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Milton Schwantes*
INTRODUÇÃO
Há que considerar o que seja fé: o evento que atribui às gratuidades de Deus minha
própria vida. Fé não resulta, pois, da igreja ou de quem quer que seja; brota do coração de
Deus em nossos corações. Por isso, para entendê-la e assumi-la estamos livres para inverter-
nos: isto é, os caminhos do triúno Deus em nós, em Jesus, o crucificado e ressurreto, fazem
brotar em nós e nas comunidades o anseio inusitado e comovedor de sermos suas seguidoras
e seus seguidores. Por isso, vamos às lutas da vida, em especial para promover um mundo de
irmãs e irmãos. E assim passa a estar constituída a tarefa ética da política. Não basta o amor a
indivíduos, ainda que estes jamais possam ser relegados, mas somos convocados e vocacionados
ao amor e à justiça com dimensões políticas. Nesta solidariedade, os melhoramentos sociais
devem ser em prol do conjunto social, partilhado com cada pessoa.
“O que diremos, pois, à vista destas coisas? Se Deus é por nós, quem será contra nós?”
(Romanos 8,31) Portanto, estou aqui para recomeçar. Não vim aqui para continuar a desferir
* Doutor em Teologia pela Universidade de Heidelberg. Foi professor titular do Programa de Pós-Graduação em Ciências
da Religião da Universidade Metodista de São Paulo/UMESP. A publicação desse texto torna-se uma homenagem
póstuma ao referido professor Milton, falecido em 01 de março de 2012.
1
Este ensaio tem por base a conferência apresentada no encontro “Ética e fé na atuação política”, no 2º Encontro Mineiro
de Fé e Política – “Consolidar o Poder do Povo: Paixão, Luta e Resistência”, em Belo Horizonte/MG, SESC-Venda Nova,
em 1 e 2 de outubro de 2005.
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mais algumas pedradas. Já jogaram muita pedra. Já lançamos outras tantas. Dentre quem as
lançou muitos o hão de ter feito porque sempre é melhor jogar pedras que esperar até que nos
lancem. Ataque precede a defesa. Mas nem vou ao ataque e nem à defesa. Isso aí já cansou. A
meleca que tanto vemos noutros é também a mesma meleca pela qual eles nos vêem.
Nos primeiros dias deste reboliço de corrupção, falava com um dos feirantes do Bairro da
Saúde, onde moro em São Paulo. A feira é tarefa minha. O vendedor esbravejava sobre ladrões
e corruptos, nesta política à moda brasileira. Perguntei-lhe, enquanto lhe comprava uma dúzia
de ovos: “E se pintasse um milhão aí em sua frente, você levava?” Sua resposta foi imediata e
sem carecer de mais pensamentos: “Ah, levava!”. Pois é, o pior da corrupção é a gente, nós que
fazemos nossa feirinha aos domingos, não levamos chance. Bem, isso não explica tudo, mas
faz entender melhor a ‘rebelião’ do moralismo. Enfim, quem pousa de moralista está próximo
de quem se esconde por roubo.
Não me deu vontade ir ao assunto pela indignação moral. Ela tem lá seus direitos.
Mas que não sejam demasiados. Porque a moralidade tende à cegueira como o roubo. Não à
cegueira de não ver aos outros, mas à capacidade de ver a própria desfiguração. Neste sentido,
alegra-me em perceber que moral realmente tem perna curta.
Nestas minhas reflexões expressaria minha dúvida sobre o moralismo e mesmo sobre
a moral, porque nela prevalecem imposições e autoritarismo, que exigimos de outros sem
alcançarmos, nos mesmos, a adequarmos a elas! É que a fé não se constitui de catálogos de
moral, antes de um evento da gratuidade e da graça. Este é nosso primeiro item: “o justo vive
na fé”, e, por isso, se esmera em adequar-se à justiça e à verdade. E isto é um caminho, um
experimento ético de incessantes tentativas e conversões no humilde intuito de acerto, não é
uma perfeição moralista com ares de arrogante superioridade. Por isso, ser justo e digno é, na
Escritura, marca de crianças e pobres, doentes e desesperados.
Descrever a sequencia dos conteúdos da palestra.....
De algum modo nos viemos acostumando a analisar a religião. Quando o fazemos, tendemos
a enfocar os personagens históricos e seus comportamentos. E isso está bem assim. Afinal, religião
é antes de tudo o que se vê e se vive. Não é o escondido das coisas. Não é ciência oculta. É o que se
evidencia, se narra, se conta e se pensa, à luz do dia, sem subterfúgios nem engodos.
Por aí todos nos vamos fazendo cientistas da religião, na própria igreja assim atuamos e
nos explicamos, como se religião fôssemos. Aliás, o somos, ao caminhar à igreja aos domingos,
no mesmo horário, do mesmo jeito, de roupas similares. Igreja está repleta desses passos,
dessas roupas, desses horários, dessas festas – tudo religioso. Como não haveríamos de querer
ver-nos religiosos?
2
Confira Hans Walter Wolff, Dodekapropheton 1 – Hosea, Neukirchen, Neukirchener Verlag, 2a edição, 1965, 322p.
(Biblischer Kommentar Altes Testament 14/1), em inglês: Hosea – A Commentary on the Book of the Prophet Hosea,
Philadelphia, Fortress Press, 1974, 259p.; veja tambem Jorge Mejía, Amor, pecado, alianza – Una lectura del profeta
Oseas, Buenos Aires, Ediciones de la Facultad de Teología de la U.C.A./Patria Grande, 1997, 159p., e Horacio Simián-
Yofre, El desierto de los dioses – Teologia e historia en el libro de Oseas, Córdoba, Ediciones El Almendro, 1992, 286p.
3
Veja Domingos Sávio da Silva, Habacuc e a resistência dos pobres – Tradução crítica do profeta Habacuc, Aparecida/
SP, Santuário, 1999, 342p. (Série Bíblica 5).
4
Assim na versão de João Ferreira de Almeida.
5
Assim na versão da Bíblia Pastoral.
6
Veja Walter Altmann, Lutero e libertação – Releitura de Lutero em perspectiva latino-americana, São Leopoldo/São
Paulo, Sinodal/Ática, 1994, 352p.
7
É o que significa “Gólgota”! Veja Marcos 15,22.
11
Veja Fernando Belo, Lectura materialista del evangelio de Marcos – Relato-práctica-ideología, Estella, Editorial
Verbo Divino, 1975, 471p.
12
Veja a respeito de Paulo o ensaio metodológico de José Severino Croatto, Êxodo – Uma hermenêutica de liberdade, São
Paulo, Edições Paulinas, 1981, 179p. (veja o capítulo sobre Paulo).
13
Veja a respeito Pablo Manuel Ferrer, “Corinto, tiempos mesiánicos – Pistas para leer 1º Corintios y nuestra realidad”,
em RIBLA, Petrópolis, Vozes, vol.62, 2009/1.
14
Veja o comentário de José Comblin, Epístola aos Colossenses e Epistola a Filemon, Petrópolis, Editora Vozes, 1986,
107p. (Comentário Bíblico – NT).
15
Veja a respeito Walter Altmann, Lutero e libertação, e Ernst Käsemann, An die Römer, Tubinga, J. C. B. Mohr, 3a
edição, 1974, 411p. (Handbuch zum Neuen Testament 8a).
18
Veja em relação a tais conceitos a pesquisa de Erhard S. Gerstenberger, Wesen und Herkunft des “Apodiktischen
Rechts”, Neukirchen, Neukirchener Verlag, 1965, 162p. (Wissenschaftliche Monographien zum Alten und Neuen
Testament 20).
19
Veja a obra de Paulo Freire, Pedagogia da autonomia – Saberes necessários à prática educativa, São Paulo, Paz e Terra,
2a edição, 1997, 165p.
20
Veja Milton Schwantes, “A terra não pode suportar suas palavras” (Amós 7,10) – Reflexão e estudo sobre Amós, São
Paulo, Paulinas, 2004, 206 p.
21
Veja a respeito Gerhard Liedke, verbete xpt, em Diccionario Teológico Manuel del Antiguo Testamento, Madri,
Cristiandad, vol.2, 1985, colunas 1238-1265.
22
Veja Hans Walter Wolff, Antropologia do Antigo Testamento, São Paulo, Edições Loyola, 1975, 329 p.
23
Veja a respeito Silvia Schroe e Thomas Stäubli, Simbolismo do corpo na Bíblia, São Paulo, Edições Paulinas, 2003,
307p. (Série Bíblia e História).
Essa frase programática situa-se no espaço da sabedoria. Além de reunir frases sobre a
experiência, a sabedoria tende a alcançar afirmações contundentes e programáticas. A profecia
tende a captar tais máximas sociais para fixar suas intuições sociais (veja também Amós 5,24
e Miqueias 6,8). Não se trata aí de normas, mas de intuições.
Feitas essas observações sobre experiências abrangentes da profecia em relação à
ética, convém não esquecer que sua preocupação maior é a da crítica arrasadora e da ameaça
devastadora aos senhores do poder. Fixo-me, no final, tão somente no aspecto da ameaça,
considerando que o assunto tem sido bem estudado na pesquisa sobre a profecia.
24
Veja a respeito de Oseias 6,6 a interpretação de Hans Walter Wolff, “‘Wissen um Gott’ bei Hosea als Urform von
Theologie”, em Gesammente Studien zum Alten Testament, Munique, Christian Kaiser Verlag, 1964, p.182-205, e
Dodekapropheton 1 – Hosea, p.153-154; veja também Carlos Mario Vásquez Gutiérrez, Oseas 6,6 – Reconstruyendo
el tejido social la solidaridad uma alternativa frente a la violencia institucional, São Paulo, Faculdade de Teologia
Nossa Senhora da Assunção, 1995, 186p. (dissertação de mestrado).
FERRER, Pablo Manuel. Corinto, tiempos mesiánicos – Pistas para leer 1º Coríntios y nuestra
realidad em RIBLA, Petrópolis, Vozes, vol.62, 2009/1.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia – Saberes necessários à prática educativa. São Paulo,
Paz e Terra, 2a edição, 1997.
GERSTENBERGER, Erhard S. Wesen und Herkunft des “Apodiktischen Rechts”.
Neukirchen, Neukirchener Verlag, 1965. (Wissenschaftliche Monographien zum Alten und
Neuen Testament 20).
GUITIÉRREZ, Carlos Mario Vásquez. Oseas 6,6 – Reconstruyendo el tejido social la solidaridad
uma alternativa frente a la violencia institucional. São Paulo, Faculdade de Teologia Nossa
Senhora da Assunção, 1995. (Dissertação de Mestrado).
KÄSEMANN, Ernst. An die Römer, Tubinga, J. C. B. Mohr, 3a edição, 1974.
LEHMANN, Paul L. Ethics in a christian context. Nova Iorque, Harper & Row, 1963.
LIEDKE, Gerhard. Diccionario Teológico Manuel del Antiguo Testamento. Madri,
Cristiandad, vol.2, 1985.
MEJÍA, Jorge. Amor, pecado, alianza – Una lectura del profeta Oseas, Buenos Aires, Ediciones
de la Facultad de Teología de la U.C.A./Patria Grande, 1997.
SCHORE, Silvia e STÄUBLI, Thomas. Simbolismo do corpo na Bíblia. São Paulo, Edições
Paulinas, 2003. (Série Bíblia e História).
SCHWANTES, Milton. A terra não pode suportar suas palavras (Amós 7,10) – Reflexão e
estudo sobre Amós. São Paulo, Paulinas, 2004.
SHAULL, Richard. De dentro do furacão – Richard Shaull e os primórdios da Teologia da
LibertaçãO. São Paulo, Sagarana/CEDI/CLAI/Programa Ecumênico de Pós-Graduação em
Ciências da Religião, 1983.
1
Doutor em Ciências da Religião pela PUC/GO. Professor Adjunto na mesma Pontifícia Universidade Católica de
Goiás. E-mail: paulo.passos@yahoo.com.br
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Introdução
Um processo acelerado de migração interna nas últimas décadas, como diz Anthony
Gidens “um desencaixe dos sistemas sociais”, é catalisado no Brasil em razão da política
econômica de substituição de importações. Essa mudança na orientação macroeconômica
redefine os paradigmas valorativos, bem como o direcionamento demográfico da sociedade
brasileira. A partir da década de 1930, uma massa humana depreende-se das suas regiões
e das suas raízes culturais em direção às incipientes metrópoles nacionais. Motivadas pelas
velhas e novas necessidades sociais, promissora perspectiva de superação existencial pautada
na subsistência conduz e induz a ressignificação das idiossincrasias individuais e coletivas.
O crescimento dos espaços urbanos potencializa fluxo migratório para as cidades,
todavia, esses novos espaços não estavam estruturalmente preparados. Além das carências
2
Deuteropentecostais (ou Deuteropentecostalismo) é o termo que designa a segunda onda do movimento Pentecostal que
surgiu na década de 1950, como no Brasil, quando chegaram a São Paulo dois missionários norte-americanos, Harold
Williams e Raymond Boatright, da International Church of The Foursquare Gospel (grupo que nos Estados Unidos é
considerado como Pentecostal de primeira onda). Na capital paulista eles criaram a Cruzada Nacional de Evangelização
e, centrados na cura divina, iniciaram a evangelização das massas, principalmente pelo rádio, contribuindo bastante
para a expansão do pentecostalismo no Brasil. Fundaram depois a Igreja do Evangelho Quadrangular. No seguimento,
surgem grupos semelhantes, tais como O Brasil para Cristo, Igreja Pentecostal Deus é Amor, Igreja Unida, Igreja do
Evangelho Quadrangular, Casa da Bênção entre outras. O Deutero-Pentecostalismo enfatiza a cura divina e profecias,
embora valorize o falar em línguas, distingue-se do Pentecostalismo Clássico pelo seu menor foco nesse carisma.
Quanto à ética e costumes, há uma polarização, e tornou se mais rígido caso da Igreja Pentecostal Deus é Amor, ou
mais liberal como na Igreja do Evangelho Quadrangular.
Considerações finais
Bibliografia
BERGER, Peter L. O Dossel Sagrado: Elementos para uma Teoria Sociológica da Religião.
São Paulo: Paulus, 1985.
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2005.
MONTES, Maria Lúcia. Et allii. História da Vida Privada no Brasil. Vol 04. São Paulo: Cia
das Letras, 1998.
Introdução
1
Doutor em Ciências da Religião e Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião – UEPA.
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ausente essa rejeição, armazenaria, no melhor dos casos, nas conservas de sua
memória ou nas reservas de seu território” (Grifos no original)2.
2
DESROCHE, Henri. Dicionário de messianismos e milenarismos. São Bernardo do Campo: Umesp, p.16.
3
DESROCHE, op. cit., p.16, citando Bastide.
4
Atos dos Apóstolos, cap. 2:14-21. In: Bíblia Sagrada. Edição Revista e Atualizada. São Paulo: Sociedade Bíblica do
Brasil, 1993. Esta versão é a mais utilizada pelos membros da Assembleia de Deus.
5
O próprio cristianismo no contexto judaico-romano; Thomas Münzer e os camponeses na Alemanha de Lutero, a
revolução puritana na Inglaterra, as revoluções religiosas no mundo islâmico etc.
Conteúdos messiânicos-milenaristas nos movimentos pentecostais e neopentecostais • Dr. Saulo Baptista Cerqueira
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Segundo Josildeth Consorte6, “a mentalidade messiânica se apresenta sempre com
as mesmas características básicas, nas quais a crença na interferência do sobrenatural nas
transformações a serem operadas no mundo ocupa uma posição central”, adicionada à crença
“de que esta interferência se manifestará através do envio de um salvador”, o que possibilitará
o desencadear de um movimento com características messiânicas. O grupo que assim crê
também alimentará outras convicções, como:
6
CONSORTE, Josildeth Gomes. Mentalidade messiânica. In: VV. AA. A vida em meio à morte em um país do terceiro
mundo. São Paulo: Paulinas; São Bernardo do Campo: IMS, 1983, p. 44.
7
Idem, ibidem, p.44.
Conteúdos messiânicos-milenaristas nos movimentos pentecostais e neopentecostais • Dr. Saulo Baptista Cerqueira
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Pedro8, é fundamental para a teologia da Assembleia de Deus (e de outros grupos pentecostais,
acrescentaríamos aqui).
8
Confira texto de Atos 2: 14-21, transcrito na p.4.
9
GUIMARÃES, Robson Franco. Os últimos dias: crenças, sentimentos e atitudes dos pentecostais da igreja Assembleia
de Deus diante da volta de Cristo. Monografia apresentada em cumprimento parcial às exigências da disciplina História
Social da Religião do programa de pós-graduação em Ciências da Religião – Mestrado. São Bernardo do Campo:
Umesp, julho/2003, p.4-5. (Inédita).
10
GUIMARÃES, op.cit., p.5.
Conteúdos messiânicos-milenaristas nos movimentos pentecostais e neopentecostais • Dr. Saulo Baptista Cerqueira
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Correntes milenaristas no cristianismo11
11
Esta seção foi elaborada com base nas obras: HUTCHINGS, Noah W. Arrebatamento e ressurreição. Rio de Janeiro:
Betel, 1996, e JESUS, Erivaldo de. Escatologia: um tratado sobre o fim do mundo. Edição do autor, sem indicação de
local, 2001.
12
Jesus, op. cit., p. 10.
Conteúdos messiânicos-milenaristas nos movimentos pentecostais e neopentecostais • Dr. Saulo Baptista Cerqueira
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Na explicação do pastor Erivaldo de Jesus:
13
JESUS, op.cit., p. 9.
14
Apud Hutchins, op. cit., p. 92.
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ensinos de Montano e também foi excluído. Não obstante, um discípulo seu, John Newton
Darby, tornou-se líder dos Irmãos de Plymouth. Segundo Darby, Jesus Cristo virá para
arrebatar discretamente sua igreja nos ares, seguindo-se sete anos de uma grande tribulação
para os que permanecerem na Terra, quando aparecerá o Anticristo. Essa tribulação terminará
quando o Anticristo reunir as nações para a batalha do Armagedom. Nessa ocasião, Cristo
triunfará sobre as forças do mal e “todo o Israel será salvo” (Romanos 11: 26). Em seguida, o
Messias voltará com os seus eleitos e inaugurará um reino de mil anos aqui na Terra. Durante
o milênio, Satanás estará preso, mas será libertado no fim do período.
O sistema de dispensações começou com Darby. Antes dele, existia apenas o pré-
milenismo histórico, mas com ele nasceu o pré-milenismo dispensacionalista. Segundo
Scofield, seguidor de Darby: Dispensação “é o período de tempo durante o qual os homens
são provados a respeito da obediência a certa revelação da vontade de Deus”15. Assim, temos
a história da humanidade dividida em sete dispensações ou oportunidades concedidas por
Deus ao ser humano, para este cumprir os propósitos do Criador:
Conteúdos messiânicos-milenaristas nos movimentos pentecostais e neopentecostais • Dr. Saulo Baptista Cerqueira
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De esta manera, el premilenarismo es privado de dos elementos
esenciales: la perspectiva hacia el futuro y la dinámica de la desesperación. El
dispensacionalismo más bien petrifica al premilenarismo, convirtiéndolo en una
verdad sobre la historia y sobre el mundo, y situándolo dentro de un modelo
histórico-filosófico de épocas. De este modo, el dispensacionalismo convierte la
escatología premilenarista de una expresión ferviente de desesperación en una
doctrina fácilmente manejable, y de esta manera ideal para una iglesia pentecostal
grande y autoritaria.”16
Arrebatamento parcial
Para alguns pentecostais, haverá um arrebatamento da parte mais fiel da igreja, antes da
Grande Tribulação. Será uma forma de poupá-los do extremo sofrimento que vai pairar sobre
os habitantes da Terra. Hutchins rejeita essa interpretação, com base em I Coríntios 15: 51-2,
onde se lê que “todos seremos transformados”.
Arrebatamento pós-tribulação
Outros afirmam que a igreja também passará pela tribulação. Neste caso, o sermão
profético de Jesus em Mateus 24 estaria descrevendo situações onde a igreja será participante.
O fim da dispensação da igreja acontecerá somente quando Jesus chamar todos os seus fiéis
dentre os gentios. Então ele retornará literalmente à Terra e reconstruirá o tabernáculo de
Davi. Essa era da igreja é chamada “plenitude dos gentios” (Romanos 11: 25).
Arrebatamento inter-tribulação
A igreja passará pela tribulação nos três anos e meio iniciais e será arrebatada, quando
o Anticristo se comprometer com a “abominação da desolação”. Nessa primeira fase haverá
fome, problemas sociais e revoluções, mas não chegará a acontecer extermínios em massa.
Não obstante, o quarto selo do Apocalipse, cap. 6, registra que 25% da população terrestre será
exterminada pela fome.
Reportamo-nos, agora, a Daniel, cap. 9, onde há referência a sete semanas de anos
(quatrocentos e noventa anos), para se cumprir a promessa de Deus. Quando Jesus foi
crucificado haviam-se passado quatrocentos e oitenta e três anos, restando sete anos que
deveriam ser cumpridos durante a Grande Tribulação. Há uma interrupção na contagem dessas
16
SCHÄFER, Heinrich. Protestantismo y crisis social em América Central. San José (Costa Rica): DEI, 1992, p.56.
Conteúdos messiânicos-milenaristas nos movimentos pentecostais e neopentecostais • Dr. Saulo Baptista Cerqueira
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semanas, porque Israel passa a ser substituído pela igreja, até que se complete a “plenitude
dos gentios”, conforme o esquema das dispensações. Esses sete anos deverão ser contados a
partir da assinatura de um tratado de paz no Oriente Médio, entre o Anticristo e Israel, no
qual uma parte das terras prometidas aos patriarcas dos hebreus será alienada. No meio dessa
semana de anos (3 ½ anos) o Anticristo quebrará o acordo firmado e se comprometerá com a
“abominação da desolação” (Daniel, Mt. 24, II Ts. 2:4 e Ap. 13).
Arrebatamento pré-tribulação
O arrebatamento antes da tribulação será um acontecimento secreto. Subitamente, será
notada a ausência de milhares de pessoas. Erivaldo de Jesus descreve: “No arrebatamento,
Jesus virá até as nuvens. Seus pés não tocarão o solo desta vez, como acontecerá mais tarde,
quando Ele se revelar publicamente, descendo sobre o Monte das Oliveiras, em Jerusalém na
sua vinda em Glória”17. Para o mesmo autor “o arrebatamento é o casamento de Cristo com a
sua Igreja”18.
No interregno, arrebatamento da Igreja e vinda de Cristo à Terra, cento e quarenta e
quatro mil judeus convertidos serão guardados em local seguro. Provavelmente, Petra ou Sela,
capital de Edom, uma fortaleza a noventa e seis quilômetros ao sul do mar Morto. (Isaías 16:
1). Depois da “abominação da desolação” eles também serão arrebatados19.
A era da igreja cessará com o fim da Tribulação, quando Cristo descer sobre o monte
das Oliveiras para estabelecer o seu reino de mil anos, literalmente. Nessa ocasião, ocorrerá
a ressurreição e o juízo dos não-salvos. Em seguida, virá a eternidade. No Apocalipse 20, o
capítulo do milênio, pode-se ler sobre:
No milênio, as pessoas terão longevidade, quem completar cem anos ainda será
jovem. Doenças e defeitos físicos serão curados. Os problemas ambientais serão superados.
Carneiros se deitarão com lobos. As tribos de Israel serão novamente divididas e ocuparão
a terra prometida. Será construído um templo milenial, tendo Jesus como o sumo-sacerdote
(Zacarias 6). As águas do mar Morto serão purificadas e proliferará uma abundância de peixes.
17
Op.cit., p. 32.
18
Idem, p. 34.
19
HUTCHINS, op.cit., p. 113.
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Satanás ainda será libertado por pouco tempo, a fim de testar a fidelidade dos que
nasceram no período da Tribulação e escolheram servir a Deus. Também tentará seduzir as
nações. Gogue e Magogue são citadas como nações rebeldes. Os pentecostais costumavam
identificá-las como sendo as que constituíam a União Soviética. Hoje fica difícil manter essa
interpretação.
Cenas finais
Os outros mortos que se perderam ressuscitarão somente depois do milênio (Apoc.
20:5). Os que não tiverem seus nomes escritos no livro da vida sofrerão a agonia eterna do
“lago de fogo”. Entre estes estarão os que receberam a marca da besta.
Os capítulos finais do Apocalipse trazem a visão de “novos céus e nova terra”. A nova
Jerusalém será um cubo de doze mil estádios de aresta. Para converter em metros, basta
multiplicar por 185 e elevar à 3ª potência. O número obtido é superior a dez bilhões de metros
cúbicos. Na nova terra não haverá tristeza. Será o Éden ou paraíso restaurado, com a árvore
da vida dando um fruto diferente cada mês. Esse paraíso jamais será perdido, como aconteceu
no começo da humanidade, porque nele não mais haverá Satanás, nem morte, nem “árvore do
conhecimento do bem e do mal”.
Conteúdos messiânicos-milenaristas nos movimentos pentecostais e neopentecostais • Dr. Saulo Baptista Cerqueira
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Nos três anos e meio será recebida uma marca, tipo um código de barra
invisível, na costa da mão ou na testa. A marca é seiscentos e sessenta e seis (666),
o número da besta. Quem não receber a marca vai ser perseguido, morto e terá
que negar o nome de Cristo. Aos que permanecerem fiéis, ao final dos três anos e
meio, Cristo vai voltar e arrebatá-los. Ele vem de novo, porque o povo de Israel vai
se converter dentro de grande tribulação. As nações vão encurralar Israel. Este vai
clamar e Cristo vai descer sobre o Monte das Oliveiras, que se vai abrir e o povo
vai passar pela fenda, único lugar por onde eles vão passar, visto que as nações
estarão cercando-os.
Cristo vai guerrear contra as nações. Ele vai descer com os anjos e a igreja
arrebatada. Jesus então começa a reinar na Terra e faz isto durante mil anos. Não
vai agradar a todos. Este é o Reino.
(JSD, 31 anos, sociólogo, Assembleia de Deus, entrevistado em 19.10.2001)
20
GUIMARÃES, op.cit.,p.13.
21
Idem, ibidem, p.14.
22
GUIMARÃES, op.cit., p.16. O autor fundamenta essas afirmações nas seguintes fontes: ALMEIDA, Abraão de. Israel,
Gogue e o Anticristo. Rio de Janeiro: CPAD, p. 52-76; e Mensageiro da Paz, ano 72, nº 1417, junho de 2003, p.13.
Conteúdos messiânicos-milenaristas nos movimentos pentecostais e neopentecostais • Dr. Saulo Baptista Cerqueira
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Finalmente, cabe registrar que, para o pentecostal, a volta de Cristo depende da
propagação do evangelho a todas as pessoas. Alguns interpretam que bastaria a mensagem
chegar a todos os povos, e não necessariamente a todos os indivíduos, pois neste caso estaria
cumprido o requisito presente na declaração atribuída a Jesus Cristo: “E este evangelho do
reino será pregado no mundo inteiro, em testemunho a todas as nações, e então virá o fim”.23.
Em qualquer hipótese, cabe ao fiel tornar-se um fervoroso evangelista, cumprindo o seu dever
e ao mesmo tempo contribuindo para apressar a volta do Senhor Jesus. Assim, o proselitismo
e a escatologia caminham juntos na expressão da fé pentecostal, onde o leigo é tão responsável
na propagação do evangelho quanto os pastores e evangelistas. Neste particular, aparece, mais
uma vez, no sentido prático, a ênfase do pentecostalismo no “sacerdócio universal de todos os
crentes”.
23
Evangelho de Mateus, cap. 24:14. In: Bíblia Sagrada.
24
MARIZ (1994), CAMPOS MACHADO (1996), ROLIM (1980), CHESNUT (1997), servem de exemplos neste sentido.
25
Sobre este assunto, sugerimos ler WEBER, Max. Rejeições religiosas do mundo e suas direções. In: _____. Weber. São
Paulo: Nova Cultural, 1997. (Coleção Os Economistas), p. 155-189.
26
SIEPIERSKI, Paulo Donizéti. Mutações no protestantismo brasileiro: o surgimento do pós-pentecostalismo. In:
DREHER, Martim N. (org). 500 anos de Brasil e igreja na América Meridional. Porto Alegre: EST e Cehila, 2002, p.
414-5.
Conteúdos messiânicos-milenaristas nos movimentos pentecostais e neopentecostais • Dr. Saulo Baptista Cerqueira
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Afinal, Jesus Cristo havia derrotado todos os inimigos, conquistado todos os reinos e
transformado seus discípulos em herdeiros do Pai. O Senhor é o “dono da prata e do ouro”.
Ele não quer ver seus filhos sofrendo, se têm à disposição todos os bens. Basta ao fiel exercitar
sua fé e tomar posse dessa pletora de riquezas. Era a importação da “teologia da prosperidade”
com suas técnicas de confissão positiva que alguém denominou “neurolinguística do pobre”.
Igrejas como a Renascer em Cristo, a Universal do Reino de Deus, a Sara Nossa Terra e a
Internacional da Graça de Deus, entre outras, adotaram essa teologia. A Graça Editorial,
pertencente à última igreja mencionada, passou a editar os livretos de Kenneth Hagin, um dos
principais teóricos dessa nova ideologia.
Sem dúvida, Hagin e seu movimento “Word of Faith”, tendo como quartel general o
Seminário Rhema, tornaram-se o pivô da chamada “confissão positiva”. A rigor não se tratava
de um pensamento novo. Suas fontes vinham desde o Gnosticismo, passando pelas cosmologias
orientais, servindo-se do espiritismo kardecista e da Ciência Cristã. Essek W. Kenyon (1867-
1948), seu principal inspirador, utilizou alguns conceitos metafísicos com técnicas de auto-
ajuda, para estimular a fé no “pensamento positivo”.
Com o propósito de fazer a genealogia desse movimento, Alexandre Brasil Fonseca27
nos oferece as seguintes informações. Em meados do século XIX, na cidade de Boston,
atuava Phineas Parkhurst Quimby, um autodidata, tentando curar neuroses, com base em
“leituras esotéricas e longas meditações acerca das inclinações subjetivas privadas”28. Três anos
após a morte de Quimby, um paciente seu, reverendo Warren Evans publicou, em 1869, o
livro considerado pioneiro dessa linha de “cura mental” (mind cure). O título da obra era,
exatamente, The mental cure.
Nessa mesma época, outra paciente de Phineas Quimby, Mary Baker Eddy, fundou a
Ciência Cristã, religião que se mantém até hoje, com publicações periódicas em várias línguas,
inclusive o português. Seguindo a mesma tendência, outros livros foram editados, tais como:
Power of will (em 1906, vendeu 600 mil exemplares), The secret of sucess e Every man a king.
Bruce Barton publicou, em 1925, The man nobody knows, onde Jesus Cristo é apontado
como o “primeiro grande executivo”, o “primeiro grande anunciante” e o “fundador da forma
moderna de comércio”. Em 1952, começa a fase de sucesso do mais popular divulgador do
“pensamento positivo”, Norman Vicent Peale, que vendeu milhões de livros e foi bastante
exposto pela mídia da época. O pregador Oral Roberts, em 1955, com apenas vinte anos de
idade, lançou a obra God’s formula for success and prosperity. A partir da chamada “Igreja
Eletrônica”, onde Robert Schuller, o próprio Oral Roberts e outros marcavam presença, a
confissão positiva foi popularizada cada vez mais.
27
FONSECA, Alexandre Brasil. Evangélicos e mídia no Brasil. Bragança Paulista: Edusf; Curitiba: Ifan, 2003, p.170-2.
28
MEYER, apud Fonseca, op.cit., p.170.
Conteúdos messiânicos-milenaristas nos movimentos pentecostais e neopentecostais • Dr. Saulo Baptista Cerqueira
211
Kenneth Hagin foi leitor de Essek William Kenyon, discípulo de Phineas Quimby,
conforme mencionamos. Segundo alguns críticos, Hagin apenas plagiou Kenyon. De fato,
examinando o livro “O nome de Jesus”, encontramos citações de Kenyon em quase todas
as 144 páginas da edição em português. Talvez, tentando justificar-se, o autor registrou, na
introdução da obra, o seguinte:
29
HAGIN, Kenneth E. O nome de Jesus. Tradução de Gordon Chown. Rio de Janeiro: Graça Editorial, 1988, p.7 e 9.
30
CAMPOS, Leonildo Silveira. Teatro, templo e mercado: organização e marketing de um empreendimento
neopentecostal. 2. ed. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Simpósio e Umesp, 1999, p.364.
31
FONSECA, op.cit., p.172.
Conteúdos messiânicos-milenaristas nos movimentos pentecostais e neopentecostais • Dr. Saulo Baptista Cerqueira
212
A Igreja Universal constituiu a Associação Beneficente Cristã (ABC), em 1994, para
desenvolver trabalhos de ação social. Em parceria com a Rede Record de Televisão, a ABC
realizou campanhas de assistência às vítimas da seca, através do programa SOS Nordeste.
Durante sua programação comercial, a TV Record convidava os espectadores a levarem
roupas e alimentos não perecíveis aos templos da Igreja em todo o Brasil. Era um programa
assistencialista, de caráter emergencial.
Projeto Nordeste
No ano de 1999, o bispo Marcelo Crivella percorreu várias capitais do Brasil e da África,
fazendo shows em estádios e ginásios de esportes, com o objetivo de arrecadar fundos para
o Projeto Nordeste.32 Em suas viagens a Israel, o bispo Crivella passou a observar as fazendas
coletivas, kibutzim, daí surgindo o desejo de implantar um projeto semelhante no nordeste
brasileiro. Com recursos iniciais de oitocentos e cinquenta mil reais, obtidos em contrato de
gravação do compact disc (CD) “O mensageiro da solidariedade” com a Sony Music, o bispo
começou a implantar a Fazenda Nova Canaã, em propriedade de 450 hectares, adquirida no
município de Irecê, sertão da Bahia33. Esta é a primeira experiência, que o também senador
Crivella pretende multiplicar naquela região. Para isto, ele vendeu, até novembro de 2003, mais
de três milhões de cópias de quatro CDs. O citado, “O mensageiro da solidariedade”, e mais:
“Ajuda teu irmão do sertão”, “Vamos irrigar o sertão” e “Coração a coração”. Além dos CDs,
o bispo tem lançado livros com a mesma destinação, como os seguintes: “501 pensamentos
do bispo Macedo”, “O verdadeiro significado da cruz” (edições em português e inglês) e
“Humildade” (idem).
O projeto abrange plantio irrigado, agroindústria, assistência social para a população
carente dos arredores (principalmente crianças), departamento técnico, biblioteca, laboratórios
e salas de conferência. A Fazenda Nova Canaã abriga uma verdadeira cidade, com trinta casas,
escola agrícola, escola convencional, que atende mais de quinhentas crianças, e o Centro
Educacional Betel, com duzentas crianças na faixa de 3 a 6 anos, recebendo alimentação,
transporte, uniforme e assistência médico-odontológica. Está prevista ainda a implantação
de creche, clínica médica, pousada, igreja, restaurante comunitário, área de lazer e esporte. O
bispo explicou como foi definido esse conjunto de benfeitorias:
32
As informações a seguir foram obtidas na home page: http://www2.arcauniversal.com.br/projetonordeste/interna.
jsp?codcanal=1001, acessada em 14/11/2003.
33
Em janeiro de 2000, o bispo Crivella informava que, além dos 850 mil reais do contrato, pagos pela Sony, já havia
recebido mais 320 mil reais da venda dos CDs. (Entrevista para Eclésia, ano V, nº 50, jan/2000, São Paulo, p. 14).
Conteúdos messiânicos-milenaristas nos movimentos pentecostais e neopentecostais • Dr. Saulo Baptista Cerqueira
213
pessoal de Israel. Foi ali que surgiu a ideia de trazer uma indústria, galpões de
armazenamento, irrigação, uma técnica boa de tirar água do subsolo e criar uma
fazenda com estrutura social para abrigar crianças na fase pré-escolar. E também
para tratar de idosos e pessoas carentes. Tudo isso nasceu da população. A ideia
de criar a fazenda foi nossa, mas como adapta-la ao local veio de todos.34
A irrigação é feita com 550 quilômetros de mangueiras espalhadas em 100 hectares, pelo
processo de gotejamento em cada unidade plantada. Este sistema garante o aproveitamento da
água na quantidade exata requerida pelas plantas e sem desperdício. A captação é feita em
quinze poços artesianos abertos na própria área da fazenda. A produção inclui: feijão, milho,
cenoura, abobrinha, alface, manga, coco, fruta de conde, acerola, cebola e outros vegetais. O
projeto tem sistema de estocagem da produção para evitar perdas e manter uma política de
preços em benefício dos agricultores.
Os técnicos de Israel e do Brasil desenvolveram estudos pedológicos e de potencial
dos recursos hídricos do subsolo. Foram definidas a viabilidade técnica e econômica para a
implantação de uma agroindústria e elaborado um plano plurianual de plantio. O projeto tem
lugar para voluntários. Quem for trabalhar na Fazenda Nova Canaã terá moradia, alimentação,
funções e jornada de trabalho bem definida, lazer e igreja para frequentar e um manual de
convivência a ser seguido. “A pessoa não precisará levar um tostão para lá, mas também voltará
sem um tostão. Ela será sustentada pela fazenda” – informou o bispo35.
Concluindo
34
Entrevista citada, revista Eclésia, idem, p. 16.
35
Idem, ibidem.
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214
movimentos messiânicos surgidos na Oceania, em decorrência da chegada de carregamentos
de provisões, destinados quase exclusivamente aos brancos. Induzidos por seus líderes
religiosos, os indígenas passaram a interpretar que esses carregamentos eram enviados por
seus ancestrais, porém interceptados pelos europeus. A partir dessa concepção, os nativos
repudiaram a religião dos missionários e reforçaram o culto aos ancestrais, com expectativas
milenaristas de prosperidade e restauração da sua cultura36.
Leonildo Campos observa que “são os indivíduos em trânsito, marginalizados,
situados nas fronteiras de ordenamentos sociais diversos, socialmente localizados nos pontos
intermediários de ‘províncias de significados’, ou em fase de ‘alternação’, que se entregam a
sonhos que implicam negação do passado e do presente, e na aceitação de uma teodiceia, que
lhes garanta ser possível a mudança de vida, de forma imediata e global.”37
Essa forma de “compensação”, ainda que meramente simbólica, das perdas de qualidade
de vida para a classe média e de negação do essencial para os empobrecidos, feita mediante
promessas de prosperidade, tem tido tanta força que, na falta de alternativa, levou setores
politizados, como o Partido dos Trabalhadores, a se aliar com o Partido Liberal, espaço onde
estão sendo executadas importantes estratégias do projeto político da Igreja Universal do Reino
de Deus. Ou seja, um segmento da esquerda brasileira, talvez o mais representativo, resolveu
legitimar as ilusões do discurso “cargo” da igreja mais atuante do campo neopentecostal
brasileiro.
Capitulação, oportunismo político ou reconhecimento da impotência para mudar,
face à improvável capacidade de criar uma alternativa ao projeto neoliberal em curso? Só o
desenrolar da História trará resposta a essa indagação. O fato é que, “o sucesso da pregação
neopentecostal é o melhor exemplo da falência de um projeto religioso modernizante, que
provocou a cisão entre o desejo e religião, imaginário e ritual, culto e lazer, corpo e alma.”38
Procurando corroborar o discurso com uma evidência prática, mas não apenas por
isto, a Igreja Universal criou um projeto – a Fazenda Nova Canaã – que é apresentado como
solução para a penúria dos nordestinos. Em editorial da revista Plenitude, foi escrito:
36
Conferir o verbete Cargo cults. In: DESROCHE, Henri. Dicionário de messianismos e milenarismos. São Bernardo
do Campo: Umesp, 2000, p. 140.
37 CAMPOS, op.cit., p.436.
38 CAMPOS, op.cit., p. 438.
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215
sinceridade, honestidade e clareza de objetivos. Chega de demagogia! O Projeto
Nordeste é o exemplo de uma medida eficaz para combater a fome na nossa
Pátria39.
A solução kibutz, trazida pelo bispo Crivella, é ideal para quem não quer enfrentar questões
como a perversa estrutura fundiária brasileira e a acumulação de riquezas, concentrada em
alguns plutocratas do nosso país. O que é bom para os capitais judeus-norte-americanos que
se estabeleceram em Israel deve ser bom para os nordestinos miseráveis do Brasil!...
Esse projeto não é apenas um efeito-demonstração da competência da Igreja Universal,
como se estivesse a proclamar: “Mesmo não tendo a máquina do governo nas mãos, provamos
que somos capazes de resolver o problema do Nordeste. Dêem-nos o poder nas mãos, que
transformaremos o Brasil na nova Jerusalém celestial”. De forma bem realista, a Fazenda Nova
Canaã foi e continuará sendo um cabo eleitoral eficaz na trajetória de ocupação dos reinos
desta terra pela Igreja Universal do Reino de Deus.
Eles conseguiram estabelecer uma sintonia entre os sonhos dos oprimidos e a realidade
“intocável” dos “donos do poder”. Lembrando o que disse Leonildo Campos, o milênio da
Igreja Universal já está presente e ocupa as 24 horas do dia.40 A política praticada por essa
igreja se ajusta ao ideal que as forças conservadoras tanto acalentam: a exemplo de Lampedusa,
prometem mudar tudo a fim de não mudar nada.
Referências
BÍBLIA SAGRADA: Antigo e Novo Testamento. Traduzida em português por João Ferreira de
Almeida, revista e atualizada no Brasil, 2ª edição. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.
CONSORTE, Josildeth Gomes. Mentalidade messiânica. In: VV. AA. A vida em meio à morte
em um país do terceiro mundo. São Paulo: Paulinas; São Bernardo do Campo: IMS, 1983.
39
Revista Plenitude, n.80, ano 21, 2002. Apud MACHADO, Maria das Dores Campos. Igreja Universal: uma organização
providência. In: ORO, Ari Pedro; CORTEN, André; DOZON, Jean-Pierre (org.). Igreja Universal do Reino de Deus:
os novos conquistadores da fé. São Paulo: Paulinas, 2003, p.314.
40
CAMPOS, op. cit., p. 439.
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216
GUIMARÃES, Robson Franco. Os últimos dias: crenças, sentimentos e atitudes dos
pentecostais da igreja Assembleia de Deus diante da volta de Cristo. Monografia apresentada
na disciplina História Social da Religião do Mestrado em Ciências da Religião. São Bernardo
do Campo: Umesp, julho/2003. (Inédita).
HAGIN, Kenneth E. O nome de Jesus. Tradução de Gordon Chown. Rio de Janeiro: Graça
Editorial, 1988 Home page: http://www2.arcauniversal.com.br/projetonordeste/interna.
jsp?codcanal=1001, acessada em 14/11/2003.
JESUS, Erivaldo de. Escatologia: um tratado sobre o fim do mundo. Edição do autor, sl, 2001.
LATOURETTE, Kenneth Scott. Historia del cristianismo. El Paso (Texas): Casa Bautista de
Publicaciones, 1983.
MACHADO, Maria das Dores Campos. Igreja Universal: uma organização providência. In:
ORO, Ari Pedro; CORTEN, André; DOZON, Jean-Pierre (org.). Igreja Universal do Reino
de Deus: os novos conquistadores da fé. São Paulo: Paulinas, 2003.
SCHÄFER, Heinrich. Protestantismo y crisis social em América Central. San José (Costa
Rica): DEI, 1992.
Conteúdos messiânicos-milenaristas nos movimentos pentecostais e neopentecostais • Dr. Saulo Baptista Cerqueira
217
A narratividade em busca da identidade no
livro X das Confissões
Introdução
Este artigo contempla apenas um recorte da análise da problemática das Confissões, sobre
o discurso interior com uma abordagem no quadro da teoria narrativa do conceito de identidade
narrativa2, que tem como pressuposto que Paul Ricoeur foi um leitor das obras de Agostinho.
1
Professora Doutora em Ciências das Religiões da UFPB – Universidade Federal da Paraíba, PB.
E-mail: suelmamoraes@gmail.com.
2
A noção de identidade narrativa abordada por Paul Ricoeur em O si mesmo como um outro, é fruto do desenvolvimento
de uma hipótese lançada ao final de Tempo e Narrativa III, para responder a hipótese se haveria uma estrutura da
experiência capaz de integrar as duas classes narrativas, histórica e de ficção. Ricoeur entrecruza essas duas narrativas
não mais com a perspectiva de suas relações com o tempo humano, como havia feito em Tempo e Narrativa, mas como
um aparato para contribuir com a constituição do si, em que irá propor a distinção e dialética entre a mesmidade e a
ipseidade. RICOEUR, Paul. O si mesmo como um outro. Tradução de Lucy Moreira Cesar. Campinas: Papirus, 1991,
p.137-166.
218
A “hermenêutica do si”3 desenvolvida no conceito de identidade narrativa é considerada
a chave de leitura do livro X das Confissões. Isto, porque Agostinho ao se apropriar da Escritura
para tecer as Confissões, abre uma nova dimensão sobre a compreensão dialética do si mesmo
como um outro.
Para tanto, examino a relação que existe, no texto narrativo de Agostinho, entre
a interpretação da Escritura e a constituição do si. Este círculo hermenêutico tem como
fundamentação o trabalho de Paul Ricoeur que o texto pode, de modo emblemático, introduzir
a ligação essencial entre a leitura da Escritura e a constituição do sujeito.
Entendo que essa leitura possa ser aplicável às Confissões porque a considero como lugar
do esforço que Agostinho tem para compreender-se a si mesmo, expondo-se ao texto escrito.
Agostinho é um dos precursores do discurso interior que faz a passagem da Antiguidade tardia
para o cristianismo sob influências neoplatônicas e estoicas ao desenvolver uma ontologia
cristã, com base na Escritura para descrever o homem interior.
De acordo com Isabele Bochet, a Escritura comanda a interpretação agostiniana de
existência. É à luz da Escritura que ele interpreta sua própria vida; é ainda por meio dessa luz
que ele se interroga sobre o sentido da História. Tal aproximação da hermenêutica agostiniana
não exclui interesse de outras aproximações. Embora frequentemente seja afirmado que
a hermenêutica agostiniana é muito marcada pelo neoplatonismo, a influência dos livros
platônicos não é contestável, mas importa relativizar, mostrando como a leitura da Escritura é
importante para as outras leituras: ela lhes confere seu justo lugar.
Para Bochet, essa perspectiva pode renovar a aproximação do pensamento agostiniano.
De um lado, ela aprofunda um domínio pouco estudado: a hermenêutica escritural de
Agostinho. De outro, ela relativiza toda a pesquisa das fontes que relegam a segundo plano a
relação de Agostinho com a Escritura ou ainda toda aproximação que introduziria dentro da
obra agostiniana uma dicotomia entre os limites da filosofia e da teologia, ou seja, leituras que
qualificam as Confissões como um trabalho filosófico ou teológico5.
3
A ‘hermenêutica do si’encadeia três mediações: a articulação entre a reflexão e a análise, que impõe a dialética entre o
si-mesmo e o si-próprio e ganha dimensão na dialética entre o si-mesmo e a alteridade.
4
RICOEUR, Paul. Interpretação e Ideologias; organização, tradução e apresentação de Hilton Japiassu. Rio de Janeiro,
F. Alves, 1990, p. 58.
5
BOCHET, Isabelle. «Le Firmament de L’écriture». L’herméneutique augustinienne. Collection des Études
augustiniennes, 172. Institut d’Études Augustiniennes, Paris, 2004, 103.
As Confissões foram escritas por volta de 397 a 401.8 A obra passa principalmente por
um período de discussões contra o materialismo maniqueísta e, conforme Pierre Courcelle9,
o livro X pode ter sido escrito especialmente em resposta às calúnias lançadas sobre o autor
Agostinho e àqueles que partilhavam da mesma fé. A narração do livro recorre em grande
parte à correlação da fonte primária, a Bíblia, com textos de Cícero e romances por vezes
citados, nas Confissões, cercado de uma intratextualidade. Existem trechos tematizados e
intercalados que podemos reler nas demais obras de Agostinho que foram desenvolvidos ao
longo de sua chegada ao episcopado. Agostinho é autor de extensa obra literária, comparada
a uma sinfonia. No conjunto das diversas obras, ressoam as várias vozes na harmonia de
sua grande obra, as Confissões, em que é possível perceber certa maturidade de sua obra
literária. É possível identificar tanto as obras anteriores às Confissões quanto antecipações
de obras posteriores, de conteúdos entrelaçados à composição da narrativa. Como exemplo,
Mourant10 afirma que há antecipações (presentes nas obras Gênesis e em A Trindade) de
6
Para uma melhor compreensão, ver: TODOROV, Tzvetan. Teoria do símbolo, p. 36-63. Todorov analisa três obras de
Agostinho: A Dialética (387), A Doutrina Cristã (397) e A Trindade (415), que desenvolvem a evolução sobre o signo.
Ele afirma que é em Agostinho que, em primeiro lugar, surge uma propriedade do signo de certa não identidade do
signo com ele próprio, que se apoia no fato de que o signo é originalmente duplo, sensível e inteligível, que, segundo
Todorov, não encontrava até então como descrição do símbolo em Aristóteles. Na Dialética, Agostinho traz uma dupla
definição, que aponta uma relação de distinção entre o signo e a coisa, no quadro da designação e da significação; e a
segunda, entre o locutor e o ouvinte, no quadro da comunicação (...). Para Todorov a inauguração da semiótica existe
quando é articulada a semântica e simbólica; ele concebe essa articulação às obras de Agostinho como instauradoras
no campo semiótico.
7
MADEC, Goulven. “In te supra me”. Le sujet dans les Confessions de Saint Augustin. Revue de l’Institut catholique de
Paris. Paris, 1986, p. 45-63.
8
BROWN, Peter Robert Lamont. Santo Agostinho: uma biografia. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Record,
2005, p. 226.
9
COURCELLE, Pierre. Recherches sur les Confessions de Saint Augustin. Paris: Éditions E. de Boccard, 1968.
Courcelle aponta para a necessidade da redação do livro X das Confissões de colocar questões doutrinais contra as
calúnias lançadas pelos donatistas contra Agostinho (p. 26, 245).
10
MOURANT, John A. Saint Augustine on memory. Augustinian The saint Augustine lecture series. Institute Villanova:
Villanova University Press, 1980, p. 70.
14
Sant’Agostino. Confessioni, volume IV (Libri X-XI). “Cognoscam te, cognitor meus, cognoscam sicut et cognitus sum.
Virtus animae meae, intra in eam et coaptatibi, ut hábeas et possideas sine macula et ruga”. Confessionum X, I. p. 6.
15
Confissões X, i, 1.
16
BROWN, 2005, p. 324-326.
17
AUERBACH, Erich. Ensaios de literatura ocidental. Tradução de João Ângelo Oliva Neto. São Paulo: Editora 34/
Duas Cidades, 2007, p. 36-60. Auerbach já marcava a força da Escritura em Sermo humilis, em que a retórica e dialética
desenvolvidas por Agostinho a partir de Cícero tinham a concepção dos três níveis tradicionais de estilo (o sublime, o
médio e o baixo), em que o estilo baixo servia para a exegese e ensino. Agostinho não somente modifica, mas elimina
as barreiras entre os níveis. O termo da humildade, que antes tinha a conotação de degradação, valor baixo e inferior,
passa a designar um termo de força semântica mais importante e superior de ensino, intimamente ligado ao tema da
encarnação, que culmina na palavra encarnada e ganha força máxima da Bíblia e importância apologética, ao mesmo
tempo em que requeria a humildade do leitor para compreensão.
18
Confissões VI, v, 8.
19
BAKHTIN, 2003, p. 331-335.
20
BOCHET, 2004, p. 9-16.
21
Idem, p. 263.
22
Idem, p. 103.
23
Idem, p. 105.
E esta tua palavra era pouca para mim, se ela mandasse apenas com
palavras, e não fosse adiante de mim com obras (Dei-vos o exemplo para que,
como eu vos fiz, também vós o façais, João 13,15). Por isso, eu faço isto com obras
e com palavras, e faço-o sob a proteção de tuas asas (Guarda-me como a pupila
dos olhos, esconde-me à sombra de tuas asas, Salmo 16,8)25.
24
RICOEUR, 1991, p. 55-72.
25
Confissões X, v, 6.
26
RICOEUR, 1991, p. 64.
27
Confissões X iii, 4.
28
Confissões X, viii, 12; 14; xvi, 22.
29
Confissões X, xliii, 70.
30
MHORMANN, Christine. Études sur le latin des chrétiens. Tome II. Latin chrétien et mediéval. Roma: Edizioni di
storia e letteratura, 1961, p. 277-323.
31
MHORMANN, 1961, 278-279.
Pierre Courcelle,33 em 1968, afirma que, se quisermos entender o valor histórico das
Confissões como documento autobiográfico, convém de início analisar o sentido que o autor
atribui ao título e à evolução semântica dos termos confiteri, confessio, confessor, dos quais
poderemos extrair três principais sentidos para a época cristã: confissão de pecados, confissão
de fé e confissão de louvor. O tom das Confissões assume um tom lírico de constantes cânticos
de ação de graças e louvor a Deus. Entretanto, Courcelle salienta que não se trata apenas de
elevação diante de Deus, mas que a obra comporta desenvolvimentos narrativos destinados
ao leitor, de modo que seu objetivo não era naturalmente instruir a Deus sobre suas faltas
cometidas. Contudo, o mérito de todo relato das Confissões deve ser atribuído à misericórdia
divina. Para Courcelle, o motivo principal de Agostinho não era histórico, mas teológico. A
narrativa é teocêntrica e demonstra a intervenção de Deus por intermédio de todas as causas
segundas que determinam o caminho de Agostinho.
Para Peter Brown, a obra é considerada uma autobiografia estritamente intelectual, que
parece dirigir a palavra a um público como se estivesse imbuído tanto quanto ele, Agostinho,
da filosofia neoplatônica. Brown afirma que o autor impôs conscientemente o que lhe era
significativo, em que associa um acontecimento intelectual; os atos conscientes são o resultado
de uma aliança entre o intelecto e o afeto.34
32
MHORMANN, 1961, p. 322-323.
33
COURCELLE, 1968, p. 13-27.
34
BROWN, 2005: 204, 206, 209.
37
BAKHTIN, 2003, 13.
38
RICOEUR, 1991, p. 14.
Mesmidade e ipseidade
39
RICOEUR, 1991, p. 140-142.
40
RICOEUR, 1991, p. 13.
41
RICOEUR, 1991, p. 143-166.
42
RICOEUR, 1991, p. 175.
A similitude
43
Confissões X, v, 7.
Encadeamento da intriga
46
Confissões, X, i,1.
47
Sicut é uma preposição de comparação que pode vir a expressar semelhança, similitude.
48
Et certe videmus nunc per speculum in aenigmate, nondum facie ad faciem.
49
Bíblia de Jerusalém. Tradução do texto em lingua portuguesa diretamente dos originais. Tradução das introduções e
notas de La Sainte Bible, edição de 1973, publicada sob a direção da “École Biblique de Jerusalém”. São Paulo: Sociedade
Bíblica Católica Internacional e Paulus, 7ª. Impressão: julho 1995.
50
Confissões, X, i, 1.
51
Confissões, X, iii, 3.
52
Confissões, X, iii, 4.
53
Confissões, X, iv, 5.
O acontecimento é marcado pela aporia da memória, que abre com a tensão no próprio
espírito (ipse est) no agora (nunc) e no ainda não (nondum), com a dupla afirmação com
concordância discordância que inscreve o homem em dois polos de permanência: primeiro
encadeamento, em que o homem deveria conhecer a si mesmo, mas não é capaz de fazê-lo, e
simultaneamente há um reconhecimento da potência criadora de Deus em relação ao homem
daquilo que ele é capaz de dizer e fazer e daquilo que não é capaz de fazer diante da infinitude
que lhe é aberta no próprio espírito por Deus. Em relação com a dialética interna da narrativa,
o autor amplia o quadro de ação do personagem na construção narrativa. Pois existe alguma
54
Confissões, X, iv, 6.
55
Confissões, X, vi, 9.
56
Confissões, X, vi, 9.
57
«Tu enim, Domine, diiudicas me, quia etsi nemo scit hominum, quae sunt hominis nisi spiritus hominis, qui in ipso
est , tamen est aliquid hominis, quod nec ipse scit spiritus hominis, qui in ipso est, tu autem, Domine, scis eius omnia,
qui fecisti eum. Ego vero quamvis prae tuo conspectu me despiciam et aestimem me terram et cinerem , tamen aliquid
de te scio, quod de me nescio. Et certe videmus nunc per speculum in aenigmate, nondum facie ad faciem; et ideo,
quandiu peregrinor abs te , mihi sum praesentior quam tibi et tamen te novi nullo modo posse violari; ego vero quibus
temptationibus resistere valeam quibusve non valeam nescio. Et spes est, quia fidelis es, qui nos non sinis temptari
supra quam possumus ferre, sed facis cum temptatione etiam exitum, ut possimus sustinere. Confitear ergo quid de me
sciam, confitear et quid de me nesciam, quoniam et quod de me scio, te mihi lucente scio, et quod de me nescio, tandiu
nescio, donec fiant tenebrae meae sicut meridies in vultu tuo” (Confissões X, v, 7).
58
Tu enim, Domine, diiudicas me, quia etsi nemo scit hominum, quae sunt hominis nisi spiritus hominis, qui in ipso
est tamen est aliquid hominis, quod nec ipse scit spiritus hominis, qui in ipso est, tu autem, Domine, scis eius omnia,
qui fecisti eum. Ego vero quamvis prae tuo conspectu me despiciam et aestimem me terram et cinerem tamen aliquid
de te scio, quod de me nescio. Et certe videmus nunc per speculum in aenigmate, nondum facie ad faciem;et ideo,
quandiu peregrinor abs te, mihi sum praesentior quam tibi et tamen te novi nullo modo posse violari; ego vero quibus
temptationibus resistere valeam quibusve non valeam nescio (Confissões X, v. 7).
Considerações finais
59
Confissões X, vi, 6.
60
Confissões X, v, 7.
Referências bibliográficas
______. Confissões. Tradução Maria Luiza Jardim Amarante; revisão cotejada de acordo com
o texto latino por Antonio da Silveira Mendonça. São Paulo: Paulus, 1984.
61
RICOEUR, 1991, p. 169-170.
62
RICOEUR, 1991, p. 139.
63
RICOEUR, 1991, p. 167.
64
RICOEUR, 1991, p. 171.
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de Français – Université de Lausanne. http://www.unige.ch/lettres/framo/enseignments/
methodes/vnarrative/vnintegr acesso em: 27/11/2007.
1
Doutora em Antropologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e Professora Adjunta I do Programa de Pós-
Graduação em Ciências da Religião da Universidade do Estado do Pará (UEPA).
242
Introdução
É necessário que se esclareça a visão que algumas pessoas possuem sobre as religiões
afro-brasileiras, como uma forma de culto homogêneo. Falar em matriz africana é falar numa
diversidade de nomenclaturas. Terreiros2 de Candomblé3, Mina4, Umbanda5, Xangô6, Jurema7
povoam os centros urbanos brasileiros apresentando, ritmos, danças e deuses diferentes.
A religião que vamos abordar neste trabalho é especificamente a Mina, a mais antiga
praticada na Amazônia. Tipo de culto de matriz africana que, vindo do antigo Daomé (atual
Benim), se estabeleceu no Maranhão e de lá migrou para o Pará no período da economia
gomífera.
O que mais interessa mencionar nos limites deste artigo sobre essa religião é que seu
panteão é formado por diversas categorias de entidades (Voduns8, Caboclos9...) dentre as quais
destacamos os Nobres Gentis Nagôs ou Senhores de Toalha.
Recebem o nome de Gentis ou Senhores de Toalha os donos do poder, representados
pela nobreza européia, principalmente de países cristãos que de alguma forma possuem
relação com o processo de expansão marítima e com a colonização do Brasil. Personagens
hierarquicamente importantes, muitas vezes referidos como “os brancos”.
Entre eles destaca-se REI SEBASTIÃO, D. JOSÉ, D. MANUEL, D. LUÍS, D. JOÃO,
MARQUÊS DE POMBAL e outros. Pessoas reais que cruzaram os limites da vida e passaram
a ser adorados. Perceber todas essas peculiaridades enche-nos de questionamentos e leva-nos
a refletir. O que leva um indivíduo, historicamente explorado, adorar seu civilizador? Será
que a imagem construída sobre o deus possui alguma correspondência com os personagens
históricos? Por que divinizar um ser humano? Será que existe uma versão única do mito
construído sobre cada um desses personagens?
Infelizmente não poderemos responder a todas essas inquietações no espaço desta tão
breve apresentação, mas temos hipóteses. A principal delas é a de que a prática de adorar reis,
já realizada na África, teria sofrido um rearranjo. “Orixás”10 iorubanos foram, em vida, reis.
Um exemplo é Xangô11 que teria sido rei de Oyó.
2
Lugar onde são realizadas a maioria das cerimônias afro-brasileiras, de cunho público ou privado.
3
Chama-se de “Candomblé” ao culto de Nação “Iorubá” cuja características principais são a adoração aos “Orixás” e o
processo iniciático de 21 dias.
4
Ver referência abaixo.
5
Religião fundada no Brasil a partir de crenças e ritos oriundos do catolicismo, do espiritismo Kardecista e dos cultos
de matiz africana.
6
Denominação dada ao culto “iorubá” no Recife.
7
Religião afro-indígena do nordeste que cultua os mestres e faz uso de uma bebida litúrgica de mesmo nome.
8
Nome dado às entidades “Jejes” que na hierarquia da “Mina” corresponde ao “orixá” “nagô”.
9
Entidade hierarquicamente inferior aos “voduns”, que representa o índio, o negro ou o mestiço em geral.
10
Orixás são entidades iorubanas que representam as forças da natureza.
11
Orixá Iorubano, senhor dos raios e do trovão, sincretizado com o santo católico são Jerônimo.
A Viagem Fantástica de Rei Sebastião: De Alcacer Quibir ao Terreiro de Mina • Taissa Tavernard de Luca
243
Sérgio Ferretti lembra que os voduns também seguem o mesmo princípio. Ao falar da
família de Davince, em seu livro Querebetã de Zomadonu (1985) ele afirma ser uma família
real constituída por nobres, reis e príncipes. Entre os reis africanos que viraram entidades
temos “Dadarro” que reinou entre 1600 –1620 e “Sepazim”, a filha do rei Houegbadjá que
ficou no poder de 1645 a 1685 dentre outros. Uma vez separados do sistema político de
origem, afastados no tempo e no espaço de seus próprios personagens reais, os negros fizeram
rearranjos e instituíram símbolos europeus em suas práticas milenares.
Outra hipótese, que de certa forma ratifica a anterior, considera que o culto aos reis,
principalmente àqueles participam direta ou indiretamente do processo colonial brasileiro,
como uma forma de prestar reverência à ancestralidade, prática comum a todas as religiões
de matriz africana. Todavia o ancestral divinizado aqui não é propriamente o familiar, mas o
representante da nação. Esses chefes de Estado são em sua maioria portugueses membros de
duas dinastias: Avis e Bragança. Da dinastia de Avis, recupera-se Rei Sebastião, “O Desejado”,
o mais antigo a ser adorado e Dom Manuel “O Venturoso”. A dinastia de Bragança cede todos
os seus Joãos12 (“O Restaurador”, “O Magnânimo” e “O Clemente”), Dom José “O Reformador”
e Dom Pedro. Alguns momentos históricos são enfatizados no processo de escolha desses reis.
São eles: a luta em prol do cristianismo, a expansão marítima, a descoberta e ocupação do
Brasil, a elevação a Reino Unido de Portugal e Algarve e sua posterior independência.
Importante seria analisar pausadamente a trajetória mítica de todos esses personagens,
levantando o maior número possível de versões, analisando pausadamente cada uma
delas, buscando sempre as estruturas. Todavia essa seria uma empreitada muito longa
para desenvolver nos limites deste artigo. Sendo assim, trabalharemos com apenas um rei.
Escolhemos o mais famoso: Rei Sebastião13. Nosso interesse é analisar as inúmeras narrativas
sebastiânicas, construídas por diversos religiosos afro-brasileiros, à luz da teoria estruturalista
de Claude Lévi-Strauss.
Falar sobre a história de Rei Sebastião é, sem dúvida, uma atividade trabalhosa devido
à vasta bibliografia que se debruça sobre a vida desse rei cristão. Desde a sua morte, no século
XVI, até a atualidade, textos, oriundos da academia ou do cancioneiro popular, cruzaram fatos
históricos com o imaginário maravilhoso em versões que ora se aproximam, ora se distanciavam
do real (Hermann, 2003). Por vezes davam a rei Sebastião ares de herói ou o descreviam como
um personagem fraco e doente, motivo pelo qual não teria despertado interesse de casamento.
Há também aqueles que o classificam como um louco, desequilibrado, estourado.
12
Acreditamos que o deus Dom João seja construído a partir de características de cada um dos personagens históricos
cujos nomes são citados no texto.
13
As narrativas míticas sobre rei Sebastião são mais minuciosas e cheias de detalhes do que as de qualquer outro nobre.
A Viagem Fantástica de Rei Sebastião: De Alcacer Quibir ao Terreiro de Mina • Taissa Tavernard de Luca
244
Poderíamos rever essa historiografia sobre D. Sebastião, todavia só repetiríamos a
trajetória já tão bem percorrida por Jacqueline Hermann em seu livro “No Reino do Desejado”
(2003). Portanto, apenas nos basearemos nas suas narrativas com a finalidade de extrair dela
episódios da vida do rei que por ventura possam nos ajudar na análise do material mítico dos
mineiros14.
Dom Sebastião foi o décimo sexto rei de Portugal, nasceu em Lisboa em 20 de janeiro
de 1554. Filho póstumo do príncipe D. João III e de Dona Joana, filha do Imperador Carlos
V. Pertencente à dinastia de Avis, foi o único varão vivo de um conjunto de 10 filhos. Seu pai
morreu quando ele ainda estava no ventre. Foi chamado de “O Desejado”, uma vez que seu
nascimento teria sido profundamente esperado pelo povo português, temeroso em perder sua
soberania para Castela, após a morte de D. João. Sob sua responsabilidade foi depositada a
tarefa de retomar o ímpeto desbravador desta nação ibérica.
Por ser a esperança do reino português em garantir a nacionalidade, foi feito rei com
3 anos e sua regência foi disputada entre sua avó, Dona Catarina e seu Tio Avô o Cardeal
Henrique, ligado a Companhia de Jesus, durante toda a sua infância. Acabou ficando com
Dona Catarina, uma vez que a mesma forjara um testamento, supostamente deixado por D.
João, concedendo-lhe a tutela do neto.
Em função disso, D. Catarina da Áustria, que era tia de Felipe II da Espanha, permaneceu
na regência de 1557 à 1562 mas é preciso que se diga, de acordo com informações apresentadas
também por Hermann (2003), que a influência de D. Catarina sobre o rei menino, foi vista
com desconfiança por grande parte da corte portuguesa que a considerava uma legítima
representante dos interesses Castelhanos junto ao trono Português. A bibliografia referida
(Hermann, 2003) aponta uma forte divisão da nobreza entre aqueles que apoiavam D. Catarina
e os que preferiam que a regência tivesse ficado a cargo do cardeal D. Henrique, que disputou
com a tutora a influência sobre a educação de D. Sebastião, bem como a escolha de seus aios.
Como foi dito, por intermédio de D. Henrique, o rei foi educado. Além da influência
jesuítica, D. Sebastião recebeu forte treinamento militar de D. Aleixo de Meneses. Aos 14
anos foi declarado maior e assumiu definitivamente o trono português. Fez-se um rei
de características bélicas. Retomou as expedições para o norte da África que haviam sido
abandonadas pelo seu pai e antecessor. Dividia o seu tempo entre a caça, o exercício religioso
e a leitura, principalmente referente a história portuguesa.
Há autores que descreveram o rei como uma criança doente15. Aos onze anos contraíra
uma doença crônica que nenhum médico do reino português conseguiu identificar, mas que
logo fora atribuído às condições de frio intenso a que era submetido durante os treinamentos de
caça e militares, recheados com violentas atividades esportivas para fins de guerra. Os sintomas
14
Neste artigo usaremos o termo mineiro para nos referirmos aos praticantes da religião de Mina.
15
Ver levantamento bibliográfico realizado por Jacqueline Hermann (2003).
A Viagem Fantástica de Rei Sebastião: De Alcacer Quibir ao Terreiro de Mina • Taissa Tavernard de Luca
245
eram purgação, febres e eventuais desmaios. Doença que foi apontada por vários historiadores
como responsável pelo fracasso das diversas tentativas de negociação de matrimônio.
Outro motivo suscitado em explicação para esse fato seria a moral ilibada introjetada
pelos jesuítas no jovem rei que o fazia exaltar o ideal de castidade ascética. Consta que ele fugia
do amor por achá-lo um sentimento efeminado, mas como a corte insistia, tentou por duas
vezes estabelecer contrato de casamento.
Pela primeira vez negociou casamento com Margarida de Valois, irmã de Carlos IX. A
Espanha opôs-se e lhe ofereceu por Conjugue, Isabel I. Todavia, como acontecera uma mudança
política, os reis da Espanha desfizeram o contrato dando-a em casamento para Carlos IX.
A segunda vez aconteceu quando Rei Sebastião almejava conquistar apoio para dar
início à última cruzada, voltou a procurar Carlos IX propondo que se ele o apoiasse a luta
contra os turcos, aceitaria Margarida de Valois como esposa, abriria mão do dote. Sua proposta
foi recusada, pois Margarida já era noiva de Henrique de Navarra. Tudo indica que era um rei
de hábitos estranhos, durante as viagens que fazia pelas províncias mandava abrir o túmulo de
seus antepassados e extasiava-se diante daqueles que haviam sido guerreiros.
Decidiu organizar a última cruzada quando soube da vitória de Dom João da Áustria
na Batalha de Lepanto o que lhe causou muito reconhecimento entre os reinos cristãos.
Pretendeu lutar na índia. Propôs ajuda a Carlos IX na sangrenta luta contra os huguenotes que
resultou no massacre de São Bartolomeu. Pensou em organizar uma expedição para o oriente,
mas foi dissuadido em virtude de uma tempestade que caíra sobre o Tejo. Finalmente partiu
para África as escondidas em agosto de 1574, chegou a desaparecer o que deixou o reino em
pânico. Logo surgiu uma carta régia conferindo a regência do trono ao Cardeal D. Henrique.
As pessoas mais autorizadas lhe enviaram súplicas para que retornasse o que aconteceu. D.
Sebastião voltou, pois não encontrou ocasião de batalha nem em Ceuta, nem em Tanger.
Uma vez em Portugal procurou negociar com Felipe II aliança contra o Marrocos, porém
este soberano Espanhol não pensava, a princípio, em fazer uma cruzada. Foi convencido pelo
argumento de recuperação de territórios perdidos.
O Bispo de Algarve fez o rei esperar o melhor momento para o empreendimento; um
possível conflito político no Marrocos. D. Sebastião reuniu um numeroso e problemático
exército. Recrutou 9.000 soldados mercenários - que não possuíam comprometimento com
a nação - e um vasto corpo de nobres voluntários indisciplinados. Entregou o comando a
D. Diogo de Sousa que, segundo a historiografia, foi completamente desvairado. A fim de
arrumar dinheiro para a expedição, massacrou o povo com impostos. Levantou grandes levas
de dinheiro no exterior, providenciou a espada de D. Afonso Henrique e uma coroa de ouro a
ser colocada na cabeça quando se declarasse imperador do Marrocos e partiu, em 25 de junho,
com uma armada de 800 velas e um exército de 18.000 homens. Na África executou táticas de
guerra erradas. Para tomar Larache, um porto de mar, desembarcou em Tanger a 17 de julho e
A Viagem Fantástica de Rei Sebastião: De Alcacer Quibir ao Terreiro de Mina • Taissa Tavernard de Luca
246
seguiu por terra passando por Alcácer Quibir. Ao chegarem em Alcácer Quibir os soldados já
estavam completamente fadigados e os suprimentos de água e comida reduzidos. Na batalha
desastrosa de 4 de agosto, mais da metade do exército já tinha debandado. Acompanhou-se
apenas de uma porção de fidalgos que foram massacrados pelos marroquinos. Foi morto, mas
seu corpo nunca fora confirmado. Como não deixara descendentes, sua morte deu início a
um período difícil para seu país, um verdadeiro rito de passagem, por isso permaneceu tão
marcado na memória coletiva deste povo. Sem rei, o país passou a ser governado pela Espanha,
dando início a um período que a historiografia denominou de “União Ibérica”.
A Viagem Fantástica de Rei Sebastião: De Alcacer Quibir ao Terreiro de Mina • Taissa Tavernard de Luca
247
ter servido de premunição. Comentava-se que a mãe de Sebastião, ainda grávida, teria visto
um esquadrão de mouros enfrentando os cristãos.
Luccetti Valensi, em seu livro “Fábulas da Memória” (1992), afirma que as visões
anunciaram a derrota portuguesa mesmo antes das primeiras notícias chegarem. Muito foi
falado sobre o assunto, portugueses buscavam explicações, diziam que os acontecimentos
teriam vindo como castigo de Deus para expiação das culpas, uma referência clara ao episódio
bíblico da destruição de Sodoma e Gomorra.
A Igreja tentou atenuar as perdas afirmando que todos os mortos do norte da África
seriam salvos. A população chegou a se revoltar contra os Jesuítas por terem criado o rei,
alimentando nele a religiosidade agressiva e o horror às mulheres. Esses teriam sido os dois
principais motivos da tragédia portuguesa. O primeiro teria conduzido a morte pela fé e o
segundo era culpado pela falta de herdeiros e consequente perda de autonomia.
Duvidava-se da identidade do corpo do rei que os mouros retornaram à pátria, uma
vez que o mesmo estava muito deteriorado e incapaz de ser reconhecido. Os mouros sabiam
que o corpo era de D. Sebastião, pois um membro do exército português o teria reconhecido.
A corte portuguesa questionava este reconhecimento alegando primeiramente que o soldado
talvez nem conhecesse seu rei e depois que fora induzido pela promessa de liberdade feita
pelos marroquinos.
Os sobreviventes não falavam sobre o assunto, tratava-se de uma memória recusada,
esquecida pois humilhava a pátria e causava sentimento de responsabilidade pela derrota.
Ainda incrédulo o povo português chorou sua sorte em funerais públicos – de corpo ausente -
feitos após a batalha, antes do corpo ser apresentado. O Cardeal Miguel dos Santos, confessor
de Sebastião acreditava que ele voltaria e apareceria num desses funerais.
O fato é que as notícias se espalharam, cruzaram as fronteiras. Cada nação tinha um
relato diferente. Portugal defendia a não morte e anunciava o retorno. A versão espanhola era
rica em detalhes sobre o assassinato e ao fazerem o destronavam simbolicamente, à medida
que afirmavam que ele fenecera como um indigente não reconhecido no meio dos soldados.
Os turcos, por sua vez, exaltavam a vitória e enfatizavam a derrota do cristianismo.
Como é possível perceber, o sebastianismo, fenômeno de espera ao retorno do rei, teve
início logo após o incidente de 4 de agosto16. A Imagem de Sebastião foi associada a de Moisés,
personagem bíblico que retornou para libertar os hebreus do cativeiro egípcio. Alguns se
baseavam nas profecias de Daniel que pregava a vinda de um reino que quebraria e aniquilaria
todos os outros reinos e existiria eternamente. Certas profecias faziam analogia com a imagem
de Jesus Cristo, pois o nascimento de Sebastião também teria sido anunciado não por um anjo,
mas por um cometa17.
16
Data da batalha de Alcácer Quibir e da consequente morte de rei Sebastião.
17
Ver Valensi, 1992.
A Viagem Fantástica de Rei Sebastião: De Alcacer Quibir ao Terreiro de Mina • Taissa Tavernard de Luca
248
Esperar o rei era uma forma de resistir aos acontecimentos presentes. Os portugueses
chegavam a contar a idade que o rei teria no momento do retorno. Criavam um mito para evitar
a orfandade. Os sebastianistas usavam a metáfora do mar. Enquanto o rei estava desaparecido
o país estava à deriva, o naufrágio seria evitado com seu retorno. No ano de 1813 apareceu um
homem de 28 anos afirmando ser a encarnação de Sebastião, enviada por Deus.
Havia momentos em que as crenças messiânicas se fortaleciam. Dois dos mais
importantes são a União Ibérica e a invasão francesa pelas tropas de Napoleão Bonaparte. O
povo associou Bonaparte à besta do apocalipse a que rei Sebastião viria destruir.
Trovas circulavam, uma iconografia rejuvenescida foi impressa e espalhada no meio
popular, a literatura portuguesa versava sobre o assunto. Dois painéis foram inaugurados nos
séc. XVII e XVIII contendo as razões pelas quais deve-se acreditar ou não no retorno do Rei.
Até no cancioneiro popular havia referência. Entre os poetas cuja obra ganhara
visibilidade no período medieval, não resta dúvida de que o mais famoso é o sapateiro Bandarra.
Gonçalo Anes de Bandarra, segundo Hermann (2003), nascera na cidade de Trancoso,
região da Beira, ponto de passagem entre o norte e o sul do país onde havia forte concentração
de Cristãos-Novos. Homem do povo, o poeta popular era descendente de Judeus, expulsos do
território espanhol pelos reis católicos de Aragão e Castela no ano de 1942 e absorvidos pelo
reino português durante o reinado de D. João II (Saraiva, 2001).
Conhecedor profundo da doutrina judaica, ele utilizou esse conhecimento nas trovas
escritas e por esse motivo foi denunciado e preso em 18 de fevereiro de 1541. Este personagem
nada teria de diferente dos tantos outros trovadores desse período se não houvesse, no material
produzido por ele, um forte apelo profético que anunciava a existência de D. Sebastião bem
antes de seu nascimento.
Bandarra descreveu o episódio do norte da África, o ímpeto guerreiro daquele que
ele chamava de sucessor de D. João III, suas características expansionistas, o seu apego ao
cristianismo e o afã em destruir os “infiéis”:
“Este tem Tal Nobreza
Qual nunca vi em rei
Este guarda bem a lei
Da justiça e da grandeza
Senhoreia a sua alteza
Todos os portos e viagens
Porque é rei de passagem
Do mar e sua riqueza” (Bandarra, apud Hermann, 2003, p. 65)
Em outra trova, Bandarra faz ainda referência à D. João III, pai de D. Sebastião, que
renunciara a disputa pelo território africano:
A Viagem Fantástica de Rei Sebastião: De Alcacer Quibir ao Terreiro de Mina • Taissa Tavernard de Luca
249
“As chagas do redentor
E salvador
São as armas do nosso rei
Porque guarda bem a lei
E assim a grei
Do mui alto criador
Nenhum rei ou imperador
Nem grão senhor
Nunca teve tal sinal
Como este por leal
E das gentes guardador
Das armas e do pendão
E o guão
Foram dados por vitória
Daquele alto rei da glória
Por memória
A um santo rei barão
Sucedeu a el rei João
Em possessão
O calvário por bandeira
Levar-lo-á por cimeira
Ampliará por carreira
De toda terra de cão” (Bandarra, apud Hermann, 2003, p. 69)
E preconizou o fim:
A Viagem Fantástica de Rei Sebastião: De Alcacer Quibir ao Terreiro de Mina • Taissa Tavernard de Luca
250
É clara a referência profética aos episódios que só aconteceram posteriormente. Talvez,
por isso, as trovas de Bandarra ganharam tanta popularidade em Portugal principalmente nos
momentos de crise da soberania nacional. O fato é que apesar de denunciado aos tribunais
do Santo Ofício, acusado de conselheiro dos Judeus18, de promover adivinhação – prática
duramente punida pelo tribunal – o sapateiro foi liberado dos autos de fé com a única pena de
não mais divulgar, compor trovas ou ler as escrituras sagradas.
Valensi (1992) divulga muitos outros textos. Um deles descrevia inclusive as marcas
corporais que este rei haveria de ter: “A mão direita menor que a esquerda, o braço esquerdo
mais curvo que o direito, sem contar o sinal secreto que só seria revelado no devido momento”
(Valensi, 243).
Outros documentos retornavam a idéia do rei desaparecido que conseguiu fugir da
batalha e passou a peregrinar pelo mundo em penitência, só voltará quando alguma catástrofe
grave se abater sobre Portugal. Conta que nesse momento o rei surgirá em cima de um cavalo,
saído das ondas do mar.
Mas, a nosso ver, o texto profético mais importante e que melhor anuncia o processo
de transformação desse personagem em entidade é aquele que afirma que rei Sebastião vive
retirado numa ilha encoberta que não figura em nenhum mapa, impossível de se localizar.
Lá ele viveria de maneira humilde, usando roupas maltrapilhas. Segundo relatos, sempre saía
dessa encantaria para salvar os navios portugueses de naufrágios.
Valensi (1992) resgata inscrições do século XVIII que localizam esse lugar às
proximidades da ilha da madeira, só visível em certas condições atmosféricas. Membros da
Igreja portuguesa a chamavam de Ilha das Sete Cidades. Sua população seria cristã e viveria
cercada de riquezas abundantes, de ouro e prata.
Um depoimento detalha:
18
Os judeus procuravam Bandarra com frequência para saber o significado de suas trovas, que frequentemente faziam
referências às escrituras sagradas desse povo.
A Viagem Fantástica de Rei Sebastião: De Alcacer Quibir ao Terreiro de Mina • Taissa Tavernard de Luca
251
Uma trova anuncia: “Terras no meio do mar/ que já foram descobertas/ mas para achar
tão incertas/ que ninguém poderá achar/ Tornando-as a procurar/ que tesouro aqui encerra”
(Valensi, 1992, p. 184).
A crença no sebastianismo migrou para os impérios coloniais portugueses. Têm-
se notícias de sebastianismo na África, na ilha da Madeira e principalmente no Brasil. As
primeiras referências ao monarca desaparecido estão nos autos dos tribunais da inquisição
que se instalara em Recife no ano de 1591. No século XVII, mais precisamente no ano de
1634, os sermões de padre Antônio Viera professados na Bahia mencionavam Sebastião “o
encoberto”.
Diversos movimentos messiânicos se formaram, seu nome figurava nos repentes
nordestinos: “D. Sebastião já chegou/ e traz muito regimento/ acabando com o crime/ e
fazendo casamentos” ou “Visita nos vem fazer/ nosso rei Sebastião / Coitado daquele pobre/
que vive na lei do cão” (Cunha, 1936, p. 172 e 207).
No início do século XIX (1816) o viajante Ferdinand Denis (Pereira de Queiróz, 1994)
afirmou ter encontrado inúmeros relatos sebastiânicos em conversas com comerciantes de
Minas Gerais e Rio de Janeiro. Não se tratava de um grupo coeso e organizado, mas tinham
em comum a crença de que Rei Sebastião voltaria carregado de riquezas a serem entregues aos
fiéis. Chegavam a apostar na data do retorno (Queiroz, 1994).
Muitas manifestações coletivas se formaram ao longo de todo o Brasil (Pereira de
Queiróz, 1994) especialmente no sertão do nordeste. Grupos de pessoas, geralmente miseráveis
que conheciam a lenda do rei e apegavam-se a ela em suas aspirações para mudança de vida. O
primeiro desses grupos de que se tem notícia teria se formado no ano de 1817 em Pernambuco:
um líder messiânico profetizava que rei Sebastião e seus exércitos sairiam de dentro de uma
pedra para resolver os problemas sociais da região, transformando pobres em ricos. Este líder
e seus seguidores foram trucidados em 1820 (Queiroz, 1994).
Dezesseis anos mais tarde, na comarca de Flores, estado de Pernambuco, outro
beato formou um movimento de conotações racistas. Pregava que rei Sebastião voltaria
para transformar os negros em brancos e os velhos em novos. Para que isso acontecesse os
interessados seriam sacrificados em cima de uma pedra sagrada para ressuscitarem renovados.
Em 1910, apareceu um novo pregador, desta vez num estado sulista: Santa Catarina.
Segundo ele, o rei viria acompanhado das hostes celestes para auxiliar os fiéis na luta contra a
república.
O caso messiânico mais famoso que já se teve notícia na história do Brasil é, justamente,
o de Antônio Conselheiro, no arraial de Canudos. Nascido em 13 de março de 1830 numa vila
simples do Ceará denominada Santo Antônio de Quexuramobim, chamava-se, na verdade,
Antônio Vicente Mendes Maciel. Trabalhava numa venda deixada de herança por seu pai
a qual abandonou, a fim de vagar pelo mundo como professor primário. Traído, separou-
A Viagem Fantástica de Rei Sebastião: De Alcacer Quibir ao Terreiro de Mina • Taissa Tavernard de Luca
252
se da esposa, teve seus bens penhorados por motivo de dívida e se tornou beato. Percorreu
vários Estados proferindo sermões e construindo igrejas. Congregou um número considerável
de camponeses pobres, formou um povoado e passou a pregar contra o emergente sistema
republicano. Por esse motivo foi atacado diversas vezes por tropas enviadas pelo governo
provincial que jamais conseguiu vencê-lo. Em 1897 foi derrotado com o auxílio de reforço
federal.
Segundo Euclides da Cunha (1936), Conselheiro teria invocado rei Sebastião em
diversos de seus sermões afirmando que o desaparecido surgiria para restaurar a monarquia,
conforme mostra o trecho abaixo:
Além de sua longa viagem pelo imaginário brasileiro, cruzando Estados do sul – como
Santa Catarina – e nordeste – como Pernambuco e Bahia – Rei Sebastião também visitou
o norte do país, mais especificamente às casas de culto de uma religião de matriz africana
denominada Mina.
Conforme afirma Michelhe Perrot em seu texto “Imaginário social do Século XIX”
(Perrot apud Le Goff, 1986, p. 94-107), o imaginário dos povos tem como fonte principal a
religião, a ciência e a história. É na história que os “mineiros” vão buscar inspiração para falar
sobre os senhores de toalha.
No entanto, antes de adentrarmos efetivamente nas narrativas que o povo-de-
santo apresenta sobre rei Sebastião e na análise das mesmas à luz da teoria levistraussiana,
acreditamos ser útil refletir um pouco acerca do conceito de memória. Este que foi amplamente
aplicado por ciências como a antropologia e a psicologia. Eclea Bosi, por exemplo, em seu
livro “Memória e Sociedade” (1995) apresenta algumas versões diferentes sobre a discussão.
Retomando Henri Bergson em seu livro “Mateire at Mémaire” (Bergson apud Bosi, 1995), no
qual fala especificamente sobre a fenomenologia da lembrança, da percepção, com a imagem
construída e mediada pelo corpo. Para este autor toda imagem percorre no cérebro, partindo de
um esquema imagem - cérebro - ação. A percepção seria um intervalo entre a ação e as reações
do organismo: um vazio que se povoa de imagens. O autor faz distinção entre percepção atual
A Viagem Fantástica de Rei Sebastião: De Alcacer Quibir ao Terreiro de Mina • Taissa Tavernard de Luca
253
e lembrança, entre perceber e lembrar. Lembrar é deixar vir a tona o que estava submerso
e a percepção é a captação imediata. Mas existe uma íntima ligação entre a percepção e a
lembrança porque é a percepção acumulada que vêm à tona e porque a lembrança interfere no
processo atual de representação.
Resumindo: para Bergson, a percepção seria o espaço raso e a memória é a reserva
crescente de lembranças que dispõe a totalidade adquirida. Distingue também entre duas
memórias: a memória hábito - que consiste na repetição dos gestos e palavras, uma espécie de
adestramento cultural – e a lembrança pura - que “traz à tona da consciência um momento
único, singular, não repetido e irreversível da vida (...) a imagem lembrança tem data certa:
refere-se a uma situação definida individualizada, ao passo que a memória hábito já se
incorporou ao hábito do dia-a-dia” (Bosi, 1995, p. 49).
Todavia, o autor que nos interessa de fato, é um pupilo desgarrado de Bergson: Maurice
Halbwachs. Apesar de ter sido seu aluno ele rompe com o mestre e vai buscar “abrigo” na
Escola Sociológica Francesa. Em sua vasta bibliografia escreve “A Memória Coletiva” (1990).
Ao contrário do antecessor, não está preocupado com o aspecto corporal da memória: sua
ênfase é na análise social.
Como um bom adepto de Émile Durkhreim, para Halbwachs a memória é, antes de
tudo, um fato social. Como lembra Éclea Bosi: “o social altera a percepção, a consciência
e a memória” (1995, p. 53). Também percebe-se claramente em sua obra o predomínio da
memória social sobre a individual.
A lembrança não fica restrita à pessoa , está amarrada à memória do grupo. Existem
sempre aspectos comuns, pontos de encontros: são os quadros sociais da memória. Outro
aspecto interessante da teoria halbwacheana é a ausência de uma memória pura, congelada, pois
lembrar não é de modo algum reviver: é reconstruir, é fazer escolhas, é esquecer, é selecionar,
é emprestar detalhes das narrativas de terceiros. A memória é acima de tudo um fenômeno do
presente, um olhar do presente sobre o passado. Nem o sonho, para este autor, estaria livre da
influência da memória. É uma releitura e não uma revivência. O que se lembra é condicionado
pelo interesse que o sujeito têm no momento da narrativa. Uma mesma história pode ser
contada de forma diferente em diferentes fases da vida.
Michael Pollak (1989), falando sobre a obra de Halbwachs afirma que este autor,
seguindo a abordagem de Durkheim, trata a memória como algo quase institucional. Não no
sentido de dominação, nem como violência simbólica, mas como algo que reforça a coesão
social. Não vê a memória como algo imposto, mas coletivo, que estimula a adesão afetiva do
grupo, formando uma “comunidade afetiva”.
Em resumo, pensamos memória como uma construção feita a partir de uma seleção
de pessoas, acontecimentos, atos e lugares, efetuada pelo indivíduo e reconhecida pelo grupo.
Apesar de acreditarmos que o ato de rememorar é individual, cada qual rememora a partir de
A Viagem Fantástica de Rei Sebastião: De Alcacer Quibir ao Terreiro de Mina • Taissa Tavernard de Luca
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suas experiências pessoais. Concordamos com Halbwachs (1990) quando diz que a memória
é um fenômeno eminentemente coletivo. Em meio às nuanças do próprio narrador existem
pontos imutáveis comuns à memória do grupo. Elementos que podemos perfeitamente
classificar como estruturais. A memória é coletiva, também porque depende de um estímulo
externo para vir à tona. Entretanto, nosso entendimento de estímulo externo vai além do
reconhecimento do grupo e perpassa a presença do investigador e seus questionamentos.
Os praticantes da Mina rememoram ao efetuarem ritos ensinados por seus antepassados,
ao dançarem de forma marcial em homenagem à rei Sebastião e ao lerem os escritos dos
historiadores. Rememoram e reinventam. A memória é contada a partir do presente, a história
é construída por reminiscências herdadas, por apropriação do que é aceito pelo grupo, por
leitura de trabalhos acadêmicos.
Mas porque falar em memória durante a confecção de um trabalho sobre mito?
Ousamos abordar esse conceito, pois julgamos que os relatos sebastiânicos são construídos a
partir de lembranças herdada pelos narradores.
São das histórias relatadas por seus antepassados, a experiência mediúnica e também os
livros de história, que os religiosos afro-paraenses tiram elementos para a construção simbólica.
Com eles constroem a imagem do deus que passa a ser adorado, resignificado cotidianamente
e repassado de geração para geração. Há ainda a necessidade de se mencionar a importância
de folguedos folclóricos que ritualizam episódios históricos como a luta de cristãos e mouros19
e das narrativas populares que afirmam a presença de moradas de Rei Sebastião – Rei Sabá –
na região do Salgado paraense. Ou seja, as referências à epopéia portuguesa estão presentes
em outras instâncias da vida dos paraenses.
A memória herdada é repassada há séculos e como o ato de rememorar implica
basicamente em reler e não reviver, cada religioso sabe fazê-lo de forma muito peculiar.
Trabalharemos com três narradores: O “historiador nativo” Pai Luís Tayandô, o radialista
Serginho de Oxossi e a “simplesmente religiosa” Mãe Yolanda. Em comum, todos possuem
a filiação religiosa; todos são mineiros, mas suas narrativas variam em cima de eixos
estruturais. Diferenciam-se em muitos aspectos, sendo o mais importante deles o acesso à
literatura histórica. Uma narrativa, a de Pai Tayandô, é mais rica e embebida de fato. Outra,
a de pai Serginho, condensa o fato e os relatos mágicos. Mãe Yolanda, por sua vez, conta a
história a partir de seu contato mediúnico com o rei. Apesar das variações elas são sujeitas
a uma abordagem estruturalista. Relatemos os Mitos para posteriormente encontrarmos os
invariantes.
19
A título de exemplo podemos citar a cavalhada, apresentada, todos os anos, no dia vinte e seis de dezembro, durante a
Marujada de Bragança.
A Viagem Fantástica de Rei Sebastião: De Alcacer Quibir ao Terreiro de Mina • Taissa Tavernard de Luca
255
4. Narrativa de Pai Tayandô: “O Historiador Nativo”
“O rei Sebastião, não só na Mina, ele tem duas visões: uma visão mística e uma visão
histórica. A História, todo mundo sabe, que Rei Sebastião foi um Rei de Portugal, muito novo.
Assumiu muito novo o reino. E foi criado sob a tutela católica apostólica romana. Ele quis
combater os sarracenos, os mouros no Marrocos. Começou a fazer uma campanha na Europa,
França, Espanha para que arranjasse soldados, condições para ir para África, combater os
sarracenos, os pagãos.
Nessa viagem, nessa caminhada dele, ele estava prometido, se eu não me engano, para a
filha do rei da Espanha, mas ele disse: - Não, isso é uma loucura! Vai pra tua guerra particular,
quando tu voltares a gente vê como é que vai ficar.
Ele partiu, foi pra lá com um bom exército e na batalha de Alcacer Quibir ele sucumbiu.
Não encontraram o corpo. Quer dizer que quando ele desapareceu era um jovem, e é a partir
deste momento que a parte mística conta que ele foi atingido por um feitiço feito pelos sarracenos
que levou ele daquele local para uma zona tridimensional que nós chamamos de encantaria, que
não tem tempo nem espaço. Nessa viagem de lá, ele ficou desorientado, não foi só ele, vieram
alguns soldados com ele. O que conta a tradição da minha casa é que ele veio bater na Bahia.
Lá ele procurou ver se era o reino dele, reino de Portucales e foi adentrando lá pelas terras da
Bahia, foi entrando no sertão, então ele chega onde hoje é o Piauí. A tradição conta que lá ele quis
criar o reino dele e se formou um portal lá que hoje é conhecido como Sete Cidade Encantadas.
Atribuiu-se que ele quis se estabelecer lá com a corte dele, só que ficou difícil por que lá ficou
muito visível. As pessoas chegavam lá e tinham facilidade de enxergar as entidades. Ficou um
portal como se fosse uma vitrine. Claro que a gente sabe que aqueles monumentos que tem por
lá tudinho, aquilo veio da pré-história, mas ele queria se estabelecer lá nas Sete Cidades.
Ele não achou bom e veio embora. Foi em vários lugares. Tem vários lugares aí no
sertão que dizem que rei Sebastião passou. Até que ele chegou em São Luís do Maranhão,
chegou na praia do Lençol. Lá ele se identificou com o local onde ele foi encantado, não com
o local de origem dele, Portugal. A identidade com o local onde se encantou. Era um deserto
no Marrocos, o lugar onde foi feito a batalha, era uma beira de deserto, tudo areia. E lá ele se
identificou, as dunas, tudo aquilo. Ele achou por bem estabelecer-se lá. Ele achou que era um
excelente lugar. Jamais ia fazer a casa dele sobre a terra, deixar algum portal na terra. Então
ele levantou a beira da praia e lá em baixo da praia do Lençol ele construiu o seu castelo e lá
formou a sua encantaria, uma cidade todinha ligada a rei Sebastião.
Conta-se também que houve alguns problemas lá e de lá ele veio fazer um porto
seguro na ilha da Madre Deus, aí em São João de Pirabas, na pedra do rei Sabá. Já fomos fazer
obrigações por lá. Lá ele deixou um monumento, como se fosse um guardião. Dizem que lá
tem uma passagem que leva pelo fundo, leva até a praia do Lençol.
A Viagem Fantástica de Rei Sebastião: De Alcacer Quibir ao Terreiro de Mina • Taissa Tavernard de Luca
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A tradição conta que rei Sebastião tem muitos filhos. Nós sabemos que é mentira,
nenhum é filho de rei Sebastião. Jarina é filha de rei Sebastião, fulano é filho de rei Sebastião.
Não tem nenhum filho. Tudo são filhos de criação, tudo é adotado. Uns passaram um tempo
lá, como é o caso de Jarina, Mariana e Herundina também e outros ficaram, continuaram na
encantaria de Rei Sebastião.
A encantaria de rei Sebastião é como se fosse um Estado onde têm várias cidades
e várias vilas. É um complexo, aquela idéia de feudo. O central seria do rei Sebastião,
onde estaria o castelo dele e ao redor as vilas, dadas a pessoas de sua inteira confiança
pra governar certos setores, principalmente porque esses setores são vulneráveis aos olhos
profanos. É muito fácil alguém entrar dentro da encantaria nesse local. Então ele deu
aquela parte e alguém ficou tomando conta como sentinela. Essas pessoas serviam como
Guardiões. Era muita gente conhecida por nós e muita gente desconhecida. Pessoas que se
manifestam, pessoas que se manifestavam e não se manifestam mais e pessoas que nunca
se manifestaram.
Das conhecidas por nós temos o Barão de Goré, que aqui nós chamamos de
“Sebastiãozinho”, o Sebastião, nós temos a dona Aruaninha, que alguns chamam de Baruaninha.
Ela é filha do Barão de Goré. Uma série de entidades que nunca vieram para cá.
Tem alguns padres, porque quando ele foi pra lá, ele levou um grupo porque a ideia
dele é que ele ia vencer e implantar o cristianismo lá, no Marrocos. Ele levou uma corte, a
às vezes as pessoas ficavam meio perturbadas com isso e preferem atribuir isso ao folclore.
Algumas pessoas vêem como dúvida que existia. Existe na encantaria, artesãos, essas coisas
todas. Acreditam que não podem. Porquê? Se ele foi encantado com toda sua corte, o cortejo
dele também foi com ele.
Algumas pessoas são importantes como padres. Existe um padre que é da linha de
rei Sebastião, chamado de Clóvis, talvez tenha até outra descendência porque não é tradição
portuguesa esse nome Clóvis. Mas esse padre Clóvis já tem diversas vezes interferido, diversas
vezes organizado o culto somente a rei Sebastião. Você sabe que o sebastianismo não é um
privilégio brasileiro. É um privilégio português, tanto que em diversas partes do mundo se
implantou isso (...).
Ficou tão forte o sebastianismo que veio implantar a questão de canudos e você sabe
que lá a monarquia têm, tudo a ver. A volta do rei Sebastião veio implantar o messianismo
nessas partes.
O Clóvis era da linha de frente porque ele tinha aquele fanatismo que antes dos
sarracenos morrerem ele tinha que beijar a cruz. Aquela história que a gente diz hoje “fulano
está entre a cruz e a espada”. Esse é um simbolismo que quer dizer: ou fulano se converte ou
então morre. O camarada estava para morrer, então ele fazia questão de salvar aquela alma que
aquela pessoa beijasse a cruz.
A Viagem Fantástica de Rei Sebastião: De Alcacer Quibir ao Terreiro de Mina • Taissa Tavernard de Luca
257
Isso precisa uma pesquisa muito grande! Eles viram uma muralha de areia, como se
fosse assim um turbilhão de areia e quando chegou próximo dele eles viram que aquilo rodeou-
os como se fosse um anel de areia. Depois desse anel se formar, lá dentro eles viram uma luz
muito forte que cegaram eles.
Tudo isso na batalha. No momento em que houve aquela luz, tudinho, eles dormiram.
Eles não sabem quanto tempo eles dormiram. Nós acreditamos que o culto deles se estabeleceu
muito rápido e que os primeiros portugueses que chegaram aqui já traziam algumas
informações, não nesse sentido de encantaria, mas no sentido de que ele voltaria para resgatar.
Isso se deu muito naquele período em que Portugal pertenceu a Espanha. Foram 40
anos, se eu não me engano. Ficou muito forte a restauração do reino português, de Portugal e
a espera do rei Sebastião que podia fazer isso. É uma crença popular. Não era visto pelos altos,
pela corte, pelos sábios, não tinha essa força. Mas a população, o povo tinha essa idéia tão forte
que enraizou no Brasil e aqui teve uma força muito grande que deu ênfase para o culto de rei
Sebastião.
Na minha idéia ele é o segundo grande vodunso. O primeiro é D. Luís porque D.
Luís é o dono da ilha de São Luís. Então ele está em primeiro lugar, mas rei sebastião é um
vodunso muito cultuado porque ele faz parte do nagô gentil onde se cultuam não só os reis,
mas príncipes e outras entidades que passaram para esse encante.
Bem, então ele se estabeleceu lá, algumas pessoas comentam que, devido ter um
movimento muito grande ultimamente, na praia do Lençol, ele tinha mudado pra ilha da
frente. Parece que quando ele teve aquele encontro com a pajelança aqui (...).
Bem a história é a seguinte: fisicamente não podemos dizer (como é o reino de rei
Sebastião). Espiritualmente essa encantaria é uma réplica do palácio de Queluz. Isso foi uma
conversa muito grande com Barão de Goré (...). Eu conversando com o Barão de Goré, disse para
ele que estava fazendo um trabalho para cá pra casa sobre a espiritualidade e principalmente
sobre rei Sebastião e ele me informou que o que tem lá na encantaria é uma réplica do palácio
de Queluz (...).
A organização política e social de lá, continua com aquela situação da de Portugal. Há
um rei que manda em tudo e os vassalos, dentre eles, os condecorados. Então o rei é o centro
de tudo com a sua corte que é formada por aqueles que têm título. Os que têm título governam
as cidades, os que são mais abaixo, governam aldeias. É mais ou menos assim, a cidade está
mais ligada ao Castelo. Tem o palácio que é o centro, após o palácio tem as cidades, as vilas e
as aldeias. Os condecorados são vários, tem conde, tem barão. O barão de Goré, o Conde de
Arajipe. Dizem que ele chegou depois. Você sabe, rei Sebastião recebeu o rei da Turquia e a
corte dele até que ele se estabelecesse na encantaria dele.
A encantaria de Rei Sebastião é como se fosse uma espécie de hospedagem para todos
os nobres que se encantam. É o caso do rei da Turquia. Ele fugiu duma guerra em Jerusalém
A Viagem Fantástica de Rei Sebastião: De Alcacer Quibir ao Terreiro de Mina • Taissa Tavernard de Luca
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juntamente com suas três filhas: Herundina, Jarina e Mariana. Cruzaram o estreito de Gibraltar.
Além do estreito de Giblatar eles iam fazer um bombordo para ir paras as terras da Mauritânia.
Só que eles nunca chegaram lá.
Eles entraram num caminho mais à frente e entraram numa zona tridimensional que
nós chamamos de encantaria. Isso devia ser 1090 mais ou menos. Eles passaram pelo portal
e dormiram, foram acordar no início de 1500. Eles entraram ali na foz do Amazonas. Se
depararam com a pororoca fazendo aquela onda todinha e pararam a canoa num lugar onde
acontecia uma festa (...). A ilha de Parintins, onde tinha o Boi –Bumbá. Foram recebidos
por Caboclo Velho que recebe todo mundo na encantaria. Foi esta entidade que disse que
eles não iam voltar mais. Eles tiveram um impacto muito grande. Depois eles tomaram
conhecimento da condição, esses turcos largaram suas roupas e passaram por um processo de
“ajuremamento”20. Receberam nomes indígenas, renunciaram o nome de turco. É o caso do
Tabajara e do Ubirajara que eram filhos do rei da Turquia (...). Muitos juremeiros pegaram as
roupas e vestiram de turco e se “aturcoaram”21. Foi o Caboco Velho que disse para eles dum
homem que passou por lá, vestindo assim, assim... Eles foram atrás dele. Voltaram pelo Rio
Amazonas e chegaram na encantaria do rei cristão. O turco se assustou, pois D. Sebastião
se apresentou a ele armado com um enorme escudo e a cruz de Cristo bem grande, aqueles
cavaleiros tudinho: – “Nós Caímos numa cilada”. Ele quis iniciar a guerras e ordenou: - “Não,
acabou a guerra, aqui é uma encantaria”.
O rei da Turquia ficou hospedado por lá algum tempo, mas não se acostumou.
Conversou com ele (com Rei Sebastião), deixou suas filhas lá com ele e foi montar sua própria
encantaria na ilha de Algodoal. Outro hóspede de rei Sebastião é rei Camutá de Holanda, que
era corsário holandês. O navio dele afundou na costa do Maranhão, próximo a São Luís. Como
não conseguiu formar sua própria encantaria, tornou-se um agregado.
Eu perguntei também porque rei Sebastião ficou entrosado nessa encantaria e se
manifestando, porque ele não ficou só como rei mesmo, lá na encantaria sendo tratado pelos
vassalos dele. Ele disse que tudo começou com três entidades ligadas a ele. Sebastiãozinho,
Aruaninha e, me esqueço o nome da outra entidade. Elas entraram numa sala, lá na encantaria
de rei Sebastião, entraram numa sala, quando abriram essa sala elas se transportaram para o
mundo visível e quando eles observaram eles, estavam num salão de pajelança lá em São Luís
do maranhão. Ai eles perceberam que eles poderiam estar se comunicando fisicamente com a
terra (...).
20
Ou seja se transformaram em índios.
21
Transformaram-se em turcos.
A Viagem Fantástica de Rei Sebastião: De Alcacer Quibir ao Terreiro de Mina • Taissa Tavernard de Luca
259
Quando eles se manifestaram pela primeira vez eles cantaram:
As pessoas correram e colocaram um toalha vermelha, uma pana na costa dele. Daí
porque, até um certo tempo, rei Sebastião, quando se manifestava, colocava uma capa vermelha.
Não sei se é o simbolismo da guerra. Pra mim o vermelho está muito ligado a imagem de São
Sebastião que é muito confundido com o rei Sebastião.
O engraçado que rei Sebastião quando começou a se manifestar ele alterou a idade dele
para que ele tivesse respeito de patriarca. Ele veio como aquele jovem que se encantou. Então
ele veio como se fosse um patriarca. Ele é um patriarca, ele veio com uma idade avançada.
Então você não vê rei Sebastião se manifestar em ninguém como jovem. Você o vê como
um velho quebrado, já assim curvo, mostrando toda a antiguidade dele, principalmente a
antiguidade que ele tem (...). Ele também vem como touro, a pessoa que recebe se manifesta
como um touro, todinho.
Não é dizer que ele envelheceu na encantaria, porque as entidades podem vir como
novo e como velho, porque a entidade não tem tempo nem espaço. Nós sabemos que ele se
encantou bem jovem e que na corte dele tem entidades muito mais antigas, mas ele se tornou
um vodunso tão importante que foi atribuído a categoria de Xapanã, até devido a ligação
grande com são Sebastião. São Sebastião é contra a peste, a guerra, a fome, então ele ficou
ligado à Xapanã.
Xapanã faz uma guerra muito grande, ele combate uma das piores pragas que existe
no mundo que é a doença. (...) Ele conta pra gente que ele absorveu, ele sofreu isso, Xapanã
é um vodum doente. A Família de Acossi, quase todinha, quando se manifesta, se manifesta
deitado, cai no chão, é como se tivesse um ataque epilético (...). É a força de Acossi, é uma
divindade, é um rei terrível, temido não pela sua riqueza mas pelo seu poder. Porque Xapanã
é um rei pobre, é da família dos reis pobres, com grande poder espiritual, mas sem riqueza.
Ele ficou ligado a rei Sebastião e a são Sebastião, aquela situação toda de guerra, peste
e fome, né? Ele ficou ligado. A família de Acossi, algumas pessoas festejam no dia de São
Sebastião. Depois, quando houve a grande praga de hanseníase no Maranhão, aí foi colocada
a ligação com Lázaro (...). (Pra Rei Sebastião), se dá as comidas de Xapanã, na frente. Frutas,
principalmente de origem européia, algumas adaptadas como a maçã, uva, pêra, azeitona,
vários tipos. Aqui em casa eu dou salada de bacalhau. Muita coisa ligada a peixe. Geralmente
nós não damos carne vermelha (...). O Tabu dos filhos de rei Sebastião é a carne vermelha. Não
A Viagem Fantástica de Rei Sebastião: De Alcacer Quibir ao Terreiro de Mina • Taissa Tavernard de Luca
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deveria comer carne vermelha mas, como é costume aqui no Brasil, come. Eu acredito, é uma
suposição, porque houve muito sangue, muita morte na guerra (...). O Sacrifício é o galo, né?
(...)”
“Rei Sebastião é um nobre nagô de categoria. Família dos gentis ou nobres gentis nagôs:
o povo de toalha. Surgiram no começo do século XX na casa de Nagô que, posteriormente,
foi fundada por duas negras: Joana e Josefa. Os nobres teriam se encantado nos acidentes
geográficos, oceanos e compõem religiões de corte parecida com as cortes terrenas de onde
vêm os reis, as rainhas, os príncipes, as princesas, os nobres. O chefe de todos os nobres seria
D. Manuel, sincretizado com um Oxalá, chefe de todos eles. É encantado no fundo da praia de
Calhau no Maranhão.
O segundo maior é rei Sebastião, encantado na praia do Lençol, atravessando o Boqueirão
até o porto de Itaqui. Depois vem D. Luís o dono da ilha de São Luís, encantado na ponta da
Areia. Rei Sebastião foi encantado na Batalha de Acer Quibir aos 24 anos, desapareceu em
Batalha no norte da África e veio parar no Maranhão e ficou por lá com sua encantaria de onde
ele desceu para o Pará, pelo Cururupu e aqui sua encantaria está na praia do Atalaia, em São
João de Pirabas e em Marudá, na praia da Princesa que é da sua filha, Jarina. Rei Sebastião teve
seu navio desaparecido nas águas durante a batalha de Alcer Quibir, veio parar no Maranhão
e de lá é que veio para o Pará.
Ele foi introduzido por Verequete, vodum que traz esse povo branco, ele é o senhor que
abre os caminhos. Tanto que quando se toca para esse povo de toalha, canta-se primeiro para
Verequete que ele que abre as portas para que o povo de toalha entre.
O vodum maior da minha casa é Rei Sebastião, mas D. Miguel é que passou a frente por
motivo particular, meu. Ele passou a reger a minha casa e meus fundamentos.
Essas entidades são forças, são energias, são vida. Elas são organizadas em famílias.
D. Sebastião tem a família dele embora em vida ele não teve filhos, mas a família dele se
construiu. Alguns têm a mulher e os filhos deles, outros não; têm a encantaria na qual vão se
agregando encantados que vão pertencendo a encantaria deles.
No caso de rei Sebastião, quem se agregou foi a Princesa Flora, Barão de Goré, a
própria Jarina se agregou com ele. A princesa Ina e muitos encantados foram se agregando a
rei Sebastião e construindo a grande família dos Lençóis. Príncipe de Oueiras, às vezes vem na
família de D. Luís, às vezes se agrega a Rei Sebastião. Barão de Goré é filho de D. Manuel, mas
vem pela família de rei Sebastião. Tem Ricardinho, rei do Mar, nobre da família dos Lençóis
que é encantado no Ribamar, Barão Anápoles, Família de Rei Sebastião. Duque Marquês de
Pombal é um nobre português, vivo, participou do tráfico de escravos. Ele é agregado, hóspede
A Viagem Fantástica de Rei Sebastião: De Alcacer Quibir ao Terreiro de Mina • Taissa Tavernard de Luca
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de Rei Sebastião. A Princesa Clara, família dos Lençóis, princesa Flora, Família dos Lençóis.
Barão de Goré, seu nome é seu Raimundo Casemiro, também é da família dos Lençóis.
O povo Nagô Gentil usa taça enrolada num pano. Eles têm um porte nobre, dançam
de chinela e toalha Richiliê. Ele não morreu, ele perdeu o corpo físico e se transformou. É o
encante, o encante se dá via um portal. Abre-se um portal , não tem como saber onde é. Nós
podemos ir à praia do Lençol, mas onde está o portal da encantaria? Ele cumpriu a missão
dele e entrou nesse portal. Lá tinha alguém que o recebeu e o preparou. Muitos não aceitaram.
Rei Sebastião não aceitou a encantaria dele. Há muitas histórias verdadeiras. Uma delas
conta que um navio, um navio de D. João, que vinha. Tava rufando o tambor, quando eles
viram aquele navio alumiado no porto de Itaqui. Quando viram tava todo mundo pulando na
água com encantado. Era boto, era marinheiro, era o próprio Rei Sebastião. Eles pularam n’
água e fizeram a festa. Era tambor, bebiam o que tinham que beber, brincavam, trabalhavam.
Dava aquele sinal. O navio ia embora.
Tem outra história. O pessoal conta que um navio aportou nas ilhargas de lá (São Luís),
fizeram o que tinha que fazer. Quando chegou na hora de ir embora, subir a âncora e vir
embora, puxa, puxa, puxa e nada. Já era de tardinha.
Aí mandaram um homem, um mergulhador descer e ver o que estava acontecendo.
Quando ele viu, aquele homem sentado numa pedra com o pé em cima da âncora. Ele disse:
“Eu sou rei Sebastião, dono dessa encantaria”. Mostrou o reinado dele, um túnel de ouro e
aquele reinado todinho.
Eu lhe dou metade do meu reinado se você me desencantar. Você vai fazer o seguinte:
meia noite você vai até o mais alto morro com uma vara afiada. Você enfia na minha cabeça
até espirrar aquele sangue e você cruza a palma na minha cabeça.
O rapaz fez. O rapaz subiu para o navio, disse que não dava para enxergar o que era
porque estava muito escuro, aconselhou que esperasse amanhecer para ver o que estava
acontecendo. Ele queria era ganhar tempo. A noite ele foi pro lado da baia, trouxe aquela vara.
Quando chegou 11h30, pegou o bosque e subiu no alto do morro. Ele não viu que um rapaz
seguiu ele.
Quando ele chegou lá ele viu aquele touro negro se bufando com a cabeça para vir para
cima dele, ele disse: - “Agora eu vou te desencantar”. Trouxe no bolso o sal que era para cruzar.
Quando ele se preparou, o marinheiro que tinha seguido ele se agarra com ele e grita: - “Fulano,
vamo embora daqui”. E rolaram morro abaixo. O touro gritou lá de cima: - “Desgraçado, tu
redobrastes o meu encante”.
Sei contar que esse moço desapareceu. Isso é uma prova de que ele não aceitou a
encantaria dele aos 24 anos e até hoje ele busca se desencantar. Se ele desencantar, tudo vai
pro fundo. Ele não está satisfeito. Ele é um rei que pouco conversa, ele pouco bebe. Aqui na
minha casa ele vem velho e cansado e quase não fala. Já teve tempo dele vir como jovem, alegre
A Viagem Fantástica de Rei Sebastião: De Alcacer Quibir ao Terreiro de Mina • Taissa Tavernard de Luca
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e satisfeito e teve tempo dele vir como um touro e ninguém segura ele. Na casa de meu pai ele
veio uma vez assim, numa filha-de-santo, e derrubou cinco tambores.
Não é todo mundo que passa pelo portal da encantaria. “Muitos são os chamados, poucos
os escolhidos”. Eles nos estudam, os voduns, os orixás, estudam se nós temos competência
para pertencer ao fundamento deles.
Foi a própria natureza de Deus que leva esse povo para a encantaria. Eles foram para a
encantaria deles começar a fazer reflexão e começaram a ter a missão de amenizar o sofrimento
dos filhos na terra. Pagar os pecados deles e construir uma nova vida. Os voduns transmitem
coisas boas. Você não vê mais D. Sebastião dizendo que mata alguém. Ele vai se preocupar em
te ensinar um banho para você arrumar emprego, te livrar de um mau, te indicar o caminho
que você tem que seguir. Te ajudar a ter menos sofrimento na terra. Mas também ele te pune.
Minha mãe dizia que os encantados orientavam a gente e também se reuniam para punir.
A bandeira dele é a Cruz: é com a cruz que ele dirige a encantaria dele, a família dele. A
encantaria está organizada em família.
Tudo tem nas encantarias. Quando vamos rezar para os orixás, pedindo a orientação de
meu pai Oxossi, meu senhor maior: – “Meu pai Oxossi dai-me luz a todo o meu povo!”. Todo
o meu povo é tudo aquilo que está abaixo da hierarquia de Oxossi. Meus voduns, encantados,
princesas, meus exus. Todo meu povo grande e pequeno.
Nessa encantaria existem os grandes e os pequenos. Cada qual com a sua missão. É que
nem uma firma: o palácio do governo, do governador, tem os assessores, tem os faxineiros.
Existe na encantaria os patrões e os empregados, agora no terreiro mistura tudo. Você chega
numa casa e tem D. Miguel com caboclo bebendo. Os nobres tem que dançar de bengala, os
caboclos respeitam os nobres. Mas as famílias de nobres agregam os caboclos. Eu acho que isso
acontece pela solidão. Hoje em dia é raro o terreiro que separa hierarquia.
Eu festejo rei Sebastião no dia 20 de janeiro. Tem um sincretismo com Xapanã, ele
tem uma afinidade de adorar aquele santo. O rei adora o vodum. Depois da importância dos
Gentis Nagôs, vem a família da Bandeira, depois a família de baianos e Surrupiras que já tão
quase morrendo. É comum acontecer trocas: Dona Jarina é filha de João da Mata, mas foi
criada por Rei Sebastião”.
“Deus u livre. Pra mim embaixo de Deus só rei Sebastião. Há muito tempo ele vem em
mim. Eu comecei, minha avó sempre fazendo remédio, ela não queria a missão porque eu era
muito criança. Eu enxergava um rapaz que eu acho que era ele, rei Sebastião. Enxergava ele
me chamando. Ele sempre se apresentava assim, era um homem alto, simpático e sempre com
uma roupa caque. A calça comprida, uma roupa parecendo de soldado, tinha um cordão de
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ouro muito bonito com um Cristo no peito. Dizem que ele era um guerreiro, lutou no país dos
negros, lutou contra o diabo.
Com 14 anos não teve mais jeito. Eu não queria, não aceitava, eu não queria, não aceitava
porque me metia medo. Depois que eu fui gostar, não teve jeito. Eu passei 23 anos penando, até
que eu vim pra cá. Meu pai-de-santo. Meu pai jogou e disse que quem se apresentou para mim
era Xapanã. Ele foi a primeira entidade que se apresentou pra mim, ele fazia era me chamar.
Ele é um vodum, um branco. Rei Sebastião é um vodum. Pra mim ele vem como vodum,
numa idade bem avançada. O pessoal diz que rei Sebastião é um, Xapanã é outro. É? Ele é um
vodum.
Segundo ele conta, ele que criou a madrinha Jarina, ele criou ela. Toya Jarina é filha dele
de criação. Os dois moram lá na praia de Salinas, lá é a morada deles, na pedra, lá. Uns dizem
que ela veio da Turquia, ela é irmã de dona Mariana, que ela foi criada na Turquia, mas quem
pegou ela foi rei Sebastião. Para mim ela é índia, ela não é turca porque a mãe dela deixou ela,
ela teve ela, a história que foi passada pra mim. A mãe dela quando teve ela não quis porque
ela era filha de gente fina, os pais não quiseram, aí ela teve, ela deixou na beira do rio. Ai foi
que pegaram ela.
Rei Sebastião criou ela, mas ela passou um tempo na Turquia. Ela passou um tempo lá,
depois ela voltou. Tem também o touro. Meu pai falou que o touro é Xapanã. Ele é um rapaz,
ele canta essa dota (doutrina). Ele vem em forma de touro, mas é um rapaz. Filho de Xapanã
têm ela, a princesa Jarina que é filha de criação dele. Tem essa dota:
Ele é encantado na forma de touro. Ele vem na forma de touro. Ele não canta, a gente é
que fica cantando pra ele. Quando ele arriava ele só procurava dar chifrada. Eu não sei se ele
tem mulher, não me foi passado. Quando é rei Sebastião que arreia ele canta, mas ele canta
muito lento, muito lento mesmo. Ele fuma charuto e toma café amargo. Ele sempre vem na
minha cabeça no dia 20 de janeiro, é muito difícil ele vir. Eu não faço corte (sacrifício) para rei
Sebastião. Só comida seca (sem sangue) que é o milho branco, o arroz branco com mel e coco.
Pelo que eu saiba ele teve vida, foi guerreiro, mas não vou te dizer que eu não sei, não me foi
passado. Tem outras casas ai que tem rei Sebastião, pode te falar.
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7. De Rei Sebastião à Lévi-Strauss: uma Análise Estrutural
Desenvolvendo uma teoria que desconstroi alguns autores anteriores que trabalharam
a temática do mito, Lévi-Strauss afirma, em seu texto denominado “A Ciência do Concreto”,
retirado do clássico “O Pensamento Selvagem” (1976b), que a “mentalidade primitiva” – o
autor preferiu denominar de pensamento selvagem - não pode ser lida como situada em
posição inferior dentro de uma escala evolutiva que teria por modelo a ciência moderna. É
errado afirmar que o nativo é inapto a abstrações, como bem classifica Frazer no “O Ramo de
Ouro” (1987).
Como um bom estruturalista que é, Lévi-Strauss considera o pensamento como uma
categoria única e totalmente apta para a reflexão desinteressada, impulsionada exclusivamente
pela necessidade inata que o ser humano tem de ordenar o mundo, de classificá-lo a partir da
observação pura. Lévi-Strauss afirma que as coisas são boas para pensar (1976b) destruindo,
assim, o argumento funcionalista de Malinowski (1984), segundo o qual o pensamento do
“homem primitivo” se desenvolve a partir das necessidades vitais.
O autor francês acaba com a dicotomia pensamento primitivo X pensamento civilizado.
Para ele essas são as duas formas de olhar o mundo que se fazem presentes em qualquer grupo
humano, nas sociedades ágrafas ou com escrita. A diferença que existe entre elas é que o
pensamento selvagem é, essencialmente, mítico enquanto o outro opera por conceitos.
Um dos avanços do “Pensamento Selvagem” (1976b) é considerar o mito como uma
forma de linguagem tão importante quanto a ciência. Chega a afirmar que o processo mental
que constrói o mito é o mesmo que podemos encontrar na base da ciência, uma vez que
parte do mesmo pressuposto: a capacidade de ordenar, de sistematizar o universo que está
no seu entorno. Este é o elemento estrutural fundante. Para Lévi-Strauss, seria incongruente
falar em pluralidade de mentalidades. A variação está na manifestação dessas duas formas de
pensamento. Neste sentido, o “pensamento selvagem” se apresenta como mito, uma forma
de conhecimento paralelo à ciência, definido pelo termo bricolage. É o próprio antropólogo
francês que define Bricolage como:
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por exemplo. Não se preocupam com as balizas temporais ou tampouco selecionam uma
documentação de arquivo. O material usado por nossos interlocutores está muito mais baseado
em imagens e signos do que propriamente em conceitos. Também não há uma metodologia
fechada: há o casamento harmônico entre o real e o fantástico, num processo antropofágico
que assimila, que faz escolhas, construindo uma pluralidade de versões. Nossa proposta aqui
não é analisar as minúcias das especificidades e, sim, buscar os aspectos invariantes porque,
segundo o próprio Lévi-Strauss em seu livro “Mito e Significado” (1978), o mito varia dentro
de um sistema fechado. Onde está a estrutura destas bricolages?
É justamente o método estrutural, definido em a “Noção de Estrutura em Etnologia”
(1970), que Lévi-Strauss vai usar para analisar o mito, método este já aplicado a outros objetos
de estudo como as relações de parentesco e a alimentação. Mas, o que é estrutura para Lévi-
Strauss? A primeira coisa a ser destacada nesta definição é que não se trata de um sinônimo
de relação social. Para o autor, a humanidade é uma unidade psíquica e, enquanto tal, possui
formas semelhantes de organização que respeitam regras universais. A estrutura é esse modelo
que rege a vida do homem, a forma como ele se organiza. É preciso que se afirme que a estrutura
está no nível do inconsciente, cabe apenas ao antropólogo detectá-lo: o narrador não tem
acesso a ela. Falar em estrutura é acima de tudo falar em sincronia, pois são regras imutáveis
que se apresentam de forma variada nas relações sociais.
A análise levistraussiana do mito o desvincula da magia e da religião e o trata
essencialmente como um fenômeno de linguagem. Influência total da linguistica estrutural
saussiriana. O mito, para ele, é parte integrante da língua e se faz conhecer pela palavra. Lévi-
Strauss estabelece a relação entre langue x parole, informando que a langue pertence ao tempo
estrutural reversível, cíclico, sincrônico enquanto a parole pertence ao tempo irreversível,
estatístico, diacrônico.
Outro elemento importante em sua teoria é que ela contesta uma idéia muito antiga
entre os folcloristas clássicos que opõe mito puro x mito deturpado. Para ele, qualquer forma
de mito é valida uma vez que a sua essência não está na narração, mas na sintaxe, na sua
regra geral. Não procura os significados particulares, isolados, baseia sua análise naquilo que o
mito tem de universal. Compara-o a música. Uma vez que ambos são formados por unidades
constitutivas.
A Linguagem compõe-se de três níveis: os fonemas – menor parcela da linguística,
vazia de significados; morfemas - unidade que modifica o significado de uma palavra;
e semantemas – a relação dos significados: uma frase. Apenas os morfemas e semantemas
possuem significado.
A música, segundo Lévi-Strauss (1970; 1978) também possui unidades constitutivas. É
formada por dois níveis, quais sejam: a nota e a frase melódica. A nota equivaleria ao fonema
isolado que não possui sentido, enquanto a frase melódica equivaleria, em análise muito
simplificada, à frase gramatical.
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No mito, por sua vez, não há um nível equivalente ao fonema uma vez que absolutamente
tudo, dentro desta construção, significa. Sua menor unidade constitutiva é o mitema e possui,
portanto, significado. Todo mito possui os mitemas, que são os feixes de relações invariantes,
presentes em todas as narrativas de mesma natureza e conteúdo (Lévi-Strauss, 1978) ou
fenômeno observável. O mitema é o elemento estrutural do mito e o conteúdo é a forma como
a estrutura se apresenta, a exemplo das três narrativas acima expostas.
O antropólogo francês aqui trabalhado ainda alerta que é preciso saber ler o mito. Ele
não pode ser percorrido da mesma forma que um romance, um artigo de jornal, um texto
científico, uma linha depois da outra da direita para a esquerda. Quem o lê deve buscar os
elementos permanentes que não necessariamente estão dispostos na ordem crescente do
agrupamento dos números 1, 2,3, 4...
Além da leitura diacrônica que equivale à sequência narrativa e está no nível das linhas,
existe a estrutura sincrônica. Para encontrá-la, é preciso que se tenha mais de uma versão
narrativa. Compara-se as variações separando os mitemas em coluna. Em cada coluna existe
um tipo de relação comum a todas as versões. Foi o que ele fez com o mito de Édipo. É o que
nós faremos agora, partindo dos relatos sebastiânicos.
Apesar da aparente pobreza simbólica da versão narrativa apresentada por mãe Yolanda,
se olharmos com um pouco mais de precisão, perceberemos que todos os elementos universais
que se fazem presente nas versões de pai Tayandô e pai Serginho de Oxossi são mencionado
por ela, talvez de forma mais velada. Tentaremos afastar os pormenores que “maqueiam” as
estruturas destacando, a partir de agora, os mitemas.
Pai Tayandô: Toda a sua narrativa é costurada por fatos históricos. Eles se referem,
entre outras coisas, ao episódio da batalha, à articulação de casamento com a filha do rei da
Espanha, à construção do arraial de Canudos, dentre outros.
Pai Serginho: A referência à história se faz mais discreta nesta versão. Aponta a morte
do rei na batalha que o religioso denominou de Alcer Quibir e na citação, logo no início do
texto, à fundação da casa de Nagô por duas negras chamadas de Joana e Josefa.
Mãe Yolanda: Mãe Yolanda anuncia a história quando afirma que rei Sebastião teve
vida e quando relata: - “Dizem que ele era um guerreiro”.
Pai Tayandô: Esse mitema se faz presente na descrição sobre os domínios do rei
Sebastião na encantaria. Foi ao Piauí, Bahia, construiu sua encantaria em São Luís e de lá veio
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para Pirabas, onde deixou um guardião. Para Tayandô, o império português dominava as áreas
de encantaria e as distribuía entre seus vassalos.
Pai Serginho: Também se refere aos domínios encantados do rei, que para ele seriam a
praias do Atalaia, São João de Pirabas e o lago da princesa em Marudá.
Mãe Yolanda: O caráter expansionista de rei Sebastião nesta narrativa está presente, de
forma discreta, quando mãe Yolanda nos informa que têm outras casas de culto que recebem
o nobre. Trata-se de um expansionismo da entidade que conquistou “várias cabeças”.
4º Mitema: Inversão
Pai Tayandô: Presente nas narrativas sobre o possível desencante de rei Sebastião. Cita
a doutrina cuja letra profetiza: “Rei, rei, rei Sebastião/ Quem desencantar Lençol/ Põe abaixo
o Maranhão”.
Pai Serginho: Mesma referência, ao contar o mito do pedido de desencante, anuncia
que se o rapaz conseguisse o feito, tudo ia para o fundo.
Mãe Yolanda: A inversão presente no texto de mãe Yolanda é social e étnica: Toya
Jarina é “uma filha de gente fina”, criada por um rei, mas se apresenta como índia.
Pai Tayandô: Ao narrar a batalha do norte da África afirma que a ideia de rei Sebastião
era vencer os infiéis e implantar o Cristianismo.
Pai Serginho: Menciona que a bandeira do rei é a Cruz.
Mãe Yolanda: Referência se faz presente quando ela descreve o visual de rei Sebastião
e aponta que ele usa o cordão de ouro com um Cristo, lembrando ainda que o mesmo teria
lutado contra o diabo.
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6º Mitema: Organização Política
Pai Tayandô: A separação entre essas duas instâncias se faz via presença de um sentinela,
que rei Sebastião autorizou a proteger a vulnerabilidade da encantaria.
Pai Serginho: O religioso narra que o processo de escolha daqueles que são ou não
dignos de passarem pelo encante. Pai Serginho chega a afirmar que qualquer pessoa pode
visitar a praia do Lençol, o que não quer dizer que vá encontrar o portal de acesso.
Mãe Yolanda: Está expressa no medo que a religiosa sentiu quando se deparou pela
primeira vez com a figura daquele rei, via o processo mediúnico.
Pai Tayandô: Está na narrativa sobre o encante de rei Sebastião, passagem do monarca
do mundo dos vivos para o sobrenatural. O período liminar seria o sono. A própria condição
de encantado é liminar, haja vista que trata-se de uma categoria entre o natural e sobrenatural
Pai Serginho: Mesma referência feita ao encante, sendo que o momento liminar,
neste caso, seria o instante da não aceitação desta nova condição e as inúmeras tentativas de
desencante.
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Mãe Yolanda: Neste relato, quem é submetida ao rito de passagem é a própria narradora.
Ele pode ser detectado logo no início do texto, na alusão feita às primeiras manifestações do
êxtase. O sofrimento marca essa passagem.
Nas duas primeiras narrativas esse simbolismo é muito mais minuciosamente trabalhado
com descrições do reino e dos impérios coloniais. Mãe Yolanda não se refere a nada disso,
todavia, há um elemento que indica a realeza de Sebastião, que é o próprio substantivo rei que
se faz presente em todas as versões do mito.
Pai Tayandô: Descreve a encantaria de rei Sebastião como uma espécie de hospedagem
que recebe todos os nobres logo após o encante. Refere-se também ao fato de que a sua família
como repleta de filhos adotivos.
Pai Serginho: Enumera diversos encantados de outras famílias que se agregaram ao
que ele denominou de “encantaria dos Lençóis”.
Mãe Yolanda: Refere-se apenas a uma filha adotiva do monarca: Toya Jarina.
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13º Mitema: Noção de Pessoa Ambígua
Pai Tayandô: Faz clara referência a esse mitema no momento em que afirma que os
turcos se ajuremaram e os juremeiros se aturcoaram, e quando se trata da idade do rei que
morreu novo e se apresenta como velho.
Pai Serginho: A ambiguidade se faz presente na categorização das entidades que são de
uma família, mas se manifestam em outra e também na referência a idade do rei.
Mãe Yolanda: Citaremos o mesmo exemplo dado para o mitema inversão. Toya Jarina,
na narrativa de mãe Yolanda, lembra muito Macunaíma - personagem criado por Mário de
Andrade - uma vez que é filha de “gente nobre”, criada por um rei português, teve passagem
pela Turquia mas, no fundo, é índia. Jarina é o retrato da mestiçagem.
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realizada no dia 20 de janeiro, dia de são Sebastião. Dizendo ainda que o nobre está ligado ao
Vodum Xapanã estabelecendo, com ele, hierarquia de adoração
Mãe Yolanda: Afirma que Rei Sebastião e Xapanã são a mesma coisa: voduns.
Pai Tayandô: pobre x rico/ nobre x povo / terra (alto) x fundo/ velho x novo.
Pai Serginho: branco x preto/ grande x pequeno/ nobre (branco) x caboclo (mestiço)/
terra x fundo/ velho x novo.
Mãe Yolanda: velho x novo/ branco x preto
Pai Tayandô: Para esse religioso os lugares em si são sagrados, são espaços de morada
do encantado, tanto que ele, por duas vezes, relata ter feito oferendas em lugares específicos:
Sete Cidades e a pedra do rei Sabá em Pirabas.
Pai Serginho: Indica esse mitema quando diz que os encantados são forças, energias.
Considerando que essa energia “possui” o religioso, numa experiência de transe, é possível
deduzir que o ser humano tem acesso ao sagrado, não de forma transcendental, como o
totalmente outro, mas de forma imanente, palpável, assimilável.
Mãe Yolanda: Também faz referência ao fato do rei morar na pedra que, segundo ela,
fica na praia de Salinas.
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Considerações Finais
A título de conclusão, gostaríamos de levantar uma outra discussão feita por Lévi-
Strauss, desta vez no livro “Mito e Significado” (1978), quando flexibiliza as fronteiras entre
mito e história, considerando o primeiro uma forma de história sem arquivo, sem documentos
escritos, construído à partir da tradição oral e, por tal, passível de tantas variações.
Revisitando as narrativas sobre o que ele chama de “gênese da desordem”, coletadas
junto aos chefes Whight e Haris, especificamente, habitantes das regiões do médio e supedior
rio Skeena, ele afirma:
Isso pode ser um fato histórico, mas se analisarmos mais de perto o modo
como o fato é explicado, verifica-se que o tipo de acontecimento é o mesmo mas
que diferem quanto aos pormenores (...). Temos uma célula explicativa onde a
estrutura básica é a mesma mas o conteúdo da célula pode variar. É uma espécie
de minimito (1978:60)
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