Você está na página 1de 3

XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 736

CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS E METODOLÓGICAS SOBRE A ELABORAÇÃO


DA PRIMEIRA TRADUÇÃO DA BÍBLIA EM LÍNGUA PORTUGUESA:
APROXIMAÇÕES COM A PERSPECTIVA DA ESCOLA ITALIANA DE
HISTÓRIA DAS RELIGIÕES

Luis Henrique Menezes Fernandes

Doutorando em História Social (FFLCH-USP)

Orientação: Adone Agnolin

Pesquisa Financiada pela FAPESP

Palavras-chave: história das religiões; conflitos doutrinários; tradução da Bíblia.

Não há pensamento religioso (nem pensamento

simplesmente), por mais puro e desinteressado que

seja, que não seja colorido em sua massa pela

atmosfera de uma época.1

Intentaremos, com este texto, apresentar, de maneira bastante concisa, os


fundamentos metodológicos de nosso trabalho de pesquisa, adotados a partir dos
pressupostos teóricos da Escola Italiana de História das Religiões. Além disso,
objetivamos demonstrar a maneira como poderemos fazer convergir essa vertente
metodológica com o objeto específico de nossa investigação histórica: o surgimento da
primeira tradução completa da Bíblia em língua portuguesa, realizada por João Ferreira
de Almeida (1628-1691) nos domínios holandeses orientais, durante a segunda metade
do século XVII. Deste modo, não nos contentaremos com uma apresentação tão
somente teórica da perspectiva histórico-religiosa de vertente italiana, mas pretendemos,

1
FEBVRE, Lucien. O problema da incredulidade no século XVI: a religião de Rabelais. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009, p. 32.

A Escrita da História, Universidade Estadual de Londrina


12 a 15 de Outubro de 2012
XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 737

acima de tudo, demonstrar sua aplicabilidade no desenvolvimento de uma investigação


científica circunscrita ao domínio da História das Religiões.

O momento fundante da Escola Italiana de História das Religiões – também


conhecida como Escola Romana – é a publicação, em 1925, do primeiro número da
revista Studi e Materiali di Storia delle Religioni, sob a direção do historiador das
religiões Raffaele Pettazzoni (1883-1959). O pressuposto teórico central de sua proposta
metodológica consiste na própria historicidade dos fatos religiosos, ou seja, na sua
necessária redução à razão histórica específica que lhes dá origem. Esse direcionamento
teórico, a princípio evidente, torna-se postura fundamental e imprescindível quando
contraposto a duas outras correntes metodológicas, então dominantes no estudo
científico das religiões: de um lado, a vertente sistemática, representada por Max
Müller, Edward B. Tylor e Émile Durkheim, e de outro, a vertente fenomenológica ou
essencialista, de Rudolf Otto, Gerard Van der Leeuw e, sobretudo, de Mircea Eliade.2

Nesse sentido, estudiosos como Müller e Tylor, em seus clássicos trabalhos


sobre as religiões primitivas, acabaram invariavelmente amputando aquilo que
denominavam “religiões” dos próprios contextos históricos e culturais em que
operavam, sistematizando-as arbitrariamente em esquemas gerais classificatórios e,
portanto, não-históricos. Obliterava-se, dessa forma, a dimensão propriamente histórica
das “religiões” analisadas, substituindo-a por uma classificação tipológica atemporal.
Dessa maneira, segundo os termos de Adone Agnolin, acabava-se delineando, com base
em um conceito unívoco e preestabelecido de “religião”, “uma contraposição das
religiões que se diferenciam entre a ‘conservação’ de um passado unificante e o
‘progresso’ diversificante”.3

Forjava-se, assim, não uma história das religiões, mas apenas uma relação
tipológica entre elas, com base em um percurso ideal e linear, entendido como única
trajetória histórica possível da “religião” humana. Dessa maneira, em Müller e Tylor, as
religiões acabavam sempre interpretadas em termos de evolução (na perspectiva
positivista de Tylor) ou degeneração (na visão romântica de Müller), em relação a uma
suposta “religiosidade original e comum”. De forma análoga, em seu trabalho sobre “as

2
Seguiremos, na demonstração histórica desse percurso metodológico, a excelente exposição apresentada
por MASSENZIO, Marcello. A história das religiões na cultura moderna. São Paulo: Hedra, 2005.
Sobre este mesmo assunto, podemos também destacar o seguinte artigo: AGNOLIN, Adone. “O debate
entre história e religião em uma breve história da história das religiões: origens, endereço italiano e
perspectivas de investigação”. Projeto História, São Paulo, n. 37, jul. 2008, p. 13-39.
3
AGNOLIN, Adone. “Prefácio” In: MASSENZIO, op. cit., p. 15.

A Escrita da História, Universidade Estadual de Londrina


12 a 15 de Outubro de 2012
XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 738

formas elementares da vida religiosa”, o sociológico francês Durkheim, enfatizando a


funcionalidade social das “religiões” – entendidas como lei sociológica –, acabou
4
criando também um “sistema religioso” classificatório e des-historificado.

No tocante à vertente fenomenológica, Rudolf Otto e Van der Leeuw,


primeiramente, buscando a própria essência de uma suposta “experiência religiosa”
universal, fizeram do conceito latino-ocidental de “religião” um objeto de estudo
ontológico e apriorístico, não enfatizando a própria historicidade dessa categoria de
análise. A partir disso, pode-se desde já apreender o caráter não-histórico de suas
propostas, as quais, enfatizando a ideia da unicidade da “experiência religiosa” humana,
transformam a ciência das religiões em uma espécie de análise teológica, afastando-a
inegavelmente dos ditames da produção do conhecimento histórico.

O próprio objetivo dos fenomenólogos de buscar a “essência da religião”


demonstra, de maneira clara, o distanciamento de sua postura em relação às prescrições
fundamentais da produção historiográfica, voltada, por definição, às especificidades das
manifestações humanas (neste caso, religiosas) na história, em sua relação vital com
contextos específicos, e não à sua “essência transcendental e sagrada”. A este propósito,
podemos citar as palavras de um dos principais “discípulos” de Pettazzoni, o historiador
e antropológico Vittorio Laternari, a respeito dos métodos sistemático e fenomenológico
supracitados (que ele denomina “tipológicos”):

O método tipológico tende à identificação do “tipo” único e universal


[da religião], isto é, daquele conjunto de caracteres comuns e
constantes que, através da realidade variável das manifestações
particulares [...], possam aparecer como uma “estrutura” dominante e
geral de todas as formações [religiosas].5
É, todavia, no diálogo intelectual com o “historiador” das religiões romeno
Mircea Eliade que melhor se identifica a especificidade teórica da perspectiva histórico-
religiosa italiana, inaugurada por Raffaele Pettazzoni. Segundo os próprios termos de
Eliade, a respeito de suas pretensões científicas, em seu clássico trabalho sobre a
essência das religiões, “não é a variedade infinita das experiências religiosas do espaço

4
Para uma explicação mais exaustiva sobre esses autores e suas vertentes metodológicas, conferir as
obras de Marcello Massenzio e Adone Agnolin supracitadas.
5
LANTERNARI, Vittorio. As religiões dos oprimidos: um estudo dos modernos cultos messiânicos. São
Paulo: Perspectiva, 1974, p. 320. Embora o autor esteja tratando especificamente, neste caso, dos
movimentos messiânicos, é evidente que essa citação se enquadra perfeitamente na questão mais global
da história das religiões.

A Escrita da História, Universidade Estadual de Londrina


12 a 15 de Outubro de 2012

Você também pode gostar