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Observatório da Religião

Expediente – Vol. 01. No. 02. Ago-Dez. 2014

Equipe Editorial
Dr. Gustavo Soldati Reis
Dr. Josias da Costa Junior
Dr. Manoel Ribeiro de Moraes Junior

Conselho Editorial
Dr. Gustavo Soldati Reis
Dr. Josias da Costa Junior
Dr. Manoel Ribeiro de Moraes Junior
Dr. Saulo de Tarso Cerqueira Baptista
Dra. Taissa Tavenard

Conselho Científico
Dra. Eliana Yunes, Cátedra Unesco de Leitura. PUC-Rio., Brasil
Dra. Véronique Boyer, CNRS - Centre national de la recherche scientifique., França
Dr. Dirk Oesselmannr, Evangelische Hochschule Freiburg, DE, Alemanha
Dr. Joanildo A Burity, Department of Theology and Religion, Durham University, Reino Unido
Dr. Afonso Maria Ligorio Soares, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP),
Brasil
Dr. Luiz Bernardo Leite Araújo, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil
Dra. Maria Clara Lucchetti Bingemer, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-
Rio), Brasil
Dr. Raymundo Heraldo Maués, Universidade Federal do Pará (UFPA), Brasil
Dr. Sergio Figueiredo Ferretti, Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Brasil
Dra. Mundicarmo M. Rocha Ferretti, Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Brasil
Dr. Leonido Silveira Campos, Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), Brasil
Dr. Flávio Senra Ribeiro, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas), Brasil

Pacereristas
Dr. Emerson José Sena da Silveira, Universidade Federal de Juiz de Fora
Drdo. Fábio Py Murta de Almeida, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, CAPES
Dr. Jimmy Sudário, Universidade Federal de Juiz de Fora
Dr. Gustavo Soldati Reis, Universidade do Estado do Pará
Dr. Josias da Costa Junior, Universidade do Estado do Pará
Dr. Manoel Ribeiro de Moraes Junior, Universidade do Estado do Pará
Dr. Saulo de Tarso Cerqueira Baptista, Universidade do Estado do Pará
Dra. Taissa Tavenard, Universidade do Estado do Pará
Observatório da Religião
Editorial

Prezados Leitores,
O periódico OBSERVATÒRIO DA RELIGIÃO apresenta mais número à comunidade
interessada nas produções científicas que giram em torno da religião. A ascensão e o
amadurecimento da área de conhecimento interdisciplinar “Ciências da Religião” marca
diversas mudanças no comportamento sócio intelectual que se ocupa da sua pesquisa e
ensino. Destacam-se ao menos três: primeiro, em nossa era, a religião não é mais o
horizonte da racionalidade teórica, ou seja, a visão de mundo que se consubstancia com os
fundamentos e ordenamentos do mundo humano; segundo, as teodiceias sagradas não são
mais proeminentes nos espaços sociais os quais se valorizam cada vez mais as ideias de
liberdade, autonomia, pluralidade, democracia, razão pública e fraternidade; terceiro, a
efervescência das expressões religiosas ainda não intensas em todos os mundos humanos, a
despeito das expectativas de seu arrefecimento após anos de intenso desenvolvimento
técnico-científico. Desta feita, o horizonte social que ainda favorece o desenvolvimento
deste saber científico é cônscio que a religião e suas expressões socioculturais são
disposições da humanidade e suas diversidades, por conseguinte, são consequências das
múltiplas formas de organizações, expressões e experimentações da vida humana. Os
estudos teóricos da Religião podem ser vistos como atividades científico-teóricas
pertinentes às ciências e, mais contundentemente, às ciências das humanidades. Este
número acolhe entre seus sete artigos diversas pesquisas que tratam da linguagem e das
expressões místicas, do entrelaçamento da estética e da religião e também das formas
culturais de religião observadas por meio da etnografia. Os cinco primeiros discorrem
sobre o tema escolhido como dossiê “Religião e Arte” e os dois seguintes seguem temáticas
livres.
Uma boa leitura!
Manoel Ribeiro de Moraes Junior
MESA, PÚLPITO E PALCO - CENTROS VISUAIS DO
CULTO PROTESTANTE NO BRASIL
CONSIDERAÇÕES LITÚRGICAS

Carlos Eduardo Calvani


Doutor em Ciências da Religião (UMESP).
Professor do PPGCR/UFS.

RESUMO
O artigo aborda a relação entre arte e religião a partir da liturgia cristã. Na primeira
parte, apresenta historicamente, três centros visuais dos espaços litúrgicos nos quais se
desenvolve o culto cristão -mesa, púlpito e palco – destacando simbolismos e
significados atribuídos a cada um desses centros. A mesa (ou altar) caracteriza as
liturgias de matriz católica; a centralidade do púlpito é a marca visual das liturgias
protestantes reformadas; o palco, por sua vez, emerge, principalmente no Brasil, como
centro visual de muitas comunidades evangélicas, influenciando até mesmo setores da
Igreja Católica Romana. O texto percorre períodos da história do cristianismo com
particular ênfase em períodos da Reforma Protestante e da inserção do protestantismo
no Brasil. Busca identificar momentos entre as décadas de 70 e 80 do século XX em que
cismas nas igrejas protestantes tradicionais do Brasil resultaram no surgimento de
comunidades evangélicas que rejeitaram os altares/mesas ou os púlpitos em prol dos
palcos como centros visuais do espaço cúltico. Na segunda parte destaca algumas
relações entre liturgia e dramaturgia, defendendo que a liturgia cristã sempre teve um
caráter teatral, enquanto representação mimética e poética do drama cristão. Defende
que a dramaticidade da liturgia não deveria ser negada, mas assumida por liturgistas
contemporâneos e que tal postura poderia contribuir para a renovação litúrgica do
protestantismo brasileiro, na medida em que valorizaria elementos da cultura, tais como
a festividade e a música. O texto defende que, ao invés de condenar apressadamente os
palcos, os especialistas em liturgia poderiam explorar seu potencial interativo como
espaço hierofânico.
Palavras-chave: Protestantismo. Liturgia. Pentecostalismo. História do Cristianismo.
Drama

ABSTRACT
The article discusses the relations between art and religion based on Christian liturgy. In
the first part, it historically presents three visual centers of liturgical spaces in which
Christian worship is developed – the altar, the pulpit and the stage – emphasizing the
symbolism and meanings peculiar to each center. The table (or altar) features the
liturgies of Catholic origin; the centrality of the pulpit is the visual mark of the
Reformed Protestant liturgies; the stage, in turn, emerges, especially in Brazil, as a
visual center of many evangelical communities, influencing even sectors of the Roman
Catholic Church. The text covers periods of Christian history placing particular
emphasis on the periods of the Protestant Reformation and the insertion of
Protestantism in Brazil. It seeks to identify moments between the 70’s and 80’s of the
twentieth century, when schisms in traditional Protestant churches in Brazil resulted in
the emergence of evangelical communities that rejected the altars/tables or pulpits in
favour of the stages as visual centers of the cultic space. In the second part, the article

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highlights some relations between liturgy and drama; arguing that the Christian liturgy
has always been theatrical by nature, while a mimetic and poetic representation of the
Christian drama. It asserts that the theatrical nature of liturgy should not be denied, but
assumed by contemporary liturgists and that this stance might contribute to the liturgical
renewal of the Brazilian Protestantism, as it would value cultural elements such as
festivals and music. The text argues that, rather than hastily condemn the stage, liturgy
experts could explore its interactive potential as a space of hierophany.
Keywords: Protestantism. Liturgy. Pentecostalism. History of Christianism. Drama.

Introdução - Abrem-se as cortinas

A fé cristã nunca prescindiu da arte em suas celebrações litúrgicas. Nem poderia


fazê-lo. Afinal, a arte expressa nossa vida através de sons, palavras, cores, formas e
movimentos, atingindo nossa sensibilidade, rompendo barreiras racionaise permitindo a
fruição de nossos mais profundos sentimentos, sejam de alegria ou tristeza, nossas
expectativas, esperanças, anseios, intenções e frustrações. Por isso arte combinamimesis
(imitação e representação) epoiesis (criação e transformação).
As relações entre arte e experiência religiosa são inegáveis. Toda experiência
religiosa necessita de formas culturais através das quais se torna visível e identificável.
Desse modo, não se pode pensar em culto, seja cristão ou o culto de qualquer outra
religião, sem mediações artísticas.
A arte nos rodeia e nos envolve de diversas maneiras, a começar pelas formas
arquitetônicas que organizam nossa casa e nossos espaços de trabalho, lazer e culto.
Basta passar os olhos pelos ambientes litúrgicos e identificaremos diversas expressões
artísticas na arquitetura e disposição do espaço - sejam as antigas igrejas edificadas de
acordo com os padrões da arquitetura clássica, gótica, neoclássica, barroca ou os novos
templos em estilos pós-modernos. As linhas arquitetônicas, a altura do pé-direito, as
cores da pintura externa e interna - tudo isso já é expressão artística e influencia
diretamente nossa aproximação a esses espaços.
Essas formas arquitetônicas abrigam outras formas artísticas. No interior das
igrejas contemplamos os vitrais com suas cores e formas lembrando passagens bíblicas,
exaltando Jesus Cristo, homenageando a Virgem Maria ou os santos. Nosso olhar
imediatamente é impactado pelas cores das toalhas e alfaias que revestem o altar, o
púlpito, a credência ou pelas cores das estolas, casulas e capas das vestes, anunciando o
“clima” do período litúrgico que está sendo revivido ritualmente. Observamos ainda as

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flores, o tecido dos manustérgios e purificadores ou o design do crucifixo, do cálice,
patena, cibório, sacrário, vasos, velas, comungatório, e, naturalmente, a
proporcionalidade de tudo isso no espaço. Também verificamosse o ambiente está
limpo e se os objetos não estão espalhados como se estivéssemos noquarto de um
adolescente. Tudo isso indica que o ambiente litúrgico deve ao menos tentar expressar o
que a comunidade imagina ser a “antecipação do banquete nupcial” ou a representação
do altar celestial. Nada precisa ser dito, pois essas expressões artísticas, por si só, já
agem como uma glorificação silenciosa ou uma evangelização muda.
A descrição acima não é encontrada em todas as igrejas. As Igrejas Católicas,
Anglicanas, Ortodoxas e Luteranas preocupam-se mais com a arte visual. As
demaisigrejas protestantes tradicionais, embora zelem cuidadosamente por seus
templos, padecem ainda a influência de tendências iconoclastasde grupos radicais do
período da Reforma. Esses grupos temiam que o excesso de apelos visuais desviasse a
atenção que o fiel deveria prestar tão somente à Palavra. Nos primórdios do
protestantismo, grande parte das igrejas oriundas dos movimentos reformados optou por
reunir-se em espaços mais simples,depurados de estímulos visuais ou de excessos
auditivos que prejudicassem a reflexão bíblica. Houve até grupos extremos que se
recusaram a utilizar órgãos, argumentado que os sons poderiam prejudicar a oração ou o
louvor que deveria ser entoado apenas pelas vozes dos fieis, em uníssono. Zwínglio, por
exemplo, enquanto esteve à frente de sua congregação admitia o canto comunitário
apenas quatro vezes ao ano - nas festas do Natal, Páscoa, Pentecostes e no dia de todos
os santos. A despeito disso, as Igrejas reformadas desenvolveram grande apreço pela
música instrumental e, principalmente, pelos corais.
Em comunidades cristãs recentes, influenciadas pelo movimento pentecostal e
pela cultura midiática, a maior parte do culto é vivenciada através da música
acompanhada por gestos corporais (levantar as mãos, fechar os olhos, contorcer o rosto
acompanhando a oração, pular ou dançar) que sempre foram vistos com certa
desconfiança nas igrejas protestantes tradicionais.Visualmente aponta para umasutil
reconfiguração do espaço litúrgico com um novo centro visual - o palco. O presente
ensaio tem por objetivo destacar a emergência desse novo modo de celebração em
comunidades protestantes brasileiras, bem como apontar possíveis articulações com a
arte litúrgica.

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1º. Ato - Centros visuais do drama cristão: Mesa, Púlpito e Palco

A reafirmação coletiva da fé através de um rito, acontece em um espaço litúrgico


próprio. Eliade (1992) dedicou todo o capítulo 2 de O Sagrado e o Profano ao estudo dos
espaços sagrados. O estudo desses espaços também é desenvolvido naTeologia Litúrgica,
e compreende a reflexão em torno da arquitetura dos templos, capelas e locais de
celebração em seus aspectos externos e internos, bem como a disposição dos móveis e
objetos (mesa, púlpito, vasos, etc.), a localização dos centros visuais e a posição e
movimento dos diversos agentes envolvidos no ato da adoração – sacerdotes, acólitos,
coral ou grupo musical, fieis, incluindo as vestes utilizadas no momento da celebração.
Tal estudo é importante para compreender a dinâmica de alguns movimentos cinéticos
do rito cristão, tais como os Processionais e gestuais próprios do cerimonial (vênias,
prostrações, etc).O estilo arquitetônico de templos cristãos é, por si só, um “texto” a ser
interpretado, e certamente revela muito da identidade e da concepção religiosa de seus
edificadores e de seus membros (ABUMANSSUR, 2004).
As limitações deste artigo não nos permitem adentrar na história dos espaços e
da arquitetura litúrgica cristã. É suficiente lembrar que as diferentes tradições cristãs
sempre desenvolveram sua identidade teológica e litúrgica em torno de focos ou centros
visuais que, por sua própria disposição no espaço litúrgico já influenciam o modo como
os fieis interagem com os temas de sua fé.
O caráter cênico e teatral da celebração litúrgica é evidente quando a
compreendemos como uma dramatização coletiva do que a teologia cristã denomina
“história da salvação”. Há na liturgia cristã uma série de conteúdos conectados a um
eixo referencial - a lembrança da pessoa e obra de Jesus Cristo, tal como transmitida e
recebida pelos fieis. No drama vivido liturgicamente todos os participantes são - ou
teoricamente, deveriam ser - protagonistas de um evento (rito) que revive e atualiza
asnarrativas centrais do cristianismo mediante orações, cânticos e elementos simbólicos.
A própria organização sequencial da totalidade da Liturgia se dá em dois momentos
claramente identificáveis, próprios de um drama, cujo enredo se desenvolve em dois
atos:
O primeiro “ato”ou Liturgia da Palavra compreende todos os ritos iniciais da
missa - invocação, invitatório, Gloria, Kyrie, leitura do primeiro testamento, da epístola,
gradual ou salmo, proclamação do evangelho, homilia ou sermão, doxologia ou Credo e

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intercessões. Esse primeiro ato corresponde à fase galilaica do ministério de Jesus - sua
reinterpretação da Lei e dos Profetas culminando com seu anúncio da Soberania e
Reinado de Deus. O centro do drama é a proclamação do Evangelho; o segundo “ato”, a
Liturgia Eucarística corresponde à fase “ierusolemita” do ministério de Cristo, com o
foco nos acontecimentos da semana de sua paixão e morte revividos liturgicamente, do
anúncio de sua ressurreição e do envio à missão. O foco é a mímesis do sacrifício de
Cristo, com o cântico do Sanctus, do Benedictus, a anamnese, a epíclese, o Pai Nosso e
o Agnus Dei. Em torno desses dois “atos” (cênicos e auditivos, como uma ópera)
desenvolve-se a celebração do mistério cristão e, na totalidade do drama litúrgico
emergem claramente questões políticas, sociais e existenciais que são enfatizadas ou
minimizadas de acordo com a dinâmica da comunidade. Na história do cristianismo
ocidental esse enredo tem sido dramatizado ou proclamado em torno de diferentes focos
visuais:

Mesa ou Altar
Disposta a mesa, ó Salvador, vem presidir aqui
Ministra o vinho, parte o pão, nutrir-nos vem de ti
(Tradicional hino protestante)

Tradicionalmente, o primeiro centro visual da Liturgia cristã foi a mesa


eucarística. Os íntimos laços iniciais com a tradição judaica fizeram os primeiros
cristãos relacionarem a mesa na qual são dispostos o pão e o vinho com os altares do
Templo judaico. Quando o Templo de Jerusalém foi destruído e o judaísmo deixou de
realizar sacrifícios, o cristianismo não foi diretamente prejudicado na celebração de sua
fé, pois já era costume a reunião em casas em torno de uma mesa comum. As mesas
ajudavam muitos cristãos oriundos do Judaísmo a estabelecer a equivalência funcional
com os altares destruídos, porém, com um novo significado.

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Capela da Inclusão – Igreja Episcopal Anglicana em Campo Grande, MS
Foto: Ingrit Jeampietri (junho de 2012)

Nas mesas não eram oferecidos sacrifícios de sangue, mas em torno delas uma
comunidade se reunia para relembrar a última refeição comunitária de Jesus Cristo com
seus discípulos. Devido à sua mobilidade, as mesas podiam ser transportadas para
diferentes salas ou ambientes mais propícios à celebração e mais funcionais diante do
crescimento das comunidades. Alimentos e bebidas eram trazidos para eventuais
confraternizações e consagrados à comunhão fraterna no momento do ofertório. A
centralidade do pão e do vinho não impedia que os fieis também trouxessem frutas e
cereais de acordo com as estações do ano ou mesmo a carne de animais de pequeno
porte.Tudo era oferta ou oferenda, para ser partilhada comunitariamente. Maraschin
(1996, p. 47) lembra que Jesus não reuniu seus discípulos em uma sala de aula, mas em
uma sala de refeições - o primeiro ato litúrgico da Igreja foi uma refeição comunitária
em torno de uma mesa, e não uma aula de teologia em torno de um púlpito, ambão ou
tribuna. Por isso o ato litúrgico central da Igreja sempre foi a Eucaristia, a ação de
graças pelo dom da vida e a partilha desse dom. Gregory Dix (1945) também
empreendeu significativo estudo sobre as formas iniciais dos espaços litúrgicos,
relacionando-os com as casas e habitações de várias cidades do Império Romano,
especialmente no litoral mediterrâneo e na Ásia menor.

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Altar em Igreja Episcopal – fotos da internet Mesa em Igreja Metodista – foto da internet

A história das relações entre mesa e altar é bastante controversa (HAGEMAN,


1962). As narrativas bíblicas do Primeiro Testamento sugerem queos altares do período
tribal eram de pedra, substituídos, posteriormente, pelos altares do Templo construídos
em formas de mesa e com madeira de acácia (Êxodo 27 e 38).Liturgistas e historiadores
diversos tendem a concordar que os primeiros altares do cristianismo também eram
mesas de madeira. Quandoo cristianismo alcançou maior número de adeptos e se
institucionalizou, as mesas começaram a ser substituídas por altares de pedra, sobretudo
em regiões onde havia muitos altares das antigas divindades greco-romanas. Tais
altares, embora em desuso, ainda exerciam influência sobre a religiosidade popular. Ao
começar a utilizar altares, o cristianismo por um lado se apropriava de elementos da
religiosidade popular e por outro lado impunha simbolicamente sua vitória. Nas ilhas
britânicas, por exemplo, consolidou-se a preferência por altares de pedra em virtude da
forte influência da cultura celta. Nos anos que se seguiram às reformas anglicanas,
muitos desses altares foram destruídos e substituídos por mesas e o inverso aconteceu
em outros momentos.

Mesa em Igreja Luterana e em Igreja Presbiteriana: fonte internet

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Por mais que atualmente tal detalhe nos pareça de menor importância, assim não
era para as lideranças da época. A preferência por altares de pedra ou mesas de madeira
indicava tendências teológicas.No caso do anglicanismo, lideranças anglocatólicas
sempre preferiram altares de pedra, enquanto anglicanos evangélicos insistiam em
mesas de madeira. Na tradição anglicana há vários relatos sobre a atitude de alguns
bispos ao visitar paróquias sob sua jurisdição eclesiástica - muitos faziam questão de
verificar se o sacramento estava sendo oferecido em uma mesa ou em um altar e mesmo
quando tudo estava coberto por linhos até o chão, alguns discretamente, davam
pequenos chutes na base para conferir se o material era de pedra ou madeira.
Superada essa fase, aos poucos as expressões “mesa” a “altar” tornaram-se
sinônimas. Atualmente só se encontram altares de pedra em construções antigas. A
grande maioria dos templos construídos nos últimos anos, por motivos econômicos ou
outros, utiliza mesas, simbolicamente consideradas “altar”.

Igreja Episcopal Anglicana – Londrina, PR e Igreja Batista em São Paulo, SP. Fonte: internet

Púlpito
A nova do Evangelho já se fez ouvir aqui
Proclamando em som alegre o que Deus já fez por ti
(Hino protestante entoado antes ou depois do sermão/homilia)

Noséculo XVI, durante as reformas, um novo centro visual se estabeleceu entre


as comunidades que seguiram as ênfases de Zwínglio, Calvino e Knox – o púlpito. A
Igreja da Inglaterra e as Igrejas de tradição luterana, em suas respectivas reformas,
preservaram a mesa ou o altar como centros visuais do espaço litúrgico, destacando a
centralidade da Eucaristia. Nessas Igrejas, mesmo quando o culto era realizado sem o

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ofício eucarístico, a mesa ou altarpermaneciam ali, fixos e cuidadosamente revestidos
por linhos ou toalhas e, eventualmente, com uma Bíblia aberta ou um crucifixo
iluminado, a atrair todos os olhares e ajudar a preservar a memória do sacrifício de
Cristo. Nessa época, os púlpitos eram construídos lateralmente, em pontos
fixos(elevados ou não) de onde eram lidas as Sagradas Escrituras e pronunciados os
sermões. Mesmo assim, o centro visual continuava a ser a mesa/altar, apontando para a
Eucaristia.

Dentre os reformadores, Zwínglio foi o primeiro a relativizar a importância da


Eucaristia. Importava-lhe mais a leitura e exposição das Escrituras. Sua influência foi
tão grande que nem mesmo João Calvino, que defendia a celebração dominical da
Eucaristia, conseguiu anular a influência zwingliana nas igrejas sob seus cuidados.1 Os
movimentos anabatistas da época e, posteriormente o Puritanismo, também colaboraram
para minimizar a importância da mesa/altar e a maximizar o púlpito. Dentre os motivos
para essa mudança estão fatores históricos e teológicos somente compreendidos em um
estudo mais profundo da espiritualidade da época. Segundo Von Allmen,

1
Sobre isso ver Estudo sobre a Ceia do Senhor. (VON ALLMEN, 1968b) e Os Sacramentos na Tradição
Reformada. (KLEIN, 2005).

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Até o século V, tomava-se como pressuposto que todos os batizados
não excomungados participavam da Comunhão todos os domingos.
Porém, a comunhão dos fieis tornou-se cada vez menos frequente. Isso
se deveu a diversas razões, notadamente o desequilíbrio que se
verificou na doutrina da Ceia, o qual ao menos no Ocidente realçava o
elemento ‘memorial’ na Eucaristia, em detrimento da comunhão e da
ênfase na ‘parousia’. Por volta do século IX, costumava-se comungar
uma vez por ano tão somente. Tal indiferença ameaçava transformar-
se em abstenção quase total, a ponto de o Concílio de Latrão exigir
que os fieis comungassem pelo menos uma vez por ano, na quadra da
Páscoa (VON ALLMEN, 1968a, p. 176)

Em grande parte da Europa, apesar de a Eucaristia ser celebrada regularmente


aos domingos, a frequência de comungantes era mínima e, na maior parte das vezes, os
elementos eram consumidos apenas pelos padres e seus auxiliares. Na Inglaterra houve
momento em que o Parlamento promulgou leis exigindo a frequência dominical aos
cultos da igreja estatal, sob pena de multa.
Porém, no final da Idade Média já era comum em muitas regiões, a existência de
pregadores itinerantes que, possuindo um mínimo de letramento e alfabetização e algum
conhecimentobíblico, peregrinavam entre aldeias, burgos, vilarejos e cidades dirigindo
orações, lendo e comentando as Escrituras para o povo iletrado. Tais pregadores sabiam
que não lhes era permitido presidir um ofício eucarístico sem a autoridade conferida
pela ordenação. No fim da Idade Média, especialmente nas catedrais, já havia
momentos devocionais separados da celebração eucarística e em horário alternativos,
chamados Pronaus, ou “ofícios homiléticos”. Basicamente eram reuniões para leitura e
explicação das Escrituras com rezas ou ladainhas, semelhantes ao que na cultura
protestante brasileira, receberia o singelo nome de “reunião de oração”.Exemplo de uma
ordem litúrgica de “Pronau” organizado por Ulrich Surgant em 1506 para uso em
Zurique e na Basileia, e posteriormente adotada por Zwínglio de 1519 a 1523 indica o
modelo que mais tarde viria a ser utilizado pelas igrejas reformadas: A ordem (aliás,
sem hinos ou cânticos) se constituía de Salmo, Pai Nosso, Ave Maria, Leitura do
Evangelho, Sermão, Orações, Credo, Decálogo, Confissão, Absolvição e Bênção.
Zwínglio, curiosamente, não teve problemas em manter a Ave Maria nos cultos
reformados. Essa oração só deixou de ser utilizada em Zurique após a morte de
Zwínglio.
Muitos desses momentos eram dirigidos por padres afastados do ministério ou
ex-monges que, tendo abandonado a vida monástica, encontravam ali a oportunidade de,

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em meio às atividades seculares, reunir-se para reviver aquilo que praticaram durante
muito tempo nas liturgias das horas – reunir-se para cantar um hino, ler um Salmo e
outras porções das Escrituras, comentá-las brevemente e pronunciar algumas orações.
Esse ofício sem Eucaristia se tornou o protótipo do culto reformado (ALLMEN, 1968a,
p. 176). Os movimentos reformadores atuaram nesse “vácuo eucarístico” e, passada a
primeira geração de reformadores, foi o modelo de culto que se padronizou nas Igrejas
reformadas da Suíça, França e algumas regiões da Alemanha.

Monumento ao pregador – Praça da Catedral Presbiteriana do Rio de Janeiro. Fonte: internet

A ênfase do protestantismo europeu no púlpito está ligada a diversos fatores bem


resumidos por Jacqueline Dolghie com as seguintes palavras:

A Reforma Protestante queria destituir os mediadores do sagrado e


devolver o conhecimento religioso ao povo. Assim, o culto tornou-se o
lugar no qual a busca deste conhecimento era constantemente acionada.
Entretanto, a despeito de suas pretensões, o protestantismo, por ser
organização religiosa, gerou um novo clero, o pastor-teólogo (,,,) A
palavra tornou-se o novo paradigma religioso (...) o sacerdócio
protestante habilitou-se para desenvolver um rito específico – o ‘rito da
palavra’ – e criou o monopólio dessa produção. Logo, paradoxalmente,
o conhecimento libertou o leigo das mãos de um clero e colocou-o nas
mãos de outro, que encontrava legitimidade não mais na celebração dos
ritos, mas na destreza da oratória (DOLGHIE 2009: p. 245-246)

Na Inglaterra, a despeito das reformas litúrgicas de Cranmer não terem sido


radicais, a influência das igrejas reformadas já era suficientemente forte para que o
púlpito começasse a competir com a mesa em termos de centralidade do culto.

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Particularmente o movimento puritano, de forte influência genebrina, questionava a
necessidade da celebração dominical da Eucaristia, reclamando mais tempo e dedicação
à leitura e exposição das Escrituras. Parte desse clamor talvez se explique também
culturalmente – o surgimento da imprensa e a consequente difusão de Bíblias
estimulava o desejo por alfabetização e acesso ao que antes era visto como um mistério
reservado somente ao clero. Por isso, quando falamos em “diversos motivos”, sempre é
bom elencar não apenas as questões propriamente teológicas das ênfases das reformas,
mas também fatores culturais.
O culto protestante que chegou ao Brasil foi basicamente um Pronau, ou um
“ofício da Palavra”. Isso explica, em parte, a preferência das igrejas protestantes
brasileiras pelo púlpito como centro visual do culto. Os missionários protestantes
entendiam seu ministério como um verdadeiro “trabalho” argumentativo – era preciso
convidar e motivar pessoas a sair de suas casas e ir a um templo, e ali ler as Escrituras,
orar, aprender hinos e ouvir uma longa e persuasiva pregação capaz de reafirmar a
certeza de que a nova opção religiosa era compensatória em relação ao catolicismo. Os
primeiros frequentadores “nativos” dos cultos protestantes no Brasil, naturalmente,
eram católico-romanos e necessitavam ser “convencidos” a mudar de religião. Por isso
muitos pastores e missionários evitavam qualquer semelhança com as missas católicas,
o que incluía a rejeição a velas, crucifixos, altares e vestes litúrgicas. Somente os que
aderiam formalmente às Igrejas protestantes poderiam partilhar da celebração
eucarística que também era realizada ocasionalmente, pois não havia suficiente número
de ministros ordenados e autorizados a celebrá-la nas comunidades nascentes. As
pequenas igrejas, sem ministros-ordenados reuniam-se aos domingos sob a liderança de
leigos alfabetizados que “puxavam um hino”, oravam, liam as Escrituras e reforçavam
no sermão os conteúdos da nova fé. Émile Léonard (1966) e Carl Hahn (1985 e 1989)
abordaram essa questão do ponto de vista histórico e social.Antonio Gouvêa Mendonça
(1984 e 1990) e Prócoro Velásquez Filho (MENDONÇA E VELÁSQUEZ,
1990)também desenvolveram consistentes estudos sociológicos e teológicos com
exemplos históricos tomados de diferentes regiões do Brasil, caracterizando o culto
protestante brasileiro tradicional como de tipo “didático-pedagógico”, cuja principal
divisa era “aprender e trabalhar”. O protestante tradicional ia à igreja para “aprender”
sobre sua fé e era constantemente exortado a comprometer-se (“trabalhar”) com a

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propagação da mesma através da contribuição financeira, da divulgação e de uma vida
regrada e marcada pelos padrões da ética protestante europeia ou norte-americana.

Igreja Batista e Igreja Metodista. Fonte: internet.

Esses fatores históricos ligados às dificuldades de inserção do protestantismo no


Brasil nos ajudam a compreender a pouca valorização que as igrejas protestantes
tradicionais deram à Eucaristia e, consequentemente à mesa/altar como centro visual.
Mesmo em igrejas protestantes de forte tradição litúrgica como as luteranas, as
informações apontam para esse mesmo estilo de culto. Rudi Zimmer, por exemplo,
observa que,
em 1980, dados estatísticos demonstravam uma participação média
(na eucaristia) de uma vez ao ano, na IECLB. Na IELB, a média de
participação talvez seja um pouco maior, mas também é ínfima.
Contribui para uma tal situação o fato de que nem se oferece mais
dominicalmente a Ceia do Senhor ao povo luterano. Não saberia dizer
qual a frequência da administração do sacramento na IECLB. Porém,
sei que, na IELB ainda há muitas congregações que não chegam a ter
uma celebração mensal – no máximo duas vezes por mês.
(ZIMMER, 1985, p. 132)

Não é, portanto, de se admirar que o protestantismo brasileiro, mesmo após ter


alcançado autonomia financeira para organizar Seminários e centros de formação
teológica, e angariado suficiente número de seguidores dispostos a construir templos,
tenha se caracterizado muito mais por privilegiar um espaço litúrgico cujo centro visual
era o púlpito e não a mesa ou o altar.

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Igreja Presbiteriana e Igreja Assembleia de Deus. Fonte: internet.

A centralidade do púlpito no espaço litúrgico é explícita também nos próprios


manuais de culto de muitas Igrejas Protestantes do Brasil. Rudi Zimmer observou que a
primeira ordem de culto impressa no manual da IELB é chamada “Ordem do Culto
Principal”, e é uma ordem “Sem celebração da Santa Ceia”. Manuais de culto de outras
Igrejas também costumam trazer essa diferenciação – o culto chamado “principal” é o
culto da Palavra, havendo outra ordem para o culto “eucarístico”, celebrado
ocasionalmente. Na prática do protestantismo brasileiro, o culto dominical regular
continuou a ser o Pronau, o ofício da palavra com hinos e orações.
As igrejas pentecostais também nasceram em torno do púlpito. Nessas
comunidades, o culto regular é um ofício da Palavra com muitos cânticos e orações
reforçadas por testemunhos (depoimentos de bênçãos). Em muitas igrejas pentecostais a
Ceia é celebrada a cada dois ou três meses ou até mesmo uma vez por ano. A mesa da
comunhão geralmente não está no centro visual do espaço litúrgico – na maioria dos
casos ela é móvel, podendo ser afastada para um canto ou servir como apoio para
Bíblias, hinários, papeis, violões ou paletós, denunciando sua pouca importância em
relação à Palavra. Em muitas comunidades a mesa é apenas um utilitário, um móvel sem
qualquer valor sagrado a ela agregado.

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Culto Pentecostal em Estádio e em Centro de Convenções. Fonte: internet

Palco
Subo nesse palco, minha alma cheira a talco
como bumbum de bebê
Minha aura clara só quem é clarividente pode ver (...)
Fogo eterno pra afugentar o inferno pra outro lugar
Fogo eterno pra consumir o inferno – fora daqui!
(“Palco”, composição e interpretação de Gilberto Gil)

As mudanças no campo religioso brasileiro em anos recentes fizeram surgir


novas igrejas cuja classificação ainda é um tanto confusa. Alguns as chamam
“neopentecostais” ou “pós-pentecostais” ou simplesmente “carismáticas” ou ainda,
“avivadas”. Evitamos adentrar nessa discussão para não perder o foco naquilo que nos
interessa. Trata-se, a meu ver, de um tipo de “protestantismo popular”, semelhantes nas
devidas proporções ao “catolicismo popular”. Em linhas gerais,pressupomos que o
leitor compreenda de quais comunidades estamos falando: grupos religiososformados
em torno das narrativas da tradição cristã e quesurgiram a partir de tensões internas e
cismas em comunidades protestantes tradicionais ou em igrejas pentecostais mais
antigas.
Em muitos casos, essas divisões giravam em torno de questões referentes ao
culto e à espiritualidade, e refletiam tensões políticas em relação ao exercício do poder
no interior dessas comunidades. Pessoas, especialmente das gerações mais jovens,
lamentando certo tradicionalismo em suas igrejas de origem, reuniam-se em horários
diferenciados para orar e entoar cânticos religiosos em ritmos alternativos aos hinos. A

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utilização de violões, guitarras e percussões representava um protesto simbólico contra a
rigidez litúrgica do protestantismo tradicional com seus órgãos e coros. Além disso,
instrumentos mais leves podiam ser deslocados a qualquer momento para diferentes
ambientes, sendo uma opção bastante prática aos pesados órgãos e pianos.
Muitos desses jovens estabeleciam relações de amizade com outros jovens que
viviam experiências semelhantes em outras igrejas. Tais amizadesfavoreciam a
organização de reuniões informais,retiros, acampamentos ou cultos organizados pelos
próprios jovens nas noites de sábado. Tais reuniões eram compreendidas como
oportunidades “evangelísticas” (propaganda com vistas ao crescimento do grupo),
sociais e de reavivamento da fé. Aos poucos aumentou a reivindicação pela inserção de
momentos semelhantes durante o culto oficial de suas respectivas igrejas - geralmente
um “momento de louvor” antes do culto dominical. Com o tempo esse momento
anterior ao início do culto, passou a fazer parte da própria ordem do culto, não mais
como um período de tempo que o precedia, mas agora plenamente integrado ao ritual e,
preferencialmente antes do sermão. Jovens se organizavam para ensaiar seus cânticos e
dali surgiram grupos musicais que acompanhavam avidamente os primeiros
lançamentos do ainda incipiente mercado gospel nos anos setenta, ligados a
movimentos paraeclesiásticos tais como Palavra da Vida, Vencedores por Cristo, Jovens
da Verdade, etc.
Assim, aos poucos os violões antes empunhados timidamente nas reuniões
informais ganhavam espaço no culto trazendo consigo, aos poucos, seus parentes mais
próximos - as guitarras e contrabaixos elétricos, baterias e teclados eletrônicos. Muitas
igrejas tradicionais não conseguiram acompanhar essas mudanças e as tensões foram
inevitáveis – os jovens encontraram abrigo em outras igrejas mais receptivas; outras
igrejas se ressentem por não ter valorizado os talentos musicais de muitos desses jovens
estimulando-os a apreciar também a sonoridade do órgão e do piano. A consequência se
vê hoje em muitas comunidades protestantes tradicionais que enfrentam sérias
dificuldades para conseguir organistas e pianistascompetentes, no esquecimento dos
hinos e no desaparecimento gradativo dos corais substituídospelas bandas gospel.
Nas igrejas protestantes tradicionais do Brasil esse fenômeno ganhou força em
meados dos anos setenta do século vinte com a série de LPs intitulada “Louvor”,
gravada pelo grupo Vencedores por Cristo, cujas bases no Brasil estavam nas Igrejas
Batistas, Presbiterianas e Metodistas. Alguns anos depois surgiram os

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chamados“ministérios de louvor”, formados por músicos que se dedicavam
exclusivamente à produção de música gospel. Éber F. Silveira Lima forneceu
fundamentos para uma acurada análise tipológica dos cânticos do que ele denominou
“geraçãoGlória pra sempre” (título de um conhecido cântico evangélico), classificando-
os inicialmente em “cânticos do monopólio do Espírito”, “cânticos de guerra santa” e
“cânticos do andar de cima”, destacando seu verticalismo, emocionalismo, alienação
social e pouca reflexão teológica (LIMA, 1991). A“geração Glória pra sempre” ajudou a
sustentar durante certo tempo a sobrevida de muitas igrejas tradicionais, mas também
trouxe uma inovação litúrgica – ao marginalizar os antigos centros visuais (mesa e
púlpito) inaugurou um novo centro visual: o palco, que funciona como eixo
impulsionador da dinâmica litúrgica desses grupos.
Em muitas igrejas protestantes as tensões na espiritualidade geradas nos
“momentos de louvor” inevitavelmente assumiram contornos políticos e sociais. O
amadurecimento dos jovens e sua entrada no mercado de trabalho proporcionaram
autonomia financeira e condições de manter seu próprio espaço – alugado ou adquirido
– ao invés de mendigar 15 minutos no tempo do culto dominical para entoar seus
cânticos. No seio do próprio grupo surgiram as lideranças (algumas mais instruídas
teologicamente; outras meramente oportunistas) que comandaram cismas e
capitanearam a formação de “Comunidades Evangélicas” de diversos nomes e
tendências. A base teológica vinha de centros ideológicos do fundamentalismo norte-
americano, às vezes acompanhada por recursos financeiros que consolidaram o mercado
gospelprovocando novas tensões no culto protestantes brasileiro.
É certo que durante os anos sessenta e setenta, muitas igrejas protestantes
tradicionais,sobretudo no interior do Brasil,já abriam parêntesis na ordem de seu culto
para momentos de apresentação musical de duplas, trios e quartetos ou para uma
audição do coral que se posicionava à frente de todos, escondendo púlpito e mesa com
suas togas. Ainda assim, apesar do que alguns especialistas considerariam “desvios
litúrgicos”, terminada a “apresentação”, o púlpito ou a mesa permaneciam como centros
visuais. Nos novos movimentos religiosos evangélicos, porém, o palco é o centro visual
de todo o culto e seu eixo espacial é disputado pela bateria, pelo “backing vocal” ou
pelos cantores e cantoras que lideram a música. Os novos espaços litúrgicos construídos
por comunidades que têm o palco como central são projetados arquitetonicamente como
casas de show, e algumas comunidades investem consideráveis recursos na iluminação,

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acústica, jogos de luzes e em um espaço coletivo vazio que funciona ora como pista de
dança, ora como estrado em um nível inferior ao palco de onde emerge o “poder
religioso”. Um dos grupos evangélicos mais conhecidos no Brasil se tornou popular
através da exibição diária de seu culto em um palco também chamado “show da fé”.
Diga-se de passagem, a ênfase nesse novo espaço visual que cataliza o poder religioso e
de onde emerge o estímulo à efervescência e ao êxtase, já se apresenta também em
algumas paróquias da Igreja Católica Romana com seus padres cantores.

Muitas dessas novas comunidades não utilizam púlpito fixo. Esse foi substituído
por apoios-móveis de partitura, facilmente removidos e descartados; o antigo “sermão”
recebe outros nomes – “ministração da palavra” ou “momento de edificação”. A reunião
é geralmente performatizada no mesmo estilo dos apresentadores de auditório; a
ausência da mesa aponta claramente que o sacramento eucarístico não tem qualquer
importância no rito. Tal como nas apresentações musicais “seculares”, toda atenção está
voltada para o palco e seus atores (músicos). Em muitas dessas comunidades, quando a
“Santa Ceia” é celebrada, ela se parece com um rito realizado por mero dever e
obediência. O palco permanece imponente, do começo ao fim do culto, e ali se
desenrola o drama existencial e pessoal da busca pelo “poder original” (entendido em
categorias emocionais) que uma vez aproximou e reuniu aquelas pessoas e que necessita
ser constantemente “reavivado”.

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Novas demandas não podem ser contempladas satisfatoriamente por ofertas
antigas. O culto protestante tradicional no Brasil entrou em crise e hoje são poucas as
igrejas que o preservam tal como era celebrado entre os anos cinquenta e setenta do
século vinte. Tais comunidades são como que “ilhas” incapazes de formar um
arquipélago e com cada vez menos adeptos. As dificuldades para manter um coral
polifônico acompanhado por piano e órgão já não são de hoje, e o vácuo musical acaba
preenchido por jovens músicos inexperientes, empunhando instrumentos eletrônicos
antes inimagináveis em uma igreja protestante. Os novos templos construídos por
comunidades ligadas ao “protestantismo tradicional” já preveem espaços para bandas ou
grupos musicais, suporte para telões e a centralidade do palco que emerge como novo
centro visual da experiência litúrgica.
Contudo, o palco como novo centro visual do culto protestante no Brasil pode
representar um grande espaço de criatividade litúrgica.Nas novas comunidades
emergentes, o palco poderia ser valorizado também como espaço de dramatização da
mitologia cristã, e não apenas como espaço de apresentação de shows, oratória e
virtuosismo musical.

2º. Ato - O Palco como potencial espaço para a dramatização teatral da fé cristã

Liturgistas são pessoas que se dedicam a compreender mediante estudos


históricos, socioculturais e teológicos (nesse caso a partir dos referenciais internos do
grupo ao qual servem) o potencial de símbolos, espaços, sons e enredo temático do que
se pretende expressar em cada celebração.A emergência do palco como novo centro
visual do culto tem sido vista por muitos com desconfiança, ora qualificado como
modismo passageiro,ora como ameaça à suposta pureza litúrgica do protestantismo. O
modo como alguns tem reagido a essa tendência varia entre os que repudiam tais

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espaços e os que não sabem ainda como lidar com um fenômeno aparentemente
irreversível.
Liturgistas protestantes de tendências mais conservadoras dificilmente admitem
que o culto cristãoseja uma dramatização ritual da fé. De outro lado, os que defendem
entusiasticamente os novos modelos, o fazem muito mais por motivos pragmáticos,
argumentando ser esse o único modo de manter os jovens na igreja ou de fazer a igreja
crescer. Parodiando Umberto Eco (1990), poderíamos dizer que a situação se divide
entre “apocalípticos e integrados”, os primeiros refugiando-se em grupos cada vez
menores, sem aceitar qualquer mudança estética para além dos padrões tradicionais; os
segundos saudando efusiva e acriticamente a espetacularização do culto. Poucos buscam
um ponto de equilíbrio a partir do qual desenvolvam em suas comunidades (sejam de
tipo “tradicional” ou de tipo “espetacular”) uma reflexão sobre o potencial litúrgico dos
palcos como centros visuais da dramatização teatral da fé.
Não é raro encontrar pessoas que, ao participar de uma liturgia ortodoxa,
anglicana ou católico-romana que inclua no cerimonial um processional com tocheiros,
incenso, acólitos trajados com suas cotas, músicos com vestes específicas e diferentes
gestos e posturas cênicas (vênias, genuflexões, prostração, etc), referem-se a esse
momento como um “teatro”, utilizando às vezes palavras nitidamente depreciativas
(“frivolidade”, “ostentação”, etc). Em geral são pessoasquemanifestam estranhamento
para com artes cinético-visuais e que imaginam a liturgia como um momento no qual
não há corpos, espaços ou movimentos, ou seja, como uma atividade apenas da “alma”.
Parece-lhes que o momento do culto não é ocasião para manifestações corporais.
Desconhecem, talvez, a íntima conexão entre drama e adoração, bem como o princípio
mimético básico a todo ritual religioso.
O ato litúrgico, ao fazer uso de palavras (o rito, no sentido estrito) e ações
(gestos do cerimonial) sempre é a encenação de um drama. Toda dramatização tem o
potencial de atingir sentimentos internalizados, muitas vezes reprimidos, e expressá-los
mediante formas visuais, cênicas, palavras, cânticos, etc. O apelo do drama é estético e
não racional. Até mesmo no cerne das teologias de matriz católica que tematizam o
ministério cristão, compreende-se que uma das funções do sacerdote é representativa –
todo sacerdote, no ato litúrgico, é representante do Cristo e, simultaneamente,
representante do povo – o sacerdote age para o povo enquanto o povo participa de seus
atos. O sacerdote leva ao altar as orações do povo. Algumas vezes utiliza o incenso,

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associado biblicamente às orações dos santos (Ap 8.3-4), e retorna do altar com as
palavras de absolvição, instrução e bênção. Suas genuflexões expressam a humilhação,
respeito e reverência que a totalidade dos fiéis deve guardar para com o altar. Seus
gestos em torno dos elementos eucarísticos mimetizam e representam a autodoação de
Cristo ao mundo.
Leonildo Silveira Campos, em um texto referencial para as ciências da religião
no Brasil, abordou sociologicamente a Igreja Universal do Reino de Deus
caracterizando-a como “Teatro, Templo e Mercado”. A recepção acadêmica desse texto
e os posteriores comentários ao mesmo concentraram-se muito mais nos conceitos de
mercado e mercantilização do Sagrado (cap. 4) ou nas estratégias de propaganda e
marketing (cap. 5), dando pouca importância ao capítulo 2 (Teatro e Religião), no qual
o autor discute religião e dramaturgia e o templo como espaço cênico. As valiosas
informações sobre a dramatização ritual da experiência religiosa presentes nessa seção
guardam enorme potencial para estudos litúrgicos. O autor pergunta “quando se teria
iniciado a antipatia entre a religião cristã e o teatro? Por que o cristianismo
institucionalizado, em especial o protestantismo histórico, rompeu com o teatro?”
(CAMPOS: 1997:69) e lembra que

teatro e religião são processos sociais em que as coisas intangíveis se


revestem de tangibilidade, e às visíveis se atribuem valores invisíveis.
Ambos se alimentam da necessidade humana de encontrar, além do
visível, uma razão que dê sentido às ações sociais e um objetivo pelo
qual se possa vive e até morrer (CAMPOS, 1997: 65).

Relações entre religião e dramaturgia são encontradas em registros do Egito e da


Grécia antiga. Nietzsche dedicou precioso estudo a esse tema (NIETZSCHE,
1872/1992), influenciado pela música de Wagner e o ousado projeto de reforma da
ópera preconizado pelo compositor alemão. Na mesma época antropólogos recolhiam e
divulgavam informações diversas sobre as dramatizações rituais de eventos cósmicos
presenciadas em civilizações de tradição oral. Berthold (2000) destacou a influência das
representações litúrgicas do cristianismo (missas, autos, romarias, etc) na história do
teatro moderno. A cultura popular brasileira valoriza muito as encenações da Paixão de
Cristo durante a Semana Santa e a indústria cinematográfica tem sido pródiga em
produzir, de tempos em tempos, novos filmes sobre Jesus e outros personagens bíblicos
ou da história da Igreja.

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Artistas geralmente têm mais sensibilidade que teólogos para reconhecer e
apreciar essa dramatização da fé. Paulo Autran, um dos mais respeitados atores e
diretores do teatro brasileiro, antes de seu falecimento, concedeu entrevista a uma
revista católica sobre as relações entre Liturgia e Teatro, na qual afirmou:

as cerimônias religiosas devem se propor a ser momentos de elevação


espiritual. Há pouco tempo em Parati, o pároco de lá me pediu para ir
até a Igreja. Pediu-me para ler uns textos das celebrações litúrgicas.
Ele me disse: sabe, Paulo, elas leem tão mal... Por ser estrangeiro, com
sotaque, ele não gosta de ler, pois sente que o pessoal não presta
atenção. Reuniu estas pessoas para que ouvissem a leitura daqueles
textos. Eu retruquei: não tenho a menor experiência disso, mas vamos
ver... Então eu li. Quando terminei, alguns estavam até chorando... e
ficaram impressionadíssimos: “Mas que coisa bonita!” Eu disse,
então: pois é... se são textos de uma elevação tão grande, é necessário
que a gente tenha uma certa concentração quando os lê e,
principalmente, saber que as pessoas estão ouvindo aquilo. E elas
precisam entender o que a gente está lendo. Tempos depois, passei na
igreja na hora da cerimônia e estava lá uma senhora lendo: ‘parari...
parará... parari...’ uma horrível cantilena, sem a menor unção, sem
nada2

A liturgia é, sim, um teatro! É a representação de um drama ou, em vocabulário


teológico, a representação e atualização da “história da salvação”. É a dramatização das
experiências religiosas vividas em um momento no qual o fiel se transporta do “modo
profano” de ser para o “modo sagrado” (Eliade). Em uma liturgia, o drama cristão está
sendo reencenado e reatualizado, e quanto maior a participação da assembleia dos fieis,
mas interativo será esse teatro.

2
“Entrevista com um homem de teatro – Paulo Autran e a Liturgia”. Revista Família Cristã. Ano 2011,
Ed. 791. Disponível no site do Centro de Estudos Anglicanos (CEA):
http://www.centroestudosanglicanos.com.br/bancodetextos/liturgia/entrevista_com_um_homem_de_
teatro.pdf (Acesso em 04 dez 2014, 21:43)

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Quando comparamos o caráter “representativo” dos desfiles carnavalescos com
as liturgias dominicais ou liturgias sazonais (um rito de ordenação, por exemplo),
verificaremos a importância dos aspectos cênicos da liturgia.Nesse sentido, há muita
similaridade entre a liturgia eo Carnaval. Mesmo quem não aprecia os desfiles é capaz
de reconhecer que quando uma escola de samba prepara sua performance, ela demora
meses na escolha do tema, do samba-enredo, das fantasias, figurinos e carros alegóricos
que representarão uma história ou narrativa mítica em ritmo de música e danças. Meses
são gastos no ensaio das coreografias de diferentes alas e no ritmo dos passistas. O
desfile é previsto para durar cerca de uma hora, mas os meses que antecedem aquela
preparação demandam muito esforço e disciplina por parte do grupo. Afinal, uma
estória está sendo contada; um drama está sendo representado coletivamente.
Semelhantemente, a cada domingo a liturgia apresenta um novo tema na
totalidade da compreensão cristã de “história da salvação”. Geralmente esses temas
estão inseridos em uma “quadra” (Quaresma, Páscoa, Advento, etc) e, no âmbito
daquela quadra maior, as leituras bíblicas e as ênfases da Coleta apresentarão temas a
eles relacionados e que merecerão destaque especial naquele dia. Tudo é drama. E todo
drama clama por dramaticidade, por criatividade e disciplina artística e por um ritmo
próprio que faça jus aos elementos desse drama.
Palcos são espaços propícios às artes cênicas e guardam enorme potencial para
dinamizar a liturgia como dramatização da fé. A “matriz religiosa brasileira”, conforme
Bittencourt (2003) está fortemente marcada por elementos sincréticos, festivos e
informais que nunca foram contemplados pelo modelo de culto didático-pedagógico do
protestantismo. O modelo de culto tradicional do protestantismo brasileiro transformou
templos em salas de aula ou ambientes de palestra, tornando o fiel não propriamente um
participante ativo da celebração, mas um ouvinte passivo.
Se as igrejas evangélicas do Brasil conseguirem superar a velha tensão entre fé e
cultura e seu horror para com as artes visuais, os palcos podem se transformar em
espaços não apenas de apresentação musical ou oratória perante um auditório que se
comporta tão somente como ouvinte passivo.Palcos não precisam ser necessariamente,
espaços inacessíveis ao público como se fossem propriedade apenas dos que estão
autorizados a neles pisar. Palcos são também núcleos interativos que envolvem pessoas
em torno de um tema de interesse comum. Os palcos como espaços litúrgicos podem
operacionalizar aspectos cinéticos da liturgia cristã e, inclusive propiciar uma reflexão

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mais profunda capaz de superar definitivamente a velha dicotomia entre protestantismo
e cultura brasileira.

Fecham-se as cortinas

A liturgia não se constitui apenas de palavras ditas, cantadas ou proclamadas na


forma de inflamados sermões. Antropólogos de diferentes tendências reconhecem a
importância para qualquer grupo religioso dos rituais, símbolos, gestos, performance e
da festividade; é através da união entre símbolos, sons, gestos, movimentos, ritmo, etc,
que um ideário religioso se torna visível e manifesto. Através dessa encenação coletiva
os fieis relembram aspectos ainda que fragmentários de sua própria experiência original
ou da experiência de seus heróis míticos.
Enquanto “Epifania da Igreja”, um rito litúrgico tem muito a revelar sobre a
compreensão que o grupo tem de si mesmo e do que lhe é sagrado, nas suas diferentes
nivelações. O local no qual se desenvolve a celebração (o “espaço litúrgico”) é
revelador por manifestar o modo como aquele grupo compreende e experimenta o
momento sagrado.
Ainda é cedo para afirmar que os palcos substituirão definitivamente as mesas e
púlpitos nas igrejas evangélicas do Brasil.Nas igrejas que preservam tradições litúrgicas
antigas (Igreja Católica Romana, as igrejas da Comunhão Anglicana, as Igrejas
Ortodoxas e as Igrejas Luteranas) o centro visual da celebração continua a ser a mesa.
Os que lideram a celebração, geralmente sentam-se discretamente em “estalas” (bancos
laterais voltados para o altar ou para a congregação); não se esconde em nenhum
momento aquele que é o centro visual – a mesa/altar.Por motivos inerentes à liturgia e
tradição dessas instituições, as mesas/altares continuam centrais. Em alguns casos,
novas disposições arquitetônicas o situam não mais no “presbitério”, mas no centro da
nave, com os fieis em círculo.
As Igrejas Protestantes tradicionais, por sua vez, fortemente marcadas pela
leitura, escuta e reflexão da Bíblia, embora tenham afastado a mesa do centro visual,
preservaram o Púlpito como um símbolo de espaços hierofânicos (o monte no qual
Moisés teria recebido a Lei ou o monte de onde Jesus anunciou o programático “sermão
da montanha”). Porém, em novas comunidades ligadas a grupos tradicionais, o púlpito
já não tem a mesma relevância, e sua importância é cada vez menor.

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Para além da postura “apocalíptica” ou “integrada”, a emergência do palco como
novo centro visual do protestantismo brasileiro aparenta ser irreversível. O cientista da
religião, enquanto cientista, não interfere na dinâmica própria de seu objeto de estudo.
Apenas o acompanha, descrevendo suas variações e sua relação com outras esferas da
existência humana. Ao cientista da religião que acompanha o protestantismo, não cabe a
tarefa de intervir no âmbito de relações que o caracterizam, seja para reforçar a tradição
ou para subverte-la. O liturgista, por sua vez, na condição de agente desse campo
religioso, poderá descobrir no palco um grande potencial para o exercício da
criatividade. Palcos hoje, já evocam elementos hierofânico na memória de muitos fieis,
pois foi dali que emergiu uma forte experiência religiosa que, a cada novo culto é
reatualizada. Tal como na conhecida música de Gilberto Gil (Palco, 1980), os palcos se
apresentam como novos espaços sagrados, de renovação, juízo e purificação:

Subo nesse palco, minha alma cheira a talco


Como bumbum de bebê, de bebê
Minha aura clara só quem é clarividente pode ver,
...
Fogo eterno pra afugentar o inferno pra outro lugar
Fogo eterno pra consumir o inferno: fora daqui!

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OBSERVATÓRIO DA RELIGIÃO. E-ISSN 23586087. Volume I, no. 02, agos.-dez. 2014, p. 03-28.
INCORPÓREO É O DESEJO:
O erotismo místico de Hilda Hilst

Cleide Maria de Oliveira


Doutora em Estudos de Literatura PUC/RJ

RESUMO
O ensaio analisa as representações do divino na poesia de Hilda Hilst, destacando duas
características que julgamos essenciais à sua compreensão: um erotismo cujas origens
remontam à poesia medieval tributária do amor cortês, ou delicado, e um imaginário gnóstico
que enforma imagens divinas em trânsito entre a sedução e a perversão. Na lírica de Hilda
Hilst a retórica amorosa mimetiza um desejo de transcendência que não encontra repouso,
antes impõe duplo diálogo com o imaginário medieval do amor cortês e com a negatividade
desencantada que marca a poesia desde a modernidade.
Palavras-chaves: Hilda Hilst, poesia moderna, erotismo, mística.

ABSTRACT
The article analyzes the representations of the divine in poetry of Hilda Hilst, highlighting
two features that we consider essential for your understanding: an eroticism whose origins
date back to the medieval poetry of inspiration on courtly love, and an imaginary gnostic full
of divine images in transit between seduction and perversion. In poetry of Hilda Hilst the
loving rhetoric represents a desire for transcendence that finds no rest, but imposes double
dialogue with the imaginary medieval courtly love and with the disenchanted negativity
which is mark of modern poetry.
Key words: Hilda Hilst, modern poetry, eroticism, mysticism.

Introdução

A escrita performática e transgressiva de Hilda Hilst representa um desafio


hermenêutico para a crítica contemporânea, não apenas por sua extensão (pois ela se exercita
com igual mestria na prosa, na poesia, no teatro e na crônica) como também por sua
complexidade e paroxismo. Essas duas características ficam evidentes quando analisamos três
elementos recorrentes e em tensão em sua obra: o ideal do sublime, o desamparo humano e a
bestialidade1. Nesse ensaio irei me concentra nas formas de presentificação de um complexo
ideal de sublime, que nasce da mais desolada consciência do nosso desamparo existencial e de

1
Minha atenção para a fusão desses elementos (ideal de sublime, desamparo humano e bestialidade) foi
despertada por meio do ensaio ‘Da medida estilhaçada’, de Eliana Robert Moraes. Como destaca a autora, o
ideal do sublime se manifesta, nos primeiros livros de poesia da autora, tanto na representação idealizada de
Deus quanto na experiência amorosa, já na obra posterior aos anos 70 a “metafísica do puro e imaterial” será
substituída pelo “reino do perecível e contingente que constitui a vida de todos nós” (MORAES, 1999, p. 117).
Nesse último critério incluem-se a obra lírica e as narrativas em prosa de Hilda Hilst.
1
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uma figuração do divino particularmente negativa, como se verá. Importante é ressaltar a
unidade dessa amálgama na totalidade de sua obra: a busca por um Amado que transcenda as
limitações do perene e do material no mais das vezes deságua em uma radical experiência de
alienação, isto porque o chamamento insistente a esse Desejado ecoará sem resposta, e sem
epifania, pois Esse se mostrará de uma cruel indiferença e, algumas vezes, com verdadeira
repulsa ao contato humano. Tal configuração de temas e motivos é perceptível em grande
parte de sua obra, tanto na lírica quanto na prosa, e muito embora nosso interesse seja, nesse
momento, refletir sobre a lírica hilstiana, narrativas como A obscena Senhora D, Kadosh e
Com meus olhos de cão, são exemplares de uma singular violência na ocorrência dessa fusão
temática.
Especialmente em sua lírica, o desejo pela transcendência se concretiza na superfície
do texto pelas muitas nomeações, invocações e apóstrofes ao nome de Deus, tecendo
representações do divino nas quais se destacam duas fontes de influência: a) uma retórica
negativa, afim à Teologia Negativa ou apofática, onde a reflexão sobre a persona divina se
estabelece pela negação das ideias de Deus comuns à tradição cristã e; b) uma erótica bastante
influenciada pelo fenômeno do amor cortês, também conhecido por amor delicado ou
fin’amors, extrato da lírica provençal que surge ao sul da França (Provença) ainda no século
XI e que nos séculos XII a XIV é incorporada à lírica galego-portuguesa nas cantigas de amor
e amigo que cantam a alegria e a coita amorosa.
Um aspecto particularmente interessante nessa amálgama entre o apelo erótico-
amoroso e a retórica negativa é o caráter fortemente especulativo que esse canto imantado vai
assumir2. Em epigrafe ao livro Poemas malditos, gozosos e devotos (1987) Hilda cita a
filosofa e mística Simone Weill: “Pensar Deus é apenas certa maneira de pensar o mundo”.
Sendo a citação um mecanismo de construção de sentido baseado na apropriação
antropofágica do discurso alheio, essa alusão à filósofa e mística diz muito sobre as
motivações da poeta, particularmente quanto à equação Deus-mundo como objetos de
especulação místico-filosófica. Em suas muitas e polêmicas entrevistas, Hilda responde pelos
motivos que motivam sua escrita confessando uma “necessidade imperiosa de ir ao âmago de
nós mesmos, um estado passional diante da existência” (2013, p. 29) que nasce do
“inconformismo. Do desejo de ultrapassar o Nada” (2013, p. 21) diante do “problema da
morte” (2013, p. 21). E essa “comoção” profunda com a vida, a morte e o amor (2013, p. 87)
conduz sua escrita a um intenso e apaixonado questionamento sobre a ideia de Deus como

2
Cito parte do poema aludido: “Deram-me a garganta/Esplandecida: a palavra de ouro/A canção imantada/ O
sumarento gozo de cantar/ Iluminada, ungida”. (Hilst, 2003, p. 67).
2
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“executor de tudo”, como afirma na citação abaixo que, apesar de longa, é bastante
elucidativa:
Era uma vontade de conhecer, de saber tudo, e mesmo que eu me assustasse, queria
saber o porquê. (...) E depois, uma mania que eu tinha muito grande, que era uma
vontade de ficar próxima de uma coisa que eles chamavam de Deus. Então eu
gostava muito de ficar na capela. Eu queria demais me aproximar da ideia de um
Deus, de um Deus que tenha sido executor de tudo, entende? Desse mundo que é tão
notavelmente paradoxal e cruel. E essa mania eu não tirei nunca da minha vida até
hoje. Quer dizer, de existir uma potencialidade qualquer, que você nomeia de algum
nome – e eu nomeio Deus de vários nomes: Cara Escura, Sorvete Almiscarado, O
Obscuro, O Sem Nome. É uma vontade de, de repente, estabelecer um intercâmbio
com essa força muito grande, porque eu não acredito que as coisas desabem assim
(2013, p. 87).

Em um de seus belos versos a poeta esclarece: “É de uma ideia de Deus que te falo”
(2005, p. 55), e essa fala se torna o esboço em cores violentas e cruas (“Desenhas Deus?
Desenho o Nada”, 2005, p. 47) de uma máscara informe onde as faces humana e divina se
empenham em eterno procurar-se e confundir-se, como afirma a poeta nos versos:
Se já soubesse quem sou
Te saberia. Como não sei
Planto couves e cravos
E espero ver uma cara
Em tudo que semeei. (poema XVI, Poemas Malditos Gozosos e Devotos)

E também:
Resolvi me seguir
Seguindo-te.
A dois passos de mim
Me vi:
Molhada cara, matando-se.
Cravado de flechas claras
Ramos de luzes, punhaladas
Te vi: Sangrando de morte rara:
A minha. Morrendo em ti.
(poema LXIX, Cantares de Perda e predileção)

Curioso, no mínimo, é o modo como essas matrizes de influencia – a lírica medieval e


a negatividade própria do método apofático – se articulam para compor um conjunto de
imagens e representações do divino belas e terríveis. Uma imago Dei que procurarei esboçar a
partir da leitura de uma seleção de poemas dos livros Cantares de Perda e predileção (1983),
Poemas malditos, gozosos e devotos (1984), Sobre a Tua Grande Face (1986), Da Noite
(1992) e Do Desejo (1992), livros que se aproximam tanto no plano temporal (escritos na
década de 80 e inícios de 90) quanto nos temas e imagens explorados. Passemos ao primeiro
deles:
Vida de minha alma:
Recaminhei casas e paisagens
3
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Buscando-me a mim, minha tua cara.
Recaminhei os escombros da tarde
Folhas enegrecidas, gomos, cascas
Papéis de terra e tinta sob as árvores
Nichos onde nos confessamos, praças
Revi os cães. Não os mesmos. Outros.
De igual destino, loucos, tristes,
Nós dois, meu ódio-amor, atravessando
Cinzas e paredões, o percurso da vida.
Busquei a luz e o amor. Humana, atenta
Como quem busca a boca nos confins da sede.
Recaminhei as nossas construções, tijolos
Pás, a areia dos dias.
E tudo o que encontrei te digo agora:
Um outro alguém sem cara. Tosco. Cego.
O arquiteto dessas armadilhas.
(poema I, Cantares de Perda e predileção)

O que de inicio chamo atenção no poema lido é a dinâmica de procura e encontro que
lhe serve de espinha dorsal, de tal modo que a associação com o Cântico dos Cânticos bíblico
nos parece apropriada, principalmente pelo título que nomeia a obra na qual o poema se
insere: Cantares de perda e predileção (2004b). São seis verbos de movimento que conduzem
nossa leitura – recaminhei (usado 3x), atravessando, buscando e a variantes busquei e busca
– conferindo dramaticidade ao solitário monólogo que se anuncia pelo chamamento a seu
único interlocutor ausente nomeado Vida de minha alma (v.1). O verso, seguido de dois
pontos, confirma a ligação entre o destinatário desse discurso e o lamento amoroso que se
segue. Repetido por três vezes o verbo recaminhar, neologismo formado pelo prefixo re +
caminhar, ou seja, caminhar pelos mesmos lugares onde se já caminhou, refazer percursos
antigos, merece nossa atenção. Em cada umas das três construções o contexto semântico é
bastante similar:
1ª - Recaminhei casas e paisagens (v. 2)
2ª - Recaminei os escombros da tarde (v. 4)
3ª - Recaminhei as nossas construções, tijolos/pás, a areia dos dias (vs. 14-5)

Fala-se de casas e paisagens, materiais de construção, escombros e ruínas, enfim, de


elementos se encontram no campo semântico da engenharia e da arquitetura. Alguns outros
elementos na economia simbólica do poema nos darão pistas para entender esse percurso
refeito como uma espécie de balanço final da própria existência: no verso 4 o verbo se liga a
uma descrição detalhada de um lócus que se “revê” (v. 8), de forma melancólica e
desencantada, como “os escombros da tarde”; nos versos 10-11 volta a memória amorosa de
um primeiro caminhar juntos, amante e amado (aqui denominado paradoxalmente de ódio-
amor), mas a localização do espaço percorrido não é topográfica, e sim existencial, pois este é
“o percurso da vida”; finalmente, no verso 14 esses elementos arquitetônicos e geográficos

4
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ganham intensidade dramática ao serem nomeados como posse comum dos sujeitos amorosos,
e, ao mesmo tempo, a interpretação existencialista se confirma com a afirmativa de serem
essas “a areia dos dias”, trazendo de golpe a imagem visual de um relógio de areia, onde o
tempo se escoa lentamente. Busca-se o Amado ausente em um caminhar memorialístico que é
tanto geográfico, isto é, uma cartografia externa ao eu lírico, quanto subjetivo, delineador de
identidade, como se vê nos versos 2-3: “Recaminhei casas e paisagens/ buscando-me a mim,
minha tua cara”, versos que reafirmam característica antes notada de haver na lírica hilstiana
uma espécie de espelhamento entre o sujeito lírico e o sujeito amoroso, esse último
frequentemente associado a imagens divinas. Nos três versos finais do poema a metáfora
arquitetônica se completa e justifica: tendo buscado a si mesma na face escondida desse a
quem se chama, não impunemente, de “ódio-amor”, o sujeito lírico confessa a seu interlocutor
invisível que “tudo” que encontrou foi “Um outro alguém sem cara. Tosco. Cego./O arquiteto
dessas armadilhas”. A metáfora de Deus como Supremo Arquiteto é recorrente em diversos
discursos religiosos: na teologia medieval, no gnosticismo (onde ele é identificado a um
demiurgo perverso e imperfeito em oposição à verdadeira divindade gnóstica), e na
maçonaria. A apropriação de Hilda Hilst dessa metáfora é mais próxima à mitologia gnóstica,
principalmente na identificação do mundo, tal qual o conhecemos e nos encontramos, como
rede de enganos, ilusão perversa e armadilha arquitetada por um Deus que apenas se
presentifica nos efeitos negativos de sua ausência. Como bem destaca Leandro Soares da
Silva:
Na grande maioria dos livros de Hilda Hilst procura-se e indaga-se um Ser
silencioso e terrível, imóvel diante das dores e prazeres humanos, cuja presença se
nota através de rasgos de horror na cadeia do real. Deus é o interlocutor mudo desses
escritos, aquele para quem se escreveu e se revelou e de quem não se obteve
resposta alguma. (2008, p. 69-70).

E é justamente nessas representações de um Deus “silencioso e terrível” que Hilda


Hilst tanto se aproxima com o imaginário gnóstico que marcou presença na poesia moderna.
O poeta e também critico literário Claudio Willer (2012) possui um interessante estudo sobre
a presença do gnosticismo na literatura moderna e contemporânea, citando Hilda Hilst como
uma das representantes da literatura brasileira na qual podemos identificar influências do
gnosticismo. Entretanto, ressalta Willer, em Hilda Hilst não há a contraparte positiva da
divindade gnóstica, ou seja, não há um Deus bondoso e amoroso ao qual devemos nos
empenhar em conhecer e amar (mediante a gnose), apenas esse deus-demiurgo que é
caracterizado como “quase sempre assassino” (2005, p. 29). Na leitura dos próximos poemas
– o XII de Poemas malditos, gozosos e devotos (2005, p. 41) e o poema sem título de Sobre a
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Tua Grande Face (2004, p. 113) – essa afirmação vai se confirmar na constatação, dolorosa
para o sujeito lírico, que afinal é feminino e amoroso, de que, se pensar a Deus é um
imperativo a que não pode se desviar, esse pensar só pode lhe oferecer o simulacro de uma
existência fantasmagórica “possuída de ossos e de abismos” (versos de poema de Sobre Tua
Grande Face que comentaremos a seguir).
Estou sozinha se penso que tu existes.
Não tenho dados de ti, nem tenho tua vizinhança.
E igualmente sozinha se tu não existes.
De que me adiantam
Poemas ou narrativas buscando

Aquilo que se não é, não existe


Ou se existe, então se esconde
Em sumidouros e cimos, nomenclaturas

Naquelas não evidências


Da matemática pura? É preciso conhecer
Com precisão para amar. Não te conheço,

Só sei que me desmereço se não sangro.


Só sei que fico afastada
De uns fios de conhecimento, se não tento.
Estou sozinha, meu Deus, se te penso
(poema XII, Poemas Malditos Gozosos e Devotos).

O pensar a Deus é assumido como condenação: inacessível em “sumidouros e cimos”


(v. 8), em “nomenclaturas” que mais confundem que explicam (v. 8), e nas “não evidencias da
matemática pura” (v. 10) Deus é aquele do qual não se tem paradeiro ou dados indiscutíveis
(v. 2), e o amor que a Ele se confessa feito de escureza e imprecisão. Os versos finais do
poema (12-15) são claros quanto à motivação desse exercício especulativo movido por Eros: a
recusa do desafio de pensar a Deus é entendida pelo eu lírico como “desmerecimento” e vazio
epistêmico (“fico afastada/ de uns fios de conhecimento, se não tento”). Não há a alegria do
encontro amoroso, apenas a incessante e irrecusável procura, em uma versão paródica cruel da
noite escura de São João da Cruz, aproximação que se confirma pela revisão do poema
analisado anteriormente, em muito semelhante ao Cântico dos Cânticos bíblico em sua
dinâmica de busca-encontro-desencontro, notando apenas que, na versão hilstiana, não há
conjunção mística, exceto em sua forma vicária3. No próximo poema, de um livro publicado
apenas dois anos depois, o exercício de “pensar a Deus” será novamente reconhecido pelas
suas consequências negativas:
De tanto te pensar, Sem Nome, me veio a ilusão.

3
Expressão usada por Alcir Pécora, na apresentação do livro de poemas “Poemas malditos, gozosos e devotos”,
para caracterizar a erótica histiana, na qual o humano desejo é tomado como estratégia de aproximação para a
presença divina (HILST, 2005).
6
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A mesma ilusão

Da égua que sorve a água pensando sorver a lua.


De te pensar me deito nas aguadas
E acredito luzir e estar atada
Ao fulgor do costado de um negro cavalo de cem luas.
De te sonhar, Sem Nome, tenho nada
Mas acredito em mim o ouro e o mundo.
De te amar, possuída de ossos e de abismos
Acredito ter carne e vadiar
Ao redor dos teus cimos. De nunca te tocar
Tocando os outros
Acredito ter mãos, acredito ter boca
Quando só tenho patas e focinho.
Do muito desejar altura e eternidade

Me vem a fantasia de que Existo e Sou.


Quando sou nada: égua fantasmagórica
Sorvendo a lua n’água
(poema sem título de Sobre Tua Grande Face).

O poema se elabora a partir da repetição de estruturas semântica e sintaticamente


semelhantes que indicam uma ação do sujeito lírico em relação à persona divina e uma
consequência (negativa sempre) advinda dessa ação. Cabe notar que essas ações serão
movidas por um desejo de aproximação que se confirma sempre como ilusório, reafirmando
do principio ao fim a noturna e sombria imagem da “égua que sorve a água pensando sorver a
lua” (v. 3). Vejamos de forma mais esquemática essa relação entre ação positiva do eu lírico
em direção a esse que é chamado de Sem Nome e as consequências negativas advindas:
“De tanto te pensar” “me veio a ilusão” “A mesma ilusão/ Da égua
que sorve a água pensando
sorver a lua” (vs. 1-3)

“De te sonhar” “tenho nada” “Mas acredito em mim o ouro


e o mundo” (vs. 7-8)
“De te amar” “possuída de ossos e abismos” “Acredito ter carne e vadiar
/ao redor dos teus cimos” (vs.
9-11)
“De nunca te tocar/ Tocando “Acredito ter mãos, acredito ter “Quando só tenho patas e
os outros” boca” focinho” (vs. 11-14)
“Do muito desejar altura e “Me vem a fantasia de que existo e “Quando sou nada: égua
eternidade” Sou” fantasmagórica/ Sorvendo a
lua n’água” (vs. 15-18)

Ambos os poemas são interessantes porque explicitam de forma exemplar as matrizes


da lírica amorosa de Hilda Hilst: o erotismo de inspiração provençal, que alimenta seu cantar
de amor na ausência amorosa e no sofrimento causado pela indiferença do Amado; a retórica
negativa, que toma o desafio de pensar a Deus como exercício de ascese conceitual; e o
7
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imaginário gnóstico, para o qual a divindade assemelha-se a um demiurgo, sedutor mas
indiferente à vítimas de sua sedução (“É Deus/Um sedutor nato” dirá a poeta em Poemas
malditos, gozosos e devotos). Dada essa configuração singular entre aspectos fastos e nefastos
dessa representação divina, não é de se estranhar o viés melancólico desse erotismo místico,
que apenas se sustenta em forma vicária. A ilusão vicária será completa em determinados
momentos, como se vê pela leitura dos fragmentos abaixo:
É neste mundo que quero te sentir
É o único que sei. O que me resta.
Dizer que vou te conhecer a fundo
Sem as bênçãos da carne, no depois,
Me parece a mim magra promessa
(poema VII, Poemas Malditos Gozosos e Devotos).
e,

Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.


Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado·
Surdo à minha humana ladradura.
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo. E que descanso me dás
Depois das lidas (....)

(poema I, Do Desejo),

mas contestada em outros:


E por que haverias de querer minha alma
Na tua cama?
Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas
Obscenas, porque era assim que gostávamos.
Mas não menti gozo prazer lascívia
Nem omiti que a alma está além, buscando
Aquele Outro. (....)
(poema IX, Do Desejo)

A conclusão a que se pode chegar, diante impulsos de transcendência e imanência tão


contrários entre si, é que esse “pensar alturas” não se apazigua na contingência do humano
erotismo, apenas encontra transitório descanso em um canto imantado que se alimenta da
humana experiência amorosa. Essa, ainda que insuficiente para a vertigem do “que perdura”,
testemunha a sede do que é “luz e imaterial”, como afirma o belo poema que se segue:
Que canto há de cantar o que perdura?
A sombra, o sonho, o labirinto, o caos
A vertigem de ser, a asa, o grito.
Que mitos, meu amor, entre os lençóis:
O que tu pensar gozo é tão finito
E o que tu pensas amor é muito mais.
Como cobrir-te de pássaros e plumas
E ao mesmo tempo te dizer adeus
Porque imperfeito és carne e perecível
8
OBSERVATÓRIO DA RELIGIÃO. E-ISSN 23586087. Volume I, no. 02, agos.-dez. 2014, p. 29-40.
E o que desejo é luz e imaterial.

Que canto há de cantar o indefinível?


O toque, sem tocar, o olhar sem ver
A alma, o amor, entrelaçada dos indescritíveis.
Como te amar, sem nunca merecer?
(poema II, Da Noite)

A pergunta que se reitera sem respostas – Que canto há de cantar o que perdura? -
nos leva à afirmação de Bernardo Amorim sobre a lírica hilstiana: “O canto, enfim, é o espaço
em que algum desafio pode ser lançado àquela inacessível e obscura alteridade” (2007, p.
339). Entre o que é “carne e perecível” (vs. 9) e o que é “luz e imaterial” (vs. 10) se entretece
o desejo em um canto de mulher “que só sabe o homem” (poema VIII, PMGD), de tal modo
que é na concretude de um corpo feminino que esse “pensar a Deus”, antes aludido como
leitmotiv da escrita hilstiana, se elabora. Uma pista importante nos é dada pelos trechos
abaixo, de um dos belos poemas de Do desejo (2004):
Para pensar o Outro, eu deliro ou versejo.
Pensá-Lo é gozo. Então não sabe? INCORPÓREO É O DESEJO.

Se INCORPÓREO É O DESEJO - e a grafia destacada não é aleatória, mas um grito


onde ecoa a declaração de princípios da lírica hilstiana - é preciso que ele (o Desejo) se
encarne, quer na epiderme sensível e amorável do corpo amante, quer na materialidade da
palavra poética. Pensar o Outro é tanto delírio quanto gozo, o que nos leva a concluir que
pensá-Lo não é de modo algum uma operação desencarnada, abstrata ou asséptica. A
aproximação entre física e metafísica é por demais evidente para ser ignorada: goza-se no
corpo da palavra a Palavra4, goza-se no amante corpo presente a Presença ausente que se furta
a nosso desejo. Assim, não me parece inconsequente afirmar que há em Hilda Hilst uma
metafísica amorosa, com veios platonizantes, que forja um ‘método’ para o conhecimento de
Deus que é tanto erótico quanto místico. Mas chamar de método esse impulso contínuo e
teimoso para a transcendência pela via do corpo é apenas força retórica, pois a palavra parece
implicar um tanto de cálculo e abstração que em muito se distancia do pathos que alimenta
essa poética. E o último poema a ser comentado confirma essa afirmação, ao mesmo tempo
em que reafirma a argumentação que estive desenvolvendo na medida em que, nele, um
erotismo pungente, repleto de imagens de submissão amorosa, se estilhaça contra o duro
silêncio de um Deus que se cala e se ausenta.

4
O vocativo, bastante comprometido com a semântica judaico-cristã, não deixa de ser “estranho” à escrita
hilstiana, mas o jogo de palavras é por demais sugestivo para nos furtamos a ele.
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Poderia ao menos tocar
As ataduras da tua boca?
Panos de linho luminescentes
Com que magoas
Os que te pedem palavras?
Poderia através
Sentir teus dentes?
Tocar-lhes o marfim
E o liso da saliva

O molhado que matas e ressuscita?

Me permitirias te sentir a língua


Essa peça que alisa nossas nucas
E fere rubra
Nossas humanas delicadas espessuras?

Poderia ao menos tocar


Uma fibra desses linhos
Com repetidos cuidados
Abrir
Apenas um espaço, um grão de milho
Para te aspirar?

Poderia, meu Deus, me aproximar?


Tu, na montanha.
Eu no meu sonho de estar
No resíduo dos teus sonhos?
(poema IX, Poemas Malditos Gozosos e Devotos)

Rastreamos aqui uma Presença desejável e bastante sedutora (vejam-se os versos Me


permitirias te sentir a língua/Essa peça que alisa nossas nucas /E fere rubra Nossas humanas
delicadas espessuras?), que é divina, e não humana. A imagem, esboçada no primeiro verso –
a do Deus-feito-carne na situação extremada de morte na cruz – é marcada pelos signos
ataduras (vs. 1-2) que recobrem a boca divina e os panos de linho luminescentes (v. 3)
também localizados no rosto desse ser cuja saliva mata e ressuscita (vs. 9-10). A menção à
morte e ressurreição é outro elemento que identifica a Presença amorável ao Cristo,
entretanto, dentre todas as representações possíveis para o Deus-homem escolhe-se essa onde
sua humanidade e sua divindade são paradoxalmente acentuadas, quando o corpo do Cristo
ganha densidade trágica naquela que tem sido chamada pela tradição católica de sua Paixão.
Por outro lado, esse é também o momento em que a divindade do Cristo torna-se manifesta
com a derrota do mais feroz inimigo do humano - a morte - , por meio de sua inexplicável
ressurreição. Merece atenção o modo como se estabelecem as relações entre o sujeito lírico,
feminino, e essa Presença que, apesar de amorável, não é amorosa. A posição do eu lírico é
reticente e temerosa, e o reiterado uso dos verbos poder e permitir no pretérito imperfeito (as
formas verbais poderia e permitiria no inicio de todas as estrofes) marca a interdição divina
em relação ao humano desejo: uma voz lírica pede permissão para se aproximar, ainda que na
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confusão de entre sonhos humanos e divinos, e experimentar sensorialmente essa sedutora
Presença, mas, em nenhum momento a Voz divina se manifesta. A linguagem algo solene do
poema hilstiano imprime um tom dramático a esse enfrentamento divino-humano, de tal
modo que o que seria um encontro amoroso torna-se apenas uma conjugação espelhada de
desejo e sonho, marcada pelo distanciamento entre os sonhadores (o lugar de ambos amadores
é bem delimitado: Deus na montanha, eu lírico no sonho); pela fragilidade desse encontro
(que se realiza apenas como forte desejo do eu lírico em estar no resíduo dos sonhos divinos)
e pela irrealidade (ao fim o que se tem é um jogo de espelhos, onde o desejo de presença vibra
apenas como pedido de permissão para habitar o sonho divino).

Bibliografia

AMORIN, Bernardo de Nascimento. HH e YHWH: Hilda Hilst e o deus javista. Forma breve,
v. 5, p. 333-340, 2007.
DINIZ, Cristiano (org.). Fico besta quando me entendem. Entrevistas com Hilda Hilst. São
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HILST, Hilda. A obscena Senhora D. São Paulo: Globo, 2001.
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___________. Júbilo, memória, noviciado da paixão. São Paulo: Globo, 2003.
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___________. Sobre Tua Grande Face. In: Do Desejo. São Paulo: Globo, 2004.
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___________. Amavisse. In: Do Desejo. São Paulo: Globo, 2004.
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MORAES, Eliana Robert. Da medida estilhaçada. In: Cadernos de Literatura Brasileira: Hilda
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SILVA, Leandro Soares da. Esperando Deus: a prosa de Hilda Hilst e os silêncios da
divindade.Cadernos de Literatura e Diversidade Cultural. Feira de Santana: UEFS/ PpgLDC,
ano 5, n. 6, 2008.
WILLER, Cláudio. Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia moderna. São Paulo,
Editora Civilização Brasileira, 2010.

11
OBSERVATÓRIO DA RELIGIÃO. E-ISSN 23586087. Volume I, no. 02, agos.-dez. 2014, p. 29-40.
AOS OLHOS DE SÃO BENEDITO:
Conto etnográfico como exercício de perspectivação1

Elcio Sant´Anna
Mestre em Teologia e Ciências da Religião
Doutorando em Antropologia UFPA (CAPES)

RESUMO
Como falar de modo claro, franco e eloqüente do modus de viver e pensar de um povo?
Mais importante, a forma de apresentar o que se aprendeu com os caboclos e ribeirinhos
não pode trair os sentidos e os significados. Foi assim que se decidiu apresentar um
conto etnográfico, que expressasse de maneira mais aproximada o que estes povos
tradicionais das microrregiões paraenses pensam sobre as coisas. Foi através da ficção
que encontrou-se a maneira mais verdadeira de falar da visão de bragantinos e
salgadenses.
Palavras-chave: Conto- Etnografia- Perspectivismo – São Benedito

RESUME
Comment faire pour parler clairement, ouvertement et éloquent de manière de vivre et
de penser d'un peuple? Plus important encore, comment présenter ce qui a été tirés
depuis les caboclos et ribeirinhos ne peut trahir le sens et la signification. Il fut donc
décidé de présenter un court ethnographique, exprimant ainsi étroitement ce que ces
gens traditionnel micro-Pará pensent à des choses. C'est par le biais de la fiction qui a
rencontré le vrai moyen de parler de la vision de bragantinos et salgadenses.
Mots-clés: Conte- Ethnographie- Perspectivisme – São Benedito

Maus poetas tomam emprestado,


bons poetas roubam.
TS Eliot

O presente artigo se destina a fazer a discussão sobre as possibilidades relativas


a uma etnografia experimental na forma de um conto etnográfico2 e seu posicionamento
na história da antropologia. Aqui, não deve haver dúvidas sobre de que águas se está
navegando. Este é um entreposto da literatura e da etnografia.

1
Este artigo foi originalmente produzido para disciplina de História da Antropologia – Etnografia
experimental no Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia da UFPA – PPGSA,
Posteriormente apresentado na IV Reunião Equatorial de Antropologia REA/XIII Reunião de
Antropólogos do Norte e Nordeste IV REA/XIII BANNE, CE/Fortaleza – 2013.
2
O leitor não interessado na discussão teórica pode passar diretamente à segunda parte do ensaio a partir
da página p.9-13, onde é apresentado o conto etnográfico: Aos olhos de São Benedito

OBSERVATÓRIO DA RELIGIÃO. E-ISSN 23586087. Volume I, no. 02, agos.-dez. 2014, p. 41-58.
O leitor precisa saber que este esforço se mostrará devedor de tendências atuais
relativas à pesquisa antropológica, e a ficção, lembrando sempre de que esta pode
realmente ser fruto de pesquisa para fundamentar um cenário bastante realista.3 Tratará
principalmente dos resultados do âmbito do que se têm chamado de perspectivismo a
partir de teóricos e pesquisadores como: Eduardo Viveiros de Castro, João Valentin
Wawzyniak e Raymundo Heraldo Maués que vão desde os estudos etnológicos
amazônicos, passando pela percepção cabocla e ribeirinha do Baixo Amazonas e das
microrregiões bragantina e do salgado paraenses.4
A partir dos estudos de Eduardo Viveiros de Castro é que se pôde perceber que o
pensamento ameríndio amazônico manifesta um ponto de vista relativo do mundo, pois
para as populações amazônicas este é um mundo “habitado por diferentes espécies de
sujeitos ou pessoas, humanas e não-humanas”. 5 Então, uma crítica etnológica deve lidar
com esta cosmologia não-ocidental de maneira a torná-la possível a quem deseja trilhá-
la.6 Na verdade, o que se defende de forma contundente é o “reembaralhamento
conceitual” das polaridades ocidentais.7
Em um mundo pós-binário, marcadores como natureza e cultura perdem sua
contrastividade. Dito de outro modo, humanos e animais podem mudar de lado dentro
do plano retórico:

Na etnografia amazônica, a(sic) uma concepção indígena segundo


a qual o modo como os seres humanos vêem os animais e outras
subjetividades que povoam o universo — deuses, espíritos, mortos,
habitantes de outros níveis cósmicos, plantas, fenômenos
meteorológicos, acidentes geográficos, objetos e artefatos — é

3
VEISSIERE, Samuel PL. The Ghosts of Empire: Violence, suffering, and mobility in the transatlantic
cultural economy of desire. In: http://books.google.ca/books?id=G9CkzsQYaLUC&pg=PA126&lpg
=PA126&dq=ghosts+of+empire+veissiere&source=bl&ots=k8dKzSuwEF&sig=QzfygAyiG6ma5y9l1Uh
O1lL97A&hl=en&ei=bGO9TsvvJ4KKsQL3npShBA&sa=X&oi=book_result&ct=result&resnum=5&ved
=0CEEQ6AEwBA#v=onepage&q=ghosts%20of%20empire%20veissiere&f=false. Acessado em:
27/11/2012, p.4.
4
CASTRO, Eduardo Viveiros de. Perspectivismo e multinaturalismo na América indígina. o que nos faz
pensar n018, setembro de 2004. Em: http://www. oquenosfazpensar.com/adm/uploads/artigo/
perspectivismo_e_multipluralismo_na_america_indigena/n18EduardoViveiros.pdf. Acessado em:
25/11/2012, p.225-254; WAWZYNIAK, João Valentin. Humanos e não-humanos no universo
transformacional dos ribeirinhos do Rio Tapajós – Pará. Mediações, Londrina, V.17 n.1, p. 17-32.
Jan/jun.2012, p.18-32; e MAUÉS, Raymundo Heraldo. O perspectivismo indígena é somente indígena?
Cosmogologia , religião, medicina e populações rurais na Amazônia. Mediações, Londrina, V.17 n.1, p.
33-61. Jan/jun. 2012, p.33-61.
5
CASTRO, Eduardo Viveiros de. Op. Cit, p.225.
6
Id. Ibid, p.226.
7
Id.Ibid, Loc. Cit.

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profundamente diferente do modo como esses seres vêem os
humanos e se vêem a si mesmos8

Uma subjetividade complexa e presumida se estabelece por toda realidade.


Personalidades não humanas assumem o ponto de vista hegemônico como caçadores,
intervenientes, capazes de interromper a vida, ou trazer a saúde. Do ponto de vista da
cosmologia clássica trata-se de uma realidade de cabeça para baixo.
Para o universo amazônico, os animais têm uma forma interna equivalente a uma
subjetividade humana.9 Desta maneira, por baixo de uma pelagem, ou de suas penas e
plumas, os animais apresentam uma consciência humana, que sob condições normais
somente pode ser vista por eles mesmos, ou por seres “transespecíficos”.10 Os aspectos
físicos seriam apenas uma roupagem utilizadas por outras consciências. E este é um
elemento que não pode ser visto como de menos importância uma vez que João
Valentin Wawzyniak afirma categoricamente:

Tais seres afetam as condições de reprodução da natureza, dos


indivíduos e da sociedade, por interferirem na vida cotidiana,
principalmente no que diz respeito à saúde humana e às relações
dos humanos entre si, destes com os não humanos e com o meio
ambiente. Busco responder a seguinte questão: quais
constrangimentos sociais estão associados às relações entre os
humanos e os diferentes seres?11

O cotidiano ameríndio, como também do ribeirinho e do caboclo, é interrompido


por consciências interferentes. A interveniência das consciências alternativas, como já
foi dito, não sofre ação de “marcos regulatórios” tais como “dimensões natural, cultural
e sobrenatural, mas é orientada por um fluxo transformacional”12 .
Nestas condições, a vida tem que necessariamente obedecer a um ritmo não
coincidente com a realidade objetiva da produção tão preciosa à lógica ocidental. Os
encontros intersubjetivos no contexto ameríndio e caboclo amazônico permitem um
fluxo para além da racionalidade clássica com força tal, que Wawzyniak rotula-os como
“constrangimentos”:

8
Id. Ibid, p. 227.
9
Id. Ibid, p. 228.
10
Id. Loc. Cit,
11
WAWZYNIAK, João Valentin. Op. Cit, p.18.
12
Id. Ibid. Loc. Cit.

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Nesse contexto etnográfico, algumas qualidades de seres – animais,
humanos, objetos, espíritos (sic) instituições – são apreendidas
como pessoas com quem se podem estabelecer relações sociais,
particularmente “acordos”13

Os não humanos, seres de diversas pertenças, são apreendidos como capazes de


relações sociais, forjadores de pactos, que podem alterar de forma drástica a vida de
indivíduos e até sociedades. Assim os “bichos se manifestam” de forma inequívoca, não
importando a sua aparência... Estes são os encantados.14 Também chamados de donos:

Possuem a potencialidade virtual de transformarem suas aparências


assumindo a “formatura” de outras espécies de seres, bem como
definir, mediante “regulamentos”, orientações para condutas
adequadas de sociabilidade dos humanos entre si e destes com os não
humanos. Outro aspecto importante da sua “ação eficaz sobre o
mundo” (FAUSTO, 2008, p.330) revela-se na capacidade de
provocarem o adoecimento do indivíduo que transgride ou intenciona
transgredir os seus “regulamentos”. Entretanto, se em determinadas
circunstâncias os “donos” provocam doenças, em outras são
“invocados” pelos pajés ou curadores para auxiliarem no diagnóstico
da doença e na indicação de procedimentos terapêuticos para curá-la15

Wawzyniak apresenta um perfil para os encantados bastante conciso e


consistente. São transformacionais, superiores, e eficazes. Os encantados são entes que
se impõem ao mundo do caboclo amazônico. Por isto mesmo podem ser chamados de
“donos”.
Raymundo Heraldo Maués, todavia retoma uma importante questão levantada
por Wawzyniak que é o fato de que era necessário desvendar a cosmologia de índios e
não índios (caboclo ribeirinhos), pois alguns dos antigos pesquisadores não teriam se
aproximado dela de forma mais detida:

Entretanto, embora os antropólogos pioneiros nesse estudo


tivessem interesse nas populações indígenas, com as quais
também trabalharam, mesmo eles, assim como os demais que os
seguiram na senda de estudos sobre religião e saúde (e na
maioria somente preocupados com as populações “caboclas”),
não se detiveram no estabelecimento de relações mais próximas
entre populações rurais e indígenas (embora sabendo e
reconhecendo que os chamados “caboclos” podiam ser vistos como

13
Id. Ibid, p.19.
14
Id. Ibid. Loc. Cit.
15
Id. Ibid, p.20.

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descendentes e possuidores de uma cultura em grande parte
influenciada por essa população indígena, especialmente de língua
tupi)16

O “universo amazônico” seria um só “sistema” em que grupos se apresentariam


aparentados, descendentes de povos de cultura tupi. Assim não se deu conveniente
atenção ao fato das aproximações entre os grupos nativos da Amazônia, quer sejam eles
os povos tradicionais, quer sejam aqueles que se estabeleceram posteriormente. Ainda
mais, com o advento da especialização da área, vários dos pesquisadores se
enfronharam por ramos distintos da antropologia, criando nichos de atuação e pesquisa:
“religião, saúde, campesinato, questões urbanas, etc”17. Segundo Maués esta situação
mostrou-se bastante superada em Wawzyniak (2012)18. Assim, com aproximação das
áreas também foi possível ver relações entre a etnologia amazônica e os temas da
religião e saúde, favorecendo uma percepção de que:

Há diversas semelhanças nas manifestações culturais (religiosas,


cosmológicas, concepções de doença, práticas de cura etc.) que são
comuns a essas áreas, as quais permitem também pensar numa
certa identidade cultural entre as populações rurais de todas essas
sub-regiões, que serão discutidas neste artigo. A questão nova que
se coloca parte do próprio trabalho de Wawzyniak, que aproxima
essas concepções e práticas do chamado perspectivismo indígena
(grifo meu)19

Certa identidade cultural é forjada na interseção das populações e de suas


manifestações culturais nas regiões e microrregiões amazônicas. Uma pesquisa mais
aberta a uma visão um tanto mais holística se apresentaria como indicada à
interpretação dos fenômenos envolvidos aqui, do mesmo modo em que este se mostra
como: “um esquema relacional que apresenta afinidades nas mais diferentes esferas”. 20
Para este estudo é conveniente e necessário que se perceba a sua complexidade:

Esses estudos indicam que há uma espécie de mescla entre


concepções e práticas católicas e do universo da pajelança: santos e
encantados (estes, incluídos por Galvão entre o que chama de
“visagens”) constituem os personagens mais importantes desse

16
MAUÉS, Raymundo Heraldo. Op. Cit, p. 35.
17
Id. Ibid. Loc.cit.
18
Id. Ibid, p. 36.
19
Id. Ibid. Loc.cit.
20
FAUSTO, Carlos apud WAWZYNIAK, João Valentin. Op. Cit, p. 20.

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mundo mítico. O próprio Deus do catolicismo é uma figura
distante (deus otiosus, na concepção de Eliade [1957]). Mas não
estão ausentes os espíritos (bons e maus, não necessariamente
assim chamados), que incluem os “espíritos de luz” e Satanás. Os
encantados habitam o fundo das águas (rios, baías, lagos etc.) e as
florestas: são por isso também chamados de bichos do fundo ou
caruanas (que constituem a grande maioria); mas os encantados da
mata se reduzem em alguns lugares apenas a duas entidades:
Curupira e Anhanga21

A “cosmologia complexa” dos povos amazônicos aponta para uma porosidade


que permite que se trasladem às diversas dimensões. As fronteiras se mostram como
zonas borradas em que a pajelança e as práticas católicas se interagem de modo a
acontecer o que Maués chama de “Homologia entre santos e encantados”.22
A cosmologia dos povos amazônicos é inclusiva, alocando todas as
representações do catolicismo popular e da encantaria dentro de um mesmo universo
simbólico. Estes habitam lugares diferentes, mas com poder e propósitos coincidentes.23
Maués organiza a sistema cosmológico encontrado na Microrregião do Salgado de
modo a ajudar a vislumbrar o seu aspecto:

O sistema cosmológico – uma bricolage de múltiplas concepções –


inclui diferentes planos com seus personagens fundamentais: bem
acima (no céu), Deus, anjos, santos, espíritos de luz e “anjinhos”
(que morreram crianças). No espaço intermediário, entre o céu e a
superfície terrestre, ficam os espíritos maus (uma espécie de
demônios, incluindo Satanás) e os espíritos penitentes (que passam
por provações, antes de poderem atingir a salvação, no plano
superior). Na superfície terrestre habitam os seres humanos (entre
o nascimento e a morte), os outros animais e as plantas. No
“fundo” – das águas e da terra – fica o lugar do “encante”: é a
morada dos encantados que, no entanto (e de várias maneiras),
relacionam-se com os humanos que moram na superfície. Os
encantados são vistos também como seres humanos (não são
pensados como espíritos), porque não morreram, mas se
encantaram. Os dois mais importantes são o Rei Sebastião e Norato
Antônio (Cobra Norato), mas há muitos outros personagens,
inclusive princesas, entre as quais se destacam as filhas do Rei
Sebastião (grifos meus)24

21
SILVA, Tatiana Lins apud MAUÉS, Raymundo Heraldo. Op. Cit, p. 37.
22
MAUÉS, Raymundo Heraldo. Padres, Pajés, Santos e Festas: catolicismo popular e controle
eclesiástico. Belém: CEJUP, 1995, p. 214.
23
Id. Ibid. Loc. Cit.
24
MAUÉS, Raymundo Heraldo. O perspectivismo indígena é somente indígena... p. 38.

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Visto de forma mais esquemática, pode se observar o sistema nos seguintes termos:

SISTEMA COSMOLÓGICO DA MICRORREGIÃO DO


SALGADO
Bem acima Espaço Superfície Fundo
intermediário terrestre
Da terra Das águas
Deus, Espíritos maus Os seres Encantados Encantados
anjos, e os espíritos humanos, os
santos, penitentes outros animais e
espíritos de as plantas
luz e
“anjinhos”

Este mesmo designer da cosmologia cabocla reaparece em uma forma esboçada


em outra parte:

ALTO REINO OU CÉU


(Deus, anjos, anjinhos, santos, espíritos de
luz )
ZONA ASTRAL
INTERMEDIÁRIA (Sol, lua, estrelas, planetas, atmosfera,
aparelhos)
ESPAÇO
Satanás, espíritos maus e os espíritos
penitentes
SUPERFÍCIE TERRA
Seres humanos, os outros animais e as
plantas anjos da guarda, santos e encantados
da mata
BAIXO FUNDO
Encantados do fundo
25

Com base nos depoimentos de pajés e caboclos, Maués produziu este “mapa
cognitivo”, uma construção analítica resultante das percepções de diversos atores da
região. Trata-se de um construto do sistema de crenças superpostas,26 que reúne visões
sincréticas articuladas em torno do universo cosmológico das Microrregiões de
Bragança, do Salgado e do Tapajó. É neste caldo de cultura que a homologia entre

25
Id. Padres, Pajés, Santos e Festas... p. 254.
26
Id. Ibid, p. 253-254.

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santos e encantados se inserem, fazendo parte de um perspectivismo também
“partilhado pelas populações rurais não indígenas de muitas áreas da Amazônia”27
Além disto, há uma percepção que não deve ser deixada de lado é a noção de
que tanto Wawzyniak quanto Maués têm de que objetos e instituições também podem
ser seres transformacionais dentro do sistema cosmológico das populações
amazônicas.28 Assim os encantados, santos, objetos inanimados e instituições podem
assumir um protagonismo nas narrativas dentro do sistema cosmológico amazônico.

Há relatos indicando que também objetos inanimados se


transformam em seres animados, como pode ser constatado na
história relatada por um morador de uma das comunidades sobre o
caso de uma flecha a ele presenteada por um cunhado. Segundo
ele, ela se transformou numa cobra e tentou matá-lo. Interpreto
que esses ribeirinhos interpretam29 também o IBAMA como
uma forma assumida pela/o Curupira. Tal associação decorre de
uma série de analogias do comportamento das duas entidades, o
que os leva a adotarem uma atitude de suspeita em relação ao
instituto, uma vez que ele pode ser uma aparência assumida pelo
“bicho”. Nesse sentido, um órgão público federal apresenta-se
como o “engeramento” de um ser com poderes de encantamento,
diante do qual é conveniente assumir uma atitude de respeito e
suspeita. Deste modo, tudo indica que o pensamento que postula a
potencialidade de transformação dos seres abrange também outras
agências. Se verdadeira essa interpretação, ela contradiz Lins e
Silva (1980), que em estudo realizado no planalto santareno indica
o desaparecimento das/dos Curupiras como consequência do
desmatamento, por não disporem mais do espaço onde habitavam.
Contudo, uma outra explicação pode ser possível, ou seja, a de que
tenham “se engerado” em outra qualidade de ser (grifos meus)30

A interpretação de Wawzyniak é que as instituições, e os objetos inanimados são


capazes de engeramento,31 tornando-se capazes de se manifestarem e de se
comunicarem com as pessoas, transformando–se em humanos. Assim objetos podem se
27
Id. O perspectivismo indígena é somente indígena... p.55.
28
Ver nota 14.
29
GEERTZ, Cliford. Interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989, p.15-20.
30
WAWZYNIAK, João Valentin. “Engerar” uma categoria cosmológica sobre pessoa, saúde e corpo.
Ilha, Florianópolis, v.5, n.2, 2003. Disponível em: <www.periodicos.ufsc.br/index.php/ilha/article/
download/.../15348>. Acesso em: 19 dez. 2012, p. 44.
31
Segundo Wawzyniak “‘engerar’ denota a concepção de corpo como processo no qual ocorre uma
permanente troca de aparência e de construção e desconstrução da pessoa, que é levada a adotar outros
pontos de vista sobre si mesma e sobre os outros seres, humanos ou não-humanos, senão for
convenientemente “curada”. Essa concepção também revela que no pensamento dos ribeirinhos do
Tapajós não haja uma dicotomia firmemente estabelecida do que seja gente e que existe uma porosidade
na fronteira entre o mundo natural e o mundo não-natural, entre o humano e o não humano.” Id. Ibid,
p.28.

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apresentaram como humanos às pessoas. Objetos de culto conseguiriam movimentar-se
de modo a se aproximar dos fieis. É caso dos santos que andam, que se movem de
capelas para casas e de santuários para grutas. Desta maneira, os santos podem ser
apresentados como tendo proporcionado graças, atendendo pedidos ou castigando
alguém por abusos e desrespeito32
Dentro da visão homológica que Maués pesquisou: “santos e encantados se
33
assemelham, por poderem ambos manifestar-se em forma humana”. Neste sistema
aconteceria uma “permutabilidade dos seres entre si”. 34
Os santos assim como
encantados podem comunicar-se diretamente com as pessoas... de modo visível e sem
intermediários. Suas representações facilitariam a comunicação e a compartilhariam de
seus poderes.35
No sistema cosmológico dos povos das Microrregiões de Salgado e de Bragança,
os santos poderiam sair de uma posição estática, deixarem seu altar, para atuarem dentro
da cena cotidiana. Segundo interlocutores, eles são capazes de mandar tempestade ou
praga de formigas.36 A relação ambígua dos devotos com São Benedito (veneração e
jocosidade) levou a se considerar que “o santo pode ser também tratado frequentemente
como uma pessoa viva”. Assim dependendo do humor do santo, “este se vira no
oratório”37
O sistema cosmológico do ribeirinho é capaz de perceber de forma
multiperspectiva a atuação do santo, atribuindo subjetividade e capacidade de
intervenção no mundo dos fieis. Logo, os santos, objetos da devoção, tornam-se
sujeitos humanos na fé do caboclo e do ribeirinho das Microrregiões do Salgado e de
Bragança.
Como Wawzyniak interpretava, é possível interpretar que ribeirinhos e caboclos
acreditam que os objetos, os santos são capazes de engerar-se, antropomorfoseando-se
quando estão contentes, ou quando estão zangados. É assim que a partir de um
perspectivismo caboclo, poder-se-á captar as cosmologias e o ethos das populações
rurais da Amazônia,38 sem os quais é impossível entender o simbolismo amazônico.39

32
MAUÉS, Raymundo Heraldo. Padres, Pajés, Santos e Festas... p. 206-207
33
Id. Ibid, p. 207.
34
WAWZINIAK, João Valentin apud Id. Ibid, p. 49.
35
MAUÉS, Raymundo Heraldo. Padres, Pajés, Santos e Festas... Loc. Cit.
36
Id. Ibid, p. 170-171.
37
Id. Ibid, p. 171-172.
38
Id. O perspectivismo indígena é somente indígena... p.56

OBSERVATÓRIO DA RELIGIÃO. E-ISSN 23586087. Volume I, no. 02, agos.-dez. 2014, p. 41-58.
A articulação entre o perspectivismo amazônico e antropologia simbólica da
religião cunhada em um único construto deverá ser chamada de perspectivação, ou seja:
ato de se colocar em situação de perspectiva, mormente em ambiente fronteiriço, como
condição à produção de significado, onde podem ser lidas as imagens de São Benedito
que se mostram completamente humanas na perspectiva em que os bragantinos se
colocam. O mundo acessado pelos os bragantinos se afigura como completamente
humano40
II

A seção anterior foi resultado do fato de que para se tornar um bom poeta leva
tempo. Por isto, houve a necessidade de tomar emprestado de diversos teóricos
diferentes instrumentais que pudessem dar o suporte ao que vem a seguir. Com tempo,
precisou-se seguir por extremos diversos, tais como, desde o conservadorismo de T. S.
Eliot,41 até a encantaria poética radical de João de Jesus Paes Loureiro.42 Para então
indireção de uma tentativa completamente franca de fazer um conto etnográfico. Conto
este que poderia ser considerado surreal, mas que o leitor atento poderá verificar a sua
base na tradição e cosmologia ribeirinha. Eis o conto então...

- Ei, psiu!!
- Você mesmo, aqui em cima.
- Sou eu que estou falando!!

Sabe meu amigo, eu estou aqui na margem do Caeté observando


tudo. Vejo Bragança, seu povo, meus filhos, devotos ou não. De
cima deste mirante na Vila de Camutá, fico atento a 6 km de
distância desde agosto de 2009. Data recente, considerando que
há dois séculos a cidade me festeja.

Bragança cresceu muito? Hoje com mais de 100 mil habitantes,


depois de muito tempo à margem esquerda do rio, a cidade

39
GEERTZ, Cliford. Observando o Islã. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, p.105 e Id.
Interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989, p.101-159.
40
WAWZINIAK, João Valentin. Op. Cit. p. 18, MAUÉS, Raymundo Heraldo. Op. Cit, p.33. Id. Os
santos e o catolicismo popular; homologia entre santos e encantados. Em: Padres, Pajés, Santos e Festas,
p.165-184 e 202-215.
41
ELIOT, T. S. Notas para a uma definição de cultura. Debates: filosofia, 2013, p. 23-31.
42
LOUREIRO, Paes. Mitopoética e imaginário. Em: João de Jesus Paes Loureiro. Obras reunidas. Vol.
3: Teatro, ensaios, São Paulo: Escrituras Editora, 2000, p.324. NUNES, Benedito. Naturalismo de Paes
Loureiro. Em: LOUREIRO, Paes. João de Jesus Paes Loureiro. Obras reunidas. Vol. 3: Teatro, ensaios,
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OBSERVATÓRIO DA RELIGIÃO. E-ISSN 23586087. Volume I, no. 02, agos.-dez. 2014, p. 41-58.
finalmente deslocou-se para a direita. Bragança vem se
modificando desde que os apotiangas (Tupinambás) viveram
aqui, depois vieram os franceses (1613), os espanhóis (1622),
portugueses (entre 1633-1753),43 e por último, os africanos vindos
do Maranhão (partir de 1755). Estes africanos chegaram aqui
tornando-se mão de obra utilizada no cultivo do cacau, cana-de-
açúcar, tabaco, café, algodão, arroz e criação de gado bovino.

Quando eu olho para devoção bragantina, começo a me lembrar


como tudo começou. Em 1798 os escravos pediram aos seus
senhores que concordassem com a “organização de uma
irmandade e foi realizada a primeira festa em meu louvor...” As
festas, danças e contradanças passaram a ser feitas anualmente. A
irmandade se dispôs também a realizar os funerais e não se
esquecia de auxiliar aos irmãos mais necessitados. Era para essas
coisas que as irmandades serviam.

Meu amigo, as marujas acompanhadas pelos músicos, juntos com


os marujos, executam em frente à minha Igreja a dança da roda.
Quando marujas e marujos entram na igreja ficam esperando os
repiques dos sinos. – Os dois primeiros dão o aviso para roda. O
terceiro sinaliza que é hora da formação da roda da marujada.
Com o passar do tempo novas evoluções da dança acontecem até
que o abraço da igreja termine.

Antigamente para se iniciar a roda, os escravos pediam


autorização para dançar de casa em casa. Mas isso foi naquele
tempo, hoje marujas e marujos pedem licença às autoridades
presentes para iniciar a dança em respeito à tradição. Os
dançantes seguem uma coreografia, um bailado. Eles começam a
dançar desta forma:

As marujas dão meia volta para direita e um passo a frente, e meia


volta à esquerda até volta à posição inicial. São guinadas dadas
para esquerda e para direita formando uma coreografia de encher
os olhos, iniciando a dança da marujada. Se você estivesse aqui,
ficaria deslumbrado com o movimento da dança. As cores
balançando na sua frente.

Não é somente eu que sei destas coisas não. O seu Jair Francisco
da Silva (2003) também diz que as danças que dominam o ritual
da marujada são iniciadas pela maruja indicada pela capitoa. Esta
maruja é chamada de cabeça de linha. Ela segue a capitoa e vice-
capitoa às reverências a mim e às saudações às autoridades. A
roda também é dançada no final da marujada.

É muito bom que você saiba que as mulheres exercem autoridade


durante todo o ritual da marujada. Pergunte a dona Gisele Maria

43
http://fronteirahistoriaeidentidades.blogspot.com.br/p/braganca-como-chegar-hospedagem.html

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de Carvalho (2010). Ela diz que estas comandam as danças e
desfilam ao som de diversos ritmos folclóricos das festas a moda
européia e africana. Todas estas danças são muito bonitas.

- Que danças serão estas?

Ora em Bragança todo mundo sabe quais são: A primeira é o


retumbão. E uma dança tradicional da Marujada. Uma vez o seu
Jair Francisco da Silva (2003) disse que esta é uma dança típica
da marujada. No retumbão, o capitão e o vice-capitão assumem a
dianteira, para convidarem a capitoa e a vice-capitoa para o
bailado. Estes encenam galanteios e recusas no centro do
barracão. As damas assumem o lugar dos cavalheiros que também
é chamada de “virada dos pares”. Após o envolvimento de outras
duplas, a dança se desenrola até que os pares que tenham iniciado
o balé pedirem que a música pare.

Em seguida começa outra dança chama de chorado. Esta é


bastante parecido com o retumbão, mas é menos vibrante, mais
sem sal. Depois vem o chote ou xote (bragantino). Uma dança
fina e européia, à maneira dos senhores portugueses. Mas esta
ganhou um jeito bem bragantino. Logo em seguida, acontece a
bagre, uma quadrilha em roda marcada por corruptelas do francês
com grade participação.

Há também o lundum, dança de origem africana que teria


inspirado o próprio retumbão. Como também a marcha que tem a
origem nos ranchos e cordões carnavalescos, que executada com
andar bem ritmado em voltas.

Além destas danças existe também a mazurca, um balé tardio da


marujada, de origem polonesa. Dança-se descalço, com
movimentos rápidos, aos pares abraçados na altura da cintura,
para então envolver-se a livre escolha em uma valsa tal qual a
executado nos bailes de debutantes. Há também a contra dança,
marcada pela ação do mestre da dança, o presidente da marujada.

Há 215 anos acontece do mesmo jeito. Neste é fincado o Mastro


em honra a mim em frente ao barracão da marujada, que pertence
a Arquidiocese. Mas isto eu te explico depois. É história longa...
A abertura da festa acontece com um discurso do padre sobre
tradição e termina com um café oferecido pelos promesseiros.

Existem vários outros acontecimentos durante as festas: o rito do


almoço, a cavalhada, antes a chegada das comitivas de esmolação,
a romaria fluvial no Caeté (que é a minha trasladação), na
chegada das minhas imagens peregrinas.

- Porque, você pensou que eu só fico aqui parado?

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Não, eu caminho pelas casas do povo. Eu saio daqui da Vila de
Camutá quando eu chego do outro lado do Caeté o povo esta me
esperando. Barcos de todos os tamanhos me seguem. Chegando
lá, uma comitiva me segue até um palco, onde acontece um breve
sermão. Depois vamos para a casa de um promesseiro, eu e a
multidão. É neste ponto que o padre grita de um jeito estridente:
“Viva São Benedito!!!”

Bem você sabe, né? Este povo tem muita fé. Eles acreditam em
mim para atender seus pedidos. Dê uma olhada para o que eles
escreveram nas fitas aqui na barra do meu hábito. Veja o que eles
pedem:

-“Que eu e minha esposa consigamos nossa casa”.


- “Saúde para minha filha e para minha família”.
- “Que eu possa passar no concurso do ministério público do
Pará”.
- “Que eu, meu marido e meu filho paremos de beber”.

É muita fé mesmo. Eles pedem para que eu intervenha em


diversas coisas. Algumas são dramáticas, não acha? Uma família
sofre por causa da bebida. Sem controle, é um grande mal. Eles
não sabem como se livrar disto. Eles dizem: “isto é coisa para
santo”. Eu vou atender este pedido. O problema que este é o
pedido de uma só família e as outras... Tem gente que pede pela
saúde dos filhos, isto é muito triste. Ver o filho doente e não
poder fazer nada. É de cortar o coração! Mãe e pai não podem ver
os filhos doentes. Principalmente quando são crianças, indefesas,
que não sabem nem dizer o que estão sentindo. Às vezes os pais
já foram em vários lugares: rezadores, pajés e até nos postos de
saúde e não conseguiram nada e aí, pedem para mim.

Tem também este menino que quer que eu o ajude a passar no


concurso do ministério público. Isto é sempre uma coisa difícil.
O número de vagas é pequeno. O jovem pensa que somente ele
que quer a vaga. Na verdade, outros me pediram a mesma coisa.
Desta maneira eu tenho que decidir quem vai passar? Talvez fosse
melhor eu ir dizer que ele tem que estudar mais. Dizer para ele
que vou ajudar quem se preparar melhor.

- Irônico, né?

E o sonho da casa nova? Eles vêm aqui todos os anos pedir uma
casa. Uma casa própria é o sonho de todo mundo. Alguns
moravam antes no campo ou na colônia e agora estão aqui na
cidade morando de aluguel. Pagam a vida toda. Dizem que viver
na cidade é muito melhor. O que eu vejo é que Bragança já
passou dos cem mil habitantes, e as coisas só ficam mais difíceis.

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Eu posso dar uma casa para eles, mas acho que estariam
melhores, com mais saúde se estivessem mais próximos da
natureza.

Olha, o João me pediu para ter um emprego de carteira assinada.


Seu Valdomiro e dona Joana também pediram um emprego para
toda a sua família.44 Fora os que pediram exclusivamente pela
saúde. Maria, seu Luis, Lúcio, Orlando, Sônia, seu José. Ih, foram
muitos. Seu Marcos me pediu para se libertar dos vícios das
drogas. Você nem imagina quanta gente vem até aqui para me
pedir curas.

- Eu faço o que eu posso. Mas se tem uma coisa que não tolero é
traição. Eu atendo pedidos e as pessoas não pagam os votos. Ah,
isto é demais!

Em São Benedito da Barreta todos me festejavam, mas depois que


um devoto que um Antônio levou para lá sua imagem, o povo
mudou de padroeiro. Você acredita nisso?

Depois de todos estes anos, atendendo pedidos, concedendo


graças. Construíram até uma capela para ele, enquanto eu ficava
na casa de uma devota antiga da cidade. Foi assim que deixei o
povoado cair em decadência. As pessoas começaram a se mudar
para Vigia ou Itapuá.

Barreta se tornou uma cidade fantasma. Eu deixei a cidade acabar.


Eu castiguei Barreta por falta de amor. Amor a mim. Quanta
gente tinha vindo até mim, e pedido pela saúde do filho, da
mulher. E depois se bandearam pro outro. As coisas não são assim
não. É por isto que povo diz: “São Benedito é um santo muito
perigoso” (Maués, 1995).

Sabe a devota dona de minha imagem? Ela chegou ao cúmulo de


me trocar por um saco de farinha de mandioca. Quando o novo
dono da minha imagem foi fazer mais farinha, incendiou a casa de
forno. Ele perdeu tudo. Tanto que devolveu a minha imagem a
sua antiga dona (Maués 1995). É por isto que o povo diz: “não
brinca com São Benedito por que ele é tinhoso”.45

Mas vou dizer uma coisa: aqui em Bragança as coisas não são
assim não. O povo tem respeito. Os promesseiros aqui, pedem,
recebem e pagam seus votos. Poucas vezes eu tenho que lembrá-
los com que estão lidando. Isto é coisa muito rara mesmo.

44
Os verdadeiros nomes dos informantes foram alterados para a manutenção do vínculo de confiabilidade
(2012).
45
Desde que cheguei a Bragança em 2010 eu ouvi diversas vezes este bordão.

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Há pouco tempo aconteceu uma coisa deste tipo. Uma senhora me
fez um pedido, coisa que eu atendi. Mas ela disse para seu
vizinho que eu não ia realizar a sua promessa: “porque ela era
crente, e ela não podia fazer estas coisas”. Você acredita nisto? Eu
estou aqui no meu lugar. Não vou procurar ninguém. Eu já disse a
você, muita gente me procura. Eu quase não tenho tempo de
atender todo mundo e esta senhora vem tomar o meu tempo! Ah,
essa não. Isso não ia ficar assim.46

A casa dela pegou fogo. O povo começou a dizer que eu tinha lhe
castigado. Tinha dado uma lição de respeito. Na verdade, eu não
tinha feito nada. Como eu disse, não tenho muito tempo. A cidade
cresceu muito. Muita gente fazendo pedido. Não é toda hora que
posso deixar o mirante. Mas quer saber? Foi merecido. Eu deixei
todo mundo pensar que fui eu. Este é como os “males que vêm
para bem”.

- Mas espera um minuto. As pessoas que vêm da cidade grande


não acreditam mas nas coisas. Como é que você não ficou
assustado com a minha aparição?

- Ah sim, sua família é daqui. Ah, então você já ouviu falar de


muita coisa, não é? Sua família já lhe falou de visagem, de
encantado? E da filha do rei Sebastião? Então está explicado. Isto
tudo faz parte do que a gente pensa por aqui.

O povo conta um monte de coisa. Eles sabem o que acontece lá


em cima nos céus, e no fundo das matas e dos córregos. Mas eles
também sabem que eu estou aqui para acudí-los nas horas
sofridas.

III

Os bons poetas fazem as coisas com mais facilidade. Não precisam ficar cheios
de dedos quando estão falando das coisas e da vida. Eles conseguem falar de outro
mundo possível. Fazer uma etnografia experimental nunca deixa de ser frustrante.
Porque nunca se sabe se o experimento vingou. Seria bom que literatos e poetas
pudessem aprofundar estas poucas linhas que tinham o objetivo de falar da cosmologia
de caboclos ribeirinhos. Falar de forma mais franca e mais direta. Era preciso dizer de
uma maneira mágica, porque assim se entende o mundo por aqui.

46
Soube de história na minha última viagem a Bragança em 16/11/2012.

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OBSERVATÓRIO DA RELIGIÃO. E-ISSN 23586087. Volume I, no. 02, agos.-dez. 2014, p. 41-58.
O SAMBA DE CLARA NUNES:
Religião afro-brasileira e musicalidade

Emerson Sena da Silveira


Doutor em Ciências da Religião PPGCR/UFJF
Docente do PPGCR UFJF

RESUMO
A música popular brasileira agrega diversos elementos sociais que a particularizam. Entre eles,
o fator religioso, manifesto por alguns artistas, deixando entrever a íntima conexão entre música
e religião. Clara Nunes e diversos outros artistas lançam/lançaram mão do aspecto religioso
afro-brasileiro em suas obras chamando a atenção da mídia e da sociedade para a cultura
africana. Objetiva-se, neste trabalho, analisar a música de Clara Nunes (1942-1983) e as
relações com elementos folclóricos e africanistas em sua produção e trajetória musical. A
disseminação dos ritmos musicais desta cantora via mídia, consumo e espetáculo, permitiu a
produção de releituras e ressemantizações do tema mitológico africano. Assim, pergunta-se:
qual o imaginário ritual-religioso apreendido na produção musical de Clara Nunes e sua
conexão entre a música popular brasileira e a expansão das práticas religiosas afro-brasileiras no
Mercosul? A partir da análise histórico-antropológica do nexo entre a produção musical de Clara
Nunes, a religiosidade afro-brasileira e sua expansão, pretende-se debater a identidade
sociorreligiosa produzida pelas tensões de uma sociedade desigual para com as populações
negras e o samba, um ritmo cujas raízes remontam às práticas afro-brasileiras.
PALAVRAS-CHAVE: Mitologia Africana; Samba; Música e Religião.

ABSTRACT
Brazilian popular music adds many social elements that particularize itself. Among them,
religious factor, expressed from some singers, leaving a glimpse of the intimate connection
between music and religion. Clara Nunes and many others singers make/made use of Afro-
Brazilian religious aspects in their works drawing attention of the media and society for the
African culture. This paper aims at analizing Clara Nunes’ songs ( 1942 – 1983 ) and their
connections with folk Africanists elements in their production and musical trajectory. The
spreading of musical rhythm made by this singer via media, consumption and spectacle, allowed
the production of rereading and redefinition of the mythological African theme. Thus the
question is: Which is the imaginary-religious ritual clearly apprenhended in Clara Nunes’
musical production and its connection between Brazilian popular music and the expansion of
African-Brazilian religious practices in Mercosur? From the historical and anthropological
analysis of the link between Clara Nunes’ musical production, Afro-Brazilian religiosity and its
expansion, the intention is to debate the social religious identity produced for tension presents
into this unfair society with black population and the musical style samba, a rhythm on which
the roots date from Afro-Brazilian practices.
KEY-WORDS: Mythological African; Samba; Music and Religion.

Introdução

A chamada Música Popular Brasileira (MPB) é um universo cultural em que


muitas ressonâncias religiosas são percebidas, ressemantizadas e retraduzidas, em
especial às ligadas ao universo religioso afro-brasileiro, especificamente a umbanda e o
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candomblé, contribuindo para a conformação de um imaginário mítico diluído na
cultura brasileira.
A disseminação das músicas via mídia, consumo e espetáculo permitiram a
produção de ressemantizações do tema mitológico africano. Na dimensão do marketing
e do espetáculo a herança religiosa difrata-se em símbolos, experiências, valores e
elementos ritualísticos que ultrapassam os locais de culto (terreiros, igrejas, templos
etc.), aparecendo em reportagens de jornal ou revistas, obras de arte, peças teatrais,
livros, músicas e shows.
A dimensão do espetáculo e da festa permite que se entre em contato com
valores de uma determinada experiência religiosa sem que, necessariamente, a pessoa
seja adepta ou tenha vivido um universo religioso específico.
Assim, pergunta-se: qual o imaginário ritual-religioso apreendido na produção
musical de Clara Nunes e sua conexão com as práticas religiosas afro-brasileiras? A
partir da análise histórico-antropológica do nexo entre a produção musical de Clara
Nunes e a religiosidade afro-brasileira, pretende-se debater a identidade sociorreligiosa
produzida nas tensões entre uma sociedade desigual para com as populações negras e
suas práticas religiosas e o sucesso e o charme do samba. Um ritmo que já foi
estigmatizado, cujas raízes remontam terreiros de candomblé e práticas rituais de
comunidades afro-brasileiras sob o impacto da mudança e da hibridação na atualidade.
Portanto investigam-se as relações performáticas que ligam o samba de Clara
Nunes ao universo afro-brasileiro, através de músicas, letras e referências à história
cultural do samba. Argumenta-se que há convergências e paralelos instigantes entre a
carreira musical, a constituição do campo afro-brasileiro e as transformações culturais
em processo de transnacionalização.

Musicalidade afro-brasileira: samba, culto aos orixás e transformações sociais

As heranças das musicalidades africanas são muitas, entre elas o samba de roda,
jongos, congadas e tantas outras manifestações que abrem um imenso panorama cultural
de empréstimos, ortodoxias e hibridismos entre gêneros musicais, religiosidades e
transformações sociais (SODRÉ, 1979; MOURA, 1983; SANDRONI, 2001).
Para abarcar compreensivamente tanta diversidade, Carvalho (2000) propõe criar
um modelo conceitual que permita compreender como os gêneros musicais são criados,
ampliados e transformados ao longo do tempo e como parcelas de um repertório

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específico são metamorfoseadas ao passarem de um gênero para outro.
Um dos pilares dessa proposta é a hipótese de uma “unidade subjacente” à
experiência musical afro-brasileira, um espaço nacional que provocou um processo de
intertextualidade, mesmo que baseado nas terríveis condições características do sistema
escravocrata brasileiro (CARVALHO, 2000).
Para Carvalho (2000) duas organizações musicais diferentes são refletidas por
dois modelos distintos de tradições religiosas afro-brasileiras. O primeiro modelo
corresponde ao culto de candomblé e xangô, coeso, fechado, aristocrático, dotado de um
processo de iniciação complexo, longo e exigente. A esse modelo corresponde uma
expressão musical ortodoxa, controlada pelos líderes religiosos e utilizada na liturgia
cúltica das religiosidades afro-brasileiras que se inspiram na ‘pureza nagô’ ou na
‘pureza africana’. É, segundo Carvalho (2000) um universo ideologicamente fechado,
cheio de oposições e equivalências estruturais.
O segundo corresponde a tradição religiosa de origem banto (particularmente a
angola), aberta para influências de outros gêneros musicais e cuja estrutura cultual
possui hipoteticamente uma liturgia mesclada musical e linguisticamente, embora
alerte-se para importância de estudos históricos e empíricos para confirmar tal
identidade (CARVALHO, 2000).
Em um trajeto típico ideal, um repertório religioso mais ritual, passaria para os
“cultos de umbanda”, mais sincréticos; em seguida, para gêneros seculares tradicionais,
chamados de rurais, ou comunitários (capoeira, samba de roda e jongo); chegando à
diversidade de “gêneros de música popular, da comercial à independente “cult” ou
experimental” (CARVALHO, 2000, p. 5).
Segundo Carvalho (2000, p. 6-9), no caso das tradições religiosas iorubá, tanto
do xangô quanto do candomblé, músicas populares comerciais evocam os orixás
(deuses iorubás) através de uma linguagem musical não iorubana. Muitos cantores da
MPB, entre eles Clara Nunes, Caetano Veloso e Gilberto Gil, mencionam nomes de
deuses, fragmentos de letras ou invocações de música ritual, mas a estrutura musical
liga-se a fônica tradição europeia.
Os ouvintes de música em geral estão acostumados à gramática musical
ocidental e isso impõe limites de assimilação e de crescimento do processo
comunicacional que, segundo Carvalho (2000) é um quase paradoxo. O repertório
musical iorubá possui um padrão distinto da musicalidade popular brasileira: privilegia
a audição estética, constitui um estilo antifonal de canto com letras dotadas de estrofes

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pouco adaptáveis à versificação em português, elabora linhas melódicas distantes das
geradas pela antiga fusão de estilos musicais portugueses e africanos e promove a
polirritmia, de pouca aceitação entre o público brasileiro consumidor de música
(CARVALHO, 2000). Mas a composição de músicas e letras relativas aos orixás da
tradição ioruba dentro do idioma musical da música popular brasileira levou a adoção
de raízes angolanas: ritmos binários, melodias afinadas com o repertório português,
estrofes próximas dos modelos ibéricos etc. (CARVALHO, 2000).
Assim, a música popular pode ser construída mais próxima ao repertório mítico
religioso, ligando-se tal fato, por exemplo, a mistura mais intensa entre termos da língua
portuguesa e das línguas bantos do que a mistura entre o iorubá e o português
(CARVALHO, 2000).
A expansão desses gêneros pode estar ligada ao hibridismo, as experiências de
fusão, a superposição entre dois ou mais gêneros, evocando as estruturas postas em
contato numa única peça musical (CARVALHO, 2000).
Nesse sentido, os gêneros musicais comportam um padrão rítmico, uma
sequência de batidas de tambor, uma sequência harmônica precisa, um conjunto de
palavras ou tropos literários fixos que evocam uma determinada paisagem social,
histórica, geográfica, divina ou mental, constituídos em meio a transformações sociais e
dependentes de inúmeros fatores (CARVALHO, 2000).
Houve, nas Américas em especial, “fortes pactos interclasses nas esferas
simbólica e estética: estilos subiam e desciam na escada social, e o hibridismo aparecia
constantemente para expressar esses movimentos” (CARVALHO, 2000, p. 14).
As mudanças ou fusões em música, texto, harmonia expressaram a
transformação da base social dos gêneros e os tornavam mais ou menos abertos a
processos de transnacionalização, conforme afirma Carvalho (2000). Mas, por vezes, a
biografia e a musicologia de alguns cantores como Clara Nunes, ilustram com rara
qualidade essas questões postas pelos estudiosos da relação entre música brasileira e
religiões afro-brasileiras.
Outra questão fundamental para o nascimento, expansão e consolidação dos
gêneros musicais é a das mediações, incluindo imposições, apropriações,
comercializações entre outras. Carvalho (2000) repara que nunca houve no Brasil um
“plano de educação musical para as classes subalternas”. Assim, no caso dos gêneros
musicais rituais afro-brasileiros, o trajeto de uma dança, uma festa ou uma prática
musical particular foram influenciados por atitudes e comportamentos ocorridos dentro

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de uma instituição global como a Igreja Católica. Dessa forma, segundo Carvalho
(2000), a diferença entre uma tradição e outra pode ser imputada às posições adotadas
por duas pessoas dentro da hierarquia eclesiástica, como, por exemplo, sua
receptividade (ou sua falta) por parte do sacerdote local para com essas práticas
católicas não-oficiais, e em segundo lugar, decisivamente, pela atitude do bispo em
relação às posturas adotadas pelos sacerdotes locais.
Por isso, o papel de Clara Nunes e de sua música, entendido como mediadores, é
um ponto chave da experimentação musical do samba em suas ressonâncias afro-
brasileiras tanto em sua consolidação no território nacional, quanto de sua expansão
transnacional.
Há uma evidente e densa rede de influências das religiões da umbanda e do
candomblé na construção da carreira dessa intérprete, assim como para a divulgação e
elaboração de um imaginário positivo dessas religiões no universo geral da cultura
nacional (BAKKE, 2007).
O samba é uma família de gêneros musicais relacionados entre si por fatores
formais, sociais, históricos (CARVALHO, 2000). O samba é o principal ícone da música
popular brasileira (MBP). E a maioria dos compositores e intérpretes da MPB também
pode ser considerada sambista: algumas vezes eles se afastam do samba; em seguida
parodiam, comentam, imitam e no fim retornam ao samba (VIANNA, 1995;
SEVERIANO, MELLO, 1997).
Assim, segundo Moura (1983), o samba começou na área da cidade do Rio de
Janeiro conhecida como ‘Pequena África’, próxima ao porto onde viviam imigrantes
baianos, muitos dos quais vieram para a capital no fim do século dezenove,
particularmente após a abolição da escravatura, trazendo suas religiosidades e
musicalidades. No caldeirão de influências religiosas e sociais da então capital do Brasil
se concentrará a convergência de novas correntes religiosas recém-introduzidas como o
kardecismo, a ascensão de uma classe média baixa negra, as seculares devoções
católicas, que darão origem a umbanda e ao samba (PRANDI, 1990; 2000).
Moura (1983) assinala o papel de pessoas como Tia Ciata, líder de candomblé
em cuja casa haviam universos musicais vivenciados em diferentes ocasiões e espaços.
Segundo Carvalho (2000), primeiro, a música sagrada, tocada e cantada durante os
rituais então chamados de macumba, distantes do público externo; segundo, na sala de
estar, o gênero conhecido como choro, com flauta, violões e cavaquinho; e em terceiro,
no quintal, o samba de roda, o estilo profano, rural, comunitário, trazido da Bahia

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(SIQUEIRA, 2000; SANDRONI, 2001).
Foi nesse contexto que músicos como Donga viveram, realizando uma fusão do
samba de roda com a tradição ibérica de harmonia e arranjo instrumental, desenvolvidas
no choro e em outros gêneros de ascendência portuguesa explícita.
Esse espaço social chamado ‘Pequena África’, foi destruído quando o prefeito
do Rio de Janeiro na primeira década do século vinte, Pereira Passos, removeu bairros
inteiros para dar lugar a amplas avenidas capazes de acolher o novo modo urbano
moderno de viver (MOURA, 1983; CARVALHO, 2000). Tal processo denominado de
sanitarização teve como objetivo desalojar as classes inferiores, retirando-as do centro
da cidade, a partir de um ideal eurocêntrico.
Muitos desses gêneros do início da música popular comercial nas duas primeiras
décadas do século vinte tendem a expressar essa ruptura urbana, encarnando ou
incorporando um trauma social e histórico de grandes proporções.
Segundo Carvalho (2000), o samba representa esteticamente a assimilação
urbana, ou a passagem das massas pré-modernas para a modernidade: arranjos com
harmonia ocidental e inserção na indústria musical que estava nos seus primórdios com
a comercialização do fonógrafo. O samba engloba a história de uma classe média baixa
que podia aparecer como urbana, como participante, socialmente legítima, da cidade
moderna, através de trajes “adequados”, “aceitáveis” e, por que não, de passos
“apropriados” de dança. Posteriormente, o samba se tornará um dos elementos
constitutivos da identidade nacional (MOURA, 1983; VIANNA, 1995; ALVES, 1998;
CARVALHO, 2000).
Discutindo aquele que é, miticamente, considerado o primeiro samba a ser
gravado e peça à qual se faz referência, gravado por Donga e Mauro de Almeida em
1917, Carvalho (2000) levanta questões interessantes.
Primeira, a relação entre letra, significado e sociedade, construindo uma relação
de empréstimos, subtextos, ocultações e porosidades. Diversos significantes estarão
presentes em muitos sambas, alguns remetendo a modernidade, outros a objetos de culto
e entidades religiosas. Segunda, o deslocamento constante de significantes, marca da
música popular brasileira. Terceira, o uso da homofonia, recurso utilizado nas letras das
camadas populares pelo valor político da ambiguidade, discutindo-se o problema da
autoria que vem a tona quando a música começou a ser gravada e vendida como
mercadoria.
Nesse sentido, é preciso observar que as formas musicais transformam-se,

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assumem determinadas características, mesclam-se a outras. Assim, segundo Carvalho
(2000), o samba nasce no Rio de Janeiro dos anos de mil novecentos e vinte, mas alguns
o consideraram maxixe, samba de roda ou uma daquelas formas rurais coletivas (os
participantes entram na roda, cantam uma estrofe comum ou improvisada e deixam a
roda aberta para outros companheiros fazerem o mesmo). Mas o importante subtexto do
primeiro samba gravado é que se mostra um período que o samba era ilegal,
marginalizado, mas que começa a conquistar legitimidade.
O samba, considerado no princípio um jogo e um comportamento criminalizado,
ascende aos poucos social e simbolicamente ao cenário social. Muitos foram os fatores
que permitiram a mudança do estatuto cultural, dentre elas a presença e a força de
cantoras como Clara Nunes.

Morena com o chocalho na canela

O refrão dessa música cantada por Clara Nunes em sua carreira evidencia um
complexo jogo simbólico das transformações identitárias e performáticas que tanto a
música, quanto a cantora sofreram.
O chocalho na canela e o vestido branco são adereços que “africanizam” Clara
Nunes e remetem a fatos históricos como os pesados grilhões de ferro que nas canelas
dos negros se tornaram pulsação rítmica de seus anseios e buscas de sentido e
sobrevivência num outro mundo tantas vezes cruel.
Tanto a trajetória da cantora, quanto das religiões afro-brasileiras, são marcadas
pela busca da tradição, da raiz mítica, sempre tensionada pelos arranjos sociais e
culturais nas quais os homens e mulheres de suas épocas estão imersos.
Nesse sentido, as trajetórias de homens e grupos expressam desejados símbolos
de identidade e momentos em que o jogo entre autenticidade, legitimidade e hibridismo
descreve uma rota não-linear, cheia de alianças, porosidades e rupturas.
Clara Francisca Gonçalves Pinheiro, Clara Nunes, nasce no Estado de Minas
Gerais em 1942, na cidade de Paraopeba vivendo uma época de mudanças, em que um
elo cultural e social se conecta a outro, alternando tanto continuidades, quanto
descontinuidades no campo religioso e no social.
Segundo Bakke (2007), seu pai cantava e tocava viola nas Folias de reis,
tradicional manifestação musical brasileira com influências católicas e africanas. Em
1960, órfã, muda-se para a capital do estado de Minas Gerais, Belo Horizonte e vence

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alguns concursos de cantora de rádio (BAKKE, 2007). Em 1963, por conta do sucesso
nas rádios, estreia na TV Itacolomi e logo rende contatos que pavimentarão sua
mudança para a cidade do Rio de Janeiro (BAKKE, 2007).
Quais os termos das mudanças sociais e individuais vividos por Clara Nunes?
Em termos musicais, os ritmos melódicos em alta no mercado musical ligavam-se ao
bolero, às musicas românticas, ao predomínio do rádio, com grandes cantores. Isso
dificultou o início da carreira que até 1968 alternava fracassos e poucos sucessos. Em
termos sociais e culturais, o Brasil acelera seu processo de industrialização e
urbanização, o campo religioso expande-se e desdobram-se os conflitos, consolidando-
se a umbanda e o kardecismo ainda que sob fortes reações e críticas da Igreja Católica e
do catolicismo romanizado hegemônico. Em termos de mercado, os empresários e
empresas musicais ainda ofereciam melodias e ritmos românticos, resistindo a novas
experimentações, temerosos de perderem consumidores.
Em 1965, Clara Nunes muda-se para o Rio de Janeiro, período em que o Brasil
vive sob o brutal regime militar (BAKKE, 2007). Nessa cidade começa a se apresentar
em diversas casas noturnas e nas escolas de samba propagadoras da cultura afro-
brasileira. O samba, vivido no cotidiano das massas, começa a ser aceito na arena
pública, com a organização das escolas e desfiles de samba, a divulgação das letras de
música, a emergência de compositores, grupos e outros espaços de consumo desse
gênero musical em ascensão.
A partir dessa época Clara Nunes passa a interpretar canções que falam da vida e
do cotidiano dos negros, e o faz com tanto carisma e profissionalismo que chegou a
apresentar-se em Luanda (Angola) e em outros países. Sua performance é tão realista,
que música e interpretação se fundem, ofuscando a autoria das composições cantadas.
Em agosto de 1982, Clara Nunes se apresentou no Japão, em Sandai1, com a
música ‘O canto das três raças’, com uma letra cheia de um ideal romântico de
identidade nacional. Nesse show, em sua forma de dançar (gestos como braços indo e se
afastando do corpo com mãos espalmadas); na forma de vestir (descalça, de branco com
adorno de cabeça feito de conchas e búzios); na letra do canto (correntes, cativeiro,
grito, índio, negro) e na melodia, estão condensados os três momentos da carreira
artística da cantora, cujas referências serão alternadas com a questão das religiões afro-
brasileiras: as musicas românticas, a consolidação da imagem de cantora ligada às

1
Conferir: http://www.youtube.com/user/clamagoada. Os responsáveis pelo sítio eletrônico o definem
como “canal oficial da família e amigos da cantora”.

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tradições afro-brasileiras e por fim, o de cantora da música brasileira, em que a ideia da
mestiçagem adquire maior importância.
É no início e no auge da carreira, a partir das décadas de 1960 e 1970, que o
candomblé se expande, adquiri prestígio e se projeta como religião de conversão
universal, deixando de ser uma religião exclusivamente de negros, com posterior
expansão entre as classes médias urbanas e pelo MERCOSUL e Portugal (SILVA,
AMARAL, 1996; BAKKE, 2007).
É nesse período, segundo Bakke (2007, p. 109), que as “artes (música, cinema,
teatro, dança, etc.) buscaram nos elementos que remetem a um passado africano as
novas referências e houve um grande aumento da produção e consumo de música com
forte presença das temáticas afro-brasileiras, entre elas a religião”.
A primeira experiência religiosa de Clara Nunes ocorreu na infância a partir do
catolicismo mineiro e popular, na cidade de Paraopeba e mais tarde, quando trava os
primeiros contatos com o espiritismo kardecista a partir da conversão de sua família
(BAKKE, 2007). Um espiritismo marcado pelos ensinamentos do médium Chico
Xavier intimamente ligado ao modelo católico de santidade (sofrimento, renúncia,
pobreza e caridade).
Entre 1960 e 1970, Clara Nunes torna-se umbandista. Batizada no Rio
Capibaribe, mantém uma forte ligação com dois lugares específicos, uma casa de xangô
pernambucano (o terreiro de Pai Edu) e mais tarde nos terreiros cariocas (BAKKE,
2007). Essa trajetória expressa os “contatos tanto com práticas influenciadas pela
tradição banta (a umbanda e a macumba do Rio de Janeiro) quanto pela iorubá (o xangô
pernambucano)” (BAKKE, 2007, p. 110).
Em sua época de vivência religiosa, havia maior valorização da tradição iorubá
em relação à tradição banta. Os terreiros nagôs baianos (Gantois, Opô Afonjá e outros)
se tornaram modelos que inspiraram as etnografias clássicas sobre o candomblé
brasileiro, pois eram consideradas mais “puras”, legitimados pela presença e conversão
de intelectuais como Verger e Bastide (BAKKE, 2007). Tais práticas apareciam
frequentemente nas músicas, nas peças de teatro, nas tramas das novelas, nos enredos de
escola de samba etc.
Para Bakke (2007, p. 111) “talvez por ter tido uma experiência pessoal marcada
pelo trânsito entre [...] as ‘religiões espíritas’ no Brasil, e [...] ter entrado em contato
com as práticas bantas, Clara foi uma das poucas artistas que tem em seu repertório
referências ao candomblé angola e as entidades bantas”.

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Outra característica do samba de Clara é a não hierarquização de práticas bantas
(umbanda) e iorubás (candomblé), descritas positivamente, sem sobreposição. As
músicas, ‘Banho de Manjericão’ e ‘Nação’ em que as práticas mágicas da umbanda são
positivadas (poder de cura), o pertencimento é estendido a todas as nações (Angola,
Keto e Nagô) e saúdam-se igualmente orixás e pretos velhos (BAKKE, 2007).
Assim, segundo Bakke (2007), a carreira artística de Clara Nunes pode ser
dividida em três momentos distintos, marcados, primeiro, pela busca de um espaço no
mercado fonográfico brasileiro, quando as empresas fonográficas e agentes tentaram
transformá-la numa cantora de boleros; segundo, pela ‘descoberta da África’ e da
umbanda, quando se aproximou do radialista Adelzon Alves, construindo um novo
estilo artístico e, por fim, pelo desejo de ser cantora popular brasileira. As produtoras e
as empresas recearam de início essas mudanças, mas por insistência de Clara Nunes,
mudou-se o repertório, as imagens e outros elementos.
Clara passou a se apresentar de branco, gravou pontos de umbanda e candomblé,
fez curso de expressão corporal e dança africana, aproximou-se de compositores como
Cartola e Martinho da Vila, entre outros e começou a frequentar escolas de samba
quando conheceu a Portela, escola do ‘coração’ (BAKKE, 2007).
No período entre 1969 e 1974, Clara Nunes construiu e consolidou uma imagem
artística associada à umbanda e ao candomblé, gravando os LPs (long plays) e
vendendo centenas de milhares de cópias, um sucesso enorme. São nesses discos que
estão sucessos como “Ê Baiana”, “Misticismo da África ao Brasil”, “Ilu Ayê”, “Tributo
aos orixás”, “Morena do Mar”, “Sindorerê”, “Nanaê, Nanã Naiana” e “Conto de Areia”
(BAKKE, 2007).
Nesse ínterim, sua carreira internacionaliza-se rapidamente e em 1974
representou o Brasil, junto com o conjunto “Nosso Samba”, no Festival do Mercado
Internacional do Disco e da Edição Musical (MIDEM), em Cannes (BAKKE, 2007).
Foi nesse festival, segundo Bakke (2007), que cantou a música “Tributo aos Orixás”,
concedendo entrevista sobre seu figurino à revista francesa Vogue, muito famosa na
época. Em 1975 gravou o disco de maior vendagem de sua carreira, Claridade, cuja
faixa de grande sucesso foi “A deusa dos orixás”, composta por Toninho e Romildo.
Segundo Bakke (2007), nas diversas entrevistas sobre sua carreira e vida
pessoal, a ligação com a umbanda ou o candomblé era enfatizada, declarando
abertamente o seu pertencimento, embora evitasse detalhar atividades religiosas. Em
outros momentos, nas reportagens, evidencia-se a ambiguidade da filiação de Clara

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Nunes: filha dos orixás Ogum e Iansã ou, conforme cantava na música “Guerreira”, ou
de Oxum, a quem foi consagrada segundo Pai Edu (BAKKE, 2007).
Na análise do extenso material de imprensa em relação às suas opções religiosas,
não há uma separação rígida entre a vida pública e a vida privada, pois a presença
constante na imprensa levantava a curiosidade do público que conhecia aspectos
religiosos como os rituais de iniciação (BAKKE, 2007).
Ainda em 1975, Clara Nunes conheceu Paulo César Pinheiro, que se tornou
produtor musical, principal compositor e marido, marcando o início da terceira e última
fase de sua carreira (BAKKE, 2007). Tal momento foi marcado pelo afastamento do
terreiro de Pai Edu e ao mesmo tempo pelo reconhecimento nacional como cantora. Seu
casamento com Paulo César foi assunto da imprensa nacional e um dos aspectos mais
comentados foi o fato da cerimônia ser realizada por um padre e não pelo pai-de-santo
(BAKKE, 2007).
Segundo Bakke (2007), Clara Nunes acreditava no esgotamento do estilo
adotado e pouco a pouco muda seu repertório, sua forma de aparecer para o público e o
discurso sobre seu trabalho. A passagem de estilo não é uma ruptura, mas uma
ampliação da identidade artística de uma cantora que deseja cantar sua gente, sua arte e
sua cultura (BAKKE, 2007).
No último momento da carreira, a ideia de mestiçagem passa a ser central na
concepção de identidade que a obra de Clara Nunes divulga ao mesmo tempo em que se
torna o caminho de inserção das religiões afro-brasileiras no universo da cultura
nacional. Nesse período que se estende entre 1975 a 1983, a cantora gravou os LPs
Canto das Três Raças (1976), As Forças da Natureza (1977), Guerreira (1978),
Esperança (1979), Brasil Mestiço (1980), Clara Nunes (1981) e Nação (1982). Em
1981, produziu o show ‘Clara Mestiça’, em que a ideia de um país culturalmente
mestiço é apresentada (BAKKE, 2007).
Segundo Bakke (2007), os figurinos apresentados por Clara Nunes, seu
desempenho em clipes e musicais, assim como as fotos estampadas em propagandas,
revistas e jornais foram planejados minuciosamente para a consolidação de uma
personagem que permitiu buscar um espaço específico do mercado fonográfico.
Nesse processo de construção da imagem, transpôs para o mercado de música,
elementos importantes da umbanda e do candomblé. No vasto material coletado por
Bakke (2007) ao longo de uma longa e minuciosa pesquisa, identificam-se alguns
elementos recorrentes na forma de Clara Nunes se apresentar ao público, quer nos

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musicais (videoclipes), quer nos programas de televisão: vestes brancas, pulseiras, guias
e balangandãs.
O uso de elementos performáticos contidos nos rituais religiosos como as danças
dos orixás, gestos e postura corporal usados em momentos específicos dos rituais se
tornaram marca e presença imagética constante (BAKKE, 2007).
Bakke (2007) diz que Clara Nunes incorpora a personagem “Clara Guerreira”,
construído a partir do último momento da carreira, ainda que, muitas vezes, nessa
personagem os elementos religiosos apareçam de forma bem discreta e estilizada,
criados para divulgar seu trabalho, construindo assim uma imagem facilmente
identificável para o público consumidor.
Na expressão corporal de Clara Nunes, as religiões afro-brasileiras encontram,
entre várias imagens marcantes, esta: ao cantar a música, conjuga passos de samba e
movimentos do ijexá, dança ritual do candomblé, canta trechos ao orixá Ogum e quando
fala de Iemanjá, saúda a cabeça com o gesto de tocar a testa, o centro da cabeça e a
nuca, orixá considerado Iyá Ori, mãe da cabeça (BAKKE, 2007).
Nas imagens públicas em shows e outros, usa um figurino ligado a estética do
terreiro, com o uso de adornos de cabeça estilizando adés, torços, filás, imagens de
risco de ponto de umbanda ou de elementos da natureza como o mar, o vento, a pedra,
associados aos orixás (BAKKE, 2007).
Por fim, as músicas do repertório de Clara Nunes podem ser divididas em dois
grandes grupos, segundo Bakke (2007). No primeiro, a religião é apresentada a partir do
indivíduo, explicitando as diversas relações mantidas com os símbolos religiosos. Já no
segundo, apresenta-se a partir do plano social, e a religião aparece como evidência da
identidade nacional.
Referências à magia estão presentes, expressando as relações entre as pessoas e
os fatos do cotidiano (BAKKE, 2007). A música “Mandinga” de Ataulfo Alves e Carlos
Imperial, que Clara Nunes apresentou no Festival de Música de Juiz de Fora, em 1969,
exemplifica isso, segundo Bakke (2007). Nessa música, o sujeito que sofre a dor de ser
abandonado recorre a Oxalá (o pai dos orixás sincretizado com Jesus Cristo, Senhor do
Bonfim na Bahia); o Xangô (orixá da justiça) e a Pai Joaquim (Preto Velho):

Até mandinga eu vou fazer, pra fazer você voltar/ Fiz promessa rezei
tanto/ Me ajuda meu pai Oxalá/ Quem não foi nunca vai ser/ Que já é
sempre será/ Gira o mundo/ Roda viva/ Na volta você vai voltar/
D’angola/ Malei me para ela/ D’angola a rosa para ela/D’angola levo

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ao senhor do Bonfim/ D’angola Xangô na pedreira/D’angola na minha
aroeira/ D’angola saravá Pai Joaquim/Dindindindindindim vamos
saravá Pai Joaquim (apud BAKKE, 2007, p. 98).

Clara Nunes gravou uma das poucas cantigas do candomblé de angola que foram
apropriadas pela MPB, “Sindorerê”, em adaptação feita por um compositor de um ponto
de caboclo, entidade dessa modalidade de culto de candomblé (BAKKE, 2007). A
música faz referência aos inquices (tradição banta da qual se origina o candomblé de
angola), Mutalambê (corresponde ao Oxóssi da tradição nagô), a jurema (árvore de
onde se extrai a bebida servida durante o toque de caboclo) e de Gangazumba,
correspondente a Olodumarê, deus da criação ioruba:
Sindorerê/ Sindorerê/ Sindorerê, Sindorerê/ Sindorerê/
Sindorerê/Sindorerê naruandê/ Sidoredê naruandá/ O quê/ Sindorerê/
Sindorerê/Queru oquê coquê/ Sindorerê/ Sindorerê/ Sindorê auê,
auá/Sindorerê tauê tauá/ Sindorerê/ Sindorerê/ Ele é sangue
real/Sindorerê/ Sindorerê/ Sindorerê no juremê/ Sindorerê no
juremá/Sindorerê/ Sindorerê/ Oqueru oquê coque/ Sindorerê/
Sindorerê/Sindorerê Gangazumba/ Sindorerê naruerá/ Sindorerê/
Mutambá mutalambê/ Sindorerê/ Sindorerê/ Sindorerê meu tatamirô/
Sindoreê Etutalodó/ Sindorerê/ Sindorerê/ Sindorerê, Sindorerê/
Sindorerê/Sindorerê (apud, BAKKE, 2007, p. 99).

A música “Guerreira”, composta por Paulo Cesar Pinheiro e João Nogueira,


evidencia a transição entre o plano do indivíduo e das relações desses com os símbolos
religiosos ao plano no qual a sociedade brasileira se destaca (\BAKKE, 2007).
Nessa canção Clara Nunes se assume como sujeito e diz pertencer a dois grandes
modelos de culto seguidos pelas casas de candomblé, o modelo angola baseado nas
tradições bantas e o modelo keto/nagô na tradição ioruba (BAKKE, 2007).
Dessa forma, a música expressa a transição do plano individual, herança pessoal
e de sua filiação religiosa para o plano da sociedade ao abordar a nacionalidade, a sua
criação como cantora popular que só começou a alcançar sucesso a partir do momento
que passou a gravar sambas (BAKKE, 2007).
Uma letra que expressa o intenso sincretismo religioso e que fez sentido na
experiência religiosa da cantora, pois, embora convertida à umbanda, continuou a
transitar entre o catolicismo, o espiritismo e o candomblé:

Se vocês querem saber quem eu sou/ Eu sou a tal mineira/ Filha de


angola, de ketu e nagô/ Não sou de brincadeira/ Canto pelos sete
cantos não temo quebrantos porque eu sou guerreira/ Dentro do samba
eu nasci/ Me criei e me converti/ E ninguém vai tombar a minha
bandeira/ Bole com o samba que caio e balanço o balaio no som dos

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tantãs/ Rebolo que deito que rolo/ Me embalo e me embolo nos
balangandãs/ Bambeia de lá que bambeio nesse bomboleio que eu sou
bambambam/ Que samba não tem cambalacho vai de cima em baixo
pra quem é seu fã/ Eu sambo pela noite inteira/ Até amanha de manhã/
Sou a Mineira Guerreira/ Filha de Ogum com Iansã/ Salve Nosso
Senhor Jesus Cristo Epa Baba Oxalá/ Salva São Jorge Guerreiro
Ogunhê, Ogum meu pai/ Salve Santa Bárbara Eparrei minha mãe
Iansã/ Salve São Pedro Kaô Kabeci lê Xangô/ Salve São Sebastião
Okê arô Oxossi/ Salve Nossa Senhora da Conceição Odô Fiabá
Iemanjá/ Salve Nossa Senhora das Graças Ora eieiei Oxum/ Salve
Nossa Senhora de Santana Nanã Burokê Saluba Vovó/ Salve São
Lázaro Atotô Obaluaiê/ Salve São Bartolomeu Arrobobô Oxumarê/
Salve o povo da rua/ Salve as crianças/ Salve os Preto-Velhos/ Pai
Antônio, Pai Joaquim d’Angola, Vovó Maria Conga/Sarava/ E Salve o
Rei Nagô (apud BAKKE, 2007, p. 101).

Em relação ao segundo momento da sua produção musical, se percebe a


exaltação da identidade nacional que recupera o imaginário do “mito das três raças”.
(BAKKE, 2007).
Assim, as religiões afro-brasileiras são mostradas como marcas de uma herança
africana impregnada na música e nas crenças, segundo Bakke (2007). A temática da
miscigenação é abordada no repertório musical de Clara Nunes com o samba enredo
“Tributos aos Orixás”. Nessa música, com um pedido de licença em iorubá (ago ilê), o
sujeito pede a Oxalá, o ori baba, pai da cabeça, para contar a vinda dos deuses africanos
para o Brasil nos corações dos escravos sofridos e violentados pelos suplícios da
escravidão. A letra desse samba enredo explicita termos próprios ao culto do candomblé
como adobá, nome dado a um movimento corpóreo que significa saudação (BAKKE,
2007). Vários orixás são lembrados como Ogum, Nanã e Iansã, esta última lembrada
como guerreira por seu grito epahei. Xangô é lembrado por sua força e simbolizado pela
pedreira. Completando o panteão recordado, está Obaluaiê, senhor das doenças,
saudado pela expressão atotô:
Agô ilê, agô ilê, agô/ Mutumbá, mutumbá/ Pai maior ori
babá/Trazidos por navios negreiros do solo africano para o torrão
brasileiro/Os negros, escravos/ Entre os gemidos e lamentos de dor/
Traziam em seus corações sofridos/ Seus orixás de fé/ Hoje tão
venerados no Brasil/ Nos rituais de umbanda e candomblé/ Nesse
terreiro em festa/ Entre mil adobás/ Prestamos nossos tributos aos
orixás/ Aos reis das matas, oquê bambokim/ Ao vencedor das
demandas/ Guarumifá/ Acacarucaia dos orixás/ Saluba/ A grande
guerreira da lei,epahei/ Nos rios e nas cachoeiras, yalodê/ Ao dono da
pedreira kaô,kaô/ A rainha do mar, odô-fiabá mamãe/ Ao curandeiro
das pestes, atotô/ Agô ilê, agô ilê, agô/Mutumbá, mutumbá/Pai maior
ori babá (apud BAKKE, 2007, p. 104).

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Em março de 1983 durante a Quaresma, época em que os terreiros estão mudos,
Clara Nunes se internou em uma clínica carioca bem conceituada na época para a
realização de uma cirurgia de varizes, mas a operação complicou e a cantora teve uma
parada cardíaca, caindo em coma (BAKKE, 2007). Sua agonia até a morte, na
madrugada da Sexta-feira Santa para o Sábado de Aleluia, foi testemunhada com grande
repercussão pelos meios de comunicação da época, e comoveu a muitos brasileiros. A
clínica São Vicente virou local de peregrinação de pessoas famosas, jornalistas, parentes
e fãs.
Clara Nunes morreu no auge da sua profissão, aos quarenta e um anos, tendo
conquistado a afeição do público ao longo da carreira, com uma imagem ligada as
religião afro-brasileiras (BAKKE, 2007). A porta da clínica se tornou espaço de
realização de rituais de firmeza espiritual e vigília. Mas a morte veio e a cantora foi
velada na quadra de sua escola de samba, Portela, com a participação de milhares de
pessoas. Enterrada no cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro, seu túmulo se
transformou em local de peregrinação com relatos de graças de milagres (BAKKE,
2007).

Algumas considerações

Considerando a música popular um importante meio difusor dos valores


religiosos afro-brasileiros para além dos terreiros, a trajetória artística de Clara Nunes
marcou época no mercado fonográfico brasileiro ao vender milhares de cópias de disco
com um repertório efusivo em referências ao candomblé (BAKKE, 2007).
Vivendo num mundo em que antigas tradições negras penetraram sua alma e
sensibilidade, Clara Nunes se tornou pouco a pouco uma talentosa cantora de Rádio.
Ganhando concursos, chamou atenção de produtores e artistas de Televisão e se dirigiu
então ao Rio de Janeiro, berço mítico e imaginário do samba e das grandes religiões
afro-brasileiras como a umbanda, leito simbólico na voz dos cantores da música popular
brasileira.
Valendo-se de recursos midiáticos e performáticos, Clara Nunes alcançou
projeção nacional e internacional, imprimindo em seu trabalho a marca religiosa do
candomblé e da umbanda. Em pleno período de repressão militar, sua produção artística

OBSERVATÓRIO DA RELIGIÃO. E-ISSN 23586087. Volume I, no. 02, agos.-dez. 2014, p. 59-75.
fez essas religiões chegarem a um público amplo de forma positiva, apresentando o lado
feliz e mágico de religiões muitas vezes mal vistas (BAKKE, 2007).
Alguns paralelos podem ser traçados entre a trajetória artística e religiosa de
Clara Nunes e a identidade musical nacional. Essa cantora caminha progressivamente
do bolero e da música romântica, de forte influência estrangeira, em direção a estilos
cada vez mais tidos como brasileiros, principalmente o samba. Seu trânsito entre o
catolicismo, o espiritismo, a umbanda e o candomblé aparece como exemplar da
constituição do campo religioso afro-brasileiro que ela cantou como arte, mas também
como opção de conversão pessoal.
As músicas cantadas ao longo de uma carreira intensa exercem uma função
educativa, ao contar um pouco da história dos negros e suas influências na cultura
popular, informando sobre as religiões afro-brasileiras revelando suas divindades, as
práticas mágicas, os locais míticos, as comidas e os ritmos da música religiosa
(BAKKE, 2007).
A música afro-brasileira experimentou enorme expansão após a segunda metade
do século XIX, especialmente no início do século XX, quase concomitante ao processo
de consolidação da ideia, social e territorial, de ‘nação brasileira’. Mensurada pela
quantidade de letras e cantores, pela profusão de símbolos, o samba se tornará um dos
elementos míticos da ‘cultura brasileira’ e dos cantores associados a esse ritmo musical
(AMARAL; SILVA, 2006).
Ao fim do século XX, depois de um imenso processo de fusão e transformação,
o complexo de gêneros ligados ao samba experimenta um processo de
transnacionalização das religiões e músicas afro-brasileiras, um processo que
possivelmente provocará fusões, sincretismos e cruzamentos com as tradições musicais
do Cone Sul (CARVALHO, 2000).

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OBSERVATÓRIO DA RELIGIÃO. E-ISSN 23586087. Volume I, no. 02, agos.-dez. 2014, p. 59-75.
A REPRESENTAÇÃO DO CRISTO NO EXPRESSIONISMO
ALEMÃO

Etienne Alfred Higuet


Doutor em Ciências Teológica – Universidade Católica de Louvain.
Professor do PPGCR UEPA

RESUMO
O presente estudo pretende apresentar brevemente o movimento expressionista alemão do
início do século XX, especialmente na pintura. Em seguida, a partir de alguns exemplos,
introduziremos ao modo expressionista de representar a figura de Cristo. Daremos
destaque ao quadro Crucifixão de Emil Nolde, que será objeto de uma análise mais
detalhada. Enfim, retomaremos algumas reflexões de Paul Tillich, que podem constituir o
esboço de uma interpretação filosófico-teológica.
Palavras-Chave: Expressionismo Alemão, Tillich, Pintura, Filosofia, Teologia

ABSTRACT
The present study intends to briefly present the German Expressionist movement of the
early twentieth century, especially in the paint. And then, from a few examples, to
introduce means of Expressionist to represent the figure of Christ. The research focuses on
the painting "Crucifixion" by Emil Nolde. Finally, will resume some reflections of Paul
Tillichwhich may be the outline of a philosophical-theological interpretation.
Keywords: German Expresionism, Tillich, Picture, Philosophy, Theology

Introdução

O presente estudo pretende apresentar brevemente o movimento expressionista


alemão do início do século XX, especialmente na pintura. Em seguida, a partir de alguns
exemplos, introduziremos ao modo expressionista de representar a figura de Cristo.
Daremos destaque ao quadro Crucifixão de Emil Nolde, que será objeto de uma análise
mais detalhada. Enfim, retomaremos algumas reflexões de Paul Tillich, que podem
constituir o esboço de uma interpretação filosófico-teológica.

O movimento expressionista

O expressionismo foi um movimento artístico, abrangendo em particular a literatura


e as artes plásticas na Alemanha do início do século XX. Podemos falar numa “explosão
expressionista”, por volta de 1907, que atravessa a primeira guerra mundial até 1918.

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Nunca houve escola nem movimento realmente estruturado. Depois disso, o movimento
apenas sobrevive durante algum tempo. O expressionismo nasceu da angústia provocada
pelo fim de um mundo e pela aparição de uma nova era. O seu lugar de origem é uma
sociedade insolentemente capitalista, cínica e conquistadora, simbolizada pela figura do
Kaiser Guilherme II. O movimento é uma insurreição, uma revolta, cuja busca formal
expressa com toda a força o tormento interior dos artistas. Os poetas e pintores
expressionistas inventaram o estilo da angústia e a técnica do mal-estar na civilização.
Precursor declarado do expressionismo foi o quadro do norueguês Edvard Munch, O Grito,
pintado em 1893. O quadro expressa o grito trágico de horror existencial lançado numa
sociedade escandinava conformista, puritana e burguesa. O expressionismo vai usar a
culpabilidade e a agonia (o suor frio) como suportes da expressão, ampliados sem medida
pela ênfase dramática do estilo: o corpo nasceu para ser desarticulado.
Na luta entre energias espirituais antagônicas, surgiu “um imenso campo de tensão,
contendo, ao mesmo tempo, a representação apavorante da grande cidade que gera
depravação, do poder de destruição da guerra e do sonho eufórico de um homem novo com
uma visão paradisíaca de reaproximação entre o homem e a natureza” (Thomas apud Brill,
2002, p. 401).
O expressionismo leva até a caricatura a ideia romântica de uma modernidade que
cava o próprio túmulo e organiza o próprio suicídio. Fascinados e apavorados pelos ritmos
da cidade e da técnica, os expressionistas sonham com apocalipse e regeneração, e querem
destruir a marteladas o conforto burguês, sua dignidade e seus artifícios. Simbolicamente,
uma das principais revistas do movimento adota o nome Der Sturm (a tempestade, o
ataque). O principal alvo da crítica é o impressionismo (Renoir, Debussy, Maeterlinck),
que privilegia o instante receptivo da impressão provocada pela natureza. A imitação da
natureza – a mimesis aristotélica – já pertence ao passado; a abstração pode se manifestar,
como em Kandinsky.
O expressionismo germânico é essencialmente uma arte de escândalo e de dinamismo,
centrado nos temas da sexualidade, da religião e da morte. Predominam a intuição, a
imaginação, a visão, a disposição individual – projetadas sobre a natureza, o homem ou o
objeto representado. Ao dissolver o sujeito e o conteúdo das suas produções, o
expressionismo inaugurou uma nova era, a época da abstração e de uma arte transgressora
dos seus limites. Transparecem o caráter autobiográfico, a antipatia pela sociedade

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burguesa e a simpatia pela humanidade, a preocupação pelos problemas morais, religiosos
e eróticos (Cfr. Bindé, Eisner, Richard, 2012).

A pintura expressionista alemã

O expressionismo insiste no caráter profundamente primitivo de todo ser humano,


especialmente na sua relação com o mundo e a natureza. Surge a partir daí uma verdadeira
revolta estética com conotação social. Esta componente artística e social está na base do
expressionismo, apesar do mesmo se dividir em vários movimentos, todos marcados pela
mesma coragem de denunciar o absurdo. Vamos mencionar os dois principais.
O movimento da Ponte (Die Brücke) nasce em Dresden em 1905 e reúne artistas como
Kirchner, Heckel, Schmidt-Rottluf e Nolde, entre outros. Reivindica um estilo primitivo na
linha de Gauguin. Tudo está na sensibilidade, na emoção e na ideia, numa espécie de
ebriedade visionária e criadora. “A ponte significa a passagem de uma beira à outra.
Permite a transgressão coletiva para outro território, até um alhures que é o da ruptura com
todas as imposições” (Cottin, 1993, p. 87). Trata-se de atrair todos os elementos
revolucionários e fermentá-los. O movimento prolonga assim a crítica niilista e inscreve-se
na perspectiva nietzschiana da passagem, da ponte entre o humano e além do homem.
Aliás, a palavra Brücke procede do Zaratustra. Os pintores do grupo die Brücke queriam
fazer uma arte para o povo, permitindo que ele se pense de modo diferente da massa
obrigada a obedecer aos detentores dos meios de produção. A redução das formas a sua
mais simples expressão, especialmente na xilogravura, reforça e ressalta uma estranha
presença do numinoso na obra. O caráter primitivo da expressão remete à essência de toda
coisa e a si mesma (Cfr.Toniutti, 2005, p. 21-24).
O movimento do Cavaleiro azul (Der blaue Reiter) desenvolve-se em Munique em
1909, com artistas como Kandinsky, Marc, Münter e Jawlensky. A pintura deles tende à
abstração, mas fundamenta-se em bases espirituais e filosóficas que anunciam uma força
estética revolucionária internacional. Em Kandinsky, o sentimento interior da expressão
permite uma tendência abstrativa sempre mais forte. O ponto de partida está no quadro do
mesmo pintor, que representa São Jorge destruindo o dragão. O cavaleiro simboliza a
figura espiritual que liberta o mundo do materialismo e do positivismo. A cor azul, na linha
do romantismo, simboliza, para Franz Marc, verdades ou realidades tão essenciais como o

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dia, Deus, a vontade humana ou o conhecimento do espírito. O Cavaleiro azul tende para o
cósmico e o divino, expressando uma vida espiritual que une misticismo e intuição
humana. Reivindica-se uma volta à autenticidade. Juntando cores agressivas e formas
sensuais, o grupo ressalta a primitividade do ser humano e a sua precariedade, a sua
angústia da vida e do destino. O grupo apreende a realidade como ela é, com seu
pessimismo e seu sofrimento, e está à procura de um sentido novo e de perspectivas
melhores, contestando assim a ordem moral burguesa autônoma. Acredita num mundo
repleto do belo, do estranho, do misterioso, do terrível e do divino. A nova arte seria o
símbolo e a expressão de um novo tipo de ser humano. Pela dimensão espiritual, o ser
humano está sendo reconduzido à sua essência (Cfr. Toniutti, 2005, p. 24-26).
De modo geral, as obras expressionistas “possuem uma expressividade pictórica
simples e direta, cujo vocabulário é formado de cores puras e fortes, superfícies grandes,
pinceladas expressivas de forte tensão, e de uma deformação formal extremamente
expressiva que, às vezes, chega perto da caricatura. (...) Os expressionistas recusam a arte
sensual do impressionismo, mas dele aproveitam os efeitos sensuais da luz e da cor, que
permitem um conteúdo de forte expressividade e emotividade das cores” (Thomas apud
Brill, 2002, p. 401). Como em Gauguin, o uso da cor é expressivo e simbólico. Os efeitos
expressivos correspondem à angústia metafísica característica da cultura alemã. Eles
“visam atuar sobre o sentimento, causar tensões psíquicas e visuais, dar um efeito místico e
criar um espaço simbólico” (Brill, 2002, p. 393).

O expressionismo e a religião
O misticismo e a busca do sobrenatural tiveram muito importância desde os
primórdios da arte alemã. Depois do eclipse iluminista, a religião voltou na arte do século
XX. Ela simboliza o sofrimento humano, de modo apocalíptico ou místico. Para Kasimir
Edschmidt, “todo espaço da arte expressionista torna-se visão e tudo se relaciona com a
eternidade” (Edschmidt apud Brill, 2002, p. 390). Segundo Giulio Carlo Argan, “a
ascensão e sublimação do princípio materialista, para unir-se com o espiritual, determina o
dinamismo, a essência dionisíaca, orgiástica e trágica da imagem, e seu duplo significado:
do sagrado e do demoníaco” (Argan apud Brill, 2002, p. 402).
A desconstrução da forma não está apenas a serviço de uma contestação dos valores
sociais e burgueses do mundo ocidental, mas é também e, sobretudo, a ocasião de uma

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busca espiritual e mística. A forma e as cores expressam a presença imaterial de Deus no
mundo. É o caso, em particular, dos pintores do Der blaue Reiter, fortemente influenciados
ao mesmo tempo pela sensibilidade russa ortodoxa de Kandinsky e Jawlensky, e por
relações com os meios antroposóficos e teosóficos (Cf. Kandinski, 1911). Em Marc, os
imensos cavalos azuis e amarelos, fundamentados num uso simbólico e sofisticado da cor,
exprimem o divino, esse alhures que emana do puro sentimento. Por outro lado, surge uma
interioridade espiritualizada, na forma de um anti-naturalismo transcendental. Em
Kandinsky, a busca espiritual está vinculada a uma desmaterialização do objeto. A
desmaterialização da realidade visa a tornar o transcendente visível pelas formas o os
símbolos visuais. Trata-se de chegar a uma sensação da essência das coisas, a uma
abstração. O que se apreende não é necessariamente o próprio Deus, mas, antes, o traço da
sua fugidia assinatura. Para estes pintores, pode-se falar em “escatologia visual”: eles
manifestam a esperança de presenciar o advento cósmico de uma era espiritual (COTTIN).

A representação do Cristo

De um modo geral, pode-se falar em desfigurações de Cristo na arte do século XX.


A figura do Cristo sobrevive ao desaparecimento da arte cristã (pelo menos na Europa) e
mesmo ao fim do cristianismo enquanto religião oficial ou majoritária, inspiradora de
grandes correntes filosóficas e culturais. Mas as representações de Cristo estão, na sua
imensa maioria, em tensão ou defasagem em relação tanto com o dogma cristão quanto
com a iconografia cristã. Em muitos casos, a iconografia cristã está sendo subvertida em
vista de uma crítica violenta do cristianismo.
Segundo Jérôme Cottin, o conceito de desfiguração pode evocar três fenômenos: a
emancipação destas imagens de Cristo em relação com as imagens herdadas da iconografia
cristã, especialmente o modelo do ícone; no sentido próprio do termo, o Cristo da
modernidade estética é muitas vezes feio, com o rosto repugnante e vulgar, muito longe do
belo Deus das catedrais góticas; enfim o rosto de
Cristo desfigura-se à medida que sai de si mesmo, torna-se outra coisa que um rosto,

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dissolvendo-se ou ampliando-se num espaço aberto, não visível, sem imagens e sem rosto
(é o caso das imagens abstratas, não figurativas do Cristo) (Cottin, 2008, p. 27).1
Durante e depois da Grande Guerra (1914-18), as novas imagens do Cristo
aparecem num contexto de revolta contra o absurdo do mal e o escândalo do sofrimento.
Trata-se do mal e sofrimento causado pelos próprios humanos uns aos outros, mais do que
o mal como enigma filosófico e existencial. Revoltados contra a sociedade guerreira e
burguesa, os artistas alemãs criticam as instituições e, entre elas, uma igreja instalada no
mundo, de modo demasiado confortável, e que não fez nada para impedir a morte atroz de
milhões de homens jovens. O Cristo representado torna-se vítima ou acusador, carregando
as marcas da tragédia histórica ocorrida. A nova representação contrasta com a mentira da
imagem tradicional de um Cristo tão manso e sábio, tão covarde quanto a igreja que não
fez nada para opor-se à guerra e abençoava os canhões.
Apresentamos, a seguir, três exemplos: o Cristo tremendum et fascinans de Karl
Schmidt-Rottluff ; a pintura minimalista do rosto, de Alexei Jawlenski ; o Cristo visionário
de Emil Nolde.2
Karl Schmidt-Rottluff (1884-1976) realizou, em 1918, uma série de nove
xilogravuras intitulada Christusmappe. Os nove temas remetem aos relatos dos
Evangelhos, mas também ao desastre da guerra, como se dissesse: “Onde estavas, Cristo,
quando cada um caía debaixo das balas?”. Cristo situa-se deliberadamente do lado das
vítimas, aquelas que pedem contas das responsabilidades por quatro anos de massacres.
Marca da recusa da estética tradicional, uma gravura representa o Cristo de frente, com o
rosto totalmente desfigurado, como se tivesse recebido estilhaços de bombas. A cabeça
parece uma máscara; nariz cubista, olhos assimétricos. Do tradicional, sobram apenas a
barba e os cabelos longos, os raios luminosos que saem da cabeça de Cristo. Referência à
transcendência, os raios podem representar também a trajetória das bombas e das armas
dirigidas contra os soldados nas trincheiras. O estilo expressionista, feito de traços
grosseiros e de linhas quebradas, corresponde à mensagem do artista: este sobrevivente das
trincheiras, cuja vida foi quebrada para sempre, é a verdadeira imagem de Cristo. Para
tornar a mensagem mais explícita ainda, o artista acrescentou duas palavras dentro da
gravura: no meio da testa de Cristo, como uma ferida sangrenta, a data 1918; e, em baixo

1
Assinalemos a influência marcante nos artistas do século XX do retábulo de Issenheim de Matthias
Grünewald (que analisamos num estudo anterior, publicado na revista Correlatio). Ver: Higuet, 2009.
2
O leitor não encontrará dificuldades para acessar as imagens na Internet.

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da gravura, a pergunta Ist euch nicht Kristus erschienen? (Cristo não apareceu para vocês?)
(o K significaria que o pintor não queria ser identificado como um pintor cristão). O
esfacelamento das formas harmônicas permite construir um rosto de Cristo duro e cheio de
força. No nível do conteúdo, a cabeça do Cristo expressa a experiência de que, quando
tudo fica quebrado, há, ao mesmo tempo, perda de sentido, triunfo do caos, mas também
possibilidade de abertura à transcendência, revelação de uma esperança oculta (Cottin,
2008, p. 38).

Cabeça de Cristo - http://en.wahooart.com/Art.nsf/O/8YDT23


Pintor russo naturalizado alemão, Alexei von Jawlensky (1864-1941), participou do
grupo Der blaue Reiter, sendo fiel companheiro de Kandinsky. Concentra-se
essencialmente no rosto humano, que se torna vetor de um sentimento religioso profundo.
Reduz ao extremo os meios de expressão pictórica, até chegar a pinturas seriais
minimalistas. Os rostos são sempre representados de frente, primeiro, com olhos abertos, e
depois fechados. O nosso olhar encontra uma ausência de olhar, como para indicar que a

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verdadeira imagem só pode ser interior. Com o tempo, as figuras, formadas por linhas e
volumes geométricos, encarnam cada vez mais princípios abstratos: emoção e jubilação,
sensualidade e abstração.
A partir de 1917, reduz o rosto humano a uma Ur-form, uma forma primitiva. O
nariz forma o eixo central, vertical, e os olhos o eixo horizontal. Desenha-se assim uma
cruz, sublinhada pelo semicírculo ou triângulo do contorno da cabeça. A forma originária
representa um rosto único atrás da multiplicidade dos traços humanos. Espiritualmente, a
simplificação estética manifesta a busca espiritual do verdadeiro rosto, da imagem de Deus
que Cristo realiza em nós. Nas últimas obras, as Meditações, Jawlensky reencontra a antiga
tradição dos ícones, que ele conheceu na Rússia, meditando sobre o mistério de Cristo.
Enquanto estas imagens humanas tornam-se imagens divinas, o rosto de Jesus, não mais
marcado pela angústia existencial, torna-se o rosto de Cristo, glorificado e ressuscitado.
Além da modernidade da forma e da expressão colorida, as Meditações constituem uma
oração pintada, combinando numa infinita variação de cores, tons, matéria e movimento os
dois temas privilegiados que são para ele o rosto e a cruz. Pode-se falar em crucifixão do
rosto: o rosto se reduz a duas linhas que se cruzam e formam uma cruz: a linha horizontal
dos olhos e das sobrancelhas e a linha vertical do nariz. A boca e o queixo formam, às
vezes, uma terceira linha, menor, que lembra a segunda barra transversal da cruz ortodoxa.
Jawlensky nunca deixou de procurar vínculos entre a linguagem da fé e a linguagem da
arte. Ele tinha a convicção que a grande pintura só era possível junto com um sentimento
religioso, que só poderia ser transmitido pelo rosto humano. Precisava restituir pela forma
e pela cor o que tinha de sagrado nele. Para ele, uma obra de arte é Deus visível e a arte é
nostalgia de Deus (Cottin, 2008, p. 50-53).

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Rosto do Salvador – renúncia, 1921. http://en.wahooart.com/Art.nsf/O/8YDT23
Emil Nolde (1867-1856) pinta um Cristo visionário e explora, a partir daí, uma
pintura extática, feita de oposições sobrenaturais entre cores violentas e contrastadas. A
intensidade das cores e da luz torna-se expressão da intensidade da emoção do pintor, num
encontro com o Deus vivo, o Cristo dos Evangelhos. A força simbólica das cores é
acompanhada pela deformação das formas naturais, aumentando a expressividade. Sua
emoção se manifesta em distorções fortes que provocam deformações, desfigurando
modelos e paisagens, com cores de uma intensidade estridente (Brill, 2002, p. 412).
Animado por uma fé profunda, Nolde dizia sentir Deus no próprio sentimento, ardente e
santo como o amor de Cristo. Nele, a expressão torna-se confissão. É o que lhe permite
unir Deus e a criação em sua obra. Reconhece-se em permanência, na sua pintura, a
vontade de ressaltar, antes de tudo, as forças vitais em ação no universo, tanto na natureza

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quanto em todo o ser vivo. O uso de cores vivas em contraste violento tenta traduzir este
vitalismo que era toda sua filosofia.
Em 1912, Nolde resolve realizar a Vida de Cristo, representada em nove episódios.
O pintor conta que estava passando por uma profunda crise mística: “Estava guiado por um
desejo irresistível de representar a profunda espiritualidade, religião e interioridade, mas
sem muita vontade, saber ou reflexão” (Nolde apud Centre d’enseignement). O pintor
concebeu este quadro à imagem de um retábulo medieval. O painel central da crucifixão,
assim como o painel da ressurreição, são certamente inspirados no quadro tão expressivo do
retábulo de Issenheim, de Matthias Grünewald. Na crucifixão, o corpo emaciado do Christ, com as
costelas extraordinariamente aparentes, exsuda lágrimas verdes. O sangue, que corre na sua testa,
aparece em eco no lençol vermelho que envolve os seus quadris. Os traços das personagens são
rudes, grosseiros, vigorosos e angulosos, beirando o grotesco ou o carnavalesco. O rosto de Cristo,
embora participe da humanidade das outras personagens, apresenta algo irreal e místico, por causa
da interpenetração do amarelo no vermelho, do verde no vermelho (Cottin, 2008, p. 58-59;
Richard, 2012).
Uma breve análise semiótica fará aparecer algumas características do quadro. A
composição e os motivos figurativos são tradicionais: Jesus, os dois ladrões, as três Marias,
a inscrição INRI, os soldados. Nota-se a ausência de João Evangelista e, por conseguinte,
da relação afetiva entre Jesus, João e Maria. Ninguém parece realmente envolvido, nem
mesmo Jesus, a não ser a primeira mulher, que apresenta um ar de desolação, com os
braços e as mãos retorcidos. A impressão geral é de abandono, de indiferença, de solidão,
de falta de esperança, por exemplo, na figuração dos soldados, absorvidos pelo sorteio das
vestes de Jesus nos dados. Todos os personagens são deformados, conotando uma ausência
de realismo. As figuras são simplificadas, centradas no sofrimento. O acento está nas cores
que provocam a emoção. O fundo poderia lembrar, de um lado, um céu azul escuro,
soturno, como no quadro de Grünewald, do outro lado, um vermelho escuro que manifesta
uma ausência de saída, de futuro. O fundo obstrui qualquer profundidade. Não há fonte de
luz exterior à cena. As cores das mulheres e do bom ladrão são as mesmas de Jesus,
realçando a identidade entre eles. A atenção se volta para uma mulher de cabelos negros e
vestido branco, talvez Maria Madalena. O corpo do bom ladrão está em amarelo, como o
corpo de Jesus, talvez uma conotação de glória e santidade. A ausência de signos religiosos
tradicionais, como o cálice recolhendo o sangue de Jesus e a árvore da vida, manifestam
uma profanização da representação e um distanciamento em relação à tradição cristã. A

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ausência de João Batista, presente no quadro de Grünewald, tira da representação qualquer
caráter profético ou didático.
A figura de Jesus se destaca no primeiro plano. Ele é proporcionalmente maior que
as outras personagens. Seus braços e suas mãos desmesurados reforçam a impressão de
sofrimento e parecem se abrir sobre o mundo. O seu olhar é mais interior, mostrando a
solidão de Jesus frente ao próprio destino. Vê-se que o pintor rejeita as leis da
representação e do olhar único, herdadas do Renascimento, assim como as leis de
submissão da representação visual à representação do espaço. As personagens parecem
flutuar no espaço, o que traz uma nota onírica e imaginária. As cores, diferentes das cores
“naturais”, quebram a expectativa dos espectadores.
As cores vivas contrastadas encarregam-se de produzir no espectador uma emoção
semelhante à emoção muito pessoal, ressentida pelo pintor frente à sua obra. Aqui, frente à
história de Jesus, corajoso e perseguido. O cabelo e os lábios vermelhos do Cristo
pretendem provocar esta violente emoção. Além da tempestade de cores, vale notar a
opção deliberada de não representar as personagens bíblicas de modo conforme aos
cânones da beleza clássica. Voluntariamente, o artista dá a suas personagens “o tipo judeu,
conforme à verdade” (Nolde apud Bethmont-Gallerand, 2008), segundo os próprios termos
de Nolde. Nisso, o pintor segue Rembrandt, que usava um jovem rabino como modelo do
Cristo. A análise de fotografias que representam o pintor revela a proximidade entre o
rosto de Nolde e o rosto de Cristo, que ele pinta ruivo, inundado pelo ouro amarelo vivo,
característico de suas personagens religiosas. Neste quadro melancólico, sente-se o esforço
do artista de reencontrar as raízes de uma religião primitiva, próxima do ser humano.
Apaixonado pelo humano, Nolde manifesta a vontade real de sondar as profundidas
místicas daquele que continua sendo um “ser ao mesmo tempo divino e humano”.
O políptico foi rejeitado por todos, primeiro pelas autoridades civis e políticas,
depois pelas igrejas luterana e católica alemãs. A estética era excessivamente inovadora, as
cores demasiadamente vivas, a expressão radical demais. Foi finalmente recusado pelos
nazistas, que denunciaram a obra como arte degenerada (entartete Kunst).

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A vida do Cristo 1911 , Stiftung Seebüll Ada und Emil Nolde, Neukirchen,
Allemanha, © Nolde Stiftung-Seebüll
http://www.wikipaintings.org/en/emil-nolde

Paul Tillich e o expressionismo

Para o filósofo e teólogo Paul Tillich, as criações artísticas expressam algo além
delas, elas remetem ao fundamento incondicionado do ser, elas revelam algo do
fundamento divino de todas as coisas. Através de uma experiência do sagrado, que vai
além da experiência de qualquer realidade cotidiana, as formas artísticas, tanto seculares
quanto religiosas, fornecem as chaves da interpretação da existência humana. Quando

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contempla uma obra pictural, o ser humano é capaz de romper a superfície das formas e
penetrar, ainda que fragmentariamente, em seu conteúdo substancial, no poder espiritual
que pulsa nelas (Cf. Calvani, 1998, 75-77).
Tillich deu particular importância ao expressionismo como arte profundamente
religiosa. Na conferência Art and Ultimate Reality, proferida no Museu de Arte Moderna
de New York em 1959, Tillich mostra como a religião de tipo extático-espiritual tem seu
correlato no expressionismo. Ela é de caráter dinâmico, que vai além da aparência das
coisas e pessoas, sendo, ao mesmo tempo, realista, mística e de cunho profético. Ou seja,
ela simultaneamente critica o mundo, expressando suas contradições, submerge no poder
da Realidade Última, rompendo a prisão das formas, e antecipa possibilidades de ser (Cf.
Tillich, 1987, p. 139-157). Ele entendia o expressionismo, não apenas como corrente
situada na Europa do Norte, especialmente na Alemanha, mas também como tipo, que
pode ser encontrado em qualquer período da história da arte (Toniutti, 2005, pp. 17-30). É
o caso do quadro Guernica de Picasso e da crucifixão de Grünewald (século XV). A
respeito da última, Tillich escreveu: “As horríveis chagas no corpo (do Cristo) são uma
antecipação do expressionismo moderno. Não é uma cópia naturalista nem uma distorção,
mas uma expressão artística da verdade a respeito do que tinha acontecido no Gólgota”
(Tillich, 1987, p. 222).
Tillich não interpretava o expressionismo apenas como um movimento subjetivo,
mas como um estilo que, pela dissolução das formas individuais, buscava uma expressão
metafísica objetiva, evocando o abismo do ser, em novas linhas, cores e formas. Nessa
nova forma de pintura, ele via uma transparência mística que questionava as formas
autossuficientes próprias do idealismo em sua vertente impressionista. O expressionismo
vinha criticar a própria arte religiosa da sociedade capitalista, que reduz os símbolos
religiosos tradicionais ao nível da moralidade da classe média e os esvazia de seu caráter
transcendente e sacramental (Calvani, 1998, p. 91).
Na arte expressionista, o incondicionado se deixa apreender na ordem da
experiência mística. A atmosfera mística, onde se experimentou o fundamento e o abismo
do ser nas coisas e através delas, pode ser sentida no expressionismo como vontade
artística de renunciar à forma das coisas para poder expressar o seu sentido profundo
(Toniutti, 2005, p. 161). As formas extáticas subjetivas do expressionismo mantém uma

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estreita relação com a profundidade abissal e o poder das origens que constituem o ser
humano.
Até o que se manifesta na forma do terrível ou do horror tem sentido. Mais ainda,
até o que parece não ter nenhum sentido revela-se portador do vazio pelo qual toda coisa
sente-se carregada.
No artigo Existentialist Aspects of Modern Art, Tillich distingue quatro categorias
de obras de arte, em relação com a religião. O pintor Emil Nolde aparece na quarta
categoria: estilo religioso, conteúdo religioso. “Nolde, um expressionista da escola alemã,
como outros expressionistas alemães, tentou renovar, por meio de formas expressionistas
que eles haviam criado, os símbolos religiosos do passado. Algumas vezes, eu me
impressiono com eles – mas, em muitos casos, sinto que não são bem sucedidos” (Tillich,
1987, p. 99). Esta última forma é geralmente chamada de expressionista, porque se trata da
forma na qual a superfície é rompida para expressar algo mais profundo. O elemento
expressivo representa o absoluto diretamente, porque implica na transformação radical da
realidade cotidiana. O estilo expressionista privilegia símbolos que expressam a
negatividade da situação humana, como o símbolo da cruz. Trata-se do elemento
protestante na situação presente. Não se tenta encontrar soluções prematuras. Ao contrário,
a situação humana com seus conflitos tem sido representada artisticamente com coragem.
Ao ser expressa, já é transcendida. Experimenta-se o sentido no deserto da falta de sentido
(Cf. Tillich, 2009, p. 120-121). O princípio protestante sublinha a distância infinita entre
Deus e o ser humano, com a separação do nosso ser verdadeiro e a escravidão às forças
demoníacas de autodestruição. Só podemos superar essa situação aceitando com coragem a
reunião com Deus, na qual somente Deus toma a iniciativa (Tillich, 2009, p. 114).

Conclusão

Tillich se referiu várias vezes a Nolde durante o período alemão: “Gosto muito de
Nolde e o conheci pessoalmente. Mas eu diria que, quando tentou pintar temas religiosos,
só podia fazê-lo de um modo que deve ser chamado de maneirista-extático” (Tillich, 1987,
p. 39). Num outro texto, Tillich chama o estilo expressionista de pré-religioso e menciona
Nolde como um dos principais representantes: “Paixão e êxtase são os meios internos de
acessar a tradição cristã: a dupla experiência do ser humano atual, da humanidade atual,

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isto é, uma espiritualidade fortemente intensificada, mas sem o sentimento da liberdade
que é reconciliada com o mundo” (Tillich, 1987, p. 49). Já no período americano, em Art
and Ultimate Reality, Tillich diz, a respeito do quadro Pentecostes, de Nolde: “Tenho que
confessar que alguns dos meus escritos derivam precisamente deste quadro, e sempre
aprendi mais das pinturas que dos livros de teologia” (Tillich, 1987, p. 151). Em Religious
Dimensions of Contemporary Art, Tillich escreve: “É o expressionismo alemão que me
introduziu pessoalmente no mundo das artes visuais. Esta escola possui um caráter extático
e espiritual, como no quadro de Emil Nolde Cristo no meio das crianças. O seu uso
poderoso da cor expressa uma espiritualidade extática. Além disso, este quadro
exemplifica a ruptura do encontro habitual com a realidade e a falta de uma perspectiva
tridimensional, tão característica do estilo expressionista” (Tillich, 1987, p. 178) Essas
observações valem também para a Crucifixão analisada acima.

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KABBALAH E A MÍSTICA NA HISTÓRIA DAS RELIGIÕES
Religiões e Mística no Pensamento de Gershom Scholem

Manoel Ribeiro de Moraes Junior


Pós-Doutorando no CeSoR (EHESS/CNRS)
Capes. BEX 0640/15-8
manoelmoraes@uepa.br

RESUMO
Este trabalho explora resumidamente as idéias de Gershom Scholem sobre a possibilidade
de um método de investigação histórica dos movimentos judaico-messianicos.
Palavras-chave: História das Religiões, Cabala, Messianismo, Mística.

ABRSTRACT
This briefly artic explores the Gershom Sholem’s ideals about the possibility of a method
of historical about Messianic Jewish Movements.
Keywords: History of Religion, Kabbalah, Messianism, Mistic.

Introdução

Ernest Bloch, György Lukacs, Walter Benjamin, Franz Kafka, Martin Buber, Franz
Rosenzwieg e Gershom Sholem compõem em seus respectivos mundos intelectuais de uma
dimensão fundamentalmente que consubstancia o judaísmo e a erudição estético-filosófica
de raízes românticas. Esta intercessão intelectual foi capaz de frutificar temas e motivos de
pensamento-crítico numa era em que a humanidade andava por um fio tênue entre a vida e
a morte. Em conjunto, estes pensadores radiografaram a negatividade de tudo aquilo que a
modernidade iluminista conclamou existente no seu advento moderno, burguês e
capitalista, a saber: o iluminismo racional, a liberdade, a fraternidade e a igualdade. Estes
pensadores formaram um círculo institucional imanentemente integrado, mas não
programado no horizonte da Europa Central (Mitteleuropa). Esta ligação espiritual, no bom
termo de Hegel, antecedeu e transcendeu a quaisquer ligações institucionais. Ela foi um
compartilhamento nem sempre silencioso de intuições e de sentimentos intelectuais que
fizeram surgir um universo cultural entre eles. De acordo com Löwy,

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estes autores foram bastante estudados, mas até agora não se suspeitou jamais que
seu pensamento pudesse ter uma dimensão fundamental comum. Parece paradoxal
e arbitrário agrupar sob um mesmo teto personalidades tão diversas e tão diversas e
tão afastadas umas das outras. Constatamos inicialmente que, sem constituir um
grupo no sentido concreto e imediato da palavra, encontram-se todavia ligados
entre si por uma rede social complexa e sutil: relações de amizade produnda e/ou
afinidade intelectuale política que unem Gustav Landauer e Martin Buber,
Gershom Scholem e Walter Benjamin , Ernst Bloch e Györg Lukács, Martin Buber
e Franz Rosenzweig, Gustav Landauer e Ernst Toller; Scholem é atraído por Buber
e Landauer, Buber corresponde-se com Kafka, Bloch e Lukács; Erich Fromm foi
aluno de Scholem. No núcleo dessa trama, na intersecção de todos os fios desse
tecido cultural, contendo em si os pólos mais opostos, Walter Benjamin, o amigo
íntimo de Scholem, ligado a Ernst Bloch, profundamente influenciado por Lukács,
Rosenzweig e Kafka, leitor crítico de Landauer, Buber e Fromm” (LÖWY, 1989,
27).

Ainda segundo Löwy, estes pensadores quase todos nascidos no final do último quarto
do século dezenove, recorreram simultaneamente às fontes de pensamento romântico-alemã
e judaico-messiânico (LÖWY, 1989, 09). Eles exprimiam uma “esperança cabalista” pelo
advento do Tikkoun (Erlösen: restituição, reparação, salvação) como irrupção de um mundo
totalmente outro. Não era por menos, as suas trajetórias intelectuais expressam-se em meios
aos diversos massacres provocados pelas configurações políticas européias acontecidas no
período circunscrito às duas grandes guerras. É neste sentido que a esperança pelo Tikkoun
ascende um sentimento crítico à história (Geschichte), pois suas cidadanias foram vítimas
das políticas recorrentes e suas individualidades foram tragadas pela história.
A grandeza do pensamento de Gershom Scholem pode ser apreciada em seus
trabalhos de reconstrução histórica do pensamento e da mística judaica. Considerando a
máxima epistemológica de J. Habermas, que todo conhecimento é orientado por um
interesse, podemos adiantar que a sua “historiosofia” representa uma decodificação da ação
religiosa no espaço social teuto-judaico, como resistência político-intelectual às
simplificações da burguesa Ciência do Judaísmo (Wissenschaft des Judentums) – escola
histórica criada por judeus acadêmicos, surgida na Alemanha do século XIX. Esta
historiografia considerava as místicas judaicas como movimentos periféricos ao judaísmo
predominante. Ora, por serem variações secundárias, as ponderações destes historiadores
sobre as incursões dos movimentos místicos e apocalípticos, os excluíam de qualquer
identidade possível com o judaísmo tradicional. A crítica de Scholem a estes métodos
tradicionais de interpretação da religiosidade judaica também se aplica às ciências que
tratam da religião. Scholem acredita que as Ciências envolvidas com o religioso devem

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aprimorar seus métodos com a finalidade de delimitarem o horizonte teológico do objeto
investigado e suas sincronias lingüísticas, ambas distantes de qualquer pretensão tradicional
de objetivação científica. Por isso, este artigo procurará expor algumas idéias de Scholem a
partir de suas idéias sobre método e religião.

História Investigativa do Religioso

Ao criar uma disciplina sobre a Cabala, Scholem promoveu na própria historiografia


deste século, uma revolução ao tornar relevantes para a sua investigação do religioso
aspectos não-racionais dos movimentos que estudava. Esta insurreição acadêmica contra a
Ciência do Judaísmo justifica-se na medida em que Scholem percebe a maneira como os
historiadores judeus procuravam ajustar-se às exigências espirituais positivistas do mundo
alemão. Para o historiador da mística judaica, é possível entender como a historiografia da
religião judaica predominante buscava modelar o percurso religioso e reflexivo do
judaísmo aos gêneros acadêmicos e sociais da Alemanha – uma tentativa de aculturação
intelectual ao modus vivendi da burguesia alemã e que, por isso, assumiu uma trajetória
apologética, assimiladora e enrijecedora de um judaísmo que, outrora, era originariamente
dinâmico. É por isso que historiografia de Scholem é também uma resistência à
Wissenschaft des Judentums e à historiografia tradicional.
A aculturação do judaísmo ao mundo alemão provocou um racionalismo exagerado
dos conteúdos e dos valores da vida e da religião. Por isso, afirma David Biale, que

preocupados em ingressar no <salão> intelectual da Europa do século XIX,


e conscientes de que suas portas só se lhes abririam sob princípios
racionalistas, os intelectuais judeus enfatizavam os princípios racionalistas
do judaísmo e evitavam escrupulosamente mencionar o que se passava no
porão. O irracionalismo e misticismo eram varridos para debaixo do tapete,
como também as tendências revolucionárias ou apocalípticas no
messianismo judaico. A história social era inteiramente ignorada no anseio
de retratar o judaísmo como uma religião intelectual. A Ciência do
Judaísmo escreveu uma Geistgeschichte, uma <história do espírito> na qual
o Geist, espírito, era predominantemente racional”. (Biale, D., 2004: XV).

Aliados a uma filosofia da história racionalista e progressista, os historiadores


judeus do século XIX acreditavam numa possível ascensão moderna do judaísmo. Esta

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historiografia representava também, de certa maneira, uma militância iluminista que
procurava no saber e na conduta acadêmica, a remoção no judaísmo e de em sua história,
das inspirações irracionais ou místicas que se contrapunham às formas apolíneas do
esclarecimento alemão do século XIX. É contra as inspirações assimilacionistas e contra as
metodologias empregadas pelos historiadores judeus, que G. Scholem reabrirá o “palco
histórico do judaísmo” a partir de elementos construtivos e destrutivos, em detrimento dos
intelectuais judeu-burgueses que enalteciam a história moderna como aquela que conduz
um olhar ao passado, mas sempre fiel ao ideal de progresso harmonioso.
Alinhado a uma intuição nietzschiana, Scholem reage contra os arquétipos apolíneos
de ciência, arte e moral/política/direito ensimesmada nos princípios da ordem burguesa. Ele
denunciava a historia e muito mais a historiografia do judaísmo, como saberes que
reverenciavam absolutamente o status quo, ou seja, a história aparecia como uma ciência
ideológica enquanto saber iconográfico, monumentalista, que combinava idéias
nacionalistas e burguesas. Com este diagnóstico metodológico, Scholem procurou expor a
historiografia alemã como saber que favorecia uma normalização do passado em favor da
ordem dominante. À esteira desta orientação, a historiografia judaica racional estava
condenada à simbiose com as imagens heróicas do pensamento dominante consolidada no
palco intelectual do século XIX e no início do século XX (quer na forma do nacionalismo
assimilacionista dos judeus alemãs, quer na forma do nacionalismo chauvinistas dos
sionistas).

Não constitui título de glória para a Ciência do Judaísmo o fato de os


trabalhos dos poucos autores realmente informados sobre o assunto jamais
terem sido impressos, e em alguns casos nem mesmo preservados, uma vez
que ninguém se interessava sobre eles. Tampouco temos razão para estar
orgulhosos do fato de que a maior parte da idéias e pontos de vista que
demonstraram uma compreensão profunda do mundo da cabala, fechado
como estava para o racionalismo dominante do judaísmo do século XIX,
fossem expostos por eruditos cristãos de inclinação m´sitica, como o inglês
Arthur Edward Waite atualmente e o alemão Franz Losef Molitor no século
passado. É pena que a sutil intuição filosófica e o poder de captação desses
estudiosos errassem o alvo, porque eles careciam de todo senso crítico em
relação a dados históricos e filológicos neste domínio,e portanto falhavam
completamente ao se defrontarem com problemas de caráter factual
(Scholem, G, 1995: p. 4).

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Categoricamente, G. Scholem encontra o conceito dämonisch de Goeth, o
irracionalismo criativo, o ideal da força propulsora capaz de criar um futuro alternativo não
estanque. Desta maneira, de iconográfica a historiografia passa a ser anarquista: ao invés de
celebrar os marcos genealógicos da ordem opressora dominante, a historia deveria
alimentar-se das forças racionais e irracionais das ações humanas. Nenhuma metodologia
deve erguer uma compreensão do passado apenas a partir de ícones reinantes, pois, desta
maneira, abre-se somente a porta de um saber dogmático teleológico e político-apologetico.
Uma história das religiões, tal como a história do judaísmo, deve orientar-se a partir de
dentro: na dinâmica oculta das religiões, contemplando as suas contradições, a sua
existência dialética. Porém, Scholem não recai na difícil e suicida tarefa intelectual da
negação hiperbólica, tal como aquelas teorias niilistas e/ou pós-modernas que, futuramente,
recaem num emaranhado de contradições teoricamente paralizantes. A história não deveria
ser uma rejeição dos eventos e das narrativas pretéritas, mas uma apropriação dialética do
passado. A sua história “contra-história” do judaísmo reconhece a necessidade de uma
redução afirmativa do passado, porém, alinhavada a um constante criticismo revisionista:

A contra-história é um tipo de historiografia revisionista, mas, enquanto o


revisionista propõe uma nova teoria ou descobre novos fatos, o contra-
historiador transvalora velhos fatos. Ele não nega que a interpretação
histórica de seus predecessores seja correta, como fazem os revisionistas,
mas, enquanto o revisionista propõe uma nova teoria ou descobre fatos
novos, o contra-historiador transvalora velhos fatos. Ele não nega que a
interpretação histórica de seus predecessores seja correta, como fazem os
revisionistas, mas rejeita que seja completa; ele afirma a existência de uma
história “dominante” ou “oficial”, mas crê que a força vital reside numa
tradição secreta. Para Scholem, a Cabala, uma tradição recalcada e
esotérica, constitui a chave da contínua vitalidade do judaísmo. Enquanto o
século XIX via o misticismo e o mito como obstáculos na estrada do
progresso da história judaica, aos olhos de Schoelm eles constituem as
forças que o movem. (Biale, D., 2004: XX).

Ora, a reorientação metodológica de Scholem baseia-se no princípio de que é


preciso criar habilidades de entendimento a um objeto do qual se pretenda tornar alvo da
reflexão historiadora pois, do contrário, a sua compreensão está fadada cada vez mais ao
engodo – ainda mais, quando este objeto se distancia da consciência contemporânea,
quotidiana, do pesquisador. Desta maneira, não basta os historiadores das religiões – no

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caso de Scholem, da história do judaísmo – o recurso técnicos da filologia, é necessário
também que o especialista se aprimore no domínio de seus objetos. Porém, como o
historiador pode lhe dar a mística? Como investigar expressões e formulações litúrgicas e
literárias em geral, que pretendem o inefável ou expressarem o incomunicável? Scholem
não pretende fazer da história uma religião, uma mística1. Por isso, afirma Löwy que
Contrariamente a Rosenzweig, Gershom (Gehard) Scholem não é teólogo,
mas historiador. Sua obra representa não apenas um monumento impar de
historiografia moderna, como também lança um novo olhar sobre a tradição
religiosa judaica, restituindo-lhe sua dimensão messiânica e apocalíptica,
escamoteada pela leitura racionalista estreita da Wissenchaft des judentums
(Graetz, Zung, Steinschneider) e da sociologia alemã. Max Weber e Werner
Sombart não viram na espiritualidade judaica senão o racionalismo
calculista: Scholem pôs em evidência as correntes religiosas subterrâneas,
místicas, heréticas, escatológicas e anárquicas da história do judaísmo”
(Löwy, M., 1989: 57-58).

Gershom Scholem aprimorou a sua filologia a partir de uma teoria do objeto. É


desta maneira pela qual Scholem procura aproximar-se do conteúdo das tradições místicas
e, assim, tornar compreensível as revelações dos elementos ocultos dos quais pode-se
entender o processo histórico das religiões – sem depurá-las de suas contradições
simbólicas (Habermas, J., 1980: 123).

A Dinâmica Religiosa

Se para os historiadores alemães do século XIX a história era exclusivamente palco


da evolução natural de uma determinada cultura, diferentemente para Scholem, há três
enfoques possíveis pelo qual a tradição pode entendida: “i) ela pode ser continuamente
retomado, ii) pode transforma-se num progresso da metamorfose e adquirir uma nova
roupagem e iii) estar exposta a uma ruptura vinculada à rejeição da própria tradição”
(Scholem, G., 1999: 129).

1
“Contrariamente a Rosenzweig, Gershom (Gehard) Scholem não é teólogo, mas historiador. Sua obra
representa não apenas um monumento impar de historiografia moderna, como também lança um novo olhar
sobre a tradição religiosa judaica, restituindo-lhe sua dimensão messiânica e apocalíptica, escamoteada pela
leitura racionalista estreita da Wissenchaft des judentums (Graetz, Zung, Steinschneider) e da sociologia
alemã. Max Weber e Werner Sombart não viram na espiritualidade judaica senão o racionalismo calculista:
Scholem pôs em evidência as correntes religiosas subterrâneas, místicas, heréticas, escatológicas e anárquicas
da história do judaísmo” (Löwy, M., 1989: 57-58).

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Para Scholem, a sua época manifestou desejos de rupturas, de renúncias e, até
mesmo, de negações que nascem de aspirações silenciosas de uma reconstrução ou,
simplesmente, da reposição de uma ordem do sentido, da arquê originária (mas
nostálgica). Contudo, diante deste peremptório desejo de rejeição, podemos nos indagar o
seguinte: existe realmente uma ruptura? a interdição de uma tradição e o início de uma
outra se faz a partir da sobrevivência de qualquer fragmento do passado? Bem, para estas
considerações, vamos nos valer da concepção de Scholem sobre a questão judaica e, assim,
continuar aproveitando as suas teses como uma contribuição metodológica para uma
possível história das religiões.
A tradição significa para o judaísmo o poder de sustentação, segundo o próprio
Scholem, “o judaísmo representa uma forma clássica de uma sociedade religiosa baseada
na Tradição de uma maneira especialmente acentuada, em que a tradição era o poder de
sustentação das forças vitais que aqui encontram sua expressão (Scholem, G., 1999: 130)”.
Em particular nesta religião, a tradição associada ao conceito de revelação, foram
agregados pelo Talmud como ponto arquimediano do judaísmo durante dois séculos
aproximadamente. Este assentamento dogmático sedimentou a idéia da Torah escrita e oral,
como palavra de Deus e sua aplicabilidade do cotidiano vigente. É desta maneira que a
tradição e a revelação se aliaram no decurso da história, irrompendo no judaísmo uma
identidade religiosa capaz de abolir outras formas que tampouco faltam ao judaísmo.
Seguindo a lógica, a tradição judaica é a tentativa de fazer inteligível, atual e convincente,
pela Torah oral e escrita, a voz de Deus. Neste caso, os conteúdos religiosos nunca rompem
com a ordem normal da vida. O inefável nunca irromperá no presente de uma forma
imediata, mas sempre mediada, sobretudo quando se ensina que a “palavra de Deus” toma a
linha da tradição do judaísmo como condição sine qua non para torna-se compreensível e
aplicável.
Porém, na história do judaísmo podemos encontrar o messianismo que surge como
abertura de alternativas no curso histórico do presente para a redenção e que, por isso,
conflita naturalmente com a tradição que se apóia no alinhamento uniforme entre o passado
e o presente. Porém, o messianismo abriu espaços para uma vivencialidade pacífica no
espaço literário com a tradição de revelação da Torah. É neste encontro que podemos
reverenciar concepções tão diversas como as de um estado ideal, juízo final, reconstrução

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da realeza davídica e etc. O “mundo literário bíblico judaico” (no sentido sincrônico de
universalidade) pode ser visto como um processo não contínuo, orientado por determinados
imperativos de tradições dominantes, mas como conseqüência de experiências históricas
que surgiram como réplicas às situações vigentes, porém expressos no horizonte de seus
imaginários.
O messianismo uniu dois elementos que determinaram as suas configurações
históricas no judaísmo: i) o messianismo restaurador que, movido por uma esperança
nostálgica, busca redimir o presente religando-o a uma ordem originária do real outrora
perdida, e o ii) o messianismo utópico, que entende a redenção como um ato historicamente
inédito, rompe no real2. Certamente, ambas as formas de messianismo poderiam conviver
pacificamente, haja vista que elas postergavam para um futuro longínquo, as suas
esperanças que não se adequavam a experiência hoje – considerando que o presente caótico
é sempre considerado como anunciação da ação messiânica gloriosa, mas não o momento
exato de sua consumação. Então, independentemente de suas formas, a fé na redenção
messiânica veio mesmo a assumir uma posição definitiva na tradição, mas tendo a sua força
simbólica ocultada ou encoberta. Desta maneira, dentro da ação imaginativa que concilia as
forças opositoras, o messianismo pode mesmo incorporar-se à tradição.

Por esta razão é que na teologia do judaísmo não existe o problema de um


conflito entre o messianismo e a tradiação. A idéia messiânica, ainda não
desenvolvida em seqüência lógica a partir da idéia de tradição, foi
concebida de maneira compatível com ela. Somente lá onde a experiência
histórica comoveu e agitou os corações pôde tal experiência encontrar
também uma elaboração quase teológica na qual a crise da Tradição no
essianismo irrompeu mui rapidamente (Scholem, G., 1999: 133).

Ora, como a imaginação teceu laços que ligou o messianismo e a tradição num
mesmo corpo literário, numa mesma tradição religiosa? A posição da Torah no mundo
messiânico foi desenvolvida na antiga literatura judaica (Talmud, Midrasch, e os
Apocalipses) de forma imaginativa produzindo imagens de revigoramento dos ideais do
passado e de anelo num futuro novo e emancipador. Estas imagens não tecidas nas margens
da história objetiva, mas nos desejos e na esperança. Por isso, quando a tradição enclausura

2
É concepção mística de um messiânica que nutre o anti-historicismo dos pensadores frankfurtianos
Horkheimer e Benjamin.

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as possibilidades da redenção, o messianismo eclode enfrentando o próprio historicismo.
Seguindo os impulsos da redenção, o impulso originário da religião, a mística, passa a
reivindicar um acesso imediato e intuitivo ao divino. As possibilidades passam a se
mostrarem abertas tal como a imagem de criação do mundo: a imagem cosmogonica da
mística luruana, ensina que o autobanimento de Deus significa liberdade e
responsabilidade, o exílio em que todos estão confinados é também possibilidade da
salvação. E estas novas formas de salvação surgem a partir de novas imagens que podem
ser mesmo apostatas tal como o messianismo de Sabbatai Zwi.
A mística religiosa surge como próximo ao niilismo, porém motivado por um desejo
de superação radical, um espetáculo do choque, mas que visa a salvação do verdadeiro
conteúdo emancipador, redentor: God will apper as non-God. All the divine and symbolic
things can also appear in the garb of atheistic mysticism (Deus aparecerá como não-Deus.
Todas as coisas divinas e simbólicas podem igualmente aparecer sob a forma do misticismo
ateu)” (Scholem, G., APUD, Habermas, J.1980: 130).

Linguagem e Mística

A compreensão de Gershom Scholem sobre o papel da linguagem na mística, se


contrapõe a difundida idéia de que a Erlebnismystik (vivência mística) era marcada
autenticamente pelo rito do silêncio. Porém, este ceticismo lingüístico será repensado a
partir de uma compreensão da revelação, da linguagem e de Deus na própria dinâmica da
mística cabalística empreendida pelo pensador judeu-alemão.
Para o Scholem, a tradição e a revelação eram dinamizadas pela ação grandiosa da
linguagem que, por sua vez, era diretamente derivada de Deus. A tensão entre linguagem e
a experiência dos mistérios de Deus, era alvo das polêmicas entre Buber e Scholem, quando
ambos comparavam criticamente suas traduções da Bíblia. Buber entedia que as
exclamações poéticas representavam uma luta perdida do místico para exprimir o
inexprimível. Porém, sobre esta tese, Sholem afirmava que

a mais notável e bem-sucedida formulação de um conceito infundado de


religião, que só pode ser estabelecido ou confirmado captando-se o fato
central da religião, isto é, a revelação, como uma Erlebnis (experiência)
amorfa, extática que só (tem sentido), se o tem em geral, no plano da

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interioridade, enquanto suas emoções externas permanecem inteiramente
vagas. A revelação deve ser entendida como um fenômeno auditivo, que
sempre pareceu tanto a filosofia da religião quanto a teóricos da
linguagem, bem como aos místicos, inclusiva aos cabalistas, como
exatamente definível, exakt bestimmbar (BIALE, D. 1994: 143).
.

Ora, Scholem entendia que a incapacidade de traduzir ou compreender, e entender


textos religioso não poderia ser atribuído à incompetência da linguagem ou do escritor, mas
sim à incapacidade de decifração nas leituras de textos como estes. Muito próximo às teses
cabalistas, Scholem entendia que as revelações eram experiências auditivas que podiam ser
expressas em linguagem. Ora, desta feita, era conseqüente também a tese de que as
compreensões (traduções) e entendimentos do texto religioso eram possíveis porque as
escritas das audições reveladas não eram escritas arbitrárias, mas um texto escrito composto
de um vocabulário técnico. Ora, o papel do cientista da religião era aprimorar os recursos
de compreensão e entendimento para que para o exercício de decodificação e leitura
pública fosse apropriado. É claro, toda tese universalista recai no perigo da testabilidade
constante e infinita. Mas, diferentemente de Buber, Scholem delimita as suas expectativas
de compreender o papel da linguagem ao campo da mística judaica, desenvolvendo
delimitadamente uma teoria da linguagem religiosa num capo específico da experiência
religiosa.
A barreira da linguagem no exercício da mística não é tratada de uma forma tão
técnica e simples nas obras de Scholem. A possível compreensão de uma relação imediata
entre a linguagem e o mistério, é justificável na tradição cabalística e bíblico-judáica, pois
ambas trazem a idéia de que a linguagem em sua forma mais pura (o hebraico), reflete o
princípio criativo do mundo porque elas tanto são instrumentos derivados do nome de Deus
(equivalentes à sua essência), como também são o meio pelo qual Deus tudo criou. Desta
maneira, para os cabalistas do século XII, criação e revelação são dois acontecimentos
idênticos, pois ambas são auto-representações de Deus.
Palavras e coisas são derivações do nome Deus. Então, por ser fonte das coisas e de
seus sentidos, o nome Deus é meta-significativo. Por isso, nele convergem o todo ôntico e
ontológico, não de uma maneira imediata, mas de uma maneira mediada nas mais diversas
contradições do processo criativo da linguagem e da natureza. Por isso, Deus se explícita no

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todo significativo e no todo da natureza de uma forma plural, por isso, equívoca. Então,
senso assim, a linguagem humana por ter origem divina é capaz de simbolizar. E é por
símbolos que mulheres e homens falam de Deus. Religião não se faz de alegorias, ou seja,
de convenções arbitrárias variada para descrever o místico, mas sim por símbolos que tem o
poder de evocar uma compreensão intuitiva do sagrado. Os símbolos místicos têm o poder
de exprimir algo que está alem da expressão e da comunicação, de algo cuja sua presença
está voltada para o interior e para o exterior do ser humano. O símbolo não tem significação
e nem comunica algo, mas tem o poder de transparecer algo que está além de toda a
expressão.

Para os cabalistas, os símbolos não são arbitrários ou subjetivos, mas


possuem uma interna conexão essencial com aquilo que simbolizam. Eles
são portanto o resíduo dos nomes divinos na linguagem humana. A grande
fé dos cabalistas na linguagem resultava de sua crença de que os símbolos
eram a ponte entre a linguagem humana e divina (Biale, D. 2004: 47).

Então, podemos concluir que a força dos símbolos lingüístico-religiosos só subsiste


quando a linguagem não é compreendida como um mecanismo convencional exclusivo do
entendimento humano. O ceticismo lingüístico de Buber, por exemplo, pode ser entendido
como uma perspectiva de sentimento aberto ao inefável, mas perseguido por meios
secularizados. A conversão da linguagem em um conjunto de códigos culturalmente ou
intelectualmente convencionais, destituiu o poder dos símbolos que antes se projetavam
como pontes entre o humano e o divino. Desta maneira, a dimensão simbólico-religioso
deve ser entendida, nos jogos lingüísticos da religião, como dimensões de ligação ao
totalmente outro, que por eles se faz manifesto transparentemente. Os símbolos não são
redes de significação, mas de apresentação.

Alguns aspectos conclusivos: O Revigoro da Mística

A experiência messiânica aclamada pela mística romântica (Michael Löwy, 1990) é


observada por Scholem como conseqüência a dimensão abismal aberta pela autofágica
modernidade européia. O desencantamento do mundo que outrora parecia ser uma
experiência de liberdade e autonomia (Weber, 2004; Adorno, T-W & Horkheimer, M.,

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1991) gestada pelo iluminismo, agora padece numa auto-revelação de seus poderes
destrutivos, mesmo que não exclusivos, expressos num século de conflitos catastróficos
que, por sua vez, distanciava-se cada vez mais de um momento de emancipação social
conciliada e racional (Kant, I., 1982). A modernidade e as forças da tradição se
desmancham em meio a uma civilização capaz de barbáries e arrojos tecnológicos
econômicos. Segundo uma biografia resumida escrita por Jürgen Moltmann, a primeira
guerra mundial representou para Scholem a morte da Europa clássica. Com ela, foi
sepultada também os ideais de evolução interna à história social apreciados pelos idéias
iluministas e pelos judeus assimilados à cultura do esclarecimento - como é o caso do
neokantiano Hermann Cohen, filósofo judeu que entendia ser possível a redenção acontecer
através das evoluções históricas. Para Scholem, a força mística judaica expressava-se pela
apreciação do advento messiânico. Este advento interliga os aspectos simbólico-literários
da escatologia e do apocalipsismo judáico3 e, como tal, interpreta a redenção como evento
de irrupção transcendente e catastrófica capaz de provocar o perecimento da história.

O dia do Senhor significava já nos profetas a destruição do mundo e o


final da história transcorrida até então, a fim de que se pudesse iniciar-se
um novo e totalmente outro eon. Para Scholem não há transicção da
história e da redenção. Os apocalípticos acentuaram sempre essa falta de
transição e, assim, romperam a esperança messiânica de qualquer
otimismo baseado na fé no progresso. O messias, segundo as tradições
judaicas aduzidas por Scholem., chega sem anunciar-se e de maneira
completamente inesperada e totalmente imprevisível. Sua presença não é
resultado de uma evolução, mas de uma explosão (Moltmann, J, 2004:
64).

Apesar das conseqüências que o caráter catastrófico que o advento messiânico tem
para a história, Sholem acentua também os elementos utópicos que o messianismo místico
enaltece. A esperança pela redenção e a antecipação do cataclismo histórico, torna o
homem consciente da faticidade abismal de sua existência e desmitifica a perpetualidade
das promessas seculares de emancipação como também lhe nega a possibilidade de um
pessimismo definitivo de um mundo afogado no verdugo, na decadência, no mal. A chama
messiânica é a expressão que arde no interior da cada experiência da existência individual

3
As dimensões literárias escatológicas e messiânicas expressam sempre uma crítica incisiva à sua época
imanente sem possibilidades de uma correção a não ser por uma interrupção catastrófica regida por um
monarca absoluto ou por interventor seu, o messias. Para mais detalhes, cf. Desroche, H: 2000.

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(experiência de ambivalência entre a vida e a morte) que não encontra na revelação uma
expressão da tradição clássica da religião, mas algo que sua atualidade significativa é
fundida e remodelada no experimento da vivência tragada pela rotina mas revigorada pelas
esperanças redentoras.

O misticismo judaico em suas várias formas representa uma tentativa de


interpretar os valores religiosos do judaísmo em termos de valores
místicos. Concentra-se na idéia do Deus vivo que se manifesta nos atos de
Criação, Revelação e Redenção. Levada a seu extremo, a mediação
mística sobre esta idéia gera a concepção de uma esfera, um reino inteiro
de divindade, subjacente ao mundo de nossas experiências sensoriais e
que está presente e ativo em tudo que existe. Eis o significado do que os
cabalistas chamam o mundo das Sefirot (Scholem, G, 1995:.11).

A categoria de sublime na estética e o místico na teologia revigoram o leitor em


direção às questões fundamentais para o sentido da vida. A mística em Gershon Sholem
Scholem é uma desconstrução de uma visão ontológica ajustada do mundo. É um dos
marcos intelectuais para se compreender a vida na dinâmica das contradições, as quais a
Cabala resgata já em suas origen. Desta feita, mística enquanto negatividade teológica é
positivamente saudada para se compreender a história das religiões. Isso porque ela realça o
processo destrutivo das confissões tradições pondo a fé coletiva e significada em intenso
movimento. Para um leitor persistente e incomodado com a vida, sabe que o fim não
precisa ganhar um contorno cataclísmico na natureza para que se realize em sua plenitude.
A face mística da religião desperta no ser humano aquilo que lhe é mais impactante: o
sublime e o divino negativos, inacabados, pala além ...

Marx e Engels pensaram que o papel subversivo da religião era coisa do passado,
sem significação na época moderna da luta de classes. Este prognóstico foi mais ou
menos historicamente confirmado por um século –com umas poucas importantes
exceções (particularmente na França): os socialistas cristãos dos anos 30, os
sacerdotes operários dos 40, a ala esquerda do sindicalismo cristão nos 50, etc. Mas
para entender que foi acontecendo nos últimos 30 anos na América Latina (e em
menor extensão também em outros continentes) ao redor da temática da teologia da
liberação, precisamos integrar à nossa análise as colocações de Bloch e Goldmann
sobre o potencial utópico da tradição judaico-cristã (LÖWY, 2007).

Bibliografia

OBSERVATÓRIO DA RELIGIÃO. E-ISSN 23586087. Volume I, no. 02, agos.-dez. 2014, p. 92-105.
BIALE, David. Cabala e contra-história: Gershom Scholem. São Paulo: Perspectiva, 2004:
HABERMAS, J “A Tora camuflada – Conferência comemorativa do 80O aniversário de
Gershom Scholem. In: Habermas: sociologia. São Paulo: Ática, 1980.
HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar,
1991.
KANT, Immanuel. “O que é Iluminismo?” in Humanidades: R. da UnB. Brasília, v.1,
pp.49-53, out/dezembro 1982.
LÖWY, M. Redenção e utopia. O judaísmo libertário na Europa central. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
LÖWY, M.. Romantismo e Messianismo. São Paulo: Perspectiva, 1990.
LÖWY, M. Marxismo e religião: ópio do povo?. En publicacion: A teoria marxista hoje.
Problemas e perspectivas Boron, Atilio A.; Amadeo, Javier; Gonzalez, Sabrina. 2007 ISBN
978987118367-8

MOLTMANN, Jürgen. La venida de Dios. ESCATOLOGIA Crsitiana. Salamanca:


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SCHOLEM, G. As grandes correntes da mística judaica. São Paulo: Perspectiva, 1995.
____________. O Golem, Benjamin, Buber e outros justos: Judaica I. São Paulo:
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____________. O nome de Deus, a teoria da linguagem e outros estudos da cabala
mística: judaica II. São Paulo: Perspectiva, 1999.
___________. As grandes correntes da mística judaica. São Paulo: Perspectiva, 1995.
WEBER, M. Ética protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Companhia das
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OBSERVATÓRIO DA RELIGIÃO. E-ISSN 23586087. Volume I, no. 02, agos.-dez. 2014, p. 92-105.
PROVOCAÇÕES A-TEOLÓGICAS:
Perguntas e caminhos na reescritura de Saramago em Caim.

Marcio Cappelli

Resumo
O presente trabalho pretende compreender como a crítica saramaguiana contida em Caim
pode contribuir para o diálogo entre teologia e literatura. Para tal intento é necessário seguir
alguns passos. Sendo o primeiro percorrer mostrar a possível aproximação entre teologia e
literatura. No entanto, como a literatura do autor escolhido está marcada por seu ateísmo,
também se impõe a tarefa de compreender como a teologia pode acolher as críticas ateístas
sem cair num “entreguismo” da fé. Já posteriormente à luz de um breve perfil biográfico
percebe-se a sua paixão por questões concernentes a religião e que essa paixão transpassa seus
textos. Contudo, não de maneira apaziguada, mas através de um questionamento de imagens
de Deus cristalizadas e que ele põe abaixo através de uma reescritura do texto bíblico. Nesse
sentido, pode-se dizer que Saramago faz uma a-teologia ou teologia às avessas, questionando
certas imagens de Deus também no seu último romance escrito a saber, Caim.
Palavras-chave: Literatura, ateísmo, imagens de Deus.

Abstract
This study seeks to understand how Saramago's criticism in his book Cain can contribute to
the dialogue between theology and literature. For this purpose it was necessary to pursue
various paths. The first one being a reconciliation between theology and literature. Since the
literature of the chosen author is characterized by his atheism, this required an understanding
of how theology can accomodate atheistic criticism. In the second step, by means of a short
biographical sketch that included the literary and religious thinking of the Portuguese writer.
However, through a rewriting of the biblical text he drops some images of God. Even so, in
these texts Saramago (de)constructs understandings about the representations of God that
were forged within Christianity and which are still in force in many of its branches. That is to
say, he creates an "nontheology", or what can be called an upside down theology challenging
images of God also in his last novel written Cain.
Keywords: Literature, atheism, images of God.

Introdução

A partir dos desafios de dialogar com a literatura e, sobretudo com uma literatura
marcada pelo ateísmo, como a de Saramago é que se impuseram as tarefas desse trabalho.


Doutorando em teologia pela Puc-Rio. E-mail: alocappelli@gmail.com

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2

Partindo da constatação de que alguns desdobramentos históricos contribuíram para o


afastamento entre teologia e literatura. Ou seja, que a teologia acadêmica não admitia a
possibilidade de encontrar na literatura uma interlocutora, entende-se a necessidade de
reaproximar teologia e literatura.
Posteriormente afirma-se a necessidade de a teologia escutar e dialogar também com o
ateísmo para por abaixo as imagens de Deus que inclusive continuam alimentando a
descrença.
Além disso, a partir de um breve perfil biográfico do autor e de um panorama sobre
sua obra prende-se mostrar que ele possui uma espécie de paixão por questões concernentes a
teologia, mas que se dá às avessas e se constitui numa a-teologia. Ademais, Saramago pode-se
afirmar, é também, além de um escritor, um grande reescritor, no sentido de que subverte
histórias já contadas anteriormente. Essa constatação deu-se na esteira do pensamento de
Bahktin, principalmente dos conceitos, de polifonia e dialogismo que se desdobrou
posteriormente no conceito de intertextualidade (Julia Kristeva) e o de carnavalização.
Por fim, tentar-se-á mostrar como de maneira irônica e sem preocupação com os
dogmas ele faz com que, através de sua literatura, seja possível um pertinente questionamento
acerca de imagens de Deus forjadas que ao longo dos séculos serviram como ponto de apoio
para atrocidades sem fim. Isto se deflagra de maneira contundente em Caim.

Teologia e literatura

Desde muito cedo, Teologia e Literatura foram bem próximas. Waldecy Tenório ao ser
perguntado sobre como era a relação entre teologia e literatura na Antiguidade e como ela se
desenha hoje, afirma que:

Se fizéssemos essa pergunta ao evangelista João, ele certamente diria que no


princípio era o Verbo, e não estaria dizendo pouco. Quer dizer, essa relação entre
literatura e teologia já aparece na origem, ou na aurora do mundo, como se fosse
uma culpa ou um pecado original. Na antigüidade grega, encontramos a doutrina do
entusiasmo, que associa a inspiração poética à profecia ou mesmo à possessão por
um Deus. No mundo judaico, não se concebe a escrita a não ser dentro de uma
ligação muito forte com o divino... O fato é que o sagrado e o profano se encontram
na literatura, sendo a poesia a última forma de êxtase ou, como diz Murilo Mendes a
transubstanciação do leigo no sagrado. Então, resumindo: foram e são relações
profundas, essas que se dão nas camadas subterrâneas do texto. E os teólogos e os
críticos, mais do que nunca, estão descobrindo isso. (TENÒRIO, 2008, p. 11)
3

No entanto, desdobramentos históricos indicam certo distanciamento entre teologia e


literatura e alguns motivos contribuíram para que estas vivessem e vivam uma relação de
tensão e muitas vezes conflituosa.
Alguns autores chegam a atribuir a separação entre os dois saberes a antiguidade.
Douglas Rodrigues da Conceição, citando Antônio Magalhães diz que a separação que existe
entre teologia e literatura se origina basicamente em Tertuliano, Agostinho e Jerônimo, pois
os mesmos viam na filosofia a melhor interlocutora para a teologia e os textos poéticos como
nada mais que invenção humana. (CONÇEIÇÃO, 2004, p. 25)
Todavia, o ponto nevrálgico dessa relação está situado na ruptura da Idade Média e
Idade Moderna. De acordo com Karl-Josef Kuschel: “religião e literatura encontram-se em
uma relação de tensão ao menos desde o fim da identidade entre cultura burguesa e
cristandade.” (KUSCHEL, 1998, p. 13) Ou seja, o avanço da secularização e a busca da
autonomia da obra literária contribuíram para um afastamento entre a teologia e a literatura.
Em outras palavras, Magalhães fala sobre a necessidade de entender o debate entre teologia e
literatura dentro do processo de emancipação da cultura burguesa dos resquícios do
autoritarismo eclesiástico. (MAGALHÃES, 2000, p. 22)
Em princípio, porque durante séculos, na Idade Média, os artistas se viram obrigados a
produzir sob os ditames das autoridades eclesiásticas, sem a devida liberdade de expressão.
Portanto, com o advento do humanismo renascentista e depois do Iluminismo, gradualmente
os artistas vislumbraram a possibilidade de uma emancipação.
Não obstante, esse afastamento entre os dois saberes possui seu lastro também na
compreensão de que as ciências eram a mais apropriada forma de conhecimento da realidade,
em detrimento das artes. Tal concepção contribuiu cada vez mais para que a literatura fosse
vista como a tarefa de tratar de uma fantasia.
Isso contribuiu para o enrijecimento da teologia conforme constata Waldecy Tenório:

As duas têm a mesma idade, nasceram na mesma época, a poesia era a alma dos
ritos religiosos. Com o tempo, a teologia foi se transformando numa senhora sisuda,
muito respeitável, uma velhinha que não tira nunca o véu da cabeça, enquanto a
outra parece mais jovem, irreverente, a louca da casa, de reputação às vezes
duvidosa, e é claro que isso acabou por criar um certo conflito ou uma certa
desconfiança entre as duas. (TENÒRIO, 2008, p. 11)

Contudo, tratar a modernidade unilateralmente como motivo de separação entre os


dois saberes não é legítimo. É mister realçar que, de certa forma, as intensas críticas dos
quatro cavaleiros da modernidade, a saber, Feuerbach, Marx, Freud, Nietzsche, também
contribuíram para a abertura de um diálogo entre teologia e literatura, afinal, foram um forte
4

golpe no pensamento metafísico sobre o qual a teologia se apoiara. (BARCELLOS, 2008, p.


6) Ou seja, sem poder recorrer ao discurso ontológico-metafísico das grandes tradições que
haviam sido estremecidas pelos golpes dos pensadores supracitados, a teologia, para não se
perder num mundo em que o céu havia sido interditado, refugiou-se no diálogo outros
saberes.
A questão surgida a partir da modernidade que deflagra esse processo é a que se pode
chamar de “morte de Deus”. No dizer de Alves, a “morte de Deus passou a ser um símbolo
para exprimir aquela experiência humana que em outros tempos fazia uso do símbolo “Deus”
para articular-se.” (ALVES, 1988, p. 59) Essa questão provocou uma diluição da imagem
religiosa do mundo e esvaziou a antiga compreensão de Deus. Ou seja, esse problema
tradicionalmente atribuído a Nietzsche golpeou fortemente a teologia cristã e de certa forma
influencia a produção literária até hoje. Ainda na concepção alvesiana, “querendo ou não,
somos, em parte, o passado que herdamos.” (ALVES, 1988, p. 60) Portanto, quando se fala na
morte de Deus não se pode evitar a emersão de traços que delineiem o colapso de uma
tradição cultural outrora fundada em argumentos metafísicos.
A morte de Deus em Nietzsche é um diagnóstico de um mundo em que a compreensão
de Deus tornou-se cada vez mais dispensável em favor da autonomia humana. No aforismo
125 da sua obra A Gaia Ciência está posto o anúncio da morte de Deus:

Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna
e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: “Procuro Deus! Procuro
Deus!”? – E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele
despertou com isso uma grande gargalhada. Então ele está perdido? Perguntou um
deles. Ele se perdeu como uma criança? Disse outro. Está se escondendo? Ele tem
medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou? – Gritavam e riam uns para os
outros. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar.
“Para onde foi Deus?”, gritou ele, “já lhes direi! Nós o matamos – vocês e eu.
Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber
inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? (…) Não
ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da
putrefação divina? – também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua
morto! E nós o matamos! Como nos consolar, a nós, assassinos entre os assassinos?
O mais forte e mais sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob
nossos punhais – quem nos limpará este sangue? (NIETZSCHE, 2001, p. 147-148)

O homem chamado de louco não entende como os outros homens não sabem o que
aconteceu a Deus e logo chega à mesma conclusão deles: Deus está morto! Mas será esse
anúncio o obituário de um ser eterno? Antes disso, o que está em jogo é a constatação de que
as estruturas de pensamento e de linguagem oferecidas pelo teísmo entraram em colapso.
(ALVES, 1988, p. 54) Ou seja, com o anúncio da morte de Deus desmorona pelo menos em
parte certa cosmovisão. Segundo Rocha, “o Deus que morreu e que teve sua morte anunciada
5

na aurora do século XX é aquele que nasceu do coito entre a religião cristã e a cultura
helênica, sobretudo platônica.” (ROCHA, 2007, p. 123) E sua morte que seria declarada por
Nietzsche vinha sendo preparada desde a evidenciação da impossibilidade metafísica feita por
Kant. (ROCHA, 2007, p. 124)
Nesse sentido, a morte anunciada é de um fundamento último no qual se apoiavam
valores morais e religiosos. A morte de Deus é a morte de um paradigma metafísico. Isso
indica que a declaração nietzcsheana se voltou contra um discurso teológico que identificou
Deus com uma representação cultural.
Essa identificação foi tão forte e intensa que muitos cristãos viram na declaração de
Nietzsche realmente a morte do Ser eterno, e isso porque esses cristãos não conseguiram
diferenciar Deus das suas representações fundamentadas na metafísica platônica. Como
destaca Penzo:

Para o homem metafísico, a morte de Deus é vivida de modo dramático, justamente


porque marca o fim de um longo desejo que é necessário ao homem para viver com
uma consciência de segurança. Nietzsche faz sua essa “angústia desesperada” do
homem metafísico diante do “advento do niilismo”. Supera, porém tal angustia,
quando observa que a morte de Deus é um acontecimento cultural e existencial
necessário para purificar a face de Deus e, por conseguinte, a fé em Deus.
(GIBBELINI; PENZO, 1997, p. 31)

Ou seja, Nietzsche não mata Deus, mas constata a ausência do divino na cultura de seu
tempo, acusando a própria metafísica como causa dessa morte. Essa é uma questão que a
teologia precisa levar a sério.
Rocha destaca que “para a teologia a contribuição fundamental do ataque de Nietzsche
à metafísica em sua representação deificada, sobretudo em seu corte sistemático, consiste na
descredibilização de toda abordagem essencialista.” (ROCHA, 2007, p. 130) E complementa
afirmando que “dessa forma o discurso humano sobre qualquer realidade, mesmo a divina
deverá assumir uma irredutível condição existencial.” (ROCHA, 2007, p. 130)
Com certeza, nessa tarefa a literatura pela sua característica em lidar com o universo
simbólico do humano emerge como interlocutora que propicia novas aberturas de
interpretação. Prova disso é o pronunciamento da Constituição Pastoral Gaudium et Spes do
Concílio Vaticano II:

A literatura e as artes são também segundo a maneira que lhes é própria, de grande
importância para a vida da Igreja. Procuram elas dar expressão à natureza do
homem, aos seus problemas e à experiência de suas tentativas para conhecer-se e
aperfeiçoar-se a si mesmo e ao mundo; e tentam identificar a sua situação na história
e no universo, dar a conhecer a suas misérias e alegrias, e necessidades e energias, e
desvendar um futuro melhor. Conseguem assim elevar a vida humana sob muitas
diferentes formas, segundo os tempos e lugares. Por conseguinte, deve trabalhar-se
6

para que os artistas se sintam compreendidos, na sua atividade, pela Igreja e que
gozando de uma conveniente liberdade, tenham mais facilidade de contatos com a
comunidade cristã.

Isto posto, o que se pretende é aproximar os dois saberes e apontar a possibilidade de


se fazer teologia ou de capturar o dado transcendente através do texto literário. Dito de outra
maneira, o que se procura na literatura é o seu caráter teológico explícito ou latente.
Entretanto, não se deve fazer da literatura uma espécie de lugar teológico onde se encontram
uma teologia imutável e imagens religiosas cristalizadas pela tradição.
Assim, essa pesquisa visa ratificar a necessidade de abertura ao diálogo por parte da
teologia tendo como interlocutora a literatura, a fim de, se superarem os distanciamentos
impostos ao longo da história dos dois saberes.

Cristianismo e ateísmo: do anátema ao diálogo

Nesse momento da pesquisa faz-se necessário afastar os preconceitos que rondam a


mente quando se afirma que o ateísmo em diálogo com a teologia pode contribuir para uma
melhor compreensão da fé. Dessa forma, se faz imperioso ressaltar o desafio da teologia ao
dialogar com a obra de um autor que deixa escorrer de sua pena duras críticas contra a crença
em Deus. Assim, por não querer enveredar por uma apologética cega da fé cristã, buscar-se-á
perceber o fundamento do ateísmo e também acolher suas respectivas interpelações.
Nesse sentido, esta reflexão caminha na direção do pensamento de Queiruga quando
procura descobrir o que é que positivamente move a experiência ateísta. No seu dizer:

Há muitas possibilidades de que ali consigamos encontrar a experiência profunda


que está na sua base e que, confrontando-se com a experiência cristã, possamos
descobrir uma ampla superfície de contato e de encontro. Por baixo das discussões,
antagonismos, acusações e ressentimentos acaso nos espere um lugar mais humano
em que consigamos nos entender. (QUEIRUGA, 1993, p. 22)

No entanto, para compreender essa afirmação é preciso percorrer os meandros do


ateísmo. Segundo Queiruga, “o ateísmo moderno é a consequência do choque entre dois
mundos: o antigo e o moderno.” (QUEIRUGA, 1993, p. 24) Ou seja, o ateísmo é um
fenômeno relativamente recente que surge com a modernidade. Isso porque é somente a partir
do Iluminismo que começa a haver, em grande escala, pessoas que apóiam suas vidas sobre a
negação de Deus. (QUEIRUGA 1993, p. 22-23)
7

Nesse sentido, é imperioso realçar que ao se perguntar pelo motivo sobre o qual o
ateísmo moderno sente-se obrigado a rejeitar Deus, a resposta mais provável é que a religião
impede o desenvolvimento pleno do humano. (QUEIRUGA 1993, p. 30) Mas, por que o
ateísmo chega a tal resposta? Na concepção de Queiruga, “parece que a conduta das igrejas
cristãs contribuiu decisivamente para criar essa falsa impressão, esse enorme e trágico
equívoco” (QUEIRUGA 1993, p. 31), não só por rejeitar os progressos e descobertas que
marcaram os passos da modernidade, mas por estar vinculada a certo autoritarismo.
Portanto, o ateísmo parece ser um fenômeno moderno provocado por um cristianismo
mal transmitido, mal compreendido e mal vivido. Assim, a distorção das verdades cristãs é o
que provoca a rejeição a Deus. O ateísmo de muitos filósofos e pensadores modernos e
contemporâneos, inclusive o de Saramago, deve ser compreendido a partir desse dado.
Ou seja, o ateísmo é, portanto, reforçado pela teologia, pela história do cristianismo e
pela postura da Igreja na sociedade. Tudo o que há de pior, de mais negativo no cristianismo é
recolhido e unificado num conjunto harmonioso que se transforma em crítica contra Deus.
Mas o que fazer com essa crítica? Ignorá-la parece não ser a melhor solução para
aqueles que querem de fato tornar a fé em Deus significativa para o mundo hodierno. Por isso,
é imperioso desenvolver outro tipo de postura. Postura que procure acolher as críticas
sinceramente e dialogar a partir dos pontos de contato. Contudo, isso não significa um
entreguismo da fé. Mas, ao contrário. Afinal, “só quem parte de uma confiança básica pode
ter a coragem de arriscar-se; só quem se apóia firmemente na experiência da fé é capaz de
correr o risco da crítica e, se for o caso, o da reinterpretação.” (QUEIRUGA 1993, p. 37)

Breve perfil bio-lítero-teológico de José Saramago

No dia 16 de novembro de 1922 no nordeste de Lisboa na aldeia de Azinhaga, na


província de Ribatejo, nasceu o segundo filho do jornaleiro José de Souza e da dona de casa
Maria da Piedade, a saber, o menino que mais tarde se tornaria o primeiro lusófono a receber
o prêmio Nobel de literatura.
Apesar de ser reconhecido como romancista também escreveu poemas, os quais,
segundo Salma Ferraz, ele relutou em reeditar por considerá-los obras menores. (FERRAZ,
2003, p. 21) Seu primeiro ensaio literário publicado em 1947 foi Terra do Pecado. Após
quase duas décadas sem publicar qualquer obra, lançou Os Poemas Possíveis e em 1976
publicou o romance Manual de Pintura e Caligrafia, embora tenha escrito nesse período o
romance Claraboia que por insistência própria só foi publicado depois de sua morte. Desde
8

então ele escreveu mais de trinta livros, classificados entre poesia, crônica, teatro, conto e
romance.
Saramago é também conhecido pelo estilo diferente de sua escrita que se caracteriza
por enormes parágrafos sem travessões e pontos, com falas separadas apenas por vírgulas.
Esse estilo se concretizou através da publicação, em 1980, do romance Levantado do Chão,
que foi elaborado a partir da experiência que o autor teve na vila onde morou com sua família.
A sua convivência com o povo do interior, principalmente com o seu avô Jerônimo, como ele
mesmo externou em seu discurso de recebimento do Prêmio Nobel de Literatura, foi
determinante para a criação do seu estilo. Saramago, procurando um tema sobre o qual
escrever, voltou ao vilarejo de origem e ali passou algum tempo, até que lhe veio à mente a
idéia de escrever sobre sua gente.
Em 1982, Saramago confirma o seu nome no cenário literário com o romance
Memorial do Convento, que com mais de dez edições e 50 mil exemplares vendidos em dois
anos lhe conferiu fama internacional. O romance se destaca por confirmar o estilo de escrita
sarmaguiano de transmitir a oralidade, além de trazer à baila uma inesperada versão ao revés
da historiografia oficial. A narrativa combina a história de figuras anônimas com a história da
construção do convento de Mafra. (LOPES, 2010, p. 123)
Dois anos mais tarde apresentou outro projeto sob o título de O Ano da Morte de
Ricardo Reis, onde a humanidade é problematizada através de um enredo que dá vida ao
heterônimo Ricardo Reis do poeta português Fernando Pessoa. Com esse romance, ganha
força a tonalidade crítica em relação à realidade política e social, o que se confirma quatro
anos mais tarde com os romances Jangada de Pedra, e posteriormente com História do cerco
de Lisboa.
Já em 1991, publica O Evangelho Segundo Jesus Cristo, que teve grande repercussão,
não só no mundo da literatura, mas no da religião. Nele o autor assume a tarefa de reescrever
os evangelhos canônicos, sob perspectiva literária e não consoante com a ortodoxia cristã.
Essa desconstrução e releitura gerou inclusive a negação por parte do governo português da
inscrição no Prêmio de Literatura Europeu, o que levou o escritor em protesto a se auto-exilar
nas Ilhas Canárias, passando a viver em Lanzarote até a sua morte no dia 18 de junho de
2010, aos oitenta e sete anos de idade. (SANTOS JUNIOR, 2008, p. 38)
Considerando o conjunto da obra de Saramago e essencialmente os seus romances é
possível dividi-la em duas fases, ou ciclos, a saber: histórica e universal. (SCHSWARTZ,
2005, p. 17)
9

A primeira fase chamada de histórica é composta pelos romances arrolados


anteriormente, no entanto, a sua segunda fase, chamada de universal, de acordo com Adriano
Schwartz, inclui as seguintes obras: Ensaio sobre a cegueira (1995), Todos os nomes (1997),
A caverna (2000), O homem duplicado (2002), Ensaio sobre a lucidez (2004), e As
intermitências da morte (2005). (SCHSWARTZ, 2005, p. 17) Em 2008 publicou A viagem do
elefante e em 2009, Caim que se assemelha à proposta já vista em O evangelho segundo Jesus
Cristo, ou seja, reaproxima o autor do seu ciclo histórico.
O escritor português, embora não tenha estudado, por falta de condições financeiras,
além do equivalente brasileiro ao ensino médio, é detentor de trinta doutorados honoríficos.
Sua obra foi traduzida para mais de trinta idiomas diferentes. Também recebeu mais de vinte
prêmios importantes, nacionais e internacionais tais como Camões em 1995, o mais
importante prêmio da literatura portuguesa, e o Prêmio Nobel de Literatura em 1998. Em
suma, com sua vida e através de suas obras contribuiu substancialmente para a literatura
mundial. (MORAES JUNIOR, 2008, p. 53-54.)

Pró-vocações a-teológicas em Caim

As referências bíblicas, perpassam quase toda a obra do escritor português. Contudo,


em 1991 com o lançamento de O Evangelho segundo Jesus Cristo, o autor deu um passo
maior na direção da apropriação e subversão do texto bíblico. Passo esse que só se
completaria quando da escrita do seu romance mais recente, a saber, Caim. Nele, José
Saramago pretendeu continuar seu projeto de desconstrução e discussão da matéria bíblica.
Como já havia feito isso em relação ao Segundo Testamento cristão, dá continuidade ao seu
projeto questionando e desconstruindo o Primeiro Testamento, texto basilar para judeus e
cristãos, embora tenham diferenças de ordenamento no índice canônico.
Percebe-se que, na (des)construção de Caim, Saramago empreende um projeto
intertextual e de carnavalização, ou seja, seu projeto de reescritura. Ele conhece o discurso
bíblico, difundido pelas religiões judaico-cristãs e encontra, através da agilidade, sutileza,
leveza de pensamento, elementos, caminhos ainda não explorados. Questionar o mundo
bíblico e estabelecer novas interpretações parece ser o seu modus operandi. Por isso,
estabelece através de suas bases religiosas uma leitura extremante crítica e incisiva,
absorvendo-as não com uma postura passiva e ingênua, mas com traços inovadores.
Não será de outra forma que Saramago apresentará em Caim as atrocidades de um
deus, ao longo de todo o romance sempre destacado em letras minúsculas, cruel, capaz de
10

ordenar a Abraão que sacrifique o próprio filho ou a destruição de Sodoma e Gomorra. Nesse
sentido, o diálogo feito com o texto bíblico se delineará por uma linguagem essencialmente
carnavalesca, pois a carnavalização é o elemento que se vale do caráter dialógico da
linguagem para reverter e questionar significados.
O roteiro da narrativa de Caim é o conjunto de passagens mais obscuras do Primeiro
Testamento, nas quais aparece a figura do Deus terrível do Sinai, e do Deus que pede sangue
para ser vingado. Se em O evangelho segundo Jesus Cristo sua escrita era solene, reservando
a Jesus todo o afeto digno de sua humanidade, em Caim a sua pena banhada em tinta cáustica
vai delineando sem alívios ou subterfúgios o rosto de um Deus tirano.
Adão, Eva e Caim são as personagens escolhidas para dar partida à narrativa de
Saramago, justamente por incluírem nas suas biografias a força de se terem rebelado contra o
Senhor. A narrativa de Caim começa com Adão e Eva, exatamente no momento em que Deus
percebe a “gravíssima falta” de não ter contemplado o casal com a linguagem ao contrário de
todos os animais do Éden “desfrutavam já de voz própria”. (SARAMAGO, 2009, p. 9)
Posteriormente, o foco da narrativa passará para Caim, figura igualmente condenada nos
textos sagrados por ter assassinado o irmão, Abel, enciumado por ser este preferido por Deus.
No entanto, reescritura saramaguiana se torna ainda mais clara a partir da consciência do
narrador que conta os acontecimentos da criação do mundo “com melindres de historiador”,
ressaltando, porém, o discurso histórico como falho:

Que eles não disseram aquelas palavras, é mais do que óbvio, mas as dúvidas, as
suspeitas, as perplexidades, os avanços e recuos da argumentação estiveram lá. O
que fizemos foi simplesmente passar ao português corrente o duplo e para nós
irresolúvel mistério da linguagem e do pensamento daquele tempo. (SARAMAGO,
2009, p. 46)

O narrador que questiona a veracidade dos pormenores da história que está sendo
contada aponta não somente para a dessacralização da Bíblia, mas também questiona o
próprio valor documental do texto. O narrador de Caim reflete sobre a situação, de tal maneira
que estimula o leitor a rejeitar o significado literal expresso, optando por um significado que o
transcende. Narrando ficcionalmente as passagens do Primeiro Testamento, a voz anacrônica
em Caim, capaz de lançar sobre o enunciado o olhar crítico do presente, tece considerações
sobre a lógica e a validade dos acontecimentos descritos na Bíblia, que segundo Saramago
deriva de “certificação canônica futura ou fruto de imaginações apócrifas e irremediavelmente
heréticas”. (SARAMAGO, 2009, p. 10)
11

Dessa forma, através do discurso do narrador percebe-se que Caim é tecido sobre o
pano de fundo da tradição judaico-cristã, redesenhando-a a fim de apresentar outra história
possível. Vale observar que o trabalho de reescritura do texto bíblico operado por Saramago já
estava presente em suas obras anteriores. Contudo, em Caim se configura como artifício para
descontruir literariamente o Deus cristalizado pelas tradições cristãs.
Essa releitura dos textos sagrados recheada de críticas contundentes, empreendida pelo
autor português fica claramente expressa através da epígrafe da obra em questão: “Pela fé,
Abel ofereceu a Deus um sacrifício melhor que o de Caim. Por causa da sua fé, Deus
considerou-o seu amigo e aceitou com agrado as suas ofertas. E é pela fé que Abel, embora
tenha morrido, ainda fala.” (SARAMAGO, 2009, p. 8) Referência que está situada em
Hebreus 11,4, que segundo Saramago faz parte do “Livro dos disparates”. Para o escritor
português ateu a Bíblia é o livro dos disparates e por isso é preciso recontá-la.
Assim, em Caim Saramago inverte essa idéia fazendo com que Abel seja assassinado
não pelo motivo alegado na inscrição do livro de Hebreus, mas por ter provocado e
humilhado Caim. Na reescritura saramaguiana fica claro que não há diferenças qualitativas
entre as oferendas de Abel e Caim, tanto quanto não há nas suas intenções ao adorarem ao
senhor. No entanto, a preferência deste pela carne oferecida por Abel deu-se de maneira
inexplicável. “Estava claro, o senhor desdenhava caim”. (SARAMAGO, 2009, p. 33)
No mundo do texto, se Caim executou seu irmão Abel, Deus é o autor intelectual do
crime por ter desprezado a oferta daquele. O que se ressalta na seguinte indagação: “que diabo
de deus é esse que, para enaltecer Abel, despreza Caim?”. (SARAMAGO, 2009, p. 35)
Saramago utiliza o texto bíblico como intertexto e o subverte. Na nova escritura nada
sagrada de Saramago Deus não protege Caim por compaixão, mas por ter sido dobrado pela
retórica do protagonista e reconhecido sua parcela de culpa no assassinato de Abel. O crime
de Caim, contudo, encontra uma justificativa: matar ao irmão por não poder matar àquele, a
saber, Deus, que o condena a uma existência fadada ao fracasso.
O crime cometido contra Abel será apenas o começo de uma vida pontuada por
transgressões. Afinal, o personagem que dá nome ao romance percorre um imenso itinerário
por meio de um poder concedido por deus: o de se deslocar através do tempo, podendo
revisitar o passado e conhecer o futuro. Através desse percurso trava uma batalha com Deus.
Ao passar por cidades decadentes, palácios e campos de batalha, Caim vai descobrindo o
poder de manipulação de Deus que, para ele, é tão pecador quanto os homens. Nesse sentido,
o criador se igualaria a suas criações, tese que ele tenta provar durante seu percurso. Assim, a
questão desvelada pelo sentido da vida que segundo os pensamentos cristãos mais
12

conservadores se resolve através da supremacia inquestionável dos propósitos de Deus é


colocada em xeque ao longo de todo o romance.
Em suma, é justamente a utilização do texto bíblico como intertexto no projeto de
reescritura que vai desenhando a possibilidade de se entrever em Caim a imagem do Deus
sanguinário e cruel que vai se formando e se configurando como fio condutor de toda a
narrativa.
Dessa forma cabe ressaltar que tanto o narrador consciente dos fatos, quanto os
personagens são de extrema importância para a reescritura de Saramago. O narrador
saramaguiano elege para protagonizar sua narrativa as personagens eleitas pela tradição cristã
como exemplos de má conduta. São elas: Adão, Eva e Caim, sem mencionar as personagens
que, em menor estância, influem na construção ideológica do romance, como a mulher de Ló,
por exemplo. Contudo, no contexto da narrativa essas personagens se elevam justamente na
oposição a um Deus que se mostra infanticida, egocêntrico, cruel e egoísta.

A questão das imagens de Deus

A questão das imagens de Deus “é um emaranhado nem sempre fácil de


compreender.” (MARDONES, 2009, p. 12) Como destaca Maria Clara Bingemer, “desde que
o mundo é mundo, desde que a humanidade ensaia seus primeiros passos sobre a terra o ser
humano busca o rosto de Deus.” (BINGEMER, 2005, p. 11) Ou seja, as imagens de Deus
nascem das interpretações a seu respeito e são herdadas.
Em Caim há uma crítica contundente contra uma representação de Deus presente no
cristianismo atual, mas que foi forjada a partir do paradigma da antiguidade. De acordo com
Queiruga,

Essa distância entre nosso presente e nosso passado é o preço que devemos pagar
por algo que constitui uma das maiores riquezas do cristianismo: sua antiguidade.
Esta implica enorme tesouro de experiências e saberes, tanto teóricos como práticos.
Mas significa também que nos chega a compreensão da fé em molde cultural que
pertence a um passado que em grande parte já se tornou caduco. (QUEIRUGA,
2006, p. 11-12)

Afinal, o mundo contemporâneo não é mais aquele em que viveram as gerações


passadas. A afirmação da fé cristã não é tão óbvia quanto antes. Hoje as pessoas interagem de
um lado com o ateísmo ou indiferença religiosa e de outro com o universo em expansão das
religiões. (BINGEMER, 2005, p. 11)
13

Assim, o que se está a exigir do cristianismo é uma remodelação dos meios com que
este compreende a sua própria experiência. Evidentemente alguns passos já foram dados nessa
direção. Entretanto, vasculhando a história percebe-se que quase sempre que se exigiu uma
revolução rumo ao futuro o que se viu foi uma volta ao passado. (QUEIRUGA, 2006, p. 13)
Quando não há essa consciência que, inclusive, permite enxergar a limitação das
representações de Deus, assume-se um Deus distorcido.
Por isso, com certa razão, na narrativa do romance saramaguiano em questão encontra-
se a crítica a um Deus distante, controlador, cruel e intervencionista. A idéia fundamental de
Saramago nesse romance é a de que Deus prejudica a vida. Isso porque ele suprime a
liberdade humana obrigando a pessoa a submeter-se à sua vontade e porque ele é indiferente
ao sofrimento, uma vez que, podendo nada faz para amenizar a aflição e o mal.
O Deus desenhado pela pena do escritor lusófono, bem como aquele que habita a
cabeça de muitos ateus, não é um elemento relevante, impulsionador e libertador da pessoa
humana. Ao contrário, ao redor de sua imagem, se acumulam medos, cargas morais,
repressões ou reduções vitais. (MARDONES, 2009, p. 11) Por isso, é extremamente
importante repensar a imagem de Deus. Segundo Queiruga, é a imagem que se tem de Deus
fator determinante na compreensão do mundo. Como ele mesmo afirma: “Dize-me como é teu
Deus e dir-te-ei como é tua visão do mundo; dize-me como é tua visão do mundo, e dir-te-ei
como é teu Deus.” (QUEIRUGA, 2006, p. 11) Além disso, são essas representações de Deus
que o tornam acessível à experiência humana. Ou seja, a partir delas é que os que crêem se
relacionam com ele.
Evidentemente, são muitas as tentativas de superação dessa imagem deturpada e
distorcida de um Deus déspota e tirano indiferente aos sofrimentos que fica assentado nos
céus controlando fantoches humanos para cumprir seus propósitos e intervém arbitrariamente
privilegiando uns poucos. Aqui se pretendeu verificar como a crítica do escritor lusófono, nas
linhas da narrativa de Caim, pode dialogar com a teologia e contribuir para a derrubada dessa
imagem equivocada de Deus.

Conclusão

Portanto, a partir do itinerário proposto por Saramago para o personagem que dá nome
a obra, passando por diversos episódios do Primeiro Testamento, e por sua interpretação pelo
narrador vislumbra-se suas provocações a-teológicas. O perfil do Ser divino saramaguiano é
de um Deus violento atroz, punitivo e vingativo. Deus esse que Saramago deseja matar. Por
14

isso, ao acolher a crítica presente em Caim chegamos à conclusão de que é possível propor
uma reconversão desta imagem de um Deus distante, dominador, potente e guerreiro.
Ou seja, a partir do diálogo com a obra sarmaguiana ficam evidentes as falhas no
estereótipo religioso de um Deus justiceiro, violento, determinista, intervencionista, e que
opera sua vontade arbitrariamente. Deus esse que precisa morrer para que seu túmulo se torne
berço do Deus que delicadamente respeita a autonomia das realidades criadas e está
solidariamente e empaticamente junto com os seres humanos em seus sofrimentos. Assim,
depois deste percurso, é possível afirmar que a pena de Saramago, no diálogo com a teologia
tornou-se ferramenta iconoclasta que auxiliou na derrubada de imagens equivocadas do Deus
cristão.
Nesse sentido, esperamos ser essa pesquisa, além de um passo preliminar na direção
do caminho da profícua relação com os textos sarmaguianos, um convite traduzido na beleza
das palavras de David Turoldo citadas por Leonardo Boff:

Irmão ateu, nobremente empenhado na busca de um Deus que eu não sei te dar,
atravessemos juntos o deserto! De deserto em deserto, andemos para além das
florestas das diferentes fés, livres e nus rumo ao Ser nu. Ali onde a palavra morre,
encontrará nosso caminho seu fim. (BOFF, 2012, p. 16)

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