Butler (2018, p. 58). A performance instaura para as autoras a tarefa de tradução na declaração de igualdade e
explicita a diferença entre exercer direitos e obtê-los e demandá-los. Assim, o entrelaçamento entre os âmbitos da
política, da linguagem e da performance pode ser visto nessas contradições performativas, que teriam o valor de
deslocar a forma como a política é exercida no âmbito da linguagem, desafiando as suas normas, e proclamando
pertencimento segundo formas poéticas e estéticas. É naquilo de pertencimento e de “novos comuns” que essas per-
formances podem acionar, desafiando noções prescritivas (o estritamente religioso ou o atinente a certas religiões
especificamente), que creio que a noção de contradição performativa mais ajude aqui.

221
conjunto de questões para o tema da autoridade. Pode-se contestar que
uma rede de televisão aberta, que no caso brasileiro é uma concessão
estatal, disponibilize ficções produzidas com base em textos bíblicos? E
as religiões que não concordarem com interpretações da bíblia apresen-
tadas em certas passagens, o que podem fazer? É possível fazer humor
baseado na bíblia? Existiriam mais perguntas possíveis, mas o que quero
enfatizar é um ponto que certa bibliografia sobre o processo de publi-
cização tem abordado (Warner, 2002; Engelke, 2013; Stolow, 2014)
e que considero importante aqui: tornar algo público é abrir-se para a
controvérsia, para a contestação, para audiências imprevistas pelos pro-
dutores de algo.
Muito embora exista um grande número de exegetas, tradutores
e intérpretes do texto bíblico (em distintas tradições religiosas, mas
também preocupados com questões etimológicas, linguísticas, estéticas,
históricas e arqueológicas), a questão da autoridade não é transparente,
de modo que não estamos diante de uma centralização que define algo
como bíblico ou não bíblico. Conforme compreendo, os fenômenos
aqui tratados estão fomentando o caráter social da prática da imagina-
ção (Appadurai, 2004) e as imagens publicizadas (assim como o enga-
jamento com essas imagens) sugerem um movimento ativo e criativo,
apesar de atravessado por jogos de autoridade e reinvindicações de re-
conhecimento que passam, por exemplo, pela questão da grandiosidade
e da autenticidade.
Além disso, talvez seja interessante perceber certa explicitação do
implícito que esteja em curso nas práticas de objetivação presentes nas
tentativas de anunciar e afixar objetos, locais e experiências como “bí-
blicas” em sentido amplo. Pensando a distinção sugerida por Foucault
entre utopias, como posicionamentos sem lugar real, e heterotopias,
como lugares reais e efetivos, espécie de utopias plenamente realizadas,
“lugares que estão fora de todos os lugares, embora sejam efetivamente
localizáveis” (2009, p. 415), podemos perceber certo movimento de
passagem, de uma concepção de espaços e materialidades bíblicas “utó-
pica” para outra “heterotópica”. O cinema e o teatro, bem como o jar-
dim oriental, são alguns dos exemplos de Foucault para a capacidade
das heterotopias em justapor em um só lugar vários espaços e vários

222
posicionamentos que seriam em si incompatíveis. Nesse sentido, creio
que as cidades cenográficas (simultaneamente nos estúdios do Rio de
Janeiro e no Egito Antigo) e o movimento das viagens rumo aos destinos
bíblicos, que intentam oferecer ao turista experiências com “o tempo
bíblico” nos termos das possibilidades técnicas do presente podem ser
bons exemplos de heterotopias que propiciam diferentes objetivos para
distintos agentes sociais.
Conforme o autor o concebe, o conceito de heterotopia não é em
si crítico, não se prestando à denúncia da artificialidade. Creio que este
referencial nos ajuda, principalmente, a perceber diferentes formas de
percepção e organização do tempo e do espaço – nessa constituição
de “espaços outros”, que Foucault compreende tendo as funções, em
relação ao real e ao vivido, de aperfeiçoamento e de compensação, e
não necessariamente de ilusão (2009, p. 420). Seguindo os agentes que
empreendem a busca pelos “estados bíblicos”, entendidos aqui como
leituras de uma condição em que sujeitos estão, nesse caso, em “estados
de bíblia”, de relação com a bíblia, meu objetivo foi o de salientar con-
cepções de materiais, imagens, performances e espaços como tais, com
atenção especial ao movimento de trânsito desses processos e a como
as operações comutativas em curso reforçam e entrelaçam o porte de
significados em uma rede (Latour, 2012).
Tal processo, ademais, pode ter por resultado certa produção da
categoria “bíblico” enquanto distinta do “religioso” e como categoria
razoavelmente autônoma, embora tenha capacidade de interferência
junto a outros registros, como este, do religioso. E, também, políti-
co. Pensemos, por exemplo, no apoio oficial do governo israelense ao
turismo brasileiro. No caso das produções audiovisuais de teleficção,
além de sua exibição original se dar pela veiculação em televisão aberta,
que no país é uma concessão pública, parece haver outras torções em
andamento em relação à sua exibição e certo sentido de publicidade:
refiro-me às negociações do governo federal, via Empresa Brasil de Co-
municação (EBC), para a exibição das duas temporadas da telenovela
Os Dez Mandamentos na programação da TV Brasil, ela mesma uma
emissora estatal, uma vez que esta seria um exemplo de “novelas para a

223
família”.36 A formulação “estados bíblicos”, assim, pode nos fazer ter em
vista essa simultaneidade de processos.
A circulação de imagens, materialidades e objetos de modo a
constituir relações que se querem enquanto “bíblicas” tem, ainda, uma
dimensão estética no sentido clássico do termo, o qual merece algum
desenvolvimento nestas conclusões. No limite, a aproximação entre es-
tética e política pode ser produtivamente elaborada segundo distintas
perspectivas teóricas. Pode-se mesmo dizer que é um tema fundador da
estética na filosofia clássica, o da estética em suas implicações políticas.
Dele derivou o conceito de mimese e uma concepção de estética (ais-
thesis) que não se resume à análise das formas e do campo artístico, mas
tem a ver, fundamentalmente, com a questão da percepção (Gagnebin,
1993). Tal entendimento de estética tem orientado leituras contempo-
râneas, como em Meyer (2018, 2019a) e em Rancière (2005).
Se a estética coloca questões complexas para a política, suas con-
sequências para o tema da religião também são bastante pertinentes.
O vínculo entre arte e religião, conforme Walter Benjamin em A obra
de arte na época de sua reprodutibilidade técnica (2017), pode ser tipo-
logizado e historicizado, estando o tema da religião e da magia como
definidor do sentido da arte em tempos anteriores, quando o teatro,
a pintura e a escultura eram práticas a serviço da religião. O corte em
que a arte passa a ser adorada de forma secular, como beleza, se daria
no Ocidente com o Renascimento, instituindo a aura estética no lugar
da aura religiosa. A fotografia, o cinema e as gravuras, afinadas com
a produção de mercadorias e itens culturais a partir do século XIX,
inaugurariam a época da “reprodutibilidade técnica”. No contexto do
avanço do capitalismo, os itens de arte produzidos via reprodutibilidade
técnica seriam simultaneamente, para o autor, meios e fins, tendo em
vista a autonomização da arte e da intersecção com a indústria cultural
das formas estéticas.
36 A EBC é uma empresa pública federal que possui um conglomerado de mídia no Brasil, tendo sido criada em
2007 para prestar serviços de radiodifusão pública e gerir as emissoras de rádio e televisão públicas federais.
Também é responsável pela EBC Serviços, ramo que produz o programa de rádio A Voz do Brasil para a Secretaria
de Governo da Presidência da República, gerencia a Rede Nacional de Rádio, licencia os programas dos veículos
da EBC, fornece monitoramento e análise de mídias sociais e realiza todo o trabalho de publicidade legal para os
órgãos da administração pública federal (cf. https://www.ebc.com.br/sobre-a-ebc; acesso em: jul. 2020). Conforme
o jornalista Lauro Jardim (O Globo, 30 de agosto de 2020), há uma negociação em curso para a veiculação de Os
Dez Mandamentos na grade da TV Brasil (cf. https://blogs.oglobo.globo.com/lauro-jardim/post/ebc-negocia-nove-
lada-record-para-ser-exibida-na-tv-brasil.html; acesso em: ago. 2020).

224
O que desejo extrair dessa referência benjaminiana considerando o
tema da percepção do “bíblico” se vale da amplitude de consequências
que a reprodutibilidade técnica traz para a noção de autenticidade e de
como a percepção mesma da autenticidade se modifica. As formas de
ver e perceber imagens por meios técnicos (televisão, internet) que se
reportam a um tema “bíblico” e que buscam elas mesmas um sentido
de “reconstituição” do bíblico é uma dessas possibilidades. Outra forma
de percepção tem a ver com o que é promovido pelas viagens bíblicas e
a sua intenção de produzir imagens provenientes da experiência “aurá-
tica” nos “locais da bíblia”. Voltando ao material analisado, quando um
dos atores afirma que estar no Monte Sinai é um verdadeiro “estar na
bíblia”, vivenciando-a “em 3D”, tem-se aí uma forma de enquadrar a
experiência e a relação com o bíblico em bases distintas das demais aqui
analisadas – como a de encenar novelas, visitar exposições provenientes
destas ou escutar a sua trilha sonora em hebraico.
Desta maneira, se grande parte do esforço deste texto foi o de sina-
lizar um eixo em curso de compartilhamento de mídias produzidas por
diferentes agentes em torno do “bíblico” entendido como uma entidade
autorreferente, é importante atentar também para as suas diferenças
diante do tema da estética, da persuasão e das formas de percepção que
elas instituem. Essas diferenças colocam em questão, nos termos deste
texto, diferentes “estados bíblicos”. No caso das viagens, estes passa-
riam pela percepção estética proveniente da experiência de viajar e se
valeriam de outras formas de mídia (produção de fotografias, vídeos,
circulação via redes sociais).
Em um âmbito mais geral, do ponto de vista das mediações atinen-
tes à teledramaturgia bíblica, pode-se dizer que a produção de interesse
com o engajamento sensorial das audiências (da presença em exposições
à mimese de peças de roupa, passando pela captura de temas cantados
em hebraico para utilização para além da execução nas mídias originais)
é bem-sucedido em suas distintas interfaces. O processo de montagem,
de composição de elementos, enquanto uma narrativa bíblica e a pro-
dução desta em imagens, assim, nos ajuda a ver como para distintas
audiências é possível a construção de um “estado bíblico” baseado na
teledramaturgia veiculada pela Record.

225
No que se refere à promoção de viagens a destinos identificados
com “os locais bíblicos”, pôde-se conferir a conformação de determi-
nados espaços enquanto uma especialidade turística que trata a bíblia
não só em sua importância religiosa, mas que a compreende também
das perspectivas “histórica e arqueológica”, isto é, como artefato histó-
rico. Chamo a atenção para o caráter de conhecimento que a atividade
de viajar ganha nessa perspectiva. As formas como a promoção dessas
viagens de turismo são veiculadas interpelam diretamente a produção
da Record.
Em ambos os casos, pela operação de enquadramento, pode-
-se dizer que os atos de seleção e apresentação de algo como “bíblico”
são ações de criação, conquanto sejam operações miméticas (Taussig,
1993), baseadas em um referente proposto – aqui, a bíblia.37 E a própria
formação de valores orientadores desta produção e as formas contex-
tuais de sugestão de autenticidade e persuasão, embora possuam dis-
tinções, apresentam também, como argumentei ao longo deste texto,
capacidades de interferir-se mutuamente, articulando um comum, um
conjunto de espaços, imagens, representações e objetos identificáveis
enquanto “bíblicos”, bem como possibilidades de estar em relação com
estes, propiciando o que chamei de “estados bíblicos”.

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37 A referência ao trabalho de Michael Taussig (1993) intenta salientar os efeitos da produção de cópias na moderni-
dade na relação com imagens fotográficas, artefatos e mercadorias, com atenção à forma com que tais produções
trazem questões para o tema da alteridade. Taussig examina diferentes casos em sua “história particular dos senti-
dos” e levanta pontos importantes para o tema do poder, demonstrando como a própria leitura de algo como uma
“cópia” diante de um “original” tem vínculos com processos envolventes de maior duração, como o capitalismo e
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233
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DOI: 10.48006/978-65-5973-031-5-9

ENTRE O FUNDAMENTO E O POPSTAR :


CONCEPÇÕES DE ARTE EM CIRCULAÇÃO NO CONTEXTO RELIGIOSO AFRO-GAÚCHO

Leonardo Oliveira de Almeida

Este texto trata da relação entre religião e arte com base no univer-
so dos tocadores de tambor, chamados alabês e tamboreiros, que atuam
nas religiões afro-brasileiras do Rio Grande do Sul. Para tanto, apresen-
to um segmento específico de alabês que de forma intensa se relaciona
a recursos e empresas de mídia e que, por uma atuação profissional,
incrementa sua prática religiosa baseada na proximidade (em diferentes
níveis e intensidades) com o universo das artes. Interesso-me, portanto,
pela circulação de palavras como arte, artista, artístico, além de algu-
mas derivações, como estrela e popstar, e a maneira pelas quais estas se
conectam a diferentes percursos de artificação e artisticidade protago-
nizados pelos alabês. Essas duas noções, artisticidade e artificação, se-
rão trabalhadas de forma relacional e terão papel central nas discussões
que serão propostas. Em suma, argumento que, a partir de meados de
2010, momento em que a prática dos alabês gaúchos se alinha a uma
produção midiática impulsionada pelo advento das chamadas “produ-
toras afro”, as expressões “arte” e “artista” passaram a ter uma presença
oscilante no campo religioso. Compreender como ocorre essa oscilação
é um dos objetivos deste texto.
O uso da noção de artificação (Shapiro; Heinich, 2013; Shapiro,
2007, 2019) faz sentido na medida em que permite apresentar dife-
rentes percursos pelos quais as coisas, pessoas e práticas se tornam arte,
quer dizer, se artificam, nas religiões afro-gaúchas. Esses percursos não
se encerram com a noção de “arte afro-brasileira” – que, como destaca
Menezes Neto (2018a), é a expressão mais utilizada para designar este
universo de encontros –, mas se apresentam como um processo de in-
tensa proliferação de categorias. Quando nos aproximamos do campo
religioso afro-gaúcho e, mais especificamente, do cotidiano da prática
religiosa, observamos expressões como “arte do axé”, “arte de santo”,
“arte de fundamento”, “arte do batuque”, entre outras, que de forma

235
alguma são ingênuas ou se sentem obrigadas a fazer referência a cate-
gorias amplamente debatidas por museólogos, artistas, antropólogos e
historiadores. Para compreender esse universo, é preciso estar atento às
diversas concepções de arte acionadas pelos agentes religiosos. Há aqui
um rico campo de análise, que busca identificar disputas e transforma-
ções em torno da artificação e classificação de objetos e práticas, pois,
no cotidiano religioso, nem todas as coisas são artificáveis e nem todas
elas se tornam arte segundo os mesmos percursos. Acrescenta-se que
nem tudo depende apenas dos agentes religiosos para se artificar. Estas
são premissas importantes para as análises que serão feitas.
É necessário, portanto, uma análise que considere as características
próprias do universo religioso em questão. Nesse ponto, a noção de funda-
mento, bastante utilizada na prática religiosa afro-gaúcha e que se alinha a
noções como tradição, ancestralidade, segredo, hierarquia, conhecimento
religioso e preceito, será citada neste texto como um elemento disputado
e capaz de evidenciar, além das particularidades desse universo religioso,
sua relação com concepções diversas de arte. É importante considerar
ainda que este trabalho não tem a pretensão de se aprofundar sobre as
particularidades que as distintas modalidades religiosas (umbanda,
quimbanda e batuque)1 possuem quanto à relação entre fundamento,
arte e religião. Logo, a noção de fundamento será apresentada com base
em sua interação com elementos importantes às discussões aqui propos-
tas, tais como profissionalismo, mídia e jocosidade.
Buscarei demonstrar que, em diversos casos, a presença de linhas
tênues entre o “não ser arte” e o “ser arte” pode ser melhor compreen-
dida como potencializadora das propriedades mágico-religiosas do que
como falta ou como artificação parcial (Shapiro; Heinich, 2013) e ina-

1 No Rio Grande do Sul, há a predominância de três modalidades religiosas: batuque, umbanda e quimbanda. Em
suma, o batuque se destina ao culto aos orixás (Bará, Oxum, Oyá, Xangô, Odé/Otin, Ossanha, Obá, Xapanã, Bedji,
Oxum, Iemanjá e Oxalá). A umbanda, por sua vez, se dedica ao culto de entidades espirituais, divididas em linha-
gens que concentram: marinheiros, índios, crianças, pretos-velhos, entre outras. A quimbanda é o universo próprio
dos exus e pombagiras: prostitutas, boêmios, espíritos do cemitério, entre outros.

236
cabada (Shapiro, 2007)2 – pois estas expressões podem nos levar a uma
compreensão um tanto institucional das etapas finais da artificação, fato
que não se alinha aos processos fluidos que podem ser observados no
contexto religioso afro-gaúcho aqui descrito. Isso faz com que a busca
por compreender como as pessoas fazem ou criam coisas que passam a ser
vistas como arte, bem como a procura por entender “como os criadores
se tornam artistas?” e as “condições que desencadearam essa mudança e o
que ela acarreta” (Shapiro, 2019, p. 6), constitua apenas uma parte neces-
sária da análise. Como veremos, às vezes, para alguns grupos e atores reli-
giosos, é melhor possuir e explorar artisticidades, expressão que retomo de
discussões que realizei anteriormente (Almeida, 2018, 2019), do que ser
enquadrado definitiva ou permanentemente no campo da “arte” ou “da
não arte”. É possível, ainda, negar o status de arte ou os indícios de artifi-
cação sem, contudo, abrir mão da artisticidade. Logo, podemos dizer que
a oscilação das expressões “arte” e “artista”, em uma primeira definição,
ocorre comumente, no caso das religiões afro-brasileiras do Rio Grande
do Sul, segundo esses alinhamentos e descompassos entre a presença da
artisticidade e os extremos “ser/não ser” arte.
Como negar que certas práticas sejam arte ou que certos agentes
sejam artistas e, ao mesmo tempo, mobilizar recursos para que mode-
los, referências e estéticas reconhecidamente artísticos potencializem a
prática mágico-religiosa? Como os alabês lidam com as controvérsias
que emergem quando certos agentes críticos identificam a artisticidade
que pessoas, práticas e objetos possuem e, com isso, evidenciam uma
relação problemática entre religião e arte? Estas são algumas perguntas
que embasam este texto e que justificam a relação complementar entre
artisticidade e artificação.
Tenho por base um percurso de pesquisa realizado entre 2015 e
2018 junto às religiões afro-brasileiras do Rio Grande do Sul, com uma
2 Shapiro e Heinich (2013) consideram a artificação parcial ou incompleta quando esta parece não ter razão para
avançar mais sem ter condições favoráveis. Em outro texto, Shapiro (2007) destaca seu interesse analítico por pro-
cessos de resistência à artificação, desartificação e artificação inacabada. Em um contexto marcado pela existência
de terreiros relativamente autônomos, diferenças entre nações e modalidades rituais e que se embasa na existência
do axé, força que se concretiza e se diversifica constantemente na prática religiosa, artificações “parciais” ou “ina-
cabadas” tornam-se concepções voláteis e que, por esse motivo, estariam relacionadas a parâmetros igualmente
instáveis. Assim, tendo como base os casos que serão analisados neste texto, opto por não anunciar estados parciais
ou inacabados de artificação. Como buscarei apresentar, me interesso pelos casos de disputa entre agentes religiosos
que, ao avaliarem os mesmos objetos, os veem de parâmetros opostos: uns afirmam estar diante de objetos de fato
artificados, enquanto outros negam indícios de artificação.

237
trajetória nômade que buscou acompanhar alabês e tambores em circu-
lação no campo afro-religioso em Porto Alegre e algumas cidades da Re-
gião Metropolitana. A interação entre os alabês e as empresas de mídia,
o universo musical não religioso e a constituição de mercados religiosos
possibilitou a identificação de diferentes concepções de arte, entre elas
as que serão aqui apresentadas.
Dito isso, abordarei neste texto, em sua primeira parte, alguns as-
pectos relacionados à interação entre religião e arte, considerando as
particularidades do universo afro-brasileiro. Em complemento, afirmo
minha opção por um percurso analítico que não busca predefinir como
arte e artista certas práticas, pessoas e objetos, mas que se atém aos ca-
minhos tortuosos e, muitas vezes, conflituosos de artificação. Na seção
seguinte, argumento que as religiões afro-brasileiras do Rio Grande do
Sul recebem influência de diferentes domínios já estabelecidos da arte,
como as artes gráficas e o universo musical, e que estes contribuem
para a circulação de diferentes concepções de arte e para a existência de
regimes distintos de aceitação e recusa da interação entre arte e religião.
Na sequência, apresento como a identificação, realizada pelos agentes
religiosos, de elementos comuns à prática dos alabês e ao universo artís-
tico secular, tal como o uso de palcos e microfones e a associação com
empresas e recursos de mídia, contribui para fomentar certos debates no
campo religioso. Por fim, analiso uma controvérsia ocorrida em 2017,
nas redes sociais, e que mobilizou diversos atores religiosos em torno do
debate acerca das práticas dos alabês e suas transformações no contexto
afro-gaúcho. Veremos que a jocosidade, o uso de determinadas concep-
ções de profissionalismo e a padronização das práticas dos alabês (entre
elas, o respeito aos fundamentos) com o advento das empresas de mídia
são alguns dos recursos acionados por esses agentes para legitimar a
presença da artisticidade.

Religiões afro-brasileiras e arte


Foi encontrada na década de 1980, em Santo Ângelo, na região
gaúcha das Missões, uma imagem esculpida em madeira da deusa afri-
cana da fertilidade, Nimba, produzida provavelmente entre os séculos
XVIII e XIX. Quase quarenta anos depois, em 2018, e após dois anos

238
de pesquisa que ajudaram a fornecer mais dados sobre a descoberta, a
imagem foi apresentada à comunidade acadêmica por pesquisadores da
PUC-RS e, como consequência, assumiu uma nova trajetória. Após sua
primeira aparição pública, a imagem chamou atenção por suas peculiarida-
des, principalmente por ser considerada “a primeira do tipo encontrada no
país”, e passou a ser exposta em museus e espaços acadêmicos de algumas
cidades do Rio Grande do Sul. Nesse trajeto, a deusa carregou consigo
a identificação de seu pertencimento ao universo da arte. Por exemplo,
em artigo publicado na Revista PUCRS, a descoberta foi anunciada com
o seguinte subtítulo: “Estátua de arte secular produzida por afrodescen-
dentes no RS é a primeira encontrada no Brasil” (grifo nosso); o jornal
de televisão gaúcho Bom Dia Rio Grande afirmou que “a descoberta de
uma escultura pode remontar a história da arte africana no país” (grifo
nosso).3 Chamo a atenção para o status de arte adquirido pelo objeto
e, especificamente, para o fato de essa identificação ter alçado a deusa
ao campo da “arte afro-brasileira” e suas variações (por exemplo, “arte
africana no país”).
Essa descoberta recente nos permite evidenciar a existência de
um olhar que atribui artisticidade. Quer dizer, nesse processo, parece
não ser necessário que o escultor da imagem da deusa Nimba se decla-
re artista ou que atribua valor artístico à sua obra, pois historiadores,
antropólogos, artistas, curadores, entre outros agentes, se encarregam de
fazê-lo. O que busco ressaltar é que a atribuição de qualidade artística
aos objetos e práticas não é neutra, pois produz efeitos, estabelece rotas,
lugares, cria ambientes. Dizer “isso é arte” não é um ato ingênuo, pois
agencia transformações. Por exemplo, ao observarmos a repercussão do
caso da deusa Nimba nos jornais, artigos e exposições, é possível identi-
ficar que o objeto em questão foi comumente inserido em debates mais
amplos acerca da arte ou da história da arte, bem como nas tentativas
de identificar as genealogias de uma “arte afro-brasileira”. Como destaca
Shapiro (2007), de acordo com as considerações de Michel Melot, a ar-
tificação é, também, a entrada no discurso da história da arte. Inseridos
nesse debate, os objetos adquirem certas rotas de atuação e exposição.
3 A escultura é a única dessa divindade encontrada em território brasileiro. A reportagem da Revista PUCRS está
disponível em: http://www.pucrs.br/revista/nimba-a-deusa-da-fertilidade/. O vídeo da matéria do Bom Dia Rio
Grande, na RBS TV, pode ser assistido em: https://globoplay.globo.com/v/7025572/. Acessos em: 13 jun. 2020.

239
Em complemento à discussão, Hélio Menezes Neto (2018a, p. 14) e
outros autores afirmam que “não é evidente definir o que é arte afro-bra-
sileira”, noção mais utilizada para designar este segmento de produção
artística e que, segundo o autor, “vem carregada de dúvidas e parece mais
convidar ao questionamento do que explicar”, pois diferentes modos de
concebê-la vêm sendo acionados ao longo do tempo. Não por acaso, por-
tanto, referências importantes nesse campo de estudos comumente em-
basam os debates de seus textos em questões como “arte afro-brasileira: o
que é afinal?” (Munanga, 2000) e “O que é arte afro-brasileira?” (Con-
duru, 2013, p. 9). Emanoel Araújo, organizador da importante coletânea
Mão Afro-brasileira (1988), afirmou, em entrevista concedida à revista O
Menelick 2º Ato:4 “Acho que um pouco é isso: a arte afro-brasileira existe e
não existe.” Apesar dessas incertezas e multiplicidades de sentidos, certas
ideias de “arte afro-brasileira” são constantemente empregadas. Menezes
Neto (2018b) também destaca que a circunscrição da arte afro-brasileira
a certos terrenos (popular, religioso etc.), fato marcado por transforma-
ções ao longo do tempo, se deve, em parte, ao que o autor chama de
“ideia forte” do que é arte afro-brasileira.
Considero que certas “ideias fortes” continuam ainda hoje agindo
nos processos de artificação, especialmente no campo religioso, cen-
tro das análises presentes neste texto; aí, é comum que certos objetos,
formas e práticas advindas de terreiros sejam apresentados por alguns
autores como “potencialmente artificáveis” ou predefinidos como arte.
Nessa direção, vale citar o texto de Silva (2008), que menciona uma
diversidade de elementos considerados como arte afro-brasileira,5 sem a
necessidade de citar diretamente terreiros e religiosos específicos como
os principais agentes da produção desse estatuto. Há, nesse caso, uma
espécie de consenso preestabelecido acerca do que pode ser entendido
como arte nas religiões afro-brasileiras, nos levando a considerar que
alguns aspectos dessas religiões transitam por certos circuitos sem que
seja necessária a apresentação dos processos que os artificaram ou dos
embates em torno da aceitação/recusa da artificação.6
4 Disponível em: http://www.omenelick2ato.com/artes-plasticas/museu-afro-brasil. Acesso em: mar. 2020.
5 Para esse autor, são arte as pinturas corporais feitas nos momentos iniciáticos sobre a pele do iaô, as roupas dos
orixás, os objetos presentes nos altares, alguns objetos comercializados em lojas de artigos religiosos, entre diversos
outros objetos e práticas.
6 Conduru (2019) nos apresenta um breve histórico de como os diferentes tipos de objetos e práticas foram adquirin-
do, entre negações, resistências e aceitações, o status de arte no contexto religioso afro-brasileiro.

240
Meu objetivo não é invalidar os usos da expressão arte afro-bra-
sileira, uma vez que esta não é apenas uma designação, mas um valor
que foi objetificado em certos materiais, práticas e pessoas em um dado
contexto histórico (Sansi, 2007, p. 145) e, como afirma Salum (2017),
trata-se de uma categoria que alçou esse universo da arte a circuitos
internacionais, desligando-o dos grilhões que lhe tentaram impor num
passado não muito distante (arte primitiva, arte de feitiçaria, coleções
de “magia negra” etc).7 Tampouco pretendo advogar pela obrigatorieda-
de de que os próprios religiosos sejam os únicos artificadores legítimos,
mas busco evidenciar os pressupostos e implicações dos usos da noção
de “arte afro-brasileira”. Tal não é somente um recurso que identifica
certo domínio da arte, pois tornou-se também um caminho específico
de artificação para as religiões afro-brasileiras que as vincula a aprecia-
ções de especialistas de outros campos sociais.
Opto por um percurso analítico que não busca predefinir como
arte e artista certas práticas, pessoas e objetos, mas que se atém aos
caminhos tortuosos e, muitas vezes, conflituosos de artificação. Como
forma de iniciar tal percurso, considero que a arte, como toda palavra
viva, se movimenta, se concretiza e se diversifica, sendo utilizada com
diferentes sentidos. Conforme buscarei argumentar ao longo deste tex-
to, compreender a presença da arte no contexto religioso afro-gaúcho
nos convida a considerar que, na prática religiosa, sentidos diversos de
arte podem ser vistos em interação. Isso quer dizer que a aceitação ou
recusa de certos processos de artificação dependem da relação do campo
religioso com ideias de arte que provêm de universos variados: a arte que
se aproxima dos museus, a arte que se aproxima do universo gráfico e
tecnológico, a arte que se aproxima do universo do mercado musical, a
arte que se aproxima das artes plásticas, entre diversos outros domínios.
Isso contribui para que certos objetos, práticas, sons e formas sejam
mais aceitos como arte do que outros. Por exemplo, no caso gaúcho, é
possível que axós (roupas) sejam aceitos como arte e, inclusive, expostos
7 A ideia de arte, quando relacionada ao universo religioso afro-brasileiro, ganhou expressões parceiras ao longo
dos tempos, prática que se mostra uma constante na história da arte (Price, 1996). Para dar alguns exemplos, em
texto pioneiro, Nina Rodrigues (1904) fala em “belas artes dos colonos pretos do Brasil” tendo como base certas
concepções de primitivismo e inferioridade racial. Price (1996) e Mattos (2020) dizem de que forma essa arte foi
considerada “primitiva” durante boa parte do século XX. Mario Barata (1941) escreveu sobre a “arte negra” no
Brasil e, mais recentemente, Cleveland (2012) se utilizou da mesma expressão para suas análises. Conduru (2007)
defende a noção de “arte afrodescendente no Brasil”.

241
em museus.8 Por outro lado, quando a prática musical de terreiro se
assemelha à arte tal como advinda do universo artístico e musical se-
cular, há a possibilidade do surgimento de conflitos, transformando as
palavras arte e artista em instrumentos de ofensas e acusações.
A isso se soma ao fato de que a trajetória de determinados objetos
nem sempre contempla todos os aspectos presentes em certas cadeias
operatórias de artificação. Roger Sansi (2013) exemplifica como essas
cadeias, que não são totalmente consensuais, são interrompidas. Ele nos
apresenta o caso de um otã que foi levado ao Museu da Cidade, em
Salvador. Essa pedra, que compõe o assentamento do orixá (e é o pró-
prio orixá particularizado) chegou ao museu juntamente com outros
objetos que, após reivindicação do movimento negro, foram retirados
do Museu Antropológico Estácio de Lima, vinculado ao Instituto Mé-
dico Legal da cidade. Esses objetos faziam parte de um acervo herdado
de Nina Rodrigues e possuíam a marca das perseguições policiais e da
classificação como “provas de crime” e como expressões de “degenera-
ção racial”. Em suma, tal como no caso explorado por Brulon (2013)
sobre a exposição Mãori – Leurs trésors ont une âme (2011) no Museu
do Quai Branly, em Paris, não foi possível fazer com que os objetos
expostos fossem “museograficamente neutralizados” para que o museu
não arcasse com a reponsabilidade moral de expor os objetos sagrados
de formas consideradas inapropriadas por certos grupos.
Iniciou-se, assim, no caso de Salvador, um movimento pela realo-
cação dos objetos. Além disso, havia uma reivindicação e um debate
em torno da ideia de arte, que Sansi (2013, p. 115) resume da seguinte
forma:

O que os representantes das casas de candomblé estavam pedin-


do, no fim das contas, era precisamente que o material de cul-
tura do candomblé fosse reconhecido em pé de igualdade com
a arte ocidental. Eles não estavam exigindo que os objetos re-
tornassem para as casas de candomblé; queriam que os objetos
fossem reconhecidos como arte sacra e expostos em museus de
arte junto com obras de arte históricas e contemporâneas, e não
em um museu policial. Em outras palavras, eles reconheciam os

8 Como na exposição Asó do batuque e do candomblé: as vestes tradicionais do sagrado afro-brasileiro, realizada
no Museu Júlio de Castilhos, em Porto Alegre, em 2019.

242
museus como instituições apropriadas para guardar esses obje-
tos: mas no museu apropriado e da forma certa.9

Após decisão final, os objetos foram transferidos para o Museu da


Cidade. Esse novo espaço foi reconhecido pelo movimento negro e por
religiosos como um lugar correto para se expor os objetos, com exceção
de um caso: o otã. Na prática religiosa, o otã é um objeto particular,
resultado de processos específicos de iniciação e consagração religiosa, e
nunca é exposto em local público. Sansi (2013, p. 116) complementa:
“Diferentemente dos outros objetos, [o otã] não é uma obra de arte, não
é um artefato, e seu poder imanente deve ser respeitado – a pedra deve ser
escondida e não deve ser vista”. O caso nos mostra que as religiões afro-
-brasileiras possuem alguns mecanismos próprios de artificação. Como
foi dito anteriormente, nem todos os objetos e práticas são artificáveis e,
em diversos casos, quando há tentativas de artificação, há controvérsias.
A isso se soma o fato de que o contexto religioso afro-gaúcho e, mais
especificamente, a prática dos alabês nos mostram que algumas práticas,
objetos e pessoas não são facilmente capturadas por domínios bem esta-
belecidos do “isso não é arte” e do “isso é arte”, mas insistem em habitar
zonas medianas e controversas que nos remetem a um espectro diverso
de intensidades do artístico. Como meio de abordar essa questão, retomo
uma expressão que utilizei em outro momento (Almeida, 2018, 2019) e
que diz respeito aos potenciais de certos objetos, formas, sons e práticas
de serem arte ou de possuírem atributos considerados artísticos. A ex-
pressão artisticidade pode ser utilizada como medida abstrata, tal como
na palavra flexibilidade (potenciais de determinado elemento, pessoa ou
coisa de ser e de possuir atributos do flexível). Nesse caso, a artisticidade
permite-nos falar em graus de incorporação ou presença de elementos que,
de alguma maneira, são reconhecidos como pertencentes aos universos
da arte. Torna-se interessante, por exemplo, analisar quais são as condi-
ções de possibilidade de uma atuação religiosa que, em alguns circuitos,
nega que a prática do alabê seja ou esteja se transformando em arte e, ao
mesmo tempo, busca se beneficiar de uma aproximação estética e perfor-
9 Um caso recente reforça a relevância do debate. Foi iniciado, no Rio de Janeiro, o movimento Liberte Nosso Sa-
grado, que esteve à frente da “libertação” de objetos religiosos apreendidos pela polícia do Rio de Janeiro entre os
séculos XIX e XX. Após alguns anos de negociações, a transferência provisória de mais de quinhentos objetos do
Museu da Polícia Civil para o Museu da República ocorreu em setembro de 2020.

243
mática em relação ao campo artístico musical secular. O resultado dessa
aproximação é o que chamo de artisticidade.

Artes diversas no universo religioso afro-gaúcho


No Rio Grande do Sul, estado brasileiro que, segundo o IBGE
(2010),10 foi apontado como aquele com maior número de pessoas que se
declaram adeptas das religiões afro-brasileiras, um diversificado mercado
de serviços religiosos vem ganhando expressão. Em parte, esse mercado
se sustenta por uma demanda que, além de quantitativa, é impulsionada
por outras especificidades do campo religioso afro-gaúcho, como o fato
de a maioria das “casas de religião” se afirmar como praticante das três
modalidades religiosas mais presentes no Rio Grande do Sul – umbanda,
quimbanda e batuque (Corrêa, 2006; Oro, 2012). Esse fator contribui
para a existência de uma clientela mais ou menos integrada, do ponto de
vista das possibilidades de compartilhamento de mercados, e que media
um intenso fluxo de serviços. Os batuques, quimbandas e umbandas in-
teragem e, com eles, também seus respectivos mercados.
Entre as atividades disponíveis, podemos citar as empresas de mídia
com atuação voltada exclusivamente para o mercado religioso;11 um merca-
do competitivo de tocadores de tambor (alabês ou tamboreiros); o aluguel
de palcos e jogos de luz para as festas de quimbanda; a decoração de am-
bientes externos utilizados para a realização de rituais (casas de show, giná-
sios, galpões); a produção de bolos e outros alimentos em que figuram as
estéticas das divindades, muito utilizados nos rituais religiosos; a confecção
de camisas estampadas; a criação de brasões de famílias religiosas; a produ-
ção de vultos12 dos orixás e de tambores e agês; a confecção de axós (roupas);
a produção de adereços e ferramentas dos orixás e entidades; entre outros.13
10 Ver: https://gauchazh.clicrbs.com.br/geral/noticia/2012/06/dados-do-ibge-colocam-municipios-do-estado-como-
-campeoes-em-credos-3806966.html. Acesso em: jun. 2020.
11 Grande Axé, Ówò Produções, Império Mídia, Donos da Noite, Kizomba, Planetá África, entre outras, são exem-
plos de empresas que atuam no Rio Grande do Sul.
12 Imagens de madeira, ferro, entre outros materiais, que com frequência são utilizadas na composição (feitura) de
assentamentos e altares dos orixás.
13 Consolidam-se, nesse mercado, artistas de diferentes áreas. Podemos citar Migui, da Ówò Produções, que cria
estampas de camisas personalizadas (imagem 1); Rodrigo Fangial, que produz brasões para terreiros e famílias
religiosas (imagem 2); Cláudia Kindges, artista de Torres (RS) que produz ilustrações dos orixás; Rita Imagens que
produz e restaura imagens de orixás e entidades em Porto Alegre; Jorge Tambores, produtor de tambores persona-
lizados na cidade de Alvorada (RS); Patty D’Oya, conhecida por suas esculturas realistas de pombagira; o estilista
Renato de Boita; entre diversos outros artistas.

244
Imagem 1 – Brasões de Orixás

Fonte: Instagram @brasoesdeorixas.

Imagem 2 – Arte de camisetas da Ówò Produções

Fonte: Facebook Ówò Produções.

As diferentes concepções de arte que circulam nesses mercados co-


mumente se distinguem por sua proximidade com outros universos já
bem estabelecidos. Algumas se relacionam ao universo das artes gráfi-
245
cas, com ênfase no uso de recursos digitais. Esse é o caso das camisas,
cartões de divulgação e brasões. No que diz respeito aos tocadores de
tambor, alabês e tamboreiros, é comum que parte do que compõe certas
concepções de arte e de artista que a eles são comumente relacionados
advenha, não sem controvérsias, do campo musical secular. Essas iden-
tificações entre o religioso e esses domínios da arte se dão segundo o
compartilhamento de características estéticas específicas e certas lingua-
gens de identificação artística, técnicas de produção, modos de circu-
lação dos objetos, maneiras de estabelecer os valores a serem cobrados
durante a comercialização, formas de reivindicação de autoria, modos
de apreciação, entre outras características. Reelaborando uma afirmação
de Silva (2008), invertendo alguns termos, é possível afirmar que o
diálogo do terreiro com o mundo que o circunda possibilitou o surgi-
mento de práticas religiosas que mantêm uma relação de proximidade
com os princípios estéticos e performáticos dos campos da arte, mas ao
mesmo tempo essas experiências são reelaboradas em termos de uma
nova linguagem que, em diferentes graus, as afastam ou as aproximam
desses campos. Considerar esse continuum de aproximação/afastamen-
to permite localizar os artistas/religiosos e suas obras num trânsito de
versões do sagrado (Silva, 2008). Para dar um exemplo, um ponto de
quimbanda,14 comumente utilizado para convidar entidades e conduzir
performances nos terreiros, ganha novos circuitos de atuação quando
passa a ser registrado em um DVD que, em suas características estéticas
e modos de apreciação, recebe influência de artistas do universo musical
secular. Uma nova versão do sagrado é produzida.
Um dos percursos de artificação nesses universos de artisticidade,
inseridos em mercados religiosos, é a complexificação dos recursos e
modos de individualização dos trabalhos produzidos, o que remete a
certas concepções de autoria. Recordo-me de uma discussão em torno
de cópias de imagens produzidas por uma “artista de santo” de Torres
(RS). No debate, que chegou até mim durante um churrasco entre ami-
gos e interlocutores de pesquisa, a artista foi mencionada por ter sido
alvo de “pirataria”. Suas imagens vinham sendo utilizadas sem seu con-
sentimento para a confecção de produtos derivados, comercializados
14 Pontos de quimbanda são músicas comumente utilizadas durante os rituais destinados aos exus e pombagiras e
atuam ativando aspectos importantes da história e da atuação mágico-religiosa dessas entidades.

246
no mercado religioso. Sobre um desses casos, a artista escreveu em suas
redes sociais:

POR GENTILEZA, PÁGINAS RELIGIOSAS E USUÁRIOS!


Podem usar minhas imagens, desde que dêem os devidos cré-
ditos autorais, porque arte de Orixá ainda não tem colaboração
alienígena! Vejo muitas imagens minhas e de meus colegas, vio-
ladas, adulteradas no Photoshop, cortadas, assinadas com outros
nomes, impressas em qualquer lugar, em produtos de baixíssi-
ma qualidade pra saciar a ganância de gente criminosa, porque
PIRATARIA É CRIME! Respeite e propague o RESPEITO ao
trabalho do artista-de-santo! Cada artista tem seu estilo e é fácil reco-
nhecer um trabalho nosso! RESPEITE ISSO! (grifo nosso).

No caso dos alabês, o discurso sobre autoria, ligado a certas con-


cepções de arte (as que estão relacionadas ao mercado musical), é com
frequência acionado nos circuitos de produção, comercialização e di-
vulgação de fonogramas. De forma semelhante ao que foi dito pela
artista de santo, o Alabê Felipe de Oxalá escreveu em suas redes sociais,
em 2014, sobre a venda e a cópia não autorizada de seus CDs de quim-
banda, umbanda e batuque: “Por favor não copiem CD para ninguém,
respeitem o artista!! Precisamos da colaboração de todos para o trabalho
seguir em frente!” (grifo nosso).15 Em vídeo publicado no YouTube em
2013,16 o alabê Thiago Silva divulga o lançamento do seu primeiro CD:
“Vou pedir aos nossos amigos que não comprem CD pirata, ajudem o
artista. Gostaria de dizer que a trajetória dos Mestres da Magia só acon-
teceu porque vocês todos, os nossos fãs, nos deram o apoio que a gente
precisou nesse um ano e dois meses.” Vagner de Agandjú, outro alabê,
escreveu sobre seus CDs: “Nos deem essa moral, pois isso é um incen-
tivo ao artista religioso. Contatem conosco e adquira o seu exemplar
original. Vale a pena, eu dou minha palavra, pois estou junto nessa obra
magnífica.” (grifo nosso).17
Como será descrito mais adiante, a aproximação entre os alabês e
o universo das artisticidades foi impulsionada pelo surgimento de em-
presas de mídia que destinaram parte de suas atividades à divulgação
15 Felipe de Oxalá, fevereiro de 2014. Fonte: Facebook pessoal do alabê. Acesso em: jun. 2020.
16 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7wCf-Oetd50&t=94s. Acesso em: jun. 2020.
17 Vagner de Agandjú, fevereiro 2014. Fonte: Facebook pessoal do alabê. Acesso em: jun. 2020.

247
desses músicos rituais no circuito religioso,18 fato que pode ser com-
preendido como um desdobramento do que Braga (2013) evidenciou
sobre o intenso processo de profissionalização dos tamboreiros gaúchos.
O encontro desses fatores, que teve início em meados de 2010 (pe-
ríodo que coincide com as publicações sobre pirataria de CDs citadas
anteriormente – 2013/2014), deu novas formas à relação entre autoria
e artisticidade, processo marcado pelo investimento na máxima “cada
artista tem seu estilo e é fácil reconhecer um trabalho nosso!”, e con-
tribuiu para que a aproximação cada vez mais evidente entre os alabês
e o mundo artístico secular resultasse em uma intensa oscilação das
categorias “arte” e “artista”.

Pincéis e telas, microfones e palcos


Em texto que compreende a arte afro-brasileira como um “espírito
libertador”, escrito em 1976, Abdias Nascimento (2018, p. 38) afirma:

Pinto Ogum e me comunico com a divindade do ferro, da


guerra, da vingança, companheiro de armas dos seres humanos,
irmãos que lutam por liberdade e dignidade. E quando evoco
na tela a Iemanjá, mãe de todas as águas do Universo e de todos
os Orixás, celebro aquela que vigia maternalmente sobre a fer-
tilidade da raça negra [...].

Abdias Nascimento parece querer anunciar ao leitor que, por mais


que alguns elementos do que se convencionou chamar arte afro-brasi-
leira sejam comuns a outros universos da arte, tais como pintar e evocar
na tela, esses procedimentos operam de outras formas no domínio reli-
gioso. O alerta do autor é feito, também, para que diferentes processos
de arte não se confundam, sob o risco de não considerarmos as ma-
neiras pelas quais as divindades se tornam presentes nos percursos de
criação ou feitura artística.
18 Para muitos desses músicos rituais, o ritmo intenso de toques somado aos valores cobrados pelos serviços reli-
giosos permite que tenham essa atividade como única fonte de renda. Já em 2013, quando os chamados “alabês
midiáticos” tomavam suas primeiras formas, Braga (2013, p. 209) escreveu: “Hoje, há um consenso no grupo
em considerar a situação do tamboreiro profissional tal como a do músico, tanto em termos de status profissional
quanto de remuneração, pois não consideram ser remunerados e respeitados dignamente. Entretanto, alguns com
certo prestígio cobram valores que, comparados aos músicos profissionais que atuam na noite, são proporcionais
ou mesmo superiores aos ganhos destes.”

248
Dois pontos podem ser destacados. Primeiro, como parte de mais
um dos percursos de artificação, é possível que a presença de certas
técnicas, instrumentos e formas (identificados como comuns a certos
universos bem estabelecidos da arte), atuem, no campo religioso, como
impulsionadores da artificação.19 Nesse caso, o uso de pincéis e telas,
por exemplo, além de outros recursos, pode conferir artisticidade a prá-
ticas e objetos religiosos e, ademais, resultar na identificação destes com
alguns domínios da arte. Esse também parece ser um dos mecanismos
pelos quais certas práticas são mais facilmente dotadas de artisticidade
do que outras. Em segundo lugar, se, por um lado, os elementos co-
muns a universos já consolidados da arte impulsionam processos de
artificação, por outro, é igualmente por esse motivo que atribuir artis-
ticidade a práticas e objetos pode ser causa de controvérsias. É por isso
que diversos religiosos buscam com frequência anunciar as compatibili-
dades entre o artístico e o religioso.
Vários tamboreiros e alabês com quem tive oportunidade de con-
versar ao longo do processo de pesquisa me disseram que a relação entre
a prática desses músicos rituais passou a ser identificada com o universo
da arte com base nas semelhanças em relação ao universo musical se-
cular. Ao comentar a incorporação de aulas de canto, noções de pro-
fissionalismo, gravação de CDs e DVDs, produção de logomarcas e a
existência de palavras como “fãs”, “presença de palco” e “composição
autoral” na prática dos alabês gaúchos, Felipe Paiva, dono de uma das
produtoras de mídia mais atuantes em Porto Alegre, afirmou em en-
trevista que “a partir disso o Alabê virou um artista, um músico, uma
pessoa conceituada, então a gente consegue fundir um pouco da criação
de arte,20 duma coisa mais moderna, mas, dentro do trabalho, não perde
fundamento, entendeu?” (Paiva, 2016). Essa afirmação, que muito se
assemelha à de Abdias Nascimento, indica que os processos de artifi-
cação, que passam pela identificação de elementos comuns a universos
estabelecidos da arte, com frequência são postos em debates que visam
encontrar ajustamentos em relação aos fundamentos religiosos.
19 Como demonstrei em Almeida (2018), esse debate não deve se restringir a considerar as influências externas ao
religioso como os únicos caminhos de artificação, pois, como exemplo de outros percursos, gerações consolidadas
de artistas/religiosos podem contribuir para esse processo.
20 Não apenas a prática dos alabês se torna identificada e identificável como arte ou artístico, mas também os recursos
de divulgação utilizados pelas empresas.

249
Fundamento, no contexto gaúcho, é uma das palavras mais impor-
tantes no regime afro-brasileiro de existência e diz respeito a aspectos da
prática religiosa que se relacionam a noções como tradição, ancestrali-
dade, segredo, hierarquia, conhecimento religioso e preceito. Trata-se de
uma expressão constantemente acionada no cotidiano religioso. É dito
comumente, por exemplo, que determinada prática “tem fundamento”
ou que “é fundamento”. Um pai de santo pode ser identificado como
alguém que “sabe os fundamentos” do lado do ijexá (nação Ijexá). Ao
entrar pela primeira vez em um terreiro de batuque, um visitante pode
ser informado de que no quarto de santo21 “estão os fundamentos” da
casa. Determinado terreiro pode ser compreendido como sendo “uma
casa de fundamento”, para fazer referência à importância dos ancestrais
e à realização de procedimentos considerados tradicionais. Como des-
tacam Oro e Anjos (2008, p. 86), ao fazer referência à Festa de Iemanjá
do Rio Grande do Sul, o fundamento do culto à Iemanjá “não reside em
ideias, mas sim na concretude fluida das águas como ícone da divindade
africana. O encadeamento entre as características do orixá e o ‘ícone’
como intensidade que singulariza aqui e agora as dimensões sagradas da
divindade é o fundamento”. Nesse sentido, fundamento não se limita
a ser apenas sinônimo de “conhecimentos” e “normas”, pois pode ser
compreendido como intensidade, como algo que singulariza aqui e ago-
ra dimensões sagradas. Fundamento é, ao mesmo tempo, as relações, as
maneiras de produzi-las e o que estas fazem. Essas questões, importan-
tes para o debate proposto, serão retomadas mais adiante. Voltemos à
apreciação de outros elementos que atuam como pincéis e telas.
Entre outras práticas que propiciaram identificações entre o reli-
gioso e o universo artístico, e que também ditam alguns caminhos de
artificação, está a utilização de microfones e do palco durante os rituais.
Com frequência, o uso desses recursos, que comumente atualiza o de-
bate sobre o respeito aos fundamentos, está relacionado ao crescimento
da quimbanda no Rio Grande do Sul, fenômeno que teve início nas
décadas de 1970 e 1980 (Leistner, 2014) e que está, para diversos reli-

21 O quarto de santo é o local onde são guardados os assentamentos (o orixá particularizado) dos filhos de santo e
onde são realizados rituais iniciáticos, oferendas e outros momentos importantes da vida religiosa.

250
giosos, vinculado a um processo de evolução dos exus e pombagiras.22
Como evidenciei antes (Almeida, 2018), esse processo de evolução es-
piritual esteve intimamente ligado à afinidade dessas entidades com re-
cursos tecnológicos e de mídia e ao que diversos religiosos chamam de
“inovação”, tornando essa modalidade ritual um espaço propício para
a inclusão e experimentação de novos elementos, tais como o uso de
palcos, jogos de luz e a saída das festas de quimbanda do espaço ritua-
lístico dos terreiros. A utilização de grandes espaços, se comparados aos
terreiros, se tornou prática recorrente nas quimbandas gaúchas. Salões
de festa, escolas de samba, sedes de times de futebol, ginásios e casas de
show são comumente alugados para comportar uma grande quantidade
de convidados e teriam, segundo alabês e outras lideranças religiosas,
estimulado o uso de microfones e equipamentos de som. Em sintonia
com esses argumentos, o alabê Daniel Silveira publicou em suas redes
sociais uma foto, tirada minutos antes do início de um ritual de quim-
banda. A publicação mostrava um dos salões da sede do Grêmio Espor-
tivo Palmeira,23 como forma de evidenciar que um grande espaço como
aquele exigiria a utilização de equipamentos de som: “Tocar num salão
como esse sem som? Ainda querem falar que os alabês são popstar”.24
Soma-se a isso o fato de que os pagodôs, tradicionais arquibancadas
utilizadas para acomodar os alabês durante a realização de rituais nos
terreiros, vêm sendo substituídos por palcos e plataformas de modo a
comportar não apenas um maior número de pessoas, mas também para
que seja possível instalar equipamentos de som e jogos de luz. Estes
últimos recursos, dizem pais e mães de santo, contribuem para criar
os ambientes de magia desejados por exus e pombagiras em sua versão
“evoluída”. Surgem expressões antes inexistentes, tais como “presença
de palco”. Fala-se com frequência: “aquele alabê tem uma boa presen-
ça de palco”, para fazer referência à performance e à condução ritual
diante de divindades, cavalos e demais participantes. O certo é que,
com o palco sob seus pés e com o microfone em suas mãos, como pode
ser visto nas imagens apresentadas a seguir, os alabês e também as fes-
22 Além disso, as particularidades próprias do universo da quimbanda evidenciam a existência de relações específi-
cas entre arte e fundamento, se considerarmos as diferentes modalidades rituais presentes no Rio Grande do Sul:
umbanda, quimbanda e batuque. Em cada caso, há também configurações particulares entre arte, fundamento e os
recursos de mídia.
23 Time de futebol da cidade de Cachoeirinha (RS).
24 Daniel Silveira. Fonte: Facebook pessoal do alabê. Acesso em: ago. 2017.

251
tas de quimbanda ganharam novas performances de mediação com as
entidades e, com isso, contribuíram para tornar ainda mais evidente a
aproximação entre religião, artificação e artisticidade.
Nas duas fotos apresentadas (imagens 3 e 4), Felipe de Oxalá con-
duz, em parceria com sua equipe de alabês, as festas de quimbanda des-
tinadas ao Exu Vladimir e ao Exu Rei das Sete Encruzilhadas, realizadas
em 2018, nas cidades de Alvorada e Viamão. As imagens também ex-
põem como alguns dos elementos citados anteriormente (palcos, jogos
de luz, performance ao microfone etc.) podem ser vistos em interação
nas festas de quimbanda.

Festa Exu Vladimir – Alabê Felipe de Oxalá (2018)

Autor: Leonardo Almeida.

252
Festa Exu Rei das 7 Encruzilhadas – Alabê Felipe de Oxalá (2018)

Autor: Leonardo Almeida.

O que me interessa destacar é a possibilidade de identificação de


afinidades entre as práticas dos alabês e as artisticidades, pois é com base
nisso que a arte se torna uma categoria de acusação, como no caso que
será descrito na última parte deste texto e que faz referência a uma dis-
cussão ocorrida nas redes sociais após uma influente liderança religiosa
proferir críticas às novas gerações de alabês. Nesse contexto, chamar um
alabê de artista (ou popstar) torna-se uma maneira de evidenciar desen-
contros entre a prática desses músicos rituais e os preceitos religiosos.
Estão em questão as tensões entre os fundamentos religiosos e a presen-
ça do artístico, processo mediado por múltiplas identificações entre o
religioso e elementos que, para alguns, são e devem lhes ser externos.
Por outro lado, e ainda considerando o caso da referida discussão nas
redes sociais, alguns alabês buscam mostrar, como resposta às acusa-
ções, que é possível evocar fundamentos religiosos para a aproximação
com a artisticidade, evidenciando que não existem apenas relações de
oposição entre fundamento e arte, mas também complementaridades
que potencializam a atuação mágico-religiosa e profissional. Em suma,

253
podemos compreender a relação entre arte e fundamento como uma
interação disputada, como alinhamento ou como descompasso, mas
sempre posta.

Mídia e artisticidade
A relação entre as artisticidades e os alabês gaúchos ganhou maior
impulso a partir de 2010, quando surgem no mercado religioso algu-
mas empresas de mídia e marketing, tais como Donos da Noite (2013),
Kizomba (2017) e Ówò Produções (2018), que passaram a dedicar par-
te de sua atividade à divulgação de alabês. Isso quer dizer que, além da
produção de fotos, vídeos e de uma cobertura de mídia e de marketing
voltada para terreiros, pais e mães de santo e divindades, essas empresas
também seriam encarregadas de dar visibilidade à atuação dos alabês
no Rio Grande do Sul e, em alguns casos, na Argentina e no Uruguai.
A fala do criador da Ówò Produções, Migui Sousa, nos ajuda a
compreender melhor como se processam essas divulgações:

É a imagem deles [dos alabês]! Tu tem que te preocupar com a


agenda dele, com o trabalho gráfico dele, com data dele, com
flyer de divulgação dele, com filmagem dele, com foto dele. Isso
tudo é cansativo e estressante. Hoje eu tenho nove alabês comi-
go. Imagina tu trabalhar pra nove alabês! Tu vai tirar foto em
um lugar, tu faz filme em algum lugar, tu faz camisa, tu faz ca-
saco, tu faz cartão de visita, tu faz flyer, tu faz agenda. Então isso
é cansativo demais. A imagem [do alabê] tem que tá sempre na
mídia. Os guri que estão comigo hoje tem flyer a semana toda.
A semana toda eu [nesse caso, Migui não se refere a ele próprio,
mas a um possível expectador] tô vendo eles de qualquer jeito,
ou é filmagem, ou é transmissão ao vivo, ou é foto, ou é vídeo.
Eles estão sempre na mídia. (Sousa, 2018).

A primeira experiência de parceria entre empresas e alabês se deu


em 2013, com o surgimento da Donos da Noite. Os alabês interessados
em receber uma cobertura de mídia personalizada precisariam entrar
em contato com a empresa para firmar sua filiação e iniciar o paga-
mento de uma mensalidade. À medida que outras empresas surgiram
no mercado, os serviços prestados aos alabês foram sendo ampliados.

254
Atualmente, é comum que as empresas ofereçam gravações de DVDs e
CDs, cartões de divulgação, camisas personalizadas, produção de tea-
sers, videoclipes e minidocumentários, fotos e transmissões ao vivo (li-
ves), entre outros serviços.
É importante destacar que essas empresas fazem parte de um
mercado mais diverso de produtoras de mídia que atuam no Rio
Grande do Sul. Grande Axé, Afro-Mídia, Planeta África, Império Mídia
são algumas das empresas mais atuantes e que não possuem, como
parte de suas atividades, a oferta de serviços para alabês. Pai Cesar de
Xangô, fundador da Império Mídia, me contou sobre sua opção pela
não vinculação ao mercado dos alabês, bem como que a relação entre
esses alabês e as empresas atuantes no Rio Grande do Sul vêm passando
por um processo de inversão.

Eu sei que tinha uma produtora que cobrava uma mensalidade


dos alabês pra fazer a mídia deles. Só que agora mudou, tá mu-
dando, a mídia tá procurando o alabê pra fazer a mídia dela, tá
o contrário. Parece que o mercado se inverteu. É vantagem pra
mídia ter o alabê como seu nome ali. Por que o Império não
entrou ainda nessa parte? Porque eu ainda não entendi onde
isso vai dar. O que eu tô vendo ultimamente é só a “dança das
cadeiras”. Fulano hoje é de uma [empresa], amanhã é de outra.
Isso de tá trocando toda hora, não acho isso legal. Minha ideia é
deixar as coisas se assentarem, pra eu entender qual a vantagem
e, a partir daí, fazer ou não. (Pai Cesar de Xangô, 2018).

Para Pai Cesar, a lógica de filiação vem se invertendo. Uma vez que
os alabês atuam como “geômetras da religião” (Barbosa Neto, 2017), pois
circulam entre diversas casas e entre diferentes modalidades rituais (umban-
da, batuque e quimbanda) durante a prática profissional, tornam-se meios
pelos quais as empresas a eles relacionadas ganham visibilidade. A partir
de 2017, era possível ver entre as produtoras o esforço de elaboração de
campanhas de divulgação que visavam estimular a filiação de novos alabês.
Entre 2015 e 2018, período em que estive em Porto Alegre acompa-
nhando a atuação de empresas e alabês, a circulação desses músicos rituais
entre as produtoras se mostrou uma constante (“dança das cadeiras”). A
migração entre as diferentes empresas comumente era resultado do recebi-

255
mento de propostas mais vantajosas, também podendo ter como motivação
a insatisfação com a cobertura de mídia ofertada, a ineficiência identificada
como prejudicial à carreira do alabê e desentendimentos entre alabês ou en-
tre estes e os donos das produtoras. Alguns desses alabês, após certo tempo
de filiação, decidiam seguir de forma independente, gerindo seus próprios
esquemas de divulgação.
Felipe de Oxalá é um exemplo entre os diversos alabês que, em dado
momento de sua carreira, preferiram se desvincular de produtoras e em-
presas para gerir suas próprias coberturas de mídia. O alabê costuma falar
sobre a importância de uma boa administração financeira e de adquirir
conhecimentos para a realização de bons empreendimentos. Ao longo de
sua carreira, ampliou o número de serviços ofertados aos contratantes. As-
sim, ao ser contratado, Felipe também garante a realização de transmissões
ao vivo durante as festas e a publicação prévia de avisos e convites para os
rituais. Oferece, ainda, jogos de luz, caixas de som, microfones, uma equipe
com tocadores agê, assistentes e a confecção de camisas personalizadas. Um
bom número de seguidores nas redes sociais, um alto índice de curtidas,
visualizações e compartilhamentos, a posse de mais de um perfil de Face-
book e canais ativos de YouTube são alguns dos recursos atrativos aos seus
contratantes.
Entre os percursos de artificação e artisticidade possibilitados pela as-
sociação com as empresas, bem como pela constituição de coberturas de
mídia independentes, está o investimento no que Philip Auslander (2008,
p. 29) chama de “projeto”. Para esse autor, uma das estratégias da indús-
tria cultural é a comercialização de múltiplos objetos de consumo baseados
em um mesmo tipo de obra produzida. Nessa perspectiva, um filme, por
exemplo, pode ganhar versões em DVD, em livro, brinquedos, peça de tea-
tro, entre outros formatos. Influenciados por esses arranjos, diversos alabês
vêm produzindo seus próprios projetos, expandindo suas atividades para
além da performance do terreiro. A produção desses projetos possibilita não
apenas a fragmentação da experiência de mediação religiosa, mas também
produz novas modalidades dessa experiência segundo o encadeamento de
diferentes materiais que se autorreferenciam. Para dar um exemplo, alguns
alabês costumam gravar pontos de quimbanda em diferentes versões. O
ponto que, inicialmente, é gravado em CD ou como arquivo de áudio a ser

256
divulgado nas redes sociais, pode, tempos depois, assumir uma nova forma,
por meio da gravação de um DVD. Em seguida, o ponto pode ser gravado
no formato videoclipe ou em teasers de divulgação.25 Recentemente, como
consequência da pandemia de Covid-19, produtoras e alabês se empenha-
ram na realização de lives que muito se assemelhavam às de artistas e grupos
musicais, com a utilização de cenários, equipamentos de luz e de som, uma
logística para a realização de doações e a promessa de performatizar “pontos
autorais” (no caso de lives de quimbanda). Em cada caso, em cada expressão
desses projetos, novas estéticas e novas performances são sugeridas, contri-
buindo para a constituição da identidade de cada alabê. Um desses alabês,
Bryan de Avagan (imagem 5), se prepara para lançar seu primeiro DVD,
gravado com base em suas lives realizadas durante a pandemia.

Imagem 5 – Divulgação da live de Bryan de Avagan (2020)26

Fonte: Facebook.

25 Para mais exemplos sobre a produção de projetos, ver Almeida (2018).


26 Recentemente, o alabê publicou em suas redes sociais um vídeo de divulgação do DVD produzido durante as lives,
em que performatizava um ponto de quimbanda, juntamente com o seguinte comentário: “Lembrando que o ponto
original é de autoria do meu irmão @negovinni do Ilú Axé Vodun [equipe de alabês], grande compositor e alabê”. A
postagem nos mostra uma das formas pelas quais a autoria está presente na produção de projetos.

257
Durante a produção desses projetos, é, para alguns alabês, inegá-
vel a inspiração de artistas do meio musical secular. Na gravação do
primeiro DVD do alabê Etto Mendes (2016), voltado para o universo
da quimbanda, pude integrar a equipe de filmagem e produção.27 No
primeiro dia de gravação, logo um fato chamou atenção. Etto não tocou
tambor durante as filmagens.

Por que tu não tocou tambor no teu DVD?


Não toquei no DVD porque com o DVD é diferente, não é
o que a gente tá acostumado a assistir num DVD de festa [fil-
magem das festas no terreiro], e ia ser gravado, fica melhor pra
mim interagir com a câmera. Hoje em dia tá mais assim, é um
show. Tu tem que interagir com a câmera. Eu tocando, não tem
como interagir. Eu olhar o que ia ter que cantar nas pastas e
tocar, fazer redobre, ao mesmo tempo, e cantar. Então, minha
voz não ia ser a mesma, ia ser uma voz preocupada. É que nem
esses artistas que gravam aí. Não tem como cantar e tocar todos
os instrumentos juntos. Então é uma coisa separada da outra.
Por isso que eu não toquei. (Mendes, 2016, grifo nosso).

Por diversas vezes, Etto me contou que sua performance é inspira-


da em cantores de pagode, tais como Belo, Thiaguinho, entre outros.
Estes serviram também como modelo performático para as gravações
do DVD, “que nem esses artistas que gravam aí”. Em outra oportunida-
de (Almeida, 2019), busquei demonstrar de que maneira a artisticidade
atua como potencializadora da atuação mágico-religiosa não apenas de
alabês, mas igualmente das entidades quimbandeiras, e que com frequ-
ência pais e mães de santo esperam que certas performances registradas
nos projetos (como no DVD) sejam levadas aos rituais no terreiro con-
tratante. A isso se soma a performance no palco e o uso do microfone,
o investimento em uma identidade musical e religiosa, a utilização de
roupas personalizadas, a composição e gravação de “pontos autorais”, a
popularidade que os projetos construídos adquirem no meio religioso,
entre outros fatores, os quais contribuem para que as expressões arte e
artista possam circular no meio religioso. A artisticidade e o processo
de artificação não são aqui definidos apenas como um uso ostensivo
27 A convite do alabê Etto Mendes, pude fazer parte da equipe de filmagem que, na ocasião, foi coordenada pelo
cinegrafista e fotógrafo Marcelo Brandão.

258
de expressões relacionadas ao campo das artes: “eu sou artista”/“isso é
arte”. Valem-se, na verdade, de uma diversidade de usos, que constan-
temente transitam entre a metáfora, a inspiração, a comparação, o uso
jocoso e a insinuação. Assim, para alguns desses atores, torna-se possível
relacionar-se com as artisticidades sem que seja necessário reivindicar
participação em estágios institucionalizados da arte. Como veremos no
próximo tópico, essa é uma das formas de evitar possíveis controvérsias
causadas pelas afinidades performáticas identificáveis entre a prática dos
alabês e o campo artístico.

A arte da jocosidade
Há casos em que as expressões “arte” e “artista” se combinam à
ironia e à jocosidade. A partir de meados da década de 2010, quando
a prática dos alabês se mesclou à uma atuação midiática e à utilização
de modelos do universo musical e artístico, a artisticidade passou a ser
alvo de críticas e tensões que, ao eclodirem com maior ou menor inten-
sidade, contribuíram para regular a maneira como a arte atua no campo
afrorreligioso. Em um desses momentos, uma controversa publicação
no Facebook, feita em 2017 por um pai de santo prestigiado no meio
religioso, mobilizou uma grande rede de atores. Na referida postagem,
o religioso fazia críticas ao uso de equipamentos (microfones, caixa de
som, jogos de luz etc.), ao suposto distanciamento em relação aos fun-
damentos religiosos, à autoridade dos alabês, que, segundo ele, muitas
vezes ultrapassa à dos pais e mães de santo, além dos status de popstar e
artista adquiridos nos últimos anos. O apoio e a aprovação a essas crí-
ticas, vindos de outros religiosos, nos permitem afirmar que, para esses
críticos, alabês não apenas haviam assumido a forma ou se assemelhado
a artistas, eles pareciam ter alcançado uma versão artística ainda mais
inadequada, a de popstars.
Como resultado, a arte e as artisticidades se tornaram um tema in-
tensamente debatido. Diversos alabês buscaram evidenciar a distinção
entre sua função religiosa e a prática artística. Para outros, se identificar
enquanto alabês artistas e popstars se tornou uma grande brincadeira,
capaz de combinar ironia e jocosidade e de aliviar o peso de certas san-
ções morais. As reações à referida postagem, que serão exploradas nesta

259
última parte do texto, nos mostram que é possível negar o status de arte
sem abrir mão da artisticidade, ou que, às vezes, é melhor possuir e ex-
plorar artisticidades do que ser enquadrado definitivamente no campo
da “arte” ou da “não arte”. Torna-se interessante negar os vestígios de
uma suposta artificação e, ao mesmo tempo, afirmar, direta ou indire-
tamente, que “é que nem esses artistas que gravam aí”.28
Apresento uma imagem que ganhou destaque nas redes sociais em
2017, com maior ênfase entre os dias 9 e 11 de agosto daquele ano,
como resposta às críticas direcionadas aos alabês (imagem 6). Trata-se
de um djembê, instrumento que não faz parte da orquestra religiosa
afro-gaúcha, mas que, se considerarmos o contexto em que foi utiliza-
do, representa as tradições afro-brasileiras e, em especial, a “classe” dos
alabês. Dedicar-se ao estudo de expressões materiais, tais como as ima-
gens em questão, tem como ponto de partida o fato de que a capacidade
de condensação de determinados objetos os torna pontos estratégicos
para a análise de expressões religiosas (Menezes, 2011). A imagem do
que chamo de tambor popstar se insere nas controvérsias que envolvem
a presença das artisticidades no campo afro-gaúcho e, por esse motivo,
me parece uma boa oportunidade para pensarmos “através das coisas”
(Henare; Holbraad; Wastell, 2007).

Imagem 6 – Tambor #alabê #pop # star

Fonte: Facebook.

28 Retomo a fala do alabê Etto Mendes, citada anteriormente.

260
Sobre o couro do instrumento foram postos os óculos tipo Thug
Life, também chamados “óculos opressor”, “óculos vida loka”, óculos
tipo “Deal With It” (“aceite isso” ou “lide com isso”), entre outras ex-
pressões. Atuante como um meme bastante popular no Brasil, os óculos
surgem quando um agente emite uma opinião que põe um fim repen-
tino em uma disputa ou uma discussão, deixando-o em vantagem ar-
gumentativa, como alguém que diz “toma essa”. Seu uso também se
relaciona com o questionamento de uma ordem vigente ou de regras
estabelecidas, o que está ligado a expressões como “vida loka”, “vida
bandida”, entre outras, tornando-se pertinente em um debate acerca de
expressões que ainda não encontram total aceitação no campo afrorre-
ligioso: arte/artista. O uso dos óculos ainda confere ao debate um tom
provocativo, desafiador e muitas vezes debochativo.
Também podem ser vistas três hashtags sobre o corpo do instru-
mento: #alabê, #pop e #star. Assim configurada, a imagem ganhou status
de meme, amplamente compartilhado após a controversa publicação no
Facebook, postada no dia 9 de agosto de 2017. Além do compartilha-
mento do meme do tambor #popstar, foram feitas diversas publicações
em que alabês, amigos, fãs29 e familiares defendiam o profissionalismo/
profissionalização e as inovações relacionadas ao cargo de alabê. Horas
após a publicação, podiam ser vistas no Facebook mensagens como:
“#Eusoupopstar”, “Popstars do meu Face, aqui quem fala é o alabê pop-
star Paulinho de Lanã”, “Eu sou amiga e fã de popstar. Trabalho bom
e profissional merece respeito”, “Os alabê popstar são da macumba”,
entre diversos outros. O tom jocoso e irônico das publicações logo se
tornou crescente, alcançando os países do Prata.30 A pedidos de amigos,
o alabê argentino Martin de Xangô publicou nas redes sociais um vídeo
em que cantava um de seus pontos de quimbanda mais conhecidos, o
“Eu sou Macumbeiro”, acrescentando a palavra popstar: “Eu sou popstar
macumbeiro, vai começar a quimbanda no terreiro”. Outro alabê fez

29 A figura do fã pode suscitar importantes reflexões, pois os alabês também possibilitam que modelos performáticos
relacionados ao campo artístico se estendam aos seus admiradores. Ao encontrar com um alabê prestigiado, os
admiradores agem performaticamente como fãs: pedem autógrafo, tiram fotos, se aglomeram em volta do palco,
vestem a camisa de seu alabê favorito e colecionam seus projetos. Essa é, ainda, uma das características que possi-
bilitam a identificação desses alabês com a figura do popstar e, com isso, a atuação dos críticos.
30 Oro (1999) e outros autores vem analisando o processo de transnacionalização das religiões afro-gaúchas para
a Argentina e o Uruguai. Para esses autores, as transformações das religiões afro-gaúchas ocorrem em meio aos
fluxos entre países, o que revela a ausência de influências unidirecionais.

261
seu comentário comparando a atuação dos alabês à de outros universos
musicais: “Não sou do pagode, não sou do rock, eu não sou do frevo e nem
do samba. Também não sou da eletro e nem sou do funk, não sou de
sertanejo, mas aqui estou. Basta ligar uma câmera que eu me apresento,
sou o #PopStar do batuque eu sou.”31
No caso do tambor popstar e sua configuração enquanto meme
(com os óculos, as hashtags e seu potencial de circulação), o uso da
jocosidade traz para à situação as possibilidades de manutenção e de
engajamento no conflito. Haveria aqui, tendo como base a proposta
de Werneck (2015, p. 190) nos estudos da jocosidade, uma “disputa
de marra”, “na qual se recusa de forma competitiva a posição moral
superior produzida pela crítica, atacando-se jocosamente o crítico [...]”
e, no caso aqui analisado, a própria crítica, pois há a utilização irônica e
jocosa da categoria acusatória (#popstar na forma meme).
O objetivo do meme era tornar o oponente do conflito algo “sem
seriedade” ou que “não deve ser levado a sério”. Há uma ocorrência que
altera e subverte a lógica de uma situação que deveria ser levada a sério,
como punchline (Werneck, 2015), e que faz com que a própria jocosi-
dade seja a razão de tal subversão e, com isso, induza ao riso. Torna-se
engraçado, para os observadores que estão a par dos acontecimentos,
perceber que um meme tão conhecido tenha se adequado bem ao even-
to. Lembremos que o meme, configurado pelos óculos sobre a parte
superior do tambor, aqui representando a classe dos alabês, já carrega
previamente consigo os atributos reconhecidos de subversão, provoca-
ção, jocosidade e “arremate”. É nesse contexto que há a apropriação
irônica da categoria acusatória: somos todos popstars.
Ainda é possível trazer para a análise outros aspectos relacionados ao
compartilhamento do tambor popstar. No dia seguinte à controversa pu-
blicação, o programa DeBate Tambor, produzido pela empresa Donos da
Noite e pela Timeline Produções, abordou o tema em uma transmissão
ao vivo pelo Facebook.32 O programa reuniu alabês das novas gerações e
“os antigos”, como são chamados os alabês da “velha guarda”, e teve como
temática principal a “ladaia” que se fez na internet no dia anterior.
31 Alabê Gilvan D’Agandjú, agosto de 2017. Fonte: Facebook. Acesso em: ago. 2017.
32 Disponível em: https://www.facebook.com/ProdutoraDonosdaNoite/videos/1647518338605747. Acesso em: ago.
2017.

262
Felipe Paiva, o criador da Donos da Noite, abriu o programa com
o seguinte esclarecimento:

Hoje o DeBate Tambor vai falar sobre muitas polêmicas que


envolveram essa semana no meio afro. […] Teve uma posta-
gem no Facebook, uma pessoa que tem um start a nível Brasil
e também no exterior, compartilhou essa publicação falando
sobre os alabês, a sua opinião. […] Isso gerou um furor na in-
ternet, ontem, muito grande. Muitos memes em formas de “eu
sou popstar”, “alabê popstar”. Assim como as pessoas falam,
elas têm que escutar.

Felipe logo passa a palavra para o alabê Alfredo de Ossanha: “Boa noi-
te pessoal de casa, boa noite pessoa que tá curtindo a live. Entrou, comenta,
dá o like e compartilha. Essa é a moral. E eu sou popstar”. As risadas logo
tomaram conta do estúdio de gravação. Alfredo direciona o olhar à câmera
e envia um beijo. Em seguida, comenta: “Eu sou popstar. Profissionalismo
em primeiro lugar”. A fala e os gestos de Alfredo, que nos fazem lembrar o
meme do tambor popstar, antecedem uma mudança de tom. O alabê conti-
nua, conduzindo o debate para uma nova linguagem de confronto:

Eu vi um comentário, o cara falou assim: “a caixa de som entrou


dentro do terreiro quando a religião saiu do batuque”. Tu e quem
não gosta de caixa de som, não me contrata, não me liga, não me
pergunta quanto eu cobro. Eu toco 3, 4, 5 obrigações na semana,
e haja voz, e haja mão. A gente tá falando do sagrado, é a religio-
sidade em primeiro lugar. Tu não vê hoje tamboreiro tocando bê-
bado, tu não vê tamboreiro tocando de sapato em lugar nenhum
[no caso do batuque]. Tu não vê hoje, principalmente a nova
safra, o tamboreiro dando risada da cara dos santos. Tamboreiro
que querem pegar e botar no colo33 deixou muito pai de santo e
muita gente na mão. Se querem ficar bravo ou não, hoje em dia
não acontece isso. Hoje a gente tem uma produtora [Donos da
Noite, Ówò Produções, Kizomba, entre outros] que padroniza
uma forma de trabalhar dos tamboreiros. Então quando uma
pessoa fala que o tamboreiro é midiático, que o tamboreiro quer
se profissionalizar, que investe e quer ser estrela, então eu digo
sim que eu sou popstar, eu digo que eu sou estrela.

33 Alfredo se refere aos tamboreiros antigos e que hoje possuem grande prestígio.

263
Em seguida, Luis de Xapanã acrescenta:

O Bryan falou34 que a gente gasta um valor alto pra comprar


equipamento de som, microfone. É isso que as pessoas não en-
tendem. A gente faz isso pra melhorar o nosso trabalho e pra
fazer pra você que nos contrata. A gente manda fazer camiseta,
manda fazer o melhor tambor, por nosso trabalho, mas muito
mais pensando no que o cliente vai receber. Hoje o alabê mu-
dou, gente.

Para esses alabês, o profissionalismo e a profissionalização vêm


evitando erros que muitos cometeram no passado. Entre as dimensões
desse profissionalismo, o surgimento das produtoras com grande ênfase
na cobertura de mídia contribuiu para a padronização da “forma de tra-
balhar”. Se alguém acusa os alabês de serem midiáticos, de se tornarem
profissionais ou de quererem ser estrelas, dentro do contexto da padro-
nização de uma prática de respeito aos fundamentos e à qualidade dos
serviços prestados, afirma Alfredo, “então eu digo sim que sou popstar,
eu digo que eu sou estrela”. O uso do microfone e da caixa de som, a
produção de projetos (Auslander, 2008), a busca por uma identidade vo-
cal, o investimento em roupas personalizadas e a relação com empresas
de mídia são apenas alguns dos aspectos de um processo mais amplo
que é a profissionalização.
Atualmente, em especial na prática dos alabês das novas gerações,
diversas características que dão forma ao que comumente é considerado
“profissionalismo” estão fortemente relacionadas ao respeito aos funda-
mentos. Nessa perspectiva, respeitar, seguir e praticar fundamentos indi-
ca a presença de um bom profissional. O alabê que exerce bem seu pro-
fissionalismo é aquele que, ao chegar à casa, saúda os orixás do terreiro
contratante, bate cabeça diante do quarto de santo, pede a benção ao pai
de santo, conhece bem as rezas (cantigas) e sua devida ordem de execu-
ção durante os xirês (rituais do batuque) e preza pelas formas herdadas
de condução do ritual, sendo todos estes considerados fundamentos de
um terreiro. As produtoras, por sua vez, ganham reconhecimento no
meio religioso ao evidenciarem, além de uma boa divulgação midiática
34 Luis fazia referência à fala anterior, do alabê Bryan de Avagan, que mencionava os altos investimentos na compra
de equipamentos de som.

264
e a “criação de arte”, o esforço por padronizar o respeito a esses e outros
importantes fundamentos.
Nos meses que se seguiram, após a “ladaia”, movimentos diversos
de negação do status de artista podiam ser percebidos entre os alabês
com quem mantive proximidade entre os anos de 2015 e 2018. A pala-
vra artista, utilizada de forma mais intensa com o advento das empresas
de mídia, tal como evidenciei com base na fala de alguns alabês, passou
por uma mudança de sentido, tornando-se uma categoria de acusação.
Em 2020, Alfredo comentou em suas redes sociais: “Só pra esclarecer!!
Eu faço marketing do meu trabalho para Pais e Mães que me contra-
tam. Eu sou contratado, não sou artista, apenas sou quem toca a festa.
Eu presto meus serviços, e quem contrata, determina como gosta ou
não”.35 Por outro lado, esses alabês também podem ser vistos pondo
em prática diferentes intensidades de aproximação em relação ao uni-
verso das artisticidades, contribuindo para a produção não apenas de
controvérsias, mas de outras maneiras de lidar com possíveis indícios
de artificação e artisticidade, além das que foram apresentadas com o
meme do tambor popstar.

Considerações finais
Os alabês que foram aqui mencionados não representam a
totalidade dos que transitam entre as umbandas, quimbandas e batuques
gaúchos, mas fazem parte de um segmento que, de forma mais inten-
sa, se relaciona com recursos e empresas de mídia. Disso resulta que,
além da diversidade de concepções de arte em circulação no campo
religioso afro-gaúcho, brevemente apresentada neste texto segundo di-
ferentes mercados, há uma diversidade que ainda pode ser encontrada
em outros circuitos de alabês. Destarte, essa reflexão sobre diversidade
também se estenderia aos percursos de artificação. Como foi dito, nem
todas as coisas são artificáveis e, em complemento, nem todas as coisas
são artificáveis pelos mesmos percursos.
Baseado em um período específico, que tem como marco o sur-
gimento de empresas de mídia e de uma atuação midiática, procurei
mostrar como certos fatores contribuíram para uma oscilação na pre-
35 Alfredo de Ossain. Fonte: Perfil pessoal no Facebook. Acesso em: ago. 2020.

265
sença das expressões “arte” e “artista”. Se, a partir de 2013, a designação
“artista” se tornou uma importante mediadora de prestígio, a crescente
identificação entre as práticas e performances dos alabês e o campo ar-
tístico não religioso contribuiu para que a arte se convertesse em uma
categoria de acusação e, para os alabês, algo do qual deveriam se afastar.
Como realizar esse afastamento sem negar a influência de diferentes
expressões de arte? Como dizer: “isso não é arte e nem pretende ser arte,
mas se inspira em performances artísticas”? Nos casos aqui discutidos,
podemos dizer que isso se torna possível, por exemplo, pela jocosidade,
pela inserção em certas noções de profissionalismo e pela evidenciação
de compatibilidades entre fundamentos religiosos e artisticidade. Esta
parece ser uma importante chave analítica para a compreensão da rela-
ção entre religiões afro-brasileiras e arte.
Propus uma análise que não se resume a considerar apenas dois
polos opostos, o da “arte” e o da “não arte”, e que não buscou projetar
sobre os processos intermediários (que antecederiam a consolidação de
certos objetos como arte) uma ideia de artificação malsucedida. Optei
pelo diálogo entre duas noções, artisticidade e artificação, em conside-
ração às maneiras possíveis de se negar que um processo de artificação
esteja em curso ou de negar intenções artificadoras e, ao mesmo tem-
po, manter proximidades performáticas com as artisticidades. Ou seja,
considerei que os alabês possuem um discurso próprio sobre a artifi-
cação. Isso não implica dizer que os dois processos sejam excludentes
e concorrentes, pois é possível que a artificação se constitua com base
nos vínculos que são estabelecidos com a artisticidade. Mas torna-se
possível anunciar o descompasso entre os dois termos. Busquei mostrar
que essa é, no contexto religioso, uma das maneiras possíveis de “fundir
um pouco da criação de arte [que não necessariamente é arte, mas é
artisticidade], duma coisa mais moderna, mas, dentro do trabalho, não
perde fundamento” (Paiva, 2016). Daí a relevância de analisar percur-
sos conjuntos de artificação e artisticidade.

266
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270
DOI: 10.48006/978-65-5973-031-5-10

A ADORAÇÃO NA “CULTURA”: MARGENS E MEDIAÇÕES ENTRE MÚSICA


CONGREGACIONAL, ARTE RELIGIOSA E PRODUÇÃO COMERCIAL NA ATUAÇÃO
DE UMA BANDA DE JOVENS EVANGÉLICOS1

Taylor de Aguiar

Há muitos ângulos pelos quais se pode vislumbrar e interpretar as


relações entre música e religião evangélica. Qualquer que seja o foco de
análise, não há como elaborar uma circunscrição histórica ou conceitual
que dê conta de apreender todas as manifestações musicais que essa ex-
pressão religiosa pode abranger. As formas musicais evangélicas, como
quaisquer outras, se desenvolvem em dinâmicas de conflitos, acomoda-
ções, rupturas e continuidades que produzem sínteses complexas e he-
terogêneas. Mesmo no quadro de uma única denominação religiosa, as
manifestações musicais, em sua complexidade, sempre fogem à apreen-
são de concepções genéricas. Como falar então de música protestante,
evangélica, ou mesmo “gospel”, reconhecendo que as práticas musicais
desse “povo missionário cristão” (Mafra, 2001) são multifacetadas, as-
sim como as vertentes e configurações teológico-eclesiais que marcam
esse campo religioso?
É importante atentarmos para as transformações diacrônicas da
musicalidade evangélica para enfrentarmos este desafio. A música
evangélica brasileira apresenta um trajeto rico em inovações. Partin-
do da adoção de uma hinologia “tradicional” de inspiração norte-a-
mericana e europeia, as igrejas históricas e de missão que no Brasil se
instalaram desde o século XIX constituíram uma musicalidade especí-
fica, que culminou na criação de grupos e corais de louvor dedicados à
música congregacional. A produção musical protestante, na forma de
uma reprodução do que havia nos hinários sacros importados e traduzi-
1 Este capítulo reúne alguns dos resultados de uma pesquisa de mestrado realizada pelo autor (Aguiar, 2020a) e de-
senvolve e analisa novas questões relativas à inserção de uma banda de jovens evangélicos no mercado fonográfico.
Uma interpretação das relações entre adoração e “cultura”, nos termos que aqui são colocados, busca compreender
os sentidos da música evangélica com base nas dinâmicas e configurações de uma igreja pentecostal em Porto
Alegre. Agradeço a Emerson Giumbelli, pela orientação segura e presente, ao Núcleo de Estudos da Religião
(NER/UFRGS), pelos profícuos diálogos, à Prof.ª Dr.ª Fernanda Arêas Peixoto (USP), pelas sugestões, ao grupo de
pesquisa “Religião, arte, materialidade e espaço público: grupo de antropologia” (MARES), pelo projeto do livro,
e ao CNPq, por financiar minha pesquisa com uma bolsa.

271
dos para o português, manteve-se por muito tempo restrita ao universo
das igrejas e dos cultos, não se inserindo em um circuito comercial de
cunho religioso e tampouco secular (Mendonça, 2014). Essa situação
de isolamento e mesmo negação em relação à produção comercial per-
durou até meados da década de 1970, quando o número de gravadoras
de música evangélica começou a se multiplicar no país.
Ao longo das duas décadas subsequentes, a produção musical evan-
gélica alcançou uma inserção bem-sucedida nas mídias e no mercado fo-
nográfico brasileiro (Dolghie, 2004). Podemos associar essa nova posição
da musicalidade evangélica a aspectos estruturais que, em distintos mo-
mentos, estiveram calcados sobre situações socioeconômicas e concep-
ções acerca da circulação comercial da música religiosa. Robson de Paula
(2012) pontua que a estabilização econômica pós-Plano Real e o cresci-
mento da indústria fonográfica nos anos 1990 facilitaram a consolidação
de gravadoras evangélicas atreladas a igrejas e empresários religiosos. Pos-
teriormente, a partir do final da década de 2000, houve uma reorientação
desse circuito musical com a entrada de gravadoras seculares no mesmo
segmento. De um lugar inicial de afastamento em relação à produção co-
mercial, na esteira de transformações históricas, a música evangélica bra-
sileira é incorporada em circuitos comerciais religiosos e não religiosos.
O crescimento dessa produção musical foi acompanhado pela ex-
pansão numérica dos pentecostais, que, a partir dos anos 1980, prolife-
ram seus espaços de presença na sociedade e ganham força como ima-
gem hegemônica dos “evangélicos” na opinião pública. Com a crescente
diversificação das denominações, um quadro fragmentado de públicos
adere ao protestantismo, notadamente pentecostal e neopentecostal,
atribuindo contornos até então inexistentes à música evangélica. Rit-
mos e estilos antes considerados seculares passam a compor um nicho
musical que não se restringia mais à hinódia anteriormente consagrada.
Um gênero musical evangélico abrangendo os mais diversos subgêneros
passa a existir, sufixando os correlatos seculares de seus ritmos: rap gos-
pel, rock gospel, funk gospel e samba gospel são exemplos desse movimen-
to.2 Com a música gospel, surge também uma gama de bens culturais re-
2 Indico um trabalho recente sobre samba gospel: Machado (2020). Ao enfatizar os regimes de operação entre sagra-
do e secular para a formação de certas subjetividades, a argumentação da autora se aproxima das questões que trarei
neste capítulo, a propósito de uma recorrente flutuação das margens da adoração.

272
lacionados à popularização de produtos comerciais como CDs, DVDs,
livros, adereços, utensílios domésticos, vestimentas etc., destinados ao
consumo evangélico.
Em um trabalho seminal sobre o tema, Cunha (2007) argumenta
que, em torno dessa inovação de base musical, teria surgido uma “cul-
tura gospel” com consequências diretas na estruturação de um modo de
ser evangélico no Brasil contemporâneo. Embora tivesse sua origem na
composição de um gênero musical, o gospel extravasaria a música nas
direções tomadas pela sua relação com o mercado fonográfico, a indústria
cultural e as mídias de massa. De fato, esta associação com as dimensões
de sua popularização tem sido importante para a compreensão do que
seja o fenômeno gospel no Brasil, aspecto que não pode ser dissociado
da expansão evangélica verificada nas últimas décadas. Entretanto, como
buscaremos mostrar ao longo deste texto, ela não é suficiente para apreen-
der a totalidade das manifestações musicais evangélicas contemporâneas.
Como pondera Giumbelli (2018), é preciso atentar para os limites
do gospel e para os desafios que o conceito nos coloca em termos de
identificar fronteiras que são dinâmicas. A ideia de “cultura gospel” não
precisa ser necessariamente um espelho para um entendimento cultura-
lista da identidade evangélica em nosso tempo. Antes disso, a dimensão
da “cultura”, que aparece relacionada sob formas variadas com os evan-
gélicos, pode ser uma categoria que nos leve a novas indagações sobre
questões diversas. Sugiro que uma dessas questões seja propriamente a
musical. Para entendê-la, devemos estar abertos às formas múltiplas de
sua manifestação na igreja e na sociedade, o que inclui a tríade mercado
fonográfico/indústria cultural/mídias de massa, mas não se limita a ela.
Uma breve sistematização demonstra a predominância de pesqui-
sas que apostam nessa tríade e em outros dois aspectos para investigar
os processos que envolvem o gospel no Brasil. Ao realizar um levanta-
mento bibliográfico sobre a produção acadêmica a respeito da música
gospel brasileira, Olívia Bandeira (2017, p. 202-203) constata que os/
as pesquisadores/as de diversos campos do saber têm se preocupado ba-
sicamente com três eixos de pesquisa: a) “interface entre religião, mer-
cado e marketing”; b) “música gospel, evangelização e a visibilidade da
religião no espaço público”; e c) “identidades juvenis: contraponto às

273
abordagens institucionais da música religiosa”. Ou seja, ao lado daquele
primeiro eixo que constitui a chave-mestra das argumentações sobre a
“cultura gospel”, os temas da religião no espaço público e das identi-
dades juvenis evangélicas são aqueles que mais têm sido objeto de pes-
quisas de autores/as que se dedicam ao gospel. É interessante notar que,
entre as muitas obras que compõem o levantamento de Bandeira, há
uma escassez de trabalhos que abordem especificamente a dimensão do
culto, e que tenham no ritual a mola propulsora para suas análises. Esta
é uma lacuna considerável, principalmente se levarmos em conta que as
igrejas são lugares fundamentais para a experiência musical evangélica.
Nos cultos realizados em igrejas, todo um público toma contato intenso
com a música religiosa, frequentemente a reproduzindo como louvor.
O espaço-tempo do culto evangélico, sobretudo o de corte pente-
costal, é capaz de agregar pessoas em diferentes situações de adoração:
seja como ouvintes, seja como cantantes, seja, ainda, como instrumen-
tistas de uma banda ou grupo musical, há lugar para que todos partici-
pem dos momentos de louvor.3 A participação é variável de acordo com
a pertença e o envolvimento do fiel com a igreja, havendo limitações a
quem assiste ao culto sem ser reconhecido como um membro do gru-
po. Para estes últimos, existe uma possibilidade mais ligada à figura
do visitante, que não guarda responsabilidades litúrgicas, mas, mesmo
assim, pode se juntar ao coro coletivo comum e cantar as canções que
a igreja entoa. Desse acesso generalizado ao louvor, pode-se depreender
que há um contato com a música que atravessa a experiência espiritual
de adoração de todas as pessoas que vivenciam um culto, e não somente
dos líderes ou músicos da igreja.
No bojo dessa experiência, sentidos sobre a música religiosa são
produzidos e compartilhados coletivamente, atualizando-se na dimen-
são ritual que é operada cotidianamente nos cultos. O contato com a
música de louvor não se dá somente por meio das mídias e do mercado
gospel, mas também – e, diríamos, sobretudo – pela via cultual. Justa-
mente por esta razão, não são desprezíveis aqueles empreendimentos
3 Se por adoração nos referimos mais amplamente ao processo de ligação espiritual entre o fiel e o divino, cujo
principal lugar de realização aqui posto em questão é o culto, por louvor nos reportamos mais especificamente à di-
mensão musical dessa ligação, enfatizando a adoração efetivada por meio da música. O louvor é praticado nos mo-
mentos do culto em que as canções são entoadas, diferenciando-se, dentro de uma sequência litúrgica que apresenta
padrões muito variáveis entre as diferentes igrejas e vertentes, de momentos como a pregação, os testemunhos, as
orações de intercessão, os anúncios, o ofertório etc.

274
analíticos que focalizam a música no culto e as suas implicações para a
formação de concepções evangélicas acerca dos sentidos da musicalida-
de na vida religiosa. Este texto conclama a relevância dessa dimensão
ritual para os estudos sobre música evangélica e música gospel no Brasil,
não obstante trate de resultados de uma pesquisa etnográfica amparada
em um recorte específico, sem pretensões de dar conta de um cenário
nacional mais amplo.
O capítulo que aqui se introduz foi escrito com base nos dados
obtidos e nas reflexões desenvolvidas no contexto de minha pesquisa
de mestrado em Antropologia Social, realizada junto ao Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS entre os anos de
2018 e 2019. O objetivo mais geral da pesquisa, que resultou em mi-
nha dissertação de mestrado (Aguiar, 2020a), foi compreender como
a adoração tem sido constituída e vivenciada em um grupo e culto de
jovens evangélicos de Porto Alegre/RS. Esse culto apresenta em sua
composição uma tendência estético-musical conhecida como worship,
cujas raízes remontam às experiências de megachurches de países como
os Estados Unidos e a Austrália. Embora tenha tratado de música, não
me detive nela, entendendo o worship como uma dinâmica de adoração
que informa sentidos à experiência religiosa. Tais sentidos, que são pro-
duzidos ritualmente, apontam para relações entre adoração e “cultura”
que permeiam fronteiras entre sagrado e secular.
Como se perceberá ao longo da leitura deste texto, em diversas
ocasiões faço menção à categoria “cultura” sob uma forma gráfica aspea-
da. Isto ocorre porque o termo é produtivo para se pensar em uma mul-
tiplicidade de sentidos êmicos que orbitam em torno das margens entre
música congregacional e mercado fonográfico, “igreja” e “mundo”, e
sagrado e secular. É no entorno dessas margens que reside um dilema
fundamental, em que o que está em jogo é o risco de uma “banaliza-
ção” do conteúdo mais religioso da adoração por formas “mundanas”
que podem ameaçá-lo com base na “cultura”. Sugiro que essas margens
sejam definidas em processos de mediações materiais que envolvem o
worship como uma estética da adoração. Este é o pano de fundo sobre
o qual me debruço para analisar as relações entre adoração e “cultura”,
vale dizer, entre os modos de viver a estética da adoração e conceber di-

275
lemas entre o sagrado e o secular, segundo as margens e mediações entre
música congregacional, arte religiosa e produção comercial na atuação
da banda de jovens da igreja em questão. Tendo aderido ao circuito fo-
nográfico-comercial recentemente, a banda passou de uma posição de
executora de música congregacional interna aos cultos a referência na-
cional de música no estilo worship, fazendo agora parte do cast de uma
das maiores gravadoras evangélicas do país. A mudança de condição da
banda pela inserção no mercado fonográfico investiu suas produções
de visibilidade midiática e lhe atribuiu contornos artísticos, dentro de
limites que serão apontados neste texto. Mas, como procurarei mostrar,
à medida que suas músicas assumiram um estatuto de arte religiosa,
passando a circular no meio comercial, elas também preservaram os
sentidos do ritual, havendo nas produções midiáticas uma continuida-
de das mediações materiais da adoração ocorridas no culto.
Na sequência desta introdução, organizo os dados empíricos e a
argumentação teórica, bem como as considerações finais, em mais três
seções. Na primeira delas, forneço um panorama da tendência estéti-
co-musical worship em realização no culto, destacando as formas pelas
quais certas mediações materiais vêm a estabelecer o worship como uma
estética da adoração. Detalho como tais mediações materiais produzem
sentidos para a adoração, colocando em jogo fronteiras entre sagrado
e secular e estabelecendo a “cultura” como um lugar perigoso. Na se-
gunda seção, abordo o worship para além do ritual, considerando a sua
dimensão artística e comercial, e comento sobre os dilemas da adoração
na “cultura”, explorando as margens entre música congregacional, arte
religiosa e produção comercial visibilizadas com a entrada da banda
de jovens no mercado fonográfico. Finalmente, encerro com reflexões
pontuais que unem as discussões do capítulo para responder à seguinte
pergunta: e se as mediações da adoração fossem outras, quais seriam as
margens da música-arte worship?

A estética da adoração e suas mediações materiais no culto


Nos cultos worship, o ambiente interno do templo é escuro e a
sensação primeira que se pode ter é a de que se está presente em um es-
petáculo. Telões, equipamentos de filmagem de última geração, cortina

276
preta que reveste o altar, fumaça artificial, refletores de luzes coloridas
e outros elementos tecnológicos compõem toda uma estética peculiar.
Neste texto, enfatizo a prática da tendência estético-musical worship4
com base em uma etnografia realizada junto à Brasa Church, culto e
ministério de jovens evangélicos de Porto Alegre/RS. Vinculada à Igreja
Brasa, de vertente batista carismática/renovada, a Brasa Church tem
congregado uma multidão de jovens em número crescente a cada sá-
bado à noite, consolidando-se no cenário evangélico porto-alegrense
como um lugar de referência na prática e na disseminação do worship,
cuja expansão no meio evangélico brasileiro, sobretudo entre grupos/
ministérios de jovens, tem se tornado notável.
Embora o universo protestante brasileiro tenha passado por trans-
formações profundas nas últimas décadas, cujas consequências inci-
dem sobre a dimensão ritual, o worship não se confunde com música
congregacional ou de “louvor e adoração”, sendo esta última categoria
mais apropriada para definir um subgênero do gospel. Pode-se situar a
gênese da tendência worship em um movimento que surge no seio de
megachurches de fama internacional e com grande popularidade entre
o público jovem, como, por exemplo, a australiana Hillsong Church e
a norte-americana Bethel Church.5 Em um trabalho que tangencia o
tema, Rocha (2017) se dedica a pesquisar as influências e os intercâm-
bios transnacionais entre a Hillsong Church e jovens evangélicos brasi-
leiros, destacando como estes manifestam uma certa “fascinação” pela
igreja australiana e seus elementos estéticos. Tal relação de admiração
leva muitos grupos de jovens a se espelharem no modelo de culto e de
música praticado por essas igrejas, implementando-o em suas comuni-
dades. A Brasa Church é um bom exemplo de aplicação desse modelo.
O formato atual da juventude surgiu no final de 2013, depois que seu
então líder, pastor Mauricio, visitou megachurches praticantes da ten-
dência nos Estados Unidos. Influenciado pelo que viu e viveu naquele
país, o pastor fez a frente no processo de implementação do worship nos
4 Traduzido, o termo quer dizer literalmente “adoração”. Os jovens da Brasa Church, no entanto, sempre se referem
à tendência na sua forma original em inglês, razão pela qual opto por grafá-la desta maneira no texto. Ademais,
há uma profusão de anglicismos que circulam no meio worship, dentre os quais destaco o sufixo “church”, muito
comum na nomenclatura de cultos e ministérios de jovens que aderem à tendência.
5 Em um texto instigante, Rakow (2020) discorre sobre os cultos de uma megachurch que também adere à tendência
worship – a Lakewood Church, em Houston, Texas. A autora demonstra como luz e som mediam materialmente a
presença divina no espaço de uma antiga arena de basquete que, reformada, abriga a igreja.

277
cultos da juventude da Igreja Brasa, inaugurando o ministério Brasa
Church.
É importante destacar que, quando estamos nos referindo ao wor-
ship, nos remetemos a um conceito que ultrapassa os limites daquele
elemento que parece melhor lhe definir: a música. Justamente por essa
razão, podemos inferir que a caracterização do worship como tendên-
cia e não como gênero é conceitualmente mais apropriada. O trabalho
de campo na Brasa Church apontou para a centralidade da atividade
musical na dinâmica dos cultos, sendo possível afirmar que a categoria
worship também se refere a um estilo musical com características pró-
prias, vivido e executado no espaço ritualístico. Mas o worship possui
sentidos múltiplos que se referem, a um só tempo, a um estilo musical,
a uma estética de culto e a uma concepção de adoração. Iremos atentar
para esses três aspectos em momentos diferentes do texto, sublinhando
suas especificidades.
Por um lado, há um estilo específico e marcante das canções reli-
giosas tocadas e cantadas nos cultos modelados pela tendência worship.
Tais músicas são caracterizadas por melodias simples, com poucas no-
tas e fácil instrumentalização. Os tons apresentam oscilações severas no
curso da execução musical, e o ritmo permanece lento durante quase
todo o tempo, intensificando-se nos refrães. O estilo é bastante distinto
do rock e de outros ritmos considerados mais “agitados”, tratando-se
essencialmente de “música de adoração”, com uma sonoridade mais
leve e que induz efeitos de contrição e reflexão à adoração, ao invés
de “agitação”.6 Por outro lado, para além do estilo musical, podemos
dizer ainda que o worship compõe uma estética de culto que envolve
as materialidades estruturantes de sua ritualística, agregando elementos
como o ambiente escuro e as luzes e telões que lhe servem de contraste
no interior do templo.
Considerando essa definição mais ampla, a pesquisa que desenvol-
vi procurou tratar o worship segundo a sua dimensão estético-musical
– e não simplesmente musical. Decorre disso que o culto formatado
pela tendência tenha sido um espaço indispensável para reflexões mais
amplas sobre a musicalidade worship e o que ela envolve. A ênfase da
6 Mais adiante nesta seção, deter-nos-emos sobre a importância destes efeitos sensoriais para comentar sobre os
sentidos atribuídos à adoração.

278
etnografia esteve colocada sobre as práticas de adoração na Brasa Chur-
ch, baseada em uma concepção mais ampla acerca do que a adoração
signifique, revele e produza. Os dados empíricos e a abordagem teórica
mobilizada nos permitiram perceber a adoração não só no envolvimen-
to musical, mas na conjugação de experiências com o sagrado que estão
dispostas em dinâmicas variadas do culto e para além dele, assim como
na produção de sensações de ligação com o que é inerentemente invi-
sível. No âmbito ritual dos cultos, é possível que visualizemos alguns
aspectos da produção dessa adoração, desde que partamos da ampliação
de um ponto referencial que sublinhe a sua dimensão estética.
Este texto foi construído com base em um diálogo com duas pro-
postas teórico-metodológicas que se complementam: uma antropologia
sensorial e uma abordagem material da religião. A tomada desta perspec-
tiva leva ao entendimento de que as práticas de adoração na Brasa Church
podem ser compreendidas ao nível das mediações materiais que fazem
do worship uma estética da adoração informada por regimes sensoriais
estabelecidos ritualmente. Contrariamente à suposição de que o culto
protestante seja menos ritualizado do que os de outras matrizes religiosas,
e que em seu contexto haja uma aversão incontornável à mediação mate-
rial com o sagrado, assumo que as formas religiosas são, em si, processos
intrínsecos de mediação. Esses processos acontecem na presença de mate-
riais que são mobilizados na experiência cultual e que contribuem para a
formação de sensações religiosas. Os materiais não querem somente dizer
ou revelar algo sobre a religião; eles são a própria religião, ou a religião é
material. Uma abordagem material, ou um estudo materializado da reli-
gião, pretende trazer o fenômeno religioso para o concreto, destacando
que ele não está separado ontologicamente da imanência.
Assente em Meyer (2019), destaco que as mediações materiais da
religião – no caso da Brasa Church, processos que incluem luzes, sons,
objetos, instrumentos e outros elementos materiais mobilizados duran-
te os cultos – são parte de uma “formação estética” que se estabelece
segundo a elaboração de “formas sensoriais” organizadas na experimen-
tação dessas mediações pelos sentidos corporais. A concepção que nutre
essas formulações advém da ideia aristotélica de aisthesis, ou de estética
como engajamento sensório-corporal com o mundo. Trata-se de uma

279
maneira de conceber a estética para além de uma divisão apriorística en-
tre forma e conteúdo, ou imanência e transcendência, assumindo que as
experiências com o sagrado guardam um estatuto de realização intrin-
secamente material. Sob esse prisma, não se fala de estética da adoração
como forma, e sim como “formação estética”. Participar da adoração
é não só um ato intelectual e de fé, mas também um ato sensitivo da
parte do adorador. A estética da adoração é experimentada pelo corpo e
contribui para a formação do sujeito religioso.
Para o etnógrafo, a estética da adoração é também um instrumento
heurístico para a percepção dos processos de mediação que informam
sentidos ao que o adorador experimenta. Analisaremos, a partir de ago-
ra, como a ocorrência de uma modificação nas mediações materiais do
worship pode visibilizar as formas pelas quais a estética da adoração é
produzida materialmente nos cultos. A mudança em questão ocorreu
no âmbito musical e teve por base uma preocupação da comunidade
com uma passagem eclesial qualitativa de igreja “legal” para igreja “pro-
funda em adoração”, como nos informam as palavras de um frequenta-
dor a seguir apresentadas. A modificação diz respeito à presença e à ação
de uma função musical do teclado como produtora de certas sensações
de contrição, incentivando a promoção de uma “adoração reflexiva”.
Iniciemos por um comentário do mesmo frequentador, a propósito
de uma transformação musical a que o culto de jovens foi submetido:

No início, o louvor era uma coisa bem mais animada, era uma
coisa meio eletrônica, meio que uma baladinha gospel. Então
a gente pegava muita música da Hillsong. [Mas] Até a pró-
pria Hillsong já mudou bastante nesses cinco anos pra cá. Eles
mudaram bastante a temática da adoração deles, se tornou
uma coisa bem mais congregacional, louvores mais pra igreja,
cantados, ao invés de uma coisa mais animadinha. Antes era
uma pegada mais eletrônica, com sintetizador, bastante beat, no
início a gente tinha bastante isso. Aí, com o passar do tempo, a
adoração começou a se tornar essa coisa mais worship, mais esse
spiritual, essa coisa que tem muita referência no gospel negro
americano da Batista, aquela coisa mais do soul, aquela coisa
mais profunda, de ser mais a canção, a letra, “o que que eu tô
cantando”, em vez de ser só uma coisa animada, uma coisa pra
só botar o pessoal pra cima. A gente canta coisas que fazem a

280
gente pensar naquilo que tá cantando. E, o que pelo menos eu
notei, estão muito mais focadas na Pessoa de Deus e na Pessoa
de Cristo do que antigamente, que era uma coisa mais só por
estar aí, cantar, um lugar legal. Antes era um lugar legal. Hoje é
uma igreja profunda em adoração. (Gustavo, 2019).

Segundo Gustavo, a fase inicial de implementação da tendência


worship na Brasa Church – primeiros meses de sua experimentação nos
cultos a partir do final de 2013 – era marcada por “uma coisa bem mais
animada”, com música eletrônica, sintetizador e beat, algo como uma
“baladinha gospel”. O ritmo dos cultos correspondia à expectativa de
que a igreja fosse um “lugar legal”. Entretanto, a igreja só se tornou
“mais profunda em adoração” quando um passo foi dado para além da
animação, acompanhando uma mudança que vinha sendo introduzida
pela Hillsong Church. O estilo de música que passou a ser cantado e
disseminado pela Hillsong, “mais worship”, e que, para Gustavo, ca-
racteriza de fato a tendência de culto homônima, foi adotado apenas
quando se percebeu a necessidade de que a adoração não se limitasse à
“animação”, mas incluísse a reflexão dos adoradores sobre as letras das
canções entoadas. Essa observação remonta a uma entrevista com Caio,
guitarrista da Brasa Church, quando ele afirma:

Tem muitas bandas que não me ajudam em nada. Só me dei-


xam feliz, só balançam e rebolam o meu corpo, mas eu não vejo
muito como bandas que têm hinos pra serem cantados na igreja.
Até porque o cotidiano delas é mais pra um público lá fora, pra
um público de rua, não de igreja. Mas não deixam de ser bandas
boas. Pelo contrário, eu gosto dessas bandas. (Caio, 2016).

Eis que surge aqui um elemento importante, conectado com o


que diz Gustavo. Há limites para que uma música seja congregacional,
ou para que esteja apta para ser tocada na igreja. E esses limites passam
pelos ritmos musicais e pelos efeitos corporais que eles podem desenca-
dear. Estilos mais “animados” tendem a “balançar” e a “rebolar” o cor-
po, fazendo com que a igreja possa ser “legal”, mas não necessariamente
“profunda em adoração”. Não se diz desses ritmos que sejam imorais,
diabólicos ou algo do gênero, mas que não são músicas para serem toca-

281
das e cantadas na igreja, nos cultos. Conforme Caio enfatiza em outro
momento: “Tem bandas que é pra igreja e outras que não são”.
Uma banda habilitada para tocar na igreja é a que está atrelada
em sua audiência a um “público de igreja”. Quando está voltada a um
“público de rua”, a banda é boa para se escutar, mas não para ter suas
músicas tocadas na igreja. O imbróglio da legitimidade não está asso-
ciado diretamente ao estilo e ao ritmo de uma música ouvida no coti-
diano, mas aos efeitos que a prática musical pode ter sobre a adoração
no culto, cujo tom deve ser reflexivo e não de “animação”. Nas palavras
de Gustavo: “A gente canta coisas que fazem a gente pensar naquilo que
tá cantando”. De acordo com ele, o resultado mais prático de cantar
pensando no que se está cantando é atribuir um foco maior à “Pessoa
de Deus” e à “Pessoa de Cristo”, algo que um “lugar legal” por si só não
faria. É dessa forma que o processo de adoração é aprofundado. A refle-
xão sobre o que é cantado recebe maior legitimidade espiritual diante
do que o corpo pode celebrar por meio dos ritmos musicais.
Investindo na separação entre “música para a rua” e “música para
a igreja”, o guitarrista Caio entende ainda que o worship comporta uma
vantagem em relação ao gospel: no primeiro, a adoração cumpre uma
função exclusivamente religiosa. A adoração não se torna “cultural”,
na perspectiva de se deslocar da “igreja” para o “mundo” carregando
sentidos não religiosos. A relação do gospel com a “cultura”, todavia,
é ambígua. Para o músico, pode haver uma influência do gospel sobre
a “cultura” e vice-versa. Essa influência pode ser tanto evangelizadora
quanto “banalizadora”, pois, na adesão a uma plataforma mercadoló-
gica, a construção de uma carreira artística por uma banda ou cantor
evangélico pode resultar em uma perda do sentido propriamente reli-
gioso da música de adoração. São ocasiões em que, segundo Caio, “se
exalta mais ao homem do que a Deus”, havendo aí um processo de
instrumentalização da música religiosa pela indústria cultural.
Com efeito, procura-se minimizar os riscos de uma “banalização” da
música congregacional e de seu conteúdo mediante a formação de certos
sentidos para a adoração. Há um aparato estético-sensorial nas mediações
materiais da adoração que possui a incumbência de produzir uma adora-
ção de contrição. Esse aparato não se fazia presente sob a mesma forma

282
na fase de implementação do worship na Brasa Church. Trata-se de uma
função acoplada ao teclado, referida como pad.7 O som produzido pelos
pads – e aqui o termo é colocado no plural, porque está atrelado a uma
multiplicidade de modulações operadas pela função – é de alta relevância
para a condução do culto worship. Esse som eletrônico fornece uma espé-
cie de ambientação acústica para os momentos rituais do culto, atuando
como uma “almofada” sonora, conforme o próprio nome sugere.
Os pads produzem um som instrumental de fundo que remete
a um sentimento nostálgico e épico, de leveza e tranquilidade, e que
dura praticamente todo o percurso do culto. Seu acionamento vai desde
as músicas iniciais até as finais, passando pelas orações e boa parte da
pregação, especialmente no apelo final, à exceção dos momentos em
que vídeos são reproduzidos nos telões. As mediações que passam pelos
pads contribuem significativamente para o processo de envolvimento
dos adoradores em sensações de calmaria, preparando-os para uma con-
centração diante da presença do Espírito Santo. O tecladista Paulinho
explica melhor a função desempenhada por esse instrumento:

O papel dos pads é ajudar pra que a igreja se entregue o tempo


todo. O Espírito Santo é quem vai operando nos corações, a
gente faz só o que nos cabe, que é guiar os instrumentos e as
músicas pra isso. O som que a gente faz ali [nos pads] é mais
calmo, sustenta as nossas músicas e dá o fundo musical pro
culto. É diferente dos sons dos outros instrumentos, tipo a ba-
teria, que são mais fortes. Então isso vai acalmando quem tá
presente, concentrando no que Deus tem a dizer. A pessoa vai
sendo preparada. A gente pensa muito nisso, porque a igreja é
um ambiente de adoração e não só de festa. (Paulinho, 2019).

Os pads são vistos como possuindo um potencial de induzir


sensações coletivas de contrição na adoração, uma vez que podem fazer
com que as pessoas se “entreguem” mais facilmente à contrição do que
os outros instrumentos musicais e seus acordes “fortes”. Os sons dos
pads preparam terreno para a ação do Espírito Santo de um modo que
outros instrumentos não podem fazer. A produção de uma adoração
para a contrição acompanha as preocupações com a legitimidade dos
7 Em tradução para o português, pad significa “almofada”.

283
sentidos organizados coletivamente na Brasa Church. Os membros da
comunidade têm buscado no worship um estímulo cultual a um “am-
biente de adoração e não só de festa”.
Podemos refletir sobre os sentidos das mediações materiais da mú-
sica e da adoração worship na Brasa Church por intermédio do concei-
to de “ideologia semiótica”, elaborado por Webb Keane (2007). Por
“ideologia semiótica”, Keane se refere ao estatuto atribuído a palavras,
coisas e imagens por tradições religiosas específicas e historicamente
situadas. No caso protestante, o autor argumenta que há a operação
de uma divisão entre forma e conteúdo que atribui ao que se considera
conteúdo – doutrinas, valores, concepções teológicas – uma preponde-
rância sobre a forma – ritualística, imagens, materialidades. Esta noção
é, em grande parte, justificada na centralidade da Bíblia como revelação
divina por excelência e se impõe mediante uma posição marcadamente
iconoclasta. Na ideologia semiótica protestante, o valor humano reside
justamente na “sua distinção do mundo material e sua superioridade
em relação a ele” (Keane, 2002, p. 71).
Em tal contexto, procura-se distinguir o que é “da igreja” e o que
é “do mundo”, repondo nas dinâmicas musicais uma delimitação mais
precisa das fronteiras entre sagrado e secular para a composição do que
seja a adoração. A “agitação” corporal e a “igreja legal” são efeitos contor-
nados por mediações materiais que reforçam uma estética da adoração
orientada para o conteúdo religioso – sobre o qual se busca estimular a
reflexão –, e não para formas relacionadas com o “mundo”, ou a esfera
secular. O privilégio conferido pela ideologia semiótica protestante ao
que se considera como conteúdo da experiência religiosa vem a com-
por o cerne das preocupações com a “profundidade” da adoração na
Brasa Church. Entretanto, como veremos a seguir, essas fronteiras são
redefinidas quando a estética da adoração extrapola o culto e adentra a
“cultura” sob a forma de música-arte. Acompanharemos este processo
pela adesão da banda da Brasa Church ao mercado fonográfico, com os
dilemas que disso decorrem.

284
Quando a adoração adentra a “cultura”:
música-arte no mercado fonográfico
As marcações fronteiriças entre sagrado e secular, ou entre “igreja” e
“mundo”, são enrijecidas, por um lado, por uma concepção de adoração
que procura invocar a reflexão sobre o conteúdo religioso e desestimular
a celebração de formas corporais tidas como “mundanas”. Por outro, elas
também se manifestam quando uma certa concepção sobre “cultura” é
veiculada na igreja, entre sermões e conversas informais. Em outro lu-
gar (Aguiar, 2020b), discorro mais detidamente sobre as implicações da
ideia êmica de “cultura do Reino” para um entendimento das práticas do
worship na Brasa Church. Grosso modo, pode-se dizer que a “cultura do
Reino” é simultaneamente uma perspectiva de igreja e uma concepção de
adoração que se coloca como contraponto à “cultura do mundo”, consi-
derada, em sua abrangência, como um correspondente do espaço secular.
Comprometida com a promoção de uma “cultura do Reino”, a
igreja remaria contra a maré do “mundo” nos mais diversos aspectos,
incluindo o âmbito musical. O worship tem se afirmado desde sua gê-
nese como música congregacional, praticada em cultos e com ressalvas
à inserção no mercado gospel por conta da “banalização” do sagrado
que o acometeria na construção de carreiras orientadas pela “fama” e
pelo “dinheiro” (Aguiar, 2020b). Como já comentamos, podemos di-
ferenciar o worship do subgênero “louvor e adoração” sobretudo pela
sua caracterização como formação estética, em vez de considerá-lo sim-
plesmente como um gênero ou estilo musical de adoração. A banda da
Brasa Church surgiu com uma orientação exclusivamente congregacio-
nal, servindo à adoração por meio do louvor nos cultos da juventude da
igreja. Os/as cantores/as e músicos que fazem parte da banda não são
profissionais, a despeito de sua destreza técnica e do reconhecimento
que têm alcançado da parte dos fiéis e do público em geral pela qualida-
de musical. Todos/as têm ocupações profissionais diversas no cotidiano
e dedicam tempo voluntário para as atividades da igreja, reunindo-se
durante a semana para os ensaios e aos sábados para os cultos e os trâ-
mites musicais preparatórios que os antecedem. Em data recente, houve
uma mudança importante nesse quadro de relações da banda com o
mercado fonográfico gospel, redefinindo margens entre sagrado e secu-

285
lar e estabelecendo mediações da adoração para além do culto. É com
base nessas margens e mediações que iremos explorar as questões que
compõem o núcleo deste capítulo.
Em março de 2019, a banda da Brasa Church firmou uma parceria
com a Onimusic, uma das maiores gravadoras evangélicas do Brasil. Tal
colaboração levou a que conteúdos da Brasa Church Music, como passou
a ser nomeada a banda, fossem produzidos e inseridos em plataformas
digitais de música e vídeo, como Spotify e YouTube, sob o selo oficial
da gravadora. Os repertórios gravados são geralmente os mesmos canta-
dos nos cultos da igreja, tratando-se de traduções de canções de grupos
e bandas de sucesso internacional vinculados ao estilo worship. Fundada
em 2002, em Belo Horizonte, pelo casal batista Nelson e Christie Tristão,
a Onimusic se diferencia de outras gravadoras evangélicas pelo investi-
mento em contratos com grupos de louvor associados a ministérios de
jovens aderentes à tendência worship.8 Esses grupos e bandas não se fazem
presentes da mesma maneira no cast de majors seculares que mantêm selos
gospel e de outras gravadoras que compõem o mainstream evangélico/
gospel. A operação comercial da Onimusic, no entanto, funciona sob a
mesma lógica das demais gravadoras, inclusive com a realização de shows
por parte de cantores e bandas worship e a distribuição de vídeos e fono-
gramas principalmente por meio de plataformas e streamings digitais.
De acordo com o site da Onimusic, os serviços prestados pela empresa
incluem, além da distribuição digital e física de conteúdo musical, gestão de
conteúdo digital, edição de conteúdo digital pela Editora Adorando, uma
empresa coligada e também fundada pelo casal Tristão, e mentoreamento9
de ministros de louvor e adoração.10 Os processos de gestão e edição musi-
8 Uma vista na seção “Associados” do site da Onimusic é suficiente para verificar um grande número de cantores e
bandas worship. Disponível em: https://onimusic.com.br/associados/. Acesso em: 29 ago. 2020. Embora a grava-
dora não elabore uma categoria worship e não enquadre nenhum músico nela, é possível identificar os praticantes
da tendência por intermédio de seu estilo musical e principalmente dos vídeos que dispõem em canais na internet,
onde se pode constatar o worship na estética dos cultos de que participam.
9 Embora o site da Onimusic não explicite as formas pelas quais desenvolve o seu serviço de “mentoreamento de
ministros de louvor e adoração”, é possível depreender o significado desse processo com base nos dados de campo.
Em muitas ocasiões, pude registrar a ocorrência do termo “mentoreamento” na Brasa Church como algo relacio-
nado à formação de lideranças espirituais por uma relação de proximidade que se estabelece entre uma pessoa
espiritualmente mais “madura” e outra menos experiente e nova na fé. No caso do mentoreamento oferecido pela
Onimusic, pode-se supor que esteja associado a um treinamento do “como fazer” música de adoração. Esta pesquisa
não aborda os pormenores desse “como fazer”, ainda que aponte para linhas mais gerais do processo de produção e
edição musical, como se verá mais adiante.
10 Estas informações estão disponíveis na aba “Sobre a Onimusic”, que também especifica a história da gravadora no
site. Disponível em: https://onimusic.com.br/sobre-a-onimusic/. Acesso em: 2 set. 2020.

286
cal são comumente complexos e demorados, segundo as informações que
obtive de músicos da Brasa Church. Durante a edição, procura-se seguir
um protocolo para o aprimoramento de um conteúdo que seja comercial
e que preserve, ao mesmo tempo, os sentidos da adoração congregacional.
No processo editorial, há ainda uma dimensão importante relativa aos di-
reitos autorais das canções, os quais devem ser resguardados e referenciados
na distribuição do conteúdo musical. Essas atividades são suficientemente
trabalhosas para que um grupo de voluntários dê conta de sua realização.
Daí decorre uma das principais vantagens apontadas pelos membros da
banda para comentar a efetividade da parceria fonográfico-comercial: a
centralização dos diversos processos de gestão e edição nas mãos da grava-
dora permite que a banda possa dedicar mais atenção ao seu ministério.11
Não obstante ofereça essa gama de serviços de distribuição, gestão
e edição musical, a Onimusic também coloca à disposição de seus as-
sociados ferramentas para a criação de uma marca comercial e artística.
Logo que estabeleceu sua parceria com a gravadora, a banda da Brasa
Church passou a fazer uso de um logotipo estilizado com o acrôni-
mo BCM, em referência às iniciais de seu novo nome. Por iniciativa
e oferta da Onimusic, outras estratégias de marketing são acionadas
na divulgação das bandas, cantores e grupos associados à gravadora,
destacando-se a produção de vídeos de entrevistas, trailers, preview de
discos e lyric videos (contendo só letras das músicas), que se somam aos
materiais audiovisuais principais dos videoclipes. A forma artística de
produção musical ganha relevância no modelo de operação da Onimu-
sic, embora a aproximação de músicos com a gravadora possa acontecer
por questões mais pragmáticas, tais como a procura pelas vantagens de
serviços centralizados de gestão e edição musical, e não pela construção
planejada e intencional de uma carreira artística e comercial.12
11 Este ponto foi amplamente enfatizado pelo vocalista Amauri Jr. e pelo baixista Silas em uma entrevista concedida
ao autor em 18 de julho de 2020. Houve uma ênfase, em suas falas, no aspecto pragmático da parceria com a Oni-
music. Para eles, mais do que por uma opção deliberada de construção de uma carreira artística, o que determinou
a parceria com a gravadora foi a possibilidade aberta de obter esse benefício de ordem prática.
12 É preciso frisar que, ao participar do cast da gravadora, as bandas, cantores e grupos dispõem de serviços que não
somente otimizam a produção e a edição musical, mas projetam uma marca que é disponibilizada pela empresa e dis-
seminada por ela. Nessa projeção de marca, que assume feições comerciais, reside um componente simultaneamente
artístico e religioso. Mesmo sendo uma gravadora de música exclusivamente evangélica, a Onimusic não estabelece o seu
cast como um simples agregado de ministros de louvor e adoração, mas opera uma concepção calcada na associação de
marcas artísticas, à maneira das gravadoras propriamente seculares. Mediante a criação e a projeção de marcas, o cast da
gravadora é investido de uma condição que aqui considero como artística e comercial, mas que não deve ser dissociada
de sua condição – supostamente preponderante – religiosa. Na projeção de marca, o artístico e o religioso se entrecruzam.

287
A despeito das motivações para essa aproximação, uma vez que ela
ocorre, a nova condição da banda como integrante do cast de uma gran-
de gravadora gospel suscita discussões sobre a legitimidade religiosa da
construção de uma carreira artística e transparece dilemas que surgem
da circulação comercial de suas músicas. Com o contrato assinado, o
conteúdo musical da Brasa Church Music passou a ser distribuído e a
circular mais amplamente por redes e mídias digitais, tornando a ban-
da cada vez mais conhecida e famosa. Para se ter uma dimensão dessa
popularização, o vídeo mais acessado da banda no YouTube contava
com cerca de 4,2 milhões de visualizações quando este texto era escri-
to.13 Com a visibilidade comercial das canções de sua banda, podemos
nos perguntar como a Brasa Church passa a conceber as relações entre
a estética da adoração worship e a entrada de sua música na “cultura”.
Se a inserção no mercado fonográfico gospel, dissociado da “igreja” e
atrelado à “cultura”, apresenta um perigo de “banalização” da música
religiosa, como dar conta das relações com a Onimusic, considerando
que o contato com a “cultura” é traduzido como um contato com o
“mundo”?
O dilema é semelhante ao que alguns cantores evangélicos enfren-
tam quando se deparam com o sucesso em suas carreiras e se tornam
“celebridades gospel”. Robson de Paula (2007) aponta que há diversas
maneiras de se relacionar com trajetórias profissionais nesse meio musi-
cal, desde condições diferenciadas de acesso ao mercado fonográfico até
idiossincrasias relativas ao percurso biográfico e religioso dos cantores.
A tensão entre ser “servo” e ser “celebridade”, que aparece em alguns
contextos, tem a ver com a legitimidade da atuação de evangélicos que
levam a música de adoração para fora da igreja, inserindo-a no circuito
comercial gospel. Basta relembrarmos da separação entre “música para
a igreja” e “música para a rua” para nos darmos conta de que a relação
com o que está fora da “igreja” – a “cultura” – não opera sem conflitos.
O gospel se inclui na “cultura” de uma maneira tensa, posto que sua
música é tomada como indissociável do mercado que lhe corresponde,
e nele há um perigo de “banalização” da adoração.
13 Há dezenas de vídeos da Brasa Church Music no YouTube, bem como fonogramas no Spotify, no Deezer e em
outras plataformas e streamings digitais. No YouTube, o vídeo mais acessado a que fizemos referência é o da mú-
sica “Altar”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gOnp0Kuq-9M. Link para o canal no YouTube:
https://www.youtube.com/user/brasachurch/. Acesso a ambos os links: 29 ago. 2020.

288
Pode-se visualizar esses conflitos e tensões em situações variadas
que envolvem a relatividade dos limites entre “igreja” e “cultura”. To-
memos como exemplo o caso trabalhado por Giumbelli (2018), que
acompanha concepções sobre música cristã que não se reduzem a pre-
definições sobre o universo gospel. A propósito de uma igreja específica,
o autor constata uma afirmação das fronteiras entre “bandas de bar” e
“bandas de crente” que é homóloga àquela separação entre “música para
a igreja” e “música para a rua” sobre a qual vimos comentando. Entre-
tanto, a operação dessa disjunção ocorre simultaneamente a propostas
de atuação musical e inserção no circuito artístico-comercial que não se
enquadram em moldes rigidamente estabelecidos. A banda Tanlan, for-
mada por cristãos evangélicos, mas contrária à definição como gospel,
encontra dificuldades para circular no meio secular em que pretende
estar e se volta para a “igreja”, não sem que evoque tensões nas relações
que procura estabelecer musicalmente com a “cultura”.
A identificação do mercado fonográfico gospel com a “cultura”
não impede, entretanto, que estratégias sejam acionadas para contornar
o dilema aparentemente insolúvel da entrada da adoração na “cultu-
ra”. Bandeira e Nicolau Netto (2017) destacam que o mercado gospel
considera certas racionalidades para a sua estruturação, sendo possível
inferir que ele não funciona à maneira de um espelho de outros mer-
cados seculares. Semelhantemente, cantores e bandas inseridos no cir-
cuito comercial não se comportam uniformemente em relação às suas
produções e carreiras. Há uma diversidade quanto às maneiras de lidar
com as fronteiras entre sagrado e secular que permeiam a atividade da
música gospel no mercado e da adoração na “cultura”. Pretendo de-
monstrar uma dessas estratégias, particularmente relevante no caso da
Brasa Church Music.
A forma de produção musical que tem recebido mais atenção da
Brasa Church Music, em sua distribuição de conteúdo coordenada pela
Onimusic, são os vídeos publicados no YouTube e nas redes sociais.
Também são esses produtos digitais os primeiros a serem divulgados
por membros da banda e da igreja quando há um novo lançamento. Em
conversas que tive com pessoas vinculadas à Brasa Church no período
posterior à finalização da pesquisa de mestrado, notei, da parte delas,

289
um entusiasmo maior com os vídeos publicados pela igreja na internet
do que havia antes. Com frequência recebi vários desses vídeos, a maioria
de músicas e alguns de pregações. Uma primeira explicação para tal au-
mento de entusiasmo pode ser encontrada nas limitações impostas pela
pandemia de Covid-19, que inviabilizaram temporariamente a realização
de cultos e atividades presenciais. Essa explicação apostaria no saudosis-
mo dos cultos para dizer algo sobre as relações com os vídeos. Mas o
que constatei, um tempo após esboçar essa hipótese, foi que a circulação
audiovisual não é apenas um preenchimento de uma lacuna deixada pela
ausência de cultos; é também uma forma de viver a adoração.
Um diálogo com o vocalista da Brasa Church Music, Amauri Jr.,
foi capaz de elucidar os modos pelos quais acontece o processo de pro-
dução dos vídeos. Em primeiro lugar, segundo ele, há uma tentativa
de reprodução da adoração que acontece nos cultos no material au-
diovisual. Praticamente todos os vídeos da banda são gravados ao vivo
durante os cultos da Brasa Church. Apenas dois dos videoclipes dis-
ponibilizados no YouTube foram gravados sob o formato acústico em
outros ambientes. Registra-se imagem e som para os vídeos ao vivo por
meio de um aparato tecnológico adequado à captura de imagens em
ambiente escuro. Posteriormente, na edição de som, procura-se manter
ao máximo a fidedignidade do louvor praticado no local de culto. De
acordo com o músico, o que se faz nesse processo de edição é “retirar
o excesso de ruído, pra que quem vai escutar e ver o vídeo não se sinta
incomodado e atrapalhado nisso” (Amauri Jr., 2020). A ideia é fazer
com que quem tome contato com o vídeo possa se sentir como se esti-
vesse dentro da igreja durante um culto. A gravação e a edição são to-
talmente orientadas para produzir essa sensação, levando não somente
a música, como também o culto para o meio virtual.
É claro que, neste caso, não se trata de uma reprodução on-line
do culto ao vivo, algo que foi feito provisoriamente durante a pande-
mia, contendo somente as pregações do pastor Mauricio, líder da Brasa
Church. Essas reproduções, sim, aconteceram sob a forma de trans-
missões que visaram solucionar a ausência de cultos presenciais. Mas
a reprodução dos vídeos da banda assume características bastante dife-
rentes, posto que as músicas gravadas ao vivo em momentos de culto

290
são produtos comerciais distribuídos pela Onimusic e sua circulação
não está associada com a emergência da pandemia. A forma pela qual
os videoclipes são produzidos para circularem no mercado fonográfico
– reproduzindo o melhor possível a adoração no culto – guarda relação
com uma afirmação estratégica dos sentidos imprimidos à estética da
adoração worship. Estes extrapolam o culto e invadem o ambiente vir-
tual, na intenção de incutir sobre a audiência sensações similares àque-
las estabelecidas pelas mediações materiais da adoração no culto.
Desta maneira, a Brasa Church Music logra se relacionar com o
mercado fonográfico preservando os sentidos da adoração que busca
organizar no ritual. Os vídeos carregam consigo não apenas as músi-
cas executadas pela banda, mas, igualmente, a estética da adoração que
constitui os cultos. Esse processo é levado a cabo por uma recomposição
das relações entre o ao vivo e o gravado, em uma dinâmica que lembra as
constatações de Almeida (2018) sobre outro universo religioso. A pro-
dução dos vídeos da Brasa Church Music é marcada por uma tentativa
de reprodução do ao vivo no gravado e reflete uma preocupação com
a transposição das mediações materiais da adoração para o material
audiovisual. Distribuído comercialmente, o produto fonográfico que
passa a existir sob esse regime de produção mantém o foco reflexivo da
adoração, reforçando sentidos que se fazem presentes no culto. Como
se pode ver, a estética da adoração possui uma dinâmica transponível.
Pode-se experimentá-la ao vivo na forma gravada em vídeos.
Consequentemente, torna-se possível à música worship adentrar ao
mercado fonográfico contornando os sentidos comerciais deste último,
os quais levariam a um perigo de “banalização” de seu conteúdo reli-
gioso. Essa “banalização” está relacionada a concepções negativas sobre
o “mundo”, a “cultura” e o secular. O worship se insere no mercado
fonográfico evitando esse perigo, por meio de uma reordenação quanto
à forma e à circulação de seus produtos musicais. No formato de ví-
deo, as mediações materiais da adoração são reproduzidas carregando
os sentidos de contrição do ritual. Isto não seria possível de se realizar
da mesma forma em fonogramas em CDs, por exemplo, ou, ainda,
em streamings e plataformas que não comportam a circulação de ima-
gens. Um passo além das mediações materiais, a Brasa Church Music

291
também redefine sua atuação no mercado musical como uma banda
pertencente ao cast de uma grande gravadora. Constrói-se uma carreira
artística de um grupo de músicos que não são mais apenas adorado-
res que entoam música congregacional nos cultos da juventude de sua
igreja. Na condição de adoradores-artistas, eles conseguem alcançar um
lugar junto ao mercado fonográfico que não desabona sua função mais
religiosa de adoração. A música por eles produzida supera a dicotomia
de ser ou congregacional, ou comercial. Tendo ambas as faces ao mesmo
tempo, ela se afina como música-arte que pode adentrar a “cultura”
sem se tornar secular e pode servir à adoração sem ser exclusivamente
congregacional.

Margens e mediações da adoração: considerações flutuantes


Durante o percurso deste capítulo, procuramos sublinhar as for-
mas pelas quais o worship se constitui como uma estética da adoração
na Brasa Church. Com base em uma abordagem teórico-metodológica
que nos permitiu vê-lo assentado sobre um tripé formado por a) esti-
lo musical, b) estética de culto e c) concepção de adoração, o worship
se apresentou como um arranjo estético-sensorial ritualmente disposto
que é atravessado por sentidos estabelecidos em mediações materiais da
prática religiosa. No seio dessas mediações, a música ocupa um lugar
determinante, pois, ao invés de se resumir a uma característica que fun-
damenta a composição de um estilo musical, ela é um elemento estraté-
gico para a ocorrência de transformações que modificam os sentidos da
adoração. Como nota Costa (2014, p. 70), em muitos cultos de jovens
evangélicos, a música aparenta ser a própria experiência religiosa em si,
e não um veículo que conduz ou induz a essa experiência. Isto pode ser
percebido também em outros contextos, como o da música eletrônica
de pista, em que os sons parecem comandar os movimentos corporais
das pessoas dançantes (Ferreira, 2008). Variadas análises e concepções
que enfatizam a dimensão musical atribuindo atenção às corporalidades
e às materialidades tendem a verificar esta abrangência da música como
uma experiência sensório-corporal total.
A música worship participa do emaranhado de mediações materiais
da adoração na Brasa Church possuindo uma dimensão estética que

292
é maleável. A depender de como a música é praticada, de que instru-
mentos são acionados e de que sons são produzidos, o elemento musi-
cal contribui significativamente para a formação de certas sensações. A
produção de uma “adoração de contrição” que segue a introdução dos
pads no culto, por exemplo, contribui para que uma maior sensação de
“profundidade” reflexiva dos adoradores seja desencadeada. Tal “pro-
fundidade” tem a ver com um direcionamento da atenção do público
às letras das músicas e aos significados espirituais que elas possuem, re-
forçando uma ideologia semiótica protestante que valora positivamente
o que é considerado conteúdo religioso em detrimento do que é visto
como forma de adoração.
Uma vez organizadas as mediações materiais, os sentidos que se
procura promover situam a adoração dentro de um quadro em que
forças antagônicas disputam a legitimidade da experiência religiosa. A
“igreja” é ameaçada pelo “mundo” – categoria que espelha a esfera se-
cular – em diversos aspectos, o que inclui a atividade musical. A cons-
tituição de um mercado fonográfico e de uma indústria cultural gospel
é lida como uma aproximação com elementos “mundanos” que apre-
sentam um perigo de “banalização” do sagrado, baseada em uma ênfase
do gospel na operação mercadológica da música e não na sua função
exclusivamente religiosa de adoração. Este dilema se impõe como o pro-
blema da adoração na “cultura”: como conceber a validade da música
como arte e produto comercial, preservando o seu caráter religioso em
uma oposição rígida das fronteiras entre sagrado e secular? Na atuação
da banda da Brasa Church, percebemos o acionamento de uma estraté-
gia que contorna o problema por uma redefinição dessas fronteiras. Ao
firmar uma parceria com a gravadora Onimusic, a Brasa Church Music
passa a direcionar sua produção musical para um tipo específico de
forma fonográfica, o vídeo, pelo qual procura reproduzir nas gravações
a ambiência da adoração nos cultos. Como consequência, evita-se que
a música worship passe por uma “banalização” pela transposição dos
sentidos das mediações materiais do culto para o ambiente virtual.
Há um outro ponto que precisamos reafirmar pela sua pertinência
quanto às formas pelas quais a Brasa Church Music se articula com a
“cultura” por intermédio da música-arte worship. O estabelecimento

293
da parceria fonográfica com a gravadora Onimusic é justificado, pelos
próprios músicos da banda, por razões que têm a ver com os benefícios
práticos que advêm de uma centralização dos processos de produção e
edição musical nas mãos da empresa. Embora este seja um aspecto im-
portante na relação com a gravadora, ele não constitui uma explicação
última da racionalidade da parceria comercial. Como vimos, ao fazer
parte do cast da Onimusic e usufruir de uma projeção de marca, a ban-
da se vincula diretamente a uma forma artística de produção musical
que a priori poderia ser considerada “perigosa”, em decorrência de sua
associação com os efeitos de “banalização” mercadológico-comercial
que se procura evitar. Todavia, o regime de produção artístico-musical
que se instaura com uma centralidade nos videofonogramas parece im-
pedir a concretização dessa “banalização”. Em diálogo com outros dois
textos desta coletânea, podemos sugerir que isso ocorre pela preservação
de um certo tipo de “artisticidade” (Almeida, 2020) que se vale de um
percurso de artificação diferenciado. Nele, procura-se criar um estado
de adoração que guarda similaridade, em sua dimensão processual, com
a ideia de “estado bíblico” descrita por Scola (2020).
Como se pode perceber ainda a respeito da dimensão musical do
worship, o dilema da entrada da adoração na “cultura” não pode ser
confundido com uma inviabilidade da aceitação evangélica a ritmos
musicais “agitados”. Em outros domínios, como no âmbito doméstico
ou em shows gospel, eles são bem-vindos e se fazem bem presentes
(Jungblut, 2007). O que o worship e suas mediações nos sugerem é
que as margens da “igreja” e do “mundo”, do sagrado e do secular e da
adoração e da “cultura” são instituídas em um processo flutuante de
mediações que opera instâncias como a música congregacional, a arte
religiosa e a produção comercial. Se nos perguntarmos, então, se um
outro regime de mediações produziria novas margens para a música-ar-
te worship, devemos levar em consideração em nossa resposta a relação
entre todos esses domínios. Os sentidos religiosos podem se ajustar a
novas margens na mobilização de novas mediações. Cabe-nos atentar
para as condições que esses ajustes são capazes de criar não só quanto à
adoração, mas também quanto às formações do secular (Asad, 2003).

294
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Entrevistas
Amauri Jr. Entrevista concedida a Taylor de Aguiar, Porto Alegre, 18 jul. 2020.
Caio. Entrevista concedida a Taylor de Aguiar, Porto Alegre, 17 maio 2016.
Gustavo. Entrevista concedida a Taylor de Aguiar, Porto Alegre, 23 mar. 2019.
Paulinho. Entrevista concedida a Taylor de Aguiar, Porto Alegre, 29 jun. 2019.

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Sobre as Autoras e os Autores

Christina Vital da Cunha


é Professora Associada do Departamento de Sociologia e do Programa
de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense.
Cumpriu seu doutorado em Ciências Sociais pelo PPCIS/UERJ e no
Centre de Recherche sur le Brésil Contemporain na École de Hautes
Études en Sciences Sociales/Paris. Coordena o LePar - Laboratório de
Estudos Sócio Antropológicos em Política, Arte e Religião e integra
a equipe de pesquisadores do MARES - Religião, Arte, Materialida-
de, Espaço Público: grupo de antropologia. Publicou o livro Oração
de traficante: uma etnografia, além de ser autora de artigos científicos e
matérias publicadas em jornais nacionais e internacionais. É co-autora
e organizadora de outros livros e co-editora do periódico Religião &
Sociedade.

Edilson Pereira
é Professor Adjunto da Escola de Comunicação da Universidade Fe-
deral do Rio de Janeiro. Doutor em Antropologia Social pelo Museu
Nacional (UFRJ), com estágio na École des Hautes Études en Sciences
Sociales e pós-doutorado na Universitat de Barcelona. Suas pesquisas e
publicações exploram as mediações entre experiências estéticas, contex-
tos religiosos e práticas da memória, incluindo projetos de antropologia
visual. Atualmente, coordena o projeto de extensão “Sagrados: imagens
da cultura e da diversidade religiosa no Brasil” (ECO/UFRJ) e se vincu-
la ao Laboratório de Antropologia do Lúdico e do Sagrado, LUDENS
(sediado no PGAS/MN/UFRJ) e ao MARES - Religião, Arte, Materia-
lidade, Espaço Público: grupo de pesquisa.

Emerson Giumbelli
é Professor Titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
atuando no Departamento de Antropologia e no Programa de Pós-Gra-
duação em Antropologia Social. É doutor em Antropologia Social pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro. É co-editor da revista Religião
& Sociedade. Integra o Núcleo de Estudos da Religião (UFRGS) e co-

299
-coordena o MARES - Religião, Arte, Materialidade, Espaço Público:
grupo de antropologia. Suas pesquisas incidem nos temas: religião e
modernidade, símbolos religiosos e espaços públicos, laicidade. É autor
do livro Símbolos religiosos em controvérsias (2014) e co-organizador dos
livros Como as coisas importam: uma abordagem material da religião. Tex-
tos de Birgit Meyer (2019) e Secularisms in a Postsecular Age? Religiosities
and subjectivities in comparative perspective (2017).

Fernanda Arêas Peixoto


é Professora Titular do Departamento de Antropologia da Universidade
de São Paulo e pesquisadora do CNPq. É doutora em Antropologia
Social pela Universidade de São Paulo. Coordena o Coletivo Asa, artes
saberes antropologia (http://www.coletivoasa.dreamhosters.com), in-
tegra o MARES - Religião, Arte, Materialidade, Espaço Público: grupo
de antropologia, é editora da Enciclopédia de Antropologia (http://ea.
fflch.usp.br) e co-editora da linha Anthropologies du Brésil de Bérose,
Encyclopédie internationale des histoires de l’anthropologie (http://
www.berose.fr). Autora de Diálogos brasileiros: uma análise da obra de
Roger Bastide (2000) e A viagem como vocação: itinerários, parcerias e
formas de conhecimento (2016, trad. francesa, 2019). Co-organizadora,
entre outros, de Ciudades sudamericanas como arenas culturales (2016,
trad. bras., 2019).

Jorge Scola Gomes


é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É graduado
e licenciado em Ciências Sociais e mestre em Antropologia Social pela
mesma instituição. Participa do Núcleo de Estudos da Religião (NER/
UFRGS) e do Mares - Religião, Arte, Materialidade, Espaço Público:
grupo de antropologia. Dedica-se a temas na interface entre política e
religião. Atualmente, desenvolve pesquisa de doutorado a respeito das
relações entre mídia, religião e poder com base na produção televisiva
da Record e suas implicações para os projetos da Igreja Universal do
Reino de Deus.

300
Júlia Vilaça Goyatá 
é Professora Adjunta do Departamento de Sociologia e Antropologia da
Universidade Federal do Maranhão (UFMA), mestre e doutora em An-
tropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP) e bacharel em
Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Autora do livro Georges Bataille e Michel Leiris: a experiência do sagra-
do (2016), é membro dos grupos de pesquisa ASA (Artes, saberes e an-
tropologia) e MARES - Religião, Arte, Materialidade, Espaço Público:
grupo de antropologia. Atua especialmente nas seguintes áreas de pes-
quisa: história e teoria antropológicas; expressão artística e experiência
social; antropologia, arquivos e museus e religião e materialidades.

Leonardo Almeida
é pesquisador DCR – CNPq/FUNCAP no Programa de Pós-Gradua-
ção em Antropologia da Universidade Federal do Ceará. Doutor em
Antropologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFR-
GS), tendo cursado parte do doutorado na Utrecht University, Holan-
da. Mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará e gradua-
do em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Ceará. Autor do
livro Eu sou o ogã confirmado da casa: ogãs e energias espirituais em rituais
de umbanda. Suas pesquisas privilegiam os seguintes temas: religião,
música, mídia e arte. Integra o MARES - Religião, Arte, Materialidade,
Espaço Público: grupo de antropologia, o Núcleo de Estudos da Reli-
gião (NER/UFRGS) e o Grupo de Estudos Afro (GEAFRO/UFRGS).

Paola Lins de Oliveira


é antropóloga, pesquisadora e roteirista. Doutora em Antropologia
Cultural pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropo-
logia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Realizou pesquisa de
Pós-doutorado PNPD/CAPES no Programa de Pós-Graduação em
Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É editora
de resenhas da revista Religião & Sociedade e pesquisadora associada do
Observatório e Inventário do Patrimônio Religioso (Grupo de Estudos
Políticos - UniRio) e do MARES - Religião, Arte, Materialidade, Espa-
ço Público: grupo de antropologia. É co-organizadora do livro Olhares

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sobre o patrimônio religioso (2016) e autora do livro Arte e religião em
controvérsia - relações entre censura, arte erótica e objetos religiosos (2016).

Renée de la Torre
é doutora em Antropologia Social e Professora e pesquisadora do Cen-
tro de Investigaciones y Estudios Superiores en Antropología Social
(CIESAS) na unidade Occidente, em Guadalajara, México. É pesqui-
sadora do Sistema Nacional de Investigadores (SNI) e integrante da
Academia Mexicana de las Ciencias. Co-fundadora da Red de Inves-
tigadores del Fenómeno Religioso en México (RIFREM).  Durante
sua trajetória, tem se dedicado ao estudo da diversidade religiosa no
México; da influência do catolicismo na sociedade civil; da emergência
das espiritualidades alternativas; das dinâmicas de transnacionalização
das danças rituais astecas e da religiosidade popular. Seus livros mais
recentes são: Religiosidades nómadas. Creencias y prácticas heterodoxas en
Guadalajara, 2012; (em colaboração com Cristina Gutiérrez Zúñiga)
Mismos pasos, nuevos caminos. Transnacionalización de la danza conchero
azteca, 2017. 

Taylor Pedroso de Aguiar


é doutorando em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS). Mestre em Antropologia Social (2020) e graduado em Ciên-
cias Sociais (2017) pela UFRGS. É bolsista de doutorado da CAPES.
Seus principais temas de pesquisa são: religião e juventude, evangéli-
cos, música gospel, religião e espaço público. É integrante do Núcleo
de Estudos da Religião (NER/UFRGS) e do MARES - Religião, Arte,
Materialidade, Espaço Público: grupo de antropologia.

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