Você está na página 1de 116

Licenciatura em Teatro

módulo
antropologia cultural
6
Autores do projeto

Itamar Alves Leal dos Santos Universidade Federal do Maranhão (UFMA)

José Mauro Barbosa Ribeiro Universidade de Brasília (UnB)

Leda Maria de Barros Guimarães Universidade Federal de Goiás (UFG)

Lygia Maria Maurity Sabóia Universidade de Brasília (UnB)

Raquel Helena de Mendonça e Paula Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes)

Sheila Maria Conde Rocha Campello Secretaria de Estado da Educação do DF (SEDF)/


Universidade de Brasília (UnB)

Suzete Venturelli Universidade de Brasília (UnB)

Terezinha Maria Losada Moreira Universidade de Brasília (UnB)

AUTOR DO MÓDULO

Luis Ferreira Makl Universidade de Brasília (UnB)

COORDENADORES DO CURSO

Ângela Maria Cavalcante Coelho Universidade Federal de Rondônia (UNIR)

Arão Nogueira Paranaguá de Santana Universidade Federal do Maranhão (UFMA)

Jorge das Graças Veloso Universidade de Brasília (UnB)

Teresinha Corrêa Narciso Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes)


Licenciatura em Teatro

módulo
antropologia cultural
6
Equipe Editorial
Coordenação editorial: Mario Luiz Belcino Maciel
Sub-coordenação editorial: Bruno Ribeiro Braga

Ilustrações: Amanda Priscilla Moreira


André Felipe Ramalho Maciel
Lauro Gontijo
Ronaldo Ribeiro da Silva
Diagramação e capa: Bruno Ribeiro Braga
Ronaldo Ribeiro da Silva
Diagramação: Lauro Gontijo

Designers educacionais: Raphaela Paiva


Fábio Ultra

Revisão: Caroline Soudant

Impresso no Brasil

LGE EDITORA LTDA ME


SIA Trecho 3 , lote 1760, Distrito Federal
Telefone:(61) 3362-0008
FAX: (61) 3233-3771

Ficha Catalográfica

MAKL, Luis Ferreira

Módulo 6: Antropologia Cultural: Introdução ao estudo do homem: suas


produções culturais do ritual ao teatro.
Brasília: LGE EDITORA, 2008
120p.

1.Arte. 2. Cultura. 3. Produções culturais. 4. Ritual 5. Teatro


SUMÁRIO

6 ANTROPOLOGIA CULTURAL

7 INTRODUÇÃO

10 A ANTROPOLOGIA E O CONCEITO DE CULTURA

26 O DESENVOLVIMENTO DO CONCEITO DE CULTURA

43 A DIVERSIDADE CULTURAL

60 MÉTODO E TÉCNICA NA ANTROPOLOGIA

73 A REFLEXÃO SOBRE OS SÍMBOLOS E OS RITUAIS NA


ANTROPOLOGIA

84 O ESTUDO ANTROPOLÓGICO DAS ARTES PERFORMÁTICAS: DO


RITUAL AO TEATRO

104 PROGRAMA DE LEITURAS BIBLIOGRÁFICAS POR CAPÍTULOS


Antropologia Cultural
Introdução ao estudo do homem: suas produções
culturais do ritual ao teatro.
INTRODUÇÃO
Luis Ferreira Makl

Caro estudante: nesta disciplina, começaremos com uma


travessia à procura das origens do homem no planeta
Terra, inextricavelmente ligadas às origens da cultura
e daquilo que hoje chamamos de teatro e de ritual. 7
Esses primórdios parecem estar muito longe de nós...
Os primeiros indícios de atividade hominídea aparecem
5 milhões de anos atrás! Um cinco seguido de seis zeros
parece uma marca inacreditável quando achamos
grande demais nossa era de apenas um dois seguido
de três zeros. Mas a descoberta de fósseis humanóides
mostra claramente que o homem, sua inteligência e
suas formas de comunicação foram evoluindo ao longo
do tempo, desenvolvendo sua capacidade bio-psíquica
e acumulando socialmente o que denominamos cultura,
em um processo interativo entre a cultura e a biologia.
O estudo dessa dupla evolução humana é, justamente,
um dos objetivos da Antropologia.

Faremos, primeiro, uma introdução ao conhecimento


do homem enquanto ser biológico, social e cultural.
Refletiremos sobre as origens e evolução da

Módulo 6 - Antropologia Cultural


cultura e também sobre a sua relação com o meio
ambiente. Pesquisaremos, sobretudo, a diversidade
das manifestações culturais e seus significados, com
destaque para as artes da performance – teatro,
música, dança – e sua compreensão dentro dos
contextos culturais.

Nosso objetivo será acessar conhecimentos básicos


para o entendimento da ciência antropológica e
da cultura como ambiente do homem, procurando
repensar as noções de indivíduo, sociedade e cultura
em suas complexas interdependências e como se
relacionam no plano simbólico e no que chamamos
modernamente de fazer artístico.

É nosso interesse, também, realizar uma introdução


aos métodos e procedimentos dessa ciência, espe-
cialmente a etnografia ou pesquisa-em-campo como
instrumento bastante útil no estudo das artes perfor-
máticas, enfocando a questão da subjetividade e a
complexidade dos problemas suscitados nessa meto-
dologia quando os contextos nos são próximos.

Estudaremos, principalmente, o ritual e a represen-


tação atuada – a performance, os quais aparecem
como fatos sociais e culturalmente relevantes desde
os primórdios da vida humana no planeta. Tentare-
mos compreender os significados e a importância des-
ses mecanismos perante as crises ou dramas da vida
social e identificar as suas múltiplas manifestações e
transformações nas distintas sociedades e culturas.
Dessa forma, entenderemos um pouco mais a arte e
sua posição no contexto dos processos mundiais da
modernização em tempos recentes.

Este módulo do curso se dividirá em seis Unidades


de Estudo:

• A antropologia e o conceito de cultura.

• O campo da antropologia no contexto das


ciências e do surgimento da modernidade;

• A evolução humana como fenômeno


bio-cultural.

• O desenvolvimento do conceito de cultura.

• O desenvolvimento dos conceitos de cultura


e relativismo cultural;

• O estudo da cultura no pensamento an-


tropológico contemporâneo.

• A diversidade de culturas.

• A variabilidade cultural e as artes;

• Sociedades indígenas, religiões afro-brasilei-


ras e cultura em centros urbanos.

• Método e técnica na antropologia.

• O olhar etnográfico: estranhamento, famil-


iaridade e a produção de conhecimento;

• O método etnográfico: o tripé da pesquisa em


campo e a produção de fichas no gabinete.

• A reflexão sobre os símbolos e os rituais na


antropologia.

• O estudo da evolução dos rituais e do teatro


na antropologia;

• Sistemas simbólicos no ritual e a arte como


sistema cultural.

• O estudo antropológico das artes performáticas: do


ritual ao teatro.

8 • O processo ritual, do drama social ao


drama estético;
• As teorias da performance: das artes verbais
à dança e ao teatro na modernidade.

Considerações finais.

Contaremos com as seguintes formas de avaliação:

• Inicial: estabelecimento de fóruns de discussão, 9


a partir da leitura de textos sugeridos e
tangenciais, e pesquisas sobre os temas
abordados, com avaliação dos conhecimentos
básicos adquiridos pelo estudante e do seu
interesse sobre os conteúdos apresentados.

• Formativa: a cada duas unidades, será pro-


posta a produção de pequenos textos e/ou
fichamentos de leitura, que revelem o en-
tendimento do estudante sobre a temática
tratada e seu envolvimento com a disci-
plina e pesquisas paralelas. Será avaliada
favoravelmente a participação no chat e
no fórum de debate.

• Final: Elaboração de artigo monográfico sobre

Módulo 6 - Antropologia Cultural


o conteúdo da disciplina, privilegiando o
aspecto que maior interesse despertou no
estudante, visando a avaliação final do
estudante e uma futura publicação daqueles
trabalhos que mais se destacarem.

Então, vamos lá!!!


A ANTROPOLOGIA E O CONCEITO DE CULTURA

O campo da antropologia no contexto das ciências e


do surgimento da modernidade

Quando buscamos situar a Antropologia Cultural e


Social – disciplina voltada para o estudo da realidade
humana e social do âmbito das chamadas Ciências
Sociais, que, por sua vez, fazem parte das Ciências
Humanas – no campo das outras ciências, encontramos
dois problemas estreitamente relacionados. O primeiro
diz respeito às chamadas ciências da natureza ou
Ciências Naturais – como a Física, a Química, a Biologia
e a Astronomia –, as quais estudam fatos recorrentes,
isoláveis e reproduzíveis dentro das condições de
controle de um laboratório em que teorias e hipóteses
podem ser testadas.

Isso nos leva ao segundo problema. O teste em


laboratório pode ser repetido e reproduzido por
outros observadores, sendo asseguradas as condições
da chamada “objetividade”, aspecto central na
definição da ciência, especialmente da ciência natural.
Por exemplo, um cientista natural pode presenciar
os modos de relacionamento entre formigueiros, a
organização social e espacial dos mesmos (já que pode
ter um ou mais formigueiros no seu laboratório) e
estudar o impacto de diversas variáveis modificando
as condições ambientais.

Em contraste com as Ciências Naturais, as Ciências


Sociais ou Humanas estudam fenômenos situados em
planos de causalidade e determinação complicados,
em que não é fácil isolar causas e motivações exclusivas.
A matéria-prima nessas ciências se constitui de
eventos que podem ocorrer em ambientes e situações
muito diferentes tendo, por causa disso, significados
também diferentes de acordo com cada ator, com as
relações sociais existentes na situação e no cenário
num dado momento e dependendo de uma cadeia
de eventos anteriores e posteriores. Os eventos que
o cientista social estuda são fatos que não estão mais
ocorrendo naquele momento ou que não podem
ser reproduzidos nas condições controláveis de um
laboratório, como faz o cientista natural.

Um exemplo do cotidiano que traz o antropólogo


brasileiro Roberto Da Matta é o do “sujeito” que está
apenas desejando comer um bolo, a realização de
10 “uma ação aparentemente inocente e basicamente
simples”. Primeiro, porque um bolo pode ser comido
porque se tem fome. Pode ser comido, também, por
“motivos sociais e psicológicos”: para demonstrar
solidariedade a uma pessoa ou grupo, para
comemorar certa data (um aniversário), para revelar
que o bolo feito por uma pessoa querida é melhor do
que o bolo feito por outra pessoa, para indicar que se
conhecem bolos ou justificar certa atitude. Segundo,
porque um bolo muda de significado de acordo
com o momento em que é comido: no final de uma 11
refeição, é algo que denominamos de “sobremesa”,
tendo o significado social de “fechar” a refeição
anterior, constituída pelos “salgados” e considerada
como principal e mais substancial que os “doces”.
um bolo que é o centro de uma reunião se torna um
símbolo importante quando a observação e a análise
da situação revelam ligações com a passagem da
idade, com as relações entre gerações e identidades
sexuais, entre outras possibilidades. Pode, ainda,
fazer parte de uma representação quando atores
de teatro encenam personagens em um aniversário.
Já em um ensaio, outro tipo de objeto pode estar
representando o bolo da cena futura.

Roberto DaMatta possui graduação e licenciatura em

Módulo 6 - Antropologia Cultural


História pela universidade Federal Fluminense (1959
e 1962). Curso de especialização em Antropologia
Social do Museu Nacional da universidade Federal
do Rio de Janeiro (1960); mestrado (Master in Arts)
e doutorado (PhD) em 1969 e 1971 respectivamente
pela universidade Harvard.

Considerado um dos grandes nomes das Ciências Sociais


brasileiras, Roberto DaMatta é autor de diversas obras de
referência na Antropologia,Sociologia e Ciência Política, como
Carnavais, Malandros e Heróis, A casa e a rua ou O que faz o
brasil, Brasil?.

Além desses aspectos, como já foi dito anteriormente,


os eventos que servem de foco ao cientista social, as
suas “unidades de observação e análise”, são fatos
que não estão mais acontecendo naquele momento
(como seria no caso da observação da digestão nos
organismos vivos ou dos processos de fusão nuclear
no Sol). Também não podem ser reproduzidos em
condições controladas num laboratório. Seja a festa
de aniversário do meu amigo ou o ritual do Carnaval
de 2007, no Rio de Janeiro, ou os blocos de afoxé em
Salvador, ainda que pudéssemos reunir novamente
os mesmos personagens, músicas, comidas, vestes
e mobiliário o evento não seria como já ocorreu,
mas uma encenação. Não mais apresentação, mas
representação. Como assinala Da Matta (1983:
19), “diferentemente de um rato reagindo a um
anticorpo num laboratório, o aniversário (e todas as
ocasiões sociais fechadas) cria o seu próprio plano
social, podendo ser diferenciado de todos os outros”.
Há dois aspectos que nos interessam nessa questão.
O primeiro, diz respeito a esses eventos guardarem
semelhanças estruturais: um início, um meio, um
final, em que alguns objetos revelam um significado
muito especial (como o bolo de aniversário ou o bolo
da festa da boda). O segundo, diz respeito ao plano
do reflexo, da circularidade e da sobredeterminação
como enfatiza Da Matta, plano em que se desenvolve,
nos seres humanos, a consciência de si mesmos.

Voltemos, então, ao ponto antes colocado, da


diferença entre apresentação e representação dos
fatos. Nas Ciências Naturais, os fatos são reproduzíveis
em condições controladas, permitindo testar e verificar
teorias, hipóteses etc. As ações sociais podem ser
reproduzidas por meio do teatro ou do cinema, mas,
aqui já não são as mesmas ocorrências e existe a distância
entre o ator e o personagem recriado, um dado que
vem modificar substancialmente a situação. Ou, em
outros termos: se a teoria representa os fatos naturais,
o teatro representa os fatos sociais. O problema básico
continua, pois uma teoria da representação teatral dos
fatos sociais não é o mesmo que uma teoria dos fatos
sociais. Estes, são irreproduzíveis e, quase sempre,
formam parte do passado. Jamais podemos clamar
como “verdadeira”, do ponto de vista das ciências, a
reconstrução cênica ou narrativa de tais realidades ou
fragmentos da realidade.

IMPORTANTE
Os fatos das Ciências Sociais são, portanto, fenômenos
complexos, impossíveis de serem reproduzidos, mas que podem ser
observados e dos quais podemos participar: batismos, aniversários,
rituais de iniciação, bodas, trocas comerciais, proclamações de leis,
heresias, conflitos, perseguições, quebra de interdições, juízos,
funerais. Porém, aqui aparece outro problema além da reprodução
e observação do fenômeno, que é como observá-lo, implicando o
nosso próprio posicionamento social, história biográfica, educação,
interesses e preconceitos que não controlamos em nós mesmos.

Isso mostra uma dificuldade imensa: não tratamos


de objetos, animais ou não, em muitos aspectos
diferentes de nós, pois o que pretendemos é o
estudo de eventos humanos, um objeto de mesma
natureza que o sujeito, ao mesmo tempo “coisa”
e “representação” segundo Marcel Mauss, um
12 dos pais fundadores da Antropologia na França. O
observador-sujeito esforça-se para viver ele mesmo
a experiência do seu objeto, um empreendimento só
possível porque esse objeto é sujeito tanto quanto
ele ou, como disse o antropólogo francês Claude Lévi-
Strauss, ambos, o investigador e o sujeito investigado,
se situam numa mesma escala.

Os seres humanos não se separam por meio de espé-


cies, mas pela organização de suas experiências de
vida, individuais e coletivas, por suas histórias e pelo
modo como classificam suas realidades internas e ex- 13
ternas. Nós não podemos virar baleias nem formigas,
mas todos podemos nos transformar em membros de
outra sociedade (ao menos, sermos adotados por ela
com algum tipo de status) e nossos filhos dela podem
ser membros se, por exemplo, participamos de uma
caçada, implicando sua cultura distintiva – costu-
mes, categorias de pensamento e classificação so-
cial e do mundo externo e interno. Participare-
mos de seus rituais e das suas crenças, das suas
formas de teatro e de representação cênica, vi-
sual, musical e de dança, segundo a ênfase que
houver em uma ou outra. Obedeceremos às
suas leis, sejam verbalmente manifestadas ou
implícitas (e teremos que compreender como se
manifestam), falando bem ou mal sua língua,
conhecendo suas normas de etiqueta, de perfor-

Módulo 6 - Antropologia Cultural


mance musical, de movimentos na dança, sua
gestualidade etc.

O ponto que a Antropologia enfatiza na relação entre


diferentes culturas remete ao chamado “relativismo
cultural”, sobre o qual enfatiza Da Matta (1983: 24):

apesar das diferenças e por causa delas, nós sempre


nos reconhecemos nos outros e eu estou inclinado a
acreditar que a distância é o elemento fundamental
na percepção da igualdade entre os homens. Deste
modo, quando vejo um costume diferente é que acabo
reconhecendo, pelo contraste, meu próprio costume.

A imersão do antropólogo no chamado “trabalho


de campo” ou “pesquisa-de-campo” traz o contato
intenso com a possibilidade de dialogar com seus
interlocutores, por vezes denominados “nativos”, ou
“informantes”, no passado da disciplina.

Essa possibilidade permitiu a crítica aos esquemas


evolucionistas fáceis, que nos colocam no lugar
superior dos “civilizados” e que situam os sistemas
sociais e as culturas em degraus de atraso e progresso,
subdesenvolvimento e desenvolvimento, em que nos
percebemos como mais complexos, mais adiantados.
Sobretudo, permitiu a crítica às justificações do direito
de espoliar, explorar e destruir em nome do chamado
“processo civilizatório” ou do “desenvolvimentismo”,
desde o século 19 e ao longo do 20.
CoNeCtANdo sABeres
Leia sobre o assunto em:
DA MATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à
antropologia social.. Petrópolis: Vozes, 1981, no capítulo A
antropologia no quadro das ciências.

LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. São Paulo:


Brasiliense, 1995, na primeira parte: Marcos para uma história do
pensamento antropológico, nos capítulos O campo e a abordagem
antropológica, pp.13-33; A pré-história da antropologia, pp.37-
62; O tempo dos pioneiros, pp. 63-92.

O colonialismo, externo desde as metrópoles


ocidentais, ou interno desde os nossos centros urbanos
e de poder, freqüentemente se traduz no campo das
artes pela espoliação e expropriação de elementos
culturais relevantes, símbolos, objetos estéticos,
músicas, de outras sociedades e culturas, como as
indígenas e as desenvolvidas pelos africanos trazidos
com o regime da escravidão e seus descendentes
negros. No melhor, esse contato desafiou e inspirou
os melhores artistas ocidentais como aconteceu com
as máscaras africanas e o cubismo desenvolvido
por Picasso, entre outros artistas, ou as músicas
camponesas que inspiraram a criatividade de
compositores como Béla Bartók na Hungria e Heitor
Villa Lobos no Brasil.

CoNeCtANdo sABeres
Leia sobre o assunto em:
CARVALHO, José J. Metamorfoses das tradições performáticas
afro-brasileiras: de patrimônio cultural a indústria do entrete-
nimento. Em: Londres, Cecília (org.), Celebrações e saberes da
cultura popular: pesquisa, inventário, critica, perspectivas, pp. 65-
83. Rio de Janeiro: Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular.
Brasília: CNFCP, FuNARTE-IPHAN, 2004.

TRAVASSOS, Elizabeth. Os mandarins milagrosos: arte e


etnografia em Mário de Andrade e Béla Bartók. Rio de Janeiro:
Funarte - Zahar, 1997, nos capítulos Sentimentalismo, pp.29-63;
Primitivismo, pp.157-191.

No entanto, voltando à Antropologia, esta se


diferencia das outras ciências em que o objeto de
14 estudo é inteiramente opaco e mudo. Pelo contrário,
o objeto da Antropologia tem seu próprio centro,
o seu ponto de vista. Suas interpretações podem
competir, suspender e até negar as mais elaboradas
explanações do pesquisador. Possui, também,
capacidade de criticar o próprio mundo de onde vem
o antropólogo.

A chamada Antropologia Social, Cultural ou Etnologia


começa a se consolidar na segunda metade do século
19 junto a outras três áreas: o estudo de restos 15
materialmente cristalizados de culturas do passado
– monumentos, centros rituais, ruínas urbanas,
cerâmicas etc. – que se consolidam na Arqueologia; a
filologia ou estudo da origem e evolução das línguas,
denominada Lingüística; a anatomia comparada,
dando lugar à Antropologia Física, no século 19, e à
Antropologia Biológica, no século 20. Esses campos
de estudo voltam a se separar nas primeiras décadas
do século 20, ainda que, nos EUA, permaneçam como
quatro departamentos adjacentes nas universidades.

As denominações Antropologia Social, Cultural e


Etnologia estão relacionadas às tradições de estudos
vindos, respectivamente, da Grã-Bretanha, dos Estados
Unidos e da França, mas não nos devem confundir
porquanto denotam um mesmo objetivo: o estudo

Módulo 6 - Antropologia Cultural


do homem enquanto produtor e transformador
da natureza, membro de uma sociedade, frente
a um dado sistema de valores, um plano e regras
inventados pela própria sociedade, que se reproduz
e projeta em tudo aquilo que fabrica. Assim, a cultura
não é apenas uma resposta instrumental a certos
desafios (perante o frio, não desenvolvemos pêlos e
sim culturas com técnicas de construção de cobertas
e abrigos), mas situa o homem muito além do animal
capaz de inventar objetos, como um animal capaz de
ter o seu próprio pensamento. Como diz Da Matta
(1983: 32), “somente o homem é capaz de criar uma
linguagem da linguagem, uma “regra-de-regras”.
Um plano de tal ordem reflexiva que ele pode ver-se
a si próprio neste plano.”.

O ser humano pode ser definido não apenas enquanto


um ser que usa a linguagem, mas que também tem
consciência da linguagem que usa, tanto porque a
língua articulada permite uma multiplicidade de
diversos propósitos práticos, como pela consciência
da sua particularidade e individualização diante das
línguas de outras sociedades vizinhas. O homem
não inventa uma canoa só porque deseja cruzar o
rio ou vencer o mar, mas porque inventando a canoa
ele toma consciência do mar, do rio, da canoa e de
si mesmo. A questão da consciência de si próprio,
portanto, de ver-se a si mesmo em todos os desafios
que enfrenta e em todos os instrumentos que fabrica,
é central ao ser humano.
Em suma, a Antropologia Biológica e a Paleontologia
Humana (ramo da Antropologia que estuda a
evolução humana por meio da descoberta e análise
de restos fósseis) remetem a centenas de milhares e
até milhões de anos, em escala da espécie humana
como uma totalidade, revelando mudanças
intrínsecas do corpo e cérebro humanos, apreciando
sua correlação com o aparecimento de elementos
de cultura. A Arqueologia remete ao mundo de
um tempo em escala de milhares de anos, onde os
acontecimentos permitem diferenciar civilizações,
sistemas produtivos, regimes políticos e visões de
mundo específicas e a invenção de formas sociais
bastante diferentes entre si. A Lingüística acompanha
algumas das preocupações da Antropologia Biológica
(ver mais na seção seguinte) e mantém uma relação
de diálogo com a Antropologia Cultural e/ou Social.
Em uma escala de tempo secular, o tempo da
história propriamente dita, a Antropologia Cultural
(ou Social, ou Etnologia) se introduz em diversas
realidades, desenvolvendo-se como ciência a partir
de uma noção muito mais complexa e dialética sobre
as múltiplas determinações dos eventos dos homens
e sociedades. É ela que abre as portas a diversas e
distintas realidades que co-existem no mundo em um
mesmo tempo.

CoNeCtANdo sABeres
Leia sobre o assunto em:

DA MATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à


antropologia social. Petrópolis: Vozes, 1981.

A evolução humana como fenômeno bio-cultural

Na metade do século 19, as ciências modernas


começam a afirmar-se definitivamente nas sociedades
ocidentais como uma nova forma de produção e
validação de conhecimento baseada na formulação
de hipótese e do teste empírico e, não mais, na
revelação divina ou na interpretação de mitos e
doutrinas estabelecidas. Por exemplo: da observação
com lentes especiais, primitivos telescópios, o Sol
foi considerado uma estrela a mais entre outras,
uma esfera luminosa em rotação que apresentava
máculas. No entanto, hipóteses eram elucubradas
sobre a fonte da sua energia, explorando idéias
possíveis baseada nas fontes conhecidas na época
16 – uma massa de carvão incandescente, a pressão
da força da gravidade –, bem longe das teorias da
fusão nuclear que surgiram mais tarde, no decorrer
do século 20. O Sol já não era o astro-rei, imaculada
esfera luminosa de perfeição, como nas doutrinas
e mitos do passado, assim como a Terra era apenas
outro planeta, não mais o centro do universo.

sAIBA MAIs
O empirismo é normalmente utilizado se trata do método
científico tradicional, o qual defende que as teorias científicas 17
devem ser baseadas na observação do mundo, em vez do misticismo,
intuição ou fé.

A revolução científica também afetava o estudo da


vida humana e da sua origem. A idéia da origem do
homem em todas as sociedades e culturas, comum
na Igreja Católica da Idade Média, assim como na
grande maioria dos sistemas religiosos e de mitos,
era a da Grande Corrente. um ser supremo criava um
mundo hierarquizado: primeiro os seres humanos
à sua imagem e semelhança. Depois, os animais
superiores como os mamíferos, seguidos dos répteis,
os peixes, as minhocas, finalizando com os vegetais e
o mundo inanimado. As primeiras teorias científicas
e as antropológicas que vieram depois, pouco antes
do surgimento do darwinismo, inverteram essa

Módulo 6 - Antropologia Cultural


corrente. Na época, isso implicou o confronto entre os
pioneiros da Antropologia que, nos principais países
ocidentais, se reuniam em sociedades de estudo do
homem com as instituições e autoridades religiosas,
especialmente padres, bispos, rabinos e pastores,
como vinha acontecendo desde antes com as Ciências
Naturais e a Astronomia.

As novas idéias explicavam o surgimento dos seres


humanos como resultante de uma evolução que se
iniciava em passado muito distante, com o mundo
inorgânico das estrelas e a formação de planetas:
primeiro, o surgimento das formas de vida mais
elementares, como as unicelulares; depois, os
invertebrados – minhocas e insetos, os vertebrados
– peixes e répteis, seguidos pelos mamíferos, até
chegar aos primatas; posteriormente, uma série de
elos encadeados leva até o surgimento do ser humano
no último milhão de anos de evolução. Ao longo
do século 20, metodologias de datação de restos
orgânicos, a exemplo das baseadas em processos
nucleares como o do Carbono 14, deram solidez
empírica e substância às teorias evolutivas. Nos países
ocidentais, a religião já não é usada para explicar o
mundo como no passado e passa a ser entendida
como forma de simbolização e de fornecimento de
sentidos afetivos da vida, de guia e de valores para
o comportamento humano, deixando às ciências as
tarefas de explicação do mundo físico.
Quais são esses elos entre os homens e os macacos? A
partir de 1924 foram descobertos os mais sensacionais
fósseis de “homens-macacos”, denominados de
australophiitecus, achados na África sudeste, na região
conhecida como o Transvaal. Datados entre 750 mil e 1
milhão 750 mil anos atrás, esses fósseis constituíram, sem
dúvidas, a maior descoberta da história da Paleontologia
Humana, colocando os pesquisadores diante de um
mosaico impressionante de mudanças das características
da evolução humana, desde as mais primitivas às mais
avançadas. Desde o “bipedismo”, surgido 4 milhões
e meio de anos atrás, com a formação da pelve e da
perna semelhantes às do homem moderno, permitindo
uma posição mais ereta; a possibilidade do polegar em
oposição (importantíssimo para manipular objetos e
ferramentas) e a capacidade craniana pouco superior à
dos macacos atuais (uma terceira parte do tamanho do
nosso, isto é: em torno de uns 400 centímetros cúbicos).

Os proto-homens não necessitavam utilizar as mãos


para a locomoção e eram capazes de adquirir alguns
elementos de cultura: fabricavam instrumentos
simples de pedra, caçavam esporadicamente em
grupo organizado com armas e tinham, talvez, um
sistema de comunicação mais avançado que o dos
macacos. Ainda que a fala estivesse mais atrasada
que a nossa, há indícios de que estava em pleno
desenvolvimento. Há cerca de meio milhão de anos,
uma mudança gradual ao longo do tempo levou a
um aumento de 50 por cento no tamanho médio
do cérebro, passando do australophitecus ao homo
erectus, com 1.100 centímetros cúbicos, valor já mais
próximo da média moderna que hoje é de 1.350
centímetros cúbicos.

Uma pista decisiva da Paleontologia Humana a


respeito do surgimento da linguagem falada está na
forma da base do crânio, o chamado basicrânio. Nos
mamíferos, a base do crânio é chata, diferentemente
dos humanos, em que é distintivamente arqueada. A
forma do basicrânio em um fóssil é um indicativo da
capacidade de articular os sons, base da linguagem.
Nos humanos, há uma maior extensão da laringe.
No caso dos australophitecus, os basicrânios eram
essencialmente chatos: como os macacos, sua
comunicação vocal deve ter sido bastante limitada.
A época mais remota em que aparece um basicrânio
completamente arqueado localiza-se nos registros
de fósseis cerca de 300 a 400 mil anos atrás, no
denominado homo sapiens arcaico. Porém, a mudança
18 na forma do basicrânio é observada em um espécime
anterior de homo erectus encontrado no norte do
Quênia, que data de quase 2 milhões de anos atrás e
que teria tido a habilidade de produzir certas vogais
como u, a, e, i, permitindo uma capacidade rudimentar
de linguagem falada, segundo julga o pesquisador
Jeffrey Laitman. Em resumo, os indícios anatômicos
indicam uma evolução primitiva da linguagem e da
capacidade fisiológica da produção de sons, seguida
de uma melhora gradual das habilidades lingüísticas
e dessas capacidades. 19

Entretanto, os indícios arqueológicos sobre a


elaboração de elementos culturais – a tecnologia de
artefatos e a expressão artística – parecem contar
uma história um pouco diferente, uma vez que os
produtos das mãos humanas dão algumas percepções
sobre a linguagem e a organização mental humana.
Uma pesquisa de Glynn Issac na Academia de Ciências
de Nova York, em 1976, examinou as indústrias de
artefatos de pedra desde seus primórdios, há mais
de 2 milhões de anos, até a chamada Revolução do
Paleolítico Superior, 35 mil anos atrás. A pesquisa
estava direcionada mais à ordem que os fabricantes
de artefatos impunhavam às suas criações que aos
usos dados às mesmas. Isso porque a imposição da
ordem é uma característica do comportamento

Módulo 6 - Antropologia Cultural


humano que exige uma linguagem falada sofisticada
que elabore, justamente, a arbitrariedade de uma
ordem.

O registro arqueológico mostra o lento surgimento da


ordem. Artefatos que datam de 2,5 milhões até menos
de 1,5 milhões de anos atrás não apresentam indícios
de ordem: os fabricantes estavam preocupados
em produzir lascas afiadas e ferramentas básicas,
raspadores, cortadores e discóides, adequados às
funções que procuravam neles, mas ainda sem uma
ordem nas suas formas. Até cerca de 250 mil anos
atrás, era mínima a imposição da forma e a maioria
dos itens não tinha ordem, apenas o machado manual
em forma de lágrima e cerca de uma dúzia de formas
de artefatos, foram produzidos provavelmente com
algum tipo de plano mental. Aproximadamente até
de 50 mil anos atrás, talvez, em torno de sessenta
tipos de artefatos identificáveis foram fixados em
suas formas e permaneceram imutáveis. Quando as
culturas do Paleolítico Superior surgiram em cena,
a inovação e a imposição de uma ordem arbitrária
foram difundidas, gerando um padrão de diversidade
tecnológica que mudava em uma escala de milênio e
não de centenas de milênios.

Por outro lado, Richard Leakey (1997) assinala que a


pintura e a gravação em abrigos rochosos e cavernas
entram no registro arqueológico abruptamente, há
mais ou menos 35 mil anos, indícios de que surgiram
em comunidades com um sistema de significados
compartilhados mediados, é claro, por meio de
uma linguagem. O pesquisador Iain Davidson, da
universidade da Nova Inglaterra, argumenta que
“a expressão artística foi um meio pelo qual uma
linguagem referencial desenvolveu-se, e não que a
arte tornou-se possível pela linguagem”.

Em 1990, durante uma importante conferência de


antropólogos nos EuA, uma das organizadoras, Kathleen
Gibson, assim descrevia a posição dos expertos:

Já que a inteligência humana, o uso de artefatos e


da linguagem dependem, todos, de um aumento
quantitativo do tamanho do cérebro e de sua capacidade
de processamento de informação, nada poderia ter
emergido subitamente já pronto, como Minerva da
cabeça de Zeus. Em vez disso, assim como o tamanho
do cérebro, cada uma dessas faculdades intelectuais
deve ter evoluído gradualmente. E mais, como essas
faculdades são interdependentes, nenhuma poderia
ter alcançado seu nível moderno de complexidade
isoladamente. (citado em Leakey, 1997: 133).

CurIosIdAde
Minerva teria saído da cabeça de Zeus (Júpiter na mitologia
romana), já adulta, portando escudo, lança e armadura.

A arte teve que fazer uso da linguagem, ou pelo


menos emergir em paralelo com ela. Assim, o
aparecimento dos primeiros trabalhos de arte visual
no registro arqueológico sinaliza a primeira aparição
de uma linguagem referencial falada.

CoNeCtANdo sABeres
Leia sobre o assunto em:

LEAKEY, Richard. A arte da linguagem. Em: A origem da espécie


humana. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

Anteriormente a essa conferência, o antropólogo


Clifford Geertz, baseado nos achados da Paleontologia
Humana, argumentou solidamente que se os
australoptecos possuíam forma elementar de cultura
com um cérebro que media uma terceira parte do
20 tamanho do nosso, “segue-se, logicamente, que a maior
parte do crescimento cortical humano foi posterior, e
não anterior ao ‘início’ da cultura.” (1966: 36).
IMPORTANTE
As conseqüências dessa perspectiva sobre a natureza do homem
são de uma importância fundamental, porquanto o homem “não
apenas se torna o produtor da cultura, mas também, num sentido
especificamente biológico, o produto da cultura”, afirma Geertz.
21

IMPORTANTE

Clifford James Geertz (San Francisco, 23


de agosto de 1926 — Filadélfia, 30 de
outubro de 2006) foi um antropólogo
estadunidense, professor da universidade
de Princeton em Nova Jérsei.

Com cerca de vinte livros publicados, Clifford


Geertz foi um dos principais antropólogos
do século XX. É Considerado o fundador
de uma das vertentes da antropologia
contemporânea - a chamada Antropologia
Hermenêutica ou Interpretativa, que floresceu a partir dos anos 50.

Módulo 6 - Antropologia Cultural


Como veremos adiante, Geertz entende a cultura como uma complexa
“teia de significados”.

O ponto de partida do argumento de Geertz é o


processo da evolução no momento em que a cultura
passou, ela mesma, a conformar um novo meio
ambiente que exercia pressão seletiva no processo
da evolução ao longo do tempo:

o tipo de pressões seletivas que ocorreram durante


as fases terminais da evolução do animal humano
foi parcialmente determinado pelas fases iniciais
do desenvolvimento da cultura humana e não
simplesmente pelos fatores do meio ambiente.
(GEERTZ 1966: 37).

Por exemplo, a caça de pequenos animais utilizando


armas primitivas requer, entre outras coisas, grande
paciência e persistência. Os indivíduos mais dotados
dessas virtudes levariam uma vantagem em relação
a outros mais irrequietos e inconstantes. Essas
aptidões, habilidades, disposições dependem, por
sua vez, do desenvolvimento do sistema nervoso.
Dessa maneira,

a introdução da manufatura de instrumentos e da


caça deve ter alterado o curso das pressões seletivas,
de modo a favorecer o rápido desenvolvimento
do lobo frontal do cérebro, como o fizera, muito
provavelmente, os progressos na organização social,
na comunicação, nas normas de moral [...] durante
esse período de mudanças culturais e biológicas
inter-relacionadas. (GEERTZ 1966: 37).

O fato de várias características distintivas da


humanidade terem surgido ao mesmo tempo e em
complexa interação parece indicar que o sistema
nervoso do homem não só o torna apto a adquirir
cultura como também exige, para funcionar, que o
homem adquira essa cultura. A cultura, diz Geertz,
não apenas suplementa, desenvolve e amplia
capacidades dependentes do organismo (como uma
ferramenta é continuação da nossa mão), mas seria
um componente dessas mesmas capacidades.

sAIBA MAIs
O crescimento do homem aconteceu, portanto, no contexto
de um ambiente cultural em desenvolvimento. Esse mesmo
ambiente deve ser entendido não apenas como uma mera extensão
externa do ser humano, uma ampliação artificial de capacidades
inatas já existentes, mas sim como um fator indispensável da
existência dessas próprias capacidades. Instrumentos, caça,
organização familiar e, posteriormente, arte, religião e certa
forma de conhecimento sobre a natureza ou “ciência” primitiva
moldaram o homem somaticamente, sendo, portanto, necessários
não só à sua sobrevivência, mas também à sua realização existencial.
“Sem o homem, não haveria formas de cultura; mas sem formas
de cultura não haveria o homem”, conclui Geertz. A cognição no
homem depende da existência de modelos simbólicos externos
à realidade, não podendo ser comparada à de nenhum macaco.
Emocionalmente, dá-se o mesmo. Sem a orientação das idéias
comumente aceitas, encontradas nos ritos, no mito e na arte, não
saberíamos, literalmente, como sentir. Tal como o próprio cérebro
anterior expandido, as idéias e emoções são, nos seres humanos,
artefatos culturais.

Se a cultura fornece aos humanos programas de com-


portamento comparáveis à função dos programas nos
nossos atuais computadores, ao nascer, a mente do ser
humano pode-se comparar como um hardware de
computador ainda sem softwares instalados: o cha-
mado processo de socialização ou endoculturação é
que vai “instalando os softwares”” de cada cultura
na infância humana. Se esse processo não aconte-
cesse, assevera Geertz, teríamos um ser humano
22 desprovido de cultura, um ser que “não seria um
macaco intrinsecamente talentoso, embora sem
ter esse talento desenvolvido, mas sim um ser in-
teiramente desprovido de mente e, conseqüentemen-
te, uma monstruosidade inaproveitável.”

O crescimento do homem aconteceu, portanto, no


contexto de um ambiente cultural em desenvolvimento.
Esse mesmo ambiente deve ser entendido não apenas
como uma mera extensão externa do ser humano,
uma ampliação artificial de capacidades inatas já 23
existentes, mas sim como um fator indispensável da
existência dessas próprias capacidades. Instrumentos,
caça, organização familiar e, posteriormente, arte,
religião e certa forma de conhecimento sobre a
natureza ou “ciência” primitiva moldaram o homem
somaticamente, sendo, portanto, necessários não só
à sua sobrevivência, mas também à sua realização
existencial. “Sem o homem, não haveria formas de
cultura; mas sem formas de cultura não haveria o
homem”, conclui Geertz. A cognição no homem
depende da existência de modelos simbólicos
externos à realidade, não podendo ser comparada
à de nenhum macaco. Emocionalmente, dá-se o
mesmo. Sem a orientação das idéias comumente
aceitas, encontradas nos ritos, no mito e na arte,
não saberíamos, literalmente, como sentir. Tal como

Módulo 6 - Antropologia Cultural


o próprio cérebro anterior expandido, as idéias e
emoções são, nos seres humanos, artefatos culturais.

CoNeCtANdo sABeres
Leia sobre o assunto em:

GEERTZ, Clifford. A transição para a humanidade. Em: Tax, Sol


(org.). Panorama da antropologia. Rio de Janeiro, São Paulo,
Lisboa: Fundo de Cultura, 1966.

IMportANte
Esse e outros argumentos levam Clifford Geertz e
outros antropólogos, na década de 1970, a uma redefinição
do conceito de cultura. Desde que formulado como objeto
científico na Grã-Bretanha, em 1871, pelo antropólogo Edward
Tylor, esse conceito passou por um longo percurso: “Cultura
é um todo complexo incluindo conhecimentos, crenças, arte,
moral, leis, costumes, ou qualquer outra capacidade ou hábitos
adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade”.

Na primeira metade do século 20, nos EuA, o


antropólogo Alfred Kroeber argumentava que, pela
cultura, o homem encontra-se acima de suas limitações
orgânicas: “A cultura não é geneticamente herdada,
antes ela é superorgânica, transmitida socialmente e
historicamente acumulativa”. Assim, para adaptar-se
ao frio o homem não desenvolve pêlos, mas constrói
abrigos; para navegar nos rios não desenvolve aletas,
mas constrói canoas.

Na segunda metade do século 20, Geertz considera


os padrões culturais não pela maneira com que
eles se impõem à natureza humana, ou como uma
acumulação de engenhosos estratagemas para
expandir capacidades inatas pré-existentes e, sim,
como parte dessas próprias capacidades. Afasta-se,
portanto, da idéia de uma massa superorgânica de
hábitos como queria Kroeber, propondo que eles
sejam considerados cada vez mais como projetos
para a vida (GEERTZ 1966:42).

IMportANte
A partir das contribuições de Clifford Geertz e David Schneider
a cultura passa a ser definida como “um sistema de símbolos e
significados”. Os símbolos (representações, imagens, danças,
gestuais, músicas, sons, objetos) e os significados atribuídos
aos mesmos são “fatos sociais”, compartilhados socialmente,
“constitutivos de um código dos membros de uma sociedade”.
Aliás, “a cultura orienta as idéias e emoções que se constituem,
portanto, em artefatos culturais”.

Edward Burnett Tylor (Londres, 2 de outubro de


1832 — Wellington, 2 de janeiro de 1917) foi um
antropólogo britânico. Era irmão do geólogo
Alfred Tylor. Considerado o pai do conceito
moderno de cultura, Tylor filia-se à escola
evolucionista. Sua principal obra é Primitive
Culture (1871).

Em suma, ao longo de uns dois milhões de anos,


a cultura modelou tanto quanto foi modelada a
natureza biológica do homem. Nos últimos duzentos
e cinqüenta mil anos, a idade glacial foi um período
que apresentou condições ideais para um mais
rápido e eficiente desenvolvimento do homem,
em que o meio cultural passou a suplementar e a
substituir, cada vez mais, o meio ambiente natural no
processo seletivo, fazendo avançar aceleradamente
a evolução do ser humano. uma época em que não
apenas desapareceram as saliências frontais e houve
diminuição da mandíbula dos hominídeos, mas
uma época em que foram forjadas quase todas as
24 características humanas mais relevantes: o sistema
nervoso encefálico do homem; sua estrutura social
baseada na proibição do incesto; a dependência total
da criança humana, até os dezoito meses de idade,
em relação à organização social para sua existência;
a capacidade de criar e utilizar símbolos; a linguagem
em que se transmitem os significados.

CoNeCtANdo sABeres
Leia sobre o assunto em:
25
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico.
Rio de Janeiro: Zahar, 1993.

sAIBA MAIs
O homem passou a ser, assim, um animal inteiramente
dependente da cultura para a sua sobrevivência: “sem a cultura,
ele não seria mais que uma monstruosidade amorfa”, assevera
Geertz. Essa contribuição da Antropologia ao conhecimento é
exemplar de como ela se situa entre os estudiosos de Ciências
Sociais e os estudiosos de Ciências Biológicas. Os primeiros –
psicólogos, sociólogos, estudiosos de Ciências Políticas – tendem a
encarar a natureza animal do homem como sendo única, diferente
em “espécie” dos demais animais; para os segundos é uma
evidência do parentesco entre o homem e os chamados animais

Módulo 6 - Antropologia Cultural


inferiores, mostrando a evolução como um processo biológico
mais ou menos ininterrupto e contínuo. São esses dois pontos
de vista que a Antropologia tenta reconciliar. Os antropólogos
têm sido os cientistas que mais estudam a evolução física do
homem, desde um ancestral primata comum com os macacos
até o homem moderno, através de uma série de etapas. Os
antropólogos são também os estudiosos especializados na cultura,
ainda com as imprecisões e redefinições que tem tido esse termo.

Confira a seguir um breve resumo de alguns grandes


acontecimentos na história da evolução humana e
seu período correspondente

Acontecimentos

Ruptura da linhagem que deu origem aos chimpanzés por


8 a 6 milhões
um lado, e aos hominídeos, por outro, na áfrica sudeste.

Achados de fósseis de hominídeos mais antigos entre os já


5 a 4 milhões
conhecidos.

4 milhões e Na áfrica leste, os hominídeos tornaram-se definitivamente


meio bípedes.
4 milhões e Na África leste, os hominídeos tornaram-se definitivamente
meio bípedes.

Origem da expansão do cérebro


3 a 2 milhões
Artefatos de pedra mais antigos conhecidos na África

O homo erectus expande-se da África para a Ásia

Importantes avanços na manufatura de implementos


2 a 1 milhão
Indícios do desenvolvimento da capacidade de fala

Indícios do hábito de comer carne

O DESENVOLVIMENTO DO CONCEITO DE CULTURA

Conceito de cultura e de relativismo cultural

Desde o final do século 18 e princípios do 19, o termo


germânico Kultur, desenvolvido pelo estudioso alemão
Herder, era utilizado como símbolo de todos os aspectos
espirituais de um povo, em contraposição à palavra
francesa Civilization que remetia principalmente às
realizações materiais de uma sociedade. Tanto um
como outro foram sintetizados por Edward Tylor no
vocábulo Culture como um todo complexo adquirido
pelo homem que é membro de uma sociedade,
conforme visto na seção anterior

Dois aspectos interessam, sobretudo, na definição de


Tylor. Primeiro, o de abraçar, em uma única palavra, todas
as possibilidades de realização humana. Segundo,
por marcar fortemente o caráter de aprendizado
da cultura. Isso significou, na época, um importante
avanço a respeito das teorias opostas que frisavam a
idéia de aquisição inata, transmitida por mecanismos
biológicos e influenciada fortemente por fatores
geográficos. Ao contrário, os dados contradisseram
fortemente qualquer desses determinismos. Por
exemplo, o antropólogo Felix Keesing observa que os
povos do norte da Europa e da América, ambos em
ambientes geográficos muito semelhantes de longos
26 e rigorosos invernos e de parecidas disposições de
flora e fauna, desenvolveram respostas culturais muito
diferentes para a existência nesse ambiente hostil.
sAIBA MAIs
Os esquimós constroem suas casas (iglu) cortando blocos de
neve e amontoando-os num formato de colméia. Por dentro,
a casa é forrada com peles de animais e, com o auxílio do
fogo, conseguem manter o seu interior suficientemente
quente. (...) quando deseja, o esquimó abandona a casa 27
tendo que carregar apenas os seus pertences e vai construir
um novo retiro.

Os lapões, por sua vez, vivem em tendas de peles de rena.


quando desejam mudar os seus acampamentos, necessitam
realizar um árduo trabalho que se inicia pelo desmonte,
pela retirada do gelo que acumulou sobre as peles, pela
secagem das mesas e o seu transporte para o novo sítio.
Em compensação, os lapões são excelentes criadores de
renas, enquanto tradicionalmente os esquimós limitavam-
se à caça desses mamíferos”. (KEESING, citado em LARAIA,
1986: 22).

O conceito de cultura foi definido pela primeira vez


por Tylor a partir de idéias anteriores sobre a mente
humana. Por exemplo, o filósofo inglês John Locke

Módulo 6 - Antropologia Cultural


procurava, em 1690, demonstrar que a mente humana
não é mais do que uma caixa vazia por ocasião do
nascimento, dotada apenas da capacidade ilimitada
de obter conhecimento através de um processo que
hoje a Antropologia chama de “endoculturação”.

John Locke (29 de Agosto de 1632 — 28 de Ou-


tubro de 1704) foi um filósofo inglês.
Estudou medicina, ciências naturais e filosofia
em Oxford, principalmente as obras de Baco-
ne Descartes. Voltou à Inglaterra quando Gui-
lherme de Orange subiu ao trono. Pai do Libe-
ralismo e do individualismo liberal; a principal
obra, Ensaio sobre o entendimento humano
(1690), propõe que a experiência é a fonte do
conhecimento, que depois se desenvolve por esforço da razão.
É considerado o representante principal do empirismo naquele
país, e ideólogo do liberalismo. É predecessor do Iluminismo. A
filosofia política de Locke fundamenta-se na noção de governo
consentido dos governados diante da autoridade constituída e o
respeito ao direito natural do ser humano, de vida, liberdade e
propriedade.
O “Behaviorismo” se baseia na teoria de Locke que acreditava que
o ser humano aprende pela experiência, pela tentativa e erro.

Locke refutou as idéias correntes no século 17 e que


se manifestam, ainda hoje, em preconceitos étnicos e
raciais, de princípios inatos impressos hereditariamente
na mente humana segundo cada povo. Ao mesmo
tempo, Locke avançou em direção ao que, no século
20, se define como “relativismo cultural”, ao afirmar
que distintos grupos de homens têm princípios práticos
opostos, governados por “opiniões práticas e regras
de condutas bem contrárias umas às outras” (LOCKE,
citado em LARAIA 1986: 26).

Ampliada e clarificada a definição primeira de Tylor, o


conceito de cultura era considerado, em 1950, como
“a maior realização da Antropologia na primeira
metade do século 20”, segundo Kroeber, que
representou o afastamento crescente dos domínios
do cultural e do natural no homem.

IMportANte
O ser humano foi diferenciado dos demais animais por
duas propriedades notáveis: a linguagem ou possibilidade da
comunicação oral, e a capacidade de fabricação de instrumentos
capazes de tornar mais eficientes as disposições biológicas. Ambas
as possibilidades permitiram uma afirmativa mais ampla: o homem
é o único ser possuidor de cultura.

Mas, em meados do século 20, acima de uma centena


de diferentes definições de cultura formuladas após
Tylor existiam e serviram mais para confundir do que
para ampliar e esclarecer os limites do conceito. Por
isso é que, em 1973, Geertz pede para “diminuir a
amplitude do conceito e transformá-lo num
instrumento mais especializado e mais poderoso
teoricamente”, propondo a definição de cultura que
vimos na seção anterior.

CoNeCtANdo sABeres
Leia sobre o assunto em:
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico.
Rio de Janeiro: Zahar, 1993.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro:


Zahar, 1993, no capítulo O impacto do conceito de cultura sobre
o conceito de homem, pp.45-66.

TYLOR, Edward B. “Antropología: lecturas”. Madrid: McGraw


Hill, 1988.

28 Agora, coloquemos em foco a questão do relativismo


cultural antes mencionada. Essa questão nasce da
constatação empírica de que todos os povos formam
juízos acerca dos modos de vida e dos valores
diferentes dos seus. Nos primórdios da Antropologia
e do empreendimento do estudo sistemático de
diferentes povos, foram estabelecidos muitos quadros
e esquemas para classificar os modos de vida desses
povos. No entanto, emitiram-se juízos morais sobre
os princípios éticos que guiavam o comportamento
e os valores dos diferentes povos em comparação 29
ao próprio do pesquisador. Assim, os evolucionistas
unilineares classificaram as estruturas econômicas e
políticas e as crenças e práticas religiosas por ordem
de complexidade, eficácia, e desejabilidade, porém,
em termos dos valores e juízos da sociedade do
pesquisador. Igualmente, avaliaram sua arte, música,
presença ou ausência de escrita e de formas literárias
inscritas graficamente. Mas, iniciado o século 20, foi
cada vez mais evidente para os pesquisadores que esse
tipo de avaliações não sustentava critérios científicos,
seja porque dependiam da aceitação ou não, por
inteiro, das premissas de que derivavam, seja porque
baseavam seus juízos em critérios incompatíveis.

A seguir, um simples exemplo que elucidará essa


questão. Os modos pelos quais se pode estruturar

Módulo 6 - Antropologia Cultural


uma família não são muitos. Um homem pode viver
com uma mulher ou pode ter um certo número de
esposas simultaneamente (África); uma mulher pode
ter um certo número de maridos simultaneamente
(sul da Índia). Avaliados esses modos de vida segundo
o critério da perpetuação do grupo, que assegura
a subsistência das crianças até atingirem a idade
adulta, todos se desincumbem satisfatoriamente
nessa função primordial, demonstrando sua tarefa
essencial. Se assim não fosse, as sociedades em que
funcionam não teriam sobrevivido. Entretanto,
essa resposta não satisfará àqueles que estudam o
problema da avaliação cultural. Como entender as
questões morais inerentes à instituição da monogamia
em comparação com a poligamia, do status do esposo
plural, da adaptação das crianças criadas em famílias
em que as mães devem competir, em benefícios
dos filhos, pelos favores de um marido comum? Se
a monogamia é sustentada como a forma desejada
de matrimônio, as respostas a essas perguntas serão
terminantes. Porém, se as consideramos do ponto
de vista dos membros dessas sociedades diferentes
da nossa, é clara a possibilidade de respostas
alternativas baseadas em concepções diferentes do
que é desejável.
CoNteXtuALIZAÇÃo
Sobre a teoria da performance:

Como é a vida de uma família plural poligâmica em uma cultura


da áfrica Ocidental, a do antigo reino do Dahomey, antes da
independência e formação da atual República do Benin? O
antropólogo norte-americano Melville Herskovits nos dá uma
descrição da situação nas primeiras décadas do século 20:

A unidade é um homem e suas esposas. O homem tem sua própria


casa, como também a tem cada uma das mulheres, de acordo com
o princípio básico do procedimento africano de que duas esposas
não podem conviver pacificamente na mesma casa. Os filhos de
cada esposa vivem com a mãe. Cada esposa passa, por sua vez, uma
semana de quatro dias (dividindo o ciclo luar em sete semanas de
quatro dias em vez de quatro semanas de sete dias) com o marido
comum, fazendo-lhe a comida, lavando sua roupa, dormindo na
casa dele durante esse tempo, passado o qual dá o lugar à outra
esposa. Seus filhos permanecem na cabana da mãe. Abandona
essa rotina durante a gravidez e, presumivelmente, no interesse da
saúde do filho e da sua própria, não repete suas visitas ao marido
até que a criança seja desmamada. Isso significa um período de três
ou quatro anos, já que as crianças ali mamam dois anos ou mais.

A unidade composta resultante é uma unidade cooperativa. As


mulheres, que vendem coisas no mercado ou fazem vasilhas ou
cuidam das hortas, contribuem para seu sustento. Porém, esse
aspecto, embora de grande importância econômica, é secundário
comparado com o prestígio que dá à comunidade, e do qual todos
os membros participam. Por isso, vemos com freqüência que uma
esposa não só pede insistentemente ao marido que adquira uma
segunda esposa (“pagando” à família do sogro como é o costume),
como também o ajuda com empréstimos ou donativos nesse
sentido. Como o que a mulher ganha é seu e dele pode dispor a
seu bel-prazer, e como as mulheres que têm comércio no mercado
gozam de elevada posição econômica dentro das possibilidades
dessa sociedade poligâmica, há um apreciável número delas que
dispõe de meios abundantes podendo, assim, ajudar os maridos
nos gastos de outro casamento. É claro que surgem tensões entre
as mulheres que vivem numa dessas unidades compostas. Há treze
maneiras diferentes de se casar e, numa família ampla, as esposas
casadas no mesmo estilo tendem a unir-se contra todas as demais.
A competição pelas atenções do marido representa também seu
papel, embora isso seja freqüente tanto no interesse dos pequenos
como por vantagem pessoal. As rivalidades são especialmente
ásperas quando várias esposas tratam de influir na escolha de um
herdeiro em favor de seus próprios filhos. Entretanto, todas as
crianças da unidade composta brincam juntas e a força dos laços
emotivos entre filhos da mesma mãe mais do que compensa as
30 possíveis tensões entre irmãos e irmãs que compartilham o mesmo
pai mas são de diferentes mães. Ademais, tampouco falta a
cooperação entre as esposas. Realizam-se muitas tarefas comuns
em fraternal uníssono e há solidariedade quanto ao interesse das
prerrogativas das mulheres ou quando se vê ameaçado o status do
marido comum, o pai de seus filhos.

A estrutura da família em Dahomey é obviamente uma instituição


complexa. Se considerarmos unicamente um de seus aspectos,
31
as muitas linhas possíveis de relações pessoais entre os muitos
indivíduos que abrange, vemos claramente quão numerosas são as
ramificações dos direitos e obrigações recíprocos e, por conseguinte,
as áreas concomitantes de segurança e conflito. Sua efetividade é,
entretanto, patente. Durante incontáveis gerações, realizou sua
função de criar as crianças; e não só isso: a própria extensão do
grupo lhe assegura recursos econômicos e uma estabilidade que
bem poderia ser invejada pelos que vivem sob outros sistemas de
organização familiar.

Os valores morais são sempre difíceis de determinar porém, ao


menos, nessa sociedade, o casamento se distingue claramente das
relações sexuais ocasionais e da prostituição também conhecida
pelos dahomeyanos. Difere delas por suas sanções sobrenaturais
e pelo prestígio que confere, para não falar das obrigações
econômicas para com a esposa e os possíveis filhos, explicitamente
aceitos por quem contrai casamento.

Módulo 6 - Antropologia Cultural


Inúmeros problemas de ajustamento se apresentam num
agregado dessa natureza. Não se pode subestimar o choque de
personalidade quando se põem em íntimo contato pessoas de
diferente fundo individual. Não é necessário pensar muito para
entender a lamentação do chefe de um amplo agregado desses
ao dizer: “É preciso ser um pouco diplomata quando se tem
muitas esposas”. Entretanto, as alusões maldosas em provérbios
e canções, assim como as brigas declaradas, não merecem maior
consideração que as de uma pequena comunidade rural em que as
pessoas também estão obrigadas a conviver estreitamente durante
longos períodos de tempo. As pendências entre co-esposas não
são muito diferentes das disputas de quintal entre vizinhos. E os
dahomeyanos, que conhecem a cultura européia, quando falam de
seus sistemas e o defendem, destacam o fato de que estes permitem
à esposa individual partos espaçados, o que está de acordo com
os melhores preceitos da moderna ginecologia (ocidental). Assim,
pois, a poligamia, quando observada do ponto de vista dos que
a praticam, mostra valores (direitos e obrigações) não visíveis
de fora. A mesma defesa se pode fazer da monogamia, quando
atacada pelos que estão “endoculturados” num diferente gênero
de estrutura familiar. (HERSKOVITS, 1948: 84-85).
IMportANte
Apoiados numa vasta acumulação de dados obtidos mediante
a aplicação de técnicas nos estudos de campo, contatando os
sistemas de valores subjacentes em sociedades de costumes das
mais diversas, os antropólogos concluíram que “as avaliações
são relativas ao contexto cultural de que surgem”, propondo o
chamado princípio do relativismo cultural, assim formulado: “Os
juízos baseiam-se na experiência, e a experiência é interpretada
pelo indivíduo em termos de sua própria endoculturação.”
(HERSKOVITS, 1948: 86).

Distinções como bom e mau, normal e anormal, belo


e vulgar, são absorvidas desde a infância, à medida
que uma pessoa aprende os modos de conduta e
valores do grupo em que nasceu: este é um processo
de primeira grandeza chamado endoculturação. Nele,
estão incluídos os fatos emocionais e os fatos do
mundo físico. Todos são discernidos através da tela
“endocultural”: as dores, as alegrias, a percepção
do tempo, a distância, o peso, o tamanho e outras
“realidades” se acham condicionadas pelas convenções
de cada grupo. Entretanto, nenhuma cultura é um
sistema fechado e isolado, nem uma série de rígidos
moldes aos quais se devam conformar a conduta
de todos os seus membros. Os indivíduos, graças ao
hábito e à aprendizagem, se submetem aos modos do
grupo no qual nascem, mas variam em suas reações
às situações com que se deparam na vida. Diferem
também individualmente, no grau em que desejam
mudanças. Há culturas que frisam a estabilidade como
um fim almejado, outras, exaltam a mudança.

Outro conceito importante da Antropologia Cultural


é o chamado etnocentrismo. Trata-se do ponto de vista
segundo o qual o modo de vida de uma sociedade é
preferível a todos os outros. É um sentimento que
surge do processo inicial de “endoculturação” e é,
portanto, naturalizado. Em geral, é mais assentado
tacitamente do que expresso em termos precisos,
operando positivamente em favor do ajustamento
individual e da integração social, fortalecendo o
ego e identificando-o com o próprio grupo social,
fazendo aceitáveis seus modos e costumes como
sendo os melhores. Porém, quando o etnocentrismo é
racionalizado e até levado à doutrina, como ocorreu
e ainda ocorre na cultura ocidental, em detrimento
de outros povos, dá origem a sérios problemas como
32 o anti-semitismo e o racismo, a idéias e preconceitos
sobre a superioridade branca (o arianismo – que foi
a base do nazismo) e à justificativa da colonização, à
espoliação e ao saqueio de outros povos.
O julgamento das culturas sob a designação de
“civilizadas” e “primitivas”, palavras que apresentam
uma simplicidade de todo enganosa, decorre do
etnocentrismo moderno, geralmente expressado como
eurocentrismo. Aliás, todas as tentativas de documentar
as diferenças entre elas para estabelecer definições
precisas têm demonstrado ser erradas por completo.
Como vimos, a palavra “primitivo” prevaleceu quando a 33
teoria antropológica se encontrava nos seus primórdios,
dominada pela tendência evolucionista, que equiparava
com os primitivos habitantes da terra os atuais povos
que se acham fora da corrente da cultura européia, ou
seja, a maioria deles.

Os habitantes primitivos, a bem dizer os primeiros seres


humanos, podem ser classificados como “primitivos” no
sentido literal da palavra, mas coisa muito diferente é
designar com essa mesma palavra povos contempo-
râneos. Como enfatiza Herskovits, “não há razão para
considerar nenhum grupo atual como nosso antepassado
contemporâneo”. Porém, jornalistas, inclusive das mídias
mais importantes, reproduzem ainda no século 21 esses
preconceitos oriundos do século 19, ao considerar que
um ritual ou um cerimonial de um povo não ocidental

Módulo 6 - Antropologia Cultural


“parece primitivo”, ou “congelado no tempo”.

Em suma, com a possível exceção dos aspectos


tecnológicos da vida atual, cada vez mais necessitados
de ajustes e mudanças radicais se considerarmos as
conseqüências que trazem para a ecologia planetária,
a proposição de que uma cultura é melhor que outra
é muito difícil de se estabelecer a partir de qualquer
critério que possa ser universalmente aceito.

CoNteXtuALIZAÇÃo
Vejamos os exemplos que coloca Herskovits (1948: 95-96):

Os aborígines da Austrália, considerados geralmente como um


dos povos mais “primitivos” da terra, têm uma terminologia do
parentesco e um modo tão complexo de enumerar os parentes com
base nessa terminologia que, durante anos, resistiu aos intentosdos
investigadores. Diante dela, nossa terminologia apresenta-se
insignificante, pois não distinguimos entre avós paternos e maternos,
ou entre irmãos mais jovens ou mais velhos, e designamos dúzias
de diferentes parentes com a mesma palavra “primo”. Os nativos
do Peru, antes da conquista dos espanhóis, faziam tapeçarias do
mais fino tecido, tingido de cores menos sujeitas a desbotar do que
qualquer uma das merecidamente louvadas tapeçarias de Gobelin
(na França). A visão do mundo dos africanos tem muito de comum
com a tão ponderada visão do mundo dos gregos. Os mitos épicos
dos polinésios impressionam por sua complexidade a quem se
der ao trabalho de familiarizar-se com eles. Estes e muitos outros
exemplos mostram que uma pretensa raça “primitiva” não segue
modos de vida necessariamente simples. Demonstram também
que os chamados povos “primitivos” não são nem infantis, nem
ingênuos, nem pouco complicados, para citar as qualificações
mais empregadas por aqueles que não dispõem de experiência de
primeira mão sobre tais povos, nem se deram ao trabalho de os
conhecer através de informações contemporâneas que narram sua
maneira de viver.

Para entender o sentido de relativismo cultural


é preciso nos distanciar de afirmações que dizem
que os valores não existem porque são relativos ao
tempo e lugar, ou que negam a validez psicológica
de conceitos divergentes da realidade, pois seríamos
vítimas de não levar em consideração a contribuição
positiva da posição relativista. O relativismo,
enquanto filosofia, afirmou, perante o colonialismo e
a imposição da “civilização” européia, a necessidade
de reconhecermos os valores estabelecidos em
cada povo para guiar sua própria vida, insistindo
na dignidade inerente a cada corpo de costumes e
na necessidade de tolerância perante convenções
diferentes das ocidentais, frisando o quanto estas
últimas não são universais, mas também relativas a
um tempo e lugar.

CoNeCtANdo sABeres
Leia sobre o assunto em:

HERSKOVITS, Melville. Antropologia cultural,, Vol.1. São Paulo:


Mestre Jou, 1963, no capítulo O problema do relativismo cvultural,
pp.83-101.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio


de Janeiro: Zahar, 1993.

É importante perceber, também, que a cultura,


antropologicamente entendida, pode ser muito
dinâmica. As mudanças podem surgir por invenção
interna, por empréstimo de fora, mas as culturas mudam
constantemente em sua totalidade e em cada um de
seus aspectos. A Antropologia Cultural estuda essas
mudanças sob o ângulo dos processos sociais de contato
entre duas culturas, da difusão e da interação, assim
como distingue os processos chamados de aculturação,
isto é, de adoção ou imposição forçada das normas de
uma cultura por outra.

34 Os indivíduos mudam com a cultura, ainda que às


vezes resistindo ou, em outras, dando boa acolhida
às mudanças. A posição do relativismo cultural
não nega a força dos códigos e
normas que prevalecem em uma
dada cultura em certo tempo. Isso
porque o ser humano estabelece, em
todas as sociedades, metas e ideais
para si mesmo, independentemente
de ocorrerem mudanças ou das
diferenças de povo para povo. Essas 35
metas e ideais prevaleceram durante um período e
serão inculcados nas crianças e jovens. Cada nova
geração será “endoculturada” nos sistemas de valores
dos seus predecessores, assim como as transgressões
serão punidas de acordo com os códigos e normas
consagrados pela geração anterior desse povo. Tanto
a educação como a lei fazem parte do universo da
cultura, sendo os meios pelos quais cada sociedade
sanciona os modos de conduta, sublinha e faz
desejáveis seus valores.

CurIosIdAde
Em toda cultura há, porém, o tipo de personalidade do
rebelde, questão que nos permite considerar a distinção
entre o relativismo cultural e a relatividade da conduta individual.
Na sociedade humana, existem forças morais de integração social.

Módulo 6 - Antropologia Cultural


As regularidades da vida exigem a conformidade com o código
do grupo. O relativismo cultural afirma a existência de diversos
modos de vida, e não os valores de um só. Tampouco afirma o valor
do modo de vida de um indivíduo, mas os valores de uma cultura
que constituem um fato social. O individualismo exacerbado,
assim como as rígidas dicotomias entre o bem e o mal, parecem
ser muito mais exclusivos da cultura ocidental do que de outras.
As relações entre o bem e o mal, o coletivo e o indivíduo, a mente
e o corpo passam entre os extremos de uma ampla escala variável
que apresenta diferentes graus de cinzento. Como filosofia, o
relativismo cultural teve que aguardar o desenvolvimento de
um suficiente conhecimento etnográfico, um amplo cabedal de
dados que tornou possível a humildade refletida na tolerância
da atitude cultural relativista e sua amplitude de visão.Por
meio dessa disposição, a Antropologia retornou à cultura
de origem do pesquisador com uma perspectiva nova e uma
objetividade que de outro modo não tinha antes alcançado.
CoNeCtANdo sABeres
Leia sobre o assunto em:

HERSKOVITS, Melville. Antropologia cultural,, Vol.1. São Paulo:


Mestre Jou, 1963, no capítulo O problema do relativismo cultural
cultural,
pp.83-101.

BOAS, Franz. “Cuestiones fundamentales de antropología cultural”.


Buenos Aires: Solar/Hachete, 1964.

o estudo da cultura no pensamento antropológico


contemporâneo

Além de contribuir para a primeira definição de cultura


do ponto de vista antropológico, o pesquisador inglês
Edward Tylor procurou demonstrar que cultura pode
ser objeto de um estudo sistemático, tratando-a como
um fenômeno natural com causas e regularidades
que permitiriam um estudo objetivo e uma análise
visando a formulação de leis sobre o processo cultural
e a evolução. Procurou demonstrar, também, que a
cultura se apresentava em vários graus, considerados
como estágios de desenvolvimento ou evolução. Mas,
desse modo, Tylor, como seus contemporâneos, era
antípoda da idéia de relativismo cultural como definida
posteriormente, nas primeiras décadas do século
20. Todo o esforço intelectual estava direcionado a
classificar as diversas culturas ao longo de uma divisão
preestabelecida de estágios, em uma única linha
evolutiva. Assim, Maine (1861) procurou analisar o
desenvolvimento das instituições jurídicas; Bachofen
desenvolveu a idéia da promiscuidade primitiva e,
conseqüentemente, da instituição do matriarcado;
McLennan estudou a instituição do matrimônio a partir
dos casamentos por rapto. A idéia predominante por
detrás de cada um desses estudos era de que a cultura
se desenvolve de maneira uniforme, de que cada
cultura percorreria as mesmas etapas que já tinham
sido percorridas pelas “sociedades mais avançadas”.
As diferentes sociedades humanas eram classificadas
hierarquicamente, com ampla vantagem para as
culturas européias. Na época, etnocentrismo (ver
definição na seção anterior) e ciência coincidiam.

Contudo, dois grandes méritos de Tylor foram


contribuir à afirmação da teoria da unidade psíquica
36 da humanidade, em que pesem as diferenças
culturais e, em metodologia, instituir uma crítica
arguta e exaustiva dos relatos dos viajantes e
cronistas coloniais. Em vez da aceitação tácita dessas
formulações, Tylor questionava sua veracidade,
recusando-se, por exemplo, a aceitar a afirmação de
que diversos grupos tribais, entre eles os indígenas
brasileiros, eram desprovidos de religião, porquanto
se baseavam “sobre evidências freqüentemente
erradas e nunca conclusivas” (TYLOR citado em
LARAIA 1986: 35). 37

A crítica e superação do evolucionismo, denominado


na época “método comparativo”, começou com
Franz Boas, formado na Alemanha e migrado para
os Estados Unidos. Boas atribuiu à Antropologia a
execução de duas tarefas. A primeira é de ordem
metodológica, argüindo que a comparação da
vida social de povos diferentes deve ser feita sob
a condição, antes de tudo, de ser comprovada a
possibilidade real de os dados serem comparáveis. A
segunda, que mais nos interessa aqui, é a proposta
de reconstrução da história de povos ou regiões
particulares, em que cada povo ou região tem sua
própria linha evolutiva, sua própria história particular,
já não mais vista sob uma única linha evolutiva. Boas
desenvolveu, em outras palavras, o particularismo

Módulo 6 - Antropologia Cultural


histórico, segundo o qual “cada cultura segue os
seus próprios caminhos em função dos diferentes
eventos históricos que enfrentou” (LARAIA, 1986:
36-37). A idéia de evolução unilinear é superada pela
concepção da evolução multilinear.

Depois de Boas, seu discípulo Alfred Kroeber contribuiu


para a ampliação do conceito de cultura em torno dos
seguintes pontos:

• A cultura, mais do que a herança genética,


determina o comportamento do homem e
justifica as suas realizações;

• A cultura é um processo acumulativo,


resultante de toda a experiência histórica
das gerações anteriores;

• A cultura é o meio de adaptação aos dife-


rentes ambientes ecológicos. Ao invés de
modificar para isso o seu aparato biológico,
o homem modifica o seu equipamento
superorgânico, transformando toda a terra
em seu habitat;

• O homem age de acordo com os seus padrões


culturais. Os seus instintos foram parcialmente
anulados pelo longo processo evolutivo por
que passou, dependendo muito mais do apren-
dizado (“endoculturação” ou socialização,
termos aqui equivalentes) que de atitudes
geneticamente determinadas;

• O processo cultural limita ou estimula a ação


criativa do individuo. Os gênios são indivíduos
altamente inteligentes que têm a oportu-
nidade de utilizar o conhecimento existente
ao seu dispor, construído pelos participantes
vivos e mortos de seu sistema cultural, e criar
um novo objeto ou uma nova técnica.

CoNeCtANdo sABeres
Leia sobre o assunto em:

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico


antropológico.
Rio de Janeiro: Zahar, 1993.

Algumas das conclusões da noção de cultura contra-


riam o pensamento leigo atual. Como observa o
antropólogo brasileiro Roque Laraia, “é comum, entre
os diferentes setores de nossa população, a crença nas
qualidades (positivas ou negativas) adquiridas graças
à transmissão genética... “Meu filho tem muito jeito
para a música, pois herdou esta qualidade do seu avô”
(LARAIA, 1986: 45). Contribuíram em muito para esse
tipo de afirmativa as teorias do criminalista italiano
Cesare Lombroso que, no final do século 19, procurou
correlacionar aparência física com tendência para
comportamentos criminosos, teoria que encontrou
grande receptividade popular, perigosamente associada
com discriminações raciais e sociais, numa tentativa de
justificar as desigualdades sociais.

O que a noção de cultura da Antropologia mostra é


o homem como resultado do meio cultural em que
foi socializado. O patrimônio cultural é resultante
de um processo acumulativo, de conhecimentos e
experiências adquiridas por numerosas gerações ao
longo do tempo. Inovações e invenções decorrem da
manipulação adequada e criativa desse patrimônio,
não apenas da ação isolada de um gênio individual.

sAIBA MAIs
Segundo Lombroso, pela análise de determinadas caracterís-
ticas somáticas seria possível antever aqueles indivíduos que
se voltariam para o crime.
38
CoNteXtuALIZAÇÃo
Não basta a natureza criar indivíduos altamente inteligentes,
isso ela o faz com freqüência, mas é necessário que coloque ao
alcance desses indivíduos o material que lhes permita exercer a
sua criatividade de uma maneira revolucionária. Santos Dumont 39
(1873-1932) não teria sido o inventor do avião se não tivesse
abandonado a sua pachorrenta Palmira, no final do século 19,
e se transferido em 1892 para Paris. Ali, teve acesso a todo o
conhecimento acumulado pela civilização ocidental. Em Palmira,
o seu cérebro privilegiado poderia talvez realizar outras
invenções, como por exemplo, um eixo
mais aperfeiçoado para carros de bois,
mas jamais teria tido a oportunidade de
proporcionar à humanidade a capacidade
da locomoção aérea. (LARAIA, 1986: 47-48).

Outras perguntas leigas que comumente se colocam


perante a noção de cultura, tais como “Onde fica
o instinto de conservação? O instinto materno? O
instinto filial? O instinto sexual?...”, exprimem um erro

Módulo 6 - Antropologia Cultural


semântico, pois não se referem a comportamentos
biologicamente determinados, mas a padrões culturais,
apenas. Se prevalecesse a determinação biológica,
deduziria-se que toda a humanidade deveria agir com
os mesmos padrões diante das mesmas situações, e
isso não é verdadeiro para nenhuma das perguntas
citadas.

Outra questão refere-se à cultura como um processo


acumulativo. quando a criança começa a aprender
a falar, vai recebendo informações sobre todo o
conhecimento acumulado pela cultura em que vive
através da comunicação oral. Toda a experiência de um
indivíduo, cada observação, cada invenção é transmitida
aos demais, beneficiando a espécie e criando, assim, um
interminável processo de acumulação.

Desde meados do século 20 o conceito de cultura rece-


be numerosas reformulações, podendo ser classifica-
das, como propôs o antropólogo Roger Keesing (1974),
em teorias que, por um lado, consideram a cultura
como um sistema adaptativo aos seus embasamentos
biológicos e ambientais (entre elas estão as teorias
chamadas neo-evolucionistas) e, por outro lado, as
teorias idealistas da cultura, aquelas interessadas
nos problemas da representação, do conhecimento
e do simbolismo, que respondem a três perspectivas
diferentes. São essas as teorias que mais nos interessam
em relação ao estudo das artes da performance como
o teatro e a dança.
A primeira das perspectivas de teorias idealistas
considera a cultura como sistemas cognitivos, isto
é, sistemas de conhecimento. Seu método parte do
estudo dos sistemas de classificação do povo estudado:
a análise dos modelos construídos pelos membros
do grupo a respeito de seu próprio universo. Para o
principal de seus expoentes, o antropólogo norte-
americano Ward Goodenough, a cultura “consiste
de tudo aquilo que alguém tem de conhecer ou
acreditar para operar de maneira aceitável dentro
de sua sociedade”. Essa perspectiva, desenvolvida na
década de 1960 nos Estados unidos, foi fortemente
abalada e superada pelas outras duas.

A segunda perspectiva considera cultura como siste-


mas estruturais, seguindo o pensamento do antropó-
logo francês Claude Lévi-Strauss. Nessa abordagem, a
cultura é uma criação acumulativa da mente humana.
Seu objetivo é descobrir, na estruturação dos domínios
culturais – mito, arte, parentesco e linguagem – os
princípios da mente que geram essas elaborações
culturais. uma nova teoria da unidade psíquica da
humanidade é formulada: os chamados paralelismos
culturais (mesmas invenções em regiões sem nenhuma
conexão geográfica nem histórica entre si) são
explicados pelo fato de que o pensamento humano
encontra-se submetido a regras inconscientes. Postula-
se uma arquitetura da mente baseada em um conjunto
de princípios, tais como a lógica de contrastes binários,
de relações, transformações, inversões e permutações,
que controlam as manifestações culturais empíricas de
cada grupo. Para o campo do teatro é bem conhecida
sua proposta de análise estruturalista dos mitos e da
relação entre a natureza e a cultura do homem, como
o mito de Édipo.

sAIBA MAIs
Sobre os mitos e o estruturalismo:

O mito de Édipo oferece uma espécie de instrumento lógico


que permite lançar uma ponte entre o problema inicial - nascemos
de um único ou de dois? – e o problema derivado, que se pode
formular, aproximadamente: o mesmo nasce do mesmo ou de
outro? Por este meio, uma correlação se evidencia: a superestima
do parentesco consangüíneo está para a subestima deste, como
o esforço para escapar à autoctonia está para a impossibilidade
de consegui-lo. A experiência pode desmentir a teoria, mas a vida
social confirma a cosmologia na medida em que ambas traem a
mesma estrutura contraditória. Então, a cosmologia é verdadeira.
40 [...] O problema, pôsto por Freud [...] não é mais [...] o da alternativa
entre autoctonia e reprodução bissexual. Mas se trata sempre de
compreender como um pode nascer de dois: como se dá que não
tenhamos um único genitor, mas uma mãe, e um pai a mais? Não
se hesitará pois em classificar Freud, depois de Sófocles, na relação
de nossas fontes do mito de Édipo. (LÉVI-STRAuSS, 1989: 250).

41
CoNeCtANdo sABeres
Leia mais sobre o estruturalismo em:

LÉVI-STRAuSS, Claude. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro:


Tempo Brasileiro, 1989, no capítulo A estrutura dos mitos.

A terceira e última dessas abordagens considera


a cultura como sistemas simbólicos. Essa posição
foi desenvolvida, nos Estados unidos, por dois
antropólogos já citados, o conhecido Clifford Geertz
e David Schneider. O primeiro deles propõe uma
definição de homem baseada na definição de cultura,
considerada “não um complexo de comportamentos
concretos, mas um conjunto de mecanismos de

Módulo 6 - Antropologia Cultural


controle, planos, receitas, regras, instruções (que os
técnicos de computadores chamam programa) para
governar o comportamento”. Para Geertz, todos os
homens são geneticamente aptos para receber um
programa e é este programa o que chamamos de
cultural, abordagem que lhe permitiu afirmar que
“um dos mais significativos fatos sobre nós pode
ser finalmente a constatação que todos nascemos
com um equipamento para viver mil vidas, mas
terminamos no fim tendo vivido uma só!”.

A abordagem de Schneider tem muitos pontos


semelhantes à de Geertz, considerando a cultura
como um sistema de símbolos e significados e
compreendendo categorias ou unidades e regras
sobre relações e modo de comportamento. O
interessante em Schneider é sua consideração do
status das unidades culturais, que independem da
sua “observabilidade”: mesmo fantasmas ou pessoas
mortas podem ser categorias culturais!!

Com Schneider e com Geertz nos aproximamos da


Antropologia Simbólica que, como veremos mais
adiante, foi formulada pelo inglês Victor Turner,
importante autor para os estudos de performance e
de Antropologia do Teatro. A respeito das abordagens
anteriores, Geertz critica a primeira perspectiva
da Antropologia Cognitiva por considerá-la um
formalismo reducionista e espúrio: reduz a cultura
a modelos conscientes propondo que os significados
estão na cabeça das pessoas. Ao contrário, para
Geertz, os símbolos e significados são partilhados
pelos membros de um sistema cultural, entre eles,
mas não “dentro” deles: símbolos e significados
são públicos e não privados. Estudar a cultura é,
portanto, estudar um código particular de símbolos e
significados partilhados pelos membros dessa cultura
em particular. Geertz é crítico da proposta de reduzir
a cultura a um código apreensível numa gramática,
ou à pretensão do estruturalismo de Lévi-Strauss
em descodificar os códigos culturais. Para Geertz, o
projeto da Antropologia supera a redução da cultura
a gramáticas ou a exercícios de descodificação, vendo
na cultura, ao contrário, um texto a ser interpretado,
uma difícil e vagarosa tarefa, sem dúvida.

CoNeCtANdo sABeres
Leia sobre o assunto em:

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico.


Rio de Janeiro: Zahar, 1993, nos capítulos O desenvolvimento do
conceito de cultura e Teorias modernas sobre cultura.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro:


Zahar, 1978, no capítulo Uma descrição densa: por uma teoria
interpretativa da cultura.

Leia sobre as principais tendências da Antropologia em:

LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. São Paulo:


Brasiliense, 1995, nos capítulos 1-6 da Segunda Parte, As principais
tendências do pensamento antropológico contemporâneo,
pp.95-146.

Finalmente, é importante deixar claro, agora, a


diferença entre o social e o cultural. uma definição
clássica a esse respeito é a do antropólogo Roberto
Da Matta:

O social remete às relações que os grupos mantêm


entre si dentro de um conjunto – um grupo étnico,
uma comunidade rural ou urbana, um bairro, uma
região, uma nação – e para com outros conjuntos
também hierarquizados. A cultura remete também
ao social, mas considerado desde a perspectiva
42
dos caracteres distintivos que apresentam os
comportamentos individuais dos membros desse
grupo, bem como suas produções originais no
campo técnico, artesanal, artístico, religioso.

43

A DIVERSIDADE CULTURAL

A variabilidade cultural e as artes

No seu desenvolvimento, a Antropologia Cultural


foi descobrindo o enorme número de orientações
possíveis de serem escolhidas e adotadas por uma
sociedade, a diversidade impressionante de culturas
daí resultantes. Há os esquemas da propriedade,
com a hierarquia social associável ao que se possui,
às coisas materiais e técnicas correspondentes.

Módulo 6 - Antropologia Cultural


As facetas da vida sexual, da paternidade e da
maternidade, da relação dos vivos com os mortos
antepassados. A estruturação da sociedade por meio
dos rituais e das crenças praticadas. Os complexos
sistemas de trocas econômicas e de todo tipo de
reciprocidades, implicando o universo simbólico com
a construção de status e de prestígio, muito além
do simples escambo. O mundo das divindades e das
sanções sobrenaturais. Alguns desses aspectos são
elaborados exaustivamente, em certas orientações,
pela cultura de um povo, ao mesmo tempo em que não
desenvolve nem deixa lugar para a criação de outros
aspectos. Um determinado povo talvez desenvolva
aspectos ignorados e desatendidos por outro, já que
se encontra orientado em outra direção.

Os primeiros antropólogos culturais, como Franz Boas


e sua seguidora Ruth Benedict, entre outros, nos
Estados Unidos, nas primeiras décadas do século 20,
compararam a variabilidade da vida cultural com a da
linguagem. Com efeito, o número de sons que as cordas
vocais e as cavidades bucais e nasais humanas podem
emitir é praticamente ilimitado; os elementos fonéticos
possíveis, registrados pelos estudiosos, ficam em torno
de umas poucas centenas. Cada linguagem apenas se
utiliza de três a quatro dezenas de sons que sequer
coincidem com línguas muito próximas. Por exemplo,
o espanhol nem tem as chamadas vogais nasalizadas
como ã e õ, mas tem a rr com forte vibração da língua;
mesmo o português de Portugal tem vogais diferentes
das do Brasil como ü e ö, por exemplo, ou o português
do Rio com o s chiado. O que interessa, sobretudo é
entender que cada língua escolhe um número limitado
das possibilidades fonéticas totais, suficiente como
meio de comunicação oral. É importante entender,
escreve Benedict, que nossa língua tem um d e um n,
mas pode haver sons intermediários em outras línguas
que, se não conseguimos identificá-los e reproduzi-los,
representando-os por um d ou por um n, implicará a
introdução de distinções lingüísticas que não existem.
Temos assim um arco que se distende entre d e n.

A cultura pode ser entendida, também, imaginando um


grande arco em que situamos as escolhas e orientações
possíveis de cada cultura como certos segmentos desse
arco entre seus extremos, por exemplo, em termos
do ciclo da vida humana, do ambiente, das várias
atividades do homem. uma cultura erige enorme
desenvolvimento cultural sobre a adolescência, outra,
sobre a morte, outra, ainda, sobre a vida futura. Em
determinada sociedade, a técnica é inacreditavelmente
desdenhada; em outra, os aperfeiçoamentos técnicos
são extraordinariamente complexos e admiravelmente
adequados a cada situação.

CoNeCtANdo sABeres
Leia mais sobre antropologia cultural em:

BENEDICT, Ruth. Padrões de cultura [1932]. Lisboa: Edição Livros do


Brasil, s/d, no capítulo A ciência do costume, pp.13-32.

BOAS, Franz. Antropologia cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

um caso estudado por Ruth Benedict é o da


adolescência, caracterizado com precisão na tradição
ocidental como um estado fisiológico com explosões
domésticas e rebelião. Da comparação com outras
culturas constata-se que mesmo naquelas que dão
mais importância à adolescência, a idade que a define
varia num largo intervalo de anos. A puberdade,
sobretudo, é fundamentalmente de natureza social,
fase em que as cerimônias são rituais de passagem,
reconhecimentos, variáveis na forma da nova
condição do estado de adulto da criança.

uma sociedade pode considerar como único dever


44 honroso do homem adulto os feitos guerreiros, outra
sociedade não. A primeira procederá à investidura
do guerreiro mais tarde e isso dependerá de, nessa
sociedade, o estado de adulto conferir ou não
o privilégio de dançar numa representação
de divindades mascaradas. Assim, nas
culturas tradicionais da América Central no
início do século 20, a maturidade significava
a capacidade de fazer a guerra, incluindo a
preparação para a carreira das armas em
qualquer idade, com um ritual mágico do 45
êxito na guerra e torturas auto-infligidas dos
iniciados.

Entre os indígenas da Austrália, pelo contrário,


a maturidade significa participação em um ritual
masculino exclusivo, isto é, em que a feição fundamental
é a exclusão de mulheres. Como assinala Benedict, as
mulheres nunca devem ter conhecimento dos ritos
porque as cerimônias de puberdade são rejeições
simbólicas e complicadas das ligações com a fêmea: os
homens são simbolicamente promovidos a seres que
se bastam a si próprios e elementos completamente
responsáveis da comunidade.

O tratamento de fatos fisiológicos como a menstrua-


ção, especialmente a primeira delas, são tratados di-

Módulo 6 - Antropologia Cultural


ferentemente e de formas até opostas segundo cada
cultura. Sempre há dois aspectos possíveis de sacrali-
zação: pode ser uma fonte de perigos ou uma fonte
de bênçãos. Em certas culturas a primeira menstrua-
ção da rapariga é celebrada por ser considerada uma
grande bênção sobrenatural. Entre os apaches, rela-
ta Benedict, os próprios padres passam, de joelhos,
diante da fileira de solenes rapariguinhas, para delas
receberem a bênção de os tocarem, aliviando-os dos
seus males. Porém, outras culturas excluem a adoles-
cente em lugar afastado, por considerarem a primeira
menstruação como perigosamente impura: a rapari-
guinha terá obrigação de advertir os outros em altos
gritos para que a evitem. Na cultura das ilhas Samoa,
no Oceano Pacífico, estudada por Margaret Mead, ne-
nhuma manifestação social reconhece expressamente
a puberdade da rapariga, não havendo mudança de
atitude nem expectativa. A vida da rapariga é absorvi-
da por outras considerações que não a de maturação
fisiológica do sexo e por conseqüência, “a adolescên-
cia não só não é celebrada por qualquer cerimonial,
como não tem qualquer espécie de importância na
vida emocional da rapariga e na atitude da aldeia
para com ela” (citado em BENEDICT, 1932: 42).
IMportANte
A diversidade de culturas resulta não somente dos processos
dinâmicos em que as sociedades elaboram ou repudiam aspectos
possíveis da existência, mas das formas em que se entretecem com-
plexamente as distintas feições culturais entre elas. Disse Benedict:

A forma final de qualquer instituição tradicional vai muito além


do impulso humano original. Em grande parte, essa forma final
depende do modo como esta feição se fundiu com outras de
diferentes campos da experiência. (BENEDICT, 1932: 49).

Com referência à arte, mais especificamente, há


grandes acontecimentos notavelmente alheios
à motivação e à utilização religiosa, conforme
disse a autora. A distinção entre arte e religião se
apresenta entre os índios Pueblos, no sudoeste dos
Estados unidos, e, também, em certas sociedades de
organização tribal da América do Sul e da Sibéria,
ainda que a manifestem de maneiras diferentes:
não utilizam a habilidade artística para servir a
religião. Por isso, Benedict nos adverte que, em
vez de buscarmos fontes da expressão artística
em um assunto localmente importante, no caso a
religião, “devemos, antes, investigar até que ponto
arte e religião mutuamente se interpenetram e as
conseqüências de tal interpenetração para a arte e a
religião”. (BENEDICT, 1932: 50).

Por outro lado, a diversidade de costumes no mundo


não é apenas uma questão a ser registrada em um
inventário. O significado do comportamento em
uma cultura não se esgota com o compreender
claramente que é um fato local, criado pelo homem e
com uma enorme variabilidade. O destacável é a sua
integração. uma cultura é como um indivíduo, “um
modelo mais ou menos consistente de pensamento e
de ação”, assevera Benedict. Dentro de cada cultura
surgem certos objetivos que caracterizam uma
sociedade e que não são necessariamente partilhados
por outros tipos de sociedade. Em torno desses
objetivos, “cada povo consolida cada vez mais a sua
experiência”, levando os aspectos mais heterogêneos
de comportamento “a assumir forma cada vez mais
congruente”. O conjunto, conclui essa autora, como
a pólvora que não é apenas enxofre, carvão e salitre
46 misturados, não é apenas a soma de todas as suas
partes, mas “o resultado de um único arranjo e única
inter-relação das partes, de que resulta uma nova
entidade”. Trata-se do mesmo processo pelo qual, na
arte, um estilo se forma e persiste no tempo.

A arquitetura gótica, começando por ser pouco mais


do que uma preferência por altura e luz, tornou-se,
pela observância de qualquer cânon de gosto desen-
volvido na sua técnica, a arte única e homogênea do
47
século 13 (na Europa nórdica). Rejeitou elementos
que eram incôngruos, modificou outros para atingir
os seus fins e inventou ainda outros de acordo com
o seu gosto. (BENEDICT, 1932: 61).

Esses aspectos das sociedades “tradicionais” vão


ser melhor abordados pela Antropologia Cultural,
sobretudo, no estudo das formas contrastadas da
personalidade. Ruth Benedict estuda duas populações
comparativamente e em oposição. A primeira, dos
índios Pueblos do Novo México, nos Estados Unidos,
caracterizada como sociedade “apoloniana”, e a
outra, “dionisíaca”, dos habitantes da ilha de Dobu,
no Oceano Pacífico Sul. Os primeiros só desejam paz e
serenidade. Os segundos desejam a exaltação. O que
é considerado como personalidade desviante entre

Módulo 6 - Antropologia Cultural


os primeiros (o indivíduo violento) aparecerá, entre
os segundos, como perfeitamente normal, ou seja,
conforme ao ideal do grupo. Inversamente, se houver
entre os Dobu indivíduos que não tenham nenhum
sentimento de suspeição, que detestem brigar, eles
não deixarão de parecer como marginais, enquanto
estariam perfeitamente bem adaptados e considerados
como conformistas na sociedade dos Pueblos.

Novamente, encontramos aqui a idéia do “arco


cultural”: cada cultura valoriza um determinado
segmento do grande arco do círculo de possibilidades
da humanidade e exclui o restante. Certo número
de comportamentos é encorajado em detrimento de
outros que são censurados. Todos os membros de uma
mesma sociedade, por meio de um processo de seleção
cultural, compartilham certo número de preocupações,
sentem as mesmas inclinações e aversões. Todas
essas feições estão integradas à totalidade em que
consiste cada cultura. Todavia, o que caracteriza
uma determinada sociedade é uma “configuração
cultural”, noção tomada da psicologia do Gestalt, da
percepção de fundo e figura. Se o todo determina as
suas partes, e não só a sua relação, também determina
a sua verdadeira natureza, segundo Benedict.
sAIBA MAIs
O estudo psicológico da Gestalt tem por base o estudo da
percepção e sensação do movimento. Os primeiros Gestaltistas
estavam preocupados em compreender quais os processos
psicológicos envolvidos na ilusão de ótica, quando o estímulo
físico é percebido pelo sujeito com uma forma diferente do que
ele é na realidade.

IMportANte
A configuração cultural de uma sociedade remete a uma lógica
que se encontra, ao mesmo tempo, na especificidade das instituições
e na dos comportamentos dos indivíduos. Aliás, toda cultura
persegue um objetivo, desconhecido dos indivíduos. Isso porque
cada indivíduo possui em si mesmo todas as tendências, mas a
cultura à qual pertence realiza e favorece uma seleção em particular.
As instituições, em especial, as de transmissão cultural ou educativas
– famílias, escolas, ritos de iniciação –, procuram fazer com que
os indivíduos se conformem aos valores próprios de cada cultura,
ainda que esse objetivo não seja manifestado conscientemente.

Finalmente, cabe assinalar que, na segunda metade


do século 20, não faltaram as críticas, por vezes
muito severas, à Antropologia Cultural de cunho
norte-americano, sobretudo na França. Foi criticada,
principalmente, sua abordagem muito empírica,
localizando descritivamente as funções sociais das
feições culturais, sua tendência a efetuar uma
redução dos comportamentos humanos a tipos de
personalidade, esboçando tipologias que, segundo seus
detratores, “devem muito mais à intuição e à própria
personalidade do pesquisador do que à construção
rigorosa de um objeto científico” (LAPLANTINE,
1995: 127). Essa Antropologia, preocupada com o
estudo das variações culturais, será revolucionada
pela Antropologia Interpretativa de Geertz, com o
estudo da variabilidade da cultura e a compreensão e
interpretação da cultura como um texto.

CoNeCtANdo sABeres
Leia mais sobre antropologia cultural em:
BENEDICT, Ruth. Padrões de cultura [1932]. Lisboa: Edição
Livros do Brasil, s/d, nos Capítulos A ciência do costume,
48
pp.13-32; A diversidade de culturas, pp.33-70.
sociedades indígenas, religiões afro-brasileiras e
cultura em centros urbanos

Nesta seção veremos os elementos culturais mais


básicos e sua variabilidade em distintas sociedades,
tomando alguns exemplos dentre as sociedades
indígenas e as urbanas, no Brasil. Começaremos
lembrando que em séculos passados, a costa atlântica, 49
as margens do rio Amazonas e seus afluentes, o
planalto central brasileiro, a rede de afluentes do
rio Paraná, ao sul, e outras partes do continente
a leste da cordilheira dos Andes tinham vastas
populações indígenas espalhadas em todas essas
áreas. Com a colonização, muitos desses povos foram
extintos, como os Tupinambá do litoral brasileiro,
que ocupavam inúmeras aldeias desde o Pará até o
Paraná. Aldeamentos de mais de mil habitantes eram
encontrados entre os povos de fala Jê do planalto
central do Brasil, entretanto hoje raramente passam
de uma centena de habitantes por aldeia. Muitas
dessas populações passaram de pequena densidade
demográfica num grande território a uma grande
concentração populacional em reduzidos lotes de
terra. Assim, os Kaingang do sul do Brasil tiveram

Módulo 6 - Antropologia Cultural


suas terras reduzidas a vinte reservas, uma fração do
que eram antes.

CurIosIdAde
Os tupinambás como nação dominavam quase todo o
litoral brasileiro e possuíam uma língua comum, que
teve sua gramática organizada pelos jesuítas e passou a ser
conhecida como o tupi antigo.

A constituição de muitas das aldeias dos povos indígenas


segue seus próprios padrões culturais; outras, têm sido
substituídas pelas práticas das populações regionais
vizinhas a essas sociedades indígenas. A aldeia pode
compreender, segundo cada sociedade, uma única
construção, uma série de casas permanentes, simples
abrigos de curta duração ou habitações distantes
espalhadas num território. Assim, uma única grande
construção de forma redonda ou oblonga é o padrão
dos Yanomami e dos Maiongong, de forma retangular,
nas populações do alto do rio Negro, ou decagonal,
entre os Marúbo. uma disposição em círculo de casas
permanentes é o padrão entre os Borôro e os Krahó.
Entretanto, os Makú e os Nambiquara constroem
simples abrigos de curta duração, e os Xuar mantêm
habitações familiares distantes umas das outras em
vários quilômetros.
CoNeCtANdo sABeres
Leia sobre o assunto em:

RAMOS, Alcida R. Sociedades indígenas.. São Paulo: ática, 1988.

A ocupação do espaço nessas aldeias segue certos


padrões, geralmente baseados no grau de parentesco.
Em algumas sociedades, como os Mundurukú
tradicionais, as mulheres ocupavam habitações
pequenas em torno a uma construção maior exclusiva
dos homens. Em algumas sociedades do grupo dos
Yanomami (Estado de Roraima), os homens preferem
ter por vizinhos os irmãos de suas mulheres e os
maridos de suas irmãs, isto é, seus cunhados. Entre os
Cubes, os homens preferem morar próximo de seus
irmãos e outros parentes consangüíneos. Contudo, a
instituição da “casa dos homens” é muito difundida
entre as sociedades i ndígenas na América do Sul. Em
certas sociedades, todos os homens passam a maior
parte do tempo nessa casa, inclusive à noite. Em
outras, a casa dos homens é simplesmente um ponto
de encontro, onde os homens tocam seus instrumentos
musicais sagrados, proibidos às mulheres. um ponto
de encontro geral são as casas comunais, verdadeiros
centros associativos.

Em geral, nas aldeias indígenas, a solidão ou a


privacidade não são situações muito conhecidas
como padrão de sociabilidade, assim como também
não é possível guardar segredos nem manter sigilo
sobre alguma coisa, inclusive de uma aldeia para
outra. Contudo, existem algumas formas de uma
pessoa se retirar do convívio dos outros, tais como
uma soneca na rede fechada, uma ida às imediações
da roça buscar lenha ou à mata para buscar cipó
ou, ainda, uma pescaria solitária. Sobretudo, cabe
entender que o isolamento por tempo prolongado
constitui uma das piores sanções. A idéia de prisão é
ininteligível e, ao mesmo tempo, aterrorizante para
muitas dessas sociedades.

Como em todas as sociedades humanas, nas indígenas


existem regras precisas que proíbem o casamento entre
certas categorias de parentes: como já mencionado,
o tabu do incesto é considerado universal pela
Antropologia. No entanto, o âmbito de parentes
proibidos pela regra e a carga negativa que lhe é
associada têm ampla variabilidade. A delimitação do
50 tabu do incesto implica, também, a delimitação das
categorias de parentes consangüíneos e afins (como
marido e mulher, os cunhados etc.). Em algumas
sociedades, até mesmo na nossa, o tabu do incesto
compreende os parentes primários imediatos como
pai, mãe, filhos, irmãos. Em outras sociedades, são
todas aquelas pessoas classificadas como parentes
próximos, isto é, aquelas que em termos de parentesco
correspondem a pai (o pai e seus irmãos, ou os irmãos
da mãe, por exemplo), a mãe (a mãe e suas irmãs,
ou também as irmãs do pai, por exemplo), irmãos e 51
filhos. Em outras, ainda, a regra compreende todas as
pessoas que cresceram juntas e vivem na mesma casa.
Na nossa sociedade e nas indígenas, há uma regra que
diz com quem não se pode casar (os parentes vedados
pelo tabu do incesto). Entretanto, não há nenhuma
regra que diga com que categoria de pessoas isso
é permitido. Nas sociedades indígenas existem,
freqüentemente, as regras indicando as categorias de
pessoas com quem se pode casar.

uma regra geral dos casamentos é a chamada


exogamia, pela qual as pessoas devem se casar fora de
seu próprio grupo, seja clã, linhagem ou aldeia.
Ademais, há outros dois tipos de regras. O
primeiro tipo refere-se ao traçado da
descendência: a qual grupo pertencem (e terão

Módulo 6 - Antropologia Cultural


direito ao nome e a herança de bens e sucessão
num cargo) os filhos de um casamento? Se
pertencem ao grupo (clã, linhagem ou aldeia) do
pai, a Antropologia classifica essa sociedade como
patrilinear. Se fazem parte do grupo da mãe, a
classificação é matrilinear. O segundo tipo de regra
diz respeito ao lugar de moradia de um casal: se a
regra prescreve que seja no espaço do grupo do pai
do marido, a classificação é patrilocal, se for no espaço
do grupo da mãe da mulher, é matrilocal.

sAIBA MAIs
Patrilinear e matrilinear são categorias de análise que
aludem a realidades muitos diferentes dos termos patriarcado
ou matriarcado. Estes se referem, respectivamente, à dominação
exclusiva pelos homens ou pelas mulheres, ordens ou regimes sociais
caracterizados pela preponderância e concentração da autoridade e
do poder. No caso de organizações sociais matrilineares, por exemplo,
muito comuns na áfrica negra, não se trata de matriarcado, em que
pese a autoridade não ser exercida pelo pai, pois ela é exercida e
centralizada pela importante figura masculina do irmão da mãe.

Clã refere-se a um grupo ou categoria de pessoas que traça


a mesma descendência, pelo pai ou pela mãe, sem que se
reconheçam todos os elos genealógicos até o ancestral comum.

Linhagem refere-se a um grupo de pessoas que traçam a


mesma descendência, pelo pai ou pela mãe, sendo capazes de
reconhecer todos os elos genealógicos até o ancestral comum.
CoNeCtANdo sABeres
Leia sobre o assunto em:

RAMOS, Alcida R. Sociedades indígenas.. São Paulo: ática, 1988.

A antropóloga brasileira Alcida Ramos observa que


a criação dos filhos é responsabilidade direta dos
pais, mas na socialização, na “endoculturação” – o
processo mais amplo de transformar as crianças em
membros completos de sua sociedade–, intervêm os
parentes mais próximos dos pais e até a comunidade
inteira da aldeia.

CurIosIdAde
A infância é uma fase do aprendizado social, e as
crianças são totalmente integradas na vida comunitária.
Não há lugar nem contexto onde uma criança indígena não
possa ser admitida, nem há recintos nem assuntos “impróprios
para menores”. Os brinquedos infantis são miniaturas dos
instrumentos dos adultos e raramente criações especiais como
bonecas ou jogos de armar. Poderíamos dizer mesmos que as
crianças são adultos em miniatura e não um segmento incapaz e
segredado da sociedade.

Muito raramente as crianças indígenas são punidas; quase


nunca fisicamente. A atitude das pessoas para com os filhos é
geralmente de grande paciência, tolerância, atenção e respeito
às suas peculiaridades. A mãe amamenta durante uns dois ou três
anos e a criança não é bruscamente desmamada. O espaçamento
entre uma gravidez e outra é suficientemente grande – três,
quatro anos, ou mais – de modo a evitar a competição de dois
bebês pelo afeto e leite maternos. (RAMOS, 1988: 58-59).

Os sistemas religiosos em todas as partes do mundo


apresentam alguns princípios em comum, embora
possam diferir enormemente em sua especificidade.
Lidar com o que vem depois da morte, com o
sobrenatural, com o desconhecido, assim como assegurar
a continuidade do mundo conhecido e dar sentido e
propósito à existência humana são preocupações de
todas as sociedades. Nos primórdios da Antropologia,
as teorias evolucionistas postulavam a magia como
a fase primitiva do conhecimento humano, da qual
evoluiu a religião e, posteriormente, a ciência.

52
Émile Durkheim (Épinal, 15 de abril de 1858 —
Paris, 15 de novembro de 1917) é considerado
um dos pais da sociologia moderna. Durkheim
foi o fundador da escola francesa de sociologia,
posterior a Mafuso, que combinava a pesquisa
empírica com a teoria sociológica. É reconhecido
amplamente como um dos melhores teóricos do 53
conceito da coesão social.

Emile Durkheim, o primeiro grande teórico da


Sociologia e da Antropologia, mostrou o erro
evolucionista desse esquema argumentando, em
1912, com base na evidência etnográfica, que a
religião é a instituição fundamental na formação da
sociedade, em que um sistema solidário é estabelecido
entre os fiéis e os oficiantes, formando uma única
comunidade baseada na fé, com seus mitos ou
dogmas e seus cultos ou práticas rituais coletivas. A
magia decorre da religião e a pressupõe, implicando
uma individuação da relação entre o especialista (o
mágico) e o cliente em procura de uma ação específica
perante a doença, os conflitos no relacionamento
familiar, o acaso etc.

Módulo 6 - Antropologia Cultural


CoNeCtANdo sABeres
Leia sobre o assunto em:

DuRKHEIM, Emile. As formas elementares de vida religiosa. São Paulo:


Edições Paulinas, 1989; São Paulo: Martins Fontes, 1996, no capítulo
Definição do fenômeno religioso e da religião’, pp.53-79.

O termo sobrenatural refere-se a uma característica


especial do social e do natural, como acontece
quando são atribuídos poderes extranaturais a
certos animais, plantas, pedras ou objetos como
cruzes e bíblias. Os sistemas religiosos fazem com
que seja uma obrigação dos seres humanos manter a
ordem do mundo, com seus componentes naturais e
sobrenaturais. Isso é efetuado por meio de tabus, de
práticas dos especialistas em rituais (xamãs), de ritos
de purificação, de regras sociais e éticas. Em muitas
sociedades, o desempenho de rituais funerários,
seguindo corretamente as regras estabelecidas
socialmente, garante que os espíritos dos mortos
não interfiram, trespassando o seu devido lugar,
permitindo-lhes desempenhar a sua parte em um
pacto recíproco com os vivos.

Em todas as religiões conhecidas, a presença de


elementos mágicos impregnam, em grau variável, as
práticas religiosas. Velas e medalhas de santos têm
valor mágico na Igreja Católica. Na Igreja Protestante,
uma bíblia. Na Umbanda, alimentos específicos.
Também nas religiões indígenas existe uma ampla
gama de recursos mágicos tais como plantas, pedras
e outros objetos de diversas procedências.

Além de semelhanças há, também, diferenças impor-


tantes. Nas Igrejas Católica e Protestante, na Umbanda
e no Candomblé, a religião se encontra estrutu-
rada em “igrejas”, isto é, aparatos especializados
com graus variáveis de hierarquização interna, com
relativa autonomia institucional da esfera do Estado
e dos partidos políticos, com aparente independência
para regular suas doutrinas ou dogmas e os direitos
e deveres de seus fiéis e sacerdotes. No entanto, nas
sociedades indígenas do Brasil, como observa Alcida
Ramos, a religião está tão intrinsecamente relacionada
às demais esferas da vida social que parece incompatível
com a existência de um corpo de especialistas religiosos
ou sacerdotes. A religião está presente na vida
cotidiana, não se separa dela. “As crenças religiosas
dos povos indígenas afirmam uma unidade indissolúvel
entre o natural e o social, com influências mútuas e
conseqüências recíprocas”, assinala Ramos, observando
que:

Se um homem planeja caçar, sendo xamã, na noite


anterior ele se ocupa com cânticos religiosos que
propiciarão a cooperação de espíritos no sentido
de tornar a caçada produtiva; se não for xamã, o
mínimo que ele pode fazer é ungir de urucu a
cabeça de seu cão para aumentar as possibilidades
de sucesso na busca da caça. Essa unção é ritual e
dirigida a espíritos benévolos. Se vai à roça, lugar
favorito de algumas cobras, ele se utiliza de certas
plantas com poderes mágicos para se proteger de
uma picada venenosa. (RAMOS, 1988: 79-80).

A religião, em todos os povos da terra, foi a fonte de


categorias de pensamento e, junto com a magia, a
base de sistemas de conhecimento, com a revelação
divina e a interpretação dos sonhos, além de elementos
empíricos presentes e associados em diferentes graus.
Há uma extensa literatura sobre os sonhos nos mitos,
epopéias e tragédias, não apenas na Grécia antiga,
mas também entre os diversos povos da África e na
sua diáspora no Novo Mundo, bem como entre as
sociedades indígenas na América do Sul.

As religiões fornecem, por meio dos mitos, modelos


54 sobre o universo e a criação do mundo, o que
Antropologia e as ciências denominam cosmologias.
Os mitos, na perspectiva antropológica, não são
falsidades como lhes é atribuído no nosso senso
comum, mas veículos de informação sobre a concepção
do universo. Eles respondem pela criação do mundo,
a razão de ser de certas relações sociais importantes
(casamento, tabus de incesto, chefias, linhagens,
clãs), a origem da agricultura, das ferramentas, das
relações ecológicas entre animais, plantas e outros
elementos, a metamorfose de seres humanos em 55
animais e vice-versa, a transformação de seres
humanos, de animais ou de vegetais em espíritos
de vários tipos. Nas sociedades indígenas, os mitos
dão conta do surgimento do “homem branco” e da
presença desagregadora da sociedade envolvente.

Nessas sociedades, o sistema cosmológico não surge


apenas de um único tipo de conhecimento, mas consiste
em uma combinação de vários tipos, particularmente
o empírico e o metafórico. O conhecimento empírico
surge da observação e da experimentação, de prova
e de erro, baseado na percepção dos sentidos e
na constatação de regularidades na anatomia,
hábitos alimentares e reprodutivos dos animais.
O conhecimento denominado metafórico toma o
empírico junto com crenças e experiências que se

Módulo 6 - Antropologia Cultural


reportam a uma dimensão “metafísica”, diferente da
percepção imediata e física das coisas, incluindo nessa
dimensão seres imateriais como espíritos, almas, forças
e substancias imateriais. Nesses sistemas, o cosmos
se apresenta ordenado, freqüentemente, em várias
camadas. Entre os Yanomami e os Makú, o cosmos
se ordena em níveis que incluem desde divindades
a entes sobrenaturais malévolos e benévolos, desde
fenômenos atmosféricos e geográficos a montanhas
e rios, desde animais e plantas a espíritos de animais
e de pessoas e ancestrais humanos e não-humanos,
enfim, até estrangeiros.

sAIBA MAIs
As cosmologias indígenas operam como um verda-
deiro mapa simbólico do universo, estabelecendo o lugar,
a importância, os padrões de atuação e influência de cada
um de seus muitos componentes. É um código para o qual se
apela quando se quer entender ou explicar tanto o corriqueiro
como eventos inusitados, calamidades, infortúnios ou golpes
de sorte. A visão do mundo supre o indivíduo como uma
constante âncora que o mantém seguro a uma determinada
realidade social em face a vicissitudes sobre as quais ele não tem
controle: a morte, a doença, o insucesso. (RAMOS, 1988: 85-86).
Outra dimensão do sagrado, enquanto esfera potente
separada do profano, do cotidiano, é o sagrado
negativo, o poder de trazer o mal. Dois tipos de
fenômenos têm sido identificados e estudados pelos
antropólogos, diferenciando a chamada bruxaria da
feitiçaria. Na bruxaria é mobilizada uma força metafísica
inerente à pessoa que a tem, independente de ser ou
não ativada intencionalmente. um exemplo de bruxaria
bem conhecido é o fenômeno do mau-olhado. A
atuação dessa força pode ser voluntária quando um
bruxo a põe conscientemente a serviço de suas intenções.
Em outros casos, a atuação da força é involuntária, até
inconsciente e, freqüentemente, se manifesta por meio
de sonhos. A bruxaria é um fenômeno muito comum
em várias sociedades africanas e européias e foi trazida
por essas populações para o Novo Mundo. Ao contrário,
nas sociedades indígenas na América do Sul, a bruxaria
é um fenômeno raro, sendo a feitiçaria o fenômeno
mais comum. Neste, são manipulados objetos materiais
ou expressões verbais, dirigidas intencionalmente à
vítima, que pode ser um indivíduo, uma comunidade
de aldeia ou, até, uma região inteira.

Nas sociedades indígenas, os especialistas


mágicos, denominados xamãs pela Antropologia
(termo oriundo da Sibéria), são responsáveis por
realizar curas e zeladores do bem-estar social,
protegendo contra a ação de espíritos malignos,
realizando cerimônias propiciatórias para boas
colheitas, boas caçadas, invocando espíritos
benignos para resolver problemas como a
esterilidade ou a perda de colheitas ou de caça,
que podem ser atribuídos aos efeitos de feitiçaria.
Porém, alguns xamãs têm também o poder de trazer
o mal, podem ser o próprio agente de feitiçaria ou
instrumental para o feitiço de leigos, ainda que a
feitiçaria não seja praticada apenas por xamãs.

CoNeCtANdo sABeres
Leia sobre o assunto em:

RAMOS, Alcida R. Sociedades indígenas.. São Paulo: ática, 1988.

No caso das culturas trazidas ao Novo Mundo pelos


africanos deportados como mão-de-obra no regime
da escravidão, elas foram recriadas, transformadas
e adaptadas para resistirem às novas condições de
opressão e vigilância que esse regime implicou, assim
56 como à desvalorização cultural e ao racismo na pós-
abolição. Religiões como o Candomblé, entre outras
de matrizes africanas no Brasil, resistiram a sucessivos
processos de aculturação (ver aculturação no capítulo
anterior). Atualmente, o Candomblé é considerado
pelos estudiosos como uma religião em torno de um
Deus criador único – Olodumaré –acompanhado
por um panteão de divindades chamadas orixás (da
mesma forma que, no Cristianismo, o Deus é seguido
pelos santos, apóstolos, arcanjos e anjos). Os orixás
57
são protagonistas de histórias do povo Iorubá – um
dos grupos étnicos majoritários da atual República de
Nigéria e também do Benin – e, como as personagens
das histórias do povo de Israel no Velho Testamento,
viraram mitos retratando as circunstâncias de vida e
relacionamento com a dimensão do sagrado. Porém,
essas lendas mitológicas não são entendidas apenas
enquanto históricas, mas descrevem irrupções do
sagrado no mundo, contando uma história sagrada
sobre como algo foi produzido e começou a acontecer.

CoNeCtANdo sABeres
Leia sobre o assunto em:

AuGRAS, Monique. O duplo e a metamorfose – a identidade mítica

Módulo 6 - Antropologia Cultural


nagô Petrópolis: Vozes, 1983, nos capítulos O
em comunidades nagô.
sagrado, o mesmo e o outro, pp.13-22; As religiões de origem
africana no contexto brasileiro, pp.23-54.

O processo de conexão com o sagrado envolve, no


Candomblé, a revelação por meio do Oráculo de Ifá e
da liturgia dos rituais privados e públicos. A conexão
é feita com o auxílio das divindades, cada uma com
um atributo doado pelo Deus Supremo, cujas
manifestações encontram-se simbolizadas nas forças
da natureza. Há uma energia universal que se
manifesta no particular denominada Axé. Diferente
das religiões cristãs na modernidade, separado das
outras esferas de atuação humana e mais próximo
das religiões das sociedades indígenas em que não
há essa separação, o Candomblé compreende uma
organização de papéis e hierarquias sociais (um
sistema político), conhecimentos de botânica e
psicologia (uma ciência).

O conhecimento do presente e do futuro é


feito, no Candomblé, pelo descentramento
do ego, técnica comparável a outros sistemas
religiosos e filosóficos não-ocidentais como o
Sufismo na Turquia, o Zen no Japão, o Yoga na
Índia, o Taoísmo na China. Esse descentramento
é produzido no Candomblé por meio de três
elementos: a dança, a música de percussão e o
canto responsorial (solista e coral), atingindo o estado
de alteração de consciência associado à manifestação
do Sagrado.

Várias características das religiões africanas


impregnaram também as manifestações das religiões
cristãs, seja o Catolicismo, no caso da umbanda
no Brasil, ou o Protestantismo, nas populações
negras dos Estados unidos. No Protestantismo, isso
aconteceu em finais do século 19, quando as igrejas
Batistas e, logo, a Metodista, diferentemente das
Luteranas, aceitaram a possibilidade de manifestação
do Sagrado através dos fiéis durante o ritual. A
cultura expressiva da performance musical rítmica
e responsorial e dos movimentos corporais também
encontrou continuidade nos chamados negro
spirituals, antecedentes, junto com outras formas
musicais negras norte-americanas como o blues, do
gênero musical gospel.

CoNeCtANdo sABeres
Leia sobre o assunto em:

SEGATO, Rita L. Santos e daimones.. Brasília: Ed unB, 2004.

Com essa referência às religiões de matriz africana,


nos introduzimos no campo da Antropologia
urbana, especialidade que tem analisado a forma e
o conteúdo das ideologias operadas pela umbanda
e pelo Pentecostalismo. Alguns estudos realizados
sugerem que ambos os sistemas religiosos constituem
respostas à aflição decorrente das situações com que
as classes baixas urbanas têm que lidar no Brasil.
Isto é, trata-se de estratégias sociais para lidar com
as transformações que a população urbana pobre,
inclusive os imigrantes, tem de enfrentar.

Entretanto, do ponto de vista da Antropologia Cultural,


uma religião como a umbanda pode ser vista como uma
forma de síntese de diferentes tradições afro-brasileiras,
espíritas e do catolicismo popular, consolidada com
a formação de uma sociedade urbano-industrial no
Brasil, na década de 1940. Os antropólogos brasileiros
Gilberto Velho e Luiz A. Machado apontavam, já em
1977, a eficácia do ritual como principal causa para a
adesão dos fiéis a essas religiões.

O fato de as pessoas procurarem essas religiões


com objetivos expressos de procura de resolução
58
de problemas individuais – desemprego, doença,
casos de amor etc. – não pode apagar o fato de
participarem, com maior ou menor intensidade
e freqüência, de rituais com fortes características
comunitárias. A própria eficácia dessas religiões
dependerá, de acordo com as representações dos
grupos, da intensidade de participação nos rituais.
(VELHO e MACHADO, citados em OLIVEN, 1985).

No campo urbano é que situamos também a área do


lazer, que representa um elemento central da cultura 59
vivida por milhões de trabalhadores e empregados,
possuindo relações com todos os problemas derivados
das esferas do trabalho, da família e até da política,
tratados e representados em novos termos. Nessa área
é que mais encontramos diferenças marcantes entre as
manifestações de cultura popular, oriunda de
comunidades reais, e as manifestações da cultura
difundida pelos meios de comunicação de massa. A
dinâmica cultural nas grandes cidades brasileiras, no
entanto, é bastante complexa, com uma articulação
entre a cultura popular produzida comunitariamente e
as produções da indústria cultural, ainda que com
assimetrias muito fortes em termos das possibilidades
de mobilização de recursos e de capital econômico.
Nessa cultura popular podem ser distinguidas as dos
migrantes de outras regiões, como os nordestinos rurais

Módulo 6 - Antropologia Cultural


em São Paulo, ou os nordestinos e os cariocas na Nova
Capital, que carregam suas preferências culturais.

Outra manifestação de cultura popular


urbana se encontra na existência de um
grande número de circos, a grande maioria
circos-teatros, estabelecendo-se um
complexo relacionamento com a difusão
nos meios de comunicação de massa. O
antropólogo brasileiro José G. Magnani
assinala que o circo-teatro situa-se em São
Paulo a meio caminho entre a indústria cultural e as
manifestações populares mais tradicionais, porém
“não é simplesmente um repetidor de uma e outra,
mas as retrabalha, recodifica, reelabora, produzindo
um novo discurso”. O discurso do circo-teatro é
marcado, fundamentalmente, pela ambigüidade:

produtos culturais ao lado de elementos de uma


cultura espontânea; valores tradicionais (família,
obediência, religião) que no decorrer de uma mesma
representação são objeto da crítica irreverente de
uma comicidade particular; e outras oposições que
apontam no mesmo sentido... (MAGNANI citado em
OLIVEN 1985: 46).

Em suma, como concluem Oliven e outros antropólo-


gos brasileiros, a pesquisa cultural na Antropologia
Urbana vem mostrando que longe de haver uma
homogeneização cultural distribuída uniformemente
por todas as áreas de envolvimento social no contexto
urbano do Brasil e da América Latina e a despeito
da indústria cultural e dos meios de comunicação de
massa, há uma variedade muito grande de práticas e
orientações sociais e culturais.

CoNeCtANdo sABeres
Leia sobre o assunto em:

OLIVEN, Ruben G. A antropologia dos grupos urbanos.. Petrópolis:


Vozes, 1985.

MÉtodo e tÉCNICA NA ANtropoLoGIA

o olhar etnográfico: estranhamento, familiaridade e


a produção de conhecimento

uma característica relevante da Antropologia entre


as Ciências Sociais é a sua metodologia. O termo
metodologia refere-se aos procedimentos utilizados
pelo pesquisador para construir a evidência empírica
e como esses procedimentos se relacionam com o
desenho da pesquisa. O pesquisador se assemelha a um
advogado ou um fiscal no processo judiciário: precisa
construir a apresentação das “provas”, relacioná-las
por meio da lógica com os objetivos propostos. Nas
Ciências Sociais, a metodologia pode ser quantitativa
ou qualitativa. A primeira responde a uma abordagem
positivista em que a realidade é entendida como
objetiva. A segunda responde a uma abordagem
construtivista em que a realidade é entendida como
subjetiva, múltipla, produto da intersubjetividade
dos atores sociais, incluída a do próprio pesquisador.
Em boa parte, a Sociologia se baseia na metodologia
quantitativa, enquanto a Antropologia se fundamenta
na qualitativa, especialmente pelo método etnográfico
60 do trabalho de campo. O termo etnografia refere-se à
escrita (graphos) sobre um povo (ethnos). Esse método
consiste na imersão do pesquisador no contexto da
sociedade e cultura que estuda. É assumido que a
interação entre ambos e a influência mútua são parte
da pesquisa. O trabalho etnográfico é, assim, sempre de
natureza emergente, muito diferente dos modelos de
pesquisa linear que começam com as hipóteses, seguem
com a coleta de dados e finalizam com a análise.

Outra importante característica do trabalho etno- 61


gráfico é a ênfase dada à compreensão de situações
que acontecem no campo, e não na “predição do
valor de uma variável” a partir do conhecimento de
outras, como acontece na metodologia quantitativa. A
compreensão que se procura na etnografia se manifesta
de diferentes maneiras, porém, todas elas tentam
mostrar as conexões entre o que se faz, e o que se diz,
e um padrão mais amplo. A compreensão pode estar
relacionada com certas intenções dos atores, com as
normas de vida do grupo, ou com ambas as questões.

Essas questões foram levantadas pelos pais fundadores


da etnografia, especialmente Bronislaw Malinowski,
polonês de nascimento, que desenvolveu seu método
na Grã-Bretanha. Ele foi a primeira figura da cena
antropológica desde 1922, ano de publicação de sua

Módulo 6 - Antropologia Cultural


primeira obra, Os argonautas do Pacífico Oriental,
até meados de século. A outra grande figura foi Franz
Boas, já mencionado, dominou a cena antropológica
nos Estados Unidos a partir dos últimos anos do
século 19. Malinowski foi o primeiro a conduzir uma
experiência etnográfica com os critérios científicos
mais radicais, isto é, vivendo com a população
estudada, recolhendo seus materiais (significados,
valores, normas, cosmologias, mitos, relatos, lendas,
narrativas, fábulas etc.), de seus idiomas, e rompendo
ao máximo os contatos com o mundo europeu
durante o trabalho de campo. Foi Malinowski,
também, quem designou o termo “pesquisa-de-
campo” como observação participante, realizando
um estudo intensivo desse tipo de pesquisador em
oposição à imagem do antropólogo de gabinete.

A partir da etnografia, Franz Boas procurava


estabelecer repertórios culturais exaustivos e, muitos
entre seus seguidores nos Estados Unidos como Alfred
Kroeber, já citado, tentaram definir correlações entre
o maior número possível de variáveis, procurando as
regularidades entre elas. Malinowski considerava
uma aberração esse tipo de trabalho. Mostrou, pelo
contrário, que a partir de um único costume, um
único objeto ou símbolo, ou uma única atividade
aparece o perfil do conjunto de uma sociedade.

Tanto Boas como Malinowski instauraram rupturas


com o evolucionismo (a história conjetural da
reconstituição especulativa dos estágios de evolução)
e também com as chamadas teorias difusionistas que,
no início do século 20, tendiam a substituir as teorias
evolucionistas (a geografia especulativa postulava a
existência de centros de difusão da cultura, a qual se
transmitiria por empréstimos). Malinowski considera
que uma sociedade deve ser estudada enquanto uma
totalidade, “tal como funciona no momento mesmo
onde a observamos”.

Com essa abordagem empírica e teórica, a Antropo-


logia se tornou uma ciência da alteridade, virando
as costas aos empreendimentos evolucionista e
difusionista e dedicando-se ao estudo das lógicas
particulares de cada cultura, produzindo trabalhos
monográficos extensos.

A pesquisa-de-campo, com a técnica da observação


participante, se instalou como um dos métodos de
trabalho para o levantamento de dados mais
importantes na disciplina da Antropologia. A
exigência desse novo tipo de método se deve ao
início das descobertas e pesquisas sobre os povos e
etnias dos lugares mais distantes do mundo: era a
fase de levantamento geral da humanidade a partir
dessas sociedades de organização tribal que se
encontravam em condições de isolamento, em pouco
contato com as civilizações ocidentais.

A introdução da pesquisa-de-campo com


observação participante trouxe uma
mudança qualitativa significante: a partir
do momento em que se faz esse tipo de
pesquisa, praticamente se elimina um antigo
problema: o analisador e o pesquisador
não eram idênticos. Dessa forma, torna-se
possível um estudo contextual da cultura.

Desde os inícios do século 20, contudo, a Antropologia


começa a perceber que seu objeto de pesquisa, os
povos diferentes do ocidental, inclusos até aqueles
considerados selvagens, estavam “desaparecendo”
aos poucos na evolução social pelo contato com o
Ocidente, pela migração às periferias das cidades
em formação. Os antropólogos foram colocando em
foco esses processos, a formação de grupos étnicos
urbanos, os camponeses e populações indígenas sob
impacto de projetos desenvolvimentistas (mineração,
desmatamento), os problemas do contato entre
62 distintas culturas, especialmente em condições de
grande assimetria, inclusive os processos de formação
de novos Estados-nação.
A especificidade da prática antropológica se afirmou,
sobretudo, ao longo do século 20, “não mais através
de um objeto empírico constituído (o selvagem, o
camponês), mas através de uma abordagem episte-
mológica constituinte”, afirma Françoise Laplantine.
“A antropologia não é senão um certo olhar, um certo
enfoque”, consistente em: 1) o estudo do homem intei-
ro; 2) o estudo do homem em todas as sociedades, sob 63
todas as latitudes em todos os seus estados e em todas
as épocas. (LAPLANTINE, 1993: 16).

CoNeCtANdo sABeres
Leia sobre o assunto em:

LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense,


1995, nos capítulos O campo e a abordagem antropológica, pp.13-33,
e Os pais fundadores da etnografia – Boas e Malinowski, pp. 75-92.

O conceito de Antropologia Cultural, já com as


contribuições da Antropologia Cognitiva e da
Antropologia Simbólica (o estudo da cultura como
conjunto de símbolos), na década de 1970, pode
ser entendido não tanto como o estudo do que os

Módulo 6 - Antropologia Cultural


humanos fazem e dos artefatos que produzem, mas
como o estudo da maneira como usam esses objetos
e pensam sobre eles.

IMportANte
Essa perspectiva sobre a cultura terá uma contribuição
importante para o estudo das artes performáticas como o teatro,
a música e a dança. Se a cultura consiste em “como” as pessoas
pensam sobre o que elas fazem, o conceito correspondente seria
o “conceito de teatro”, em que a pesquisa é acerca de “como” as
pessoas pensam sobre o que elas fazem no mundo do teatro.

Outra perspectiva de estudo sobre a cultura


é reconhecida freqüentemente com o termo
“semiótica”. Porém, trata-se de uma abordagem
muito mais ampla do que o termo implica, incluindo
tanto a idéia geral de que a cultura pode ser
analisada como de um conjunto de símbolos, quanto
os métodos analíticos derivados das concepções
gerais do chamado estruturalismo. Trata-se de
métodos derivados da lingüística, das abordagens
estruturais para a análise do parentesco, dos mitos,
da cultura em geral, desenvolvidos pelo antropólogo
francês Claude Lévi-Strauss em meados do século
20, e dos estudos dos sistemas simbólicos em geral.
A tendência semiótica continua tendo influência e
alguns conceitos da lingüística têm aplicação: por
um lado, é reconhecida a importância dos mitos
como indicadores de valores culturais e, por outro,
a noção de que a análise estrutural permite emitir
juízos objetivos paralelamente à apresentação de
uma cultura do jeito que ela se vê a si mesma.

CurIosIdAde
Segundo o dicionário Houaiss de língua portuguesa
“semiótica” também pode ser entendido como o estudo dos
fenômenos culturais considerados como sistemas de significação,
tenham ou não a natureza de sistemas de comunicação (inclui,
assim, práticas sociais, comportamentos etc.).

Em suma, a intenção e a motivação dessa nova forma


de pesquisa etnográfica é documentar a riqueza das
manifestações culturais, especialmente dentro do seu
contexto cultural. No caso das artes, isso inclui todos
os parâmetros contextuais que as acompanham, como
função social, elementos materiais, dança, música,
ritual religioso, simbologia, posição e formação no
espaço dos atores, destino das obras, tradições e sua
transmissão. Porém, acontece uma coisa interessante:
nunca ficou claramente definido o modo de se fazer
uma pesquisa-de-campo, o procedimento concreto,
mas um debate a respeito emergiu na Antropologia
nas últimas décadas do século 20.

CoNeCtANdo sABeres
Leia sobre o assunto em:

LAPLANTINE, François. Aprender antropologia.. São Paulo:


Brasiliense, 1995, no capítulo As tensões constitutivas da prática
antropológica, pp.182-99.

No primeiro capítulo vimos como, na década de 1970,


a Antropologia Cultural recebeu as contribuições
revolucionárias de Clifford Geertz e David Schneider,
inaugurando a chamada Antropologia Interpretativa,
que entende a cultura como um sistema de símbolos
e de significados, como um texto a ser interpretado.
Nessa tendência, foram desenvolvidas conexões com
a filosofia hermenêutica a qual afirma que as pessoas
existem necessariamente dentro de tradições e que é
a partir destas que se vêm a si mesmas, interpretam
ao mundo, o seu passado e seu futuro. Contudo,
estar dentro de uma tradição não significa que não
possamos levar um aspecto ou um fragmento à
consciência e refletir sobre ele. A reflexão consciente
acontece geralmente quando surge um problema,
64 quando alguma coisa não se encaixa, quando há uma
ruptura nas expectativas e a tradição não é capaz de
dar sentido a um acontecimento.
O etnógrafo, quando em campo, encontra-se entre
tradições diferentes: a de sua própria origem e
aquela em que mergulha. A etnografia é o projeto
de colocar em foco as diferenças que surgem
nesse encontro, seja o próprio comportamento do
pesquisador, algumas normas de etiqueta, algumas
palavras e seus significados, ou os sentidos das ações
(um ritual funerário, por exemplo, e a relação entre 65
os vivos e os mortos). Em suma, alguns, ou todos os
aspectos da cultura, segundo o caso, implicam um
estranhamento do pesquisador. Algo que não se
ajusta à sua própria tradição de origem, que tem sido
geralmente, ao longo do Século 20, a de um homem
ocidental, branco, de classe média.

Essas rupturas ou quebras, como diz o filósofo alemão


Heidegger, sinalizam uma disjunção entre os mundos.
O problema para a etnografia é dar conta dessas
quebras, uma explicá-las. O etnógrafo as resolve em
um processo emergente que leva do estranhamento
à compreensão.

Outro filósofo alemão, o célebre Hans Gadamer,


enfatiza a importância tanto da angústia frente

Módulo 6 - Antropologia Cultural


ao fenômeno como da sensibilidade para a sua
novidade. Gadamer considera que a resolução
modifica a tradição na qual a ruptura se origina. Com
efeito, uma tradição tem um limite para seus pontos
de vista, chamado “horizonte”. A resolução acontece
quando o horizonte das diferentes tradições resulta
“fundido”, melhor dizendo, quando esse horizonte
modifica-se e estende-se de modo que a quebra
desaparece enquanto problema. Gadamer prossegue
sua descrição da resolução assinalando que a fusão de
horizontes é conceitual e se expressa na linguagem.
Ela é “a façanha própria da linguagem”.

Porém, para Gadamer, uma vez que a resolução é


plenamente realizada, os detalhes desse processo
“somem” da consciência. Conhecemos esse processo
em nossos aprendizados nas artes performáticas ou
nos esportes: enquanto não dominamos uma técnica
ou um saber, temos consciência dele em detalhe;
quando dominamos a técnica ela é incorporada,
naturalizada e fica invisível. Isso significa que, uma
vez resolvida determinada quebra, ela abandona
o foco da nossa atenção consciente. No entanto,
para a Etnografia, em vez de abandonar o processo
ao compreendermos uma quebra, temos que
documentá-lo antes que suma. Porém, sob critérios
seletivos, para que seja útil à nossa pesquisa.
CoNeCtANdo sABeres
Leia sobre o assunto em:

GEERTZ, Clifford. O saber local – novos ensaios em antropologia


interpretativa. Petrópolis: Vozes, 1998, no capítulo «Do ponto de
vista dos nativos»: a natureza do entendimento antropológico.

AGAR, Michael. “Hacia un lenguaje etnográfico”. Em: Reynoso,


Carlos (compil.). “El surgimiento de la antropología posmoderna”.
Barcelona: Gedisa, 1992.

O antropólogo inglês Raymond Firth escreve que


“um historiador pode ser surdo, um jurista
pode ser cego, um filósofo pode a rigor ser
surdo e cego, mas é preciso que o antropólogo
entenda o que as pessoas dizem e veja o que
fazem”. A grande contribuição de Malinowski
foi ter conseguido, como assinala Françoise
Laplantine, fazer ver e ouvir aos seus leitores
aquilo que ele mesmo tinha visto, ouvido,
sentido.

Voltando à questão do estranhamento e familiaridade


na pesquisa de campo: o assunto discutido antes
pelo antropólogo brasileiro Roberto Da Matta
leva à seguinte reflexão de outro antropólogo
também brasileiro, Gilberto Velho: “o que sempre
vemos e encontramos pode ser familiar, mas não é
necessariamente conhecido e o que não vemos e
encontramos pode ser exótico mas, até certo ponto,
conhecido.” (VELHO, 1978: 39). O exemplo que
Velho coloca da observação do contexto urbano é
esclarecedor a esse respeito:
Da janela de meu apartamento vejo na rua um grupo
de nordestinos, trabalhadores de construção civil,
enquanto a alguns metros adiante conversam al-
guns surfistas. Na padaria há uma fila de empregadas
domésticas, três senhoras de classe média conversam
na porta do prédio em frente; dois militares
atravessam a rua. Não há dúvida de que todos esses
indivíduos e grupos fazem parte da paisagem, do
cenário da rua, de modo geral estou habituado com
a sua presença, há uma familiaridade. Mas, por outro
lado, o meu conhecimento a respeito de suas vidas,
hábitos, crenças, valores é altamente diferenciada.
Não só o meu grau de familiaridade, nos termos de
Da Matta, está longe de ser homogêneo, como o de
conhecimento é muito desigual. No entanto, todos
66 não só fazem parte de minha sociedade, mas são
meus contemporâneos e vizinhos. Encontramo-nos
na rua, falo com alguns, cumprimento outros, há os
que só reconheço e, evidentemente há desconhecidos
também.
Trata-se de situação diferente de uma sociedade
de pequena escala, com divisão social do trabalho
menos complexa, com maior concentração ou menor
número de papéis etc.
67
O fato é que dentro da grande metrópole, seja Nova
York, Paris ou Rio de Janeiro, há descontinuidades
vigorosas entre o “mundo” do pesquisador e outros
mundos, fazendo com que ele, mesmo sendo nova-
iorquino, parisiense ou carioca, possa ter experiência
de estranheza, não reconhecimento ou até choque
cultural comparáveis à de viagens a sociedades e
regiões “exóticas”. (VELHO, 1978: 39-40).

O problema da pesquisa em nossa própria sociedade


coloca a questão do lugar do pesquisador, suas
possibilidades de relativizá-lo ou transcendê-lo para
poder “colocar-se no lugar do outro”. Como despojar-
nos do mapa que nos familiariza com os cenários e
situações sociais de nosso cotidiano? Como distanciar-
nos desse mapa que fixa, naturaliza o nome, lugar
e posição social e cultural dos indivíduos, sobre os

Módulo 6 - Antropologia Cultural


quais não conhecemos seu ponto de vista e a visão
de mundo, nem as regras que estão por detrás das
interações que eles mantêm ou mantêm comigo, e que
dão continuidade ao sistema social como um todo?

O próprio trabalho de investigação e reflexão sobre


a sociedade e a cultura possibilitam uma dimensão
nova: o questionamento e exame sistemático do
próprio ambiente do pesquisador. Trata-se de uma
tentativa, afirma Velho, de “identificar mecanismos
conscientes e inconscientes que sustentam e dão
continuidade a determinadas relações e situações”.
Porém, o grau de familiaridade, variável segundo a
paisagem social e o pesquisador, pode constituir-se em
impedimento se não for, antes, “relativizado e objeto
de reflexão sistemática”. “O meu conhecimento
da paisagem social”, prossegue Velho, “pode estar
seriamente comprometido pela rotina, hábitos,
preconceitos, estereótipos: posso ter um mapa, mas
não compreendo necessariamente os princípios e
mecanismos que o organizam”.
IMportANte
A possibilidade de estranhar o familiar é um processo possível na
medida em que o pesquisador seja capaz de confrontar intelectual
e emocionalmente diferentes versões e interpretações existentes
a respeito de fatos, situações, inter-relações etc. da realidade que,
em boa medida, não apenas o envolvem, mas também o afetam
direta e pessoalmente!

uma importante “janela” na pesquisa e no próprio


processo de desfamiliarização do pesquisador é a
atenção aos conflitos, disputas, acusações, momentos
de descontinuidade social em geral. Trata-se de
situações de verdadeiro “drama social” (veja mais
nos seguintes capítulos) em que se pode registrar os
perfis de diferentes grupos, suas crenças e ideologias,
interesses, valores, suas culturas, enfim.

O processo de descoberta e análise do que é familiar


pode, portanto, envolver importantes dificuldades,
diferentes em grau e qualidade das dificuldades
em relação ao que é exótico, à pesquisa em uma
comunidade indígena ou em uma comunidade
quilombola, por exemplo. No entanto, como vimos
em capítulos anteriores, ainda que os repertórios
culturais humanos pareçam limitados, tomando
destes apenas alguns segmentos dos arcos de
possibilidades culturais, suas combinações são
suficientemente variadas para criar muitas surpresas
e até diferenças bastante grandes, por mais familiares
que os indivíduos e as situações nos possam parecer.

Voltamos, assim, ao início deste capítulo, quando adver-


timos sobre a característica subjetiva e interativa da me-
todologia qualitativa nas ciências sociais. A esse respeito,
Clifford Geertz, ao enfatizar a natureza interpretativa
do trabalho antropológico, chama a atenção para que o
processo de conhecimento da vida social sempre implica
um grau de subjetividade e, portanto, tem um caráter
aproximativo e, não, definitivo.

Por outro lado, ao pesquisarmos em nossa sociedade,


conhecemos outras pessoas, incluso cientistas sociais
e pesquisadores das artes com formação nas ciências
sociais ou humanas, que têm alguma familiaridade
ou até fizeram pesquisas em assuntos ou contextos
semelhantes. Dessa forma, a minha interpretação,
observa Velho, “está sendo constantemente testada,
68 revista e confrontada”. Finalmente, uma vez publicada
a interpretação do antropólogo, é mais uma versão
da realidade que concorrerá com outras – artísticas,
políticas etc. – perante um público leitor heterogêneo.
CoNeCtANdo sABeres
Leia sobre o assunto em:

VELHO, Gilberto. Observando o familiar. Em: NuNES, Edson de


Oliveira (org.). A aventura sociológica: objetividade, paixão, improviso
e método na pesquisa social, pp. 36-46. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. 69
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro:
Zahar, 1978, no capítulo Uma descrição densa: por uma teoria
interpretativa da cultura.

o método etnográfico: o tripé da pesquisa em campo


e a produção de fichas no gabinete

uma das contribuições de Malinowski à pesquisa-de-


campo foram suas reflexões e indicações sobre “método
e procedimentos”, em que sugere uma espécie de tripé
entre a observação, a coleta, e a reflexão.

A primeira dessas atividades refere-se, logicamente,


à observação participante em campo. Por exemplo,
uma pesquisa sobre teatro popular pode compreender

Módulo 6 - Antropologia Cultural


desde a colaboração ativa com os atores protagonistas,
o convívio no dia a dia ou acompanhando uma turnê,
as conversações nos momentos de recreio e a atenção
aos focos temáticos nas conversações de “bastidores”,
a entrevista aberta ou seguindo um roteiro de
questões previamente escolhido. Isto é, a observação
e a participação nas atividades nos fornecem as
informações sobre o que está acontecendo; por
outro lado, as interações e conversações mostram os
significados atribuídos ao que está acontecendo, o
sentido das ações. No entanto, ambas as perspectivas
- a observação e a interlocução (conversação) - são
muito dinâmicas, podem se interpenetrar uma na
outra, ou estar muito diferenciadas, como quando
entrevistamos ou conversamos com um especialista
acerca dos significados de um ritual que já aconteceu e
do qual participamos ou fomos apenas observadores.
Isto é, não podemos interromper um ritual para
fazer perguntas. Contudo, alguns desenhos de
pesquisa podem compreender a criação de situações
ou de performances especiais para o projeto de
investigação, onde o pesquisador pode, em hipótese,
deter o fluxo da performance em um dado momento
e indagar verbalmente, ou atuando ele mesmo, sobre
os significados do que está acontecendo, bem como
construir interativamente uma representação e uma
reflexão com os sujeitos protagonistas. O pesquisador
é, assim, tanto um performer, atuando em seu papel
de pesquisador, como uma espécie de promotor de
situações de performance!!

A coleta compreende o registro do acontecido – um


ritual ao qual se assistiu, uma conversação da qual se
participou, os depoimentos de uma entrevista – em
cadernos de anotações, ou em um meio eletrônico.

Por sua vez, a reflexão compreende o “indexado”


ou a classificação do anotado no caderno ou no
meio eletrônico, a reflexão sobre os critérios dessa
indexação, junto com as nossas interpretações e
exploração de hipóteses, sem esquecer a revisão
periódica de nosso propósito na pesquisa e do que
está acontecendo com nossas interações reais em
campo. Quadros e esquemas sinópticos podem ser
auxiliares valiosos da reflexão.

Na pesquisa em campo, essas três atividades se inter-


relacionam: indexar as anotações dos dias anteriores,
refletir sobre essas anotações encontrando algum
padrão, seqüência, ou, provavelmente, lacunas
em nossas anotações ou em nossas observações e
conversações mantidas. Daí, voltamos às anotações,
lembrando de algo que aconteceu mas não foi
anotado ou registrado eletronicamente, ou voltamos
à cena real, procurando esclarecer a lacuna detectada.
Em outro momento, uma reflexão acontece, “uma
ficha cai”, no próprio cenário de campo, enquanto
observamos, participamos ou mantemos uma
conversação fluida. Ou a reflexão acontece enquanto
fazemos as anotações.

Esse processo é cíclico e repetitivo, isto é, um vai-e-vem.


Quando refletimos sobre as coisas, também as obser-
vamos sob nova perspectiva. Depois, fazemos anota-
70 ções (coleta) e voltamos a pensar (refletir) sobre elas. O
processo é em espiral. Por outra parte, ele é recursivo:
enquanto observamos, podemos estar pensando em
outros eventos a serem observados e anotados (coleta-
dos). Cada uma das fases contém, assim, as outras duas:
se observamos algo é porque já decidimos previamente
(pensamos) o que observar para coletar.

Há outras duas importantes questões sobre as quais


Malinowski chamou especialmente a atenção. A
primeira é que não vamos a campo para observar 71
como faria um turista, menos ainda como um espião
que se infiltra. O campo é um processo de interação
social entre o pesquisador e seus anfitriões; ele é
negociado, implica uma troca, não pesquisamos sobre
eles, mas com eles, ativamente. Portanto, a própria
interação em campo é parte do objeto de pesquisa.
A segunda questão é que vamos a campo com um
objetivo de pesquisa, ainda que provisório. Implica
que partimos de uma moldura teórica e de uma idéia
de até onde avançaram os conhecimentos em um
tema em particular sobre o qual queremos pesquisar.
No caso de Malinowski, tratava-se da questão da
economia primitiva nas teorias evolucionistas, que
não consideravam a possibilidade de economias
complexas fora das “civilizadas”, reduzindo-as
à simpleza do escambo “primitivo”. A partir dos

Módulo 6 - Antropologia Cultural


materiais empíricos de campo apresentados na
etnografia, Malinowski contesta essas teorias
mostrando a complexidade de um sistema de rituais
periódicos de trocas de presentes e de comércio
intensivo entre os povoadores das ilhas que estuda.

No caso hipotético de uma investigação no campo do


teatro popular, por exemplo, podemos imaginar uma
pesquisa em teatro de marionetes na região centro-
oeste do Brasil: como são construídos os bonecos,
que materiais são utilizados, se há especialistas na
construção, como transmitem ou cuidam de seus
saberes. Os atores (que manipulam os bonecos)
interagem com a platéia a partir de assuntos do dia-
a-dia? Como incluem a relação com atores poderosos,
política ou economicamente, presentes na platéia?
Simbolizam (em metáforas) as assimetrias das relações
sociais atuais? Como tratam os materiais culturais
regionais? Que estereótipos contribuem (consciente
ou inconscientemente) para fixar ou contestar a visão
dominante? Escolhemos o(s) tema(s), as perguntas,
e escolhemos o campo onde coletar a evidência
empírica para responder essas perguntas mais gerais.
Porém, a pesquisa-em-campo não é tão linear assim:
situações e eventos inesperados podem surgir a
qualquer momento! Questões até mais importantes
que as previstas no projeto inicial podem impactar o
pesquisador levando-o a mudar o tema ou o foco do
assunto! Há sempre um quê de acaso (e de aventura)
em toda pesquisa!

CoNeCtANdo sABeres
Leia sobre o assunto em:

MALINOWSKI, Bronislaw. Os argonautas do pacífico ocidental


ocidental.
São Paulo: Abril, 1984, no capítulo Introdução: tema, método e
objetivo dessa pesquisa, pp.17-34.

IMportANte
Antes de ir a campo, o pesquisador faz uma revisão o mais
exaustiva possível da bibliografia produzida a respeito do tema
de interesse no local, na região, no Brasil, no mundo, em livros e
publicações especializadas. Já isto é pesquisa, claro!!! O tripé de
campo é também aplicável à pesquisa teórica e bibliográfica!!! Ou,
no dizer de Geertz, lemos a cultura como um texto!!!

Podemos empreender o exercício inverso, como uma


forma de introdução: ler os textos bibliográficos
como leríamos a cultura inscrita nos cadernos de
anotações de campo. Começaremos lendo um texto
com uma idéia prévia, um projeto. Por exemplo,
pesquisar a idéia de cultura em um determinado
livro. Cada vez que algo nos chame a atenção
em relação a nosso tema faremos uma pequena
marca na margem do livro. quiçá criemos
diferentes marcas – pequenas estrelas,
triângulos, triângulos invertidos, quadrados,
círculos - para sinalizar diferentes assuntos.
Depois da leitura geral ou enquanto fazemos a
leitura de uma seção, podemos preencher uma
linha da ficha de consulta com uma frase que
nos interesse. Em seguida, continuamos com a
leitura até uma nova anotação.

72
A REFLEXÃO SOBRE OS SÍMBOLOS E OS RITUAIS NA
ANTROPOLOGIA

O estudo da evolução dos rituais e do teatro na


antropologia

A origem e evolução das concepções artísticas do


homem são um motivo de estudo e de discussão entre 73
os pesquisadores. O Período Paleolítico terminou com
a chamada idade quaternária, o que corresponde a
pelo menos 12 mil anos atrás na História. Porém, as
sociedades humanas, já bem antes, quiçá até 200 mil
anos atrás (origem dos humanos modernos na África),
constituídas por grupos de caçadores e coletores,
não eram primitivas nem pobres. Ao contrário, as
evidências da Paleontologia sugerem a existência
de abundância de comida, famílias pequenas e
demarcação de território. Os seres humanos não
moravam em um único lugar nem se deslocavam
ao acaso: cada grupo tinha seu próprio circuito de
circulação, uma rota relativamente fixa no tempo e no
espaço que dependia, por um lado, dos movimentos
dos animais segundo as estações e seus próprios
padrões de alimentação e reprodução, por outro, da

Módulo 6 - Antropologia Cultural


escolha do início da temporada de caça pelo grupo.

Os grupos humanos tinham, ao que parece, entre qua-


renta e setenta indivíduos. Muitos deles compartilhavam
um mesmo território, territórios adjacentes ou
parcialmente superpostos. Os grupos se encontravam
algumas vezes, ora por casualidade, ora para trocar
informações e objetos. As relações poderiam ser
hostis, mas, quando os animais se reuniam em uma
área mais delimitada, ou quando certas frutas em
uma área estavam maduras para a coleta, os grupos
humanos se concentravam em um mesmo lugar. Esse
tipo de comportamento relacionado ao nicho ecológico
acontece também atualmente nos poucos povos que
vivem atualmente de uma economia de caça e de coleta:
os povos indígenas no interior da Austrália, no interior
do deserto do Kalahari, na Namíbia, nas terras altas da
Nova Guiné (ilha ao norte da Austrália), entre outros.
Essas reuniões especiais, em torno de uma atividade
comum como a caça ou a coleta, eram festejadas com
danças e cerimoniais de trocas de presentes.

Os nichos ecológicos ocupados pelos seres humanos


mantinham os grupos em movimento dentro de
padrões regulares e repetidos seguindo aos animais,
adaptados às mudanças das estações, criando arte e
ritual nos pontos de encontro dos grupos. Os primeiros
indícios de arte na África e na Europa datam de
mais ou menos 35 mil anos. Com efeito, no Período
Paleolítico, o desenvolvimento de representações
visuais já era muito alto: as esculturas e pinturas em
abrigos rochosos e cavernas, como as de Lascaux
(França) e Altamira (sul da Espanha), são as mais
conhecidas. Há evidências de que algumas cavernas
com pinturas chamadas “rupestres” estiveram em
uso ritual constante por até mais de dez mil anos.

Pinturas rupestres na caverna de Lascaux (França) e Altamira (Espanha)

Outras variantes que surgem desde esse período são


peregrinações, reuniões marcadas por festas e trocas
de presentes, festas cerimoniais e atividades lúdicas.

sAIBA MAIs
Vejamos as características dessas reuniões segundo a reconstru-
ção de Richard Schechner:

• reúnem-se grupos – mas não indivíduos – que nem


convivem nem são desconhecidos entre si;

• compartilha-se o alimento (no caso de animais) ou uma


fonte de alimentos (no caso da coleta);

• um crescente tom de excitação, de conforto, pela criação e


circulação de energia desenvolvida em sons vocais, cantos,
dança (movimentos corporais cíclicos e coletivamente
sintonizados), percussão corporal e de objetos;

• um lugar de reunião em comum que não é o espaço de


nenhum grupo em particular (o que hoje denominamos
de “espaço público”);

• nesses lugares em que dois ou mais grupos se encontram


em certo momento da temporada de caça ou de coleta,
onde há fartura de alimentos e que coincidem com uma
singularidade geográfica – uma caverna, uma elevação,
um olho d’água – estabelece-se, no decorrer do tempo,
um centro de cerimônias. Pesquisas feitas pela Etologia, a
ciência que estuda os comportamentos dos animais, têm
assinalado a existência de centros com essas características
também entre primatas como os chimpanzés, mas a
74 diferencia crucial é que os humanos permanentemente
transformam simbolicamente esses espaços com inscrições,
arranjos de objetos, ou criando lendas em torno deles.
Nós, humanos, transformamos os espaços naturais
em espaços culturais, criamos distintos modos de
construir teatros. Mas, se todos os nossos re-arranjos
do espaço – modificações arquitetônicas - são espaços
culturais, qual é a especificidade do teatro? Parece
bastante claro que se tratam de espaços especiais
usados quase que exclusivamente para representar
algo, em referência aos próprios grupos, sobre o 75
mundo, o passado ou o próprio presente.

IMportANte
O antropólogo e diretor teatral norte-americano Richard
Schechner afirma que o teatro não surge apenas com os gregos no
século V antes de Cristo, mas existe com muitíssima anterioridade: é uma
criação da espécie humana na sua evolução biopsíquica e cultural!

Ao longo do Período Paleolítico, os centros cerimoniais


estabelecidos em torno de um sistema de caça e
coleta seguindo as fontes de alimentos – os lugares
de encontro de grupos humanos que festejavam
o encontro e a fartura da temporada, marcando
com inscrições o espaço e, com lendas, a ocasião e

Módulo 6 - Antropologia Cultural


o lugar – constituíam os primeiros teatros. Temos,
assim, uma integração do espaço geográfico, do
período cíclico de temporadas e interações sociais em
lugares e momentos estabelecidos de encontro entre
diferentes grupos. O espaço natural é transformado
em cultural por meio de inscrições visuais e inscrições
orais que demarcam esse tipo de lugar.

A Antropologia Cultural e Social mostra como uma


imensa maioria dos povos no mundo tem desenvolvido
culturas ricas em sistemas de parentesco, ritos e mitos,
canções e danças, ainda que sejam pobres em técnicas
materiais se comparadas com as culturas de socieda-
des de maior concentração urbana. Sociedades de
organização tribal no interior desértico da Austrália,
no interior da mata tropical em alguns países da áfrica
Central e das regiões amazônicas do Brasil, podem
apresentar poucas evidências de inscrições visuais
desses espaços de encontro, mas não por isso são áreas
artisticamente pobres, muito ao contrário.

Schechner apresenta o caso do povo Mbuti, uma


sociedade na região da áfrica Central, para esclarecer
esse ponto: os Mbuti se movimentam e dançam no
interior da mata tropical, considerada sagrada, o
ritual molimo, caracterizado pelo som da trombeta
de madeira e os padrões de dança que lhe são
associados. Segundo a etnografia de Turnbull, “o
molimo permanece escondido dentro de uma árvore
perto do centro sagrado da mata, ele se movimenta
em direção ao campo, levando com ele o centro
sagrado enquanto respira o ar, bebe a água, esfrega-
se com a terra e finamente manifesta-se no fogo,
momento no qual o caráter sagrado do centro da
mata envolve ao campo todo”.

CoNeCtANdo sABeres
Leia sobre o assunto em:

SCHECHNER, Richard. Performance - teoría y prácticas interculturales.


Buenos Aires: uBA, 2000, no capítulo “Hacia uma poética de la
performance”, pp. 71-106.

A partir de pesquisas de sistemas ecológicos como a


realizada pelo antropólogo Roy Rappaport, na Nova
Guiné, de inferências sobre o Período Paleolítico e
da experiência no teatro contemporâneo em Nova
York, Schechner sugere que, nesses lugares especiais,
as pessoas se reuniam no que podemos chamar
teatro e/ou baile e música, porque as três atividades
sempre aparecem juntas em tais situações, e depois
iam embora. Ainda que seja muito simples e óbvio,
essa seqüência de ações organizadas no tempo não é
a única possibilidade entre dois ou mais grupos que
se aproximam. Os grupos podem evitar o encontro,
ou estabelecer um combate, por exemplo. O modelo
de três fases – reunião, representação, dispersão – é
o especificamente teatral, segundo Schechner. Esse
modelo de performance se encontra “naturalmente”
em cenários urbanos e é denominado por Schechner
como “erupções”.

sAIBA MAIs
As “erupções”, como modelo de performance, são assim
descritas por Schechner:

quando acontece um acidente na rua ou este é provocado (no caso


do chamado teatro de guerrilha): as pessoas se reúnem para ver o
que acontece; formam um círculo em torno do acontecido. Fala-se
do acontecido, quem foi envolvido, por quê; o tom do discurso é
interrogativo como nos dramas e nos juízos dos tribunais. Aliás, os
juízos são versões formalizadas do acidente acontecido na rua. O
que aconteceu é absorvido pela ação de reconstruir o que aconteceu.
Nos juízos, a reconstrução é verbal; no teatro, em forma analógica,
fazendo de novo (em forma realista, de ficção, mítica, religiosa).
[...] O acontecimento na rua vai se diluindo vagarosamente até os
76 grupos formados se dispersarem.

Outro modelo de teatro natural é o das procissões ou


espécies de peregrinações, em que o acontecimento
segue uma trajetória prescrita no espaço, os
participantes se reúnem ao longo do caminho e a
procissão se detém em certos lugares estabelecidos
onde se realizam performances. Nesses modelo,
temos os desfiles, os cortejos fúnebres, as procissões
de Corpus Christi, as marchas políticas, sindicais e dos
movimentos sociais. Entretanto, uma procissão tem
um ponto de chegada: o cortejo fúnebre finaliza 77
no túmulo; a marcha, no palanque dos oradores; a
peregrinação, no santuário. O que acontece nesses
lugares é oposto à “erupção”: tudo está bem
planejado, ensaiado, “ritualizado”.

Em suma, o teatro acontece sempre em momentos


e lugares especiais. Ele é parte de um complexo
de atividades performativas – aí incluídos também
rituais, esportes, combates ritualizados, juízos de
tribunais, dança e música, brincadeiras – que, na
maioria das sociedades, apareceram em espaços e
tempos próximos, incluso a ocidental, até a Idade
Média. Porém, a característica de brincadeira é
especialmente esclarecedora da tendência, no
Ocidente pós-iluminista, à separação das esferas, ou
seja, a tendência de separar o ritual da brincadeira,

Módulo 6 - Antropologia Cultural


dando importância conceitual e precedência histórica
à primeira como algo sério e deixando a segunda
como uma derivação ou, ainda, uma deturpação do
ritual. A generalização desse juízo de valor é marcada
até hoje pelos preconceitos culturais ocidentais.
Podemos pensar no aspecto carnavalesco de muitos
importantes rituais em, inúmeras culturas, nos quais
as pessoas se sentem livres para adotar condutas que
em outros momentos são interditadas. Ou pensar nas
brincadeiras como espaços de resistência política, de
gênero (mulheres) ou de grupos étnicos ou raciais, às
imposições do sistema de trabalho.

Vejamos, agora, a dimensão religiosa dos símbolos no


ritual e na performance. Em 1912, Emile Durkheim
escreveu que todas as religiões, até as consideradas mais
simples, se afirmam na realidade social e a expressam.
Durkheim apontava, à relação do símbolo com o
significado, assim como ao relativismo cultural, questões
que atravessam a Antropologia Cultural e Social:

Sob o símbolo, é preciso saber atingir a realidade


que representa e que lhe dá sua significação
verdadeira. Não há, pois, no fundo, religiões que
sejam falsas. Todas são verdadeiras à sua maneira:
todas respondem, ainda que de maneiras diferentes,
a determinadas condições da vida humana.
Nos meados do século 20, o antropólogo inglês Victor
Turner, estudando uma sociedade da áfrica Sudeste,
os Ndembu (República de Zâmbia), assinala que o
simbolismo tem pelo menos igual importância que
os impulsos biopsíquicos e o condicionamento cedo
no seio da família elementar. Inclusive, propõe que o
símbolo ritual tem em comum com o símbolo onírico,
a característica descoberta por Sigmund Freud, o
fundador da psicanálise, de ser uma resultante entre
duas tendências basicamente opostas: um compromisso
entre a necessidade de controle social e certos impulsos
humanos inatos e universais, de cuja completa
gratificação seguir-se-ia a ruptura desse controle.

CoNeCtANdo sABeres
Leia sobre o assunto em:

DuRKHEIM, Emile. As formas elementares de vida religiosa. São


Paulo: Edições Paulinas, 1989; São Paulo: Martins Fontes, 1996, nos
capítulos Objeto da pesquisa, pp.29-49; Definição do fenômeno
religioso e da religião, pp.53-79.

Vejamos mais de perto, então, as definições de Turner.


Ele percebe, nas celebrações rituais dos Ndembu, fases
específicas de processos sociais mais amplos, por meio
dos quais os grupos locais se ajustavam a mudanças
internas das suas aldeias. Ele define o ritual como “uma
conduta formal prescrita em ocasiões não dominadas
pela rotina tecnológica, e relacionada com a crença em
seres ou forcas místicas”. Em seguida, trata o símbolo
como “a menor unidade possível que ainda conserva
as propriedades específicas da conduta ritual”. Mas
essas definições ainda são muito abstratas. Vejamos, em
seguida, sua aplicação em um caso estudado pelo autor.

Os Ndembu consideram certos símbolos rituais


como “dominantes”. Nos rituais celebrados para
propiciar os espíritos dos antepassados que afligem
a seus parentes vivos com transtornos reprodutivos
(esterilidade), doenças ou azar na caça, há duas
classes principais desses símbolos dominantes.

A primeira classe é representada pela primeira


árvore ou planta da série de árvores ou plantas
que os praticantes e adeptos do culto de cura
procuram, recolhendo suas folhas, cascas ou raízes.
A segunda classe desses símbolos nos rituais de cura
consiste em santuários nos quais os sujeitos desses
78 rituais se sentam enquanto os praticantes os lavam
com substâncias vegetais misturadas com água
realizando, ao mesmo tempo, ações simbólicas. Esses
santuários são compostos de vários objetos simbólicos
combinados. Escreve Turner: “Ambas as classes de
símbolos se encontram fortemente vinculados a seres
não-empíricos. Nos rituais de crise do ciclo de vida
(nascimento, iniciação, casamento, morte), em lugar de
seres não-empíricos, os símbolos dominantes parecem
representar forças, tipos de eficácia, igualmente não-
empíricos” (TuRNER 1980: 32-34). 79

Esses símbolos dominantes existem em muitos contex-


tos rituais diferentes: às vezes precedem toda uma
cerimônia, em outras apenas aparecem em fases
particulares. um exemplo bem próximo: a cruz
materializada ou como gesto, símbolo dominante
nos rituais da missa católica. Há duas características
importantes desses símbolos. A primeira é que
possuem autonomia a respeito dos fins dos rituais em
que aparecem, por exemplo, uma missa de defuntos.
Precisamente, não consistem em objetos de duração
indefinida, mas objetos aos quais a categoria do
tempo não parece aplicável. A segunda característica,
decorrente da primeira, é que esses símbolos são
pontos relativamente fixos tanto da estrutura cultural
como da estrutura social. Turner denomina estrutura

Módulo 6 - Antropologia Cultural


social como os princípios de relacionamento entre as
pessoas em uma unidade política (uma aldeia, por
exemplo), as regras de sucessão na chefia, de herança,
de descendência e de residência. Por estrutura cultural,
entende a inter-relação entre os símbolos, a hierarquia
dos símbolos dominantes.

De fato, enfatiza Turner, os símbolos dominantes


constituem pontos de união entre esses dois tipos
de estrutura. Independentemente da ordem de sua
aparição em um ritual particular, eles são fins em si
mesmos, representativos dos valores mais importantes
de uma sociedade. No caso dos Ndembu estudados
por Turner, os símbolos dominantes – a árvore do
látex branco simbolizando o leite materno, a árvore
do látex vermelho simbolizando o ciclo feminino e
a circuncisão masculina – encontram-se envolvidos
dentro de sistemas rituais relativamente estáveis,
cíclicos e repetitivos. Como exemplos mais próximos de
símbolos dominantes, temos a cruz entre os católicos,
a bíblia entre os protestantes, a recitação do Alcorão
em árabe clássico entre os muçulmanos.

CoNeCtANdo sABeres
Leia sobre o assunto em:

“ selva de los símbolos”. Madrid: Siglo 21, 1980,


TuRNER, Victor. “La
no capítulo “Símbolos en el ritual Ndembu”, pp. 21-52.
PEIRANO, Mariza. A favor da etnografia. Rio de Janeiro: Relume-
Dumará, 1995.

O que interessa, aqui, é como os símbolos se


posicionam entre si em uma estrutura – a estrutura
cultural – e como essa estrutura se relaciona à
estrutura social, sobretudo, como normas sociais
expressadas em mitos são atuadas em rituais, isto é,
como parte de processos sociais.

IMportANte
Segundo analisa Turner (1980: 24-25),

Os símbolos geram a ação, e os símbolos dominantes tendem a se


converter em focos de interação social [...]. Os grupos se mobilizam
em torno deles, celebram seus cultos ante eles, realizam outras
atividades simbólicas perto deles e, freqüentemente, para organizar
santuários, agregam outros objetos simbólicos.

Nos rituais de aflição, observa Turner, as mulheres da


aldeia dançam em círculo em torno da grande árvore
que simboliza o princípio das grandes mães, as cabeças
de linhagem; o ritual lembra-lhes o seu pertencimento
à linhagem materna, apesar da regra de residência na
aldeia dos seus maridos, apaziguando as tendências
à ruptura social. O ritual, veiculando os símbolos, faz
desejável, ou ao menos aceitável, a obrigatoriedade
das normas sociais, e tem conseqüências na realidade
social. A estrutura cultural – a tela de símbolos –
se articula por meio desses símbolos dominantes
acionados no ritual com os processos da estrutura
social (tensões, crises, lutas internas).

IMportANte
Em suma, o ritual age na própria realidade social. As
condições da vida social, em meio ao ordenamento da sociedade
em grupos estruturados – sejam estes metades, clãs, castas, classes
sociais –, as divergências entre os princípios que organizam esses
grupos, a colaboração e a concorrência econômica, o cisma
dentro dos grupos e a oposição entre os grupos, isto é, o “drama
social”, como veremos no capítulo seguinte, constituem tudo
aquilo com o que se relaciona socialmente o simbolismo ritual.

A análise do simbolismo e do processo social por


Turner na década de 1960 é quase paralela ao
80 surgimento da Antropologia Interpretativa, em 1973,
na pluma de Geertz, que considera os símbolos em
relação aos significados e como âncoras dos mesmos.
Ainda, as tendências de ambos os pesquisadores serão
identificadas em alguns momentos como Antropo-
logia Simbólica, em outros, como Antropologia da
Experiência, com uma virada mais fenomenológica
neste caso. Entretanto, além do estudo do símbolo
ritual, a grande contribuição de Turner é ao estudo da
performance, ritual ou estética, que abordaremos no
capítulo seguinte. De sua parte, depois de estudar a 81
religião como um sistema cultural, Geertz propõe, em
1976, o estudo da arte como um sistema cultural.

Ao estudar a arte, o interesse da Antropologia


Cultural na abordagem interpretativa passa a ser a
compreensão do sentido concreto que a arte tem em
formas culturais particulares: formas que diferem
notoriamente nos meios e símbolos utilizados, nos
significados que lhes são atribuídos, nas distinções
sociais implicadas e nas visões de mundo que
projetam. O interpretativismo se propôs investigar
esses elementos no seu habitat natural, “o mundo
corriqueiro no qual os homens observam, nomeiam,
escutam e agem”, e nessa perspectiva, é central a
noção de sensibilidade, entendida enfaticamente
por Geertz como “uma formação coletiva na qual

Módulo 6 - Antropologia Cultural


intervém o conjunto inteiro da existência social”. um
exemplo esclarecerá esse sentido.

sAIBA MAIs
Na áfrica Ocidental, o profundo interesse do escultor da
sociedade Iorubá (República da Nigéria) pela linha, e por formas
particulares de linhas, surge de uma sensibilidade característica
desse povo e não apenas de um prazer ligado às propriedades
formais da linha, aos problemas da técnica da escultura, nem de
alguma noção cultural generalizada e isolável como uma forma
de “estética nativa”. A questão fundamental é observar que na
formação dessa sensibilidade participa o conjunto da vida, como
sugere Geertz. Assim, os Iorubá associam a linha com a civilização
ou cultura em oposição à natureza: “nossa terra tem linhas sobre
sua face”. O historiador da arte africana Robert F. Thompson
esclarece que “civilização” na língua iorubá é ilàjú, que significa
“rosto sulcado por sinais”. O mesmo verbo que civiliza o rosto
com sinais de identidade, segundo as linhagens urbanas e rurais,
também civiliza a terra: Ó sá kéké, Ó sáko (Ele que traça as marcas,
Ele que desmata). Esse mesmo verbo serve também para designar
os caminhos e demarcações na mata. Lingüisticamente, o verbo
básico là, que indica cicatrizar, tem múltiplas associações com a
imposição do modelo humano sobre a desordem da natureza. A
preocupação do povo Iorubá pelas linhas responde, assim, a uma
sensibilidade particular desse povo, na qual os significados das
coisas são as cicatrizes que os homens traçam nelas.
Para o projeto da Antropologia da Arte, portanto,
estudar uma forma de arte significa:

• explorar uma sensibilidade;

• entender que uma determinada sensibilidade


é, essencialmente, uma formação coletiva;

• entender que os fundamentos dessa formação


coletiva são tão amplos e profundos como a
existência social.

IMPORTANTE
O projeto da Antropologia da Arte se afasta, assim, de duas
posições reducionistas: a idéia de que o poder estético se fundamenta
apenas nos prazeres da técnica artística; a idéia funcionalista que
considera as obras de arte apenas como complexos mecanismos
para definir as relações sociais, sustentar as normas e fortalecer os
valores sociais.

A unidade de forma e de conteúdo na arte de um povo,


de um período histórico, de uma região, é um ato cultural
que deve ser explicado, colocando em foco os tipos de
reflexão associados à arte, especialmente aqueles que
geralmente não são considerados estéticos. A atenção
sobre o destino final de uma peça de artesanato ou
de arte, por exemplo, nos permite “compreender seu
sentido e perceber sua força” como sugere Geertz a
partir do caso das linhas no povo Iorubá. Outro exemplo
colocado por Geertz, de um tecelão da áfrica Ocidental,
é esclarecedor a esse respeito: o tecelão vende a peça
quando o tecido resultante é aceitável; se o tecido é
bom, ele fica com a peça, mas, se for muito bom, ele
dará de presente à sua sogra.

CoNeCtANdo sABeres
Leia sobre o assunto em:

GEERTZ, Clifford, O saber local – novos ensaios em antropologia


interpretativa. Petrópolis: Vozes, 1998, no capítulo A arte como
sistema cultural, pp.142-181.

O artista trabalha, portanto com a compreensão


e as capacidades de sua audiência - capacidades
para ver, escutar, tocar, inclusos o gosto e o faro.
Independentemente de alguns elementos dessas
82
capacidades serem inatos – obviamente é preferível
não ser daltônico –, tais capacidades aparecem na
existência da vida real através da experiência de viver
entre certos tipos de coisas que olhamos, escutamos e
manipulamos, coisas sobre as quais devemos refletir,
sobre as quais nos confrontamos e até temos o dever
de reagir aceitando ou rejeitando-as. Como conclui 83
GEERTZ (1998: 178): “a arte e os instrumentos para
entendê-la são feitos na mesma fábrica”.

Em suma, no estudo de esculturas, pinturas, poemas,


danças, dramas estéticos não apenas confrontamos
essas expressões, mas os fatores que fazem com que
elas sejam importantes para aqueles que as elaboram,
produzem ou possuem. Esses fatores,afirma Geertz,
não são universais, mas tão variados como a própria
vida. Se a arte parece universal, é pelo fato de sua
atividade prover âncoras simbólicas à reflexão humana:
“Certas atividades estão especificamente desenhadas
em todas as sociedades para demonstrar que as
idéias são visíveis, audíveis e tangíveis, que as idéias
podem ser projetadas em formas onde os sentidos, e
através dos sentidos, as emoções podem ser aplicadas
reflexivamente.” (GEERTZ, 1998: 179-181).

Módulo 6 - Antropologia Cultural


O ESTUDO ANTROPOLÓGICO DAS ARTES PERFORMÁTICAS:
DO RITUAL AO TEATRO

O processo ritual: do drama social ao drama estético

Como vimos nos capítulos anteriores, a Antropologia


estuda as mais diversas manifestações culturais do ser
humano, de todas as sociedades, mas de preferência
no momento atual, na sua mais recente e viva forma,
assim como nos momentos de transformação no
passado longínquo, centenas de milhares de anos
atrás. Engloba tanto questões do comportamento
social, político, econômico quanto todas as expressões
culturais – especialmente para nosso interesse,
representação dramática, música, dança –, incluso
a cultura material, muitas vezes ligada ao ritual e à
religião. Porém, normalmente, o teatro, a dança e a
música são apenas um assunto entre os outros, sem
merecer maior atenção na Antropologia mais clássica.
As teorias da performance advindas da Antropologia,
a Etnologia e os estudos de folclore, entraram
exatamente nessa brecha, na segunda metade do
século 20, estudando todas aquelas manifestações
“performadas” que não entraram em consideração
por serem especiais e complexas demais para serem
estudadas por um antropólogo convencional, que
não tivesse certa formação e familiaridade com
alguma das artes performáticas. Desde a perspectiva
antropológica, as artes performáticas são entendidas
como expressão do comportamento social do ser
humano, estudando-se essas artes dentro de cada
contexto cultural particular.

Na década de 1970, o já mencionado antropólogo


inglês Victor Turner trouxe mudanças, ao campo da
Antropologia, de grande importância para o estudo
do ritual, da performance e do teatro. A primeira
contribuição refere-se à atenção dada por Turner aos
símbolos rituais como veículos da ação social e, vice-
versa, os processos de simbolização da realidade social,
onde o ritual tem um lugar central na vida social. Como
foi apresentado no capitulo anterior, Turner aproximou
a estrutura cultural social à estrutura social através do
estudo dos símbolos, colocando em foco a ação dos
símbolos no ritual. A segunda contribuição desse autor,
que veremos neste capítulo, refere-se ao estudo do
ritual e da performance ritual. Turner chega a esse foco
como parte do estudo dos processos de conflito social
em uma pequena sociedade de organização tribal,
84 analisando as lutas políticas, a formação de facções,
as manipulações pela chefia, os sofrimentos – inclusive
as doenças que esses processos sociais ocasionam nos
indivíduos, especialmente os momentos de ruptura ou
de consolidação da unidade social por meio do ritual.

sAIBA MAIs

Victor Turner, antropólogo social, norte-ame-


ricano, nascido em 1920, na Escócia, e falecido em
85
1983, salientou-se pelos seus estudos sobre ritual
e simbolismo. Antes de emigrar para os EuA, em
1963, Turner levou a cabo trabalho de campo junto
dos Ndembu da Zâmbia, entre 1950 e 1954. O seu
trabalho representa uma abordagem processual
dos símbolos e rituais baseada num método
etnográfico intensivo de estudo de caso.

Trouxe para a antro-pologia uma interessante e inovadora visão


da análise do ritual na vida em sociedade.

Para tratar desses processos sociais, Turner introduziu e


desenvolveu o conceito de “drama social”, importado
do Teatro, o qual foi uma verdadeira revolução na
disciplina. Com efeito, até meados do século 20,

Módulo 6 - Antropologia Cultural


tinham primazia as concepções funcionalistas da
sociedade e da cultura, tanto na Antropologia da Grã-
Bretanha como dos EuA, que indagavam pela função
social de cada instituição social ou cultural. A metáfora
funcionalista apresentava a sociedade como um grande
organismo vivo: a economia e o sistema digestivo,
a estrutura social e o esqueleto ósseo, a política e o
sistema nervoso, a religião e o sistema circulatório,
os rituais periódicos e as batidas do coração. uma
nova metáfora é introduzida na Antropologia por
Turner, tomada do próprio domínio da comunicação
e representação humanas: o teatro, como meio de
entender o processo da vida social, inaugurando o
chamado “processualismo” na Antropologia.

sAIBA MAIs
Sobre o teatro como modelo inspirador nas Ciências Sociais:

Paralelamente às propostas de Victor Turner, o sociólogo norte-


americano Erving Goffman efetuava uma mudança semelhante
a respeito da sociologia funcionalista, inaugurando o chamado
“interacionismo” na Sociologia. O foco desse autor são as
interações sociais entre pessoas em co-presença, utilizando também
o modelo do teatro: o mundo como um palco onde os indivíduos
se destacam como atores que desempenham papéis socialmente
preestabelecidos (controlam as impressões que produzem, mantêm
uma linha de conduta ou fachada). Analisa, por exemplo, o que se
passa entre vendedores e compradores em um centro comercial.
As contribuições de ambos os autores foram fundamentais para
o estudo da performance, sentando as bases para o estudo das
condutas repetidas, ensaiadas previamente, “restauradas” – como
as denominou posteriormente Richard Schechner –, condutas que
sem dúvidas têm efeitos reais no mundo das relações sociais.

CoNeCtANdo sABeres
Aproveite e conheça mais na obra de Goffman:

GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana.


cotidiana
Petrópolis: Vozes, 1975.

Durante seu trabalho de campo com o povo Ndembu da


áfrica Sudeste, Turner foi percebendo lutas e facciosismos
na vida social do grupo particular (uma aldeia) que
estudava. O grupo podia estar radicalmente fendido em
duas facções sob conflito. As partes conflitantes podiam
compreender poucos ou muitos dos membros do gru-
po, ou as brigas podiam ser marcadamente interpessoais,
em caráter, dependendo da situação. No decorrer
do tempo, Turner começou a detectar um padrão
nessas erupções de conflito. Foi percebendo fases no
desenvolvimento do conflito que “pareciam seguir uma
à outra em uma seqüência mais ou menos regular”.
Denominou essas erupções como “dramas sociais”,
advertindo nelas uma “forma processual” caracteri-
zada por quatro fases (ruptura; crise; ação remedia-
dora e reintegração, ou reconhecimento, da cisão),
conforme itens a seguir.

• Separação ou ruptura das relações regulares


governadas pela norma social, afetando
pessoas ou grupos dentro do mesmo povoado.
Essa separação aparece sinalizada por uma
ruptura pública ou pela “quebra” de algum
relacionamento considerado crucial por parte
do grupo.

• Crise e intensificação da crise. A continuidade


da ruptura das relações sociais regulares
traz uma fase de crise e intensificação da
crise. Durante essa fase, se o conflito não
pôde ser detido rapidamente dentro de
uma área limitada de interação social, surge
una tendência à ampliação e propagação da
86 ruptura, apontando para a “clivagem social”.
• Ação remediadora. Visando limitar a propaga-
ção da ruptura alguns mecanismos de ajuste
e reparação, informais ou formais, são ativa-
dos rapidamente por parte das chefias do
grupo social, na tentativa de “reconciliação”
ou “ajuste” entre as partes envolvidas. Os
mecanismos mobilizados variam, por exemplo,
segundo a profundidade e significado social da 87
ruptura. Sua gama pode ir desde o conselho
pessoal e a arbitragem informal à maquinaria
formal jurídica e legal e, para resolver certas
classes de crise, até à performance de ritual
público.

• Reintegração. A fase final ou desfecho pode


ser trágico, levando à cisão social, ou pode
ser reintegrativa, fortalecendo a estrutura
social. Consiste na reintegração do grupo
social em crise ou no reconhecimento social
da ruptura irremediável entre as partes.

Contudo, em diferentes tipos de grupo social, em


sociedades e momentos diferentes, o processo do dra-
ma social pode não acontecer simples ou inevitavel-

Módulo 6 - Antropologia Cultural


mente encadeado de uma a outra fase. O fracasso,
por exemplo, da ação remediadora pode resultar em
uma regressão à fase da crise. Novos grupos sociais
podem não ter meios institucionalizados, legais ou
rituais, e a fase inicial de ruptura pode ser seguida
imediatamente pela fase final de fissão irreversível,
ou pela fragmentação do grupo. Em suma, Turner
procurou demonstrar como os momentos mais críticos
de uma sociedade correspondem ao aparecimento mais
freqüente de “dramas sociais”, deixando clara a relação
profunda entre o conflito e o ritual, e introduzindo a
idéia de performance entendida como atuação ritual.

O autor vê no ritual, portanto, uma eficácia social


especial, como um momento em que a estrutura social
é suspensa, de modo a produzir nos participantes um
efeito de distanciamento reflexivo sobre si mesmos,
sobre as suas normas e valores. Essa suspensão,
ou momento de “antiestrutura”, contribui para a
revitalização da própria estrutura social. O ritual
aparece como um dispositivo, diz Turner, “capaz
de elevar as emoções das pessoas e os valores da
sociedade até um plano místico, onde ganham poder
além dos efeitos seculares do cotidiano”. Portanto, os
mecanismos rituais são utilizados geralmente quando
o conflito está no seu nível mais profundo: “O conflito
se exprime no ritual através da projeção – isto é, na
associação coletiva do infortúnio com sentimentos de
hostilidade e a operação de seres e forças místicas,
com sonhos e com respostas por adivinhação”.

Vejamos, agora, o conceito de ritual. Inicialmente a


referência tomada por Turner para desenvolver esse
conceito é o etnólogo francês Arnold Van Gennep.
Nos inícios do século 20, Van Gennep foi o primeiro
a pensar o ritual como uma série de acontecimentos,
especialmente o tipo de ritual que denominou “rito de
passagem”. Esse tipo de rito se caracteriza pela mudança
de categoria social que nele acontece: por exemplo,
um casamento em que de solteiro (ou divorciado) se
muda para casados, ou o ritual de defesa de trabalho
final de curso de graduação em que o estudante passa
(ou não) para a categoria de bacharel. Temos outros
exemplos nos cerimoniais de formação de oficiais nas
academias militares, ou nos rituais de passagem de
noviço para monge nos mosteiros.

CoNeCtANdo sABeres
Esse interessante assunto também é visto em :
VAN GENNEP, Arnold. Os ritos de passagem.. Petrópolis: Vozes,
1978, no capítulo Classificação dos ritos, pp. 25-33.

O que Van Gennep esclareceu é que os rituais de


passagem seguem uma seqüência regular no tempo,
88
conformada pelas três partes a seguir descritas:
• A primeira, de separação do cotidiano,
denominada de preliminar;

• A segunda é a transição, um tempo em


que se está separado do cotidiano, um
tempo denominado liminar (limen significa
“umbral” em latim), em que ainda não
aconteceu a passagem de categoria (o 89
estudante ainda não foi aprovado, o juiz
ou o oficiante religioso ainda não declarou
casados aos noivos etc.);

• A terceira é de reagregação, ou seja,


reincorporação ao cotidiano da sociedade
total, com a mudança (se o ritual foi bem
sucedido) de categoria social, relativamente
estável e bem definida.

Turner chamou “forma processual” a essa seqüência


dos ritos de passagem, considerando-a como forma
básica de quase todos os tipos de rito.

sAIBA MAIs
Liminar Sentido de “terra de ninguém”, uma fase situada
Liminar:

Módulo 6 - Antropologia Cultural


entre o passado e o futuro estrutural. É tempo ritualizado de
muitas maneiras, freqüentemente, com símbolos expressivos
de identidades ambíguas. Por exemplo: andróginos, figuras
animal/homem, anjos, combinações monstruosas de elementos,
representações de opostos (nascimento-e-morte, de ventre -e-
túmulo).

Fase liminar do ritual: Provê de um cenário para experiências de


vida muito singulares, separadas e à margem da vida cotidiana,
caracterizadas pela presença de idéias ambíguas, imagens
monstruosas, símbolos sagrados, bem como por provações
difíceis, humilhações, instruções esotéricas e paradoxais, presença
de símbolos emergentes representados por mascarados e bufões,
inversões de gênero, anonimato etc.
Caráter liminar: Refere-se ao modo “subjuntivo” da cultura: o
“pode-ser”, o “como-se”, hipóteses, fantasias, conjecturas,
desejos, dependendo de qual aspecto da tríplice estrutura
pensamento-sentimento-intenção seja dominante em uma
situação particular.

Communitas: Refere-se a uma forma de relacionamento com


sentido de vínculo genérico básico, permitindo o vínculo direto
eu-tu, que se reconhece abaixo da estrutura social, isto é, de
todas as hierarquias, diferenças e oposições sociais.
O ritual é definido, assim, como o momento em que os
símbolos são mobilizados, constituindo estes, segundo
Turner, “uma força positiva em um campo de atividade”
(ver capítulo anterior). O ritual tem uma função cen-
tral no drama social, quando frente a crises profundas
que colocam em risco a continuidade social, fracassados
os recursos jurídicos (a invocação de normas sociais) e
políticos (a mediação e a negociação), é efetuado o
ritual com um papel decisivo.

DRAMA SOCIAL
1 2 3 4

Reintegração
Crises e intensificação
Ruptura Ação Remediadora
Cisão irremediável

AÇÃO REMEDIADORA
3. Processo Ritual
1. Processos Políticos (da 2. Processo Jurídico-Legal
(adivinhação, rituais de
deliberação à revolução e à (do arbítrio informal às
aflição, rituais profiláticos,
guerra) cortes formWais)
sacrifícios independentes)

PROCESSO RITUAL
1 2 3

RITOS DE RITOS LIMINARES, RITOS DE


SEPARAÇÃO À MARGEM REAGREGAÇÃO

RITOS LIMINARES, À MARGEM - CARACTERÍSTICAS

1. Comunicação de símbolos 2. Desconstrução lúdica e 3. Simplificação do relacio-


secretos sagrados acerca da recombinação de configura- namento sócio-estrutural.
unidade e continuidade da ções culturais familiares aos A autoridade é, em um
comunidade: exibições de participantes primeiro momento, abso-
objetos simbólicos; oratória luta, dos maiores sobre os
de mitos (catecismos, ver- jovens, dando lugar, em um
sículos, mitos); ações (en- segundo momento, a uma
cenação de mitos, dança, communitas, igualdade eu-
drama, etc.). tu, entre todos os partici-
pantes.

O termo “liminaridade” refere-se à fase de separação


especificamente, de margem a respeito do cotidiano,
que implica, inclusive, um sentimento de communitas,
“uma relação entre indivíduos não segmentados em
função de posições sociais”. A palavra “liminaridade”,
90 relativa a uma fase da estrutura processual de um “rito
de passagem”, é aplicada a outros aspectos culturais – em
sociedades modernas de grande escala e complexidade
– como jogos de esporte, teatro, concertos, processos
orais no judiciário, entre outros, advertindo o autor que
o uso desse termo deve ser principalmente em sentido
metafórico. Contudo, nesse esforço, Turner (1985)
desenvolve o conceito de “liminóide” com a intenção
de explicitar tanto os aspectos da diferença quanto
aqueles que apontam para possíveis similaridades 91
existentes entre esses dois fenômenos.

Veja o quadro a seguir:

PROCESSO RITuAL
Nas sociedades tecnologicamente mais simples
1 2 3
FASE DE SEPARAÇÃO FASE LIMINAR FASE DE REAGREGAÇÃO

FASE LIMINAR

• Autoridade absoluta en-


Recombinação e reversão tre as categorias sociais
Comunicação do sagrado
lúdica • Communitas entre as ca-
tegorias sociais

Módulo 6 - Antropologia Cultural


PROCESSO RITuAL
Nas sociedades tecnologicamente mais complexas
FASE LIMINÓIDE

Inumeráveis tipos e gêneros de performance cultural incluso o teatro

TEATRO

1 2 3

FASE DE SEPARAÇÃO → FASE LIMINAR, À MARGEM FASE DE REAGREGAÇÃO

Comunicação dos textos


Ensaios, aquecimento Recombinação lúdica Esfriamento ritualizado
ritualizado dos atores Autoridade do diretor da peça dos atores
Communitas dos atores

CoNeCtANdo sABeres
Leia sobre o assunto em:

TuRNER, Victor. O processo ritual: estrutura e antiestrutura.


Petrópolis: Vozes, 1974).

. “On the edge of the bush – anthropology as experience”.


Tucson: The university of Arizona Press, 1985.
No caso de sociedades rurais de pequena escala
e organização tribal como os Ndembu (República
de Zâmbia), onde a noção do sagrado abrange a
totalidade das relações, a erupção dos dramas sociais
e a realização dos “ritos de passagem” configuram
momentos de efervescência coletiva e de revitalização
da ordem social, ligados, portanto ao problema
do funcionamento e continuidade desse tipo de
sociedade. Nos termos de Turner, os dramas sociais
configuram “momentos extraordinários” instituídos
pela própria sociedade e que possibilitam aos atores
sociais tomar distância da mesma e lançar um olhar mais
crítico, reflexivo, para a realidade social, bem como
“tomar consciência” dos conflitos, das contradições
estruturais, dos problemas não resolvidos e suprimidos
na realidade social do cotidiano.

IMPORTANTE
Durante os “ritos de passagem”, os atores sociais se arriscam numa
representação reflvexiva de papéis e jogo simbólico de ruptura e
inversão de papéis com a ordem estabelecida na vida cotidiana. No
entanto, eles têm como perspectiva, segundo Turner, a resolução
dos conflitos a propósito da manutenção do status quo.

Outra referência significativa para o estudo da


performance é o nosso conhecido antropólogo
norte-americano Clifford Geertz. Preocupa-se,
principalmente, pela questão da cultura, entendida
como uma complexa “teia de significados” tecida
pelos atores sociais em busca de “dar sentido à vida
individual e coletiva” (GEERTZ 1978: 20).

O interesse dessa perspectiva, portanto, é voltado


a captar e compreender os significados das “ações
simbólicos” – as performances – dos atores sociais,
significados inscritos nos atos, gestos, e aconteci-
mentos aparentemente casuais em certos contextos
sociais específicos (Geertz 1998: 33-56).

Geertz aprecia o estudo de Turner, voltado para


o exame da experiência do ator por meio das
performances, rituais ou teatrais, mas enfatiza o
exame do sentido das ações performáticas. Esse
esforço é realizado no seu livro Negara (1991),
em que estuda a dimensão simbólica do poder
na sociedade balinesa (ilha de Bali, na região da
Indonésia), percebendo que o Estado balinês possui
mais um papel “performativo”, isto é, teatral, do que
92 burocrático ou administrativo.
A natureza expressiva do Estado balinês (...) se
inclinou (...) para o espetáculo, para a cerimônia, para
a dramatização pública das obsessões dominantes da
cultura balinesa: a desigualdade social e o orgulho
do status. Tratava-se de um Estado-teatro em que
reis e príncipes eram os empresários, os sacerdotes,
encenadores e os camponeses, atores, equipe cênica
e público. (GEERTZ 1978: 25). 93

A política aparece, aqui, simultaneamente como dra-


ma social e performance, estabelecendo-se, segundo
sugere o autor, um jogo de oposições entre a cidade e o
campo, o centro e a periferia, a civilização e a barbárie,
entre seres elevados e homens.

CoNeCtANdo sABeres
Leia sobre o assunto em::

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro:


Zahar, 1978.

. O saber local – novos ensaios em antropologia interpretativa.


Petrópolis: Vozes, 1998.

Módulo 6 - Antropologia Cultural


. Negara: o estado teatro no século 19. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1991.

Há uma afinidade entre os pensamentos de Geertz


e Turner, para quem o drama social tem um sentido
metafórico de agir como um “espelho mágico” não
apenas capaz de refletir o “real”, mas também de
provocar nos atores a reflexão sobre esse “real”.

sAIBA MAIs
O empreendimento interpretativo na Antropologia, segundo
Geertz, exige a leitura, “por sobre os ombros dos nativos”, do texto
cultural, “um manuscrito estranho e desbotado, cheio de elipses,
incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos”
(1978: 20). A cultura, do ponto de vista de Geertz, consiste em um
conjunto de textos cujas performances são distintos exemplares
variantes. Para apreender o significado do texto escolhido é
preciso, no mínimo, que o antropólogo vá do texto (a performance)
ao contexto (a realidade histórica e social), e do contexto ao
texto. O projeto da Antropologia, como uma leitura de textos
contraditórios e emendados, passa por esse processo de leituras
em um círculo hermenêutico, na busca de compreender essa “teia
de significados” do texto cultural que confere sentido às ações dos
próprios sujeitos que tecem essa teia.
As teorias da performance: das artes verbais à dança
e ao teatro na modernidade

Nas sociedades modernas de grande escala, os


dramas sociais podem escalar desde o nível local até
as revoluções nacionais. Por meio de práticas como o
teatro, o drama dançado e os contadores profissionais
de historias, se apresentam performances que
evidenciam as fraquezas de uma comunidade,
demandam transparência a suas lideranças, criticam
e contestam valores e crenças consagrados, retratam
seus conflitos característicos e sugerem remédios
para os mesmos. Segundo Turner, o teatro deve a sua
gênese específica à terceira fase do drama social, a
fase que essencialmente tenta, por meio do ritual,
atribuir um sentido a eventos sociais dramáticos,
em um processo que Schechner tem denominado de
“restauração do passado”.

Por outro lado, nas sociedades urbanizadas, as ativida-


des performáticas como o teatro, a dança ou a música,
por sua vez, tendem a configurar acontecimentos
à parte do todo social e muito mais voltados para as
expectativas individuais ou interesses particulares,
inclusive das esferas da diversão, do entretenimento
e da indústria cultural. Turner se volta para a teoria
da performance substituindo, com o conceito de
“liminóide”, nas sociedades de grande escala, o conceito
de “liminar”, nas sociedades pequenas.

Entretanto, Turner estabelece a distinção entres as


“performances sociais” (desde ritos como as pere-
grinações religiosas até dramas sociais como as
insurreições) e as “performances estéticas”, tais como
os “dramas estético-teatrais”. O autor coincide com
seu discípulo, Richard Schechner, em que eventos
rituais, dramas e performances sociais e estético-
teatrais são constitutivos de espaços simbólicos e de
representação metafórica da realidade social, atra-
vés do jogo de inversão, do desempenho de pa-
péis figurativos sugerindo criatividade, propiciando
uma experiência singular que, ao mesmo tempo, é
“reflexiva” sobre a própria realidade social, e permite
a “reflexividade” do sujeito (individual na sociedade
moderna) sobre si mesmo.

CoNeCtANdo sABeres
Sobre o assunto leia em:

94 TuRNER, Victor. “From ritual to theatre”.. New York: Performing


Arts, 1982.
SCHECHNER, Richard. “Performance - teoría y prácticas
interculturales”. Buenos Aires: uBA, 2000.

Contudo, é importantíssimo esclarecer a distinção entre


eventos performáticos entendidos como “ritos” e
aqueles definidos como “teatro”. A proposta de
Schechner a esse respeito envolve as noções de “eficácia”
95
e de “entretenimento”. uma performance define-se
como “performance de eficácia” quando tem
repercussões significativas na sociedade ou em uma
parte da sociedade, grupo ou ator social, tais como
solucionar conflitos, provocar mudanças radicais,
redefinir as posições, papéis, status dos atores sociais. É o
caso que já vimos dos chamados ritos de passagem, de
iniciação, assim como os dramas sociais.

Entretanto, as “performances de entrete-


nimento” não alteram de modo efetivo
nada na sociedade, ao menos de modo
direto, como seria o caso dos espetáculos
teatrais. No teatro, doenças, nascimentos,
mortes acontecem às personagens e não
às pessoas físicas dos atores que represen-

Módulo 6 - Antropologia Cultural


tam essas personagens, ao menos, não
necessariamente. No entanto, nenhuma
performance é puramente de “entretenimen-
to” ou de “eficácia”. Depende das circunstân-
cias, ocasião, lugar e, sobretudo, do tipo de en-
volvimento da audiência: o rito pode ser visto
como teatro e, o teatro, como rito. Nas igrejas
protestantes negras nos Estados unidos as pes-
soas entram em transe e saem com movimentos
dançados pela nave central, dão testemunhos
acalorados, recebem batismo e purificações; a
música do gospel é muito próxima do blues,
jazz e rock’n roll. Esses e outros aspectos são
tanto arte como ritual!!

A performance, no caso das artes, envolve as


dimensões do espaço e do tempo, isto é, um lugar
e um tempo especiais. Sobretudo, consiste em “uma
moldura de comunicação” com duas características:
a responsabilidade do performer perante uma
audiência e uma tradição performática; a avaliação
do desempenho do performer por parte da audiência
(e seus pares, outros performers) em termos dessa
tradição. A moldura se estabelece por uma série de
signos que indicam “isto é performance”.
sAIBA MAIs
Sobre a teoria da performance:

O antropólogo e folclorista Richard Bauman (1984) foi um dos


primeiros a estudar a performance como uma moldura ou modo
de comunicação caracterizado por quatro aspectos fundamentais.
Primeiro, a responsabilidade que assume um ator, perante uma
audiência, por uma exibição de competência comunicativa. Segun-
do, essa competência (conhecimento, habilidade, destreza) refere-
se à maneira como a comunicação é realizada, independentemente
dos conteúdos que transmite. Terceiro, o ato de expressão do
performer – o modo como a performance é feita – está sujeito à
avaliação da audiência. quarto, o ato de expressão em si mesmo
tem o potencial de ampliar as experiências da audiência e de gerar
prazer, o que é fornecido pelas qualidades intrínsecas da atuação.
Em suma, a idéia de performance em Bauman coloca a atenção no
ato de expressão e na avaliação desse ato por parte da audiência,
em uma abordagem que privilegia o foco nas interações sociais.

CoNeCtANdo sABeres
Você pode ler mais em:

BAuMAN, Richard. “Verbal art as performance”.. Illinois: Waveland


Press, 1977.

O próprio espaço e o tempo são demarcados com


elementos que os sinalizam como o lugar e o momento
em que acontecerá a performance (um teatro
enquanto edificação, a publicidade, cartazes ou
elementos portáveis como no teatro de rua). Por
exemplo, já no lugar e momento previstos pela
publicidade, os músicos de um grupo podem estar
afinando e praticando sons e trechos publicamente no
palco; a audiência na platéia, quase cheia, pode estar
conversando entre si, aguardando o inicio da música.
Há um momento pouco depois, marcado por uma
série de signos que indicam que “a partir de agora a
música é a sério”: a orquestra disposta e o regente da
sinfônica, que dá as costas à audiência e levanta as
mãos; os músicos de rock dispostos no palco frente à
platéia e o baterista contando “um, dois, três...”.

CurIosIdAde

96 Musicalmente não há diferença entre orquestra sinfônica


e filarmônica. A diferença encontra-se na manutenção do
grupo uma vez que o vocábulo SINFÔNICO deriva de SINFONIA
(orquestra apta a executar sinfonias - forma musical desenvolvida
Duas noções úteis para o estudo das artes performá-
ticas, desenvolvidas por Schechner a partir do conceito
de ritual encontrado em Turner e Van Gennep, são as
categorias transporte e transformação. A primeira refere-
se a uma experiência que caracteriza praticamente
todos os tipos de eventos performáticos: as passagens do
mundo do cotidiano ao mundo da performance, tanto
em termos de deslocamento a um determinado lugar 97
(palco de concerto de rock, palco de teatro etc.) como,
principalmente, para os atores (de teatro, músicos,
cantores, dançarinos) realizam uma série de ações
chamadas de “aquecimento”. Essa fase pode ser pública,
como quando os músicos de uma orquestra afinam seus
instrumentos ou praticam individualmente trechos
difíceis da peça que vão tocar. Para a audiência, trata-se
de uma mudança na atitude, geralmente expressa em
um processo vagaroso que leva ao silêncio da platéia uns
instantes antes do início da peça. Encontramos, aqui, a
fase do ritual denominada separação ou preliminar.

Durante a pevça, somos transportados, atores e audiên-


cia, ao “mundo da performance”, em correspondência à
segunda fase de margem, de liminar na seqüência do
rito de passagem, que no caso do teatro na modernidade

Módulo 6 - Antropologia Cultural


já vimos que Turner denomina liminóide. Nessa fase é
que a conduta dos atores é o “comportamento
restaurado”: um comportamento criado, escolhido e
trabalhado previamente em oficinas, no caso do teatro e
da música improvisada ou pré-composta, e fixado por
meio de ensaios, ainda que o performer tenha certa
margem de escolha no momento da performance, ou
quando fatores incontroláveis acontecerem.

Finalizada a peça, a audiência atua conven-


cionalmente batendo palmas, expressando
em forma codificada sua avaliação (isto é,
também, uma performance), entrando na
terceira fase do ritual, a agregação ao mundo
do cotidiano, o pós-liminar na seqüência
ritual. Aqui, os atores podem fazer outra
série de ações chamadas de esfriamento ou
arrefecimento (desaquecimento é preferido
pelos cantores de ópera). A audiência vai
saindo do local, mas ainda imbuída da peça
à qual assistiram, fazendo comentários
avaliativos ou críticos com os amigos, ou
para si mesmos.

IMportANte
O processo de transporte consiste, pois, de uma experiência
temporária. Entretanto, pode também implicar uma mudança
de status permanente, experiência que Schechner denomina de
transformação. Refere-se a eventos performáticos que instituem um
novo papel ou condição de status para o performer na sociedade:
é o processo, por exemplo, que transforma o estudante de artes
cênicas em ator perante a platéia e seus pares. Depois desse evento
(ou série de eventos) performático, o sujeito não volta ao mundo
do cotidiano no mesmo status que antes, mas com um novo papel
social, ou um novo status.

CoNeCtANdo sABeres
Leia sobre o assunto em:

SCHECHNER, Richard. “Performance


Performance - teoría y prácticas inter-
culturales”. Buenos Aires: uBA, 2000.

ALVES DA SILVA, Rubens. Entre “artes” e “ciências”: a noção de


performance e drama no campo das ciências sociais. Em: Horizontes
antropológicos, Porto Alegre, uFRGS, Ano 11, (24):35-65, jul./dez., 2005.

Vejamos, agora, a idéia da performance como represen-


tação, ação atuada duas vezes. Schechner distingue en-
tre ser, fazer, performar e explicar ações demonstradas:

Ser é a existência em si mesma. Fazer é a atividade de


tudo que existe, dos quazares aos entes sencientes
e formações super galácticas. Mostrar-se fazendo é
performar: apontar, sublinhar e demonstrar a ação.
Explicar ações demonstradas é o trabalho dos Estudos
da Performance. (SCHECHNER 2003: 26).

As performances – artísticas, rituais, no cotidiano – são


feitas todas elas de comportamento duplamente atua-
do, exercido, isto é “comportamentos restaurados”. As
ações performadas são aquelas que as pessoas treinam
para desempenhar, que têm que repetir e ensaiar. Exigem
treino e esforço consciente. No caso de artes de improvi-
sação como a música de jazz, ou de ações aparentemen-
te exercidas apenas uma única vez como os happenings
no teatro, ou uma ocorrência corriqueira como cozinhar,
elas estão construídas a partir de comportamentos pre-
viamente exercidos e treinados. De fato, assinala Schech-
ner, “a própria redundância das ações cotidianas é pre-
cisamente o que constitui a sua familiaridade... A arte
cotidiana... é próxima da vida diária”.

IMPORTANTE
O “comportamento restaurado” nada mais é do que um
98 “modelo” de comportamento: instrui o performer como deve ou
deveria atuar, isto é, desempenhar seu papel social seja num palco
teatral, numa igreja pentecostal ou no candomblé.
Como se constrói o comportamento restaurado? No
caso do teatro, temos uma oficina e uma idéia sobre
uma ou mais personagens (na música e na dança
seria quiçá um padrão de sons ou de movimentos,
ou ambos, por exemplo); para o teatro, o princípio
é simples: a pessoa pode agir como outra. Isso
porque “a pessoa social... é um papel ou conjunto
de papéis”. O processo social (religioso, político,
médico, educacional etc.) é transformado em teatro, 99
e o comportamento é simbolizado, isto é, fixado em
uma representação. Desde as potenciais idéias e da
exploração das características da personagem na
oficina – pode ser isto, pode ser aquilo –, é depois, no
ensaio, que se fixam essas características e cada nova
performance tem como referência as performances
anteriores, sua própria história. A representação
significa, em palavras de Schechner: “nunca pela
primeira vez”, ela é o “comportamento repetitivo”.

sAIBA MAIs
Agora perceba:

Performance De acordo com Victor Turner a experiência se completa


Performance.
por meio de uma forma de “expressão”. Performance (do francês
antigo parfournir, “completar”, “realizar inteiramente”) refere-se

Módulo 6 - Antropologia Cultural


ao momento da expressão. A performance completa, justamente,
uma experiência, dando-lhe expressão social.

Comportamento restaurado. Na Antropologia do Teatro de Richard


Schechner, refere-se a ações físicas ou verbais que são preparadas,
resultantes de ensaios ou que não estão sendo exercidas pela
primeira vez: “comportamento duplamente exercido”. Trata-se de
modelos culturais que têm afinidades com as chamadas técnicas
corporais, envolvendo gestos, posturas e movimentos corporais.

Técnicas corporais. Na Antropologia Clássica Francesa da primeira


metade do século 20, teve papel decisivo o antropólogo Marcel
Mauss, que introduziu as noções de “técnicas corporais”. Com a
noção de “técnica”, Mauss refere-se a atos tradicionais eficazes,
aproximando-os explicitamente dos atos simbólicos da magia e da
religião, enfatizando as duas condições: que sejam tradicionais e b
eficazes, pois é a tradição que assegura que exista técnica enquanto
transmissível, aspecto que permite distinguir as atividades
humanas. Por outro lado, Mauss observa que gestos, posturas,
movimentos corporais, para além explicitamente dos estímulos
biológicos, constituem modelos culturais transmitidos, isto é,
resultantes de um processo de aprendizagem ao longo do tempo,
que varia segundo cada sociedade. Por meio de uma comparação
entre as sociedades francesa e inglesa a respeito de atividades
tão diversas como natação, corrida e marcha, entre outras, Mauss
demonstrou diferenças importantes e o predomínio da cultura em
diversos atos do comportamento humano concluindo que, para
além do simples fato biológico, “em todos esses elementos da arte
de utilizar o corpo humano, os fatos de educação dominam”. Essa
aprendizagem dos “usos do corpo” não é um fenômeno simples.
Pelo contrário, Mauss (1974: 215) enfatizou sua complexidade, pois
envolve múltiplos aspectos – biológico, psicológico e sociológico –,
em uma perspectiva que denominou “homem total”.

Modelos. No interpretativismo, Clifford Geertz (1978) apresenta


as noções de “modelo de” e “modelo para”, que podem nos
auxiliar a compreender melhor o comportamento restaurado.
“Modelo de” refere-se àquilo que está dado com anterioridade
na realidade social, considerando a realidade social como ela
deveria ser, segundo as normas e mitos que dizem sobre ela.
Esse modelo está na base da nossa capacidade de simbolização,
possibilitando o desenvolvimento da reflexão sobre a realidade,
a produção de mitos ou de teorias. “Modelo para” é aquele que
orienta culturalmente as ações dos atores sociais, suas práticas e
comportamentos, isto é, aquele comportamento que é restaurado
para a performance.

CoNeCtANdo sABeres
Leia mais em:

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas.. Rio de Janeiro:


Zahar, 1978.

ALVES DA SILVA, Rubens. Entre “artes” e “ciências”: a noção de perfor-


mance e drama no campo das ciências sociais. Em: Horizontes antropo-
lógicos, Porto Alegre: uFRGS, Ano 11, (24):35-65, jul./dez., 2005.

MAuSS, Marcel. Sociologia e antropologia, vol. II. São Paulo: Edusp,


1974.

DAWSEY, John C. Turner, Benajamin e antropologia da performance:


o lugar olhado (e ouvido) das coisas. Em: Medeiros, Maria B.;
Monteiro, Marianna F.M.; Matsumoto, Roberta K. (org.). Tempo e
performance, pp. 33-46. Brasilia: PPGArte/unB, 2007.

SCHECHNER, Richard. O que é performance?. Em: O percevejo. Rio


de Janeiro: uFERJ/uNIRIO, Ano 11, (12):25-20, 2003.

LANGDON, E. Jean. Performance e preocupações pós-modernas


em antropologia. Em: Antropologia em primeira mão, n. 11. Santa
Catarina: PPGAS/uFSC, 1996.

100
Considerações finais

“Todos nós performamos mais do que sabemos


performar”, assevera Richard Schechner. Com efeito,
a vida cotidiana, religiosa e artística consiste em uma
grande quantidade de rotinas, hábitos e ritualizações,
bem como de recombinação de comportamentos
previamente exercidos, comportamentos restaurados: 101
eles são tratados pelos atores como um cineasta trata um
pedaço de filme. Os pedaços de comportamento podem
ser rearranjados ou reconstruídos, independentemente
do sistema causal que os levou à existência. Esse
comportamento é, seguindo a Schechner, o processo
chave de todo tipo de performance, no cotidiano, nas
artes, nas brincadeiras, nos rituais, nas curas dos xamãs.
Seus significados têm que ser decodificados pela
audiência, aqueles que possuem um conhecimento para
tanto. Voltamos a encontrar, aqui, com a questão do
relativismo cultural: são os fãs, entusiastas, seguidores,
amadores que conhecem as regras do jogo nos esportes,
no rock’n roll, na música “sertaneja” ou no teatro de rua.
Todos nós estamos envolvidos em contextos culturais,
com seus valores próprios e maneiras de avaliação.

Módulo 6 - Antropologia Cultural


Esses conceitos de performance são úteis para compre-
ender antropologicamente fenômenos atuais da reali-
dade social e cultural, como a “restauração” de per-
formances motivadas pela indústria cultural e pela
indústria do turismo. Por exemplo, grupos “tradicionais”
que em estados brasileiros como Minas Gerais, São
Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, entre outros, são mantidos
ou recriados em nome da “tradição”, a partir de fatores
internos desses grupos ou do incentivo de folcloristas, de
gestores culturais, de secretarias municipais ou estaduais
de cultura, de artistas locais ou regionais etc.

reFLeXÃo
Trata-se de comportamento restaurado, no qual são recupera-
dos eventos performáticos do passado, mas, qual passado? Aquele
no qual os grupos foram protagonistas de performances passadas
idealizadas, ou das imaginadas pelos atores no presente? Ou tudo
isso junto?

Algumas análises de Schechner nesse sentido têm


enfocado certos produtos da indústria turística nos
Estados unidos e em outros países, que recriam uma
época passada em povoados ficcionais (Schechner
2000). um caso complexo que ele analisa é a filmagem
de um ritual “tradicional” em uma comunidade
da Índia. O ritual religioso em questão – chamado
agnicayana – não era praticado na comunidade no
momento da filmagem, ao menos não da maneira
em que os especialistas rituais o recriaram, motivados
pelo projeto da equipe cinematográfica, a partir de
registros de como se realizava no passado. O próprio
fato da filmagem – a performance e presença da
equipe e a performance dos especialistas rituais, bem
como a pesquisa que levou à performance filmada, foi
impactante nessa comunidade e constituiu o ponto de
partida para a continuidade do ritual, agora com um
“modelo para” dessa cultura, cristalizado no próprio
filme chamado Altar of fire (Santuário de Fogo).

CoNeCtANdo sABeres
Conecte seus saberes com as obras :

SCHECHNER, Richard. “Performance


Performance - teoría y prácticas inter-
culturales”. Buenos Aires: uBA, 2000.

ALVES DA SILVA, Rubens. Entre “artes” e “ciências”: a noção de


performance e drama no campo das ciências sociais. Em: Horizontes
antropológicos, Porto Alegre: uFRGS, Ano 11, (24):35-65, jul./dez., 2005.

Finalizamos, caro leitor, essa leitura da disciplina


Antropologia Cultural, um texto de introdução à
Antropologia Cultural direcionado a estudantes
da Licenciatura de Teatro. Gostaria deixar algumas
reflexões e propostas da Antropologia da Performance
e do Teatro, visando estimular sua pesquisa,
bibliográfica ou quiçá de “campo”, no contexto de
ensino, assim como fornecer uma moldura teórica
para a valorização da própria performance em sala
de aula, como modo de conhecimento sobre o teatro,
a cultura e a sociedade.

Nos centros acadêmicos e na educação em geral, há


uma divisão de trabalho instaurada entre a produção
de teoria e a prática performática, entre a abstração
intelectual e os processos do corpo e das emoções.
uma crítica a essa divisão é importante para pensarmos
criativamente a sala de aula, especialmente em termos
de performance, de fazer teatro, música e dança. A
esse respeito, o antropólogo norte-americano Dwight
Conquergood (citado em Schechner 2002), respeitado
estudioso da performance, tem sinalizado a existência de
uma forte hierarquia entre pensar e efetuar, interpretar
e fazer, entre a conceitualização e a criatividade. Trata-
se de eleição arbitrária e, como todos os binarismos,
acaba sendo uma armadilha, como afirma esse autor.
102 Propõe, no entanto, que a performance seja estudada
não apenas intelectualmente, mas também na prática.
CoNeCtANdo sABeres
Leia mais em:

SCHECHNER, Richard. “ “Performance studies: an introduction”.


New York: Routledge, 2002. 103

CARLSON, Marvin. “Performance: a critical introduction”. London:


Routledge, 1996, no capítulo “The performance of culture –
anthropological and ethnographical approaches”.

Com efeito, fazer teatro é uma classe específica de per-


formance que combina ocasião e reflexividade e que
tenta, conscientemente, formas de “meta-comentários”
sobre a própria cultura. Essas características, já aponta-
das por vários dos antropólogos que vimos neste curso,
combinadas com o aspecto físico ou presencial dos atores
em cena, definem essa “particular qualidade e poder”
da performance “teatral”, fazendo dela, em palavras do
estudioso Marvin Carlson (1996: 198-99), “um dos proce-
dimentos mais poderosos e eficazes que tem a socieda-
de humana para o fascinante e interminável processo da

Módulo 6 - Antropologia Cultural


auto-reflexão e experimentação pessoal e cultural”.

As novas propostas se refletem nos estudos antropoló-


gicos da performance em um deslocamento desde o
“quê” para o “como” da cultura, passando da acumulação
de dados ao foco em como os materiais da performance
são criados, valorizados e transformados, em como
vivem e operam os atores. O fato de que a performance
seja associada não apenas com o fazer, mas com o “re-
fazer”, um “comportamento duas vezes atuado”, trouxe
conseqüências importantes para a teoria e a reflexão
antropológica do teatro. Ainda mais relevantemente,
trouxe a questão de como a performance implica uma
autoconsciência acerca do fazer e do “re-fazer” por
parte de atores, pesquisadores e audiências.
PROGRAMA DE LEITURAS BIBLIOGRAFIA POR TÍTULOS

A antropologia e o conceito de cultura

CARVALHO, José J. Metamorfoses das tradições


performáticas afro-brasileiras: de patrimônio cultural
a indústria do entretenimento. Em: Londres, Cecília
(org.). Celebrações e saberes da cultura popular:
pesquisa, inventário, critica, perspectivas, pp. 65-83.
Rio de Janeiro: Centro Nacional de Folclore e Cultura
Popular. Brasília: CNFCP, FUNARTE-IPHAN, 2004.

DA MATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução


à sntropologia social. Petrópolis: Vozes, 1981.

GEERTZ, Clifford. A transição para a humanidade.


Em: Tax, Sol (org.). Panorama da antropologia. Rio de
Janeiro, São Paulo, Lisboa: Fundo de Cultura, 1966.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito


antropológico. Rio de Janeiro: Zahar, 1993.

LEAKEY, Richard. A origem da espécie humana. Rio


de Janeiro: Rocco, 1997.

TRAVASSOS, Elizabeth. Os mandarins milagrosos: arte


e etnografia em Mário de Andrade e Béla Bartók. Rio
de Janeiro: Funarte - Zahar, 1997.

Leituras complementares

LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. São


Paulo: Brasiliense, 1995.

O desenvolvimento do conceito de cultura

BOAS, Franz. “Cuestiones fundamentales de


antropología cultural”. Buenos Aires: Solar/Hachete,
1964.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de


Janeiro: Zahar, 1978.

HERSKOVITS, Melville. Antropologia cultural. São


Paulo: Mestre Jou, 1963.

LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. São


Paulo: Brasiliense, 1995.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito


104 antropológico. Rio de Janeiro: Zahar, 1993.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. Rio


de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.
Leituras complementares

AUGÉ, M. O sentido dos outros. Petrópolis: Vozes, 1999.

KROEBER, Alfred L. “Antropologia general”. México:


Fondo de Cultura Económica, 1945.

KUPER, Adam. Cultura – a visão dos antropólogos. 105


São Paulo: Edusc, 2002.

MALINOWSKI, Bronislaw. Uma teoria científica da


cultura. Rio de Janeiro: Zahar, 1962.

TYLOR, Edward B. “Antropología: lecturas”. Madrid:


McGraw Hill, 1988.

A diversidade cultural

AUGRAS, Monique. O duplo e a metamorfose – a


identidade mítica em comunidades nagô. Petrópolis:
Vozes, 1983.

BENEDICT, Ruth. Padrões de cultura [1932]. Lisboa:


Edição Livros do Brasil, s/d.

Módulo 6 - Antropologia Cultural


BOAS, Franz. Antropologia cultural. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2004.

DURKHEIM, Emile. As formas elementares de vida


religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

OLIVEN, Ruben G. A antropologia dos grupos urbanos.


Petrópolis: Vozes, 1985.

RAMOS, Alcida R. Sociedades indígenas. São Paulo:


Ática, 1988.

SEGATO, Rita L. “Santos e daimones”. Brasília: EdUnB,


2004.

Leituras complementares

CUNHA, Manuela Carneiro. Antropologia no Brasil.


São Paulo: Brasiliense/EDUSP, 1986.

Método e técnica na antropologia

AGAR, Michael. “Hacia un lenguaje etnográfico”.


Em: Reynoso, Carlos (compil.). “El surgimiento de la
antropología posmoderna”. Barcelona: Gedisa, 1992.

CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. A aventura


antropológica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
GEERTZ, Clifford. A Interpretação das culturas. Rio de
Janeiro: Zahar, 1978.

. O saber local – novos ensaios em antrop-


ologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 1998.
LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. São
Paulo: Brasiliense, 1995.

MALINOWSKI, Bronislaw. Os argonautas do Pacífico


Ocidental [1922], pp.17-34. São Paulo: Abril, 1984.

VELHO, Gilberto. Observando o familiar. Em: NUNES,


Edson de Oliveira (org.). A aventura sociológica:
objetividade, paixão, improviso e método na pesquisa
social, pp. 36-46. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

Leituras complementares

CARVALHO, José Jorge. O olhar etnográfico e a voz


subalterna. Em: Horizontes antropológicos. Porto
Alegre: UFRGS, Ano 7, (15): 107-147, jul., 2001.

CLIFFORD, James (org.). A experiência etnográfica:


antropologia e literatura no século 20. Rio de Janeiro:
EdUFRJ, 1998.

A reflexão sobre os símbolos e os rituais na antropologia

DURKHEIM, Emile. As formas elementares de vida


religiosa. São Paulo: Edições Paulinas, 1989; São
Paulo: Martins Fontes, 1996.

GEERTZ, Clifford. O saber local – novos ensaios em


antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 1998.

PEIRANO, Mariza. A favor da etnografia. Rio de


Janeiro: Relume-Dumará, 1995.

SCHECHNER, Richard. “Performance - teoría y


prácticas interculturales”. Buenos Aires: UBA, 2000.

TURNER, Victor. “La selva de los símbolos”. Madrid:


Siglo 21, 1980.

Leituras complementares

DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo. São Paulo: Editora


Perspectiva, 1976.

LABURTHE-TOLRA, Philippe; WARNER, Jean-Pierre. A


106 função simbólica: religião, arte, pensamento, língua,
representações. Em: Etnologia-Antropologia, pp.191-
311. Petrópolis : Vozes, 1997.
LÉVI-STRAUSS, Claude. A ciência do concreto. Em:
O pensamentosSelvagem. São Paulo: Companhia
Editorial Nacional, 1970. [Parte sobre os rituais e os
jogos]

O estudo antropológico das artes performáticas: do


ritual ao teatro 107

ALVES DA SILVA, Rubens. Entre “Artes” e “Ciências”:


a noção de performance e drama no campo das
Ciências Sociais. Em: Horizontes antropológicos. Porto
Alegre, UFRGS, ano 11, (24):35-65, jul./dez., 2005.

BAUMAN, Richard. “Verbal art as performance”.


Illinois: Waveland Press, 1977.

CARLSON, Marvin. “Performance: a critical


introduction”. London: Routledge, 1996.

DAWSEY, John C. Turner, Benjamin e antropologia da


performance: o lugar olhado (e ouvido) das coisas.
Em: Medeiros, Maria B.; Monteiro, Marianna F.M.;
Matsumoto, Roberta K. (org.). Tempo e performance,
pp. 33-46. Brasilia: PPGArte/UnB, 2007.

Módulo 6 - Antropologia Cultural


GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de
Janeiro: Zahar, 1978.

GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida


cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1975.

LANGDON, E. Jean. Performance e preocupações pós-


modernas em antropologia. Em: Antropologia em
primeira mão, n. 11. Santa Catarina: PPGAS/UFSC,
1996.

. Negara: o estado teatro no século 19. Rio de


Janeiro: Bertrand Brasil, 1991.

. O saber local – Novos ensaios em antropologia


interpretativa. Petrópolis: Vozes, 1998.

MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia, vol. II.


São Paulo: Edusp, 1974.

SCHECHNER, Richard. O que é performance?. Em:


O percevejo. Rio de Janeiro: UFERJ/UNIRIO, Ano 11,
(12):25-20, 2003.

SCHECHNER, Richard. “Performance - teoría y prácticas


interculturales”. Buenos Aires: UBA, 2000.

SCHECHNER, Richard. “Performance studies: an


introduction”. New York: Routledge, 2002.
TURNER, Victor. “On the edge of the bush – anthropology as
experience”. Tucson: The University of Arizona Press, 1985.

TURNER, Victor. “From ritual to theatre”. New York:


Performing Arts, 1982.

TURNER, Victor. O processo ritual: estrutura e


antiestrutura. Petrópolis: Vozes, 1974.

VAN GENNEP, Arnold. Os ritos de passagem.


Petrópolis: Vozes, 1978.

Leituras complementares

LONDRES, Cecília. Patrimônio e performance: uma


relação interessante. Em: TEIXEIRA, João Gabriel
L.C. et al. (org.). Patrimônio imaterial, performance
cultural e (re)tradicionalização, pp. 19-30. Brasília:
ICS/UnB, 2004.

MONTEIRO, Marianna F. M. O tempo na performance


e no drama. Em: Medeiros, Maria B.; Monteiro,
Marianna F.M.; Matsumoto, Roberta K. (org.). Tempo e
performance, pp. 89-100. Brasília: PPGArte/UnB, 2007.

MÜLLER, Regina P. Ritual, Schechner e Performance.


Em: Horizontes antropológicos. Porto Alegre: UFRGS,
Ano 11, (24):67-85, 2005.

108
ANotAÇÕes
ANotAÇÕes
ANotAÇÕes
ANotAÇÕes
ANotAÇÕes
ANotAÇÕes
ANotAÇÕes

Você também pode gostar