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O Evangelho dos Evangélicos

Blog Outra Espiritualidade – Ed René Kivitz


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“Nem todo aquele que me diz Senhor, Senhor, entrará no Reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de
meu Pai que está nos céus.” [Jesus Cristo]

Estou convencido de que um é o evangelho dos evangélicos, outro é o evangelho do reino de Deus. Registro
que uso o termo “evangélico” para me referir à face hegemônica da chamada igreja evangélica, como se
apresenta na mídia radiofônica e televisiva.

O evangelho dos evangélicos é estratificado. Tem a base e tem a cúpula. Precisamos falar com muito cuidado
da base, o povo simples, fiel e crédulo. Mas precisamos igualmente discernir e denunciar a cúpula. A base é
movida pela ingenuidade e singeleza da fé; a cúpula, muita vez é oportunista, mal intencionada, e age de má
fé. A base transita livremente entre o catolicismo, o protestantismo e as religiões afro. A base vai à missa no
domingo, faz cirurgia em centro espírita, leva a filha em benzedeira, e pede oração para a tia que é
evangélica. Assim é o povo crédulo e religioso. Uma das palavras chave desta estratificação é “clericalismo”:
os do palco manipulando os da platéia, os auto-instituídos guias espirituais tirando vantagem do povo
simples, interesseiro, ignorante e crédulo.

A cúpula é pragmática, e aproveita esse imaginário religioso como fator de crescimento da pessoa jurídica, e
enriquecimento da pessoa física. Outra palavra chave é “sincretismo”. A medir por sua cúpula, a igreja
evangélica virou uma mistura de macumba, protestantismo e catolicismo. Tem igreja que se diz evangélica
promovendo “marcha do sal”: você atravessa um tapete de sal grosso, sob a bênção dos pastores, e se livra de
mal olhado, dívida, e tudo que é tipo de doença. Já vi igreja que se diz evangélica distribuir cajado com água
do Jordão (i.é, um canudo de bic com água de pia), para quem desejasse ungir o seu negócio, isto é, o seu
business. Lembro de assistir a um programa de TV onde o apresentador prometia que Deus liberaria a unção
da casa própria para quem se tornasse um mantenedor financeiro de sua igreja.

O povo religioso é supersticioso e cheio de crendices. Assim como o Brasil. Somos filhos de portugueses,
índios, africanos, e muitos imigrantes de todo canto do planeta. Falar em espíritos na cultura brasileira é
normal. Crescemos cheios de crendices: não se pode passar por baixo de escada; gato preto dá azar; caiu a
colher, vem visita mulher, caiu garfo, vem visita homem; e outras tantas idéias sem fundamento. Somos
assim, o povo religioso é assim. Tem professor de universidade federal dando aula com cristal na mão para
se energizar enquanto fala de filosofia.

E a cúpula evangélica aproveita a onda e pratica um estelionato religioso: oferece uma proposta ritualística
que aprisiona, promove a culpa e, principalmente, ilude, porque promete o que não entrega. Aliás, os jornais
começam a noticiar que os fiéis estão reivindicando indenizações e processando igrejas por propaganda
enganosa.

O evangelho dos evangélicos é estratificado. A base é movida pela ingenuidade e singeleza da fé, e a cúpula
é oportunista. A base transita entre o catolicismo, o protestantismo e as religiões-afro, e a cúpula é
pragmática. A base é cheia de crendices e a cúpula pratica o estelionato religioso.

O evangelho dos evangélicos é mercantilista, de lógica neoliberal. Nasce a partir dos pressupostos
capitalistas, como, por exemplo, a supremacia do lucro, a tirania das relações custo-benefício, a ênfase no
enriquecimento pessoal, a meritocracia – quem não tem competência não se estabelece. Palavra chave:
prosperidade. Desenvolve-se no terreno do egocentrismo, disfarçado no respeito às liberdades individuais.
Palavra chave: egoísmo. Promove a desconsideração de toda e qualquer autoridade reguladora dos
investimentos privados, onde tudo o que interessa é o lucro e a prosperidade do empreendedor ou investidor.
Palavra chave: individualismo. Expande-se a partir da mentalidade de mercado. Tanto dos líderes quanto dos
fiéis. Os líderes entram com as técnicas de vendas, as franquias, as pirâmides, o planejamento de
faturamento, comissões, marketing, tudo em favor da construção de impérios religiosos. Enquanto os fiéis
entram com a busca de produtos e serviços religiosos, estando dispostos inclusive a pagar financeiramente
pela sua satisfação. Em síntese, a religião na versão evangélica hegemônica é um negócio.
O sujeito abre sua micro-empresa religiosa, navega no sincretismo popular, promete mundos e fundos, cria
mecanismos de vinculação e amarração simbólicas, utiliza leis da sociologia e da psicologia, e encontra um
povo desesperado, que está disposto a pagar caro pelo alívio do seu sofrimento ou pela recompensa da sua
ganância.

Em terceiro lugar, o evangelho dos evangélicos é mágico. Promove a infantilização em detrimento da


maturidade, a dependência em detrimento da emancipação, e a acomodação em detrimento do trabalho.

Pra ser evangélico você não precisa amadurecer, não precisa assumir responsabilidades, não precisa agir.
Não precisa agregar virtudes ao seu caráter ou ao processo de sua vida. Primeiro porque Deus resolve.
Segundo porque se Deus não resolver, o bispo ou o apóstolo resolvem. Observe a expressão: “Estou
liberando a unção”. Pensando como isso pode funcionar, imaginei que seria algo como o apóstolo ou bispo
dizendo ao Espírito Santo: “Não faça nada por enquanto, eles não contribuíram ainda, e eu não vou liberar a
unção”.

Existe, por exemplo, a unção da superação da crise doméstica. Como isso pode acontecer? A pessoa passa
trinta anos arrebentando com o seu casamento, e basta se colocar sob as mãos ungidas do apóstolo, que libera
a unção, e o casamento se resolve. Quem não quer isso? Mágica pura.

O sujeito é mau-caráter, incompetente para gerenciar o seu negócio, e não gosta de trabalhar. Mas basta ir ao
culto, dar uma boa oferta financeira, e levar para casa um vidrinho de óleo de cozinha para ungir a empresa e
resolver todos os problemas financeiros.

Essa postura de não assumir responsabilidades, de não agir com caráter, e esperar que Deus resolva, ou que o
apóstolo ou bispo liberem a unção tem mais a ver com pensamento mágico do que com fé.

Em quarto lugar, o evangelho dos evangélicos tem espírito fundamentalista. Peço licença para citar Frei
Beto: “O fundamentalismo interpreta e aplica literalmente os textos religiosos, não sabe que a linguagem
simbólica da Bíblia, rica em metáforas, recorre a lendas e mitos para traduzir o ensinamento religioso.” O
espírito fundamentalista é literalista, e o mais grave é que o espírito fundamentalista se julga o portador da
verdade, não admite críticas, considerações ou contribuições de outras correntes religiosas ou científicas.

Quem tem o espírito fundamentalista não dialoga, pois considera infiéis, heréticos, ou, na melhor das
hipóteses, equivocados sinceros, todos os que não concordam com seus postulados, que não são do mesmo
time, e não têm a mesma etiqueta. Quem tem o espírito fundamentalista se considera paradigma universal.
Dialoga por gentileza, não por interesse em aprender. Ouve para munir-se de mais argumentos contra o
interlocutor. Finge-se de tolerante para reforçar sua convicção de que o outro merece ser queimado nas
fogueiras da inquisição. Está convencido de que só sua verdade há de prevalecer.

Mais uma vez Frei Beto: “o fundamentalista desconhece que o amor consiste em não fazer da diferença,
divergência”. Por causa do espírito fundamentalista, o evangelho dos evangélicos é sectário, intolerante,
altamente desconectado da realidade. O evangelho dos que têm o espírito do fundamentalismo é dogmático,
hermético, fechado a influências, e, portanto, é burro e incoerente.

Em quinto lugar, o evangelho dos evangélicos é um simulacro. Simulacro é a fotografia mais bonita que o
sanduíche. Não me iludo, o evangelho dos evangélicos é mais bonito na televisão do que na vida. As
promessas dos líderes espirituais são mais garantidas pela sua prepotência do que pela sua fé. Temos muitos
profetas na igreja evangélica, mas acredito que tenhamos muito mais falsos-profetas. Os testemunhos dos
abençoados são mais espetaculares do que a realidade dos cristãos comuns. De vez em quando (isso faz parte
da dimensão masoquista da minha personalidade) fico assistindo estes programas, e penso que é jogada de
marketing, testemunho falso. Mas o fato é que podem ser testemunhos por amostragem. Isto é, entre os
muitos que faliram, há sempre dois ou três que deram certo. O testemunho é vendido como regra, mas na
verdade é apenas exceção.

A aparência de integridade dos líderes espirituais é mais convincente na TV e no rádio do que na realidade
de suas negociatas. A igreja evangélica esta envolvida nos boatos com tráficos de armas, lavagem de
dinheiro, acordos políticos, vendas de igrejas e rebanhos, imoralidade sexual, falsificação de testemunho,
inadimplência, calotes, corrupção, venda de votos.
A integridade do palco é mais atraente do que a integridade na vida. A fé expressa no palco, e nas
celebrações coletivas é mais triunfante, do que a fé vivida no dia a dia. Os ideais éticos, e os princípios de
vida são mais vivos nos nossos guias de estudos bíblicos e sermões do que nas experiências cotidianas dos
nossos fiéis. Os gabinetes pastorais que o digam: no ambiente reservado do aconselhamento espiritual a
verdade mostra sua cara.
Estratificado, mágico, mercantilista, fundamentalista, e simulacro. Eis o evangelho dos “evangélicos”.

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