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Fé e ética na atuação política.

Anotações à luz de trechos bíblicos1

Milton Schwantes*

RESUMO: Nestas minhas reflexões expressaria minha dúvida sobre


o moralismo e mesmo sobre a moral, porque nela prevalecem imposições
e autoritarismo, que exigimos de outros sem alcançarmos, nos mesmos, a
adequarmos a elas! É que a fé não se constitui de catálogos de moral, antes de um
evento da gratuidade e da graça. Este é nosso primeiro item: “o justo vive na fé”, e,
por isso, se esmera em adequar-se à justiça e à verdade.

Palavras-Chave: Justiça, Religião, Fé.

ABSTRACT: This article expresses a doubt about the validity of


authoritarian social norms. Faith does not constitute catalogs of morals, prior to
an event of grace. This is our key item, “The just shall live by his faith”. Therefore,
the religious human being always seeks justice and truth.

Keyword: Faith, Religion, Justice.

INTRODUÇÃO

Há que considerar o que seja fé: o evento que atribui às gratuidades de Deus minha
própria vida. Fé não resulta, pois, da igreja ou de quem quer que seja; brota do coração de
Deus em nossos corações. Por isso, para entendê-la e assumi-la estamos livres para inverter-
nos: isto é, os caminhos do triúno Deus em nós, em Jesus, o crucificado e ressurreto, fazem
brotar em nós e nas comunidades o anseio inusitado e comovedor de sermos suas seguidoras
e seus seguidores. Por isso, vamos às lutas da vida, em especial para promover um mundo de
irmãs e irmãos. E assim passa a estar constituída a tarefa ética da política. Não basta o amor a
indivíduos, ainda que estes jamais possam ser relegados, mas somos convocados e vocacionados
ao amor e à justiça com dimensões políticas. Nesta solidariedade, os melhoramentos sociais
devem ser em prol do conjunto social, partilhado com cada pessoa.
“O que diremos, pois, à vista destas coisas? Se Deus é por nós, quem será contra nós?”
(Romanos 8,31) Portanto, estou aqui para recomeçar. Não vim aqui para continuar a desferir

* Doutor em Teologia pela Universidade de Heidelberg. Foi professor titular do Programa de Pós-Graduação em Ciências
da Religião da Universidade Metodista de São Paulo/UMESP. A publicação desse texto torna-se uma homenagem
póstuma ao referido professor Milton, falecido em 01 de março de 2012.
1
Este ensaio tem por base a conferência apresentada no encontro “Ética e fé na atuação política”, no 2º Encontro Mineiro
de Fé e Política – “Consolidar o Poder do Povo: Paixão, Luta e Resistência”, em Belo Horizonte/MG, SESC-Venda Nova,
em 1 e 2 de outubro de 2005.

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mais algumas pedradas. Já jogaram muita pedra. Já lançamos outras tantas. Dentre quem as
lançou muitos o hão de ter feito porque sempre é melhor jogar pedras que esperar até que nos
lancem. Ataque precede a defesa. Mas nem vou ao ataque e nem à defesa. Isso aí já cansou. A
meleca que tanto vemos noutros é também a mesma meleca pela qual eles nos vêem.
Nos primeiros dias deste reboliço de corrupção, falava com um dos feirantes do Bairro da
Saúde, onde moro em São Paulo. A feira é tarefa minha. O vendedor esbravejava sobre ladrões
e corruptos, nesta política à moda brasileira. Perguntei-lhe, enquanto lhe comprava uma dúzia
de ovos: “E se pintasse um milhão aí em sua frente, você levava?” Sua resposta foi imediata e
sem carecer de mais pensamentos: “Ah, levava!”. Pois é, o pior da corrupção é a gente, nós que
fazemos nossa feirinha aos domingos, não levamos chance. Bem, isso não explica tudo, mas
faz entender melhor a ‘rebelião’ do moralismo. Enfim, quem pousa de moralista está próximo
de quem se esconde por roubo.
Não me deu vontade ir ao assunto pela indignação moral. Ela tem lá seus direitos.
Mas que não sejam demasiados. Porque a moralidade tende à cegueira como o roubo. Não à
cegueira de não ver aos outros, mas à capacidade de ver a própria desfiguração. Neste sentido,
alegra-me em perceber que moral realmente tem perna curta.
Nestas minhas reflexões expressaria minha dúvida sobre o moralismo e mesmo sobre
a moral, porque nela prevalecem imposições e autoritarismo, que exigimos de outros sem
alcançarmos, nos mesmos, a adequarmos a elas! É que a fé não se constitui de catálogos de
moral, antes de um evento da gratuidade e da graça. Este é nosso primeiro item: “o justo vive
na fé”, e, por isso, se esmera em adequar-se à justiça e à verdade. E isto é um caminho, um
experimento ético de incessantes tentativas e conversões no humilde intuito de acerto, não é
uma perfeição moralista com ares de arrogante superioridade. Por isso, ser justo e digno é, na
Escritura, marca de crianças e pobres, doentes e desesperados.
Descrever a sequencia dos conteúdos da palestra.....

1. Das coisas da fé: o justo viverá na fé

De algum modo nos viemos acostumando a analisar a religião. Quando o fazemos, tendemos
a enfocar os personagens históricos e seus comportamentos. E isso está bem assim. Afinal, religião
é antes de tudo o que se vê e se vive. Não é o escondido das coisas. Não é ciência oculta. É o que se
evidencia, se narra, se conta e se pensa, à luz do dia, sem subterfúgios nem engodos.
Por aí todos nos vamos fazendo cientistas da religião, na própria igreja assim atuamos e
nos explicamos, como se religião fôssemos. Aliás, o somos, ao caminhar à igreja aos domingos,
no mesmo horário, do mesmo jeito, de roupas similares. Igreja está repleta desses passos,
dessas roupas, desses horários, dessas festas – tudo religioso. Como não haveríamos de querer
ver-nos religiosos?

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Por mais que assim sejamos, até nos comportamos, até somos, não nos entendemos e
nem se nos explica se só assim nos olhamos. Eis o problema!
O que somos é pela fé que somos. Eis, o segredo que habita em nós. Temos uma série
de marcas que perfazem a religiões, mas aí não nos esgotamos.

1.1 – Minha graça te basta


De verdade a vida na fé nem se vive e nem se vê, sem este seu jeito histórico, sem
isso que estou chamando de religião. Mas, quem assim nos olha, também há que dizê-
lo honestamente que não nos vê. O que se vê, tende a nem ser o que de verdade se vive
e se deseja, porque os olhos podem não tanger o mistério da salvação. Falemo-lo de
modo centradamente antropológico, para que ainda se torne mais flagrante: ao ver-nos,
possivelmente já nos estamos a esconder.

1.1.1 – “Por decisão própria os amarei”


O profeta Oseias já expressava esse mistério em sua profecia, certamente originária
da escola deuteronômica, no 8o século. Ele e tantos outros profetas, antes dele e a seu
lado, anunciavam, geração trás geração, que Israel e Judá, estado e elite dominante, e, em
consequência, até o próprio povo, se afogariam em sua própria ruína, porque se punham a
massacrar seus pobres, as mulheres e os homens, e porque, ao invés de se lançarem ao Deus
do êxodo, Javé, punham-se atrás de ídolos representados no melhor de sua produção e no
próprio ouro (1Reis 12). Diante de tais mazelas dos senhores de Israel e de Judá, só restava
a Deus exterminar essas configurações políticas, que ele mesmo, Deus, chamara a existir
(1Samuel 8).
Mas, chegando a este triste fim de tudo, em torno de 722 a.C., quando os soldados
assírios já rondavam o país e nele lançavam suas tropas para liquidar o reino do norte, o Israel
do 8º século a.C., o profeta como que reinicia sua atuação. Recomeça a história (Oseias 2,1-
3.16-25). No fim, em meio ao extermínio, quando o justo juízo de Javé se efetivava, faz-se um
surpreendente recomeço.
E isso se dá, porque Deus ‘justamente’ não é ‘fiel’ a si mesmo: Ele que havia enviado
profetas trás profetas a anunciar a morte; Ele a si mesmo se torna vida: recomeça o caminho
de vida com quem condenara à morte: “Curarei suas rebeldias. Por decisão própria os amarei.
Eis que minha ira se afastou dele.” (Oseias 14,5).
A fidelidade de Deus a si coincide, pois com seu próprio amor que suplanta o justo e
inquestionável juízo de morte a seu Israel. Ele traça novo caminho e novo começo. Formula
suas decisões. Esta é a surpresa do evento salvífico por graça e na fé. É o que enfraquece
toda e qualquer moralidade apressada: eis que Deus se converte! Embute um risco em nossa
vida, o risco do amor, do perdão, da contínua possibilidade do recomeço, não formal mas de

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conteúdo, de transformação da vida. Não é a fidelidade a nós mesmos que Deus exige, mas a
confiança plena nele. Eis, o mistério da fé!2

1.1.2 – “O justo viverá pela sua fé”


Neste nosso assunto, cabe o profeta Habacuque, um teólogo da escola de Isaías, na
Jerusalém do finalzinho do 7º século. Sua profecia é uma provocação ao novo, a um inusitado
pensamento teológico e a uma prática igualmente surpreendente.
Encontramo-lo num ciclo como que litúrgico em Habacuque 1,1 até 2,4.3 Nele, esse
profeta na escuta de Deus e em meio à oração, obtém nova resposta de Javé a respeito de uma
inquietação de seu e de nosso tempo. Em sua queixa, em 1,2-4, o profeta grita a Javé por causa
da “violência”, em que os justos são obrigados a viver. Terá fim esta vitória da violência e da
opressão? A justiça nunca se manifestará?
Essa queixa profético-humana obtém resposta de parte de Deus, 1,5-11. Esta afirma:
contra a injustiça do injusto, Deus suscita como solução os caldeus. Estes com seus violentos
exércitos exterminarão o mal. Vencerão o injusto com sua terrível violência, sim para o qual
“o poder é seu deus” (1,11).
Tal resposta não condiz ao problema, por isso o profeta volta a contestar, em 1,12-17.
Estes versículos, em parte não bem preservados em termos de crítica textual, dão destaque
inicial à glória de Deus. Não é, pois, à parte de Deus, mas justamente no reconhecimento de
sua glória que o profeta contesta a validade da resposta dada anteriormente. É mesmo razoável
que o poderoso continue a destruir, por que o poder lhe dá a capacidade para tal? Haverá
justiça através da efetivação do poder?
E, assim, o profeta recebe nova resposta, em 2,1-4. Obtém-na dentro dos moldes então
modernos: colocado “na minha torre de vigia” (v.1), observando os céus. Esta nova resposta se
encontra em sua formulação final e inovadora no v.4b: “o justo viverá pela sua fé”4, ou “o justo viverá
na sua fidelidade”5. O novo é a “fé”/“fidelidade”, a ’emunah, enfim o que diz ’emen/“amém” à vida.
Essa sentença teológica se fez famosa, porque está retomada no cabeçalho teológico da
carta aos Romanos 1,16-17, e porque teve papel de destaque na teologia dos reformadores do
século 16, em especial de Martin Lutero6. Para o profeta Habacuque, a vida do justo, que vive

2
Confira Hans Walter Wolff, Dodekapropheton 1 – Hosea, Neukirchen, Neukirchener Verlag, 2a edição, 1965, 322p.
(Biblischer Kommentar Altes Testament 14/1), em inglês: Hosea – A Commentary on the Book of the Prophet Hosea,
Philadelphia, Fortress Press, 1974, 259p.; veja tambem Jorge Mejía, Amor, pecado, alianza – Una lectura del profeta
Oseas, Buenos Aires, Ediciones de la Facultad de Teología de la U.C.A./Patria Grande, 1997, 159p., e Horacio Simián-
Yofre, El desierto de los dioses – Teologia e historia en el libro de Oseas, Córdoba, Ediciones El Almendro, 1992, 286p.
3
Veja Domingos Sávio da Silva, Habacuc e a resistência dos pobres – Tradução crítica do profeta Habacuc, Aparecida/
SP, Santuário, 1999, 342p. (Série Bíblica 5).
4
Assim na versão de João Ferreira de Almeida.
5
Assim na versão da Bíblia Pastoral.
6
Veja Walter Altmann, Lutero e libertação – Releitura de Lutero em perspectiva latino-americana, São Leopoldo/São
Paulo, Sinodal/Ática, 1994, 352p.

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sob contínua ameaça de parte do injusto, terá superada sua vida injustiça pelos senhores do
poder através da injustiça, precisamente porque Javé dará ao justo a marca da fé e da fidelidade.
De ambos, o sujeito implícito aparente é o justo, mas de verdade é o próprio Deus. Pois, se o
justo vencesse por sua conta e força, toda esta liturgia e estas orações de Habacuque seriam
por si só desnecessárias. Elas só são tão urgentes e prementes, porque o justo não vence, não se
impõe, porque a força e a violência do injusto são as que se sobrepõem. O justo só alcança ser
vitorioso porque o sujeito implícito de sua vitória é Deus. E é por isso que a Ele se apela! Poder-
se-ia dizer também – é obvio – que a vitória é do justo, deste ser humano. Mas, em tal caso,
haveria um eufemismo implícito nesta vitória humana, que a tornaria outra vez ato divino;
seria divino na profundidade do humano, na extrapolação do humano, no qual a fragilidade
total se torna chance de celebração. Mas isso, no caso, seria aqui em Habacuque ou em Isaías
52,10-52,12 algo como parábola humana. Mais adequado é que se diga tal experiência em
sentido teológico, revelando a Deus autor do inusitado. Ainda que o milagre seja humano, sua
versão mais radical é a inversão teológica.
O justo está em vida seja “em sua fé” ou “em sua fidelidade”. Ao valer-se do conceito da
“fé”, o tradutor insiste no teológico em meio ao humano. Ao valer-se do termo “fidelidade”, a
versão inculca no humano a subversão da injustiça. Numa ou noutra visão, saiba-se que em
ambas o milagre abunda. Não é a soma de determinadas ações que abre horizontes, mas são os
raios os que iluminam as obscuras noites, já sem horizontes, nem visões.
Sem graça não há justiça. Pois, pela justa justiça a desgraça se faz. Este é o brutal dilema
de gente pobre e injustiçada. Mas a rigor não é sua condição social que assim os aperreia e os
contorce pelos cantos e margens sociais. A própria vida é assim, ela anda por seu contrário.
Esta é a suspeita da religião sobre toda boa intenção. Ou noutras palavras: a cruz não é sinal
de tempos de longe passados, mas dos dias que aí vão. A ruína não é o mal, é o próprio bem
que a si trai.

1.1.3 – “Vem para o centro”


Haveria contradição maior que a de “o filho de Deus” em pleno Gólgota, em plena
caveira? Seu lugar não é lá. Seu espaço certamente haveria de ser outro, ao menos digno.
Pois, se te perguntassem de como haverias que receber Deus, não dirias que o haverias que
recepcionar em “o lugar das caveiras”7 (isto é, no Gólgota). Terias tantos outros lugares melhores
que este, ao qual se lançavam restos mortais de pobres defuntos desconhecidos, já apodrecidos
e desmanchados. Neste lugar de ‘desmanche’ de defuntos é que não se haverias de esperar ao
Senhor dos Senhores! Mas, foi lá que ele se revelou derradeiramente. Algum outro ‘Olimpo’
haveria que ter escolhido, mais nobre e esbelto, com corpos sadios e atléticos aos seus pés!? Aí,
sim, neste ‘Olimpo’, aos pés do qual se celebravam as olimpíadas, poder-se-ia pensar deus, em

7
É o que significa “Gólgota”! Veja Marcos 15,22.

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meio aos exercícios de belos e olímpicos corpos. Mas em meio a caveiras...? Aí, Deus? Sim, aí
o da caveira é que é Deus, o da vida, o restante dos ‘olímpicos céus’ tendem a ser ídolos. Não
basta, pois, diferenciar entre Deus e os ídolos, o que importa é ver seus contextos!
Este Gólgota já está, por assim dizer, no próprio nascimento, por exemplo nas histórias de
Mateus. Ver mencionadas como antepassadas de Jesus: Tamar, Raabe, Rute, “a que fora mulher
de Urias”8 e Maria9 não põe o menino Jesus, propriamente, em ‘bons lençóis’ de moralidade.
Mas dispõem-no agudamente na história da salvação. Por igual, as companhias de Jesus entre
enfermos e pecadores, felicitando pobres e abençoando criancinhas não propriamente o torna
um dignitário, mas o identifica como um sofredor e perseguido em meio aos necessitados e
flagelados por dores e palavras alheias.
Por onde ‘andarmos’ e lermos os evangelhos, vemos, justamente nestes nossos dias,
talvez melhor que em outros tempos se via: em Jesus emerge a pobreza e floresce para além;
vida nasce em meio a crucificados.10 E assim desfilam diante de nós, nos evangelhos, cada
um dando sentido à humilhante realidade desta gente desdenhada e empurrada a viver em
cemitérios e túmulos, já que não lhes sobrava nem casa e nem teto. Que glória haveria em meio
à tamanha cruz? Nenhuma! É, não há glória, mas há soluções, cá e lá e por toda parte, em meio
ao mundo dos e das empobrecidas. Afinal, aprende-se de novo a colher grãos em roças alheias,
quando bate a fome, sem medida, e se sabe reler as leis que, em seu cerne, são em prol da
vida (Marcos 2,23-28). Experimenta-se que dores e doenças, grandes e pequenas, têm solução
posto que, à luz das palavras de Jesus, estão aí disponíveis à vida da gente pobre. Vivencia-se
que cada encontro com alguma pessoa pode transformar-se em vida nova: ‘zaqueus’ podem
transformar-se em vidas sem roubo, e mulheres podem tornar-se em irmãs de caminho.
Na cruz e no caminho a ela – aliás, “o evangelho de Jesus Cristo” (Marcos 1,1) –
desvendam-se as realidades próprias, nas quais existimos. Assim o expressa emblematicamente
o evangelista Marcos em seu cap.15, quando faz seguir à morte de Jesus (“Jesus, dando um
grande brado, expirou” 15,37) alguns eventos peculiares, típicos da obra e vida de Jesus de
Nazaré. O véu do templo se rompeu (v.38), o que quer dizer que dentre os sinais da presença
de Deus já não cabe lugar de destaque ao templo (veja Marcos 13,1-2; observe também
cap.11). Este já não é ‘local’ de Deus, mas o é a cruz, o são as cruzes. Além da crise em que o
próprio templo é colocado, novos sujeitos se tornam cristãos: o soldado estrangeiro que havia
acompanhado Jesus à morte. Agora, confessa: “verdadeiramente, este homem é filho de Deus”
(15,39); nessa confissão o evangelho de Jesus Cristo, segundo Marcos, propriamente chega a
seu alvo (veja 1,1!). E além do soldado que encontra o caminho à comunidade, aí próximas à
cruz estão as mulheres que desde a Galileia seguem a Jesus; três se destacam nominalmente
8
Bate-Seba.
9
Veja Mateus 1,1-17.
10
Veja Jon Sobrino, Cristologia a partir da América Latina – Esboço a partir do seguimento do Jesus histórico,
Petrópolis, Editora Vozes, 1983, 431p.

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(15,40-41): Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago, e Salomé. Tão frágil quanto Jesus fora
eliminado é sua igreja, agrupada aí junto ao crucificado.
Político, sim eminentemente político é este evangelho11, mas sem poder nem violência.
A vida se ia fazendo nova, não que possuímos a receita para tal, mas porque Deus em Jesus
assim re-criou, re-inventou e re-agrupou a vida por nós, em nosso meio e conosco. Eis o
milagre de Jesus, a maravilha da fé, eis o caminho para encaminhamentos políticos.
Jesus se fez centro da história. E assim reocupou o centro da vida com os que estavam
fora e a parte. Por isso nos pôs no centro: “vem para o centro” (Marcos 3,6). Em Jesus os
maltrapilhos foram feitos centro da história, portanto também da política.

1.1.4 – “Não vos conformeis com este século”


O apóstolo Paulo foi radical e genial na explicitação do evento de Cristo, na “nova
criatura” (2Coríntios 5,17) que nele se realiza, em meio a nós e em nosso favor12. Esta nova
criatura é caminho escatológico tanto para as pessoas que encontram e re-encontram sua
vida acolhida no amor de Cristo para o amor à criação e a suas criaturas. Neste sentido, o
evangelho, entendido como nova criatura, como renascimento (veja João 3,7: “importa-vos
nascer de novo”), é re-criador da vida nas relações inter-pessoais e simultaneamente nas
inovações criativas nas relações sociais e políticas, e na criação inteira. Nesta perspectiva, o
acesso transformador ao que seja político é parte da ação de quem reencontrou os caminhos
de sua vida, ao ser encontrado por Jesus.
Vida – redescoberta na graça de Deus, não decorrente de boas e humanas obras – é
propriamente dádiva de Deus. Ao recebê-la, não me adono desta sua origem diária e cotidiana.
Ao recebê-la rogo a Deus que, por mim, se expanda a sua gratuidade através de ‘minha’
imitação aproximada de sua inusitada bondade e sua benfazeja ação através de mim (veja
Filipenses 3,8-9).
Tal vida conquanto dádiva a um agraciado, como sou, sem qualquer primazia sobre
ninguém me liberta para realizar o melhor possível por meus irmãos e minhas irmãs, e por
meus concidadãos e minhas concidadãs. Estou chamado à criatividade de um amor eficiente,
um amor que cure, que supere as origens dos males que atingem a outras pessoas ou a sociedade
inteira. Amor reivindica eficiência, inclusive política.
Não se poderá dizer que Paulo tenha levado essa dinâmica à sua forma mais criativa e
conclusiva. Nosso apóstolo, não só vislumbrava um fim eminente13 ou também não via chances

11
Veja Fernando Belo, Lectura materialista del evangelio de Marcos – Relato-práctica-ideología, Estella, Editorial
Verbo Divino, 1975, 471p.
12
Veja a respeito de Paulo o ensaio metodológico de José Severino Croatto, Êxodo – Uma hermenêutica de liberdade, São
Paulo, Edições Paulinas, 1981, 179p. (veja o capítulo sobre Paulo).
13
Veja a respeito Pablo Manuel Ferrer, “Corinto, tiempos mesiánicos – Pistas para leer 1º Corintios y nuestra realidad”,
em RIBLA, Petrópolis, Vozes, vol.62, 2009/1.

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de ir a lutas contra o império romano. O que se lê de Paulo sobre o império em Romanos 13,
não só se encontra sob a eminência dos tempos finais, mas também sob a evidência de que
ninguém poderia fazer frente a um império tão total e devastador. Mais valia o caminho das
comunidades e as ações de amor do que uma luta de desesperados contra o gigante romano.
Nessas e em várias outras questões éticas específicas – como na vida das mulheres ou
na existência de escravas e escravos14 – Paulo, o apóstolo, não caminha sempre em trilhos mui
iluminados. Há que aprofundá-las, sem dúvida, invocando contra elas análises críticas. Mas
não me parece que haveria de avaliar o senso teológico do apóstolo de modo similar. Pelo
contrário! Suas perspectivas, conquanto teológicas, conformam uma singular peculiaridade
que efetivamente lançam muito importantes perspectivas. Estas realmente não se conformam
com o presente século (veja Romanos 12,2). Os impasses presentes nas perspectivas paulinas
são antes éticos que teológicos.
Por isso, vale lembrar Paulo, por exemplo em sua correspondência aos coríntios, em 1
e 2 Coríntios. Afinal, a argumentação teológica que encabeça a argumentação de 1Coríntios
se lê que “Deus escolheu as coisas loucas do mundo... escolheu as coisas fracas do mundo...
escolheu as coisas humildes do mundo” (1Coríntios 1,26-27). Aí não resta dúvida que Deus
segue o caminho da fraqueza e dos pobres, como o faziam, a seu tempo, os profetas. Teologia
começa, pois, necessariamente na cruz, na manjedoura pobre, em meio ao que é humilde.
Como que não há outra trajetória disponível. Realmente é assim que “minha graça te basta,
porque o poder chega a seu alvo na fraqueza” (2 Coríntios 12,9). E, em Romanos, o quadro
teológico não é diferente, ainda que a linguagem paulina seja distinta. Aí o eixo argumentativo
recorre ao conceito da justificação. Esta já não carece das obras da lei. Ela irrompe em nossa
vida de modo que somos “justificados gratuitamente, por sua graça” (3,23-24). O conteúdo
desta graça é a própria obra de Cristo Jesus na cruz. A ela o acesso é o da fé, sem obras da lei!15
A gratuidade de Deus é, pois, a marca da humanização. Nenhuma lei pode obter o que
a gratuidade evoca, o de me fazer gente sem a obrigatoriedade, pois esta, finalmente, só me faz
cativo de minha própria insuficiência. A liberdade não cresce sem perdão. Ética fora da graça
produz engano e engodo.
Evoquei algumas das tradições bíblicas para assentar a ética na graça. Alocá-la na
obrigação a torna como que necessariamente uma torpeza.

1.2 – Uma ética do provisório e do precário, do caminho e da busca


A ética interage com o evento salvífico. A seu modo deixa vislumbrar os jardins
encantados do encontro com Deus em Jesus, aquele que morto e, de certo modo, assassinado

14
Veja o comentário de José Comblin, Epístola aos Colossenses e Epistola a Filemon, Petrópolis, Editora Vozes, 1986,
107p. (Comentário Bíblico – NT).
15
Veja a respeito Walter Altmann, Lutero e libertação, e Ernst Käsemann, An die Römer, Tubinga, J. C. B. Mohr, 3a
edição, 1974, 411p. (Handbuch zum Neuen Testament 8a).

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teve compaixão de seus algozes, pois, afinal, entre estes estavam, como que seus próprios
discípulos, tendo Pedro, o que o negou, à sua frente. Também ética só pode ser penúltima16, e
neste sentido provisória. Pois, ela permite diversas decisões, variadas argumentações.
Ética poderia ser a do imperativo categórico. Se eu, por exemplo, tivesses escondido
em minha casa um foragido da polícia, um perseguido pela polícia política dos tempos do
regime militar brasileiro, teria eu que entregá-lo às autoridades, quando viessem à minha
casa procurá-lo? Ou hei de escondê-lo justamente para que não caísse em mãos da polícia
política? Aí as respostas poderiam ser variadas. Poderão depender de minha posição política.
Mas também poderão depender de minha humanidade. Enfim, poderei orientar-me pela fé.
Em cada uma dessas decisões, em todo caso não ficarei isento e nem inocente. Poderia ter
sido engano pelo próprio fugitivo que poderia ter entrado em minha casa, sob o pretexto de
um perseguido político. Enfim, as variáveis são múltiplas e minhas decisões éticas por igual
podem ser outras tantas. Aí não há absoluto.
Poderia ter feito de conta como se tal absoluto houvesse. Poderia ter chamado de
imediato a polícia, considerando que aquele foragido estava a invadir minha casa. Para tais
casos, aciona-se a polícia. E pronto. Gente em fuga, em todo caso, seria caso de órgãos públicos
e não tarefa para minha pobre e dúbia consciência, poderia argumentar. Chamar-se-ia quem
de direito. A identidade cristã seria justamente esta de apelar a quem de direito em casos de
pessoas à beira da lei.
Em todo caso, não haverá outra saída do que a de imiscuir-se no assunto. Ética não
é, pois, somente a ação de acordo a um parâmetro, código, com parágrafos, itens e subitens.
Ética precisa de decisão.17 Com isso, não se afirma que cada qual há de decidir como lhe apraz
e de acordo a seus interesses. Afirma-se que há muito espaço para o individual, para o risco da
decisão, até mesmo do subjetivo, para o caminho pessoal. Óbvio é que aqui também tais decisões
pessoais, profundamente conectadas a decisões específicas e à história própria, continuam a
ser sociais e, principalmente, se relacionam à responsabilidade. Ao me responsabilizar por
minha decisão, a tal ponto me autoidentifico que posso receber, como que simultaneamente,
a reprimenda social e ver-me, ainda assim, em profundo contentamento pessoal pelo ‘dever
cumprido’, considerando que na decisão me fiz mais gente comigo mesmo.
Não há, pois, como pensar a ética sem a mais profunda participação e inserção no
assunto em pauta. Ética se distingue, pois, de um seguimento de mandamentos, de leis, de
obrigações, enfim de moral. Estas não me tornam pessoa, sujeito ético. Elas desmerecem minha
co-responsabilidade para com a vida de outras pessoas, respeitando o intuito responsável de
16
Veja a respeito deste conceito Dietrich Bonhoeffer, Ética, São Leopoldo, Editora Sinodal, 8a edição, 2005, 217p.
17
Veja a respeito Paul L. Lehmann, Ethics in a christian context, Nova Iorque, Harper & Row, 1963, 384p., em espanhol:
La ética en el contexto cristiano, Montevideo, Editorial Alfa, 1968, 386p.; veja também Richard Shaull, por exemplo na
coletânea de seus ensaios: De dentro do furacão – Richard Shaull e os primórdios da Teologia da Libertação, São Paulo,
Sagarana/CEDI/CLAI/Programa Ecumênico de Pós-Graduação em Ciências da Religião, 1983, 222p. (Protestantismo
e Libertação 1), e O cristianismo e a revolução social, São Paulo, União Cristã de Estudantes do Brasil, 1953, 104p.

Fé e ética na atuação política. Anotações à luz de trechos bíblicos • Milton Schwantes


181
quem decide contrário a mim, mas decide dentro da mesma responsabilidade em que eu
mesmo me situo. Neste sentido, definições éticas contrárias podem ser idênticas à minha,
ainda que contrárias, em conteúdo. Sim, não há ética sem risco e conflito.

1.2.1 – Sonhos com amor e da justiça


Decisão não se há de identificar com interesse. Ambos são distintos. Pois, interesse só
atende um dos lados das perspectivas em questão. Seria aquilo que me convém. Pode suceder
que toda decisão vire interesse. Só no caminho poderei testá-lo, verificá-lo. Justamente por isso
dizia acima que a decisão jamais refuta o participativo e o solidário, pelo contrário justamente
requer tais dimensões. Requer que se compartilhe, que se busque ajuda. Assim as decisões
sairão mais maduras. E inclusive as que proferi em meu próprio interesse continuarão a estar
sob o peso de julgamento da própria consciência munida por consciências de outros. Quanto
mais decisão e interesse coincidirem maior possivelmente será a posterior auto-crítica.
Em função de tal autocrítica continuada, existem conceitos culturais que condensam
experiências éticas seculares. Tais conceitos não solucionam tudo, mas podem nortear, espelhar
de modo avaliativo as decisões éticas em jogo. Não servem propriamente de receitas, mas são
ingredientes que me ajudam. Não me deixam só. Irmanam meus caminhos com as decisões
de outras pessoas.
Tais conceitos já foram múltiplas vezes aplicados. A eles muitas gerações recorreram.
E, além disso, em última instância, estão voltadas contra mim. Nisso reside, propriamente, o
ponto crucial.
Amor e justiça consolidam experiências que não necessariamente se enquadram
em minha intencionalidade. E, neste sentido, são horizontes e peculiaridades orientadores
em procedimentos éticos. Não são propriamente normas éticas, mas horizontes. Vale a
estes conceitos o que acima reivindicava para outras normas específicas, por exemplo para
mandamentos e proibições particulares.18 Não convém, pois, que se coloque a exigência por
amor e justiça/direito em lugar de uma validação de normas éticas especificas, porque então
estaríamos gerando problemas similares aos acima já delineados. Estaríamos novamente
retirando de cena o sujeito ético e desfazendo sua autoridade, ou melhor, autonomia19 ética.
Conceitos abrangentes como “amor” e “justiça” não alcançam constituir-se premissas éticas
específicas (veja Gênesis 38,26), mas requerem ser vivenciados como instâncias inquietadoras
de definições e encaminhamentos éticos. Portanto, também a assim chamada “máxima do
amor” não há de poder substituir a ambientação ou a decisão do sujeito ético.

18
Veja em relação a tais conceitos a pesquisa de Erhard S. Gerstenberger, Wesen und Herkunft des “Apodiktischen
Rechts”, Neukirchen, Neukirchener Verlag, 1965, 162p. (Wissenschaftliche Monographien zum Alten und Neuen
Testament 20).
19
Veja a obra de Paulo Freire, Pedagogia da autonomia – Saberes necessários à prática educativa, São Paulo, Paz e Terra,
2a edição, 1997, 165p.

Fé e ética na atuação política. Anotações à luz de trechos bíblicos • Milton Schwantes


182
Posta esta ressalva, voltamos aos conceitos biblicamente tão elaborados como o são os
do amor e da justiça/direito. Amor/agape tem em mente as necessidades da outra pessoa. Não
é ação reflexiva, mas acima de tudo objetiva. Assim a tem em mente o ‘bom samaritano’: cuida
das feridas logo ao começar a reclinar-se ao assaltado; depois leva-o a um lugar abrigado onde
pudesse continuar a ser cuidado; paga as despesas; e, ao regressar, se compromete continuar a
dar atenção ao assaltado (Lucas 10,25-37). Em tudo, o centro das atenções é essa pessoa ferida
e machucada. Por isso, o apóstolo Paulo delineia o amor, em 1Coríntios 13,5, como aquela
ação que “não procura os seus interesses”. Em seus interesses próprios, o “amor” afogaria no
que me é próprio. Óbvio é, que não há que querer afogar o interesse próprio mas em exercitar-
se, em pedir de joelhos que os interesses alheios se sobreponham ao que me é próprio. Nesta
dimensão, amor é ação do próprio Espírito; é ele que me constrange ao que não me é próprio,
mas ao que me é alheio (veja Gálatas 5,22, veja aí também o v.14). É neste sentido que “Deus
é amor” (1João 4,8): Ele, Deus, em sua absoluta diferença a nós. Convida-nos a Ele mesmo ao
nos conduzir ao amor. Do mesmo modo que nele está a própria origem da luz, da vida (1João
1,5). Ao convidar-nos ao amor ao próximo, Deus nos convida a ele mesmo.
Não que o amor carecesse de complemento, mas, para que se lhe façam florescer todas
as facetas, convém agregar-lhe o que o Primeiro Testamento adiciona e concretiza. Penso antes
de tudo numa destas frases densas e programáticas de Amós, em 5,24:

“corra o direito como as águas,


e a justiça, como ribeiro perene” (Amós 5,24).

Frases similares poderíamos mencionar também em outros profetas.20 Esta de Amós


nos interessa em particular, porque nos remete para os dois conceitos hebraicos mais agudos
em relação à ação ética.
Reivindica-se, para as relações sociais, que jorre “direito”. O termo hebraico em questão
– mixpat derivado do verbo xpt – leva propriamente o sentido de ‘atribuir a alguém aquilo que
é propriamente seu, lhe pertence’21. Direito não é, pois, um ‘bem’ social estranho, mas próprio.
Mas para ser o que é precisa ser socialmente reconhecido, seja por uma decisão social, no
caso uma conversão (Oseias 2) ou por um processo, no qual a pessoa que está em direito seja
re-confirmada no que é seu, devido a uma sentença, uma decisão social no portão da cidade
(veja Amós 5,15-16). O problema de tais decisões sociais em prol do “direito” está complicado,
porque quem assumiu o poder social – o estado e suas elites – boicotam as decisões sociais ou
as pervertem. Transformam o “direito” em alosna (Amós 5,7).

20
Veja Milton Schwantes, “A terra não pode suportar suas palavras” (Amós 7,10) – Reflexão e estudo sobre Amós, São
Paulo, Paulinas, 2004, 206 p.
21
Veja a respeito Gerhard Liedke, verbete xpt, em Diccionario Teológico Manuel del Antiguo Testamento, Madri,
Cristiandad, vol.2, 1985, colunas 1238-1265.

Fé e ética na atuação política. Anotações à luz de trechos bíblicos • Milton Schwantes


183
Similar e distinto é o conceito mais abrangente de “justiça”. Este não se refere tão
especificamente a uma decisão tão peculiar, mas ao espírito que move o que seja justo. Ora,
sedakah “justiça” não é como “direito”/mixpat algo concreto que se atribui a um cidadão. Antes
é a ótica, e são os parâmetros em relação aos quais se decide o que seja “justo”. E aí os valores
sociais são decisivos. Tamar se havia apresentada como prostituta nos caminhos, em Gênesis
38,26. Mesmo assim Judá, um dos filhos de Jacó, precisa reconhecer que ela, mãe sem filho,
fora mais justo que ele, porque se lançara por completo à solução de seu problema: a de ter
filho. No caso, é flagrante que “justiça” é uma categoria social não ideal. E é neste sentido que
ela é usada também pelos profetas, como vemos no trecho acima citado de Amós 5,24. São
os empobrecidos e as marginalizadas, como Tamar, que requerem “justiça”. Portanto, quem é
justo não é propriamente quem é correto, mas quem, para ser gente, não o pode ser sem ser
coletivamente apoiado para poder voltar às suas dignidades, para poder continuar a viver “a
sua imagem” (Gênesis 1,26.28), a imagem de Deus, no social.
Nem “direito” e nem “justiça” são, pois, ideias, mas concretas verdades de empobrecidos.
Em nossa terra, de fato, não haverá nem “direito” e nem “justiça” sem opção preferencial pelos
milhões de empobrecidas e empobrecidos.

1.2.2 – “Solidariedade quero”


Justiça e amor encaminham muito bem o sonho bíblico. E são suficientemente
abrangentes para a implementação de ações concretas.
Ainda assim, mais e mais viemos aprendendo a incluir um conceito a mais, porque
através dele alcançamos expressar um aspecto que a nós, em nossos dias, parece necessário.
Trata-se do conceito da solidariedade. Em hebraico, este conceito se relaciona com hesed. Em
tempos passados, tendia-se a traduzi-lo por misericórdia. Mas este termo vem caindo em
certo desuso. Além disso, relaciona-se ao ‘coração’, que, no hebraico, está vinculado à área do
pensamento.22 Heseh acentua outra dimensão: a dos sentimentos, alocados, para a Bíblia, na
região não protegida por ossos, como é o caso do coração, com o qual, na Bíblia, como dizia,
se pensa. Sente-se abaixo das costelas que envolvem o coração dos pensamentos, aí onde estão
o estômago e as entranhas, como se expressa a Bíblia.23
Neste sentido, o termo em questão abre novas perspectivas para expressar relações.
E este jeito de exprimi-las vem de encontro aos tempos que vivemos, onde amor e justiça
são imaginários muito necessários para uma vida, em que exista espaço para todos, para um
mundo ‘no qual todos caibam’.

22
Veja Hans Walter Wolff, Antropologia do Antigo Testamento, São Paulo, Edições Loyola, 1975, 329 p.
23
Veja a respeito Silvia Schroe e Thomas Stäubli, Simbolismo do corpo na Bíblia, São Paulo, Edições Paulinas, 2003,
307p. (Série Bíblia e História).

Fé e ética na atuação política. Anotações à luz de trechos bíblicos • Milton Schwantes


184
Um trecho bíblico típico para esta perspectiva é a frase central e programática de Oseias
6,6, uma parcela de texto retomado logo duas vezes no Segundo Testamento, em Mateus 9,13
e 12,7:24

“solidariedade quero e não sacrifício,


conhecimento de Deus e não holocaustos” (Oseias 6,6).

Essa frase programática situa-se no espaço da sabedoria. Além de reunir frases sobre a
experiência, a sabedoria tende a alcançar afirmações contundentes e programáticas. A profecia
tende a captar tais máximas sociais para fixar suas intuições sociais (veja também Amós 5,24
e Miqueias 6,8). Não se trata aí de normas, mas de intuições.
Feitas essas observações sobre experiências abrangentes da profecia em relação à
ética, convém não esquecer que sua preocupação maior é a da crítica arrasadora e da ameaça
devastadora aos senhores do poder. Fixo-me, no final, tão somente no aspecto da ameaça,
considerando que o assunto tem sido bem estudado na pesquisa sobre a profecia.

1.2.3 – “Jeroboão morrerá à espada”


Profetas são, de modo contundente, adversários radicais do poder. Sua crítica às injustiças
praticadas contra os pobres, sem dúvida, é igualmente muito reveladora. Mas tais defesas em
favor dos mais fracos também podem ser encontradas na sabedoria e nos salmos. Diferente e
inovador na profecia é que as injustiças contra os empobrecidos, homens e mulheres, podem
mudar de perfil e de característica. Aliás, as denúncias são muitas e múltiplas. Basta que se
compare Amós com Oseias para verificar as diferenças de enfoque e de linguagem quando
se trata da denúncia, das acusações. O que não varia é a ameaça! Ela sempre se centra no
centro do poder político, no estado e em suas cidades. As ameaças recaem contra o templo, o
exército e o comércio, encabeçados pelo rei. Estas elites hão de ser destroçadas para que a vida
das pessoas, em especial da gente empobrecida, volte a florescer, através da retomada da vida
clânica e tribal. Só a superação da monarquia e sua sustentação urbana irão viabilizar “direito”
e “justiça”, enfim “solidariedade”.
É óbvio: esta sociedade antiga, de tempos bíblicos, difere da nossa. Muitos séculos nos
separam. Lá, na Escritura, vivia-se em condições tributarias e tribais, diferentes das condições
de hoje. Não podemos, pois, acomodar-nos à Bíblia, achando que assim nos estaríamos
acolhendo na verdadeira ética política. Novas decisões políticas se fazem necessárias para
condizer a nossas condições de hoje.

24
Veja a respeito de Oseias 6,6 a interpretação de Hans Walter Wolff, “‘Wissen um Gott’ bei Hosea als Urform von
Theologie”, em Gesammente Studien zum Alten Testament, Munique, Christian Kaiser Verlag, 1964, p.182-205, e
Dodekapropheton 1 – Hosea, p.153-154; veja também Carlos Mario Vásquez Gutiérrez, Oseas 6,6 – Reconstruyendo
el tejido social la solidaridad uma alternativa frente a la violencia institucional, São Paulo, Faculdade de Teologia
Nossa Senhora da Assunção, 1995, 186p. (dissertação de mestrado).

Fé e ética na atuação política. Anotações à luz de trechos bíblicos • Milton Schwantes


185
Referências

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SHAULL, Richard. De dentro do furacão – Richard Shaull e os primórdios da Teologia da
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Fé e ética na atuação política. Anotações à luz de trechos bíblicos • Milton Schwantes


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_____________. O cristianismo e a revolução social. São Paulo, União Cristã de Estudantes
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_________________. “‘Wissen um Gott’ bei Hosea als Urform von Theologie”. In.:
Gesammente Studien zum Alten Testament. Munique, Christian Kaiser Verlag, 1964, p.182-
205 e Dodekapropheton 1 – Hosea, p.153-154
_________________. Antropologia do Antigo Testamento, São Paulo, Edições Loyola, 1975.
_________________Hosea – A Commentary on the Book of the Prophet Hosea, Philadelphia,
Fortress Press, 1974.

Recebido em 30/09/ 2012


Aprovado para publicação em 15/12/2012

Fé e ética na atuação política. Anotações à luz de trechos bíblicos • Milton Schwantes


187
AS PREMISSAS DO DEUTEROPENTECOSTALISMO:
TRADIÇÃO E RENOVAÇÃO NO CAMPO RELIGIOSO
BRASILEIRO

Paulo Rogério Rodrigues Passos1

RESUMO: Num contexto de contradições internas, uma transição no


mercado religioso apresenta-se inevitável. A Igreja Católica com seu novo perfil
militante assemelha-se mais a um partido político do que a uma instituição
religiosa. As denominações protestantes históricas vivem tão ensimesmadas com
sua predestinação e fé que se esquecem da realidade. As pentecostais caminham
sem horizontes. A Congregação Cristã do Brasil atua como se estivesse na
Itália, e a Assembléia de Deus, com a sua estrutura oligárquica, atua no Brasil
como se este fosse o nordeste. Nesse desencontro com a realidade, possíveis
janelas de oportunidades se abrem a novas empresas religiosas. E é justamente
nessa fase da história que se processa no País a segunda onda pentecostal ou o
Deuteropentecostalismo.

Palavras-chave: 1. Deuteropentecostalismo; 2. Campo religioso; 3.


Mercado; 4. História

ABSTRACT: In a context of internal contradictions, a transition in the


religious market has become inevitable. The new militant profile of Catholic
Church is more suchlike to a political party than a religious institution. The
mainline Protestant denominations live so self-absorbed with its predestination
and faith that they forget reality. The Pentecostals walk without horizons. The
Christian Congregation of Brazil acts as if he were in Italy, and the Assembly of
God, with its oligarchic structure, operates in Brazil as if it were in the northeast.
In disagreement with reality, possible windows of opportunity open to new
religious enterprises. And it is precisely at this phase of history that takes place in
the country the second Pentecostal wave or Deuteropentecostalism.

Key words: 1. Deuterotentecostalism; 2. Religious Field; 3. Market; 4.


History

1
Doutor em Ciências da Religião pela PUC/GO. Professor Adjunto na mesma Pontifícia Universidade Católica de
Goiás. E-mail: paulo.passos@yahoo.com.br

188
Introdução

As igrejas deuteropentecostais2 surgem no Brasil num período de grande desenvolvimento


econômico. Décadas de um fluxo migratório intenso rumo aos centos urbanos mudaram a
paisagem do País. De uma realidade agrária, bucólica e dispersa pelas dimensões continentais
brasileiras, a miséria, a exclusão e a desesperança agrupam-se às margens das metrópoles
nacionais. Com um Estado institucionalmente fraco, governo centralizador, elite individualista
e sectária, a população estava à mercê da própria sorte. Nesse contexto, a segunda onda do
pentecostalismo brasileiro apresenta-se como uma panacéia social e espiritual. Com um
trabalho de acolhimento dos sofredores e devedores, doentes e descrentes, excluídos e os
consumidos pelo álcool, drogas, desemprego, as novas igrejas ganham público e visibilidade.
Segundo Montes:

As condições socioeconômicas e culturais do período - o processo de


metropolização da cidade que se acentua, o aumento da solidão do indivíduo
num mundo cada vez mais sem referências fixas, a ausência de respostas
institucionais, laicas e religiosas às suas aflições, a influência da contracultura
que se faz sentir em escala planetária, levando à busca, em culturas distantes e
exóticas, de novos modelos de sociabilidade, novos sistemas de valores e uma
nova espiritualidade, num mundo que começa a registrar sintomas de crise
profunda (...) (1998, p. 98)

Um processo acelerado de migração interna nas últimas décadas, como diz Anthony
Gidens “um desencaixe dos sistemas sociais”, é catalisado no Brasil em razão da política
econômica de substituição de importações. Essa mudança na orientação macroeconômica
redefine os paradigmas valorativos, bem como o direcionamento demográfico da sociedade
brasileira. A partir da década de 1930, uma massa humana depreende-se das suas regiões
e das suas raízes culturais em direção às incipientes metrópoles nacionais. Motivadas pelas
velhas e novas necessidades sociais, promissora perspectiva de superação existencial pautada
na subsistência conduz e induz a ressignificação das idiossincrasias individuais e coletivas.
O crescimento dos espaços urbanos potencializa fluxo migratório para as cidades,
todavia, esses novos espaços não estavam estruturalmente preparados. Além das carências

2
Deuteropentecostais (ou Deuteropentecostalismo) é o termo que designa a segunda onda do movimento Pentecostal que
surgiu na década de 1950, como no Brasil, quando chegaram a São Paulo dois missionários norte-americanos, Harold
Williams e Raymond Boatright, da International Church of The Foursquare Gospel (grupo que nos Estados Unidos é
considerado como Pentecostal de primeira onda). Na capital paulista eles criaram a Cruzada Nacional de Evangelização
e, centrados na cura divina, iniciaram a evangelização das massas, principalmente pelo rádio, contribuindo bastante
para a expansão do pentecostalismo no Brasil. Fundaram depois a Igreja do Evangelho Quadrangular. No seguimento,
surgem grupos semelhantes, tais como O Brasil para Cristo, Igreja Pentecostal Deus é Amor, Igreja Unida, Igreja do
Evangelho Quadrangular, Casa da Bênção entre outras. O Deutero-Pentecostalismo enfatiza a cura divina e profecias,
embora valorize o falar em línguas, distingue-se do Pentecostalismo Clássico pelo seu menor foco nesse carisma.
Quanto à ética e costumes, há uma polarização, e tornou se mais rígido caso da Igreja Pentecostal Deus é Amor, ou
mais liberal como na Igreja do Evangelho Quadrangular.

AS PREMISSAS DO DEUTEROPENTECOSTALISMO: TRADIÇÃO E RENOVAÇÃO NO CAMPO RELIGIOSO


BRASILEIRO • Paulo Rogério Rodrigues Passos 189
materiais, que invariavelmente fazem parte da rotina cotidiana dessas novas comunidades,
depara-se com uma perspectiva de integração e sociabilidade pouco acessível. Por mais difícil
que seja a vida no campo, um caráter mutualista permeia as relações sociais. As necessidades
individuais encontram alento e presteza na casa mais próxima, ou seja, o sujeito é uma extensão
da sua comunidade. Um sentimento de pertencimento integra o indivíduo a um conjunto
relacional que o reconhece e o respalda socialmente.
Com o exponencial êxodo rural iniciado no Brasil nos anos 30, uma desintegração
associativa passa a orientar as relações sociais. Porém, com um Estado institucionalmente
despreparado para acolher essa caudalosa massa humana, em contrapartida essa massa
ainda mais despreparada em demandar organizadamente qualquer garantia, lançaram-se
gradativamente a um processo de indigência social. Desprovidas das condições básicas de
subsistência, do anteparo estatal e, sobretudo, assujeitados pelo individualismo imposto
pela competitividade própria dos centros urbanos, uma resignação coletiva passa a ser o
denominador comum das periferias brasileiras. Nesse cenário fático e simbólico são gestadas
as bases do deuteropentecostalismo.

1. A Igreja do Evangelho Quadrangular

Em 1951, a Igreja do Evangelho Quadrangular inicia suas atividades missionárias no


Brasil. A atuação dessa nova denominação pentecostal marca a transição de um novo modelo
litúrgico e doutrinário no panorama religioso brasileiro. As rupturas com o modelo anterior
começam pela característica inusitada da sua principal liderança espiritual. Pela primeira
vez na história dos movimentos religiosos, uma denominação é fundada por uma mulher. A
precursora dessa ousada empreitada religiosa, num ambiente marcadamente dominado por
homens, foi Aimee Semple McPherson, canadense de família metodista que aos 17 anos de
idade teve uma intensa experiência pentecostal.
A trajetória missionária de Aimee configura-se numa impressionante saga
evangelizadora. Ainda muito jovem, logo após o seu primeiro contato com o pentecostalismo,
casou-se com um pregador e juntos empreenderam uma jornada missionária na China. Após
um breve período na Ásia, interrompido bruscamente pela morte de seu marido, ela migra
para os Estados Unidos. Em território americano, casa-se novamente, mas seu chamamento
religioso não consegue conciliar o matrimônio com sua vida missionária. Deixa o seu segundo
marido e lança-se definitivamente como pregadora espiritual.
A vasta experiência existencial acumulada em tão curto espaço de tempo fez de Aimee
McPherson uma mulher à frente do seu tempo. Associado a esse perfil empreender de Aimee,
o ambiente no qual residia influenciou significativamente o arcabouço litúrgico da Igreja
do Evangelho Quadrangular. Após suas andanças pelos Estados Unidos, estabeleceu-se nas

AS PREMISSAS DO DEUTEROPENTECOSTALISMO: TRADIÇÃO E RENOVAÇÃO NO CAMPO RELIGIOSO


BRASILEIRO • Paulo Rogério Rodrigues Passos 190
proximidades de Hollywood em Los Angeles que era a Meca de grupos religiosos exóticos e o
centro da crescente indústria do entretenimento dos anos 20.
Nesse contexto de ebulição cultural e religiosa, é fundada a Church of the Four-Square
Gospel, igreja despojada do tradicionalismo dos primeiros movimentos pentecostais, livres e
disposta em se adaptar à nova sociedade urbana. Enquanto os grupos pentecostais mais antigos
se aburguesavam, Aimee adquiriu uma tenda de lona e atravessou os Estados Unidos, levando
o rito avivalista e sessões de cura divina às camadas mais pobres. Em 1922, Aimee inovou
novamente: criou um programa de rádio destinado à pregação pentecostal. A ressonância e
o impacto dessa iniciativa foram tão expressivos que em 1924 adquiriu sua própria emissora.
A Igreja do Evangelho Quadrangular constitui uma denominação de difícil conceituação
doutrinária, pois, ao mesmo tempo em que ressalta as quatro qualidades pentecostais de Jesus
Cristo - Salvador, Batizado no Espírito Santo, Médico e Rei que voltará - na última qualidade
de Jesus explicita a expectativa do advento de cunho milenarista. Seu avivamento litúrgico é
dinamizado pela incorporação da mídia, de novas tecnologias sonoras e de uma performance
teatral típica do contexto hollywoodiano. Com a ênfase interpretativa do evangelho, associada
a uma construção gestual performática e como trilha sonora, guitarras, metais e percussão,
o culto da Igreja Evangelho Quadrangular era um verdadeiro espetáculo. Percebe-se, nesta
Igreja, pouca característica sectária e ascética, por isso, há uma tendência de se investir em
“atividades extra-igreja” (MARIANO 2005). Para Freston:

A Igreja do Evangelho Quadrangular se vê como um pentecostalismo que


não faz estas coisas: em que o pecado e o inferno perdem a centralidade em favor
do apelo às necessidades sentidas de cura física e psicológica, sinal de adaptação
às sensibilidades da sociedade de consumo e às exigências do mercado religioso;
e em que os tabus comportamentais são abrandados, pois já deixaram de ser
funcionais para amplos setores urbanos (1996, p. 113).

A chegada da Igreja do Evangelho Quadrangular ao Brasil coincide com um período


de intensas transformações socioeconômicas internas. Com a morte de Aimee, em 1940, seu
legado missionário é transmitido ao seu filho que mantém o trabalho evangelizador iniciado
por sua mãe. Missionários vinculados à igreja são enviados a todas as regiões da América
Latina. Em 1946, chega ao Brasil o pregador da Igreja do Evangelho Quadrangular Harold
Williams, ex-cowboy do cinema americano e bastante ousado em seus projetos religiosos.
Até 1951, Williams freqüentou outras denominações religiosas quando, efetivamente, já
familiarizado com a língua e a cultura, fundou uma pequena igreja em São João da Boa Vista,
no interior do Estado de São Paulo.
A notoriedade da igreja foi projetada com relevância em 1953 quando Williams
convidou um amigo missionário e, também, ex-ator do cinema americano, para uma cruzada
evangélica pelo Estado de São Paulo. Reproduzindo os passos de Aimee McPherson em

AS PREMISSAS DO DEUTEROPENTECOSTALISMO: TRADIÇÃO E RENOVAÇÃO NO CAMPO RELIGIOSO


BRASILEIRO • Paulo Rogério Rodrigues Passos 191
1920 nos Estados Unidos, os dois missionários adotaram o velho método americano das
tendas de lona: A Cruzada Nacional de Evangelização, nome atribuído pelos missionários
às suas tendas espirituais itinerantes. Apesar da sua repercussão, o projeto não prosperou. O
ideário interdenominacional dos pregadores do Evangelho Quadrangular fora frustrado pelo
personalismo das demais igrejas evangélicas, fossem elas protestantes ou pentecostais.
Ao longo da década de 50, influenciado pelo modelo de substituição de importações,
o perfil diferenciado e dinâmico da Igreja do Evangelho Quadrangular foi reproduzido e
incorporado por denominações nacionais. Todavia, o seu legado influenciou novo paradigma
no universo pentecostal brasileiro. A cura divina e a glossolalia já eram práticas usuais entre
os pentecostais. Entretanto, a massificação dos cultos religiosos em espaços públicos, o visual
dos pregadores, o desempenho teatral, bem como toda uma inovação rítmica aos cultos fora
introduzida no pentecostalismo brasileiro pela Igreja do Evangelho Quadrangular.

2. Igreja Evangélica Pentecostal “O Brasil para Cristo”

A efervescência do nacional desenvolvimentismo, uma fórmula retumbante que levaria


o Brasil a superar séculos de denominação e dependência econômica, influenciou nova leitura
da realidade brasileira. Estimulada por alguns arautos populistas, o Brasil, de uma república
agrária e atrasada, passou a ser visto pelas massas como um país soberano, rico e de futuro. As
décadas de 50 e 60, no Brasil, promoveram transformações estruturais na economia, política
e, sobretudo, na mentalidade do povo brasileiro. Com parque industrial em franca expansão,
fortalecimento institucional do Estado e sucessão de governos populistas, a esperança no
desenvolvimento da nação era reverberada aos quatro ventos no País. Esse período de bons
resultados sociais e de prosperidade alvissareira foi refletido em vários planos da sociedade,
até mesmo no religioso.
Nesse panorama de valorização e credibilidade nas potencialidades internas,
desenvolveu-se no Brasil um pentecostalismo genuinamente nacional. Seguindo o perfil
deuteropentecostal da Igreja do Evangelho Quadrangular, é fundada em São Paulo a Igreja
Pentecostal o Brasil para Cristo. Seu fundador e líder espiritual foi o pernambucano Manoel
de Melo, homem simples, filho de agricultores nordestinos. Ainda muito jovem, migrou
para São Paulo. Sua base religiosa vinha de sua mãe, freqüentadora assídua da Assembléia de
Deus. Quando garoto, chegou a participar das atividades religiosas da igreja quando se tornou
menino pregador.
Já em São Paulo, em meados dos anos 40, Manoel de Mello empregou-se na construção
civil. Como trabalhador dedicado e ávido em aprender, chegou à função de mestre-de-
obras. Concomitantemente às suas atividades profissionais, não abandonou sua inclinação
religiosa, atuando certo período como diácono da Assembléia de Deus. Manoel de Mello

AS PREMISSAS DO DEUTEROPENTECOSTALISMO: TRADIÇÃO E RENOVAÇÃO NO CAMPO RELIGIOSO


BRASILEIRO • Paulo Rogério Rodrigues Passos 192
era um homem antenado com o seu tempo, percebia as rápidas transformações processadas
no comportamento social e valorativo da sociedade brasileira. Com um tirocínio próprio
de um líder nato, convenceu-se rapidamente de que a denominação à qual pertencia estava
caminhando na contramão da história. Sentimento este explicitado na própria fala de Manoel
de Mello quando disse: “Enquanto nós convertemos um milhão, o diabo converte dez milhões
através da fome, da miséria, do militarismo da ditadura, e as igrejas continuam acomodadas”
(Manoel de Melo, 1968, apud Freston, 1996, p. 116).
Com o início da Cruzada Nacional de Evangelização da Igreja do Evangelho
Quadrangular, Mello sentiu-se tocado pela ousadia e pelo dinamismo desse movimento.
Acompanhou em inúmeras ocasiões a pregação da Cruzada em tendas de lona pelo Estado
de São Paulo e região centro-sul do País. Contudo, não tardou a perceber o mimetismo
missionário dos pregadores brasileiros em relação ao comportamento, liturgia e pregação dos
pastores americanos. Manoel de Mello percebeu que chegara o momento de emancipar-se
dessa religiosidade exógena. Imbuído desse propósito e alimentado pelo momento histórico
favorável, começou a gestação de uma denominação religiosa nacional.
Sua primeira igreja foi fundada no início do ano de 1956, batizada com o nome de igreja
de Jesus Betel. Todavia, logo percebeu o caráter tradicionalista presente em um incipiente grupo
religioso. Insatisfeito com a escolha do nome da recém-criada igreja, a mesma foi rebatizada
com um nome mais sugestivo e adequada às circunstâncias: Igreja Evangélica Pentecostal o
Brasil para Cristo (BPC). E quando questionado do por que da nova nomenclatura, Melo dizia:
“Se o Brasil podia vencer a batalha do desenvolvimento, por que não podia ser de Cristo?”.
O procedimento litúrgico da BPC incorporou forte apelo patriótico. Sua base era
composta de elementos ufanistas, apresentando um País cada vez maior e melhor sob a égide
espiritual da igreja de Jesus Cristo. As estratégias de conversão, proselitismo e disseminação
religiosa da Brasil para Cristo foram mais criativas e eficazes das adotadas na Igreja do
Evangelho Quadrangular. Enquanto os pregadores da Quadrangular visualizavam nas cruzadas
evangélicas em tendas de lonas itinerantes uma forma simples e dinâmica de estender a palavra
de Deus, a Brasil para Cristo sofisticou sua concepção religiosa: em vez do prosaico externo
e da grandeza interior, optou pelo glamour, pela magnitude, pela nova estética urbana que
ressignificava os padrões bucólicos introjetados na mentalidade cultural do País.
O nacional desenvolvimentismo preconizava que a superação das mazelas sociais
encontraria uma resposta definitiva na industrialização e na conseqüente urbanização do
Brasil. Na medida em que esta premissa se consolidava, crescente propaganda nacionalista
corroborava o processo. Nesse contexto, os preceitos religiosos desenvolvidos pela Igreja
Brasil para Cristo rapidamente foram readaptadas pela conjuntura socioeconômica nacional.
Por conseguinte, Manoel de Mello, que até então era mais um na multidão, destacava-se como
um líder espiritual ressonante e poderoso.

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BRASILEIRO • Paulo Rogério Rodrigues Passos 193
Aproveitando o círculo virtuoso pelo qual o Brasil, bem como a sua denominação,
passava, ampliou o seu espaço religioso e de poder. De pregações em tendas de lona e espaços
públicos em outrora, Mello comprou o alugou grandes áreas comerciais anteriormente
ocupadas por cinemas, casas de espetáculos e teatros. Todavia, quando essas instalações eram
insuficientes para acomodar a crescente clientela, a Brasil para Cristo inova alugando grandes
ginásios e estádios de futebol.
Prenunciando as estratégias futuras do pentecostalismo brasileiro, a BPC investe
agressivamente em programas de rádio e televisão. Paralelamente, com a garantia da projeção
alcançada, quebra um tabu no universo pentecostal, engajando-se ferrenhamente na política.
Ao longo da década de 60, a BPC consegue eleger vários parlamentares, tanto na esfera federal
quanto estadual. Contudo, a centralização em Manoel de Mello provocou algumas defecções
de parlamentares eleitos pelo influxo da igreja.
Essas dissidências enfraqueceram os trabalhos sociais desenvolvidos pela igreja,
como, também, geraram descapitalização financeira e de influência em relação a grandes
empresas, órgãos públicos e no cenário político como um todo. Paradoxalmente, o processo
de retroalimentação da Brasil para Cristo definhou, pois, na medida em que os parlamentares
romperam com a igreja, esta reduziu significativamente as suas atividades. Em contrapartida,
sem o carisma e apoio de Manoel de Mello, esses parlamentares não se reelegeram, sendo
condenados ao ostracismo.
O período áureo da BPC foi a década de 60, na qual, em consonância com as
transformações da realidade brasileira, obteve significativa projeção. Entretanto, na medida
em que a mística inicial do processo de urbanização e crescimento industrial encontra as
suas limitações históricas, o progresso da BPC entra num plano estacionário e decrescente. A
panacéia do desenvolvimentismo esbarra seus resultados com a crescente problemática social
que assola as periferias urbanas.
A intelectualidade nacional, o governo e os movimentos sociais e religiosos que
embarcaram no ideário nacional desenvolvimentista direcionaram suas perspectivas para
o futuro, negligenciando o passado colonial, atrasado e dependente do Estado brasileiro.
Em razão dessa inobservância, a miséria, a obsolescência do material humano nacional, a
precariedade ou ausência de infra-estrutura social básica, que até então estavam ocultas pelo
interior do País, desnudam-se abertamente nas periferias das metrópoles urbanas.
Assim, os efeitos colaterais provocados pelo “remédio” acabam agravando a condição
da “moribunda” estrutura social brasileira. A BPC a partir desse momento descentraliza-se
em várias congregações menores, o seu perfil litúrgico incorpora uma sobriedade própria das
igrejas tradicionais, talvez com um carismático um pouco mais evidenciado. Sua visibilidade
social foi gradativamente ofuscada, manteve-se minimamente atuante em seu templo no
Bairro da Pompéia em São Paulo e nas demais localidades urbanas do centro-sul do País.

AS PREMISSAS DO DEUTEROPENTECOSTALISMO: TRADIÇÃO E RENOVAÇÃO NO CAMPO RELIGIOSO


BRASILEIRO • Paulo Rogério Rodrigues Passos 194
Manoel de Mello, como um homem sagaz que era, ainda tenta uma metamorfose
doutrinária na BPC. Percebendo que aquela efervescência socioeconômica e religiosa dos
primeiros tempos não passava de “fogo de palha”, Mello buscou apresentar a BPC como um
movimento ecumênico e interdenominacional. A vinculação da igreja ao CMI (Conselho
Mundial de Igrejas) demonstra claramente o novo viés da BPC no início dos anos 70.
Contudo, essa iniciativa desfigurou a autenticidade da BPC, o que, inexoravelmente,
desconstruiu o maior patrimônio dessa denominação, que era, indubitavelmente, as suas
raízes nacionais.
A Igreja Evangélica Pentecostal o Brasil para Cristo marcou importante capítulo
na história do pentecostalismo brasileiro. Sua aparição no universo religioso pentecostal
estabeleceu as bases para a sublimação do deuteropentecostalismo. O perfil empreendedor do
seu líder espiritual ladrilha a caminho das novas denominações pentecostais. Suas estratégias
litúrgicas, organizacionais e de marketing religioso configuraram o preâmbulo de um novo
paradigma pentecostal em gestação no Brasil. Manoel de Mello morreu em 1990. Sua igreja
perdeu a imponência de outrora, mas seu legado suscitou o surgimento de novos impérios
religiosos nacionais e transnacionais dotados de uma estrutura e poder político, algo imaginável
em seu tempo.

3. Igreja Pentecostal “Deus é Amor”

As diferenças entre as denominações religiosas correspondentes à segunda onda de


pentecostalismo brasileiro em relação à sua estrutura litúrgica e doutrinária são inexpressivas.
Porém, no tocante ao modus operandi de cada uma, as estratégias de cooptação, conversão
e projeção no mercado religioso são bastante heterogêneas. A última grande denominação
dessa fase, nem tanto pelas suas características, mas, sobretudo, pela cronologia em questão
foi a Igreja Pentecostal Deus é Amor. Fundada pelo pregador brasileiro David Miranda, tem
sua clientela mais significativa na região sul e sudeste. Com perfil sectarista, encontra maior
receptividade nas classes sociais menos instruídas, principalmente moradores das periferias
dos grandes centros urbanos.
Uma característica que perpassa todas as denominações desse período são as
semelhanças históricas dos seus fundadores. Como os demais, David Miranda é oriundo de
pais agricultores e família simples do norte paranaense. Também com baixa escolaridade, mas
uma personalidade cativante e empreendedora. Em 1962, no fervor das circunstâncias, David
Miranda funda a sua igreja. Como todo missionário, Miranda diz ter recebido um chamado
de Deus. Designado pelo Espírito Santo, sua missão a partir daquele instante era o de mediar
e servir aos interesses da obra divina. Sem ao certo saber como atender ao chamamento de
Deus, Miranda em sua autobiografia relata um segundo contado com o Espírito Santo, no qual

AS PREMISSAS DO DEUTEROPENTECOSTALISMO: TRADIÇÃO E RENOVAÇÃO NO CAMPO RELIGIOSO


BRASILEIRO • Paulo Rogério Rodrigues Passos 195
foi esclarecida a materialização do desígnio sagrado: servir às premissas de Deus e fundar uma
igreja com o nome Deus é Amor.
O Ministério fundado por David Miranda incorporou legalismo peculiar ao momento
histórico de sua fundação. A Igreja Brasil para Cristo não visava à conversão propriamente
dita e, sim, à atração do maior número de pessoas aos seus templos e pregações públicos,
estimulados pelo marketing religioso, campanhas de curas e libertação. Diferentemente, para
David Miranda, o fiel deve seguir de maneira disciplinada os preceitos da denominação à qual
pertence. Portanto, obediência, respeito e subordinação aos princípios da Igreja de Deus é
Amor são condição sine qua non à santificação e permanência do fiel na igreja. O regulamento
interno da IPDA impressiona pela sua radicalidade e rigidez em relação à conduta e ao
comportamento dos seus membros. O cardápio de restrições e proibições visa manter o fiel
adscrito ao crivo da igreja e imune às tentações e desvios das influências “mundanas”.
Enquanto outras denominações buscaram nesse mesmo contexto acabar com o
sectarismo para cativar novos adeptos, a IPDA utilizou estratégia inversa. Numa realidade
de quase anomia social, regras, padrões, valores e princípios, mesmo que emanados de uma
instituição religiosa, podem representar um parâmetro social e existencial na vida indigente
das periferias urbanas. Nesse sentido, David Miranda como seu discernimento inflamado e
inflexível baliza o comportamento do seu rebanho. Ao fiel da Deus é Amor não são permitidos:
ingerir bebidas alcoólicas, usar preservativos, possuir assistir à televisão, videocassete e DVD,
tomar anticoncepcional, usar calça comprida, short ou saia curta para as mulheres, freqüentar
ou ter qualquer tipo de interação com outros grupos religiosos.
Embora pareça estranho alguém por livre e espontânea vontade se submeter a uma
condição altamente restritiva como a imposta pela IPDA, o fato é que esta denominação
religiosa possui mais de oito mil igrejas em quase 140 países. O legalismo exacerbado da Deus
é Amor constitui o principal e mais importante diferencial dessa denominação em relação
às demais. Essa característica, apesar de restritiva e limitante para as camadas sociais mais
abastadas, é bastante pragmática e funcional para os pobres e excluídos. Na medida em que
há completa submissão às normas da igreja e estas são extremamente favoráveis ao equilíbrio
social, econômico e ao comportamental do sujeito, acaba por fazer da severidade da imposição
de limites o principal ingrediente de manutenção e renovação de fiéis na Deus é Amor. Segundo
Berger:

Quaisquer que sejam os méritos ‘últimos’ das explicações religiosas sobre


o universo em geral, sua tendência empírica tem sido a de falsificar a consciência
do homem acerca da parte do universo modelado por sua própria atividade, o
saber, o mundo sociocultural. Essa falsificação também pode ser descrita como
mistificação. O mundo sociocultural, que é um edifício de significados humanos,
é coberto por mistérios tidos por não-humanos em suas origens. Tudo o que o
homem produz pode ser compreendido, pelo menos potencialmente, em termos
humanos. O véu da mistificação colocado pela religião impede essa compreensão.

AS PREMISSAS DO DEUTEROPENTECOSTALISMO: TRADIÇÃO E RENOVAÇÃO NO CAMPO RELIGIOSO


BRASILEIRO • Paulo Rogério Rodrigues Passos 196
As expressões objetivadas do humano tornam-se símbolos obscuros do divino.
E essa alienação tem poder sobre os homens precisamente porque ela os protege
dos terrores da anomia (1985, p. 102)

Seguindo o exemplo das demais denominações religiosas, Miranda serviu-se


amplamente dos recursos mediáticos no fortalecimento da sua igreja. Porém, não fez uso da
televisão nesse processo. Pelo fato de ser um veículo caro e inacessível às finanças da igreja
em sua fase inicial, bem como a grande maioria dos seus fiéis, optou por demonizar esta
mídia. Todavia, ao mesmo tempo em que ignorou a televisão, construiu uma poderosa rede
radiofônica transmitida para o Brasil e várias localidades do mundo, vinte e quatro horas por
dia, com as programações da sua igreja.
Em um momento no qual a tecnologia se vulgariza a passos largos, tornando-se acessível
até mesmo aos mais pobres, parece inviabilizar em médio prazo o sectarismo da IPDA. Com
uma concorrência cada vez mais acirrada no mercado religioso, outras denominações investem
pesado em programas televisivos, com produções sofisticadas e extremamente apelativas. Outra
faceta explorada sobejamente pelas igrejas pentecostais é a utilização de seu proselitismo na
construção de uma base de poder político, expediente esse também negligenciado pela Deus é
Amor. Entretanto, seguindo a lógica do mercado, inferimos que, se não houver mudanças nas
estratégias, como, também, nos serviços religiosos oferecidos pela igreja, significa que existe
uma clientela que demanda esses bens simbólicos.
A Igreja Pentecostal Deus é Amor pavimentou o caminho para o surgimento das
igrejas neopentecostais. Foi a primeira a empregar obreiros uniformizados em seus cultos, a
transformar os rituais de exorcismos em grandes espetáculos, a entrevistar demônios, criar
correntes, sessões e campanhas específicas para diversas mazelas e necessidades e a combater as
entidades da umbanda. Entretanto, as diferenças são tão importantes quanto as semelhanças em
relação às igrejas neopentecostais. A supervisão de um modelo e o conseqüente florescimento
de outro, mais apropriado aos novos tempos, era tão evidente que nem mesmo as igrejas
tradicionais resistiram.

Considerações finais

Durante a segunda onda do pentecostalismo, várias denominações históricas sucumbiram


à influência avivalista. O resultado desse processo foi o enfraquecimento institucional das
igrejas protestantes tradicionais instaladas no Brasil. O movimento de renovação influenciou
não somente as denominações protestantes, mas também nesse mesmo período a Igreja
Católica foi fortemente envolvida por carismatismo religioso. Contudo, no âmbito católico,
não houve ruptura. Os carismáticos mantiveram-se vinculados e subordinados à hierarquia
eclesiástica da igreja. Já entre os protestantes e pentecostais mais conservadores, dissidências,

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BRASILEIRO • Paulo Rogério Rodrigues Passos 197
cisões e defecções internas promoveram proliferação de novas e pequenas denominações com
características pentecostais.
As mudanças eram tantas e com uma celeridade tamanha que o sustentáculo simbólico
e o valorativo das igrejas históricas pareciam obsoletos ante o novo enfoque da realidade.
Igrejas Batistas renovadas, independentes e brasileiras, Presbiterianas independentes, Luterana
nacional e Metodista wesleyana proliferaram-se por todas as regiões do País, anunciando novo
momento no panorama religioso brasileiro. Com terreno fértil e as condições socioeconômicas
favoráveis, a chegada do neopentecostalismo abarcou um nicho de mercado explorado de
forma amadora e superficial pelos deuteropentecostais. Com visão empresarial objetiva,
logística espiritual sofisticada e grande oferta de bens e produtos simbólicos personalizados,
as igrejas neopentecostais tornaram-se grandes conglomerados empresariais alicerçados no
mercado religioso.

Bibliografia

ANTONIAZZI, Alberto et al. Nem anjos nem demônios: interpretações sociológicas do


pentecostalismo. Petrópolis: Vozes, 1994.

BERGER, Peter L. O Dossel Sagrado: Elementos para uma Teoria Sociológica da Religião.
São Paulo: Paulus, 1985.

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2005.

CAMPOS JR., Luís de Castro. Pentecostalismo. São Paulo: Ática, 1995.

CAMPOS, Leonildo. Teatro, templo e mercado: organização e marketing de um


empreendedorismo neopentecostal. São Paulo: Editora da Unesp, 1987.

GALINDO. Florêncio. O fenômeno das seitas fundamentalistas. Petrópolis: Vozes, 1995.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São


Paulo: Loyola, 1999.

MONTES, Maria Lúcia. Et allii. História da Vida Privada no Brasil. Vol 04. São Paulo: Cia
das Letras, 1998.

Recebido em 30/09/ 2012


Aprovado para publicação em 15/12/2012

AS PREMISSAS DO DEUTEROPENTECOSTALISMO: TRADIÇÃO E RENOVAÇÃO NO CAMPO RELIGIOSO


BRASILEIRO • Paulo Rogério Rodrigues Passos 198
Conteúdos messiânicos-milenaristas nos
movimentos pentecostais e neopentecostais

Dr. Saulo Baptista Cerqueira1

RESUMO: Este trabalho enfoca alguns aspectos experienciais e sociais do


pentecostalismo revelando-os como expressões dos tipos religiosos messianismo
e milenarismo no contexto religioso brasileiro.

Palavras-Chave: Pentecostalismo, Contexto Religioso Brasileiro,


Movimentos Messiânicos.

ABSTRATC: This work focuses on social and experiential aspects of


Pentecostalism revealing them as expressions of religious messianism and
millenarianism in religious context in Brazil.

Keywords: Pentecostalism, Brazilian Religious, Messianic Movements.

Introdução

Enfrentamos dificuldades para desenvolver a questão dos conteúdos messiânico-


milenaristas nos movimentos pentecostais e neopentecostais. Quando se começa pela
conceituação sociológica desses fenômenos e se compara com o diversificado mundo dos
movimentos pentecostais, tem-se relutância em tratá-los como tais. Ao repassar os episódios
tensos da história brasileira, provocados por líderes carismáticos e seus seguidores, nossa
memória não traz nenhum movimento de cunho pentecostal que mereça essa classificação
messiânica-milenarista. Lembramos facilmente dos eventos famosos de Canudos e Antônio
Conselheiro, Contestado e seus monges, os Muckers e Jacobina, o Padre Cícero e os devotos
do Juazeiro, e outros menos divulgados, como Pedra Bonita e Borboletas Azuis. Não se pode
esquecer também a Cidade Eclética de Yokaanam e o Vale do Amanhecer de Tia Neiva. Há
outros ainda mas os exemplos citados são suficientes.
Então, como pensar os pentecostais no enfoque proposto? Vamos a alguns conceitos
para verificar se nos ajudam.

O estudo dos fenômenos messiânicos – [escrevia Desroche] – é


precisamente o estudo do fato religioso enquanto sentimento vivido, enquanto
ato efervescente, enquanto religião de primeira mão numa sociedade que se abre –
ainda que por arrombamento – enquanto sobressalto de vida, ou rejeição da morte,
de um grupo social que certa sociedade dominante, ausente esse sobressalto ou

1
Doutor em Ciências da Religião e Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião – UEPA.

199
ausente essa rejeição, armazenaria, no melhor dos casos, nas conservas de sua
memória ou nas reservas de seu território” (Grifos no original)2.

Ora, nosso objeto – o pentecostalismo – é composto de sentimentos em elevadas doses.


Religião da emoção, efervescente, que vem criando seus espaços na sociedade, rompendo
barreiras elitistas de um pensar que tenta praticar a modernidade europeia e o liberalismo
norte-americano por mimetismo. As comunidades pentecostais e o que elas produzem nos
templos, nas praças e na mídia, estão aí como fermento para levedar a massa, expandi-la e
impedir que a sociedade se restrinja às “religiões de conserva,” 3 mirradas como pães asmos da
pureza doutrinária, mas também do farisaísmo dos segmentos conservadores da sociedade.
Os pentecostalismos são expressões do cristianismo e este é um fenômeno messiânico,
com conteúdo milenarista, alimentado principalmente pelos seus primeiros seguidores,
renovado, todavia, ao longo da história, em diferentes contextos espaço-temporais. Para
verificar isto, basta folhear o dicionário do próprio Henri Desroche, mencionado.
Os pentecostais consideram-se restauradores da fé bíblica, sendo o batismo com o
Espírito Santo o cumprimento da profecia de Joel, lembrada pelo apóstolo Pedro, durante
a festa de Pentecostes, nos primórdios da era cristã e, nestes “últimos dias”, renovado com a
experiência do povo pentecostal:

E acontecerá nos últimos dias, diz o Senhor, que derramarei do meu


Espírito sobre toda a carne; vossos filhos e vossas filhas profetizarão, vossos
jovens terão visões, e sonharão vossos velhos; até sobre os meus servos e sobre
as minhas servas derramarei do meu Espírito naqueles dias, e profetizarão.
Mostrarei prodígios em cima no céu e sinais em baixo na terra; sangue, fogo e
vapor de fumo. O sol se converterá em trevas, e a lua em sangue, antes que venha
o grande e glorioso dia do Senhor. E acontecerá que todo aquele que invocar o
nome do Senhor será salvo4.

Os movimentos messiânicos não nascem por decreto ou por voluntariedade de um


indivíduo iluminado. Esses movimentos só acontecem quando pessoas estão incomodadas
e começam a canalizar seu mal-estar na busca de alternativas de solução. Seja a miséria, seja
a anomia, a perda de sentido na vida, as doenças, o desemprego ou outra circunstância que
incomoda, aí está um terreno fértil para a criação e o crescimento de uma proposta religiosa.
Afinal, religião traz esperança e sentido para a vida, mesmo que também contribua para
alimentar uma consciência alienada. Não obstante, já houve casos em que a religião alimentou
sonhos e utopias que desembocaram em revolução5.

2
DESROCHE, Henri. Dicionário de messianismos e milenarismos. São Bernardo do Campo: Umesp, p.16.
3
DESROCHE, op. cit., p.16, citando Bastide.
4
Atos dos Apóstolos, cap. 2:14-21. In: Bíblia Sagrada. Edição Revista e Atualizada. São Paulo: Sociedade Bíblica do
Brasil, 1993. Esta versão é a mais utilizada pelos membros da Assembleia de Deus.
5
O próprio cristianismo no contexto judaico-romano; Thomas Münzer e os camponeses na Alemanha de Lutero, a
revolução puritana na Inglaterra, as revoluções religiosas no mundo islâmico etc.

Conteúdos messiânicos-milenaristas nos movimentos pentecostais e neopentecostais • Dr. Saulo Baptista Cerqueira
200
Segundo Josildeth Consorte6, “a mentalidade messiânica se apresenta sempre com
as mesmas características básicas, nas quais a crença na interferência do sobrenatural nas
transformações a serem operadas no mundo ocupa uma posição central”, adicionada à crença
“de que esta interferência se manifestará através do envio de um salvador”, o que possibilitará
o desencadear de um movimento com características messiânicas. O grupo que assim crê
também alimentará outras convicções, como:

a crença numa igualdade fundamental entre todos os seres humanos e


num destino também comum – o encontro com o criador depois da morte; (...)
uma crença em que o fim dos tempos será precedido de sinais que só o enviado
divino será capaz de perceber e decodificar; uma crença em que só partilharão
do reino da eterna felicidade os eleitos do Senhor, ou seja, aqueles que ouvindo o
messias alcançarão a salvação. 7

Esses ingredientes nós os encontramos no nosso objeto, tanto no pentecostalismo


clássico, tipo Assembleia de Deus, como no neopentecostalismo, tipo Igreja Universal do Reino
de Deus, para delimitá-lo aqui em apenas dois exemplos. Entretanto, em nenhum desses casos
houve uma sublevação da ordem, formação de guetos e arregimentação das forças do Estado
contra eles. É bem verdade que também não foram movimentos acolhidos com cordialidade
pela sociedade brasileira. Muito pelo contrário, sua assimilação ainda guarda reservas, que se
revelam aqui e ali, dependendo de circunstâncias, como nas festas religiosas do catolicismo
popular, quando se acentuam as diferenças entre “os crentes” e a maioria católica.
De todo modo, entendemos que, apesar das dificuldades apontadas, podemos enfocar
os movimentos pentecostais como expressões messiânicas-milenaristas no contexto religioso
brasileiro. E vamos fazê-lo.

Dois tipos de messianismo-milenarismo pentecostal

O pentecostalismo clássico, tipo Assembleia de Deus, nos oferece um modelo de


messianismo-milenarismo transcendente e futuro, em que o messias Jesus Cristo implantará
um governo milenar, regido por ele, próximo do final dos tempos. Sua fonte inspiradora
principal é o dispensacionalismo, disseminado pelo advogado Cyrus Ingersol Scofield. Há
uma riqueza de ingredientes, bem como a sua interpretação sociológica, que pretendemos
examinar a seguir.
Segundo Robson Guimarães, que vem analisando o movimento pentecostal em Belo
Horizonte (MG), nas três últimas décadas do século XX, a profecia de Joel, citada pelo apóstolo

6
CONSORTE, Josildeth Gomes. Mentalidade messiânica. In: VV. AA. A vida em meio à morte em um país do terceiro
mundo. São Paulo: Paulinas; São Bernardo do Campo: IMS, 1983, p. 44.
7
Idem, ibidem, p.44.

Conteúdos messiânicos-milenaristas nos movimentos pentecostais e neopentecostais • Dr. Saulo Baptista Cerqueira
201
Pedro8, é fundamental para a teologia da Assembleia de Deus (e de outros grupos pentecostais,
acrescentaríamos aqui).

[Essa profecia] relaciona diversos acontecimentos que apontariam para a


chegada do ‘fim dos tempos’: o derramamento do Espírito, a manifestação de dons
espirituais miraculosos – profecias, visões, sonhos – uma natureza transtornada e
a extensão da salvação a todos os povos. Em primeiro lugar, a promessa do batismo
do Espírito se insere dentro da emergência dos ‘últimos dias’; em segundo lugar,
a pregação do Evangelho em todo o mundo também será um acontecimento
desencadeador da ‘consumação do século’; e, em terceiro lugar, as manifestações
de cura divina e de milagres dar-se-ão neste tempo escatológico.

Segundo a hermenêutica pentecostal, no decorrer da história da igreja cristã, a partir


da corrupção do cristianismo pelo catolicismo romano, esse tempo que desembocaria no fim
de todas as coisas ficou em suspenso. Somente com a Reforma Protestante do século XVI é
que o cristianismo recuperaria parte do seu vigor original, atingindo, porém, novamente a
sua plenitude somente com o advento do movimento pentecostal. Por isso, ser pentecostal
desencadeia novamente o restabelecimento do processo dos últimos dias ou do ‘fim dos
tempos’, parado desde a ‘constantinização’ da Igreja”9
De acordo com essa interpretação, que consideramos pertinente, o pentecostalismo
clássico é de fato uma crença voltada para os acontecimentos escatológicos. E, neste caso, cabe
a observação de Guimarães sobre a centralidade da expectativa da segunda vinda de Cristo na
experiência religiosa dos assembleianos.

Na cosmovisão dos pentecostais da Assembleia de Deus, a crença na volta


iminente de Cristo desempenha um papel central. Ou seja, para a compreensão
do pentecostalismo, neste período [1970-2000], a crença na segunda vinda de
Cristo não pode ser considerada marginal, porque estes são tempos apocalípticos.
(...) Esta crença reforça e fortalece tanto a dimensão da conversão quanto da
experiência do batismo com o Espírito Santo e do exercício dos dons espirituais10.

O outro modelo é o messianismo-milenarismo imanente e presente, apresentado de


duas maneiras diferentes: a primeira, através da ética da prosperidade, pregada, principalmente,
pela Igreja Internacional da Graça de Deus, do missionário Romildo R. Soares, e a segunda,
através de um projeto concreto, a Fazenda Canaã, obra liderada pelo bispo Marcelo Crivella,
da Igreja Universal do Reino de Deus.

8
Confira texto de Atos 2: 14-21, transcrito na p.4.
9
GUIMARÃES, Robson Franco. Os últimos dias: crenças, sentimentos e atitudes dos pentecostais da igreja Assembleia
de Deus diante da volta de Cristo. Monografia apresentada em cumprimento parcial às exigências da disciplina História
Social da Religião do programa de pós-graduação em Ciências da Religião – Mestrado. São Bernardo do Campo:
Umesp, julho/2003, p.4-5. (Inédita).
10
GUIMARÃES, op.cit., p.5.

Conteúdos messiânicos-milenaristas nos movimentos pentecostais e neopentecostais • Dr. Saulo Baptista Cerqueira
202
Correntes milenaristas no cristianismo11

São três as correntes principais de interpretação sobre o retorno de Cristo (parousia) e a


instalação do seu reino milenar na consumação da História. Vamos apresentar, sumariamente,
essas linhas de interpretação.
A corrente pós-milenista afirma que o retorno de Jesus Cristo acontecerá depois de
mil anos de prosperidade, justiça e paz, que serão experimentados pela humanidade. Em
1700, um teólogo evolucionista, Daniel Whitby, desenvolveu uma teoria sobre o progresso da
humanidade, que culminaria com a volta de Cristo. Essa crença perdurou até o século XIX.
Para Erivaldo de Jesus, “Whitby (1683-1726) deu a essa opinião sobre o milênio, a sua mais
impressionante formulação, conquanto não tivesse sido o primeiro a defendê-la. A destruição
do Anti-Cristo antes do milênio, era interpretada por ele como uma indicação do colapso da
Igreja Católica Romana.”12
Na opinião do mesmo Erivaldo, o avivamento metodista do século XVIII contribuiu
para uma visão otimista da história. O pregador norte-americano Jonathan Edwards também
era dessa linha, mas o destaque maior seria para Mathew Henry. Outros pós-milenistas
famosos foram Charles Hodge, B.B. Warfield, W.G.T.Shedd e A.H.Strong. Os pós-milenistas
não tratavam o milênio como um período de mil anos, literalmente.
No início do século XX, alguns teólogos passaram a associar esse período de prosperidade
com a vitória do socialismo, a abolição da fome, as conquistas dos trabalhadores e a eliminação
da guerra. Com a eclosão das duas guerras mundiais, o pós-milenismo entrou em decadência.
Não obstante, essa linha de interpretação está viva e pode ser associada a propostas de uma
nova sociedade inspiradas na Teologia da Libertação, por exemplo.
O amilenismo é a corrente que nega um milênio literal. A história humana “flutua entre
o bem e o mal”. Agostinho (354-430 d.C.) acreditava que a prisão de Satanás teria ocorrido
durante a permanência de Jesus no mundo, quando também se iniciara o milênio. A igreja
seria a nova comunidade messiânica, que teria assumido as promessas feitas ao povo de Deus,
no Antigo Testamento. Essa linha de interpretação permanece presente no mundo católico e
no protestantismo reformado. Todavia, seus adversários apontam muitos “sinais dos tempos”
como evidências de que ela é inconsistente: a síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS),
a criação da Comunidade Econômica Europeia (hoje União Europeia), a instalação do Estado
de Israel, os computadores que já permitem a impressão da “marca da besta” nos corpos das
pessoas, a telemática, o aumento dos terremotos, uma “nova ordem mundial”, os mísseis, a
tecnologia nuclear etc.

11
Esta seção foi elaborada com base nas obras: HUTCHINGS, Noah W. Arrebatamento e ressurreição. Rio de Janeiro:
Betel, 1996, e JESUS, Erivaldo de. Escatologia: um tratado sobre o fim do mundo. Edição do autor, sem indicação de
local, 2001.
12
Jesus, op. cit., p. 10.

Conteúdos messiânicos-milenaristas nos movimentos pentecostais e neopentecostais • Dr. Saulo Baptista Cerqueira
203
Na explicação do pastor Erivaldo de Jesus:

Para os Amilenistas, haverá apenas uma ressurreição geral dos crentes e


dos incrédulos, a qual ocorrerá durante a segunda vinda de Cristo. O julgamento
final será para todos os povos. A tribulação é algo que experimentamos na
presente era. A soltura de Satanás após o Milênio é equiparada ao aparecimento
do anticristo antes do retorno de Cristo.13

O pré-milenismo anuncia a volta de Cristo antes do milênio. Ou seja, Jesus voltará


e implantará o seu reino de mil anos, em conjunto com outros eventos que marcarão o fim
da História. Os primeiros cristãos esperavam a volta de Jesus Cristo em sua própria geração.
Justino Mártir, Barnabás, Melito, Tatiano, Irineu e Tertuliano eram pré-milenistas.
Gibbons, porém, registra em seu livro Ascensão e Queda do Império Romano que o
“‘sentimento reinante” no princípio da igreja era a volta de Cristo, trazendo o milênio,
aproximadamente no ano 2000 d.C., com base no relato dos sete dias da criação, conforme o
Gênesis, interpretados como eras da história da humanidade 14. Com efeito, alguns escritores
traçam esse paralelo entre a semana da criação e a chamada semana de Deus, de sete mil
anos, do seguinte modo: de Adão a Abraão, são dois mil anos, representados por dois dias;
de Moisés a Cristo, outros dois mil anos; Cristo teria vindo no início do quinto dia; o século
XX estaria no final do sexto dia. Logo, no tempo próximo ao ano 2000 viria o milênio; daí a
expressão: “mil passará, dois mil não chegará”.

O messianismo-milenarismo transcendente e futuro

Os pentecostais em geral e os evangélicos fundamentalistas adotam a interpretação


dispensacionalista pré-milenista da história. Até mesmo as igrejas neopentecostais, cuja ênfase
na prosperidade as aproxima do pós-milenismo, adotam em suas declarações doutrinárias
essa interpretação dispensacionalista.
O dispensacionalismo é uma metanarrativa, uma filosofia da história que condiciona e
engessa sua interpretação. Mas é, sobretudo, uma perspectiva que permite aos crentes ligarem
os fragmentos da realidade caótica de toda a trajetória da humanidade, segundo uma lógica
religiosa que lhes confere segurança quanto ao futuro e resignação na era presente. A Bíblia
anotada de C.I.Scofield é o texto padrão do dispensacionalismo.
Os antecedentes dessa forma de interpretar a ação divina na história é antiga. Montano
da Frígia, no século III, afirmava que recebia revelações diretas de Deus, inclusive sobre a volta
de Cristo para estabelecer o seu reino em Jerusalém. Ele foi considerado herege e expulso da
igreja em 230 d.C. No século XVIII, Edward Irwing (1792-1834) reprisou, de certa forma, os

13
JESUS, op.cit., p. 9.
14
Apud Hutchins, op. cit., p. 92.

Conteúdos messiânicos-milenaristas nos movimentos pentecostais e neopentecostais • Dr. Saulo Baptista Cerqueira
204
ensinos de Montano e também foi excluído. Não obstante, um discípulo seu, John Newton
Darby, tornou-se líder dos Irmãos de Plymouth. Segundo Darby, Jesus Cristo virá para
arrebatar discretamente sua igreja nos ares, seguindo-se sete anos de uma grande tribulação
para os que permanecerem na Terra, quando aparecerá o Anticristo. Essa tribulação terminará
quando o Anticristo reunir as nações para a batalha do Armagedom. Nessa ocasião, Cristo
triunfará sobre as forças do mal e “todo o Israel será salvo” (Romanos 11: 26). Em seguida, o
Messias voltará com os seus eleitos e inaugurará um reino de mil anos aqui na Terra. Durante
o milênio, Satanás estará preso, mas será libertado no fim do período.
O sistema de dispensações começou com Darby. Antes dele, existia apenas o pré-
milenismo histórico, mas com ele nasceu o pré-milenismo dispensacionalista. Segundo
Scofield, seguidor de Darby: Dispensação “é o período de tempo durante o qual os homens
são provados a respeito da obediência a certa revelação da vontade de Deus”15. Assim, temos
a história da humanidade dividida em sete dispensações ou oportunidades concedidas por
Deus ao ser humano, para este cumprir os propósitos do Criador:

• Primeira dispensação: Deus criou o primeiro casal na inocência


e deu-lhe liberdade para escolher entre o bem e o mal. Havia uma
árvore do conhecimento do bem e do mal no jardim do Éden, a qual
o homem não deveria provar, contudo ele a provou. Acabou aí a
primeira dispensação ou era da inocência.
• Segunda dispensação: Deus então permitiu que o ser humano usasse
a própria consciência para ser feliz, mas ele se corrompeu. Então,
Deus mandou o dilúvio, cessando a segunda oportunidade ou
era da consciência. E assim sucessivamente, Deus foi dando novas
oportunidades para o ser humano se reabilitar.
• Terceira oportunidade: era pós-diluviana ou do governo humano;
prolongou-se desde o dilúvio até a chamada de Abraão.
• Quarta dispensação: era patriarcal ou da família; durou 430 anos,
entre a escolha de Abraão e a entrega da lei a Moisés, no monte Sinai.
• Quinta dispensação: era da lei, que se prolongou até a vinda de Cristo
e a constituição da igreja.
• Sexta oportunidade: era da igreja ou da graça. É a atual, que cessará
com a segunda vinda de Cristo e os acontecimentos do fim da história.
• Sétima dispensação: abrangerá os acontecimentos do fim da história,
como o arrebatamento da igreja, a grande tribulação, a volta de Cristo
e o juízo final.

Como havíamos mencionado, um tipo de pré-milenismo estava presente já no 2º século,


na crença dos “pais da igreja”. Todavia, com a frustração devido à demora da segunda vinda
de Cristo, associada à crescente institucionalização do cristianismo, este foi domesticado,
segundo Heinrich Schäfer, através da ideologia do dispensacionalismo
15
Apud Jesus, op. cit., p. 15.

Conteúdos messiânicos-milenaristas nos movimentos pentecostais e neopentecostais • Dr. Saulo Baptista Cerqueira
205
De esta manera, el premilenarismo es privado de dos elementos
esenciales: la perspectiva hacia el futuro y la dinámica de la desesperación. El
dispensacionalismo más bien petrifica al premilenarismo, convirtiéndolo en una
verdad sobre la historia y sobre el mundo, y situándolo dentro de un modelo
histórico-filosófico de épocas. De este modo, el dispensacionalismo convierte la
escatología premilenarista de una expresión ferviente de desesperación en una
doctrina fácilmente manejable, y de esta manera ideal para una iglesia pentecostal
grande y autoritaria.”16

Seguindo o raciocínio de Schäfer, estamos diante de um milenarismo adaptado para


não se contrapor ao mundo, porque tudo já está traçado e a presente ordem já está fadada
à destruição. A única conduta lógica que resta para essa perspectiva é a rejeição ao mundo,
conforme a análise weberiana, que ainda vamos apresentar. Por enquanto, prossigamos
tratando dos desdobramentos do pré-milenismo.

Arrebatamento parcial
Para alguns pentecostais, haverá um arrebatamento da parte mais fiel da igreja, antes da
Grande Tribulação. Será uma forma de poupá-los do extremo sofrimento que vai pairar sobre
os habitantes da Terra. Hutchins rejeita essa interpretação, com base em I Coríntios 15: 51-2,
onde se lê que “todos seremos transformados”.

Arrebatamento pós-tribulação
Outros afirmam que a igreja também passará pela tribulação. Neste caso, o sermão
profético de Jesus em Mateus 24 estaria descrevendo situações onde a igreja será participante.
O fim da dispensação da igreja acontecerá somente quando Jesus chamar todos os seus fiéis
dentre os gentios. Então ele retornará literalmente à Terra e reconstruirá o tabernáculo de
Davi. Essa era da igreja é chamada “plenitude dos gentios” (Romanos 11: 25).

Arrebatamento inter-tribulação
A igreja passará pela tribulação nos três anos e meio iniciais e será arrebatada, quando
o Anticristo se comprometer com a “abominação da desolação”. Nessa primeira fase haverá
fome, problemas sociais e revoluções, mas não chegará a acontecer extermínios em massa.
Não obstante, o quarto selo do Apocalipse, cap. 6, registra que 25% da população terrestre será
exterminada pela fome.
Reportamo-nos, agora, a Daniel, cap. 9, onde há referência a sete semanas de anos
(quatrocentos e noventa anos), para se cumprir a promessa de Deus. Quando Jesus foi
crucificado haviam-se passado quatrocentos e oitenta e três anos, restando sete anos que
deveriam ser cumpridos durante a Grande Tribulação. Há uma interrupção na contagem dessas

16
SCHÄFER, Heinrich. Protestantismo y crisis social em América Central. San José (Costa Rica): DEI, 1992, p.56.

Conteúdos messiânicos-milenaristas nos movimentos pentecostais e neopentecostais • Dr. Saulo Baptista Cerqueira
206
semanas, porque Israel passa a ser substituído pela igreja, até que se complete a “plenitude
dos gentios”, conforme o esquema das dispensações. Esses sete anos deverão ser contados a
partir da assinatura de um tratado de paz no Oriente Médio, entre o Anticristo e Israel, no
qual uma parte das terras prometidas aos patriarcas dos hebreus será alienada. No meio dessa
semana de anos (3 ½ anos) o Anticristo quebrará o acordo firmado e se comprometerá com a
“abominação da desolação” (Daniel, Mt. 24, II Ts. 2:4 e Ap. 13).

Arrebatamento pré-tribulação
O arrebatamento antes da tribulação será um acontecimento secreto. Subitamente, será
notada a ausência de milhares de pessoas. Erivaldo de Jesus descreve: “No arrebatamento,
Jesus virá até as nuvens. Seus pés não tocarão o solo desta vez, como acontecerá mais tarde,
quando Ele se revelar publicamente, descendo sobre o Monte das Oliveiras, em Jerusalém na
sua vinda em Glória”17. Para o mesmo autor “o arrebatamento é o casamento de Cristo com a
sua Igreja”18.
No interregno, arrebatamento da Igreja e vinda de Cristo à Terra, cento e quarenta e
quatro mil judeus convertidos serão guardados em local seguro. Provavelmente, Petra ou Sela,
capital de Edom, uma fortaleza a noventa e seis quilômetros ao sul do mar Morto. (Isaías 16:
1). Depois da “abominação da desolação” eles também serão arrebatados19.
A era da igreja cessará com o fim da Tribulação, quando Cristo descer sobre o monte
das Oliveiras para estabelecer o seu reino de mil anos, literalmente. Nessa ocasião, ocorrerá
a ressurreição e o juízo dos não-salvos. Em seguida, virá a eternidade. No Apocalipse 20, o
capítulo do milênio, pode-se ler sobre:

• O estabelecimento de tronos para os doze apóstolos, que reinarão


sobre as doze tribos de Israel.
• A autoridade outorgada a Jesus Cristo para julgar todas as nações.
• Os decapitados durante a Tribulação, que não aceitaram a marca da
besta, os quais reinarão com Jesus Cristo durante os mil anos.
• A ressurreição dos santos do Antigo Testamento.

No milênio, as pessoas terão longevidade, quem completar cem anos ainda será
jovem. Doenças e defeitos físicos serão curados. Os problemas ambientais serão superados.
Carneiros se deitarão com lobos. As tribos de Israel serão novamente divididas e ocuparão
a terra prometida. Será construído um templo milenial, tendo Jesus como o sumo-sacerdote
(Zacarias 6). As águas do mar Morto serão purificadas e proliferará uma abundância de peixes.

17
Op.cit., p. 32.
18
Idem, p. 34.
19
HUTCHINS, op.cit., p. 113.

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207
Satanás ainda será libertado por pouco tempo, a fim de testar a fidelidade dos que
nasceram no período da Tribulação e escolheram servir a Deus. Também tentará seduzir as
nações. Gogue e Magogue são citadas como nações rebeldes. Os pentecostais costumavam
identificá-las como sendo as que constituíam a União Soviética. Hoje fica difícil manter essa
interpretação.

Cenas finais
Os outros mortos que se perderam ressuscitarão somente depois do milênio (Apoc.
20:5). Os que não tiverem seus nomes escritos no livro da vida sofrerão a agonia eterna do
“lago de fogo”. Entre estes estarão os que receberam a marca da besta.
Os capítulos finais do Apocalipse trazem a visão de “novos céus e nova terra”. A nova
Jerusalém será um cubo de doze mil estádios de aresta. Para converter em metros, basta
multiplicar por 185 e elevar à 3ª potência. O número obtido é superior a dez bilhões de metros
cúbicos. Na nova terra não haverá tristeza. Será o Éden ou paraíso restaurado, com a árvore
da vida dando um fruto diferente cada mês. Esse paraíso jamais será perdido, como aconteceu
no começo da humanidade, porque nele não mais haverá Satanás, nem morte, nem “árvore do
conhecimento do bem e do mal”.

Assimilação da crença apocalíptica


Diante de quadro tão complexo de interpretação do milênio e aspectos correlatos que
norteiam o pentecostalismo tradicional, justifica-se uma curiosidade. Será que o crente comum
assimila essa interpretação? Não chegamos a levantar, diretamente, esta questão. Porém, durante
as pesquisas que realizamos para nossa dissertação de mestrado em Sociologia, encontramos
membros da Assembleia de Deus do Pará que tratavam do tema com certa familiaridade. Um
desses entrevistados expôs seus conhecimentos a respeito do assunto. Leiamos o que ele falou
naquela ocasião:

Pergunta – O que é Reino de Deus?


Entrevistado: É o milênio. É o reinado de Deus durante mil anos, que se
dará nos acontecimentos escatológicos: guerras e rumores de guerras; pais contra
filhos; os falsos profetas; a segunda vinda de Jesus; o arrebatamento da igreja; a
vinda do Anticristo.
Pergunta – Quem é o Anticristo?
Entrevistado: É um homem que pode já estar vivo atualmente. É chamado
“a besta”. Ele vai governar o mundo durante sete anos, sendo três e meio de paz.
Ele vai apaziguar todos os conflitos. (É feita relação com a União Europeia, onde
já está havendo uma união monetária, por exemplo. Isto mostra a unificação.)
Depois haverá três anos e meio de terror, onde a igreja que ficar na Terra vai ser
perseguida – é a “grande tribulação”.
O presidente do mundo vai unir todas as igrejas numa só. O principal
movimento que pensa isto é a religião da Nova Era.

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208
Nos três anos e meio será recebida uma marca, tipo um código de barra
invisível, na costa da mão ou na testa. A marca é seiscentos e sessenta e seis (666),
o número da besta. Quem não receber a marca vai ser perseguido, morto e terá
que negar o nome de Cristo. Aos que permanecerem fiéis, ao final dos três anos e
meio, Cristo vai voltar e arrebatá-los. Ele vem de novo, porque o povo de Israel vai
se converter dentro de grande tribulação. As nações vão encurralar Israel. Este vai
clamar e Cristo vai descer sobre o Monte das Oliveiras, que se vai abrir e o povo
vai passar pela fenda, único lugar por onde eles vão passar, visto que as nações
estarão cercando-os.
Cristo vai guerrear contra as nações. Ele vai descer com os anjos e a igreja
arrebatada. Jesus então começa a reinar na Terra e faz isto durante mil anos. Não
vai agradar a todos. Este é o Reino.
(JSD, 31 anos, sociólogo, Assembleia de Deus, entrevistado em 19.10.2001)

Entretanto, Robson Guimarães tem percebido que esse tipo de “mentalidade


apocalíptica”, como um “sentimento de esperança pelo porvir, (...) não se importa com as
minúcias e detalhamentos doutrinários e dogmáticos. A esperança é por um futuro radioso,
independentemente da complexidade da escatologia dos teólogos”20. O que, afinal, faz jus ao
caráter popular da religiosidade pentecostal.
Guimarães lembra outro aspecto da expectativa pentecostal com o porvir: “O futuro,
paradoxalmente, provoca nos pentecostais também o medo. Quais medos? Medos teológicos:
da morte, do Anticristo, de não ser arrebatado juntamente com os salvos e ter que passar pela
grande tribulação, da leitura do livro de Apocalipse.”21
Outro componente dessa interpretação milenarista é uma atitude em favor do atual
Estado de Israel, identificado por muitos pentecostais e por outros cristãos conservadores
como o continuador do reino de Israel citado na Bíblia, ignorando, portanto, as circunstâncias
históricas da atual situação de conflito que prevalece na Palestina, ou sacralizando-a, em favor
dos judeus, sem se importar com as condições discutíveis, do ponto de vista da justiça, de sua
formação. Segundo Guimarães:

Os pentecostais devotam aos judeus e ao Estado de Israel uma simpatia


singular. Devido a uma particular interpretação das Escrituras, principalmente
dos livros de Daniel e de Apocalipse, que, segundo os mesmos, apontaria para a
centralidade dos acontecimentos dos últimos dias tendo como protagonista os
judeus, a escatologia dos pentecostais depende dos eventos relacionados a estes.
O nascimento do moderno Estado de Israel, a partir de 1948, é interpretado como
uma ação divina a favor do seu povo. As vitórias israelenses contra os árabes, nas
guerras dos Seis Dias e do Yom Kipur, são devotadas à ação de seres angelicais.
Esta interpretação histórica dos acontecimentos que beira o fantástico e o pueril,
reforça, na ótica pentecostal, uma postura anti-árabe e anti-palestina, porque
estes são inimigos de Israel e por extensão, da Igreja e de Deus.22

20
GUIMARÃES, op.cit.,p.13.
21
Idem, ibidem, p.14.
22
GUIMARÃES, op.cit., p.16. O autor fundamenta essas afirmações nas seguintes fontes: ALMEIDA, Abraão de. Israel,
Gogue e o Anticristo. Rio de Janeiro: CPAD, p. 52-76; e Mensageiro da Paz, ano 72, nº 1417, junho de 2003, p.13.

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209
Finalmente, cabe registrar que, para o pentecostal, a volta de Cristo depende da
propagação do evangelho a todas as pessoas. Alguns interpretam que bastaria a mensagem
chegar a todos os povos, e não necessariamente a todos os indivíduos, pois neste caso estaria
cumprido o requisito presente na declaração atribuída a Jesus Cristo: “E este evangelho do
reino será pregado no mundo inteiro, em testemunho a todas as nações, e então virá o fim”.23.
Em qualquer hipótese, cabe ao fiel tornar-se um fervoroso evangelista, cumprindo o seu dever
e ao mesmo tempo contribuindo para apressar a volta do Senhor Jesus. Assim, o proselitismo
e a escatologia caminham juntos na expressão da fé pentecostal, onde o leigo é tão responsável
na propagação do evangelho quanto os pastores e evangelistas. Neste particular, aparece, mais
uma vez, no sentido prático, a ênfase do pentecostalismo no “sacerdócio universal de todos os
crentes”.

O messianismo-milenarismo imanente e presente


Até aqui consideramos uma face da questão: os messianismos-milenarismos
desenvolvidos nas expressões tradicionais do movimento pentecostal. Em tempos recentes era
comum associar pentecostalismo com pobreza. Muitos estudos acadêmicos insistiam nesse
enfoque24. Para tal tipo de pentecostalismo, a ética de rejeição ao mundo25 e a realização do
reino milenial fora da história se harmonizavam perfeitamente.
Ocorre que a partir dos anos 1970, acentuou-se um processo de mobilidade social
ascendente no campo pentecostal, com o surgimento de novas igrejas e a reformulação das
existentes, onde a tônica passava a ser um “basta” na miséria e no sofrimento, através de uma
teologia que proclamava a condição superior do crente na Terra. Paulo Siepierski assim se
manifestou sobre este novo fenômeno:

Como em uma situação de rápidas transformações sociais, quanto mais


ajustada uma resposta está em um determinado momento mais desajustada ela
estará no próximo, a mensagem pentecostal se tornou anacrônica. A esperança de
um reino futuro já não é atraente. O que seduz agora é um reino de Deus presente,
universal, cujo desfrute está acessível a todos. Ademais, o arrefecimento do fluxo
migratório, agora direcionado do sul para o noroeste, diminui substancialmente
o público recém-urbanizado, tradicional celeiro de pentecostais. Isso forçará o
pentecostalismo a buscar conversos nas outras religiões urbanas, principalmente
na umbanda. Nessa nova realidade surge o pós-pentecostalismo, que se diferencia
tanto do pentecostalismo clássico como do protestantismo tradicional26.

23
Evangelho de Mateus, cap. 24:14. In: Bíblia Sagrada.
24
MARIZ (1994), CAMPOS MACHADO (1996), ROLIM (1980), CHESNUT (1997), servem de exemplos neste sentido.
25
Sobre este assunto, sugerimos ler WEBER, Max. Rejeições religiosas do mundo e suas direções. In: _____. Weber. São
Paulo: Nova Cultural, 1997. (Coleção Os Economistas), p. 155-189.
26
SIEPIERSKI, Paulo Donizéti. Mutações no protestantismo brasileiro: o surgimento do pós-pentecostalismo. In:
DREHER, Martim N. (org). 500 anos de Brasil e igreja na América Meridional. Porto Alegre: EST e Cehila, 2002, p.
414-5.

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210
Afinal, Jesus Cristo havia derrotado todos os inimigos, conquistado todos os reinos e
transformado seus discípulos em herdeiros do Pai. O Senhor é o “dono da prata e do ouro”.
Ele não quer ver seus filhos sofrendo, se têm à disposição todos os bens. Basta ao fiel exercitar
sua fé e tomar posse dessa pletora de riquezas. Era a importação da “teologia da prosperidade”
com suas técnicas de confissão positiva que alguém denominou “neurolinguística do pobre”.
Igrejas como a Renascer em Cristo, a Universal do Reino de Deus, a Sara Nossa Terra e a
Internacional da Graça de Deus, entre outras, adotaram essa teologia. A Graça Editorial,
pertencente à última igreja mencionada, passou a editar os livretos de Kenneth Hagin, um dos
principais teóricos dessa nova ideologia.
Sem dúvida, Hagin e seu movimento “Word of Faith”, tendo como quartel general o
Seminário Rhema, tornaram-se o pivô da chamada “confissão positiva”. A rigor não se tratava
de um pensamento novo. Suas fontes vinham desde o Gnosticismo, passando pelas cosmologias
orientais, servindo-se do espiritismo kardecista e da Ciência Cristã. Essek W. Kenyon (1867-
1948), seu principal inspirador, utilizou alguns conceitos metafísicos com técnicas de auto-
ajuda, para estimular a fé no “pensamento positivo”.
Com o propósito de fazer a genealogia desse movimento, Alexandre Brasil Fonseca27
nos oferece as seguintes informações. Em meados do século XIX, na cidade de Boston,
atuava Phineas Parkhurst Quimby, um autodidata, tentando curar neuroses, com base em
“leituras esotéricas e longas meditações acerca das inclinações subjetivas privadas”28. Três anos
após a morte de Quimby, um paciente seu, reverendo Warren Evans publicou, em 1869, o
livro considerado pioneiro dessa linha de “cura mental” (mind cure). O título da obra era,
exatamente, The mental cure.
Nessa mesma época, outra paciente de Phineas Quimby, Mary Baker Eddy, fundou a
Ciência Cristã, religião que se mantém até hoje, com publicações periódicas em várias línguas,
inclusive o português. Seguindo a mesma tendência, outros livros foram editados, tais como:
Power of will (em 1906, vendeu 600 mil exemplares), The secret of sucess e Every man a king.
Bruce Barton publicou, em 1925, The man nobody knows, onde Jesus Cristo é apontado
como o “primeiro grande executivo”, o “primeiro grande anunciante” e o “fundador da forma
moderna de comércio”. Em 1952, começa a fase de sucesso do mais popular divulgador do
“pensamento positivo”, Norman Vicent Peale, que vendeu milhões de livros e foi bastante
exposto pela mídia da época. O pregador Oral Roberts, em 1955, com apenas vinte anos de
idade, lançou a obra God’s formula for success and prosperity. A partir da chamada “Igreja
Eletrônica”, onde Robert Schuller, o próprio Oral Roberts e outros marcavam presença, a
confissão positiva foi popularizada cada vez mais.

27
FONSECA, Alexandre Brasil. Evangélicos e mídia no Brasil. Bragança Paulista: Edusf; Curitiba: Ifan, 2003, p.170-2.
28
MEYER, apud Fonseca, op.cit., p.170.

Conteúdos messiânicos-milenaristas nos movimentos pentecostais e neopentecostais • Dr. Saulo Baptista Cerqueira
211
Kenneth Hagin foi leitor de Essek William Kenyon, discípulo de Phineas Quimby,
conforme mencionamos. Segundo alguns críticos, Hagin apenas plagiou Kenyon. De fato,
examinando o livro “O nome de Jesus”, encontramos citações de Kenyon em quase todas
as 144 páginas da edição em português. Talvez, tentando justificar-se, o autor registrou, na
introdução da obra, o seguinte:

O único livro bom que achei, dedicado inteiramente ao assunto, é


o de E. W. Kenyon: The Wonderful Name of Jesus (O Maravilhoso Nome de
Jesus). Aconselho você a adquirir um exemplar deste livro. É conhecimento pela
revelação. É a Palavra de Deus. (...)
No seminário sobre o Nome de Jesus que dirigi em abril de 1978, citei
livremente do livro de E. W. Kenyon: The Wonderful Name of Jesus. Gosto
espoecialmente da sua maneira de agrupar as Escrituras para o estudo. Gosto do
seu esboço (...).29

Um quadro genealógico da confissão positiva encontra-se na página 364 do livro de


Leonildo Campos,30 que reproduzimos em anexo, para ilustrar, com outra visão, esse amálgama
de influências que desembocaram na atual teologia da prosperidade.
Segundo Alexandre Fonseca, o médico Lair Ribeiro, propagador da neurolinguística,
também bebeu de algumas dessas fontes mencionadas. “A preocupação com saúde, prosperidade
e a valorização do eu são elementos que caracterizam a Nova Era e que são perceptíveis em
vários espaços religiosos e seculares.”31
Este modo de buscar solução para os problemas da vida se expressa nos cultos e reuniões
das igrejas neopentecostais. A Universal e a Internacional passaram a fazer reuniões temáticas
para tratar de pessoas com crises nos negócios empresariais, com problemas familiares e
emocionais, vítimas de maldições e encostos, desempregados, enfermos e portadores de outras
necessidades.
Contudo, esse milenarismo, realizado aqui e agora, não se limitou às sessões de desafio
à fé, onde esta é testada pela entrega de ofertas cujo valor deve demonstrar o risco assumido
pelo contribuinte, ao depositar tudo o que tem sobre o altar, como prova de que aceitou o
desafio de fazer um trato com Deus.
Uma outra modalidade de milenarismo se revelou na Igreja Universal do Reino de
Deus, através de amplas campanhas de solidariedade pelo povo sofrido do Nordeste, a fim de
arrecadar fundos para desenvolver e implantar fazendas modelo, no estilo dos kibutz de Israel.
Essa obra vem sendo coordenada pelo bispo Marcelo Crivella, atual senador pelo Estado do
Rio de Janeiro.

29
HAGIN, Kenneth E. O nome de Jesus. Tradução de Gordon Chown. Rio de Janeiro: Graça Editorial, 1988, p.7 e 9.
30
CAMPOS, Leonildo Silveira. Teatro, templo e mercado: organização e marketing de um empreendimento
neopentecostal. 2. ed. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Simpósio e Umesp, 1999, p.364.
31
FONSECA, op.cit., p.172.

Conteúdos messiânicos-milenaristas nos movimentos pentecostais e neopentecostais • Dr. Saulo Baptista Cerqueira
212
A Igreja Universal constituiu a Associação Beneficente Cristã (ABC), em 1994, para
desenvolver trabalhos de ação social. Em parceria com a Rede Record de Televisão, a ABC
realizou campanhas de assistência às vítimas da seca, através do programa SOS Nordeste.
Durante sua programação comercial, a TV Record convidava os espectadores a levarem
roupas e alimentos não perecíveis aos templos da Igreja em todo o Brasil. Era um programa
assistencialista, de caráter emergencial.

Projeto Nordeste

No ano de 1999, o bispo Marcelo Crivella percorreu várias capitais do Brasil e da África,
fazendo shows em estádios e ginásios de esportes, com o objetivo de arrecadar fundos para
o Projeto Nordeste.32 Em suas viagens a Israel, o bispo Crivella passou a observar as fazendas
coletivas, kibutzim, daí surgindo o desejo de implantar um projeto semelhante no nordeste
brasileiro. Com recursos iniciais de oitocentos e cinquenta mil reais, obtidos em contrato de
gravação do compact disc (CD) “O mensageiro da solidariedade” com a Sony Music, o bispo
começou a implantar a Fazenda Nova Canaã, em propriedade de 450 hectares, adquirida no
município de Irecê, sertão da Bahia33. Esta é a primeira experiência, que o também senador
Crivella pretende multiplicar naquela região. Para isto, ele vendeu, até novembro de 2003, mais
de três milhões de cópias de quatro CDs. O citado, “O mensageiro da solidariedade”, e mais:
“Ajuda teu irmão do sertão”, “Vamos irrigar o sertão” e “Coração a coração”. Além dos CDs,
o bispo tem lançado livros com a mesma destinação, como os seguintes: “501 pensamentos
do bispo Macedo”, “O verdadeiro significado da cruz” (edições em português e inglês) e
“Humildade” (idem).
O projeto abrange plantio irrigado, agroindústria, assistência social para a população
carente dos arredores (principalmente crianças), departamento técnico, biblioteca, laboratórios
e salas de conferência. A Fazenda Nova Canaã abriga uma verdadeira cidade, com trinta casas,
escola agrícola, escola convencional, que atende mais de quinhentas crianças, e o Centro
Educacional Betel, com duzentas crianças na faixa de 3 a 6 anos, recebendo alimentação,
transporte, uniforme e assistência médico-odontológica. Está prevista ainda a implantação
de creche, clínica médica, pousada, igreja, restaurante comunitário, área de lazer e esporte. O
bispo explicou como foi definido esse conjunto de benfeitorias:

tive uma reunião com o prefeito de Recife na Biblioteca Central, da


qual participaram o secretário de cultura, o diretor de recursos hídricos, o vice-
prefeito, vereadores, pequenos produtores, engenheiros agrônomos e levamos o

32
As informações a seguir foram obtidas na home page: http://www2.arcauniversal.com.br/projetonordeste/interna.
jsp?codcanal=1001, acessada em 14/11/2003.
33
Em janeiro de 2000, o bispo Crivella informava que, além dos 850 mil reais do contrato, pagos pela Sony, já havia
recebido mais 320 mil reais da venda dos CDs. (Entrevista para Eclésia, ano V, nº 50, jan/2000, São Paulo, p. 14).

Conteúdos messiânicos-milenaristas nos movimentos pentecostais e neopentecostais • Dr. Saulo Baptista Cerqueira
213
pessoal de Israel. Foi ali que surgiu a ideia de trazer uma indústria, galpões de
armazenamento, irrigação, uma técnica boa de tirar água do subsolo e criar uma
fazenda com estrutura social para abrigar crianças na fase pré-escolar. E também
para tratar de idosos e pessoas carentes. Tudo isso nasceu da população. A ideia
de criar a fazenda foi nossa, mas como adapta-la ao local veio de todos.34

A irrigação é feita com 550 quilômetros de mangueiras espalhadas em 100 hectares, pelo
processo de gotejamento em cada unidade plantada. Este sistema garante o aproveitamento da
água na quantidade exata requerida pelas plantas e sem desperdício. A captação é feita em
quinze poços artesianos abertos na própria área da fazenda. A produção inclui: feijão, milho,
cenoura, abobrinha, alface, manga, coco, fruta de conde, acerola, cebola e outros vegetais. O
projeto tem sistema de estocagem da produção para evitar perdas e manter uma política de
preços em benefício dos agricultores.
Os técnicos de Israel e do Brasil desenvolveram estudos pedológicos e de potencial
dos recursos hídricos do subsolo. Foram definidas a viabilidade técnica e econômica para a
implantação de uma agroindústria e elaborado um plano plurianual de plantio. O projeto tem
lugar para voluntários. Quem for trabalhar na Fazenda Nova Canaã terá moradia, alimentação,
funções e jornada de trabalho bem definida, lazer e igreja para frequentar e um manual de
convivência a ser seguido. “A pessoa não precisará levar um tostão para lá, mas também voltará
sem um tostão. Ela será sustentada pela fazenda” – informou o bispo35.

Concluindo

O poder aquisitivo e o padrão de vida da classe média brasileira foram reduzidos


ao longo das últimas três décadas, período que coincide com o nascimento e ascensão da
Igreja Universal do Reino de Deus. Essa igreja e outras que compõem o campo religioso
chamado neopentecostal quebraram a tradição protestante e pentecostal clássica de ênfase
na disciplina, na proibição de hábitos considerados mundanos, na ascese de negação do
presente século. Essas novas igrejas e os movimentos carismáticos que proliferaram nas
igrejas tradicionais, no mesmo período e com mesma inspiração, vieram com uma proposta
de prosperidade, de vitória, de saúde, de sucesso nos negócios, de segurança na profissão,
enfim, de fruição das riquezas que já estão preparadas por Deus para aqueles que acreditam
e tomam posse delas.
Ora, esse discurso e o ambiente de exaltação emocional onde ele prolifera são muito
semelhantes aos surtos milenaristas dos cargo cults, principalmente no aspecto dos resultados
prometidos pelos clérigos. Os cultos cargo, ou “cargueiros”, constituíam um conjunto de

34
Entrevista citada, revista Eclésia, idem, p. 16.
35
Idem, ibidem.

Conteúdos messiânicos-milenaristas nos movimentos pentecostais e neopentecostais • Dr. Saulo Baptista Cerqueira
214
movimentos messiânicos surgidos na Oceania, em decorrência da chegada de carregamentos
de provisões, destinados quase exclusivamente aos brancos. Induzidos por seus líderes
religiosos, os indígenas passaram a interpretar que esses carregamentos eram enviados por
seus ancestrais, porém interceptados pelos europeus. A partir dessa concepção, os nativos
repudiaram a religião dos missionários e reforçaram o culto aos ancestrais, com expectativas
milenaristas de prosperidade e restauração da sua cultura36.
Leonildo Campos observa que “são os indivíduos em trânsito, marginalizados,
situados nas fronteiras de ordenamentos sociais diversos, socialmente localizados nos pontos
intermediários de ‘províncias de significados’, ou em fase de ‘alternação’, que se entregam a
sonhos que implicam negação do passado e do presente, e na aceitação de uma teodiceia, que
lhes garanta ser possível a mudança de vida, de forma imediata e global.”37
Essa forma de “compensação”, ainda que meramente simbólica, das perdas de qualidade
de vida para a classe média e de negação do essencial para os empobrecidos, feita mediante
promessas de prosperidade, tem tido tanta força que, na falta de alternativa, levou setores
politizados, como o Partido dos Trabalhadores, a se aliar com o Partido Liberal, espaço onde
estão sendo executadas importantes estratégias do projeto político da Igreja Universal do Reino
de Deus. Ou seja, um segmento da esquerda brasileira, talvez o mais representativo, resolveu
legitimar as ilusões do discurso “cargo” da igreja mais atuante do campo neopentecostal
brasileiro.
Capitulação, oportunismo político ou reconhecimento da impotência para mudar,
face à improvável capacidade de criar uma alternativa ao projeto neoliberal em curso? Só o
desenrolar da História trará resposta a essa indagação. O fato é que, “o sucesso da pregação
neopentecostal é o melhor exemplo da falência de um projeto religioso modernizante, que
provocou a cisão entre o desejo e religião, imaginário e ritual, culto e lazer, corpo e alma.”38
Procurando corroborar o discurso com uma evidência prática, mas não apenas por
isto, a Igreja Universal criou um projeto – a Fazenda Nova Canaã – que é apresentado como
solução para a penúria dos nordestinos. Em editorial da revista Plenitude, foi escrito:

o bispo Macedo deu uma missão ao bispo Marcelo Crivella: importar


para o Nordeste brasileiro o projeto de irrigação de Israel. Nascia a Fazenda
Canaã. Mais do que irrigar um terreno árido e sem perspectiva de vida para o
sertão baiano, a iniciativa resgata a dignidade da população da cidade de Irecê.
Além da produção agrícola, a fazenda gera empregos, coloca crianças na escola
e presta assistência médica e odontológica. Quem conhece o Projeto Nordeste
fica completamente esperançoso com o futuro do Brasil. É a demonstração clara
de que existem realmente soluções para os problemas nacionais. Basta ter ética,

36
Conferir o verbete Cargo cults. In: DESROCHE, Henri. Dicionário de messianismos e milenarismos. São Bernardo
do Campo: Umesp, 2000, p. 140.
37 CAMPOS, op.cit., p.436.
38 CAMPOS, op.cit., p. 438.

Conteúdos messiânicos-milenaristas nos movimentos pentecostais e neopentecostais • Dr. Saulo Baptista Cerqueira
215
sinceridade, honestidade e clareza de objetivos. Chega de demagogia! O Projeto
Nordeste é o exemplo de uma medida eficaz para combater a fome na nossa
Pátria39.

A solução kibutz, trazida pelo bispo Crivella, é ideal para quem não quer enfrentar questões
como a perversa estrutura fundiária brasileira e a acumulação de riquezas, concentrada em
alguns plutocratas do nosso país. O que é bom para os capitais judeus-norte-americanos que
se estabeleceram em Israel deve ser bom para os nordestinos miseráveis do Brasil!...
Esse projeto não é apenas um efeito-demonstração da competência da Igreja Universal,
como se estivesse a proclamar: “Mesmo não tendo a máquina do governo nas mãos, provamos
que somos capazes de resolver o problema do Nordeste. Dêem-nos o poder nas mãos, que
transformaremos o Brasil na nova Jerusalém celestial”. De forma bem realista, a Fazenda Nova
Canaã foi e continuará sendo um cabo eleitoral eficaz na trajetória de ocupação dos reinos
desta terra pela Igreja Universal do Reino de Deus.
Eles conseguiram estabelecer uma sintonia entre os sonhos dos oprimidos e a realidade
“intocável” dos “donos do poder”. Lembrando o que disse Leonildo Campos, o milênio da
Igreja Universal já está presente e ocupa as 24 horas do dia.40 A política praticada por essa
igreja se ajusta ao ideal que as forças conservadoras tanto acalentam: a exemplo de Lampedusa,
prometem mudar tudo a fim de não mudar nada.

Referências

BÍBLIA SAGRADA: Antigo e Novo Testamento. Traduzida em português por João Ferreira de
Almeida, revista e atualizada no Brasil, 2ª edição. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.

CAMPOS, Leonildo Silveira. Teatro, templo e mercado: organização e marketing de um


empreendimento neopentecostal. 2. ed. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Simpósio e Umesp, 1999.

CONSORTE, Josildeth Gomes. Mentalidade messiânica. In: VV. AA. A vida em meio à morte
em um país do terceiro mundo. São Paulo: Paulinas; São Bernardo do Campo: IMS, 1983.

DESROCHE, Henri. Dicionário de messianismos e milenarismos. São Bernardo do Campo:


Umesp, 2000.

FONSECA, Alexandre Brasil. Evangélicos e mídia no Brasil. Bragança Paulista: Edusf;


Curitiba: Ifan, 2003.

39
Revista Plenitude, n.80, ano 21, 2002. Apud MACHADO, Maria das Dores Campos. Igreja Universal: uma organização
providência. In: ORO, Ari Pedro; CORTEN, André; DOZON, Jean-Pierre (org.). Igreja Universal do Reino de Deus:
os novos conquistadores da fé. São Paulo: Paulinas, 2003, p.314.
40
CAMPOS, op. cit., p. 439.

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216
GUIMARÃES, Robson Franco. Os últimos dias: crenças, sentimentos e atitudes dos
pentecostais da igreja Assembleia de Deus diante da volta de Cristo. Monografia apresentada
na disciplina História Social da Religião do Mestrado em Ciências da Religião. São Bernardo
do Campo: Umesp, julho/2003. (Inédita).

HAGIN, Kenneth E. O nome de Jesus. Tradução de Gordon Chown. Rio de Janeiro: Graça
Editorial, 1988 Home page: http://www2.arcauniversal.com.br/projetonordeste/interna.
jsp?codcanal=1001, acessada em 14/11/2003.

HUTCHINGS, Noah W. Arrebatamento e ressurreição. Rio de Janeiro: Betel, 1996.

JESUS, Erivaldo de. Escatologia: um tratado sobre o fim do mundo. Edição do autor, sl, 2001.

LATOURETTE, Kenneth Scott. Historia del cristianismo. El Paso (Texas): Casa Bautista de
Publicaciones, 1983.

MACHADO, Maria das Dores Campos. Igreja Universal: uma organização providência. In:
ORO, Ari Pedro; CORTEN, André; DOZON, Jean-Pierre (org.). Igreja Universal do Reino
de Deus: os novos conquistadores da fé. São Paulo: Paulinas, 2003.

REVISTA ECLÉSIA, ano V, nº 50, jan/2000, São Paulo.

SCHÄFER, Heinrich. Protestantismo y crisis social em América Central. San José (Costa
Rica): DEI, 1992.

SIEPIERSKI, Paulo Donizéti. Mutações no protestantismo brasileiro: o surgimento do pós-


pentecostalismo. In: DREHER, Martim N. (org). 500 anos de Brasil e igreja na América
Meridional. Porto Alegre: EST e Cehila, 2002.

Recebido em 30/09/ 2012


Aprovado para publicação em 15/12/2012

Conteúdos messiânicos-milenaristas nos movimentos pentecostais e neopentecostais • Dr. Saulo Baptista Cerqueira
217
A narratividade em busca da identidade no
livro X das Confissões

Suelma de Souza Moraes1

Resumo: O livro X das Confissões tem como chave de leitura a memória


para a constituição do si. É examinada a relação que existe, no texto narrativo
de Agostinho, entre a interpretação da Escritura e a constituição do si, em que
há aspectos do discurso interior e abordagem no quadro da teoria narrativa
que é dada a partir do conceito de identidade narrativa. A constituição do si
é desenvolvida na dialética interna do personagem entre a afirmação de si e a
negação de si, que apresenta a imanência do homem como característica pessoal
e, ao mesmo tempo, o desejo de transcendência daquilo que o ser humano tem de
mais íntimo em relação a Deus.

Palavras-chave: Memória; consciência; constituição do si; identidade


narrativa; dialética.

Abstract: It is thus examined, in Augustine’s narrative, the relationship


between the interpretation of the Scriptures and the becoming of the self. One
finds in this relationship aspects of the inner discourse and of an identity-narrative
approach of the narrative theory. The coming-to-be of the self relies on an internal
dialectical movement of the character, which balances self acknowledgement
against self denial, thus presenting man’s immanence as a personal feature and,
simultaneously, men’s desire for transcending what they value as their most
intimate relationship to God.

Key-words: memory, self knowledge, becoming of the self, identity-


narrative, dialectics.

Introdução

Este artigo contempla apenas um recorte da análise da problemática das Confissões, sobre
o discurso interior com uma abordagem no quadro da teoria narrativa do conceito de identidade
narrativa2, que tem como pressuposto que Paul Ricoeur foi um leitor das obras de Agostinho.

1
Professora Doutora em Ciências das Religiões da UFPB – Universidade Federal da Paraíba, PB.
E-mail: suelmamoraes@gmail.com.
2
A noção de identidade narrativa abordada por Paul Ricoeur em O si mesmo como um outro, é fruto do desenvolvimento
de uma hipótese lançada ao final de Tempo e Narrativa III, para responder a hipótese se haveria uma estrutura da
experiência capaz de integrar as duas classes narrativas, histórica e de ficção. Ricoeur entrecruza essas duas narrativas
não mais com a perspectiva de suas relações com o tempo humano, como havia feito em Tempo e Narrativa, mas como
um aparato para contribuir com a constituição do si, em que irá propor a distinção e dialética entre a mesmidade e a
ipseidade. RICOEUR, Paul. O si mesmo como um outro. Tradução de Lucy Moreira Cesar. Campinas: Papirus, 1991,
p.137-166.

218
A “hermenêutica do si”3 desenvolvida no conceito de identidade narrativa é considerada
a chave de leitura do livro X das Confissões. Isto, porque Agostinho ao se apropriar da Escritura
para tecer as Confissões, abre uma nova dimensão sobre a compreensão dialética do si mesmo
como um outro.
Para tanto, examino a relação que existe, no texto narrativo de Agostinho, entre
a interpretação da Escritura e a constituição do si. Este círculo hermenêutico tem como
fundamentação o trabalho de Paul Ricoeur que o texto pode, de modo emblemático, introduzir
a ligação essencial entre a leitura da Escritura e a constituição do sujeito.

Compreender é compreender-se diante do texto. Não se trata de impor ao


texto sua própria capacidade finita de compreender, mas de expor-se ao texto e
receber dele um si mais amplo, que seria a proposição de existência respondendo,
da maneira mais apropriada possível, à proposição de mundo. A compreensão
torna-se, então, o contrário de uma constituição de que o sujeito teria a chave. A
este respeito, seria mais justo dizer que o si é constituído pela “coisa” do texto.4

Entendo que essa leitura possa ser aplicável às Confissões porque a considero como lugar
do esforço que Agostinho tem para compreender-se a si mesmo, expondo-se ao texto escrito.
Agostinho é um dos precursores do discurso interior que faz a passagem da Antiguidade tardia
para o cristianismo sob influências neoplatônicas e estoicas ao desenvolver uma ontologia
cristã, com base na Escritura para descrever o homem interior.
De acordo com Isabele Bochet, a Escritura comanda a interpretação agostiniana de
existência. É à luz da Escritura que ele interpreta sua própria vida; é ainda por meio dessa luz
que ele se interroga sobre o sentido da História. Tal aproximação da hermenêutica agostiniana
não exclui interesse de outras aproximações. Embora frequentemente seja afirmado que
a hermenêutica agostiniana é muito marcada pelo neoplatonismo, a influência dos livros
platônicos não é contestável, mas importa relativizar, mostrando como a leitura da Escritura é
importante para as outras leituras: ela lhes confere seu justo lugar.
Para Bochet, essa perspectiva pode renovar a aproximação do pensamento agostiniano.
De um lado, ela aprofunda um domínio pouco estudado: a hermenêutica escritural de
Agostinho. De outro, ela relativiza toda a pesquisa das fontes que relegam a segundo plano a
relação de Agostinho com a Escritura ou ainda toda aproximação que introduziria dentro da
obra agostiniana uma dicotomia entre os limites da filosofia e da teologia, ou seja, leituras que
qualificam as Confissões como um trabalho filosófico ou teológico5.

3
A ‘hermenêutica do si’encadeia três mediações: a articulação entre a reflexão e a análise, que impõe a dialética entre o
si-mesmo e o si-próprio e ganha dimensão na dialética entre o si-mesmo e a alteridade.
4
RICOEUR, Paul. Interpretação e Ideologias; organização, tradução e apresentação de Hilton Japiassu. Rio de Janeiro,
F. Alves, 1990, p. 58.
5
BOCHET, Isabelle. «Le Firmament de L’écriture». L’herméneutique augustinienne. Collection des Études
augustiniennes, 172. Institut d’Études Augustiniennes, Paris, 2004, 103.

A narratividade em busca da identidade no livro X das Confissões • Suelma de Souza Moraes


219
Autores contemporâneos também consideram Agostinho como um dos principais
inovadores da linguagem. Tzvetan Todorov6 faz honras a Agostinho, em Teorias do símbolo,
em que credita a ele, como gesto inaugural, discussões sobre a escrita e o conteúdo de
originalidades, ao atribuir a questão da instauração no campo semiótico. Ou ainda, sobre a
discussão da história ocidental do sujeito, observada em M. Daraki, que resulta em um artigo
apresentado por Goulven Madec, “In te supra me”: Le sujet dans les Confessions7.

A hermenêutica e as fronteiras do texto

A enunciação do si na interdiscursividade do livro X das Confissões e da


Escritura

As Confissões foram escritas por volta de 397 a 401.8 A obra passa principalmente por
um período de discussões contra o materialismo maniqueísta e, conforme Pierre Courcelle9,
o livro X pode ter sido escrito especialmente em resposta às calúnias lançadas sobre o autor
Agostinho e àqueles que partilhavam da mesma fé. A narração do livro recorre em grande
parte à correlação da fonte primária, a Bíblia, com textos de Cícero e romances por vezes
citados, nas Confissões, cercado de uma intratextualidade. Existem trechos tematizados e
intercalados que podemos reler nas demais obras de Agostinho que foram desenvolvidos ao
longo de sua chegada ao episcopado. Agostinho é autor de extensa obra literária, comparada
a uma sinfonia. No conjunto das diversas obras, ressoam as várias vozes na harmonia de
sua grande obra, as Confissões, em que é possível perceber certa maturidade de sua obra
literária. É possível identificar tanto as obras anteriores às Confissões quanto antecipações
de obras posteriores, de conteúdos entrelaçados à composição da narrativa. Como exemplo,
Mourant10 afirma que há antecipações (presentes nas obras Gênesis e em A Trindade) de

6
Para uma melhor compreensão, ver: TODOROV, Tzvetan. Teoria do símbolo, p. 36-63. Todorov analisa três obras de
Agostinho: A Dialética (387), A Doutrina Cristã (397) e A Trindade (415), que desenvolvem a evolução sobre o signo.
Ele afirma que é em Agostinho que, em primeiro lugar, surge uma propriedade do signo de certa não identidade do
signo com ele próprio, que se apoia no fato de que o signo é originalmente duplo, sensível e inteligível, que, segundo
Todorov, não encontrava até então como descrição do símbolo em Aristóteles. Na Dialética, Agostinho traz uma dupla
definição, que aponta uma relação de distinção entre o signo e a coisa, no quadro da designação e da significação; e a
segunda, entre o locutor e o ouvinte, no quadro da comunicação (...). Para Todorov a inauguração da semiótica existe
quando é articulada a semântica e simbólica; ele concebe essa articulação às obras de Agostinho como instauradoras
no campo semiótico.
7
MADEC, Goulven. “In te supra me”. Le sujet dans les Confessions de Saint Augustin. Revue de l’Institut catholique de
Paris. Paris, 1986, p. 45-63.
8
BROWN, Peter Robert Lamont. Santo Agostinho: uma biografia. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Record,
2005, p. 226.
9
COURCELLE, Pierre. Recherches sur les Confessions de Saint Augustin. Paris: Éditions E. de Boccard, 1968.
Courcelle aponta para a necessidade da redação do livro X das Confissões de colocar questões doutrinais contra as
calúnias lançadas pelos donatistas contra Agostinho (p. 26, 245).
10
MOURANT, John A. Saint Augustine on memory. Augustinian The saint Augustine lecture series. Institute Villanova:
Villanova University Press, 1980, p. 70.

A narratividade em busca da identidade no livro X das Confissões • Suelma de Souza Moraes


220
elementos da moral e de problemas do mal, da liberdade, da graça, da bondade, da natureza
do conhecimento e da sabedoria, platonismo, neoplatonismo, maniqueísmo, estoicismo. Até
401, Agostinho já contava com aproximadamente mais de 40 obras completas e cerca de
mais cinco obras iniciadas, como A música, iniciada em 387; Comentário aos Salmos (os
comentários aos primeiros 32 salmos escritos em 392 e os demais concluídos em 420); A
doutrina cristã, iniciada em 396 (concluída em 426); A Trindade, iniciada em 401 (concluída
em 419); Comentário literal ao Gênesis, iniciado em 401 e finalizado em 41411. A obra tem
um estilo de escrita complexo e de difícil conceituação, pois é ao mesmo tempo narrativo,
meditativo e reflexivo no conjunto da obra. As Confissões ultrapassam os gêneros literários,
filosóficos e teológicos de sua época, o que torna difícil um enquadramento da obra e, por
outro lado, apresentam uma leitura inovadora até o nosso século, em que ainda despertam
interesse e discussões.
As Confissões suscitam, logo de início, algumas dificuldades sobre a hermenêutica, por
serem consideradas um texto de difícil conceituação de gênero literário e conteúdo filosófico
e teológico. O texto do livro X é o ponto de partida, porque ele é a realidade imediata que
revela a mediatidade do conteúdo da memória, da realidade do pensamento e das vivências
no confronto da tentação, que exige uma interpretação para compreensão. O texto tem
um sujeito narrativo, autor e personagem, Agostinho, que apresenta modalidades e formas
da própria autoria, como mestre de retórica e bispo. O texto como enunciado apresenta
problemas das funções do texto e dos gêneros do texto. Há dois elementos que determinam
o texto como enunciado: a sua ideia (intenção) e a realização dessa intenção. O sujeito, autor
do texto, Agostinho, constrói um texto com inter-relações dinâmicas desses elementos, que
determinam o caráter do texto. Para atingir um fim específico, ele reproduz os textos da
Escritura (do apóstolo Paulo, do evangelista João, do salmista Davi) na voz de Deus e cria
um texto emoldurador (comenta, interpreta, avalia etc.). A esta dualidade de planos e sujeitos
dos textos literários surge peculiaridades: o seu texto, as Confissões, passa a ser a composição
original, que reflete todos os outros textos concatenados para realizar o enunciado, como por
exemplo: As relações dialógicas entre os textos e no interior de um texto. Sua índole específica
(não linguística). Diálogo e dialética12.
Ao analisar a dialética do texto, percebemos que a introdução do livro X é feita por
meio de uma prece em que Agostinho utiliza a Escritura13 como fundamento do texto, ao
intercalar paráfrases ou uma reescritura dos textos bíblicos redigidos em forma de prece.
Como exemplo, textos bíblicos sobrepostos que podemos reconhecer na sua escrita quase
que literalmente reproduzidos na obra de Agostinho e interpretados em uma segunda voz
11
BROWN, 2005, p. 90-93; 226-229.
12
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. Introdução e tradução do russo por Paulo Bezerra; prefácio à edição
francesa de Tzvetan Todorov. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 307-309.
13
Observar no texto original do latim as referências bíblicas escolhidas por Agostinho.

A narratividade em busca da identidade no livro X das Confissões • Suelma de Souza Moraes


221
nas Confissões, quando não intercaladas. Embora, no texto original da obra de Agostinho,
não tenhamos referências das citações bíblicas, mas é possível identificá-las, por meio de
um trabalho rigoroso que já temos elaborado pelos tradutores. Mas, é possível observar, de
imediato, a intertextualidade e a interdiscursividade em seu modo de narrar.
Texto literal das Confissões:

Ó Deus, tu me conheces, faze que eu te conheça, como sou por ti


conhecido. (2) Ó Virtude de minha alma, penetra na minha alma, faze que ela seja
semelhante a ti, para que a possuas sem mancha e nem ruga. (3) Esta é a minha
esperança, por ela falo e nessa esperança me alegro quando experimento a sã
alegria. Tudo o mais nesta vida, quanto mais se chora, menos merece ser chorado
e tanto mais seria chorar quanto menos por ele se chora. (4) “Amaste a verdade”,
pois quem a pratica alcança a luz. (5) Também eu quero praticá-la no íntimo do
coração, diante de ti na minha confissão, e diante de muitas testemunhas nos
meus escritos (X, 1,1)14.

Texto literal bíblico, citado como notas de rodapé:

Agora vemos em espelho e de maneira confusa, mas, depois, veremos


face a face. Agora o meu conhecimento é limitado, mas, depois, conhecerei como
sou conhecido (I Cor 13,12). (2) Para apresentar a si mesmo a Igreja, gloriosa,
sem mancha nem ruga, ou coisa semelhante, mas santa e irrepreensível (Ef 5,27).
(3) Alegrando-vos na esperança, perseverando na tribulação, assíduos na oração
(Rm 12,12). (4) Eis que amas a verdade no fundo do ser, e me ensinas a sabedoria
no segredo (Sl 51,8). (5) Mas quem pratica a verdade vem para a luz, para que
manifeste que suas obras são feitas em Deus (Jo 3,21).15

No decorrer do livro X, é notória a inferência constante de textos bíblicos, o que torna


este capítulo em reescritura, fonte da relação bíblica interna com as Confissões, sobre a qual
frequentemente se interpõem diálogos de interpelações e respostas. O desenvolvimento da
escrita narrativa é, no mínimo, intrigante. A relação como o autor constrói a presença implícita
de textos bíblicos ao desenvolver o papel da memória. A própria intenção da escrita se revela,
nesse âmbito, de presença em direção à memória do esquecimento, provocando o leitor a
considerar a presença implícita não somente na escrita, mas implícita no desenvolvimento
filosófico-teológico em sua exposição sobre a memória do esquecimento. O leitor, para
se reportar ao que está presente, e ao mesmo tempo ausente no texto, terá de procurar na
Escritura a interpretação para a compreensão das Confissões. Conforme Peter Brown,16 esse
era o modo muito utilizado por Ambrósio, como uma Escritura “velada” por Deus, para
“exercitar” o investigador, que somente o homem perspicaz seria capaz de apreender o sentido

14
Sant’Agostino. Confessioni, volume IV (Libri X-XI). “Cognoscam te, cognitor meus, cognoscam sicut et cognitus sum.
Virtus animae meae, intra in eam et coaptatibi, ut hábeas et possideas sine macula et ruga”. Confessionum X, I. p. 6.
15
Confissões X, i, 1.
16
BROWN, 2005, p. 324-326.

A narratividade em busca da identidade no livro X das Confissões • Suelma de Souza Moraes


222
mais profundo, o “espírito”. A formação de Agostinho era de mestre em retórica17 e herda
essa forma de escrita. Contudo, opta por discernir a complexidade de sua própria visão sobre
alguns aspectos fundamentais de seu pensamento. Desse modo, ele vai mais longe, e trabalha a
multiplicidade da linguagem dos sinais, uma vez que atribuía à multiplicidade de imagens uma
imperfeição da consciência humana. E acaba por adotar uma linguagem interpretativa para os
sinais, que trazia à tona as obscuridades do ser humano como fonte interna do conhecimento
indireto. A própria intenção da escrita também se revela nesse âmbito: a Escritura, nas
Confissões, faz a mediação entre o abismo que existe entre o ser humano e a face de Deus.
Agostinho desenvolve uma dialética interna dialógica, demonstrada no livro X, uma
forma mais contundente do cristianismo, quando introduz, em paralelo à sua escrita, a
Escritura quase que literalmente citada (a encarnação do Verbo), em busca da interioridade,
para não apenas preparar a verdade, mas expressar a fé no campo prático da ação.
A arte de sua escrita não se limita a um processo epistemológico indiferente, mas o
motivo é o desejo de compreender a si mesmo que procede de sua inquietude existencial, que
tem como fundamento a presença divina, do Mesmo, o imutável.
Outro dado a considerar é que, no diálogo narrativo, em que Agostinho utiliza a Escritura
como aporte para a razão e a verdade nas Confissões, o percurso apresenta uma dialética diferencial
em relação aos neoplatônicos. A Escritura torna-se o alcance capaz como autoridade e, ao mesmo
tempo, uma forma humilde para atrair as multidões18. Essa seria apenas uma das razões para que a
narrativa das Confissões assuma mais o caráter hermenêutico, propriamente dito, do que a exegese
bíblica. A forma de narrar é sempre um texto em diálogo com outros textos, por vezes justapostos,
ou até mesmo textos dentro de textos que se expandem em novos textos, como quando traz o
texto bíblico para dentro das Confissões, construindo assim um novo texto literário.
Ao contexto textual, verifica-se uma intertextualidade que nos remete para o processo
de construção do texto narrativo e uma interdiscursividade que desenvolve o sentido da
narrativa no dialogismo constitutivo de discursos internos entre a Escritura e as Confissões, que
tecem novos “fios dialógicos”. Há que se levar em consideração uma inter-relação semântica
(dialética) e dialógica de textos entrelaçados à narrativa. A própria compreensão da narrativa
integra o sistema dialógico, que inevitavelmente traz uma polifonia de discursos indiretos de
participantes do texto de vozes responsivas e interpelativas na construção narrativa19.

17
AUERBACH, Erich. Ensaios de literatura ocidental. Tradução de João Ângelo Oliva Neto. São Paulo: Editora 34/
Duas Cidades, 2007, p. 36-60. Auerbach já marcava a força da Escritura em Sermo humilis, em que a retórica e dialética
desenvolvidas por Agostinho a partir de Cícero tinham a concepção dos três níveis tradicionais de estilo (o sublime, o
médio e o baixo), em que o estilo baixo servia para a exegese e ensino. Agostinho não somente modifica, mas elimina
as barreiras entre os níveis. O termo da humildade, que antes tinha a conotação de degradação, valor baixo e inferior,
passa a designar um termo de força semântica mais importante e superior de ensino, intimamente ligado ao tema da
encarnação, que culmina na palavra encarnada e ganha força máxima da Bíblia e importância apologética, ao mesmo
tempo em que requeria a humildade do leitor para compreensão.
18
Confissões VI, v, 8.
19
BAKHTIN, 2003, p. 331-335.

A narratividade em busca da identidade no livro X das Confissões • Suelma de Souza Moraes


223
A esse estilo hermenêutico, há sempre uma interdiscursividade entrelaçada à escrita
e não necessariamente uma intertextualidade à interdiscursividade, em que se observa a
dinâmica da dialética na narrativa, o que torna necessário refletir sobre o movimento da
narrativa e as diversas vozes do discurso em direção à identidade narrativa das Confissões.
Bochet entende que a Escritura comanda a interpretação da existência em Agostinho.
Afirma que, para se interrogar de forma válida sobre a hermenêutica escritural, é necessário
procurar pelo elo entre o sujeito e a Escritura. Essa relação pode ser considerada sob dois
aspectos complementares: por um lado, a autora se questiona como o sujeito tem acesso a uma
leitura fecunda da Escritura; por outro, como essa leitura modifica a interpretação de si mesmo
e do mundo. Para Bochet, existe uma interação essencial entre a interpretação da Escritura e
a interpretação pelo leitor de sua própria vida e, mais largamente, do mundo e da História.20
Ela observa ainda que a subjetividade moderna encontra aqui um de seus lugares de nascença,
tal como se extrai das Confissões, embora diferente de todas as outras formas do subjetivismo
moderno; isso porque o “eu” que se interroga sobre o sentido de sua existência, sob o olhar de
Deus, é fundamentalmente um sujeito que se reconhece em Deus.21 Bochet demonstra que a
Escritura é uma nova compreensão de si, o que caracteriza uma reinterpretação de si mesmo
ligada à confissão.22 A autora afirma que as Confissões não são somente relatos de dados exatos
e objetivos do passado, mas consistem em acolher sobre si a luz de Deus, o que Agostinho faz
na introdução do livro X, de modo que “conhecer a si mesmo não é outra coisa senão ouvir
Deus falar sobre si mesmo”.23
Portanto, os “fios dialógicos” são essenciais na trama do livro X das Confissões,
para interpretar e compreender o coro de vozes em sua obra. É necessário um exercício
hermenêutico mais complexo do que aquele que se obtém na identificação de intertextos,
mais visíveis à disposição do leitor. A essa forma de diálogo e reflexão sobre si mesmo, nota-se
grande intercâmbio entre o sujeito narrativo que reflete nos textos que ele conhece, as ideias
que ele combate e os textos bíblicos que lhe são fontes permanentes de iluminação e clareza
de pensamento.
Assim, as Confissões têm a possibilidade de interpretação e aproximação dos textos
bíblicos e dos textos filosóficos para os leitores da época de Agostinho, bem como para o leitor
contemporâneo.

20
BOCHET, 2004, p. 9-16.
21
Idem, p. 263.
22
Idem, p. 103.
23
Idem, p. 105.

A narratividade em busca da identidade no livro X das Confissões • Suelma de Souza Moraes


224
A enunciação do si nos atos do discurso24

O modo de diálogo de discurso narrativo se interpõe em três planos: primeiro, o “ego”


(Agostinho) que fala para alguém, “tu” (Deus); segundo, o “ego” (Agostinho) que dialoga
com a Escritura na segunda pessoa do plural, em que a narrativa assume o “nós” (É certo
que agora vemos como por um enigma); e terceiro, o “ego” em direção ao “si” mesmo, que
assume a terceira pessoa no diálogo, quando sua descrição é determinada pelo contexto do
uso dialógico reflexivo.
A questão será analisar como o “eu – tu” pode se exteriorizar em um “ele”, sem perder
a capacidade de designar a si mesmo e como ‘ele’ da referência identificante pode interiorizar-
se em um sujeito que se diz ele próprio. O próprio ato de inter-relação dialógica no discurso
do “eu” com o “tu” constitui uma ética do si, quando dizer é fazer algo, em que há um
comprometimento do locutor e interlocutor agentes na narrativa, em que o próprio empenho
das partes já demanda uma ação de intencionalidade recíproca, enunciada na alteridade, em
que cada sujeito narrativo (Deus e Agostinho) é responsável por uma ação.

E esta tua palavra era pouca para mim, se ela mandasse apenas com
palavras, e não fosse adiante de mim com obras (Dei-vos o exemplo para que,
como eu vos fiz, também vós o façais, João 13,15). Por isso, eu faço isto com obras
e com palavras, e faço-o sob a proteção de tuas asas (Guarda-me como a pupila
dos olhos, esconde-me à sombra de tuas asas, Salmo 16,8)25.

Desse modo, começamos a avançar em direção à ipseidade do locutor ou do agente que


tem como contrapartida um avanço comparável na alteridade do parceiro da reflexividade da
consciência de si. Na narrativa, existe sempre um “quem fala”, mas ele privilegia a primeira
pessoa (“eu”) e a segunda (“tu”) do discurso e exclui a terceira (“ele”). A narrativa das Confissões
tem algumas peculiaridades, pois o próprio personagem revoga a si a negação do “eu” em
função de sua alteridade. Contudo, não significa a exclusão do sujeito da ação.
Para Ricoeur, há duas conquistas da enunciação, a saber:

1) não são os enunciados nem mesmo as enunciações que referem


mas, lembramos mais acima, os sujeitos falantes, usando recursos do sentido
e da referência do enunciado para trocar suas experiências numa situação de
interlocução;
2) a situação de interlocução só tem valor de acontecimento, uma vez
que os autores da enunciação são postos em cena pelo discurso em ato e, com os
enunciadores em carne e osso, sua experiência do mundo, sua perspectiva sobre
o mundo, a qual um outro não pode substituir.26

24
RICOEUR, 1991, p. 55-72.
25
Confissões X, v, 6.
26
RICOEUR, 1991, p. 64.

A narratividade em busca da identidade no livro X das Confissões • Suelma de Souza Moraes


225
Outro dado a percorrer na enunciação é o acontecimento do “hic” e “nunc”, o “já” e o
“agora”. Esse dado é uma sui-referência do sujeito, especialmente no livro X das Confissões:
o agora designa todo o acontecimento contemporâneo da enunciação. É a conjunção entre
o presente vivo da experiência do fenômeno no tempo e qualquer instante da experiência
cosmológica.
A narrativa marca enfaticamente que a confissão quer revelar o acontecimento no
presente: Mas quem ainda agora sou, precisamente no momento das minhas confissões.27 Todos
os estados de dores, fragilidade, insuficiência e de lugar público de sua confissão são revelados
no “agora”, “hic” e “nunc”. A memória recebe uma metáfora espacial, o aí da memória,28 a
própria memória torna-se pública; todos os “eus” são abertos em função da procura da
alteridade, que carrega certa ambiguidade ao estabelecer a abertura a todos aqueles que no
“agora” querem saber quem ele é, e em função da abertura em direção à procura de Deus. O
“eu” sofre claramente a intenção de um deslocamento para o si, o si é a sua ancoragem, seu
porto seguro, porém, em virtude de sua própria alteridade, o “eu” é peregrinação na terra,
permanece com seu estatuto de inquietação, a temporalidade humana, em que apenas é
possível sempre lançar sua âncora para o porto seguro:

Eis, Senhor, que eu lanço em ti a minha inquietação, a fim de que viva, e


considerei as maravilhas da tua Lei (Salmo 54,23). Tu conheces (Tobias 3,16; 8,9;
Salmo 68,6; João 21,15-16) a minha incapacidade e a minha fragilidade (Salmo
68,6): ensina-me (Salmo 142,10) e cura-me (Salmo 6,3).29

Confissões X nas fronteiras da autobiografia – autor e personage

A complexidade do texto das Confissões reabre sempre novas discussões. Christine


Mhormann,30 em 1961, aponta para a tensão espiritual como dado vivo da obra. A autora
apresenta como motivo para considerar uma autobiografia a profunda exposição que
Agostinho faz de sua intimidade, em que aponta para esse caráter autobiográfico. E tem como
intenção a informação clara da combinação de elementos de uma confessio laudis biblica,
diretamente inspirada no salmista e inseparável da confessio peccati, algo que Agostinho
relaciona constantemente: a confissão de louvor à confissão de pecados, confessando seu
próprio pecado em louvor a Deus.31

27
Confissões X iii, 4.
28
Confissões X, viii, 12; 14; xvi, 22.
29
Confissões X, xliii, 70.
30
MHORMANN, Christine. Études sur le latin des chrétiens. Tome II. Latin chrétien et mediéval. Roma: Edizioni di
storia e letteratura, 1961, p. 277-323.
31
MHORMANN, 1961, 278-279.

A narratividade em busca da identidade no livro X das Confissões • Suelma de Souza Moraes


226
Morhmann mostra a complexidade em que Agostinho combina elementos da retórica
antiga de interioridade a novos elementos de interioridade cristã associados à Escritura e à
espiritualidade.

Con questo innovamennto dei procedimenti tradizionali in um senso


bíblico e cristiano lo stile delle Confessione, benché talvolta barocco e troppo
ornato, è uno stile vissuto che há senza dubbio largamente contribuito al
sucesso spirituale del libro. Più che in ogni altra sua opera, Agostinosi è nelle
sue Confessioni presentato tale quale era: retore divenuto cristiano, cristiano che
diviene místico, ma anzitutto: cristiano che vive della Sacra Scrittura. Egli si è
sforzato di tracciere nelle Confessioni l’immagine della sua personalitá, del suo
pensiero, della sua religiosità: lo há fatto coi mezzi d’espressione che aveva a sua
disoposizione e che rizalivano a mondi fondamentalmente differenti: Il mondo
ântico con la sua cultura letteraria pietrificata dalla retórica, e Il mondo cristiano
che attinge all’ eredità letteraria di Israele. Egli si è proposto di riconciliare
quelle due tradizioni e di fonderle in uma nuova unità. Si può pensare che si
vuole di questo stile nuovo, lo si può considerare como troppo barocco, como
troppo legato ad uma tradizione dalungo tempo consunta, oppure como troppo
rivoluzionario, troppo imbevuto di elementi esotici. Per Agostino è stato lo
strumento d”espressione fedele e sincera del suo pensiero e dei suoi sentimenti
religiosi più intimi: e cio costituice la grandezza delle Confessioni come opera
letteraria e spirituale.32

Pierre Courcelle,33 em 1968, afirma que, se quisermos entender o valor histórico das
Confissões como documento autobiográfico, convém de início analisar o sentido que o autor
atribui ao título e à evolução semântica dos termos confiteri, confessio, confessor, dos quais
poderemos extrair três principais sentidos para a época cristã: confissão de pecados, confissão
de fé e confissão de louvor. O tom das Confissões assume um tom lírico de constantes cânticos
de ação de graças e louvor a Deus. Entretanto, Courcelle salienta que não se trata apenas de
elevação diante de Deus, mas que a obra comporta desenvolvimentos narrativos destinados
ao leitor, de modo que seu objetivo não era naturalmente instruir a Deus sobre suas faltas
cometidas. Contudo, o mérito de todo relato das Confissões deve ser atribuído à misericórdia
divina. Para Courcelle, o motivo principal de Agostinho não era histórico, mas teológico. A
narrativa é teocêntrica e demonstra a intervenção de Deus por intermédio de todas as causas
segundas que determinam o caminho de Agostinho.
Para Peter Brown, a obra é considerada uma autobiografia estritamente intelectual, que
parece dirigir a palavra a um público como se estivesse imbuído tanto quanto ele, Agostinho,
da filosofia neoplatônica. Brown afirma que o autor impôs conscientemente o que lhe era
significativo, em que associa um acontecimento intelectual; os atos conscientes são o resultado
de uma aliança entre o intelecto e o afeto.34

32
MHORMANN, 1961, p. 322-323.
33
COURCELLE, 1968, p. 13-27.
34
BROWN, 2005: 204, 206, 209.

A narratividade em busca da identidade no livro X das Confissões • Suelma de Souza Moraes


227
A própria inserção histórica em que Agostinho se encontrava e constrói a narrativa já
demanda algumas dificuldades, uma vez que ele é seu próprio intérprete diante das discussões
e decisões que vieram acompanhadas, interpretadas e teorizadas em suas obras. E, como
tal, não se manteve imparcial aos julgamentos de sua época, tanto em relação às discussões
doutrinárias como em relação a si mesmo. Portanto, há que se levar em consideração a
problemática na qual o autor se insere como personagem na narrativa. Desse modo, o que é
possível fazer é procurar uma reaproximação do texto de Agostinho, considerando que o texto
é sempre uma reescritura de outro texto. A narrativa rediz o que foi dito ao se colocar como
intérprete em sua própria escrita e aquele que a interpreta rediz o que a narrativa tem a dizer.
Não é possível captar a pureza da escrita e do pensamento do autor.
Dado a considerar é que uma das discussões frequentes que as Confissões suscitam é
se estaríamos diante de uma obra autobiográfica, em que a narrativa é reduzida sempre na
primeira pessoa e por conter elementos narrativos homodiéguétique35, em que ele está presente
como personagem da história que narra e é autor. O que, segundo Jean-Luc Marion,36 tem
sido a solução habitual, e mais inadequada à afirmação de um estatuto autobiográfico, sem se
inquietar mais diante dos autos da (representação) do si da questão.
Diante dessa observação, há uma fronteira invisível na narrativa que se apresenta como
figuração do si. A figuração do si é dada em um campo mais abrangente, sendo necessário
refletir sobre a posição do sujeito narrativo enquanto autor e personagem da escritura do “eu”,
de uma abertura que inclua outros aspectos, como a representação do si para interpretar a si
mesmo. O termo “si” equivale a partir da enunciação, que sublinha uma característica parcial
e provisória daquele que é enunciado a propósito do “eu”, ou ainda, se quisermos, podemos
dizer ao invés de figuração de uma representação. A própria etimologia da palavra figura no
latim fingere, que significa fazer, modelar.
Não há uma verdade já estabelecida sobre a natureza e a essência do “eu”. Ao contrário,
ela irá se constituir ao longo da escrita do texto. Ao escrever essa história sobre o “eu”, ela
será reapresentada sob nova perspectiva no exercício da palavra, algo ainda em constituição
será moldado, onde Agostinho se apresenta como intérprete e, ao mesmo tempo, ouvinte da
Escritura. A representação coloca inúmeras dificuldades de compreensão para estabelecer um
enquadramento ao conteúdo do texto, a começar por quem, do que fala, e a quem?
Nas Confissões, há uma peculiaridade que consiste na formação axiológica da trama, em
que o autor (Agostinho) é o próprio personagem da ação; em reciprocidade, existe um diálogo
interno com Deus que também é personagem da ação. O autor/personagem abre uma estrutura
dialógica com Deus pelas Escrituras e também pela Escritura internaliza outros personagens
bíblicos, como Paulo, Davi, sendo os Salmos e as epístolas de Paulo frequentemente citados.
35
Méthode e problème, La voix narrative, Jean Kaempfer & Filippo Zanghi, © 2003 Section de Français – Université de
Lausanne. http://www.unige.ch/lettres/framo/enseignments/methodes/vnarrative/vnintegr acesso em: 27/11/2007.
36
MARION, Jean –Luc. Au lieu de soi – L’approche de Saint Augustin. 1a. edition: Presse Universitaires de France, 2008, p. 30.

A narratividade em busca da identidade no livro X das Confissões • Suelma de Souza Moraes


228
O autor assume uma relação direta com o personagem e coloca-se à margem de si
para vivenciar a si mesmo em um outro plano, para poder avaliar seus valores e julgamentos
em busca do todo, daquilo que ele é e pode vir a ser, sob o prisma do olhar do outro e de si.
Desse modo, ele transgride a si mesmo para lhe dar um novo sentido: deve tornar-se outro em
relação a si mesmo, ou seja, olhar para si mesmo com os olhos do outro.37
A priori consideraremos o fato de trabalharmos com a memória narrativa histórica e,
nesse caso, o personagem é o próprio autor e locutor, que traz como intriga a si mesmo – “a
esses mostrarei quem sou” (X, 4, 5) – e tem como interlocutor a Deus – “mostra-me qual o
fruto desta confissão, feita aos homens na tua presença, não do que fui, mas do que sou agora”
(X, 3, 4).
Para nos centrarmos no problema da identidade narrativa, que é proposto como abor-
dagem para o pano de fundo das Confissões, é necessário abordar a intenção filosófico-teoló-
gica que dissocia e confronta o uso do conceito de identidade, as duas significações conside-
ráveis da identidade, conforme se entende por idêntico o mesmo o equivalente do idem ou do
ipse latino. A equivocidade do termo idêntico estará no centro das reflexões sobre a identidade
pessoal e a identidade narrativa.
A hipótese é que esse é um aspecto importante para compreender as Confissões até
então desconsiderado por vários autores. Na maioria das vezes, a leitura desconsidera o cam-
po de abordagem da teoria narrativa e sua intencionalidade; e também estabelece um gênero
filosófico que, ou insere as Confissões a partir de uma leitura que incorrerá em uma identidade
que não pode ser vista em sua individualidade e de um esvaziamento totalizante do “eu sou”
na completa dissipação, ou insere as Confissões dentro de um gênero que as qualifica como
obra autobiográfica, e o “eu” passa a assumir o papel preponderante na sua escrita, como se
partisse apenas de dados cronológicos e dados históricos objetivos, como diante simplesmente
de um relato histórico, sem levar em consideração a questão da reflexão, de como o si constrói
sua identidade na relação com o outro. A Confissão talvez já antecipe em sua complexidade
a discussão sobre a distinção entre o ipse e o idem, que conduza à constituição do si e que, ao
mesmo tempo, implique na alteridade em um grau íntimo de compreensão de si mesmo:
O si-mesmo como um outro sugere desde o começo que a ipseidade do si-mesmo implica
a alteridade em um grau tão intimo, que uma não se deixa pensar sem a outra, que uma passa
bastante na outra.38 Portanto, primeiro é necessário estabelecer a definição sobre os termos
da mesmidade e ipseidade e qual a contribuição de Paul Ricoeur, quando apresenta algumas
limitações aos estudos sobre a identidade pessoal, pelo fato de não distinguir mesmidade de
ipseidade, as duas formas distintas de permanência no tempo. Consequentemente, os estudos
sobre identidade pessoal desconhecem a importância que a teoria narrativa assume na

37
BAKHTIN, 2003, 13.
38
RICOEUR, 1991, p. 14.

A narratividade em busca da identidade no livro X das Confissões • Suelma de Souza Moraes


229
mediação entre esses dois polos da identidade. Após a definição, é necessário averiguar se, e de
que modo, o problema da identidade pessoal se constitui na contemplação entre os dois usos
do conceito do idem e do ipse nas Confissões e a necessidade da aproximação da identidade
narrativa.

Mesmidade e ipseidade

Identidade-idem e mesmidade tem sido o polo da identidade que se caracteriza pela


permanência do mesmo ao longo do tempo. Em primeiro lugar, a mesmidade equivale à iden-
tidade numérica. Por meio da operação de identificação, identificamos e “reidentificamos” por
um nome invariável uma coisa como sendo a mesma uma, duas, inúmeras vezes. Nesse caso,
identidade significa unicidade. Em segundo lugar, a mesmidade equivale à identidade qualita-
tiva, que sugere, em outras palavras, a semelhança extrema, em que se torna indiferente a troca
de um pelo outro. Diante desse conceito, já se pode observar a fragilidade da similitude, no
caso de grande distância no tempo. Ricoeur afirma que é necessário apelar para outro critério,
o qual depende de outra noção de identidade.
Há um terceiro componente, a continuidade ininterrupta entre o primeiro e o último,
ao considerarmos o mesmo indivíduo, de modo que, apesar de algumas dessemelhanças, que
implicam em mudanças, recorremos a um critério anexo ou substitutivo da similitude que nos
permite dizer que estamos diante da mesma coisa.
A questão-chave para Ricoeur é que o tempo é sempre o fator de dessemelhança, de
afastamento e diferença. Motivo porque a ameaça do tempo representada para a identidade
não é inteiramente conjurada, a não ser que possamos colocar na base a similitude e da conti-
nuidade ininterrupta da mudança um princípio de permanência no tempo.39
Toda a problemática sobre a identidade pessoal na tese de Ricoeur é mostrar que, de
um lado, a mesmidade gira em torno da busca de um invariante relacional, dando-lhe a signi-
ficação forte de permanência e de outro, a sua tese será que:

Nossa tese constante será que a identidade no sentido do ipse não


implica nenhuma asserção concernente a um pretenso núcleo não mutante da
personalidade. E isso se efetivamente a própria ipseidade trouxesse modalidades
próprias de identidade.40

Feita a análise conceitual da identidade-mesmidade, Ricoeur procura, nos termos


opostos, uma forma de permanência no tempo que se deixe ligar à questão quem? Como ir-
redutível a toda pergunta o quê? Uma forma de pergunta que seja uma resposta à pergunta:
“Quem sou eu?”

39
RICOEUR, 1991, p. 140-142.
40
RICOEUR, 1991, p. 13.

A narratividade em busca da identidade no livro X das Confissões • Suelma de Souza Moraes


230
A reflexão segue em direção ao caráter como uma das formas descritivas e emblemá-
ticas. O caráter pode ser entendido como “o quê?” “do quem?”, como um conjunto de dispo-
sições adquiridas que permite identificar e reidentificar um indivíduo humano como sendo
o mesmo. A sua história revela o processo de sedimentação de alguns hábitos; as disposições
adquiridas ligam-se também às “identificações com” alguma coisa ou alguém. A identidade se
constrói à medida que há uma identificação com seus valores, mitos etc. Essa dimensão pres-
supõe a alteridade. A figura emblemática da ipseidade se transforma na “identificação com”,
que pressupõe um momento de avaliação, julgamento pelo qual se constroem valores.
Nesse sentido, coexistem mesmidade e ipseidade, e a pergunta “quem sou eu?” deixa-se
substituir pela pergunta “o que sou?”. É essa polaridade que sugere a intervenção da identidade
narrativa na constituição conceitual da identidade pessoal, à moda de uma mediação especí-
fica entre o polo de caráter, em que idem e ipse tendem a coincidir. É o polo da manutenção
de si, em que ipseidade liberta-se da mesmidade. A ipseidade revela uma forma dinâmica de
permanência no tempo, resultante de um comprometimento ético, no qual o indivíduo atesta
a si as suas ações, seus valores e seus princípios. A ipseidade refere-se ao “quem” singular di-
ferente. Isso se faz por processo de interiorização do si que se identifica com um caráter, mas
é mais do que um caráter imutável no tempo. Trata-se de um “quem” ou o si capaz de refletir,
se construir e de vir a ser. A teoria narrativa é solicitada a entrar e confrontar as interrogações
sobre a identidade pessoal, a fim de explorar a fronteira comum com a teoria da ética.41 A te-
oria narrativa procura a identidade ao longo da história de uma vida, nas conexões que ligam
os acontecimentos decorrentes no tempo e que fazem da história uma unidade de sentido. A
identidade narrativa é equivalente à identidade de um personagem, que se constrói em articu-
lação com a unidade da história narrada.
Ao narrador é dada a possibilidade do que conta como ação, como delimita o início e
o fim de suas ações, de decidir as responsabilidades, de desenvolver uma unidade de sentido.
Portanto, o encadeamento da narrativa perde sua neutralidade impessoal. Ele autor, narrador,
personagem participa simultaneamente na sua retrospectiva e construção da unidade da iden-
tidade dos personagens. O narrador não é mais uma entidade distinta de sua história narrada.
É a identidade da história que faz a identidade do personagem.
Da correlação entre autor e personagem da narrativa, resulta uma dialética interna ao
personagem, que é o exato corolário da dialética de concordância e discordância desenvolvida
pela intriga da ação42. De um lado, a identidade narrativa inclui uma dimensão ética fundamen-
tada nas decisões que os personagens carregam, e isso exige uma dimensão no campo prático,
para que a ação narrada seja equiparada à ação descrita; por outro lado, é necessário compreen-
der de que forma a narrativa pode servir de apoio à interrogação ética “quem sou eu?”

41
RICOEUR, 1991, p. 143-166.
42
RICOEUR, 1991, p. 175.

A narratividade em busca da identidade no livro X das Confissões • Suelma de Souza Moraes


231
A teoria narrativa propõe discutir e refletir sobre a complexidade dos encadeamentos
e desencadeamentos práticos no conjunto das ações, uma vez que a história de uma vida de-
senrola-se em duplo movimento de valores existenciais de ideais e valores com os quais nos
identificamos.
Neste trabalho, a memória é inserida à teoria narrativa como fundamentalmente refle-
xiva e dá-se aí, no campo da memória, a importância do livro X. É por meio da memória que
Agostinho faz todo o seu percurso de reflexão sobre “o que sou?”, “quem sou?”, em que busca a
conexão proposicional pela memória “de que modo sou”, a fim de revelar o enigma “não quem
fui, mas quem já sou e quem ainda sou”.
Quais são os aspectos a serem observados na narrativa das Confissões para o desenvol-
vimento da dialética entre o conhecimento de si e o conhecimento de Deus? De que modo
o idem e o ipse se conectam e se distinguem nas Confissões, a partir de uma aproximação da
narrativa?

A similitude

A similitude aponta para três termos fundamentais do conceito de identidade narra-


tiva: unidade, identidade numérica, que representa a mesma coisa, o mesmo; qualidade, que
representa a semelhança extrema e quantidade, da continuidade ininterrupta. Esse conceito
de similitude apresenta em sua base uma fragilidade em relação à permanência do tempo. O
conceito de identidade narrativa supõe que seja possível estabelecer uma distinção entre o ipse
e o idem. É certo que o ipse pode apresentar um núcleo mutante próprio de sua identidade,
visto que um não anularia o outro, e a permanência, ainda assim, continuaria a existir, ou seja,
a própria alteridade na constituição do si.
A similitude na narrativa aponta para o problema da unidade, ao constatar a tempo-
ralidade humana, de modo que a vontade no espírito percebe a sua dispersão em relação a
Deus e uma presença mais a si mesma, o que causa a falta de unidade. A narrativa apresenta o
seguinte problema: o conflito no próprio espírito, a distância no tempo, enquanto dispersão e
peregrinação, e a dissipação de si em relação à busca de sua unidade, o mesmo.
O problema pode ser observado na narrativa quando Agostinho afirma o conflito do
próprio espírito43. E atribui a esse conflito a ignorância, o desconhecimento de sua capacidade
de resistir às tentações, e isso traz a ruptura de sua comunhão com Deus, ou seja, de sua uni-
dade, colocando-o ao mesmo tempo num estado de permanência a si mesmo, que se trata da
presença a si mesmo. Aqui temos o problema-chave da narrativa: o próprio personagem é a
causa da dispersão. A ele se atribui a falta de unidade e peso em virtude das tentações. Logo, a
narrativa mostra que há uma separação de identidades.

43
Confissões X, v, 7.

A narratividade em busca da identidade no livro X das Confissões • Suelma de Souza Moraes


232
A narrativa aponta para o obstáculo entre Deus e o homem: as diferenças – Deus, al-
guém que não pode ser ultrajado, pois ele é o mesmo, o imutável; o homem, ao contrário,
observa em si mesmo a mutabilidade e fragilidade perante as tentações.
A narrativa procura evidenciar os opostos, mas ao mesmo tempo pede por uma rela-
ção de identificação “com” e “em direção à” luz divina. Apesar do obstáculo identificado na
narrativa, o texto é permeado por uma presença permanente de iluminação para o conhe-
cimento.

Confessarei, pois, o que sei de mim; confessarei também o que de mim


ignoro, porque o que sei de mim sei-o porque tu me iluminaste, e o que de mim
ignoro não o sei, enquanto as minhas trevas se não tornarem como o meio-dia
na tua presença.44

Diante dessas dificuldades, a prece deve ser o direcionamento para os questionamentos


e as respostas para conhecer a Deus tal como se é conhecido por Deus. Temos uma hipótese:
o desenvolvimento para direcionar o percurso do enigma se encontra dentro de um círculo
hermenêutico no livro X e isso só é possível pela observação da correlação entre a narrativa
e o conteúdo filosófico-teológico. O conceito sobre a similitude em Agostinho abre e fecha o
livro X com a questão ontológica sobre o princípio de participação de filiação, fundamentado
no amor, a caridade, que tem como peso a Cristologia. Desse modo, torna-se fundamental no
próximo item analisar como se movimenta a linguagem da narrativa sobre o conceito do ipse
-ipsum, idem, tanto para a criatura quanto para o Criador, que permeia o conceito de imagem
e semelhança nas Confissões.

A aproximação da identidade narrativa no livro X das Confissões

A constituição da identidade narrativa de Agostinho tem como lugar da intriga o livro


X das Confissões, em que o autor e personagem Agostinho tem a intencionalidade de revelar
quem é.

Mas com que fruto o querem saber? Acaso desejam congratular-se


comigo, ao ouvirem quanto me aproximo de ti, mercê da tua graça, e orar por
mim, ao ouvirem quanto me atraso, por causa do meu peso? Revelar-me-ei a tais
pessoas.45

A identidade narrativa do personagem está intimamente ligada à memória. A memória


é desenvolvida de tal modo que insere a questão profunda do ser humano, de como pensar
a sua existência. A existência do personagem é pensada de um lugar próprio, do “Aí” da
memória, em que Agostinho combina os conteúdos da memória de si mesma, a partir de
44
Confissões, X, v, 7.
45
Confissões, X, iv, 5.

A narratividade em busca da identidade no livro X das Confissões • Suelma de Souza Moraes


233
um deslocamento temporal e espacial. A memória faz o entrecruzamento entre a História e
a ficção que tem como base a Escritura. O ato de narrar não pode ser compreendido sem a
Escritura, pois ela é o fundamento da constituição de sua existência.
A história no texto narrativo compreendido passa pela recordação da memória de si
mesma de conteúdos próprios de seu passado-presente ontológico, que constitui o narrador
no presente do presente como filho do homem Adão e que o direciona para a memória
do futuro-presente, em que busca pela presença do esquecimento da imitação, ou seja, da
sua constituição como filho do homem Cristo. Esse desenvolvimento narrativo já marca a
própria condição de uma ficção, em que a realidade é desenvolvida na narrativa sob o olhar
da suspensão da relação com o mundo, mas que não o exclui da representação na realidade
dinâmica da qual parte enquanto condição humana.
Desse modo, a Escritura entra como mediação no processo narrativo ao se entrelaçar
a tessitura do texto das Confissões em permanente diálogo de respostas e interpelações sobre
quem é. O texto narrativo mostra que Agostinho tem uma intimidade com os textos da
Escritura e, quando elabora seu pensamento, ele interpreta a própria existência a partir
da relação entre a fé interpretativa das Escrituras e os conteúdos da compreensão de sua
história.

Questão enigmática da identidade

O modo de diálogo de discurso narrativo se interpõe em três planos: primeiro, do


“ego” (Agostinho) que fala para alguém “tu” (Deus); segundo, o “ego” (Agostinho) que dialoga
com a Escritura na segunda pessoa do plural, em que a narrativa assume o “nós” (É certo que
agora vemos como por um enigma); terceiro, em direção a “si” mesmo, que assume a terceira
pessoa no diálogo (Dirigi-me, então, a mim mesmo e a mim mesmo disse: “Tu quem és?”). E isso
configura uma dialética interna do personagem.
A questão enigmática sobre a identidade se abre quando a narrativa apresenta na prece
a inquietação existencial do personagem, o desejo profundo de conhecer a Deus tal como por
ele se é conhecido.
Como fonte de análise, a prece tem de ser investigada na sua interdiscursividade, no jogo
dialético que a estrutura narrativa das Confissões propõe. É importante investigar a primeira
frase da prece em correlação ao texto bíblico, que se interpõe em diálogo com a escrita.

A narratividade em busca da identidade no livro X das Confissões • Suelma de Souza Moraes


234
(1) Que “eu” te conheça, ó conhecedor de mim, que eu te conheça, tal
como sou conhecido por ti46.
Cognoscam te, cognitor meus, cognoscam sicut47 et cognitus sum;
(2) Agora vemos em espelho e de maneira confusa, mas, depois, veremos
face a face.48 Agora o meu conhecimento é limitado, mas, depois, conhecerei
como sou conhecido (1Cor 13,12)49.

Encadeamento da intriga

O encadeamento da intriga se desenvolve sob três perspectivas:


1) Conhecer a Deus tal como por ele se é conhecido:
“Que eu te conheça, ó conhecedor de mim, que eu te conheça tal como sou conhecido
por ti”. 50
2) Revelar quem ele é, para os curiosos da vida alheia, que desconsideram a verdade de
Deus, e para aqueles que compartilham da mesma fé e caridade:

Que gente curiosa de conhecer a vida alheia e que indolente em corrigir a


sua! Por que querem ouvir de mim o que sou e não querem ouvir de ti o que eles
são? (...) assim também eu me confesso a ti, Senhor, de tal modo que o ouçam
os homens, aos quais não posso provar se é verdade aquilo que confesso; mas
acreditam-me aqueles a quem a caridade abre os ouvidos51.
(...) Mas quem ainda agora sou, precisamente no momento das minhas
confissões, desejam sabê-lo muitos que me conhecem, e não me conhecem
aqueles que ouviram alguma coisa, vinda de mim ou a meu respeito, mas cujos
ouvidos não estão junto do meu coração, onde eu sou tudo aquilo que sou52.
Mas com que fruto o querem saber? Acaso desejam congratular-se
comigo, ao ouvirem quanto me atraso, por causa do meu peso? Revelar-me-ei a
tais pessoas. Com efeito, não é pequeno fruto, Senhor, meu Deus, que muito te
dêem graças por nossa causa, e que muitos te implorem por nós. Que um espírito
fraterno ame em mim o que ensinas a amar e que lamente em mim o que ensinas
a lamentar. Que faça isso um espírito fraterno, não um estranho, não o dos filhos
alheios, cuja boca falou vaidade e a sua destra é a destra da iniquidade, mas esse
espírito fraterno que, ao aprovar-me, se alegra por causa de mim e, ao desaprovar-
me, se entristece, porque, quer me aprove quer me desaprove, me tem amor.
Revelar-me-ei a tais pessoas: respirem os meus bens, suspirem os meus males53.

46
Confissões, X, i,1.
47
Sicut é uma preposição de comparação que pode vir a expressar semelhança, similitude.
48
Et certe videmus nunc per speculum in aenigmate, nondum facie ad faciem.
49
Bíblia de Jerusalém. Tradução do texto em lingua portuguesa diretamente dos originais. Tradução das introduções e
notas de La Sainte Bible, edição de 1973, publicada sob a direção da “École Biblique de Jerusalém”. São Paulo: Sociedade
Bíblica Católica Internacional e Paulus, 7ª. Impressão: julho 1995.
50
Confissões, X, i, 1.
51
Confissões, X, iii, 3.
52
Confissões, X, iii, 4.
53
Confissões, X, iv, 5.

A narratividade em busca da identidade no livro X das Confissões • Suelma de Souza Moraes


235
Este é o fruto das minhas confissões, não já como fui, mas como sou
(...) Revelarei, pois, a tais pessoas, a quem me mandas servir, não quem fui, mas
quem já sou e quem ainda sou, mas não me julgo a mim mesmo. E que assim seja
ouvido54.

3) Interrogar a si mesmo: “Tu quem és?”:55


“Dirigi-me, então, a mim mesmo e a mim mesmo disse: ‘Tu quem és?’56
O encadeamento da intriga passa a ser observado na dinâmica textual em que a prece
(Confissões X, i, 1) está conectada ao parágrafo (Confissões X, v, 7). Nesse contexto narrativo,
podemos observar que a prece foi introduzida ao texto literalmente no discurso narrativo,
agora o texto bíblico foi tecido como o nó (nondum) do enigma.

És tu, na realidade, Senhor, que me julgas, porque, embora nenhum


homem saiba o que é próprio do homem, a não ser o espírito do homem que está
nele (I Cor 2,11), todavia há alguma coisa que nem o próprio espírito do homem,
que nele está, conhece, mas tu, Senhor, que o fizeste, conheces (Tobias 3,16; 8,9;
João 21,15-16) todas as coisas. Eu, porém, ainda que na tua presença me despreze
e me considere terra e cinza, contudo sei de ti alguma coisa que de mim ignoro.
É certo que agora vemos como por um espelho, em enigma e ainda não face a face;
e por isso, enquanto peregrino longe de ti, estou mais presente a mim do que a ti e,
todavia, sei que tu de nenhum modo podes ser ultrajado; eu, porém, desconheço a
que tentações posso resistir e a quais não posso (...) Confessarei, pois, o que sei de
mim: confessarei também o que de mim ignoro, porque o que sei de mim sei-o
porque tu me iluminaste, e o que de mim ignoro não o sei, enquanto as minhas
trevas se não tornarem como o meio-dia na tua presença57.

O acontecimento é marcado pela aporia da memória, que abre com a tensão no próprio
espírito (ipse est) no agora (nunc) e no ainda não (nondum), com a dupla afirmação com
concordância discordância que inscreve o homem em dois polos de permanência: primeiro
encadeamento, em que o homem deveria conhecer a si mesmo, mas não é capaz de fazê-lo, e
simultaneamente há um reconhecimento da potência criadora de Deus em relação ao homem
daquilo que ele é capaz de dizer e fazer e daquilo que não é capaz de fazer diante da infinitude
que lhe é aberta no próprio espírito por Deus. Em relação com a dialética interna da narrativa,
o autor amplia o quadro de ação do personagem na construção narrativa. Pois existe alguma

54
Confissões, X, iv, 6.
55
Confissões, X, vi, 9.
56
Confissões, X, vi, 9.
57
«Tu enim, Domine, diiudicas me, quia etsi nemo scit hominum, quae sunt hominis nisi spiritus hominis, qui in ipso
est , tamen est aliquid hominis, quod nec ipse scit spiritus hominis, qui in ipso est, tu autem, Domine, scis eius omnia,
qui fecisti eum. Ego vero quamvis prae tuo conspectu me despiciam et aestimem me terram et cinerem , tamen aliquid
de te scio, quod de me nescio. Et certe videmus nunc per speculum in aenigmate, nondum facie ad faciem; et ideo,
quandiu peregrinor abs te , mihi sum praesentior quam tibi et tamen te novi nullo modo posse violari; ego vero quibus
temptationibus resistere valeam quibusve non valeam nescio. Et spes est, quia fidelis es, qui nos non sinis temptari
supra quam possumus ferre, sed facis cum temptatione etiam exitum, ut possimus sustinere. Confitear ergo quid de me
sciam, confitear et quid de me nesciam, quoniam et quod de me scio, te mihi lucente scio, et quod de me nescio, tandiu
nescio, donec fiant tenebrae meae sicut meridies in vultu tuo” (Confissões X, v, 7).

A narratividade em busca da identidade no livro X das Confissões • Suelma de Souza Moraes


236
coisa no próprio espírito que ele desconhece, mas é capaz de conhecer alguma coisa em Deus
que ignora de si mesmo.
Encadeamento central: o personagem é fortemente marcado pela insuficiência
ontológica no acontecimento do agora (nunc), existe um espelho em enigma, de um ainda não
(nondum), face a face. O personagem é um peregrino e, por isso, vê como problema a presença
a si mesmo, é a própria presença de si que o distancia de Deus: do face a face, do desejo de
aproximação e intentio de unidade de semelhança de identidade.
O personagem é marcado por dois traços da alma humana, distentio animi/distensão
da alma e intentio/unidade, que estão fortemente ligados ao movimento da alma, à memória, à
ação e ao tempo na narrativa. O fato de se ver distante de Deus, peregrino, é o tempo da distentio
animi, o tempo que o distende no pecado e que suscita a resistência, o leva ao afastamento de
si mesmo, ou seja, ao desconhecimento do domínio de si mesmo, pelo que não sabe a que
tentação pode ou não resistir. É na relação com a presença de Deus que o personagem pensa
sua existência.
A intentio e a distentio animi no livro X estão sob um tempo cosmológico e tempo
kerigmático, do agora (nunc) e do ainda não (nondum) do sentido da alma, no mundo com
Deus. É sob a perspectiva desse tempo que o personagem se coloca como a intriga de querer
revelar quem é.
Quais são os acontecimentos que desencadeiam a intriga? A inquietude existencial é o
primeiro desencadeamento. Ela se apresenta quando o homem não se conhece inteiramente,
e reconhece a própria incompreensão acerca de si mesmo. O ipse est (si-próprio) na criatura
reflete a própria falta de conhecimento de si mesmo, e procura pela razão de sua existência, da
força de sua natureza.
De um lado, o homem não se conhece inteiramente, pois nem o próprio espírito (ego
animus) que está no homem é capaz de conhecê-lo. Não sendo capaz de conhecer o que é
próprio de si, reconhece Deus como o único conhecedor de si, ao mesmo tempo em que
introduz uma confessio laudis, no reconhecimento (Domine... qui fecisti eum) de que Deus
o fez e, portanto, é o seu conhecedor, e não somente o seu conhecedor, mas também quem
o fez. Por outro lado, afirma conhecer alguma coisa de Deus ignorada de si mesmo.58 É pela
mediação do olhar do outro, “Deus”, da percepção da presença divina, que Agostinho volta o
olhar para si mesmo, ou seja, um outro se instala na reflexão sobre seu discurso, ao falar para
Deus sobre a ausência da coisa ignorada em si mesmo.

58
Tu enim, Domine, diiudicas me, quia etsi nemo scit hominum, quae sunt hominis nisi spiritus hominis, qui in ipso
est tamen est aliquid hominis, quod nec ipse scit spiritus hominis, qui in ipso est, tu autem, Domine, scis eius omnia,
qui fecisti eum. Ego vero quamvis prae tuo conspectu me despiciam et aestimem me terram et cinerem tamen aliquid
de te scio, quod de me nescio. Et certe videmus nunc per speculum in aenigmate, nondum facie ad faciem;et ideo,
quandiu peregrinor abs te, mihi sum praesentior quam tibi et tamen te novi nullo modo posse violari; ego vero quibus
temptationibus resistere valeam quibusve non valeam nescio (Confissões X, v. 7).

A narratividade em busca da identidade no livro X das Confissões • Suelma de Souza Moraes


237
Após ter a consciência do próprio desconhecimento e conhecimento de algo ausente,
mas presente no outro, coloca como enigma a visão por meio de um espelho no agora (nunc),
o presente enigmático, em que pode se ver somente por meio de si mesmo e não numa visão
direta de face a face com Deus, em que o outro pode ser visto diretamente; o que apresenta
como primeiro problema é o nondum, um ainda-não da face de Deus, que tem como obstáculo
o próprio espelho, que revela a si mesmo, à distância, a presença e a ausência a si mesmo e
em relação a Deus. A própria imagem se torna um problema a ser perseguido como causa e
solução do problema.

Considerações finais

Da identidade narrativa à constituição do si em Confissões X

A identidade narrativa dá sua contribuição para a constituição do si no livro X Confis-


sões, com a mediação que exerce na dialética entre a mesmidade e a ipseidade ao investigar
o si relatado. O quadro narrativo expõe a tensão existente entre “o que sou” e “quem sou”
diante da alteridade na busca do conhecimento de si e de Deus, em que o autor/personagem
traz para discussão o acontecimento no presente “já” e “agora” (“hic” e “nunc”, “não o que fui,
mas o que já sou e o que ainda sou”)59 de um diálogo interno com o “ainda-não” (“nondum”)
como entrelaçamentos que amarram a sua constituição no tempo: “É certo que agora vemos
como espelho, em enigma e ainda não face a face (1Cor 13,12) e, por isso, enquanto peregrino
longe de ti, estou mais presente a mim do que a ti”60 – o que implica uma relação entre o si, a
ação e o tempo em busca da constituição do si.
No desenvolvimento no quadro narrativo, a questão principal é saber se é possível per-
guntar sobre quem é o sujeito que se interroga, e se é pertinente a procura por sua unidade no
cogito existencial. Desse modo, se for possível procurar pela identidade do sujeito, queremos
investigar a dialética entre a mesmidade e a ipseidade sob dupla vertente da prática e da ética
no quadro narrativo do livro X das Confissões.
De acordo com Ricoeur, a identidade narrativa é a identidade de um personagem que
se constrói em articulação com a unidade temporal da história narrada. Por sua vez, a unidade
temporal resulta de uma síntese heterogênea de concordância discordante da qual os aconte-
cimentos são integrados no encadeamento da própria intriga.
O acontecimento narrativo é definido pela relação com a própria operação de configu-
ração: o narrador participa da estrutura instável de concordância, agencia os fatos, participa
da narrativa enquanto personagem ativo e perde toda a sua neutralidade no texto, porque

59
Confissões X, vi, 6.
60
Confissões X, v, 7.

A narratividade em busca da identidade no livro X das Confissões • Suelma de Souza Moraes


238
participa da própria intriga ao construir sua própria identidade. A concordância discordante
é a própria tensão da composição narrativa, característica da própria intriga: ele-personagem,
enquanto fonte de discordância, ele-narrador e personagem surgem como fonte de concor-
dância, quando faz avançar a história no resgate da intriga. Ele, o autor e personagem, é que
apresenta as potencialidades de desenvolvimento para a unidade da narrativa. O paradoxo da
intriga, que antes apontava para a própria queda, resgata o personagem e inverte o efeito de
contingência, dando-lhe salvação61.
Conforme Ricoeur, a configuração narrativa desenvolve uma tríade descritiva da ação
que implica um ponto de vista prescritivo: descrever, narrar, prescrever, e cada momento da
tríade implica relação específica entre a constituição da ação e a constituição do si.62 Como
pano de fundo, a literatura e a narrativa servem como estágio preparatório laboratorial à ética
e à moral, para analisar o texto em que são testados valores, avaliações e julgamentos. Assim,
temos uma retrospectiva em direção ao campo prático e uma prospectiva em direção ao cam-
po da ética.63
A trama das Confissões é representativa enquanto a ação constitui o si, que busca a fe-
licidade. A escrita constitui a narrativa sob a racionalidade narratológica, que deriva de uma
pré-compreensão da trama, entre intriga e personagem.64
Para um próximo artigo fica a tarefa de descrever a correlação entre história relatada e
o modo como o personagem assume nova dimensão no campo narrativo, ao articular a uni-
dade interna do personagem à própria intriga, quando traz sobre si a aguda reflexão de dados
psicológicos e metafísicos.

Referências bibliográficas

Bibliografia das obras de Santo Agostinho


Aurelius Augustinus,

_____. Confessioni. Confessionum libri I-XIII. Traduzione di Gioacchino Chiarini.


Fondazione Lorenzo Valla Arnoldo Mondadori Editore, 1993.

______. Confissões. Tradução Maria Luiza Jardim Amarante; revisão cotejada de acordo com
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61
RICOEUR, 1991, p. 169-170.
62
RICOEUR, 1991, p. 139.
63
RICOEUR, 1991, p. 167.
64
RICOEUR, 1991, p. 171.

A narratividade em busca da identidade no livro X das Confissões • Suelma de Souza Moraes


239
_____. Confissões. Tradução e notas de Arnaldo do Espírito Santo, João Beato e Maria Cristina
de Castro-Maia de Souza Pimentel, Introdução de Manuel Barbosa da Costa Freitas. Notas de
âmbito filosófico de Manuel Barbosa da Costa Freitas. Lisboa: Centro de Literatura e Cultura
Portuguesa e Brasileira Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2. ed. 2004.

Bibliografia de apoio

BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal; introdução e tradução do russo Paulo Bezerra;
prefácio à edição francesa Tzvetan Todorov, 4ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BOCHET, Isabelle. «Le Firmament de L’écriture». L’herméneutique augustinienne. Collec-


tion des Études augustiniennes, 172. Institut d’Études Augustiniennes, Paris, 2004.

BROWN, Peter Robert Lamont. Santo Agostinho uma biografia; tradução de Vera Ribeiro.
Rio de Janeiro: Record, 2005.
MADEC, G. Goulven Madec «In te supra me». Le sujet dans les Confessions de Saint Augustin. Re-
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MARION, Jean-Luc. Au lieu de soi – L’approche de Saint Augustin. 1e édition. Paris: Presses Univer-
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MOHRMANN, Christine. Études sur le latin des chrétiens – Tome I, Deuxième édition.
Storia e letteratura – Raccolta di studi e testi 65. Roma: Edizioni di storia e letteratura, 1961.

_____. Études sur le latin des chrétiens – Tome II, Latin chrétien et mediéval. Roma: Edizioni
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MOURANT, John A. Saint Augustine on memory. Augustinian The saint Augustine lecture
series. Institute Villanova University Press, 1980, p. 9-73.
RICOEUR, Paul. Interpretação e Ideologias; organização, tradução e apresentação de Hilton Japias-
su. Rio de Janeiro, F. Alves, 1990.

_____. O si mesmo como um outro; tradução Lucy Moreira Cesar. Campinas: Papirus, 1991.

_____. Tempo e narrativa – Tomo III; tradução Roberto Leal Ferreira; revisão técnica Maria
da Penha Villela-Petit. Campinas: Papirus, 1997.

_____. Teoria da interpretação – O discurso e o excesso de significação; tradução de Artur


Morão. Lisboa: Edições 70, 1996.

TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas; tradução Leyla Perrone-Moisés. São Paulo:


Perspectiva, 2006.

A narratividade em busca da identidade no livro X das Confissões • Suelma de Souza Moraes


240
Referência documento eletronico
Jean Kaempfer & Raphaël Micheli . Méthodes et problèmes – La temporalité narrative, 2005.
Section de Français. http://www.unige.ch/lettres/framo/enseignements/methodes/tnarrative/
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Jean Kaempfer & Filippo Zanghi. Méthode e problème. La voix narrative © 2003 Section
de Français – Université de Lausanne. http://www.unige.ch/lettres/framo/enseignments/
methodes/vnarrative/vnintegr acesso em: 27/11/2007.

Recebido em 30/09/ 2012


Aprovado para publicação em 15/12/2012

A narratividade em busca da identidade no livro X das Confissões • Suelma de Souza Moraes


241
A Viagem Fantástica de Rei Sebastião: De
Alcacer Quibir ao Terreiro de Mina

Taissa Tavernard de Luca1

RESUMO: O presente trabalho propõe refletir sobre uma parcela do


panteão da Mina do Pará, religião africana de maior relevância no Estado. Mais
especialmente enfoca uma categoria de entidade denominada “senhores de toalha”.
Trata-se de reis ou nobres europeus – em sua maioria portugueses - ligados a
história colonial brasileira que foram divinizados e inseridos no bojo de uma
religião negra. Dentre esses tantos personagens elege-se D. Sebastião - soberano
lusitano que morreu lutando contra os mouros na batalha de Alcacer Quibir -
na tentativa de mostrar como esse sujeito histórico migrou para o imaginário e
se transformou em mito. Para tanto, recupera-se traços de sua história de vida,
referências aos movimentos messiânicos que surgiram em torno da imagem do
monarca e relatos etnográficos dos mineiros paraenses, analisando-os de forma
estruturalista.

Palavras-Chaves: 1. Bricolage; 2. Mito; 3. Mitema; 4. Religião afro-


brasileira; 5. Tambor de Mina.

ABSTRACT: The present work proposes a reflection on a portion of the


pantheon of “Mina do Pará”, African religion of greater relevance in northern
Brazil. This article briefly traces historical and religious of D. Sabastião (Portuguese
king who died fighting the Moors in the battle of Alcacer Quibir), references
to messianic movements that emerged around the image of the monarch” and
ethnographic accounts of the miners in Para – analyzes under the structuralist
model.

Keyword: 1. Myth; 2. Bricolage, 3. Tambor de Mina; 4. Afro-Brazilian


religions.

1
Doutora em Antropologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e Professora Adjunta I do Programa de Pós-
Graduação em Ciências da Religião da Universidade do Estado do Pará (UEPA).

242
Introdução

É necessário que se esclareça a visão que algumas pessoas possuem sobre as religiões
afro-brasileiras, como uma forma de culto homogêneo. Falar em matriz africana é falar numa
diversidade de nomenclaturas. Terreiros2 de Candomblé3, Mina4, Umbanda5, Xangô6, Jurema7
povoam os centros urbanos brasileiros apresentando, ritmos, danças e deuses diferentes.
A religião que vamos abordar neste trabalho é especificamente a Mina, a mais antiga
praticada na Amazônia. Tipo de culto de matriz africana que, vindo do antigo Daomé (atual
Benim), se estabeleceu no Maranhão e de lá migrou para o Pará no período da economia
gomífera.
O que mais interessa mencionar nos limites deste artigo sobre essa religião é que seu
panteão é formado por diversas categorias de entidades (Voduns8, Caboclos9...) dentre as quais
destacamos os Nobres Gentis Nagôs ou Senhores de Toalha.
Recebem o nome de Gentis ou Senhores de Toalha os donos do poder, representados
pela nobreza européia, principalmente de países cristãos que de alguma forma possuem
relação com o processo de expansão marítima e com a colonização do Brasil. Personagens
hierarquicamente importantes, muitas vezes referidos como “os brancos”.
Entre eles destaca-se REI SEBASTIÃO, D. JOSÉ, D. MANUEL, D. LUÍS, D. JOÃO,
MARQUÊS DE POMBAL e outros. Pessoas reais que cruzaram os limites da vida e passaram
a ser adorados. Perceber todas essas peculiaridades enche-nos de questionamentos e leva-nos
a refletir. O que leva um indivíduo, historicamente explorado, adorar seu civilizador? Será
que a imagem construída sobre o deus possui alguma correspondência com os personagens
históricos? Por que divinizar um ser humano? Será que existe uma versão única do mito
construído sobre cada um desses personagens?
Infelizmente não poderemos responder a todas essas inquietações no espaço desta tão
breve apresentação, mas temos hipóteses. A principal delas é a de que a prática de adorar reis,
já realizada na África, teria sofrido um rearranjo. “Orixás”10 iorubanos foram, em vida, reis.
Um exemplo é Xangô11 que teria sido rei de Oyó.
2
Lugar onde são realizadas a maioria das cerimônias afro-brasileiras, de cunho público ou privado.
3
Chama-se de “Candomblé” ao culto de Nação “Iorubá” cuja características principais são a adoração aos “Orixás” e o
processo iniciático de 21 dias.
4
Ver referência abaixo.
5
Religião fundada no Brasil a partir de crenças e ritos oriundos do catolicismo, do espiritismo Kardecista e dos cultos
de matiz africana.
6
Denominação dada ao culto “iorubá” no Recife.
7
Religião afro-indígena do nordeste que cultua os mestres e faz uso de uma bebida litúrgica de mesmo nome.
8
Nome dado às entidades “Jejes” que na hierarquia da “Mina” corresponde ao “orixá” “nagô”.
9
Entidade hierarquicamente inferior aos “voduns”, que representa o índio, o negro ou o mestiço em geral.
10
Orixás são entidades iorubanas que representam as forças da natureza.
11
Orixá Iorubano, senhor dos raios e do trovão, sincretizado com o santo católico são Jerônimo.

A Viagem Fantástica de Rei Sebastião: De Alcacer Quibir ao Terreiro de Mina • Taissa Tavernard de Luca
243
Sérgio Ferretti lembra que os voduns também seguem o mesmo princípio. Ao falar da
família de Davince, em seu livro Querebetã de Zomadonu (1985) ele afirma ser uma família
real constituída por nobres, reis e príncipes. Entre os reis africanos que viraram entidades
temos “Dadarro” que reinou entre 1600 –1620 e “Sepazim”, a filha do rei Houegbadjá que
ficou no poder de 1645 a 1685 dentre outros. Uma vez separados do sistema político de
origem, afastados no tempo e no espaço de seus próprios personagens reais, os negros fizeram
rearranjos e instituíram símbolos europeus em suas práticas milenares.
Outra hipótese, que de certa forma ratifica a anterior, considera que o culto aos reis,
principalmente àqueles participam direta ou indiretamente do processo colonial brasileiro,
como uma forma de prestar reverência à ancestralidade, prática comum a todas as religiões
de matriz africana. Todavia o ancestral divinizado aqui não é propriamente o familiar, mas o
representante da nação. Esses chefes de Estado são em sua maioria portugueses membros de
duas dinastias: Avis e Bragança. Da dinastia de Avis, recupera-se Rei Sebastião, “O Desejado”,
o mais antigo a ser adorado e Dom Manuel “O Venturoso”. A dinastia de Bragança cede todos
os seus Joãos12 (“O Restaurador”, “O Magnânimo” e “O Clemente”), Dom José “O Reformador”
e Dom Pedro. Alguns momentos históricos são enfatizados no processo de escolha desses reis.
São eles: a luta em prol do cristianismo, a expansão marítima, a descoberta e ocupação do
Brasil, a elevação a Reino Unido de Portugal e Algarve e sua posterior independência.
Importante seria analisar pausadamente a trajetória mítica de todos esses personagens,
levantando o maior número possível de versões, analisando pausadamente cada uma
delas, buscando sempre as estruturas. Todavia essa seria uma empreitada muito longa
para desenvolver nos limites deste artigo. Sendo assim, trabalharemos com apenas um rei.
Escolhemos o mais famoso: Rei Sebastião13. Nosso interesse é analisar as inúmeras narrativas
sebastiânicas, construídas por diversos religiosos afro-brasileiros, à luz da teoria estruturalista
de Claude Lévi-Strauss.

1. Notícias Históricas sobre Rei Sebastião

Falar sobre a história de Rei Sebastião é, sem dúvida, uma atividade trabalhosa devido
à vasta bibliografia que se debruça sobre a vida desse rei cristão. Desde a sua morte, no século
XVI, até a atualidade, textos, oriundos da academia ou do cancioneiro popular, cruzaram fatos
históricos com o imaginário maravilhoso em versões que ora se aproximam, ora se distanciavam
do real (Hermann, 2003). Por vezes davam a rei Sebastião ares de herói ou o descreviam como
um personagem fraco e doente, motivo pelo qual não teria despertado interesse de casamento.
Há também aqueles que o classificam como um louco, desequilibrado, estourado.

12
Acreditamos que o deus Dom João seja construído a partir de características de cada um dos personagens históricos
cujos nomes são citados no texto.
13
As narrativas míticas sobre rei Sebastião são mais minuciosas e cheias de detalhes do que as de qualquer outro nobre.

A Viagem Fantástica de Rei Sebastião: De Alcacer Quibir ao Terreiro de Mina • Taissa Tavernard de Luca
244
Poderíamos rever essa historiografia sobre D. Sebastião, todavia só repetiríamos a
trajetória já tão bem percorrida por Jacqueline Hermann em seu livro “No Reino do Desejado”
(2003). Portanto, apenas nos basearemos nas suas narrativas com a finalidade de extrair dela
episódios da vida do rei que por ventura possam nos ajudar na análise do material mítico dos
mineiros14.
Dom Sebastião foi o décimo sexto rei de Portugal, nasceu em Lisboa em 20 de janeiro
de 1554. Filho póstumo do príncipe D. João III e de Dona Joana, filha do Imperador Carlos
V. Pertencente à dinastia de Avis, foi o único varão vivo de um conjunto de 10 filhos. Seu pai
morreu quando ele ainda estava no ventre. Foi chamado de “O Desejado”, uma vez que seu
nascimento teria sido profundamente esperado pelo povo português, temeroso em perder sua
soberania para Castela, após a morte de D. João. Sob sua responsabilidade foi depositada a
tarefa de retomar o ímpeto desbravador desta nação ibérica.
Por ser a esperança do reino português em garantir a nacionalidade, foi feito rei com
3 anos e sua regência foi disputada entre sua avó, Dona Catarina e seu Tio Avô o Cardeal
Henrique, ligado a Companhia de Jesus, durante toda a sua infância. Acabou ficando com
Dona Catarina, uma vez que a mesma forjara um testamento, supostamente deixado por D.
João, concedendo-lhe a tutela do neto.
Em função disso, D. Catarina da Áustria, que era tia de Felipe II da Espanha, permaneceu
na regência de 1557 à 1562 mas é preciso que se diga, de acordo com informações apresentadas
também por Hermann (2003), que a influência de D. Catarina sobre o rei menino, foi vista
com desconfiança por grande parte da corte portuguesa que a considerava uma legítima
representante dos interesses Castelhanos junto ao trono Português. A bibliografia referida
(Hermann, 2003) aponta uma forte divisão da nobreza entre aqueles que apoiavam D. Catarina
e os que preferiam que a regência tivesse ficado a cargo do cardeal D. Henrique, que disputou
com a tutora a influência sobre a educação de D. Sebastião, bem como a escolha de seus aios.
Como foi dito, por intermédio de D. Henrique, o rei foi educado. Além da influência
jesuítica, D. Sebastião recebeu forte treinamento militar de D. Aleixo de Meneses. Aos 14
anos foi declarado maior e assumiu definitivamente o trono português. Fez-se um rei
de características bélicas. Retomou as expedições para o norte da África que haviam sido
abandonadas pelo seu pai e antecessor. Dividia o seu tempo entre a caça, o exercício religioso
e a leitura, principalmente referente a história portuguesa.
Há autores que descreveram o rei como uma criança doente15. Aos onze anos contraíra
uma doença crônica que nenhum médico do reino português conseguiu identificar, mas que
logo fora atribuído às condições de frio intenso a que era submetido durante os treinamentos de
caça e militares, recheados com violentas atividades esportivas para fins de guerra. Os sintomas

14
Neste artigo usaremos o termo mineiro para nos referirmos aos praticantes da religião de Mina.
15
Ver levantamento bibliográfico realizado por Jacqueline Hermann (2003).

A Viagem Fantástica de Rei Sebastião: De Alcacer Quibir ao Terreiro de Mina • Taissa Tavernard de Luca
245
eram purgação, febres e eventuais desmaios. Doença que foi apontada por vários historiadores
como responsável pelo fracasso das diversas tentativas de negociação de matrimônio.
Outro motivo suscitado em explicação para esse fato seria a moral ilibada introjetada
pelos jesuítas no jovem rei que o fazia exaltar o ideal de castidade ascética. Consta que ele fugia
do amor por achá-lo um sentimento efeminado, mas como a corte insistia, tentou por duas
vezes estabelecer contrato de casamento.
Pela primeira vez negociou casamento com Margarida de Valois, irmã de Carlos IX. A
Espanha opôs-se e lhe ofereceu por Conjugue, Isabel I. Todavia, como acontecera uma mudança
política, os reis da Espanha desfizeram o contrato dando-a em casamento para Carlos IX.
A segunda vez aconteceu quando Rei Sebastião almejava conquistar apoio para dar
início à última cruzada, voltou a procurar Carlos IX propondo que se ele o apoiasse a luta
contra os turcos, aceitaria Margarida de Valois como esposa, abriria mão do dote. Sua proposta
foi recusada, pois Margarida já era noiva de Henrique de Navarra. Tudo indica que era um rei
de hábitos estranhos, durante as viagens que fazia pelas províncias mandava abrir o túmulo de
seus antepassados e extasiava-se diante daqueles que haviam sido guerreiros.
Decidiu organizar a última cruzada quando soube da vitória de Dom João da Áustria
na Batalha de Lepanto o que lhe causou muito reconhecimento entre os reinos cristãos.
Pretendeu lutar na índia. Propôs ajuda a Carlos IX na sangrenta luta contra os huguenotes que
resultou no massacre de São Bartolomeu. Pensou em organizar uma expedição para o oriente,
mas foi dissuadido em virtude de uma tempestade que caíra sobre o Tejo. Finalmente partiu
para África as escondidas em agosto de 1574, chegou a desaparecer o que deixou o reino em
pânico. Logo surgiu uma carta régia conferindo a regência do trono ao Cardeal D. Henrique.
As pessoas mais autorizadas lhe enviaram súplicas para que retornasse o que aconteceu. D.
Sebastião voltou, pois não encontrou ocasião de batalha nem em Ceuta, nem em Tanger.
Uma vez em Portugal procurou negociar com Felipe II aliança contra o Marrocos, porém
este soberano Espanhol não pensava, a princípio, em fazer uma cruzada. Foi convencido pelo
argumento de recuperação de territórios perdidos.
O Bispo de Algarve fez o rei esperar o melhor momento para o empreendimento; um
possível conflito político no Marrocos. D. Sebastião reuniu um numeroso e problemático
exército. Recrutou 9.000 soldados mercenários - que não possuíam comprometimento com
a nação - e um vasto corpo de nobres voluntários indisciplinados. Entregou o comando a
D. Diogo de Sousa que, segundo a historiografia, foi completamente desvairado. A fim de
arrumar dinheiro para a expedição, massacrou o povo com impostos. Levantou grandes levas
de dinheiro no exterior, providenciou a espada de D. Afonso Henrique e uma coroa de ouro a
ser colocada na cabeça quando se declarasse imperador do Marrocos e partiu, em 25 de junho,
com uma armada de 800 velas e um exército de 18.000 homens. Na África executou táticas de
guerra erradas. Para tomar Larache, um porto de mar, desembarcou em Tanger a 17 de julho e

A Viagem Fantástica de Rei Sebastião: De Alcacer Quibir ao Terreiro de Mina • Taissa Tavernard de Luca
246
seguiu por terra passando por Alcácer Quibir. Ao chegarem em Alcácer Quibir os soldados já
estavam completamente fadigados e os suprimentos de água e comida reduzidos. Na batalha
desastrosa de 4 de agosto, mais da metade do exército já tinha debandado. Acompanhou-se
apenas de uma porção de fidalgos que foram massacrados pelos marroquinos. Foi morto, mas
seu corpo nunca fora confirmado. Como não deixara descendentes, sua morte deu início a
um período difícil para seu país, um verdadeiro rito de passagem, por isso permaneceu tão
marcado na memória coletiva deste povo. Sem rei, o país passou a ser governado pela Espanha,
dando início a um período que a historiografia denominou de “União Ibérica”.

2. Da Vida ao Mito: Notícias sobre o Sebastianismo em Portugal e no Brasil

Subjugado, o povo português nunca se conformou e passou a resignificar o episódio da


morte do rei cristão. É Lucetti Valensi (1992) que nos mostra como o episódio da morte do
rei foi resignificado. Essa é, então, a porta de passagem do homem histórico ao personagem
mítico. Muito se falou, se previu, se duvidou do episódio da batalha e as notícias verídicas se
entrelaçaram ao imaginário, passando a ser descrito como um episódio extraordinário.
O fantástico prevaleceu ao longo das narrativas uma vez que os fatos feriam, humilhavam
o brio da nação. Questionava-se a vitória dos marroquinos, afirmava-se que ela era efêmera,
pois o rei ainda estava vivo e voltaria a aparecer para tirar seu povo do julgo espanhol e
exterminar os infiéis.
Pessoas começaram a ter visões envolvendo Alcácer Quibir, visões estas que ora
anunciavam a tragédia, ora tornavam a história mais tolerável. Santa Tereza D’ Ávila, conhecida
pelos inúmeros êxtases religiosos, teria recebido de seu esposo Jesus Cristo a revelação sobre
o destino dos combatentes. De acordo com Valensi: “Se representou o campo de batalha onde
humilhada a fé católica, triunfava a impiedade africana. E como se queixasse amorosamente a
seu divino esposo de permitir que os inimigos de seu nome prevalecessem contra os professores
do evangelho” (1992).
O cardeal Henrique, em seu quarto, no convento real de Alcobaça, no momento em
que rezava pelo sucesso do exército português viu o rosto do bispo de Coimbra banhado em
sangue. Outra visão conta que no momento da morte, São Sebastião teria limpado o sangue
dos portugueses, estabelecendo assim as primeiras analogias entre este santo e o rei.
A abadessa do mosteiro de Cós em Portugal teve a visão do campo coberto de corpos
ensanguentados e ao olhar para o céu uma multidão incontável de pessoas vestidas de
branco com palmas nas mãos repetindo: “Bem aventurados aqueles que morrem no Senhor”.
Compreendeu então que tudo estava perdido.
Falava-se de acontecimentos miraculosos, estátuas de São Sebastião que suavam e
choravam nas igrejas. Especulava-se na história de vida do rei fatos que, por ventura pudessem

A Viagem Fantástica de Rei Sebastião: De Alcacer Quibir ao Terreiro de Mina • Taissa Tavernard de Luca
247
ter servido de premunição. Comentava-se que a mãe de Sebastião, ainda grávida, teria visto
um esquadrão de mouros enfrentando os cristãos.
Luccetti Valensi, em seu livro “Fábulas da Memória” (1992), afirma que as visões
anunciaram a derrota portuguesa mesmo antes das primeiras notícias chegarem. Muito foi
falado sobre o assunto, portugueses buscavam explicações, diziam que os acontecimentos
teriam vindo como castigo de Deus para expiação das culpas, uma referência clara ao episódio
bíblico da destruição de Sodoma e Gomorra.
A Igreja tentou atenuar as perdas afirmando que todos os mortos do norte da África
seriam salvos. A população chegou a se revoltar contra os Jesuítas por terem criado o rei,
alimentando nele a religiosidade agressiva e o horror às mulheres. Esses teriam sido os dois
principais motivos da tragédia portuguesa. O primeiro teria conduzido a morte pela fé e o
segundo era culpado pela falta de herdeiros e consequente perda de autonomia.
Duvidava-se da identidade do corpo do rei que os mouros retornaram à pátria, uma
vez que o mesmo estava muito deteriorado e incapaz de ser reconhecido. Os mouros sabiam
que o corpo era de D. Sebastião, pois um membro do exército português o teria reconhecido.
A corte portuguesa questionava este reconhecimento alegando primeiramente que o soldado
talvez nem conhecesse seu rei e depois que fora induzido pela promessa de liberdade feita
pelos marroquinos.
Os sobreviventes não falavam sobre o assunto, tratava-se de uma memória recusada,
esquecida pois humilhava a pátria e causava sentimento de responsabilidade pela derrota.
Ainda incrédulo o povo português chorou sua sorte em funerais públicos – de corpo ausente -
feitos após a batalha, antes do corpo ser apresentado. O Cardeal Miguel dos Santos, confessor
de Sebastião acreditava que ele voltaria e apareceria num desses funerais.
O fato é que as notícias se espalharam, cruzaram as fronteiras. Cada nação tinha um
relato diferente. Portugal defendia a não morte e anunciava o retorno. A versão espanhola era
rica em detalhes sobre o assassinato e ao fazerem o destronavam simbolicamente, à medida
que afirmavam que ele fenecera como um indigente não reconhecido no meio dos soldados.
Os turcos, por sua vez, exaltavam a vitória e enfatizavam a derrota do cristianismo.
Como é possível perceber, o sebastianismo, fenômeno de espera ao retorno do rei, teve
início logo após o incidente de 4 de agosto16. A Imagem de Sebastião foi associada a de Moisés,
personagem bíblico que retornou para libertar os hebreus do cativeiro egípcio. Alguns se
baseavam nas profecias de Daniel que pregava a vinda de um reino que quebraria e aniquilaria
todos os outros reinos e existiria eternamente. Certas profecias faziam analogia com a imagem
de Jesus Cristo, pois o nascimento de Sebastião também teria sido anunciado não por um anjo,
mas por um cometa17.

16
Data da batalha de Alcácer Quibir e da consequente morte de rei Sebastião.
17
Ver Valensi, 1992.

A Viagem Fantástica de Rei Sebastião: De Alcacer Quibir ao Terreiro de Mina • Taissa Tavernard de Luca
248
Esperar o rei era uma forma de resistir aos acontecimentos presentes. Os portugueses
chegavam a contar a idade que o rei teria no momento do retorno. Criavam um mito para evitar
a orfandade. Os sebastianistas usavam a metáfora do mar. Enquanto o rei estava desaparecido
o país estava à deriva, o naufrágio seria evitado com seu retorno. No ano de 1813 apareceu um
homem de 28 anos afirmando ser a encarnação de Sebastião, enviada por Deus.
Havia momentos em que as crenças messiânicas se fortaleciam. Dois dos mais
importantes são a União Ibérica e a invasão francesa pelas tropas de Napoleão Bonaparte. O
povo associou Bonaparte à besta do apocalipse a que rei Sebastião viria destruir.
Trovas circulavam, uma iconografia rejuvenescida foi impressa e espalhada no meio
popular, a literatura portuguesa versava sobre o assunto. Dois painéis foram inaugurados nos
séc. XVII e XVIII contendo as razões pelas quais deve-se acreditar ou não no retorno do Rei.
Até no cancioneiro popular havia referência. Entre os poetas cuja obra ganhara
visibilidade no período medieval, não resta dúvida de que o mais famoso é o sapateiro Bandarra.
Gonçalo Anes de Bandarra, segundo Hermann (2003), nascera na cidade de Trancoso,
região da Beira, ponto de passagem entre o norte e o sul do país onde havia forte concentração
de Cristãos-Novos. Homem do povo, o poeta popular era descendente de Judeus, expulsos do
território espanhol pelos reis católicos de Aragão e Castela no ano de 1942 e absorvidos pelo
reino português durante o reinado de D. João II (Saraiva, 2001).
Conhecedor profundo da doutrina judaica, ele utilizou esse conhecimento nas trovas
escritas e por esse motivo foi denunciado e preso em 18 de fevereiro de 1541. Este personagem
nada teria de diferente dos tantos outros trovadores desse período se não houvesse, no material
produzido por ele, um forte apelo profético que anunciava a existência de D. Sebastião bem
antes de seu nascimento.
Bandarra descreveu o episódio do norte da África, o ímpeto guerreiro daquele que
ele chamava de sucessor de D. João III, suas características expansionistas, o seu apego ao
cristianismo e o afã em destruir os “infiéis”:
“Este tem Tal Nobreza
Qual nunca vi em rei
Este guarda bem a lei
Da justiça e da grandeza
Senhoreia a sua alteza
Todos os portos e viagens
Porque é rei de passagem
Do mar e sua riqueza” (Bandarra, apud Hermann, 2003, p. 65)

Em outra trova, Bandarra faz ainda referência à D. João III, pai de D. Sebastião, que
renunciara a disputa pelo território africano:

A Viagem Fantástica de Rei Sebastião: De Alcacer Quibir ao Terreiro de Mina • Taissa Tavernard de Luca
249
“As chagas do redentor
E salvador
São as armas do nosso rei
Porque guarda bem a lei
E assim a grei
Do mui alto criador
Nenhum rei ou imperador
Nem grão senhor
Nunca teve tal sinal
Como este por leal
E das gentes guardador
Das armas e do pendão
E o guão
Foram dados por vitória
Daquele alto rei da glória
Por memória
A um santo rei barão
Sucedeu a el rei João
Em possessão
O calvário por bandeira
Levar-lo-á por cimeira
Ampliará por carreira
De toda terra de cão” (Bandarra, apud Hermann, 2003, p. 69)

E preconizou o fim:

“Pelo que mostra a figura


Haverão a sepultura
Da amargura
Como brutos animais
Que se o texto bem olhais
E declarais
Com fendas serão feridos
Todos mortos confundidos
Nos abismos infernais” (Bandarra, apud Hermann, 2003, p. 69)

A Viagem Fantástica de Rei Sebastião: De Alcacer Quibir ao Terreiro de Mina • Taissa Tavernard de Luca
250
É clara a referência profética aos episódios que só aconteceram posteriormente. Talvez,
por isso, as trovas de Bandarra ganharam tanta popularidade em Portugal principalmente nos
momentos de crise da soberania nacional. O fato é que apesar de denunciado aos tribunais
do Santo Ofício, acusado de conselheiro dos Judeus18, de promover adivinhação – prática
duramente punida pelo tribunal – o sapateiro foi liberado dos autos de fé com a única pena de
não mais divulgar, compor trovas ou ler as escrituras sagradas.
Valensi (1992) divulga muitos outros textos. Um deles descrevia inclusive as marcas
corporais que este rei haveria de ter: “A mão direita menor que a esquerda, o braço esquerdo
mais curvo que o direito, sem contar o sinal secreto que só seria revelado no devido momento”
(Valensi, 243).
Outros documentos retornavam a idéia do rei desaparecido que conseguiu fugir da
batalha e passou a peregrinar pelo mundo em penitência, só voltará quando alguma catástrofe
grave se abater sobre Portugal. Conta que nesse momento o rei surgirá em cima de um cavalo,
saído das ondas do mar.
Mas, a nosso ver, o texto profético mais importante e que melhor anuncia o processo
de transformação desse personagem em entidade é aquele que afirma que rei Sebastião vive
retirado numa ilha encoberta que não figura em nenhum mapa, impossível de se localizar.
Lá ele viveria de maneira humilde, usando roupas maltrapilhas. Segundo relatos, sempre saía
dessa encantaria para salvar os navios portugueses de naufrágios.
Valensi (1992) resgata inscrições do século XVIII que localizam esse lugar às
proximidades da ilha da madeira, só visível em certas condições atmosféricas. Membros da
Igreja portuguesa a chamavam de Ilha das Sete Cidades. Sua população seria cristã e viveria
cercada de riquezas abundantes, de ouro e prata.
Um depoimento detalha:

A ilha tem um castelo munido de torre admirável, cercado de um


jardim cheio de flores. Sete homens saem dele falando uma língua próxima
ao português, mas difícil de entender. Estão vestidos como nazarenos, com
uma longa barba. São de alta estatura. Interrogam os náufragos e os fazem
penetrar numa cidade grande, embora pouco povoada, depois em um palácio
que parece encantado. Ali se encontra o rei ou o governador, que os interroga
sobre sua identidade e suas desventuras. Em seguida os conduz a uma sala onde
figuram dois quadros: um representando um exército vencido pelo inimigo e
o outro um exército vitorioso com abundância de cavalos. Os inimigos estão
vestidos de mauritanos (...). O rei os acompanha por toda parte, cercado de
três cavaleiros bem vestidos e dois leões (...), em momento algum a identidade
do rei é revelada, sabe-se apenas que ele tem dois filhos de pronome Afonso e
Antônio (...) (Valensi, 1992, p. 184 a 186)

18
Os judeus procuravam Bandarra com frequência para saber o significado de suas trovas, que frequentemente faziam
referências às escrituras sagradas desse povo.

A Viagem Fantástica de Rei Sebastião: De Alcacer Quibir ao Terreiro de Mina • Taissa Tavernard de Luca
251
Uma trova anuncia: “Terras no meio do mar/ que já foram descobertas/ mas para achar
tão incertas/ que ninguém poderá achar/ Tornando-as a procurar/ que tesouro aqui encerra”
(Valensi, 1992, p. 184).
A crença no sebastianismo migrou para os impérios coloniais portugueses. Têm-
se notícias de sebastianismo na África, na ilha da Madeira e principalmente no Brasil. As
primeiras referências ao monarca desaparecido estão nos autos dos tribunais da inquisição
que se instalara em Recife no ano de 1591. No século XVII, mais precisamente no ano de
1634, os sermões de padre Antônio Viera professados na Bahia mencionavam Sebastião “o
encoberto”.
Diversos movimentos messiânicos se formaram, seu nome figurava nos repentes
nordestinos: “D. Sebastião já chegou/ e traz muito regimento/ acabando com o crime/ e
fazendo casamentos” ou “Visita nos vem fazer/ nosso rei Sebastião / Coitado daquele pobre/
que vive na lei do cão” (Cunha, 1936, p. 172 e 207).
No início do século XIX (1816) o viajante Ferdinand Denis (Pereira de Queiróz, 1994)
afirmou ter encontrado inúmeros relatos sebastiânicos em conversas com comerciantes de
Minas Gerais e Rio de Janeiro. Não se tratava de um grupo coeso e organizado, mas tinham
em comum a crença de que Rei Sebastião voltaria carregado de riquezas a serem entregues aos
fiéis. Chegavam a apostar na data do retorno (Queiroz, 1994).
Muitas manifestações coletivas se formaram ao longo de todo o Brasil (Pereira de
Queiróz, 1994) especialmente no sertão do nordeste. Grupos de pessoas, geralmente miseráveis
que conheciam a lenda do rei e apegavam-se a ela em suas aspirações para mudança de vida. O
primeiro desses grupos de que se tem notícia teria se formado no ano de 1817 em Pernambuco:
um líder messiânico profetizava que rei Sebastião e seus exércitos sairiam de dentro de uma
pedra para resolver os problemas sociais da região, transformando pobres em ricos. Este líder
e seus seguidores foram trucidados em 1820 (Queiroz, 1994).
Dezesseis anos mais tarde, na comarca de Flores, estado de Pernambuco, outro
beato formou um movimento de conotações racistas. Pregava que rei Sebastião voltaria
para transformar os negros em brancos e os velhos em novos. Para que isso acontecesse os
interessados seriam sacrificados em cima de uma pedra sagrada para ressuscitarem renovados.
Em 1910, apareceu um novo pregador, desta vez num estado sulista: Santa Catarina.
Segundo ele, o rei viria acompanhado das hostes celestes para auxiliar os fiéis na luta contra a
república.
O caso messiânico mais famoso que já se teve notícia na história do Brasil é, justamente,
o de Antônio Conselheiro, no arraial de Canudos. Nascido em 13 de março de 1830 numa vila
simples do Ceará denominada Santo Antônio de Quexuramobim, chamava-se, na verdade,
Antônio Vicente Mendes Maciel. Trabalhava numa venda deixada de herança por seu pai
a qual abandonou, a fim de vagar pelo mundo como professor primário. Traído, separou-

A Viagem Fantástica de Rei Sebastião: De Alcacer Quibir ao Terreiro de Mina • Taissa Tavernard de Luca
252
se da esposa, teve seus bens penhorados por motivo de dívida e se tornou beato. Percorreu
vários Estados proferindo sermões e construindo igrejas. Congregou um número considerável
de camponeses pobres, formou um povoado e passou a pregar contra o emergente sistema
republicano. Por esse motivo foi atacado diversas vezes por tropas enviadas pelo governo
provincial que jamais conseguiu vencê-lo. Em 1897 foi derrotado com o auxílio de reforço
federal.
Segundo Euclides da Cunha (1936), Conselheiro teria invocado rei Sebastião em
diversos de seus sermões afirmando que o desaparecido surgiria para restaurar a monarquia,
conforme mostra o trecho abaixo:

Em verdade vos digo, quando as nações brigam com as nações, o Brasil


com o Brasil, a Inglaterra com a Inglaterra, a Prússia com a Prússia, das ondas
do mar D. Sebastião sairá com todo seu exército. Desde o princípio do mundo
se encantou com todo o seu exército e resistiu em guerra. E quando encantou-se
afincou a espada na pedra, ela foi até os copos e ele disse: Adeus mundo! Até mil
e tantos, a dois mil não chegarás! Neste dia, quando sair com seus exércitos, tira
todos no fio da espada deste papel da República. O fim desta guerra acabará na
Santa casa de Roma e o sangue há de ir até a Junta Grossa (Cunha, 1936, p. 141).

3. Rei Sebastião: um Nobre da Mina Paraense

Além de sua longa viagem pelo imaginário brasileiro, cruzando Estados do sul – como
Santa Catarina – e nordeste – como Pernambuco e Bahia – Rei Sebastião também visitou
o norte do país, mais especificamente às casas de culto de uma religião de matriz africana
denominada Mina.
Conforme afirma Michelhe Perrot em seu texto “Imaginário social do Século XIX”
(Perrot apud Le Goff, 1986, p. 94-107), o imaginário dos povos tem como fonte principal a
religião, a ciência e a história. É na história que os “mineiros” vão buscar inspiração para falar
sobre os senhores de toalha.
No entanto, antes de adentrarmos efetivamente nas narrativas que o povo-de-
santo apresenta sobre rei Sebastião e na análise das mesmas à luz da teoria levistraussiana,
acreditamos ser útil refletir um pouco acerca do conceito de memória. Este que foi amplamente
aplicado por ciências como a antropologia e a psicologia. Eclea Bosi, por exemplo, em seu
livro “Memória e Sociedade” (1995) apresenta algumas versões diferentes sobre a discussão.
Retomando Henri Bergson em seu livro “Mateire at Mémaire” (Bergson apud Bosi, 1995), no
qual fala especificamente sobre a fenomenologia da lembrança, da percepção, com a imagem
construída e mediada pelo corpo. Para este autor toda imagem percorre no cérebro, partindo de
um esquema imagem - cérebro - ação. A percepção seria um intervalo entre a ação e as reações
do organismo: um vazio que se povoa de imagens. O autor faz distinção entre percepção atual

A Viagem Fantástica de Rei Sebastião: De Alcacer Quibir ao Terreiro de Mina • Taissa Tavernard de Luca
253
e lembrança, entre perceber e lembrar. Lembrar é deixar vir a tona o que estava submerso
e a percepção é a captação imediata. Mas existe uma íntima ligação entre a percepção e a
lembrança porque é a percepção acumulada que vêm à tona e porque a lembrança interfere no
processo atual de representação.
Resumindo: para Bergson, a percepção seria o espaço raso e a memória é a reserva
crescente de lembranças que dispõe a totalidade adquirida. Distingue também entre duas
memórias: a memória hábito - que consiste na repetição dos gestos e palavras, uma espécie de
adestramento cultural – e a lembrança pura - que “traz à tona da consciência um momento
único, singular, não repetido e irreversível da vida (...) a imagem lembrança tem data certa:
refere-se a uma situação definida individualizada, ao passo que a memória hábito já se
incorporou ao hábito do dia-a-dia” (Bosi, 1995, p. 49).
Todavia, o autor que nos interessa de fato, é um pupilo desgarrado de Bergson: Maurice
Halbwachs. Apesar de ter sido seu aluno ele rompe com o mestre e vai buscar “abrigo” na
Escola Sociológica Francesa. Em sua vasta bibliografia escreve “A Memória Coletiva” (1990).
Ao contrário do antecessor, não está preocupado com o aspecto corporal da memória: sua
ênfase é na análise social.
Como um bom adepto de Émile Durkhreim, para Halbwachs a memória é, antes de
tudo, um fato social. Como lembra Éclea Bosi: “o social altera a percepção, a consciência
e a memória” (1995, p. 53). Também percebe-se claramente em sua obra o predomínio da
memória social sobre a individual.
A lembrança não fica restrita à pessoa , está amarrada à memória do grupo. Existem
sempre aspectos comuns, pontos de encontros: são os quadros sociais da memória. Outro
aspecto interessante da teoria halbwacheana é a ausência de uma memória pura, congelada, pois
lembrar não é de modo algum reviver: é reconstruir, é fazer escolhas, é esquecer, é selecionar,
é emprestar detalhes das narrativas de terceiros. A memória é acima de tudo um fenômeno do
presente, um olhar do presente sobre o passado. Nem o sonho, para este autor, estaria livre da
influência da memória. É uma releitura e não uma revivência. O que se lembra é condicionado
pelo interesse que o sujeito têm no momento da narrativa. Uma mesma história pode ser
contada de forma diferente em diferentes fases da vida.
Michael Pollak (1989), falando sobre a obra de Halbwachs afirma que este autor,
seguindo a abordagem de Durkheim, trata a memória como algo quase institucional. Não no
sentido de dominação, nem como violência simbólica, mas como algo que reforça a coesão
social. Não vê a memória como algo imposto, mas coletivo, que estimula a adesão afetiva do
grupo, formando uma “comunidade afetiva”.
Em resumo, pensamos memória como uma construção feita a partir de uma seleção
de pessoas, acontecimentos, atos e lugares, efetuada pelo indivíduo e reconhecida pelo grupo.
Apesar de acreditarmos que o ato de rememorar é individual, cada qual rememora a partir de

A Viagem Fantástica de Rei Sebastião: De Alcacer Quibir ao Terreiro de Mina • Taissa Tavernard de Luca
254
suas experiências pessoais. Concordamos com Halbwachs (1990) quando diz que a memória
é um fenômeno eminentemente coletivo. Em meio às nuanças do próprio narrador existem
pontos imutáveis comuns à memória do grupo. Elementos que podemos perfeitamente
classificar como estruturais. A memória é coletiva, também porque depende de um estímulo
externo para vir à tona. Entretanto, nosso entendimento de estímulo externo vai além do
reconhecimento do grupo e perpassa a presença do investigador e seus questionamentos.
Os praticantes da Mina rememoram ao efetuarem ritos ensinados por seus antepassados,
ao dançarem de forma marcial em homenagem à rei Sebastião e ao lerem os escritos dos
historiadores. Rememoram e reinventam. A memória é contada a partir do presente, a história
é construída por reminiscências herdadas, por apropriação do que é aceito pelo grupo, por
leitura de trabalhos acadêmicos.
Mas porque falar em memória durante a confecção de um trabalho sobre mito?
Ousamos abordar esse conceito, pois julgamos que os relatos sebastiânicos são construídos a
partir de lembranças herdada pelos narradores.
São das histórias relatadas por seus antepassados, a experiência mediúnica e também os
livros de história, que os religiosos afro-paraenses tiram elementos para a construção simbólica.
Com eles constroem a imagem do deus que passa a ser adorado, resignificado cotidianamente
e repassado de geração para geração. Há ainda a necessidade de se mencionar a importância
de folguedos folclóricos que ritualizam episódios históricos como a luta de cristãos e mouros19
e das narrativas populares que afirmam a presença de moradas de Rei Sebastião – Rei Sabá –
na região do Salgado paraense. Ou seja, as referências à epopéia portuguesa estão presentes
em outras instâncias da vida dos paraenses.
A memória herdada é repassada há séculos e como o ato de rememorar implica
basicamente em reler e não reviver, cada religioso sabe fazê-lo de forma muito peculiar.
Trabalharemos com três narradores: O “historiador nativo” Pai Luís Tayandô, o radialista
Serginho de Oxossi e a “simplesmente religiosa” Mãe Yolanda. Em comum, todos possuem
a filiação religiosa; todos são mineiros, mas suas narrativas variam em cima de eixos
estruturais. Diferenciam-se em muitos aspectos, sendo o mais importante deles o acesso à
literatura histórica. Uma narrativa, a de Pai Tayandô, é mais rica e embebida de fato. Outra,
a de pai Serginho, condensa o fato e os relatos mágicos. Mãe Yolanda, por sua vez, conta a
história a partir de seu contato mediúnico com o rei. Apesar das variações elas são sujeitas
a uma abordagem estruturalista. Relatemos os Mitos para posteriormente encontrarmos os
invariantes.

19
A título de exemplo podemos citar a cavalhada, apresentada, todos os anos, no dia vinte e seis de dezembro, durante a
Marujada de Bragança.

A Viagem Fantástica de Rei Sebastião: De Alcacer Quibir ao Terreiro de Mina • Taissa Tavernard de Luca
255
4. Narrativa de Pai Tayandô: “O Historiador Nativo”

“O rei Sebastião, não só na Mina, ele tem duas visões: uma visão mística e uma visão
histórica. A História, todo mundo sabe, que Rei Sebastião foi um Rei de Portugal, muito novo.
Assumiu muito novo o reino. E foi criado sob a tutela católica apostólica romana. Ele quis
combater os sarracenos, os mouros no Marrocos. Começou a fazer uma campanha na Europa,
França, Espanha para que arranjasse soldados, condições para ir para África, combater os
sarracenos, os pagãos.
Nessa viagem, nessa caminhada dele, ele estava prometido, se eu não me engano, para a
filha do rei da Espanha, mas ele disse: - Não, isso é uma loucura! Vai pra tua guerra particular,
quando tu voltares a gente vê como é que vai ficar.
Ele partiu, foi pra lá com um bom exército e na batalha de Alcacer Quibir ele sucumbiu.
Não encontraram o corpo. Quer dizer que quando ele desapareceu era um jovem, e é a partir
deste momento que a parte mística conta que ele foi atingido por um feitiço feito pelos sarracenos
que levou ele daquele local para uma zona tridimensional que nós chamamos de encantaria, que
não tem tempo nem espaço. Nessa viagem de lá, ele ficou desorientado, não foi só ele, vieram
alguns soldados com ele. O que conta a tradição da minha casa é que ele veio bater na Bahia.
Lá ele procurou ver se era o reino dele, reino de Portucales e foi adentrando lá pelas terras da
Bahia, foi entrando no sertão, então ele chega onde hoje é o Piauí. A tradição conta que lá ele quis
criar o reino dele e se formou um portal lá que hoje é conhecido como Sete Cidade Encantadas.
Atribuiu-se que ele quis se estabelecer lá com a corte dele, só que ficou difícil por que lá ficou
muito visível. As pessoas chegavam lá e tinham facilidade de enxergar as entidades. Ficou um
portal como se fosse uma vitrine. Claro que a gente sabe que aqueles monumentos que tem por
lá tudinho, aquilo veio da pré-história, mas ele queria se estabelecer lá nas Sete Cidades.
Ele não achou bom e veio embora. Foi em vários lugares. Tem vários lugares aí no
sertão que dizem que rei Sebastião passou. Até que ele chegou em São Luís do Maranhão,
chegou na praia do Lençol. Lá ele se identificou com o local onde ele foi encantado, não com
o local de origem dele, Portugal. A identidade com o local onde se encantou. Era um deserto
no Marrocos, o lugar onde foi feito a batalha, era uma beira de deserto, tudo areia. E lá ele se
identificou, as dunas, tudo aquilo. Ele achou por bem estabelecer-se lá. Ele achou que era um
excelente lugar. Jamais ia fazer a casa dele sobre a terra, deixar algum portal na terra. Então
ele levantou a beira da praia e lá em baixo da praia do Lençol ele construiu o seu castelo e lá
formou a sua encantaria, uma cidade todinha ligada a rei Sebastião.
Conta-se também que houve alguns problemas lá e de lá ele veio fazer um porto
seguro na ilha da Madre Deus, aí em São João de Pirabas, na pedra do rei Sabá. Já fomos fazer
obrigações por lá. Lá ele deixou um monumento, como se fosse um guardião. Dizem que lá
tem uma passagem que leva pelo fundo, leva até a praia do Lençol.

A Viagem Fantástica de Rei Sebastião: De Alcacer Quibir ao Terreiro de Mina • Taissa Tavernard de Luca
256
A tradição conta que rei Sebastião tem muitos filhos. Nós sabemos que é mentira,
nenhum é filho de rei Sebastião. Jarina é filha de rei Sebastião, fulano é filho de rei Sebastião.
Não tem nenhum filho. Tudo são filhos de criação, tudo é adotado. Uns passaram um tempo
lá, como é o caso de Jarina, Mariana e Herundina também e outros ficaram, continuaram na
encantaria de Rei Sebastião.
A encantaria de rei Sebastião é como se fosse um Estado onde têm várias cidades
e várias vilas. É um complexo, aquela idéia de feudo. O central seria do rei Sebastião,
onde estaria o castelo dele e ao redor as vilas, dadas a pessoas de sua inteira confiança
pra governar certos setores, principalmente porque esses setores são vulneráveis aos olhos
profanos. É muito fácil alguém entrar dentro da encantaria nesse local. Então ele deu
aquela parte e alguém ficou tomando conta como sentinela. Essas pessoas serviam como
Guardiões. Era muita gente conhecida por nós e muita gente desconhecida. Pessoas que se
manifestam, pessoas que se manifestavam e não se manifestam mais e pessoas que nunca
se manifestaram.
Das conhecidas por nós temos o Barão de Goré, que aqui nós chamamos de
“Sebastiãozinho”, o Sebastião, nós temos a dona Aruaninha, que alguns chamam de Baruaninha.
Ela é filha do Barão de Goré. Uma série de entidades que nunca vieram para cá.
Tem alguns padres, porque quando ele foi pra lá, ele levou um grupo porque a ideia
dele é que ele ia vencer e implantar o cristianismo lá, no Marrocos. Ele levou uma corte, a
às vezes as pessoas ficavam meio perturbadas com isso e preferem atribuir isso ao folclore.
Algumas pessoas vêem como dúvida que existia. Existe na encantaria, artesãos, essas coisas
todas. Acreditam que não podem. Porquê? Se ele foi encantado com toda sua corte, o cortejo
dele também foi com ele.
Algumas pessoas são importantes como padres. Existe um padre que é da linha de
rei Sebastião, chamado de Clóvis, talvez tenha até outra descendência porque não é tradição
portuguesa esse nome Clóvis. Mas esse padre Clóvis já tem diversas vezes interferido, diversas
vezes organizado o culto somente a rei Sebastião. Você sabe que o sebastianismo não é um
privilégio brasileiro. É um privilégio português, tanto que em diversas partes do mundo se
implantou isso (...).
Ficou tão forte o sebastianismo que veio implantar a questão de canudos e você sabe
que lá a monarquia têm, tudo a ver. A volta do rei Sebastião veio implantar o messianismo
nessas partes.
O Clóvis era da linha de frente porque ele tinha aquele fanatismo que antes dos
sarracenos morrerem ele tinha que beijar a cruz. Aquela história que a gente diz hoje “fulano
está entre a cruz e a espada”. Esse é um simbolismo que quer dizer: ou fulano se converte ou
então morre. O camarada estava para morrer, então ele fazia questão de salvar aquela alma que
aquela pessoa beijasse a cruz.

A Viagem Fantástica de Rei Sebastião: De Alcacer Quibir ao Terreiro de Mina • Taissa Tavernard de Luca
257
Isso precisa uma pesquisa muito grande! Eles viram uma muralha de areia, como se
fosse assim um turbilhão de areia e quando chegou próximo dele eles viram que aquilo rodeou-
os como se fosse um anel de areia. Depois desse anel se formar, lá dentro eles viram uma luz
muito forte que cegaram eles.
Tudo isso na batalha. No momento em que houve aquela luz, tudinho, eles dormiram.
Eles não sabem quanto tempo eles dormiram. Nós acreditamos que o culto deles se estabeleceu
muito rápido e que os primeiros portugueses que chegaram aqui já traziam algumas
informações, não nesse sentido de encantaria, mas no sentido de que ele voltaria para resgatar.
Isso se deu muito naquele período em que Portugal pertenceu a Espanha. Foram 40
anos, se eu não me engano. Ficou muito forte a restauração do reino português, de Portugal e
a espera do rei Sebastião que podia fazer isso. É uma crença popular. Não era visto pelos altos,
pela corte, pelos sábios, não tinha essa força. Mas a população, o povo tinha essa idéia tão forte
que enraizou no Brasil e aqui teve uma força muito grande que deu ênfase para o culto de rei
Sebastião.
Na minha idéia ele é o segundo grande vodunso. O primeiro é D. Luís porque D.
Luís é o dono da ilha de São Luís. Então ele está em primeiro lugar, mas rei sebastião é um
vodunso muito cultuado porque ele faz parte do nagô gentil onde se cultuam não só os reis,
mas príncipes e outras entidades que passaram para esse encante.
Bem, então ele se estabeleceu lá, algumas pessoas comentam que, devido ter um
movimento muito grande ultimamente, na praia do Lençol, ele tinha mudado pra ilha da
frente. Parece que quando ele teve aquele encontro com a pajelança aqui (...).
Bem a história é a seguinte: fisicamente não podemos dizer (como é o reino de rei
Sebastião). Espiritualmente essa encantaria é uma réplica do palácio de Queluz. Isso foi uma
conversa muito grande com Barão de Goré (...). Eu conversando com o Barão de Goré, disse para
ele que estava fazendo um trabalho para cá pra casa sobre a espiritualidade e principalmente
sobre rei Sebastião e ele me informou que o que tem lá na encantaria é uma réplica do palácio
de Queluz (...).
A organização política e social de lá, continua com aquela situação da de Portugal. Há
um rei que manda em tudo e os vassalos, dentre eles, os condecorados. Então o rei é o centro
de tudo com a sua corte que é formada por aqueles que têm título. Os que têm título governam
as cidades, os que são mais abaixo, governam aldeias. É mais ou menos assim, a cidade está
mais ligada ao Castelo. Tem o palácio que é o centro, após o palácio tem as cidades, as vilas e
as aldeias. Os condecorados são vários, tem conde, tem barão. O barão de Goré, o Conde de
Arajipe. Dizem que ele chegou depois. Você sabe, rei Sebastião recebeu o rei da Turquia e a
corte dele até que ele se estabelecesse na encantaria dele.
A encantaria de Rei Sebastião é como se fosse uma espécie de hospedagem para todos
os nobres que se encantam. É o caso do rei da Turquia. Ele fugiu duma guerra em Jerusalém

A Viagem Fantástica de Rei Sebastião: De Alcacer Quibir ao Terreiro de Mina • Taissa Tavernard de Luca
258
juntamente com suas três filhas: Herundina, Jarina e Mariana. Cruzaram o estreito de Gibraltar.
Além do estreito de Giblatar eles iam fazer um bombordo para ir paras as terras da Mauritânia.
Só que eles nunca chegaram lá.
Eles entraram num caminho mais à frente e entraram numa zona tridimensional que
nós chamamos de encantaria. Isso devia ser 1090 mais ou menos. Eles passaram pelo portal
e dormiram, foram acordar no início de 1500. Eles entraram ali na foz do Amazonas. Se
depararam com a pororoca fazendo aquela onda todinha e pararam a canoa num lugar onde
acontecia uma festa (...). A ilha de Parintins, onde tinha o Boi –Bumbá. Foram recebidos
por Caboclo Velho que recebe todo mundo na encantaria. Foi esta entidade que disse que
eles não iam voltar mais. Eles tiveram um impacto muito grande. Depois eles tomaram
conhecimento da condição, esses turcos largaram suas roupas e passaram por um processo de
“ajuremamento”20. Receberam nomes indígenas, renunciaram o nome de turco. É o caso do
Tabajara e do Ubirajara que eram filhos do rei da Turquia (...). Muitos juremeiros pegaram as
roupas e vestiram de turco e se “aturcoaram”21. Foi o Caboco Velho que disse para eles dum
homem que passou por lá, vestindo assim, assim... Eles foram atrás dele. Voltaram pelo Rio
Amazonas e chegaram na encantaria do rei cristão. O turco se assustou, pois D. Sebastião
se apresentou a ele armado com um enorme escudo e a cruz de Cristo bem grande, aqueles
cavaleiros tudinho: – “Nós Caímos numa cilada”. Ele quis iniciar a guerras e ordenou: - “Não,
acabou a guerra, aqui é uma encantaria”.
O rei da Turquia ficou hospedado por lá algum tempo, mas não se acostumou.
Conversou com ele (com Rei Sebastião), deixou suas filhas lá com ele e foi montar sua própria
encantaria na ilha de Algodoal. Outro hóspede de rei Sebastião é rei Camutá de Holanda, que
era corsário holandês. O navio dele afundou na costa do Maranhão, próximo a São Luís. Como
não conseguiu formar sua própria encantaria, tornou-se um agregado.
Eu perguntei também porque rei Sebastião ficou entrosado nessa encantaria e se
manifestando, porque ele não ficou só como rei mesmo, lá na encantaria sendo tratado pelos
vassalos dele. Ele disse que tudo começou com três entidades ligadas a ele. Sebastiãozinho,
Aruaninha e, me esqueço o nome da outra entidade. Elas entraram numa sala, lá na encantaria
de rei Sebastião, entraram numa sala, quando abriram essa sala elas se transportaram para o
mundo visível e quando eles observaram eles, estavam num salão de pajelança lá em São Luís
do maranhão. Ai eles perceberam que eles poderiam estar se comunicando fisicamente com a
terra (...).

20
Ou seja se transformaram em índios.
21
Transformaram-se em turcos.

A Viagem Fantástica de Rei Sebastião: De Alcacer Quibir ao Terreiro de Mina • Taissa Tavernard de Luca
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Quando eles se manifestaram pela primeira vez eles cantaram:

Rei, rei, rei Sebastião


Rei, rei, rei Sebastião
Quem desencantar Lençol
Põe abaixo o Maranhão!

As pessoas correram e colocaram um toalha vermelha, uma pana na costa dele. Daí
porque, até um certo tempo, rei Sebastião, quando se manifestava, colocava uma capa vermelha.
Não sei se é o simbolismo da guerra. Pra mim o vermelho está muito ligado a imagem de São
Sebastião que é muito confundido com o rei Sebastião.
O engraçado que rei Sebastião quando começou a se manifestar ele alterou a idade dele
para que ele tivesse respeito de patriarca. Ele veio como aquele jovem que se encantou. Então
ele veio como se fosse um patriarca. Ele é um patriarca, ele veio com uma idade avançada.
Então você não vê rei Sebastião se manifestar em ninguém como jovem. Você o vê como
um velho quebrado, já assim curvo, mostrando toda a antiguidade dele, principalmente a
antiguidade que ele tem (...). Ele também vem como touro, a pessoa que recebe se manifesta
como um touro, todinho.
Não é dizer que ele envelheceu na encantaria, porque as entidades podem vir como
novo e como velho, porque a entidade não tem tempo nem espaço. Nós sabemos que ele se
encantou bem jovem e que na corte dele tem entidades muito mais antigas, mas ele se tornou
um vodunso tão importante que foi atribuído a categoria de Xapanã, até devido a ligação
grande com são Sebastião. São Sebastião é contra a peste, a guerra, a fome, então ele ficou
ligado à Xapanã.
Xapanã faz uma guerra muito grande, ele combate uma das piores pragas que existe
no mundo que é a doença. (...) Ele conta pra gente que ele absorveu, ele sofreu isso, Xapanã
é um vodum doente. A Família de Acossi, quase todinha, quando se manifesta, se manifesta
deitado, cai no chão, é como se tivesse um ataque epilético (...). É a força de Acossi, é uma
divindade, é um rei terrível, temido não pela sua riqueza mas pelo seu poder. Porque Xapanã
é um rei pobre, é da família dos reis pobres, com grande poder espiritual, mas sem riqueza.
Ele ficou ligado a rei Sebastião e a são Sebastião, aquela situação toda de guerra, peste
e fome, né? Ele ficou ligado. A família de Acossi, algumas pessoas festejam no dia de São
Sebastião. Depois, quando houve a grande praga de hanseníase no Maranhão, aí foi colocada
a ligação com Lázaro (...). (Pra Rei Sebastião), se dá as comidas de Xapanã, na frente. Frutas,
principalmente de origem européia, algumas adaptadas como a maçã, uva, pêra, azeitona,
vários tipos. Aqui em casa eu dou salada de bacalhau. Muita coisa ligada a peixe. Geralmente
nós não damos carne vermelha (...). O Tabu dos filhos de rei Sebastião é a carne vermelha. Não

A Viagem Fantástica de Rei Sebastião: De Alcacer Quibir ao Terreiro de Mina • Taissa Tavernard de Luca
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deveria comer carne vermelha mas, como é costume aqui no Brasil, come. Eu acredito, é uma
suposição, porque houve muito sangue, muita morte na guerra (...). O Sacrifício é o galo, né?
(...)”

5. Narrativa de Pai Serginho: O Radialista

“Rei Sebastião é um nobre nagô de categoria. Família dos gentis ou nobres gentis nagôs:
o povo de toalha. Surgiram no começo do século XX na casa de Nagô que, posteriormente,
foi fundada por duas negras: Joana e Josefa. Os nobres teriam se encantado nos acidentes
geográficos, oceanos e compõem religiões de corte parecida com as cortes terrenas de onde
vêm os reis, as rainhas, os príncipes, as princesas, os nobres. O chefe de todos os nobres seria
D. Manuel, sincretizado com um Oxalá, chefe de todos eles. É encantado no fundo da praia de
Calhau no Maranhão.
O segundo maior é rei Sebastião, encantado na praia do Lençol, atravessando o Boqueirão
até o porto de Itaqui. Depois vem D. Luís o dono da ilha de São Luís, encantado na ponta da
Areia. Rei Sebastião foi encantado na Batalha de Acer Quibir aos 24 anos, desapareceu em
Batalha no norte da África e veio parar no Maranhão e ficou por lá com sua encantaria de onde
ele desceu para o Pará, pelo Cururupu e aqui sua encantaria está na praia do Atalaia, em São
João de Pirabas e em Marudá, na praia da Princesa que é da sua filha, Jarina. Rei Sebastião teve
seu navio desaparecido nas águas durante a batalha de Alcer Quibir, veio parar no Maranhão
e de lá é que veio para o Pará.
Ele foi introduzido por Verequete, vodum que traz esse povo branco, ele é o senhor que
abre os caminhos. Tanto que quando se toca para esse povo de toalha, canta-se primeiro para
Verequete que ele que abre as portas para que o povo de toalha entre.
O vodum maior da minha casa é Rei Sebastião, mas D. Miguel é que passou a frente por
motivo particular, meu. Ele passou a reger a minha casa e meus fundamentos.
Essas entidades são forças, são energias, são vida. Elas são organizadas em famílias.
D. Sebastião tem a família dele embora em vida ele não teve filhos, mas a família dele se
construiu. Alguns têm a mulher e os filhos deles, outros não; têm a encantaria na qual vão se
agregando encantados que vão pertencendo a encantaria deles.
No caso de rei Sebastião, quem se agregou foi a Princesa Flora, Barão de Goré, a
própria Jarina se agregou com ele. A princesa Ina e muitos encantados foram se agregando a
rei Sebastião e construindo a grande família dos Lençóis. Príncipe de Oueiras, às vezes vem na
família de D. Luís, às vezes se agrega a Rei Sebastião. Barão de Goré é filho de D. Manuel, mas
vem pela família de rei Sebastião. Tem Ricardinho, rei do Mar, nobre da família dos Lençóis
que é encantado no Ribamar, Barão Anápoles, Família de Rei Sebastião. Duque Marquês de
Pombal é um nobre português, vivo, participou do tráfico de escravos. Ele é agregado, hóspede

A Viagem Fantástica de Rei Sebastião: De Alcacer Quibir ao Terreiro de Mina • Taissa Tavernard de Luca
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de Rei Sebastião. A Princesa Clara, família dos Lençóis, princesa Flora, Família dos Lençóis.
Barão de Goré, seu nome é seu Raimundo Casemiro, também é da família dos Lençóis.
O povo Nagô Gentil usa taça enrolada num pano. Eles têm um porte nobre, dançam
de chinela e toalha Richiliê. Ele não morreu, ele perdeu o corpo físico e se transformou. É o
encante, o encante se dá via um portal. Abre-se um portal , não tem como saber onde é. Nós
podemos ir à praia do Lençol, mas onde está o portal da encantaria? Ele cumpriu a missão
dele e entrou nesse portal. Lá tinha alguém que o recebeu e o preparou. Muitos não aceitaram.
Rei Sebastião não aceitou a encantaria dele. Há muitas histórias verdadeiras. Uma delas
conta que um navio, um navio de D. João, que vinha. Tava rufando o tambor, quando eles
viram aquele navio alumiado no porto de Itaqui. Quando viram tava todo mundo pulando na
água com encantado. Era boto, era marinheiro, era o próprio Rei Sebastião. Eles pularam n’
água e fizeram a festa. Era tambor, bebiam o que tinham que beber, brincavam, trabalhavam.
Dava aquele sinal. O navio ia embora.
Tem outra história. O pessoal conta que um navio aportou nas ilhargas de lá (São Luís),
fizeram o que tinha que fazer. Quando chegou na hora de ir embora, subir a âncora e vir
embora, puxa, puxa, puxa e nada. Já era de tardinha.
Aí mandaram um homem, um mergulhador descer e ver o que estava acontecendo.
Quando ele viu, aquele homem sentado numa pedra com o pé em cima da âncora. Ele disse:
“Eu sou rei Sebastião, dono dessa encantaria”. Mostrou o reinado dele, um túnel de ouro e
aquele reinado todinho.
Eu lhe dou metade do meu reinado se você me desencantar. Você vai fazer o seguinte:
meia noite você vai até o mais alto morro com uma vara afiada. Você enfia na minha cabeça
até espirrar aquele sangue e você cruza a palma na minha cabeça.
O rapaz fez. O rapaz subiu para o navio, disse que não dava para enxergar o que era
porque estava muito escuro, aconselhou que esperasse amanhecer para ver o que estava
acontecendo. Ele queria era ganhar tempo. A noite ele foi pro lado da baia, trouxe aquela vara.
Quando chegou 11h30, pegou o bosque e subiu no alto do morro. Ele não viu que um rapaz
seguiu ele.
Quando ele chegou lá ele viu aquele touro negro se bufando com a cabeça para vir para
cima dele, ele disse: - “Agora eu vou te desencantar”. Trouxe no bolso o sal que era para cruzar.
Quando ele se preparou, o marinheiro que tinha seguido ele se agarra com ele e grita: - “Fulano,
vamo embora daqui”. E rolaram morro abaixo. O touro gritou lá de cima: - “Desgraçado, tu
redobrastes o meu encante”.
Sei contar que esse moço desapareceu. Isso é uma prova de que ele não aceitou a
encantaria dele aos 24 anos e até hoje ele busca se desencantar. Se ele desencantar, tudo vai
pro fundo. Ele não está satisfeito. Ele é um rei que pouco conversa, ele pouco bebe. Aqui na
minha casa ele vem velho e cansado e quase não fala. Já teve tempo dele vir como jovem, alegre

A Viagem Fantástica de Rei Sebastião: De Alcacer Quibir ao Terreiro de Mina • Taissa Tavernard de Luca
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e satisfeito e teve tempo dele vir como um touro e ninguém segura ele. Na casa de meu pai ele
veio uma vez assim, numa filha-de-santo, e derrubou cinco tambores.
Não é todo mundo que passa pelo portal da encantaria. “Muitos são os chamados, poucos
os escolhidos”. Eles nos estudam, os voduns, os orixás, estudam se nós temos competência
para pertencer ao fundamento deles.
Foi a própria natureza de Deus que leva esse povo para a encantaria. Eles foram para a
encantaria deles começar a fazer reflexão e começaram a ter a missão de amenizar o sofrimento
dos filhos na terra. Pagar os pecados deles e construir uma nova vida. Os voduns transmitem
coisas boas. Você não vê mais D. Sebastião dizendo que mata alguém. Ele vai se preocupar em
te ensinar um banho para você arrumar emprego, te livrar de um mau, te indicar o caminho
que você tem que seguir. Te ajudar a ter menos sofrimento na terra. Mas também ele te pune.
Minha mãe dizia que os encantados orientavam a gente e também se reuniam para punir.
A bandeira dele é a Cruz: é com a cruz que ele dirige a encantaria dele, a família dele. A
encantaria está organizada em família.
Tudo tem nas encantarias. Quando vamos rezar para os orixás, pedindo a orientação de
meu pai Oxossi, meu senhor maior: – “Meu pai Oxossi dai-me luz a todo o meu povo!”. Todo
o meu povo é tudo aquilo que está abaixo da hierarquia de Oxossi. Meus voduns, encantados,
princesas, meus exus. Todo meu povo grande e pequeno.
Nessa encantaria existem os grandes e os pequenos. Cada qual com a sua missão. É que
nem uma firma: o palácio do governo, do governador, tem os assessores, tem os faxineiros.
Existe na encantaria os patrões e os empregados, agora no terreiro mistura tudo. Você chega
numa casa e tem D. Miguel com caboclo bebendo. Os nobres tem que dançar de bengala, os
caboclos respeitam os nobres. Mas as famílias de nobres agregam os caboclos. Eu acho que isso
acontece pela solidão. Hoje em dia é raro o terreiro que separa hierarquia.
Eu festejo rei Sebastião no dia 20 de janeiro. Tem um sincretismo com Xapanã, ele
tem uma afinidade de adorar aquele santo. O rei adora o vodum. Depois da importância dos
Gentis Nagôs, vem a família da Bandeira, depois a família de baianos e Surrupiras que já tão
quase morrendo. É comum acontecer trocas: Dona Jarina é filha de João da Mata, mas foi
criada por Rei Sebastião”.

6. Narrativa de Mãe Yolanda: Profissão Mãe-de-Santo

“Deus u livre. Pra mim embaixo de Deus só rei Sebastião. Há muito tempo ele vem em
mim. Eu comecei, minha avó sempre fazendo remédio, ela não queria a missão porque eu era
muito criança. Eu enxergava um rapaz que eu acho que era ele, rei Sebastião. Enxergava ele
me chamando. Ele sempre se apresentava assim, era um homem alto, simpático e sempre com
uma roupa caque. A calça comprida, uma roupa parecendo de soldado, tinha um cordão de

A Viagem Fantástica de Rei Sebastião: De Alcacer Quibir ao Terreiro de Mina • Taissa Tavernard de Luca
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ouro muito bonito com um Cristo no peito. Dizem que ele era um guerreiro, lutou no país dos
negros, lutou contra o diabo.
Com 14 anos não teve mais jeito. Eu não queria, não aceitava, eu não queria, não aceitava
porque me metia medo. Depois que eu fui gostar, não teve jeito. Eu passei 23 anos penando, até
que eu vim pra cá. Meu pai-de-santo. Meu pai jogou e disse que quem se apresentou para mim
era Xapanã. Ele foi a primeira entidade que se apresentou pra mim, ele fazia era me chamar.
Ele é um vodum, um branco. Rei Sebastião é um vodum. Pra mim ele vem como vodum,
numa idade bem avançada. O pessoal diz que rei Sebastião é um, Xapanã é outro. É? Ele é um
vodum.
Segundo ele conta, ele que criou a madrinha Jarina, ele criou ela. Toya Jarina é filha dele
de criação. Os dois moram lá na praia de Salinas, lá é a morada deles, na pedra, lá. Uns dizem
que ela veio da Turquia, ela é irmã de dona Mariana, que ela foi criada na Turquia, mas quem
pegou ela foi rei Sebastião. Para mim ela é índia, ela não é turca porque a mãe dela deixou ela,
ela teve ela, a história que foi passada pra mim. A mãe dela quando teve ela não quis porque
ela era filha de gente fina, os pais não quiseram, aí ela teve, ela deixou na beira do rio. Ai foi
que pegaram ela.
Rei Sebastião criou ela, mas ela passou um tempo na Turquia. Ela passou um tempo lá,
depois ela voltou. Tem também o touro. Meu pai falou que o touro é Xapanã. Ele é um rapaz,
ele canta essa dota (doutrina). Ele vem em forma de touro, mas é um rapaz. Filho de Xapanã
têm ela, a princesa Jarina que é filha de criação dele. Tem essa dota:

“Olha o touro na banqueira


Na banqueira toreou
Olha o touro na banqueira
Na banqueira toreou”

Ele é encantado na forma de touro. Ele vem na forma de touro. Ele não canta, a gente é
que fica cantando pra ele. Quando ele arriava ele só procurava dar chifrada. Eu não sei se ele
tem mulher, não me foi passado. Quando é rei Sebastião que arreia ele canta, mas ele canta
muito lento, muito lento mesmo. Ele fuma charuto e toma café amargo. Ele sempre vem na
minha cabeça no dia 20 de janeiro, é muito difícil ele vir. Eu não faço corte (sacrifício) para rei
Sebastião. Só comida seca (sem sangue) que é o milho branco, o arroz branco com mel e coco.
Pelo que eu saiba ele teve vida, foi guerreiro, mas não vou te dizer que eu não sei, não me foi
passado. Tem outras casas ai que tem rei Sebastião, pode te falar.

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7. De Rei Sebastião à Lévi-Strauss: uma Análise Estrutural

Desenvolvendo uma teoria que desconstroi alguns autores anteriores que trabalharam
a temática do mito, Lévi-Strauss afirma, em seu texto denominado “A Ciência do Concreto”,
retirado do clássico “O Pensamento Selvagem” (1976b), que a “mentalidade primitiva” – o
autor preferiu denominar de pensamento selvagem - não pode ser lida como situada em
posição inferior dentro de uma escala evolutiva que teria por modelo a ciência moderna. É
errado afirmar que o nativo é inapto a abstrações, como bem classifica Frazer no “O Ramo de
Ouro” (1987).
Como um bom estruturalista que é, Lévi-Strauss considera o pensamento como uma
categoria única e totalmente apta para a reflexão desinteressada, impulsionada exclusivamente
pela necessidade inata que o ser humano tem de ordenar o mundo, de classificá-lo a partir da
observação pura. Lévi-Strauss afirma que as coisas são boas para pensar (1976b) destruindo,
assim, o argumento funcionalista de Malinowski (1984), segundo o qual o pensamento do
“homem primitivo” se desenvolve a partir das necessidades vitais.
O autor francês acaba com a dicotomia pensamento primitivo X pensamento civilizado.
Para ele essas são as duas formas de olhar o mundo que se fazem presentes em qualquer grupo
humano, nas sociedades ágrafas ou com escrita. A diferença que existe entre elas é que o
pensamento selvagem é, essencialmente, mítico enquanto o outro opera por conceitos.
Um dos avanços do “Pensamento Selvagem” (1976b) é considerar o mito como uma
forma de linguagem tão importante quanto a ciência. Chega a afirmar que o processo mental
que constrói o mito é o mesmo que podemos encontrar na base da ciência, uma vez que
parte do mesmo pressuposto: a capacidade de ordenar, de sistematizar o universo que está
no seu entorno. Este é o elemento estrutural fundante. Para Lévi-Strauss, seria incongruente
falar em pluralidade de mentalidades. A variação está na manifestação dessas duas formas de
pensamento. Neste sentido, o “pensamento selvagem” se apresenta como mito, uma forma
de conhecimento paralelo à ciência, definido pelo termo bricolage. É o próprio antropólogo
francês que define Bricolage como:

modus operandi da reflexão mito-poética. O bricouler é o que executa


o trabalho usando meios expedientes que denunciam a ausência de um plano
pré-concebido que se afastam dos processos e normas adotados pela técnica.
Caracteriza-se especialmente pelo fato de operar com materiais fragmentários já
elaborados, ao contrário, por exemplo, do engenheiro, que para dar execução ao
seu trabalho necessita de matéria prima (1976b: 37)

Não temos dúvidas de que as narrativas anteriormente apresentadas foram construídas


a partir dessa “técnica” ou falta de técnica. Nenhum dos religiosos abordados desenvolveram
projetos para analisar cientificamente a trajetória de rei Sebastião, como o faria um historiador,

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por exemplo. Não se preocupam com as balizas temporais ou tampouco selecionam uma
documentação de arquivo. O material usado por nossos interlocutores está muito mais baseado
em imagens e signos do que propriamente em conceitos. Também não há uma metodologia
fechada: há o casamento harmônico entre o real e o fantástico, num processo antropofágico
que assimila, que faz escolhas, construindo uma pluralidade de versões. Nossa proposta aqui
não é analisar as minúcias das especificidades e, sim, buscar os aspectos invariantes porque,
segundo o próprio Lévi-Strauss em seu livro “Mito e Significado” (1978), o mito varia dentro
de um sistema fechado. Onde está a estrutura destas bricolages?
É justamente o método estrutural, definido em a “Noção de Estrutura em Etnologia”
(1970), que Lévi-Strauss vai usar para analisar o mito, método este já aplicado a outros objetos
de estudo como as relações de parentesco e a alimentação. Mas, o que é estrutura para Lévi-
Strauss? A primeira coisa a ser destacada nesta definição é que não se trata de um sinônimo
de relação social. Para o autor, a humanidade é uma unidade psíquica e, enquanto tal, possui
formas semelhantes de organização que respeitam regras universais. A estrutura é esse modelo
que rege a vida do homem, a forma como ele se organiza. É preciso que se afirme que a estrutura
está no nível do inconsciente, cabe apenas ao antropólogo detectá-lo: o narrador não tem
acesso a ela. Falar em estrutura é acima de tudo falar em sincronia, pois são regras imutáveis
que se apresentam de forma variada nas relações sociais.
A análise levistraussiana do mito o desvincula da magia e da religião e o trata
essencialmente como um fenômeno de linguagem. Influência total da linguistica estrutural
saussiriana. O mito, para ele, é parte integrante da língua e se faz conhecer pela palavra. Lévi-
Strauss estabelece a relação entre langue x parole, informando que a langue pertence ao tempo
estrutural reversível, cíclico, sincrônico enquanto a parole pertence ao tempo irreversível,
estatístico, diacrônico.
Outro elemento importante em sua teoria é que ela contesta uma idéia muito antiga
entre os folcloristas clássicos que opõe mito puro x mito deturpado. Para ele, qualquer forma
de mito é valida uma vez que a sua essência não está na narração, mas na sintaxe, na sua
regra geral. Não procura os significados particulares, isolados, baseia sua análise naquilo que o
mito tem de universal. Compara-o a música. Uma vez que ambos são formados por unidades
constitutivas.
A Linguagem compõe-se de três níveis: os fonemas – menor parcela da linguística,
vazia de significados; morfemas - unidade que modifica o significado de uma palavra;
e semantemas – a relação dos significados: uma frase. Apenas os morfemas e semantemas
possuem significado.
A música, segundo Lévi-Strauss (1970; 1978) também possui unidades constitutivas. É
formada por dois níveis, quais sejam: a nota e a frase melódica. A nota equivaleria ao fonema
isolado que não possui sentido, enquanto a frase melódica equivaleria, em análise muito
simplificada, à frase gramatical.
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No mito, por sua vez, não há um nível equivalente ao fonema uma vez que absolutamente
tudo, dentro desta construção, significa. Sua menor unidade constitutiva é o mitema e possui,
portanto, significado. Todo mito possui os mitemas, que são os feixes de relações invariantes,
presentes em todas as narrativas de mesma natureza e conteúdo (Lévi-Strauss, 1978) ou
fenômeno observável. O mitema é o elemento estrutural do mito e o conteúdo é a forma como
a estrutura se apresenta, a exemplo das três narrativas acima expostas.
O antropólogo francês aqui trabalhado ainda alerta que é preciso saber ler o mito. Ele
não pode ser percorrido da mesma forma que um romance, um artigo de jornal, um texto
científico, uma linha depois da outra da direita para a esquerda. Quem o lê deve buscar os
elementos permanentes que não necessariamente estão dispostos na ordem crescente do
agrupamento dos números 1, 2,3, 4...
Além da leitura diacrônica que equivale à sequência narrativa e está no nível das linhas,
existe a estrutura sincrônica. Para encontrá-la, é preciso que se tenha mais de uma versão
narrativa. Compara-se as variações separando os mitemas em coluna. Em cada coluna existe
um tipo de relação comum a todas as versões. Foi o que ele fez com o mito de Édipo. É o que
nós faremos agora, partindo dos relatos sebastiânicos.
Apesar da aparente pobreza simbólica da versão narrativa apresentada por mãe Yolanda,
se olharmos com um pouco mais de precisão, perceberemos que todos os elementos universais
que se fazem presente nas versões de pai Tayandô e pai Serginho de Oxossi são mencionado
por ela, talvez de forma mais velada. Tentaremos afastar os pormenores que “maqueiam” as
estruturas destacando, a partir de agora, os mitemas.

1º Mitema: Referência a História

Pai Tayandô: Toda a sua narrativa é costurada por fatos históricos. Eles se referem,
entre outras coisas, ao episódio da batalha, à articulação de casamento com a filha do rei da
Espanha, à construção do arraial de Canudos, dentre outros.
Pai Serginho: A referência à história se faz mais discreta nesta versão. Aponta a morte
do rei na batalha que o religioso denominou de Alcer Quibir e na citação, logo no início do
texto, à fundação da casa de Nagô por duas negras chamadas de Joana e Josefa.
Mãe Yolanda: Mãe Yolanda anuncia a história quando afirma que rei Sebastião teve
vida e quando relata: - “Dizem que ele era um guerreiro”.

2º Mitema: Viagem Expansionista

Pai Tayandô: Esse mitema se faz presente na descrição sobre os domínios do rei
Sebastião na encantaria. Foi ao Piauí, Bahia, construiu sua encantaria em São Luís e de lá veio

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para Pirabas, onde deixou um guardião. Para Tayandô, o império português dominava as áreas
de encantaria e as distribuía entre seus vassalos.
Pai Serginho: Também se refere aos domínios encantados do rei, que para ele seriam a
praias do Atalaia, São João de Pirabas e o lago da princesa em Marudá.
Mãe Yolanda: O caráter expansionista de rei Sebastião nesta narrativa está presente, de
forma discreta, quando mãe Yolanda nos informa que têm outras casas de culto que recebem
o nobre. Trata-se de um expansionismo da entidade que conquistou “várias cabeças”.

3º Mitema: Referência à Geografia

Pai Tayandô: Apresenta vários acidentes geográficos em sua construção mitológica


como, por exemplo, o norte da África, o estreito de Gibraltar, o rio Amazonas, dentre outros.
Pai Serginho: Para ele os nobres teriam se encantado em acidentes geográficos como
os oceanos.
Mãe Yolanda: Refere-se ao fato de Toya Jarina ter sido deixada na beira de um rio.

4º Mitema: Inversão

Pai Tayandô: Presente nas narrativas sobre o possível desencante de rei Sebastião. Cita
a doutrina cuja letra profetiza: “Rei, rei, rei Sebastião/ Quem desencantar Lençol/ Põe abaixo
o Maranhão”.
Pai Serginho: Mesma referência, ao contar o mito do pedido de desencante, anuncia
que se o rapaz conseguisse o feito, tudo ia para o fundo.
Mãe Yolanda: A inversão presente no texto de mãe Yolanda é social e étnica: Toya
Jarina é “uma filha de gente fina”, criada por um rei, mas se apresenta como índia.

5º Mitema: Referência ao Cristianismo

Pai Tayandô: Ao narrar a batalha do norte da África afirma que a ideia de rei Sebastião
era vencer os infiéis e implantar o Cristianismo.
Pai Serginho: Menciona que a bandeira do rei é a Cruz.
Mãe Yolanda: Referência se faz presente quando ela descreve o visual de rei Sebastião
e aponta que ele usa o cordão de ouro com um Cristo, lembrando ainda que o mesmo teria
lutado contra o diabo.

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6º Mitema: Organização Política

Pai Tayandô: Observamos esse mitema no trecho, já citado anteriormente, no qual


o referido sacerdote menciona que a organização política e social da encantaria respeita o
modelo português. Faz referência, também, ao feudalismo.
Pai Serginho: Para pai Serginho a organização política respeita a seguinte ordem. “O
chefe de todos os nobres seria D. Manuel (...), o segundo maior seria rei Sebastião (...), depois
vem D. Luís”.
Mãe Yolanda: Traça uma organização política das entidades na qual o vodum e o nobre
rei Sebastião são equivalentes, por vezes confundindo a identidade dos mesmos ao longo da
narrativa. E diz: “ Embaixo de Deus, pra mim, só rei Sebastião”.

7º Mitema: Separação entre a Divindade e o Homem

Pai Tayandô: A separação entre essas duas instâncias se faz via presença de um sentinela,
que rei Sebastião autorizou a proteger a vulnerabilidade da encantaria.
Pai Serginho: O religioso narra que o processo de escolha daqueles que são ou não
dignos de passarem pelo encante. Pai Serginho chega a afirmar que qualquer pessoa pode
visitar a praia do Lençol, o que não quer dizer que vá encontrar o portal de acesso.
Mãe Yolanda: Está expressa no medo que a religiosa sentiu quando se deparou pela
primeira vez com a figura daquele rei, via o processo mediúnico.

8º Mitema: Referência a Fenômeno Extraordinário

Toda a narrativa é repleta de fenômenos extraordinários, todavia, destacaremos apenas


um: o processo de encante. Ou seja, a passagem para o sobrenatural sem a experiência da
morte que se faz presente em todas as versões.

9º Mitema: Rito de Passagem

Pai Tayandô: Está na narrativa sobre o encante de rei Sebastião, passagem do monarca
do mundo dos vivos para o sobrenatural. O período liminar seria o sono. A própria condição
de encantado é liminar, haja vista que trata-se de uma categoria entre o natural e sobrenatural
Pai Serginho: Mesma referência feita ao encante, sendo que o momento liminar,
neste caso, seria o instante da não aceitação desta nova condição e as inúmeras tentativas de
desencante.

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Mãe Yolanda: Neste relato, quem é submetida ao rito de passagem é a própria narradora.
Ele pode ser detectado logo no início do texto, na alusão feita às primeiras manifestações do
êxtase. O sofrimento marca essa passagem.

10º Mitema: Hierarquia

Pai Tayandô: A hierarquia está, de forma detalhada, na descrição da encantaria de rei


Sebastião, uma vez que trata-se de um Estado cujo poder central pertence ao monarca que,
por sua vez, confere títulos de nobreza e distribui vilas para seus vassalos. Podemos perceber
também a hierarquia estabelecida entre o Nobre D. Sebastião e o Vodum Xapanã, uma vez que
se estabelece entre eles a relação de adoração.
Pai Serginho: Em vários momentos do texto pai Serginho se refere à hierarquia, alguns
deles já mencionados anteriormente. Gostaríamos de destacar um momento especial, quando
em oração ao seu orixá Oxossi, pede proteção para todo seu povo que, para ele, “é aquilo que
está abaixo da hierarquia de Oxossi”.
Mãe Yolanda: Afirmativa: “Abaixo de Deus, só rei Sebastião”.

11º Mitema: Simbolismo de Realeza

Nas duas primeiras narrativas esse simbolismo é muito mais minuciosamente trabalhado
com descrições do reino e dos impérios coloniais. Mãe Yolanda não se refere a nada disso,
todavia, há um elemento que indica a realeza de Sebastião, que é o próprio substantivo rei que
se faz presente em todas as versões do mito.

12º Mitema: Construção de uma Sociedade Inclusiva

Pai Tayandô: Descreve a encantaria de rei Sebastião como uma espécie de hospedagem
que recebe todos os nobres logo após o encante. Refere-se também ao fato de que a sua família
como repleta de filhos adotivos.
Pai Serginho: Enumera diversos encantados de outras famílias que se agregaram ao
que ele denominou de “encantaria dos Lençóis”.
Mãe Yolanda: Refere-se apenas a uma filha adotiva do monarca: Toya Jarina.

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13º Mitema: Noção de Pessoa Ambígua

Pai Tayandô: Faz clara referência a esse mitema no momento em que afirma que os
turcos se ajuremaram e os juremeiros se aturcoaram, e quando se trata da idade do rei que
morreu novo e se apresenta como velho.
Pai Serginho: A ambiguidade se faz presente na categorização das entidades que são de
uma família, mas se manifestam em outra e também na referência a idade do rei.
Mãe Yolanda: Citaremos o mesmo exemplo dado para o mitema inversão. Toya Jarina,
na narrativa de mãe Yolanda, lembra muito Macunaíma - personagem criado por Mário de
Andrade - uma vez que é filha de “gente nobre”, criada por um rei português, teve passagem
pela Turquia mas, no fundo, é índia. Jarina é o retrato da mestiçagem.

14º Mitema: Conflito

Pai Tayandô: O conflito aparece na narrativa da luta contra os sarracenos no Marrocos,


numa clara alusão histórica ao episódio de Alcacer Quibir no norte da África. Depois, ele
retoma essa temática ao falar do rei da Turquia que voltou a tentar guerrear com o cristianismo
na encantaria.
Pai Serginho: O conflito de identidade do rei que não aceita sua nova condição de
encantado.
Mãe Yolanda: O conflito aparece em duas instâncias da narrativa de mãe Yolanda. A
primeira delas diz respeito ao conflito pessoal e familiar ao qual ela foi submetida no momento
do aparecimento do transe. Nem ela, nem sua avó o aceitava. A segunda referência a esse
elemento se faz presente no mito construído, segundo o qual o rei Sebastião lutou contra o
diabo.

15º Mitema: Sincretismo

Pai Tayandô: Na narrativa de pai Tayandô aparece tanto o sincretismo afro-católico,


referido em várias instâncias do texto - a exemplo do momento em que o religioso explica a
toalha vermelha usada nas costas de rei Sebastião como uma analogia simbólica com o santo
homônimo, quanto o afro-afro que relaciona o monarca ao vodum Xapanã, da família de
Acossi. E esta relação entre personagens se desdobra nos rituais, nas oferendas, haja vista que
uma das comidas servidas ao rei é a oferenda do vodum.
Pai Serginho: Pai Serginho, em vários momentos, faz referência à analogia entre santo,
nobre e entidade afro-brasileira. No final de seu discurso afirma que a festa de Rei Sebastião é

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realizada no dia 20 de janeiro, dia de são Sebastião. Dizendo ainda que o nobre está ligado ao
Vodum Xapanã estabelecendo, com ele, hierarquia de adoração
Mãe Yolanda: Afirma que Rei Sebastião e Xapanã são a mesma coisa: voduns.

16º Mitema: Oposição Binária

Pai Tayandô: pobre x rico/ nobre x povo / terra (alto) x fundo/ velho x novo.
Pai Serginho: branco x preto/ grande x pequeno/ nobre (branco) x caboclo (mestiço)/
terra x fundo/ velho x novo.
Mãe Yolanda: velho x novo/ branco x preto

17º Mitema: Religião de Integração

Nas três narrativas a integração do homem com a natureza se dá através de um fenômeno


que é muito próprio do imaginário amazônida: a metamorfose.

18º Mitema: Metamorfose

O fenômeno da metamorfose aparece com a possibilidade do homem virar bicho. A


referência comum a todas as narrativas é a transformação do medium em touro no momento
do transe. Pai Serginho faz ainda outra citação: em uma das histórias que conta sobre o rei
Sebastião, descreve um navio todo iluminado repleto de passageiros que se atiram ao rio
transformados, dentre outras coisas, em botos.

19º Mitema: Descrição do Sagrado Imanente

Pai Tayandô: Para esse religioso os lugares em si são sagrados, são espaços de morada
do encantado, tanto que ele, por duas vezes, relata ter feito oferendas em lugares específicos:
Sete Cidades e a pedra do rei Sabá em Pirabas.
Pai Serginho: Indica esse mitema quando diz que os encantados são forças, energias.
Considerando que essa energia “possui” o religioso, numa experiência de transe, é possível
deduzir que o ser humano tem acesso ao sagrado, não de forma transcendental, como o
totalmente outro, mas de forma imanente, palpável, assimilável.
Mãe Yolanda: Também faz referência ao fato do rei morar na pedra que, segundo ela,
fica na praia de Salinas.

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Considerações Finais

A título de conclusão, gostaríamos de levantar uma outra discussão feita por Lévi-
Strauss, desta vez no livro “Mito e Significado” (1978), quando flexibiliza as fronteiras entre
mito e história, considerando o primeiro uma forma de história sem arquivo, sem documentos
escritos, construído à partir da tradição oral e, por tal, passível de tantas variações.
Revisitando as narrativas sobre o que ele chama de “gênese da desordem”, coletadas
junto aos chefes Whight e Haris, especificamente, habitantes das regiões do médio e supedior
rio Skeena, ele afirma:

Isso pode ser um fato histórico, mas se analisarmos mais de perto o modo
como o fato é explicado, verifica-se que o tipo de acontecimento é o mesmo mas
que diferem quanto aos pormenores (...). Temos uma célula explicativa onde a
estrutura básica é a mesma mas o conteúdo da célula pode variar. É uma espécie
de minimito (1978:60)

Posteriormente, ele questiona se os historiadores, ao fazerem a história dita científica,


de fato o conseguem ou apenas constroem uma mitologia. A Ciência histórica pura, de fato,
existe?
O autor parece responder negativamente uma vez que, para ele, os próprios historiadores
têm formas diversas de enfrentar um mesmo fato. Variações estas que estão relacionadas a
correntes de pensamento, a tradições intelectuais ou a alinhamentos políticos. A história que
nossa sociedade produz, substitui o mito e desempenha o mesmo papel que ele. Considerando
isto, podemos afirmar que a dicotomia hermética entre essas duas formas de falar do passado
só existe em nossas cabeças.
Apesar de todas as semelhanças, não há como negar as divergências. E o autor afirma
que a mais importante delas reside no fato de a mitologia ser estática. Ela se constrói, se
transforma e se resignifica, sempre partindo dos mesmos pressupostos, das mesmas estruturas
que são reagregáveis e combináveis das mais variadas maneiras. A história, por sua vez, é um
sistema aberto.
Um dos grandes valores da teoria levistraussiana está na desconstrução da idéia de
superioridade da ciência sobre o mito, da quebra da hierarquia e das cadeias evolutivas. E,
partido deste pressuposto, terminaremos o texto nos questionando se não teria sido possível
incluir a narrativa histórica que desenvolvemos no tópico “Notícias Históricas sobre o Rei
Sebastião”, como mais uma das versões passíveis de análise estrutural.

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Recebido em 30/09/ 2012


Aprovado para publicação em 15/12/2012

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