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Um dos nossos maiores desafios como huma-

nidade é, e sempre foi, vermos uns aos outros e

ANTROPOLOGIA CULTURAL
nossas diferenças de maneira respeitosa, harmonio-
sa e livre de preconceitos. Todavia, o que temos visto tem
sido exatamente o oposto: desrespeito, intolerância, conflitos e muito
sofrimento decorrente de todo tipo de preconceito. Esse é um quadro
preocupante especialmente quando se observa o enorme sofrimento
daqueles que por alguma razão são vistos como “diferentes”. Nesse sen-
tido é que se deve avaliar a enorme importância da antropologia cultural
como ciência que tem o próprio ser humano em sua dimensão cultural
como objeto de estudo.
A grande contribuição da antropologia é propor a discussão da alteri-
dade, isto é, a percepção do outro. E quem é o outro? Aquele que por
alguma razão é diferente de nós e que, por isso mesmo, nos engrandece,
nos ajuda a construir nossa humanidade e nos permite relativizar tudo o
que está fora da nossa cultura.
Esta obra tem como objetivo discutir temáticas relacionadas à cultura,
considerando diferentes eixos organizadores, sempre com foco no pa-
pel que esse conceito desempenha para a análise antropológica.

SOLANGE M. S. DEMETERCO
Código Logístico Fundação Biblioteca Nacional
ISBN 978-85-387-6599-8

59248 9 788538 765998


Antropologia Cultural

Solange M. S. Demeterco

IESDE BRASIL
2020
© 2020 – IESDE BRASIL S/A.
É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito da autora e do
detentor dos direitos autorais.
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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
D449a

Demeterco, Solange M. S.
Antropologia cultural / Solange M. S. Demeterco. - 1. ed. - Curitiba
[PR] : IESDE, 2020.
164 p. : il.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-387-6599-8

1. Etnologia. 2. Antropologia. 3. Etnocentrismo. I. Título.


CDD: 305.898
20-62183
CDU: 39

Todos os direitos reservados.

IESDE BRASIL S/A.


Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200
Batel – Curitiba – PR
0800 708 88 88 – www.iesde.com.br
Solange M. S. Doutora em História e mestra em História do Brasil pela
Universidade Federal do Paraná (UFPR). Especialista
Demeterco em Currículo e Prática Educativa pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
Graduada em Ciências Sociais pela UFPR. Professora
de ensino médio e superior nas áreas de sociologia,
história, geografia e geopolítica. Autora de livros
didáticos para o nível superior.
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SUMÁRIO
1 Antropologia e cultura  9
1.1 Cultura: um conceito antropológico   10
1.2 Objeto e objetivo da antropologia cultural   14
1.3 Diversidade cultural   18

2 O processo civilizatório e a cultura  25


2.1 Norbert Elias e o processo civilizador   26
2.2 A concepção de humano e a cultura   31
2.3 Práticas culturais e as formas de distinção social   37

3 A experiência de alteridade  46
3.1 O eu e o outro   46
3.2 A igualdade e a diferença em uma perspectiva dialógica   51
3.3 O etnocentrismo e o relativismo cultural  57

4 O multiculturalismo  66
4.1 As relações étnico-raciais e o racismo   67
4.2 As relações de gênero e a antropologia cultural   75
4.3 A questão da imigração e a antropologia cultural   82

5 A antropologia cultural e os símbolos  91


5.1 Imagens, símbolos e sociedade   92
5.2 Ritos, rituais e práticas culturais   97
5.3 Estereótipos, discriminação e preconceito   101

6 A antropologia cultural e a cultura brasileira  109


6.1 A formação do povo brasileiro   110
6.2 A diversidade cultural brasileira   116
6.3 O colonialismo, a mestiçagem e o patriarcalismo no Brasil   123

7 Relações entre espaço, cultura e sociedade  132


7.1 A construção social das categorias de espaço e tempo   133
7.2 A diversidade cultural e ambiental   140
7.3 A cultura, o espaço e a globalização   146

Gabarito   159
APRESENTAÇÃO
Um dos nossos maiores desafios como humanidade é, e sempre
foi, vermos uns aos outros e nossas diferenças de maneira respeitosa,
harmoniosa e livre de preconceitos. Todavia, o que temos visto tem sido
exatamente o oposto: desrespeito, intolerância, conflitos e muito sofrimento
decorrente de todo tipo de preconceito. Esse é um quadro preocupante
especialmente quando se observa o enorme sofrimento daqueles que por
alguma razão são vistos como “diferentes”. Nesse sentido é que se deve
avaliar a enorme importância da antropologia cultural como ciência que tem
o próprio ser humano em sua dimensão cultural como objeto de estudo.
A grande contribuição da antropologia é propor a discussão da alteridade,
isto é, a percepção do outro. E quem é o outro? Aquele que por alguma razão
é diferente de nós e que, por isso mesmo, nos engrandece, nos ajuda a
construir nossa humanidade e nos permite relativizar tudo o que está fora da
nossa cultura.
Esta obra tem como objetivo discutir temáticas relacionadas à cultura,
considerando diferentes eixos organizadores, sempre com foco no papel que
esse conceito desempenha para a análise antropológica.
No primeiro capítulo, vamos tratar sobre as bases da antropologia cultural,
seu objeto de estudo e seus objetivos, além de apresentar uma reflexão em
torno da diversidade cultural em suas múltiplas dimensões, tão fundamental
para pensarmos a existência de tantas e tão diversas visões de mundo entre
os diferentes povos e culturas. O que a antropologia nos mostra é que essa
diversidade foi essencial para nosso processo civilizatório, sobretudo ao
analisarmos de que modo as práticas culturais podem ser utilizadas como
fator de distinção social e construção de identidades individuais e coletivas –
tema do segundo capítulo.
Já no Capítulo 3, o tema é a experiência da alteridade, com o objetivo de
nos ajudar a compreender o impacto negativo de atitudes e comportamentos
etnocêntricos na convivência social e o quão importante é a valorização do
diálogo e do respeito com o outro para uma boa convivência. Com base em
noções como etnocentrismo e relativismo cultural, vamos discutir questões
muito próximas à nossa realidade, a qual muitas vezes é marcada pelo conflito
em razão de não considerarmos que cada cultura tem sua própria lógica.
Nesse sentido, o multiculturalismo é o tema do Capítulo 4, no qual se
analisa como ocorrem as relações étnico-raciais, as relações de gênero e o
contato com imigrantes na sociedade atual, avaliando como as desigualdades
observadas se relacionam com práticas discriminatórias e preconceituosas
quanto ao diferente e como são responsáveis por sua exclusão.
No Capítulo 5, vamos tratar de algo que é muito importante para a
antropologia cultural: como se formam e para que existem os simbolismos.
Entenderemos como símbolos, rituais e diferentes práticas culturais são
construídos, analisando como estereótipos e preconceitos são determinantes
da discriminação e da exclusão social.
Para pensarmos a antropologia cultural e a cultura brasileira, no
Capítulo 6, o objetivo é investigar como aconteceu o processo de formação
do povo brasileiro, pensando o papel desempenhado pelos povos indígenas
nativos, negros africanos e pelos imigrantes na construção da identidade
nacional, considerando o processo de colonialismo, a mestiçagem e o
patriarcalismo na história do país. Nesse contexto, vamos avaliar o impacto
disso na atualidade e no caráter nacional.
No sétimo e último capítulo, o tema são as relações entre espaço, cultura
e sociedade, avaliando a importância do conceito de cultura para pensarmos a
construção social de categorias de análise como espaço, tempo e territorialidade.
Analisaremos como a presença humana em determinados territórios influencia
não só o ambiente, mas particularmente o espaço, que sempre é uma
construção social, histórica e cultural. Além disso, é importante considerar
que o fenômeno da globalização nos apresenta desafios e impõe reafirmar a
importância da diversidade cultural, ao lado da diversidade ambiental.
Assim, o que mais desejamos é que a sua caminhada seja plena de
descobertas, reflexões e provocações que abram para novas perspectivas e
que estimulem uma prática social pautada na ética, no respeito ao outro e ao
meio ambiente. Que esse seja só um começo.
Bons estudos!
1

Antropologia e cultura
Você já se perguntou como nós, seres humanos, chegamos
até aqui? Como construímos séculos de história, realizações,
invenções e produzimos tanto conhecimento? Sermos animais
nos faz ter conexões com a natureza, mas, diferente dos demais,
temos a capacidade de pensar e racionalizar tudo o que vemos,
vivemos e sentimos. Isso nos define e nos coloca inúmeros desa-
fios, sobretudo por essas nossas singularidades, inclusive nossa
capacidade de interagir com a natureza, transformando-a.

A antropologia é a ciência que se debruçou sobre essas


questões buscando compreender o ser humano em todas as
suas dimensões, tornando-o seu objeto de estudo e, ao lado de
outras áreas do saber, ampliando o conhecimento sobre o que
caracterizaria o processo de humanização do Homo sapiens, ou
seja, de nós!

Neste capítulo, analisaremos a importância do conceito de


cultura, primordial para essa ciência, compreendendo o obje-
to e o objetivo da antropologia cultural. Vamos também refletir
sobre o valor da diversidade cultural e das diferentes visões de
mundo, reconhecendo que todos os povos e culturas têm um
valor em si mesmos.

É importante compreender que nenhum indivíduo é apenas


um portador ou reprodutor de cultura, mas é um agente que
tem historicidade, isto é, tem um papel ativo e importante em
toda e qualquer mudança cultural.

Antropologia e cultura 9
1.1 Cultura: um conceito antropológico
Vídeo Pensar o processo de humanização da nossa espécie é pensar em
uma série de passos dados em direção a uma existência menos sujeita
às condições naturais. Trata-se de avaliar como o ser humano foi crian-
do as condições para sobreviver a um ambiente quase sempre muito
hostil e os meios para tornar sua vida menos difícil. Como buscou aten-
der às necessidades básicas – alimentação, abrigo, proteção etc. – e
outras que transcendem a materialidade, tais como a relação com o
sagrado e as inúmeras tentativas de explicar as próprias manifestações
da natureza e o sentido da vida.

Livro Em meio às possibilidades de busca por respostas a essas questões,


além daquelas oferecidas pela teologia e pela filosofia, por exemplo,
surge a antropologia. Fazendo uso da ideia de cultura como sua cate-
goria de análise por excelência, a antropologia oferece uma fundamen-
tação científica para problematizar e analisar as diferenças que sempre
existiram entre grupos humanos, especialmente quando se pensa em
língua, formas de moradia, de alimentação, de convivência e de rela-
cionamento, enfim, de ver o mundo. E mais, ela fornece subsídios para
pensar como harmonizar as diferenças, chamando a atenção para a
Obra clássica, Aprender necessidade de se valorizar a diversidade.
antropologia apresenta
um pouco da trajetória Clyde Kluckhohn, no início da década de 1970, definiu o antropólo-
da constituição da an- go como: “uma pessoa suficientemente louca para estudar seus seme-
tropologia como ciência,
trazendo alguns dos em- lhantes” (1972, p. 19). E por que ele seria um louco? Exatamente porque
bates que marcam seus é muito difícil estudar o próprio ser humano naquilo que é seu maior
primórdios, sobretudo
a discussão em torno diferencial em comparação com os demais seres vivos: a capacidade de
da ideia do que seria o mudar o mundo em que vive.
“selvagem” e o “civilizado”,
e apresentando os pre- Enquanto a sociologia estuda a humanidade no seu tempo e espaço
cursores do pensamento
antropológico. presente, a antropologia procura entendê-la enquanto produtora de
LAPLANTINE, F. São Paulo: Brasi- cultura e diversidade. Inicialmente, o foco da antropologia eram os gru-
liense, 2009. pamentos humanos distantes cultural e geograficamente, momento no
qual os indivíduos participantes dessas culturas eram classificados ora
como primitivos, ora como selvagens, bárbaros ou atrasados. Hoje, a

10 Antropologia Cultural
teoria antropológica combate toda e qualquer análise que estabeleça
algum tipo de hierarquia ou juízo de valor entre culturas diferentes.
A discussão sobre a alteridade, isto é, a percepção do outro, seja ele
quem for, é a premissa que há muito a orienta.

Ainda que não pretenda dar conta de todos os aspectos da vida do


ser humano, a antropologia é a ciência que conseguiu mais resultados
na tentativa de mapear o processo de evolução sociocultural da huma-
nidade ao longo do tempo. Suas subáreas, como a paleontologia e a
arqueologia, em muito contribuíram para traçar o processo evolutivo. E
o conceito de cultura foi se sedimentando cada vez mais, passando-se a
vê-la como um mapa, conforme afirma Kluckhohn (1972, p. 39):
A cultura é como um mapa. Tal como um mapa não é um terri-
tório, mas uma representação abstrata de uma região em parti-
cular, assim, também uma cultura é uma descrição abstrata de
tendências para a uniformidade nas palavras, nos feitos e nos
artefatos de um grupo humano. Quando um mapa é exato e se
sabe interpretá-lo, não se ficará perdido; se conhecermos uma
cultura, saberemos o caminho a seguir na vida de uma sociedade.

Assim sendo, não saber ou não conseguir interpretar esse mapa


não significa que ele esteja errado ou que não tenha valor. Kluckhohn
(1972) também chama a atenção para o fato de não ser possível que to-
dos os integrantes de uma mesma cultura conheçam em detalhes esse
mapa cultural. O que ele e outros pensadores da área já estabeleceram
é a ideia de que ser humano é ter cultura, entendida como uma forma
de equacionar natureza e tudo o que é produção humana; ao mesmo
tempo, uma forma de controle que permite a vida em sociedade. Isso
porque, ainda segundo Kluckhohn (1972, p. 37), “a cultura regula as
nossas vidas em todas as circunstâncias. Desde o momento em que
nascemos até morrermos, existe, quer tenhamos consciência disso ou
não, uma pressão constante, que nos leva a adotar certos tipos de com-
portamentos que outros homens criaram para nós”.

E como poderíamos compreender o que é a cultura? Diversos pen-


sadores a definiram ao longo do tempo, sobretudo em razão do próprio
processo de construção da antropologia enquanto ciência independen-

Antropologia e cultura 11
te, separada da sociologia, ao passo que antropologia social e cultural
se separam. Vejamos algumas dessas elaborações.

Edward B. Tylor (1871) Ralph Linton (1936)


Concepção universalista da cultura, ideias – Cultura como ideias, isto é, uma abstração, que
cultura seria uma abstração, e não algo concre- compõe o pensamento dos indivíduos.
to/material. “Consiste na soma total de ideias, reações emocio-
“É aquele complexo que inclui o conhecimento, nais condicionadas a padrões de comportamento
as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes habitual que seus membros adquiriram por meio da
e todos os hábitos e aptidões adquiridos pelo instrução ou imitação e de que todos, em maior ou
homem como membro da sociedade”. menor grau, participam. Para ele, o termo tem dois
Kahn, 1975, p. 29 apud Marconi; Presotto, 2011, sentidos: a herança social total da humanidade [e]
p. 22. uma determinada variante da herança social”.
Linton, 1959, p. 316 apud Marconi; Presotto, 2011, p. 22.

Bronislau Malinowski (1944)


Franz Boas (1938)
Análise funcionalista da cultura, ideais que têm
Concepção particularista da cultura – só é possível
o papel de explicar as causas e as funções das
conhecer determinada cultura procurando com-
ações individuais ou coletivas.
preender sua própria lógica.
“O todo global consistente de implementos e
“A totalidade das ações e atividades mentais e
bens de consumo, de cartas constitucionais
físicas que caracterizam o comportamento dos
para os vários agrupamentos sociais, de ideias e
indivíduos que compõem um grupo social”.
ofícios humanos, de crenças e costumes”.
Boas, 1964, p. 166 apud Marconi; Presotto, 2011,
Malinowski, 1962, p. 43 apud Marconi; Presotto,
p. 22.
2011, p. 22.

Beasls e Hoijer (1953)


Kroeber e Kluckohn (1952) Abstração do comportamento – ideias que em-
Abstração do comportamento. Essencialismo, basam o comportamento humano.
isto é, aquilo que faz parte da essência da na- “É uma abstração do comportamento e não deve
tureza humana. ser confundida com os atos do comportamento
“Uma abstração do comportamento concreto, ou com os artefatos materiais, tais como ferra-
mas em si própria não é comportamento”. mentas, recipientes, obras de arte e demais ins-
Kroeber e Kluckohn, 1952, p. 19 apud Marconi; trumentos que o homem fabrica e utiliza”.
Presotto, 2011, p. 22. Beasls e Hoijer, 1969, p. 265 apud Marconi;
Presotto, 2011, p. 22.

12 Antropologia Cultural
Felix M. Keesing (1958) Leslie A. White (1959)
Comportamento aprendido, aquilo que é transmi- Não deve ser vista como um comportamento em
tido ao longo de gerações, por meio do processo si mesma, fora do organismo humano, constituí-
de socialização. da de elementos materiais e não materiais.
“Comportamento cultivado, ou seja, a totalidade “Quando coisas e acontecimentos dependentes
da experiência adquirida e acumulada pelo ho- de simbolização são considerados e interpre-
mem e transmitida socialmente, ou, ainda, o com- tados num contexto extra somático, isto é, em
portamento adquirido por aprendizado social”. face à relação que têm entre si, ao invés de com
Kessing, 1961, p. 49 apud Marconi; Presotto, os organismos humanos”.
2011, p. 23. White, in Kahn, 1975, p. 129 apud Marconi;
Presotto, 2011, p. 23.

Clifford Geertz (1962)


G. M. Foster (1962) Mecanismo de controle do comportamento. Sendo
Comportamento aprendido e compartilhado du- um comportamento aprendido ao longo da vida, a
rante a vida em sociedade. cultura acaba se tornando uma forma de controlar
“A forma comum e aprendida da vida, comparti- comportamentos e ações de indivíduos e grupos
lhada pelos membros de uma sociedade, constan- sociais.
te da totalidade dos instrumentos, técnicas, insti- “A cultura deve ser vista como um conjunto de
tuições, atitudes, crenças, motivações e sistemas mecanismos de controle – planos, receitas, regras,
de valores conhecidos pelo grupo”. instituições – para governar o comportamento”.
Foster, 1964, p. 21 apud Marconi; Presotto, 2011, p. 23. Geertz, 1973, p. 37 apud Marconi; Presotto, 2011,
p. 22-24.

Cada um desses autores, ao pensar o conceito de cultura, se ba-


seia numa premissa: para Tylor, Linton, Boas e Malinowski, cultura
é o conjunto de ideias, enquanto para Kroeber e Kluckohn e Beals e
Hoijer, trata-se de uma abstração do comportamento. Se para Linton
a personalidade básica do indivíduo seria determinada pela cultura à
qual pertence, Kroeber afirmava que a cultura teria uma existência pró-
pria, “independente da ação dos indivíduos e fugindo ao seu controle”
(CUCHE, 1999, p. 87). Todos eles, com suas obras, foram fundamen-
tais para a constituição da antropologia como ciência autônoma, mas
a teoria avançou e surgiu a defesa de que cultura seria um comporta-
mento aprendido, tal como afirmavam Keesing e Foster. A interação
social possibilitaria que a cultura fosse transmitida entre gerações e
entre indivíduos, reforçando ou consagrando crenças, hábitos, padrões
e valores que seriam internalizados e reproduzidos.

Antropologia e cultura 13
Já segundo White (2009), a cultura não deve ser vista como um com-
portamento em si mesma, como se não fizesse parte do indivíduo, já
que se constitui de elementos materiais e não materiais. Ele diferencia
comportamento e cultura, a qual independe do organismo humano.
Aqui tem-se um avanço em relação à noção de que cultura é aprendida
e determina comportamentos, compreende-se que também é formada
por representações simbólicas construídas pela humanidade.

Completando o quadro acima, Clifford Geertz (2017) afirma que


a cultura é também um mecanismo de controle do comportamento,
constituindo-se em uma teia de significados, um sistema de símbolos
que orienta a vida de indivíduos e grupos humanos. Ao se relaciona-
rem, os indivíduos expressam suas referências culturais de várias for-
mas, inclusive orientando comportamentos, o que a caracteriza, por
fim, como um mecanismo de controle composto por regras, padrões,
leis etc. A cultura é inerente ao ser humano e, sendo assim, consideran-
do que aqui não se está adotando sua compreensão como sinônimo de
escolaridade ou erudição, é possível concluir que todos os indivíduos
têm cultura.

1.2 Objeto e objetivo da antropologia cultural


Vídeo A antropologia se insere no campo das chamadas Humanidades,
sendo uma das Ciências Sociais e, como tal, tem especificidades em
relação às demais áreas do conhecimento. A principal delas é a relação
com seu objeto de estudo: um ser semelhante a si mesmo. Ainda que
outras ciências, como a sociologia e a psicologia, também investiguem
o ser humano, cada uma delas tem uma abordagem diferente da an-
tropologia. Ao buscar compreender o ser humano enquanto ser bioló-
gico e cultural, a antropologia toma por objeto a existência humana em
todos os seus aspectos (MARCONI; PRESOTTO, 2011).

Talvez essa seja parte da “loucura” à qual fez referência Kluckhohn


(1972) anteriormente. Não seria uma loucura mesmo? Como conseguir
ter o necessário distanciamento para conseguir a imparcialidade exigi-
da pela ciência para se estudar determinado objeto? Afinal, fazer ciên-
cia requer rigor em relação a métodos e técnicas de pesquisa.

Por muito tempo a antropologia debateu essa questão e, ao longo


de sua trajetória enquanto ciência, houve diversos embates que deram

14 Antropologia Cultural
origem a correntes teóricas que, aos poucos, foram deixando mais cla-
ro como lidar com esse objeto de estudo: a humanidade e suas obras.
Segundo Marconi e Presotto (2011, p. 2),
o objeto da antropologia engloba as formas físicas primitivas e
atuais do homem e suas manifestações culturais. Interessa-se,
preferencialmente, pelos grupos simples, culturalmente diferen-
ciados, e pelo conhecimento de todas as sociedades humanas,
letradas ou ágrafas, extintas ou vivas, existentes nas várias re-
giões da Terra. Atribui-se ao antropólogo a tarefa de proceder a
generalizações, formulando princípios explicativos da formação
e desenvolvimento das sociedades e culturas humanas.

Aos poucos, o interesse do antropólogo cultural deixou de ser


apenas as sociedades mais “primitivas”, para também investigar as
chamadas sociedades complexas, urbano-industriais, sem, no entan-
to, abandonar as culturas mais simples. Ao ampliar seu campo de
investigação, a antropologia trouxe inúmeras contribuições para a
compreensão das diferenças, chamando atenção cada vez mais para
a importância da diversidade cultural.

Tendo como objetivo o estudo da humanidade como um todo, a an-


tropologia pesquisa sistematicamente todas as manifestações do ser
humano e da atividade humana de maneira unificada.

Em seus primórdios, os antropólogos se dedicavam ao “excepcio-


nal”, ao “excêntrico” ou ao “exótico”, deixando de lado aspectos liga-
dos ao trivial da vida das pessoas e focando especialmente os traços
físicos dos indivíduos e grupos que não faziam parte da sua realidade.
Em princípio, pensavam que isso lhes garantiria a isenção necessária
para fazer ciência, ocupando um lugar deixado por outras áreas do sa-
ber, para as quais o que não fazia parte da cultura dominante europeia,
branca e civilizada não era importante ou interessante em termos de
pesquisa. Entretanto, foi exatamente a esses aspectos da convivência
humana que a antropologia se voltou, abrindo uma nova frente de
compreensão da humanidade e do processo civilizatório.

Nessa trajetória, firmando-se como ciência, a antropologia cul-


tural passou a fazer uso de diferentes métodos de coleta e análise
de dados, com destaque para a etnografia, que se constitui em uma
descrição mais completa possível das práticas culturais de um gru-
po humano. Para isso, entre as diversas técnicas de pesquisa, podem
ser realizadas entrevistas (diretas ou indiretas), utilizados formulários

Antropologia e cultura 15
e, sobretudo, usadas pesquisas de campo com a realização de ob-
servação participante. Essa técnica, um dos diferenciais do método
antropológico, implica a inserção do antropólogo-pesquisador no am-
biente que está se propondo a investigar, participando da rotina e dos
eventos do grupo enquanto pesquisa, dando voz ao nativo e procu-
rando interpretar aquilo que vê.

Como observador participante, concordando com Pelto (1984, p. 56),


o antropólogo procura realizar vários outros objetivos principais.
Primeiro, espera que, envolvendo-se bastante na vida local, possa
conquistar o respeito e confiança dos moradores, de modo que
lhe revelem, espontaneamente, aspectos de suas vidas privadas.
Segundo, a participação é, com frequência, a melhor forma de
ver os detalhes complexos do comportamento humano.

Costumes, hábitos, rituais, crenças e esquemas de pensamento dos


diferentes grupamentos humanos, quando vistos em seu contexto ori-
ginal e nas circunstâncias em que ocorrem, tornam-se mais claros ao
pesquisador que, ao descrevê-los, apreende detalhes que de outra for-
ma não seria possível. Tendo como foco o comportamento humano e
o estudo do ser humano, a prática antropológica busca captar as carac-
terísticas que o definem, sob o ponto de vista social, cultural, psíquico e
físico. É o que se entende por estudo do ser humano por inteiro, sendo
impossível pensar nele sem cultura. Quando pensamos na evolução da
humanidade, o que se pode perceber? Que o ser humano foi capaz de
construir coisas, realizar mudanças em seu entorno, alterar aspectos
da natureza, interagir com seus pares, enfim, produzir cultura!

A jornada da humanidade foi – e tem sido – marcada por conquistas,


mas também por perdas, ajustes, adaptações e mudanças. A sobrevi-
vência da espécie humana foi possível porque ela teve a capacidade
de se adaptar às mudanças que ocorriam no planeta, criando formas
de atender às suas necessidades, sobretudo após a Revolução Neolíti-
ca. Esse foi um marco na caminhada da humanidade em razão, espe-
cialmente, das mudanças decorrentes da descoberta e do controle do
fogo, da domesticação de animais, da descoberta da agricultura e da
sedentarização. O crescimento do cérebro do ser humano lhe possibili-
tou desenvolver a cognição e a inteligência, ampliando sua capacidade
de criar e produzir artefatos, ferramentas, utensílios etc., além de au-
mentar seus questionamentos acerca da própria existência.

16 Antropologia Cultural
Figura 1
Jornada do homem

Iesde Brasil S/A.


1,7 milhões a.C. –
Australopithecus e Homo
habilis

500.00 a.C. – Homem de


Java e Homem de Pequim
Machados de mão 1 milhão a.C. –
no Velho Mundo Instrumentos de
pedra toscos

Arte das cavernas da


Europa Ocidental
100.000 a.C.
20.000 a.C.
Novas formas de
instrumentos de pedra

Início do cultivo do
milho no Novo Mundo Início do cultivo de cereais
no Oriente próximo

4.000 a.C.
Ascensão da
Civilização Grega

Primeiras cidades
na Mesopotâmia 2.000 a.C.

Nascimento de Cristo

Impérios Asteca e
Inca, civilização Maia

Fonte: Adaptada de Pelto, 1984, p. 73

Diante disso, o papel do antropólogo é trazer à luz diversos aspec-


tos das diferentes culturas, de acordo com as premissas do método
científico, registrando seus resultados de maneira sistemática. Quando
se compreende que nada é “natural” ao se falar do processo evolutivo
da humanidade, se constata o quanto é importante adotar uma atitude

Antropologia e cultura 17
Filme
de “estranhamento” diante daquilo que possa ser familiar, isto é, uma
postura de questionamento diante do que se observa e que muitas ve-
zes não desperta a atenção. De todo modo, a escolha do método e das
técnicas de pesquisa antropológica é importante para que seja possível
dar conta das diversas nuances das práticas culturais.

O dualismo natureza e cultura, que tantos debates – e embates –


gerou ao longo da história da antropologia, perde força quando se en-
tende que nada no comportamento humano é natural. Isso porque,
segundo Cuche (1999, p. 10-11),
O filme Moana: um mar de
a natureza, no homem, é inteiramente interpretada pela cultu-
aventuras conta a história
de Moana Waialiki, uma ra. As diferenças que poderiam parecer mais ligadas a proprie-
jovem, filha do chefe de dades biológicas particulares como, por exemplo, a diferença
uma tribo, que, ao buscar
de sexo, não podem ser jamais observadas “em estado bruto”
saber sobre seus ances-
trais, inicia uma viagem (natural) pois, por assim dizer, a cultura se apropria delas
pela Polinésia, durante “imediatamente”; a divisão sexual dos papeis e das tarefas nas
a qual muitos aconteci- sociedades resulta fundamentalmente da cultura e por isso
mentos irão colocar em
destaque a diversidade
varia de uma sociedade para outra.
cultural.
O exemplo trazido por Cuche apresenta um dos temas mais discuti-
Diretor: Ron Clements e John Musker.
EUA: Disney, Buena Vista, 2016. dos na contemporaneidade: a questão de gênero. Mas o propósito agora
não é focar esse assunto, e sim chamar a atenção para o fato de que as
diferenças entre indivíduos e grupos não podem ser atribuídas somente
a aspectos naturais, biológicos ou fisiológicos. Mesmo as funções e ações
mais básicas são definidas pela cultura, que orienta o comportamento
humano. E, ao investigar como opera a cultura, o objetivo da antropolo-
gia é esclarecer aspectos relevantes da vida humana, de forma a contri-
buir para a criação de relações mais harmoniosas e respeitosas.

1.3 Diversidade cultural


Vídeo A antropologia cultural, ao estudar o ser humano como um ser cul-
tural, produtor de cultura, toma as diversas culturas humanas em suas
origens, formas de desenvolvimento, no tempo e no espaço, procuran-
do mostrar suas semelhanças e diferenças. Assim, a diversidade é um
fato e define a caminhada dessa ciência na medida em que foca sua
análise no comportamento humano como algo adquirido no convívio
social, por meio de aprendizado e trocas culturais.

A humanidade é heterogênea, e isso tem se mostrado um pro-


blema para muitas pessoas desde que normas, regras e instituições

18 Antropologia Cultural
sociais foram criadas e a vida em sociedade passou a depender da ca-
pacidade humana de conviver. Ao longo de toda a história, é possível
encontrar exemplos de como a vida entre diferentes povos pode ser,
e efetivamente é, complicada. Especialmente ao se incluir na análise a
questão fundamental que aqui já foi introduzida anteriormente, que é
a compreensão de que cultura é também um mecanismo de controle.

Ao se pensar em controle social estamos falando de relações de po-


der, que implicam sobretudo a dominação de parte de uma sociedade
por outra. Sendo a antropologia uma ciência relativamente nova, ela se
desenvolve simultaneamente com o avanço do capitalismo e das rela-
ções de poder por conta dele estabelecidas. Nesse sentido, as diferen-
ças entre classes sociais tornam-se fator decisivo para se compreender
a sociedade, sobretudo a ocidental, berço da antropologia.

A luta de classes se expressa na constatação de que há uma clas-


se dominante e uma classe dominada, e, por conta disso, há também
diferentes culturas. A cultura dominante é aquela produzida pelo seg-
mento da sociedade que se impõe ao restante pelo poder econômico,
político ou por questões relacionadas a outros aspectos. Dentre esses,
há as diferenças entre indivíduos, que passam pela cor de pele, tipo de
cabelo, forma de falar, estilo de vida, orientação sexual, gênero, reli-
gião, enfim, traços culturais que podem definir a posição do indivíduo
na escala social. Por outro lado, essa posição pode implicar em discri-
minação, exclusão e preconceito. Sobre isso, observe a Figura 2.

Figura 2
A unidade na diversidade

Franzi/Shutterstock

Antropologia e cultura 19
O que se pode observar nessa figura? É possível dizer, por exemplo,
quem é mais rico ou mais importante apenas olhando para os rostos
das pessoas? Quais são as características que as diferenciam? É pos-
sível dizer exatamente o que cada uma dessas pessoas é ou indicar a
priori como elas pensam ou se comportam? Então, o que se pode con-
cluir? A humanidade é um único grupo, mas essa unicidade não exclui
as diferenças. Temos diferentes características: tipo e cor de cabelo,
tom de pele, sexo, idade, entretanto, nenhum desses traços nos define
totalmente. Há muito tempo a antropologia vem tentando mostrar o
quanto a diversidade enriquece a convivência humana, afirmando que
conhecer as diferentes culturas é o que permite ampliar o diálogo.

Segundo Geertz (2017), a cultura é um elemento essencial na defi-


nição de natureza humana e uma força dominante na história, por isso
é imprescindível que a antropologia atue em uma perspectiva de aná-
1 lise interpretativa. Somente o que Geertz (2017) chama de descrição
Descrição densa é uma forma densa
1
permite a compreensão da historicidade das diversas nuances
de etnografia na qual se busca
uma interpretação e elaboração
que marcam a natureza humana e a vida em sociedade.
de uma leitura da cultura sobre o Pensando na diversidade como um traço definidor da espécie hu-
significado que os nativos dessa
cultura atribuem às suas práticas. mana, e que a “cultura confere identidade a uma pessoa” (KUPER, 2002,
O antropólogo faz isso realizando p. 305), a diversidade cultural se torna uma das temáticas mais relevan-
a descrição etnográfica e, no
tes para a antropologia, sem a qual a disciplina se esvazia por comple-
trabalho de campo, registrando
o que viu. to. Mas como tratar essa questão?

Alguns dos pioneiros da antropologia cultural, como Franz Boas,


ao teceram críticas a certos determinismos (climato-geográfico, racial,
econômico ou psicológico), reforçaram o papel da cultura como ele-
mento central para se compreender e discutir a diversidade humana
em seus diferentes aspectos. Considerar a relatividade das práticas
culturais e valorizar a diversidade têm sido, desde então, maneiras de
questionar e combater as várias formas de discriminação, os precon-
ceitos e o racismo.

A antropologia cultural tem exercido um papel primordial nesse


sentido e, sobretudo, a ideia de que o relativismo é, para Boas (CAS-
TRO, 2004), um recurso metodológico. Significa dizer que qualquer indi-
víduo verá o mundo por meio da lente da cultura na qual ele se insere e
por qual foi formado. Essa constatação inicial já define a maneira como
o trabalho de campo na antropologia se realiza. Castro (2004, p. 18)
comenta que “o antropólogo deveria procurar sempre relativizar suas

20 Antropologia Cultural
próprias noções, fruto da posição contingente da civilização ocidental
e de seus valores”. Ao tratar da cultura no plural, Boas acolhe a diversi-
dade e tenta mostrar o valor de todas as culturas, percepção que muda
a antropologia e abre caminho para pensadores como Geertz, que re-
força o papel da diversidade cultural na constituição da humanidade.

Tendo como objetivo “estudar a obra humana” (MELLO, 2015, p. 37),


isto é, a cultura – que abarca política, religião, arte, tecnologia, práti-
cas, hábitos, crenças e tudo aquilo que o ser humano é capaz de criar,
mudar, transformar e que se amplia ao longo de toda a existência
humana –, a antropologia muda o olhar sobre a diversidade. Mello
(2015, p. 43) afirma que
o mundo cultural do homem tem uma abrangência muito gran-
de, envolvendo também o mundo natural. [...] a natureza co-
nhecida pelo homem não é aquela natureza pura e selvagem
[porque] onde o homem põe os pés, deixa de existir a natureza
virgem. Isto em virtude de o homem, ao tomar conhecimento de
qualquer coisa, o fazer dentro de um sistema ou estrutura de
pensamento, que, em última análise, é sua cultura.

Ao se deparar com a diversidade cultural – que, afinal, é um traço


da humanidade –, é importante ter um olhar atento para que nenhum
juízo de valor marque a investigação e, sobretudo, a análise antropo-
lógica, pois, segundo Oliveira (1998, p. 16), é trabalho do antropólogo
“olhar, ouvir, escrever”.

O contato, às vezes, bastante próximo, entre o pesquisador e seu


objeto de estudo é um traço da pesquisa antropológica, característica
que por muito tempo foi vista como fragilidade, mas que se constitui
na riqueza dessa ciência. Roberto Cardoso de Oliveira (1998, p. 34),
pensando na observação participante e no método de atuação do an-
tropólogo, chama a atenção para o fato de que
os atos de olhar e de ouvir são, a rigor, funções de um gênero de
observação muito peculiar – isto é, peculiar à antropologia –, por
meio do qual o pesquisador busca interpretar – ou compreender
– a sociedade e a cultura do outro “de dentro”, em sua verdadeira
interioridade. Ao tentar penetrar em formas de vida que lhe são
estranhas, a vivência que delas passa a ter cumpre uma função
estratégica no ato de elaboração do texto, uma vez que essa vi-
vência – só assegurada pela observação participante “estando lá”
– passa a ser evocada durante toda a interpretação do material
etnográfico no processo de sua inscrição no discurso da disciplina.

Antropologia e cultura 21
O “estar lá” é essencial para que esse olhar em relação ao diferen-
te se amplie, de modo a considerar que diferenças e semelhanças se
complementam em direção a uma unidade, a humanidade. Descobrir
como costumes e comportamentos surgem no seio de uma cultura é
saber mais sobre o indivíduo e o grupo no qual ele se insere, e como se
relaciona com outras culturas.

Hoje, a teoria antropológica é marcada pela premissa básica de


que não se pode apenas comparar culturas diferentes, é preciso com-
preender os processos de desenvolvimento social, histórico, político e
econômico de cada uma delas. E com isso, a antropologia alcança seus
objetivos, contribuindo para ampliar significativamente o conhecimento
do ser humano sobre si mesmo, sua cultura e diversidade cultural, vista
como um valor em si mesma.

CONSIDERAÇÕES
FINAIS
A cultura, mesmo considerando as várias acepções do termo, pode
ser definida como o conjunto de ideias, hábitos, crenças, valores e pa-
drões de conduta e de comportamento produzidos pelo ser humano em
seu processo evolutivo. Seja quando se fala em cultura material (bens
materiais, concretos e resultantes da invenção humana) ou em cultura
imaterial (aquela que não tem materialidade, como crenças, normas, ati-
tudes etc.), está se falando em algo que define o processo de humaniza-
ção e de construção de civilização.
Por muito tempo se discutiu na antropologia cultural o peso de deter-
minantes biológicos ou condicionantes espirituais na construção da ideia
de cultura. Hoje, sabe-se que todo e qualquer idealismo tem um contra-
ponto importante na natureza, que exerce, e sempre exercerá, importan-
te papel na sua construção.
A cultura na qual cada ser humano se insere, de alguma forma,
condiciona sua visão de mundo, seus sentimentos, seus ideias e seus
comportamentos. Tem sempre uma lógica própria, sendo absolutamen-
te coerente para aqueles que dela compartilham. E isso é importante
quando se pensa a diversidade cultural, uma vez que, se cada cultura faz
sentido em seus próprios termos, atitudes de julgamento em relação ao
que seja diferente não são plausíveis.
Costumes e crenças são compreensíveis quando analisados em pers-
pectiva de inter-relações sociais, políticas e econômicas. Isso significa

22 Antropologia Cultural
dizer que as diferenças em relação aos padrões culturais são definidas
social e historicamente, e não por características herdadas biologicamen-
te ou definidas pela natureza.
Ao desnaturalizar os comportamentos humanos, a antropologia cultu-
ral eleva a cultura à categoria de conceito estruturado e estruturante de
seu estudo, uma vez que, ao mesmo tempo que tem uma conformação,
define e orienta padrões de pensamento e comportamento do indivíduo
ao longo de toda a sua vida.
A cultura é simbólica (constituída por símbolos) e social (sociedade e
cultura são definidas independentemente dos indivíduos, e são anteriores
a eles), é dinâmica (acompanha a mudança social) e, ainda assim, estável
(uma vez que, sendo uma forma de aprendizado, tem seu próprio tempo
e ritmo), é seletiva (escolhas são realizadas a partir do alicerce cultural de
uma sociedade, o qual pode ser reformulado, com abandonos, incorpo-
rações, redefinições), é universal e regional e, por fim, é determinante e
determinada.

ATIVIDADES
1. Em algum momento da sua vida você já deve ter ouvido essa
pergunta: “Você tem cultura?”. Observe as duas imagens abaixo e
faça o que se pede.

New Africa/Shuttersock

Cienpies Design/Shutterstock

Antropologia e cultura 23
a) Em qual das duas imagens podemos encontrar a representação da
ideia de cultura definida pela antropologia?
b) Diante do que você respondeu no item anterior, “você tem
cultura?”. Justifique sua resposta.

2. A cultura, assim como a sociedade, é anterior ao indivíduo, o que


significa dizer que antes mesmo de nascermos ambas já existiam.
O processo de socialização acontece ao longo de toda a nossa vida,
por meio do qual vamos internalizando elementos da nossa cultura.
Entretanto, isso não impede que expressões como aja naturalmente!
façam parte das várias orientações que recebemos, sobretudo quando
somos crianças, momento da vida em que várias ordens como essa
nos são dadas.
Como você vê essa expressão? Faz sentido para você? Por quê?

3. Cultura não é um processo individual, mas sim coletivo, sendo o resultado


do confronto das experiências individuais com as experiências coletivas.
Precisamos do outro para saber quem somos.
Sendo assim, explique por que crianças nascidas em diferentes lugares
do mundo serão diferentes. Por que uma criança nascida na China
será diferente de outra nascida na França?

REFERÊNCIAS
CASTRO, C. Franz Boas: antropologia cultural. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
CUCHE, D. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: EDUSC, 1999.
GEERTZ, C. A interpretação das culturas. São Paulo: LTC, 2017.
KLUCKHOHN, C. Antropologia: Um espelho para o homem. São Paulo: Itatiaia, 1972.
KUPER, A. Cultura: a visão dos antropólogos. Bauru: EDUSC, 2002.
MARCONI, M. A.; PRESOTTO, Z. M. N. Antropologia: Uma introdução. 7. ed. São Paulo:
Atlas, 2011.
MELLO, L. G. Antropologia cultural: Iniciação, teoria e temas. 20. ed. Petrópolis: Vozes, 2015.
OLIVEIRA, R. C. O trabalho do antropólogo. São Paulo: UNESP, 1998.
PELTO, P. J. Iniciação ao estudo da antropologia. 7. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1984.
WHITE, L. A. O conceito de cultura. São Paulo: Contraponto, 2009.

24 Antropologia Cultural
2
O processo civilizatório
e a cultura
Ao longo do tempo, o ser humano construiu sua trajetó-
ria com muito esforço. Mas por que se fala em construção?
Porque a humanidade é a única espécie que pensa sobre a sua
existência e, ao fazer isso, modifica o meio no qual se insere,
os outros indivíduos e a si mesma. Desse modo, aos poucos
foi produzindo cultura e mudando a forma como os indivíduos
se relacionavam, ao mesmo tempo que ampliava o repertório
de normas, regras, costumes, comportamentos e atitudes que
constituem o que se chama de processo civilizatório.
O objetivo deste capítulo é investigar o processo de civili-
zação da humanidade, analisando como as práticas culturais
podem ser utilizadas como fator de distinção social e cons-
trução de identidades individuais e coletivas. Isso é importan-
te para que se possa compreender que a cultura é dinâmica,
transforma-se e é transformadora. Tudo impactou a maneira
como civilizações foram sendo constituídas: pessoas, fatos his-
tóricos, conjunturas sociais, políticas e econômicas, mudanças
no próprio planeta.
Os historiadores têm por premissa afirmar que não se pro-
jeta o futuro sem conhecer o passado. A antropologia também
contribui para esse processo sempre que coloca luz sobre a
produção cultural da humanidade.

O processo civilizatório e a cultura 25


2.1 Norbert Elias e o processo civilizador
Vídeo Quando se estuda os primórdios da humanidade, que ocorreram na
Pré-História, é possível perceber que não foi apenas o instinto de sobre-
vivência que impulsionou o processo evolutivo. Sempre existiu no ser
humano um desejo por saber mais sobre si mesmo, inclusive no que se
refere às formas de convivência com o outro. Civilizações antigas já tinham
suas regras e normas de conduta, além de uma organização social pró-
pria. É o caso de Egito e Mesopotâmia, entre outras que, cada uma a seu
modo, deixaram um legado para a humanidade.

Segundo Mello (2015, p. 152), “o homem tornou-se tão perfeita criatura


que passou a ser também um criador notável, recriando toda a natureza
e a si próprio”. Dessa forma, com sua capacidade de criar, o ser humano
vem buscando soluções para suas necessidades, seus dilemas e questio-
namentos, em um processo evolutivo que tem como eixo central a ideia
de cultura. Ainda segundo o mesmo autor, é apenas estudando a cultura
que se compreende a evolução humana. Obviamente que nem todas as
suas criações ou ações são sempre positivas, mas certamente todas são
uma produção cultural.

Nessa linha de se pensar o processo de desenvolvimento humano,


saindo da barbárie e chegando à civilização, duas questões se colocam: o
que é civilização e qual o papel da cultura? Para ampliar a discussão, um
nome deve ser lembrado: Norbert Elias, pensador alemão que transitou
entre a filosofia e a sociologia e que, no início do século XX, foi o responsá-
vel por pensar sobre a relação entre indivíduo e sociedade e sobre o pro-
cesso civilizador. Sendo judeu, precisou, em 1933, sair da Alemanha para
fugir do nazismo, o que marcou fortemente a sua obra. Sua experiência
de vida o torna um homem de seu tempo, e sua produção intelectual re-
flete essa condição. Suas obras são marcadas por uma preocupação com
1 os costumes e com as regras sociais no decorrer da história, em especial
Outsider é um indivíduo que quando se pensa a sociedade de corte e o processo civilizador.
não se enquadra no padrão
estabelecido na sociedade em A violência, a discriminação e a exclusão social também são temas
que vive, ficando à margem das recorrentes em seus trabalhos. Em Os estabelecidos e os outsiders, que
convenções sociais, o que acaba,
segundo Elias e Scotson (2000), tem a colaboração de John Scotson, realiza uma pesquisa de campo em
1
determinando suas crenças, seus uma cidade da Inglaterra, sendo que o conceito de outsider é uma das
valores e seu comportamento,
categorias de análise fundamental. De certa forma, o próprio Elias era
definindo um estilo de vida
próprio. um outsider, pois, por diversas razões, não se enquadrava nas socieda-
des nas quais viveu.

26 Antropologia Cultural
Foi com o livro O processo civilizador, o qual se tornou conhecido em
1990, ano de seu falecimento, que Elias foi reconhecido como um dos
maiores pensadores no século passado. Escrito em dois volumes, nessa
obra, por meio da observação das mudanças das regras sociais e da forma
como os indivíduos as percebiam e, a partir disso, modificavam seus com-
portamentos e sentimentos, Elias constrói uma narrativa da história dos
costumes. Utilizando como fontes os manuais de etiqueta e boas maneiras
elaborados desde o século XIII, e discutindo como a progressiva contenção
dos impulsos foi determinando formas e padrões de comportamento so-
cial, acabou dando bastante destaque à sociedade de corte francesa abso-
lutista dos Luíses (reinados de Luís XIV, Luís XV e o início do de Luís XVI).

Por que, aos poucos, comportamentos e sentimentos foram se alte-


rando a partir do estabelecimento de novas regras sociais? Por que elas se
fizeram necessárias? Qual o papel desse movimento no processo civiliza-
tório? Essas são questões que nortearam o trabalho de Elias. Para ele, “a
civilização que estamos acostumados a considerar como uma posse que
aparentemente nos chega pronta e acabada, sem que perguntemos como
viemos a possuí-la, é um processo ou parte de um processo em que nós
estamos envolvidos” (ELIAS, 1994, p. 73).

Especialmente no primeiro volume de O processo civilizador, Elias de-


monstra como, com a contenção das pulsões, isto é, dos impulsos ligados aos
comportamentos mais próximos à natureza humana, os hábitos foram sen-
do modificados e definidos por ela. Isso significa dizer que, à medida que os
indivíduos apreendem a cultura do meio no qual se inserem, eles vão assimi- Figura 1
lando também valores simbólicos que se convertem em relações de poder. Modo de comer
com talheres
O não dominar ou não compartilhar desses significados pode implicar ex-
Fusionstudio/Shutterstock
clusão ou discriminação social.

Observe a Figura 1 e reflita:


o que há de familiar nessa foto?

O processo civilizatório e a cultura 27


O que chama a sua atenção? Você
já refletiu sobre a forma como co-
memos? Há diferenças entre as
maneiras de comer no mundo
todo. Agora, observe a Figura 2.

Veja que são duas formas di-


ferentes de comer. E qual a dife-
rença mais clara observada nessas
imagens? O fato de que na primeira
estão sendo utilizados talheres, en-
quanto na segunda estão sendo uti-
lizadas apenas as mãos. Diante disso, é
possível dizer que uma forma de comer é me-
Emily-Jane Proudfoot/Shutterstock lhor ou mais correta do que a outra? Não. De maneira
alguma. Mas, de todo modo, ao longo da história, os seres huma-
nos criaram normas, regras e costumes, e, ao lado do surgimento
Figura 2 e desenvolvimento das cidades e das instituições, surgiram as civi-
Modo de comer
com as mãos lizações. Entre esses costumes, o que diz respeito ao ato de comer
sempre foi um aspecto marcante desse processo. A mesa, ao longo
do tempo, tornou-se um ponto relevante para se observar como a
contenção dos impulsos foi decisiva para a interação humana.

Da barbárie à civilização, os costumes mudaram sempre no sentido


de minimizar conflitos que são inerentes à convivência humana. Afo-
ra as diferenças dos hábitos alimentares e dos alimentos selecionados
como sendo comestíveis, há vários rituais em torno da mesa, determi-
nando quem deverão ser os comensais, o que será servido, como será
servido, desde a arrumação da mesa até o serviço propriamente dito.
Assim, o que se observa é que o ato de comer, de certa forma, reflete o
sistema social no qual se insere.

Investigando como se organiza não só a mesa, mas também cada um


dos espaços domésticos, Elias mostra que as mudanças nos costumes não
ocorreram aleatoriamente, mas seguiram na direção de se dar cada vez
mais atenção à maneira como os seres humanos se comportavam, inclusi-
ve em relação a aspectos naturais, tais como arrotar em público e ocultar
dejetos humanos, evidenciando um crescente sentimento de vergonha e
repugnância, simultaneamente a uma maior tendência de esconder, nos
bastidores da vida social, aquilo que as causa.

28 Antropologia Cultural
Analisando também o processo de formação do Estado, Elias afirma
que o autocontrole, a contenção das pulsões, assume papel cada vez
mais importante e determinante para o processo civilizador. Isso ocorre
especialmente depois que se passa a ter um poder centralizado e as pes-
soas são forçadas a conviver, preferencialmente de maneira harmonio-
sa, mais afetuosa e, espera-se, menos violenta (ELIAS; SCOTSON, 2000).

O impacto mais marcante desse processo é o fato de que, aos pou- Curiosidade

National Park Service/Wikimedia Commons


cos, a sociedade ocidental foi construindo uma identidade e passando
a ser o parâmetro de civilidade. Em contrapartida, as sociedades orien-
tais, nos séculos XVII e XVIII, auge das sociedades de corte europeias,
ainda estavam estruturadas de modo tradicional e bastante fechadas
para o mundo externo, o que as colocava em uma posição diferencia-
da. O resultado disso foi certa hegemonia, ainda existente, do Ocidente O grupo terrorista Al Qaeda,
fundado por Osama bin Laden,
sobre o mundo, o que afeta fortemente a geopolítica mundial, gerando em 11 de setembro de 2001,
uma polarização que contrapõe Ocidente e Oriente, e, sobretudo, cris- sequestrou quatro aviões e lançou
tãos e muçulmanos. Houve, ainda, o atentado ao World Trade Center, dois deles contra as duas torres
que compunham o World Trade
em Nova Iorque, em 2001, que teve como responsáveis muçulmanos Center, em Nova Iorque, enquanto
ligados ao grupo terrorista Al Qaeda. Isso aumentou uma hostilidade outro atingiu parte do prédio do
contra os seguidores do Islamismo. Pentágono, sede do Departamento
de Defesa dos Estados Unidos. A
Para Elias e Scotson (2000), o processo civilizador pode ser explicado quarta aeronave, voando sobre a
Pensilvânia, supostamente rumo
pelas mudanças que marcaram a sociedade ocidental, especialmente
à Casa Branca (sede o governo
pelo seu desenvolvimento científico e tecnológico e pelos seus costu- americano), não atingiu o alvo e
mes, mas sobretudo pelo fato de ter promovido o compartilhamento caiu. Os atentados deixaram um
saldo de 2.977 mortos e cerca de
do conhecimento produzido a partir do Renascimento e depois do Ilu- seis mil feridos, mudando para
minismo. E, ao contrário do que se pode pensar inicialmente, isso não sempre a geopolítica mundial e
se trata de certo eurocentrismo, uma vez que “a ascensão da civilização acirrando a hostilidade contra os
muçulmanos e o Oriente.
ocidental é o fenômeno histórico mais importante da segunda metade
do segundo milênio depois de Cristo. É uma afirmação do óbvio. O de-
safio é explicar como isso aconteceu” (FERGUSON, 2012, p. 32).

Isso se deve a vários fatores: imperialismo, evolução técnico-


-científica, descentralização política, produção e disseminação do co-
nhecimento, humanismo e, claro, a ética protestante praticada por
muitos grupos, segundo a qual o trabalho seria o objetivo maior da
existência, sendo que dele poderia, e até deveria, resultar a riqueza ma-
terial. Isso mudou completamente a lógica que orientava as sociedades.

Assim, a crescente racionalização do Ocidente e o surgimento das


instituições são decisivos para o processo civilizador. E vale lembrar que
as instituições são elas próprias produtos culturais, uma vez que criam

O processo civilizatório e a cultura 29


normas, regras e costumes que acabam por orientar os indivíduos a te-
rem bom comportamento. Quando isso ocorre, significa que os padrões
culturais estão sendo seguidos e que a sociedade está no “rumo certo”.

Mas não se pode esquecer que, efetivamente, há diferenças cul-


turais importantes entre Ocidente e Oriente, em especial no que diz
respeito, segundo Ferguson (2012, p. 36), aos “seis novos sistemas de
instituições identificáveis e os comportamentos associados a eles: [...] a
competição, a ciência, os direitos de propriedade, a medicina, a socie-
dade de consumo e a ética do trabalho”. Em cada um desses quesitos,
as diferenças entre Oriente e Ocidente são marcantes e determinam o
ritmo e as características de seu processo civilizador.

De acordo com Brandão (2003), para Elias, o processo civilizador acon-


teceria em duas esferas interdependentes: a esfera da psiquê individual,
que ele denomina de psicogênese, e a esfera social, que ele denomina de
sociogênese. O próprio Elias (1994, p. 16) justifica sua visão afirmando que
“grande número de estudos contemporâneos sugere convincentemente
que a estrutura do comportamento civilizado está estreitamente inter-
-relacionada com a organização das sociedades ocidentais sob a forma
de Estados”. Ele continua dizendo que foi o fato de ter havido uma maior
aproximação entre as pessoas, acima de tudo em razão do avanço das
cidades e da urbanização e da diminuição da distância entre os indivíduos,
que estimulou (e até exigiu) o controle das paixões e da conduta.

Pense em seu dia a dia e em quantos momentos a sua vontade seria


a de agir de maneira diferente em relação a uma situação de conflito,
confronto ou, até mesmo, de provocação. Quantas vezes já teve vontade
até de agredir seu interlocutor, mas não o fez? Por que não agiu como
seu instinto primário determinava? Analise as imagens abaixo.

A Figura 3 ilustra uma situação muito comum na infância, momento


no qual ainda não se tem o domínio da maioria das regras de convivên-
Figura 3
Brigas quando criança Anna Kr
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Figura 4
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Brigas quando
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ter adulto
/Shut
e
d anc
Just

30 Antropologia Cultural
cia nem contenção dos impulsos. É na família que inicialmente aconte-
ce o processo de socialização, por meio do qual se aprende a viver em
sociedade. Ao longo de toda a vida acontece esse processo de aprendi-
zagem das regras e dos costumes dos grupos dos quais cada indivíduo
participa. A educação exerce o importante papel de ensinar às crianças
como devem se comportar. Já a Figura 4 desperta mais estranheza, pois
é consenso que a violência física não pode ser o recurso para que adul-
tos, sobretudo no ambiente de trabalho, resolvam seus problemas.

Em situações diversas do cotidiano, quanto maior a compreensão e


aceitação das normas e regras de conduta, maior é o repúdio quando
não são seguidas. E é importante lembrar que, durante o processo de
interação social, os indivíduos podem vir a ser estigmatizados, rotula-
dos e até discriminados caso seu comportamento esteja em dissonân-
cia com o padrão estabelecido para a convivência.

Outro ponto importante para se pensar o processo civilizador é re-


cuperar a teoria da configuração de Norbert Elias (ELIAS, 1994), na qual,
a partir do conceito de figuração, o autor explica como os seres hu-
manos se tornaram seres interdependentes e que o significado disso
contribui para o entendimento da evolução do processo civilizador.

2.2 A concepção de humano e a cultura


Vídeo Antes que a teoria da configuração seja retomada, é importante,
até para se entender melhor sua relevância, olhar para o conceito de
civilização, termo que surge na França, em 1752.
Uma cidade não faz uma civilização. Uma civilização é a maior
unidade de organização humana, maior até que um império, em-
bora mais amorfa. As civilizações são, em parte, uma resposta
prática das populações humanas a seu meio – os desafios de se
alimentar, se hidratar, se abrigar e se defender –, mas também
são de caráter cultural, muitas vezes, ainda que nem sempre, re-
ligiosos, muitas vezes, ainda que nem sempre, unidas por uma
língua. Elas são poucas, mas não raras. [...] algo em torno de duas
dezenas nos últimos dez milênios. (FERGUSON, 2012, p. 26-27)

Observe, como indicado anteriormente, o papel que exercem as ci-


dades para a construção de civilizações, que se formam a partir de vá-
rios elementos, sobretudo a partir de instituições. Isso é o que se pode
perceber quando se olha para algumas daquelas que são consideradas

O processo civilizatório e a cultura 31


as maiores e mais importantes civilizações que já existiram, como é o
caso dessas que aparecem nas imagens.

Figura 5 Figura 6 Figura 7


Império Bizantino Império Inca Civilização egípcia

ock
ock

sz Kurbiel/Shutterst

WitR/Shutterstock
iamond67/Shutterst

Luka
d
Dark

Algumas delas formaram grandes impérios, como o Bizantino, o


Inca e a grande Civilização Egípcia. Esses são apenas alguns exemplos
de grandes sociedades que, de alguma forma, ditaram normas, regras
e costumes que orientaram a vida e a convivência dos indivíduos que
delas participavam e, em grande parte, também daqueles com os quais
interagiram. É aqui que o “jogo social” se mostra, quando, inexoravel-
mente, a ideia de cultura se torna fundamental. Cada uma dessas civili-
zações construiu um arcabouço cultural que a identificava e, ao mesmo
tempo, a diferenciava de outras. Em alguns casos, houve o declínio de
uma em razão da hegemonia de outra, como foi o caso das civilizações
Figura 8
Civilização moderna grega e romana na Antiguidade.

Nbeaw/Shutterstock

32 Antropologia Cultural
E o que dizer do que se vê na Figura 8? É um tipo de civilização? O
que você acha? Uma cidade nesse modelo pode ser vista como mostra
de um tipo de civilização? A resposta é sim.

De todo modo, o processo civilizador cada vez mais distanciou o


ser humano de sua essência animal, isto é, progressivamente, as mais
básicas características dessa natureza animal foram se tornando incô-
modas e indesejáveis para aqueles que pretendiam ser vistos como
civilizados. As normas de bom comportamento foram moldando os in-
divíduos nesse processo de contenção dos impulsos e cada vez mais o
ser humano foi se afastando, ao menos nos momentos em que estava
em público, daquele animal que, nos primórdios da humanidade, vi-
via na barbárie. Quem já não viu, por exemplo, uma mãe chamando
a atenção de seu filho por não se comportar bem à mesa, ensinando
que não se pode falar de boca cheia ou limpar as mãos na toalha? Mas,
para isso, ela precisa repetir muitas vezes até que a criança internalize Glossário
as normas e adote o comportamento adequado esperado.
determinismo: princípio
Dessa forma, ao se distinguir de seus antepassados por meio de filosófico e científico que
pressupõe que tudo que
suas criações, o ser humano produziu cultura; assim, intensificou-se o ocorre na realidade, inclusive os
processo civilizatório, mudando a maneira de se relacionar com pares, processos de mudança e desen-
amigos ou inimigos. Isso porque a civilização produz modificações na volvimento social, obedecem
a leis universais imutáveis e
sociedade, além de mudar em função das ações humanas. Entretan- predeterminadas, próprias da
to, é preciso se atentar para o fato de que a civilização não pode ser natureza, independentemente
da história de cada sociedade e
considerada como sinônimo de aperfeiçoamento, nem pode servir para
da ação humana, consciente ou
classificar indivíduos ou grupos como melhores ou piores, perfeitos ou inconsciente (COSTA, 2016).
imperfeitos, evoluídos ou atrasados. Essa postura, muito estudada pela naturalismo: atrelado ao
antropologia, é o etnocentrismo, isto é, quando um indivíduo avalia a determinismo, prega que a
natureza se sobrepõe ao ser
cultura do outro usando parâmetros próprios da sua cultura. humano, isto é, que haveria uma
De todo modo, o ser humano produz cultura e se humaniza na supremacia do meio em relação
à autonomia dos indivíduos. A
medida em que torna sua vida menos dura em relação às necessida- partir dessa premissa, o caráter
des básicas e aos determinantes naturais do ambiente em que vive. e os comportamentos humanos
seriam, em parte, determinados
Mas é preciso ter muito claro, quando se discute o conceito de cultura,
pelo meio.
que os seres humanos são parte da natureza que modificam, trans- idealismo: corrente filosófica
formam e criam. Ao mesmo tempo, exatamente por ser um produto segundo a qual só existiria uma
da ação e da razão humanas, a cultura acaba por subjugar as ideias razão, o que implica na visão
de que a realidade se resumiria
reducionistas de determinismo orgânico, naturalismo e idealismo. ao que pode ser conhecido pela
O comportamento humano é muito mais complexo e exige uma refle- razão. Assim, a realidade e o
xão mais profunda sobre os condicionantes da vida em sociedade. As- conhecimento que se tem dela
seriam coisas diferentes.

O processo civilizatório e a cultura 33


sim, ao longo do tempo, a discussão em torno do conceito de cultura
impactou também a discussão sobre civilização.

Ao discutir a ideia de cultura, Terry Eagleton corrobora a aná-


lise de Raymond Williams, pensador que contribuiu muito para a
construção da teoria cultural contemporânea. Partindo da reflexão
sobre a etimologia da palavra cultura, Williams (apud EAGLETON,
2011, p. 19) afirma que “a palavra primeiro significa algo como ‘ci-
vilidade’; depois, no século XVIII, torna-se mais ou menos sinônima
de ‘civilização’, no sentido de um processo geral de progresso in-
telectual, espiritual e material [e] implica numa correlação dúbia
entre a conduta polida e comportamento ético”.

Nesse sentido, ocultar as funções biológicas e se distanciar do corpo


demonstram o dinamismo da cultura, as novas relações de poder e
uma nova configuração social resultante do surgimento e desenvolvi-
mento do Estado moderno, que impõe às relações interpessoais novas
normas de conduta.

Mas o que o torna o indivíduo efetivamente mais humano é a pos-


sibilidade de atribuir significado às suas produções e criações, cons-
truindo sistemas simbólicos. Ao mesmo tempo, torna-se sujeito de sua
existência e constrói sua identidade e de seu grupo, em um permanen-
te processo de reforço dos valores e costumes que se consolidaram
como válidos para sua existência. Isso significa dizer que,
antes de ser machado, o objeto é o seu símbolo, logo, a rela-
ção simbólica entre ele e o homem, entre o homem e os seus
símbolos. É isto que torna o homem um “ser histórico”, um ser
que não está na história, mas que a constrói como produto
de um trabalho e dos significados que atribui, ao fazê-lo: ao
mundo, à sua ação e a si mesmo, vistos no espelho de sua prá-
tica. Um ser tornado histórico também no sentido de que não
existe como uma espécie de essência dada ao mundo, mas
como alguém a quem a história cria ao ser, ela própria, cons-
truída por ele. [...] Ser o sujeito da história e ser o agente criador
da cultura não são adjetivos qualificadores do homem. São o
seu substantivo. Mas não são igualmente a sua essência e, sim,
um momento do seu próprio processo dialético de humaniza-
ção. (BRANDÃO, 1986, p. 22-24, grifos do original)

Ser sujeito da sua própria história e ser capaz de produzir cultu-


ra é o que define sua humanidade. Esse processo de humanização
se torna um caminho sem volta, exigindo dos indivíduos um do-

34 Antropologia Cultural
mínio dos códigos de conduta e um alinhamento aos padrões de
comportamento considerados adequados e imprescindíveis para
serem chamados “seres civilizados”.

Assim, na segunda metade do século XVIII, na França, consoli- Livro


da-se a noção de civilidade, opondo barbárie a refinamento e boas
maneiras, assim como regras de etiqueta à rudeza dos comporta-
mentos. Originam-se, então, vários tipos de cerimoniais e rituais
que envolviam todas as instâncias da vida em sociedade, como
vestuário, alimentação, linguagem, distribuição e organização dos
espaços da casa, formas de tratamento etc.

E quanto mais esses valores se disseminam, maior é a cobrança


para que os indivíduos sigam esses padrões e costumes, o que len-
tamente dá origem a novos estilos de vida em uma sociedade dita
civilizada. Nessa sociedade, o controle das emoções é um dos ele-
O autor do livro Sapiens:
mentos mais marcantes, que aumenta o gosto pela cortesia, pelos uma breve história da
humanidade se propõe
bons modos e pela etiqueta. As convenções sociais passam a definir
a questionar como o
quem é quem na configuração social, como um jogo que ninguém ser humano conseguiu
subjugar outras espécies,
quer perder.
bem como a analisar as
É nesse ponto que a teoria da configuração de Norbert Elias contri- capacidades cognitivas e
criativas dos humanos,
bui para a compreensão do processo civilizador, em um movimento de que são capazes de
transformação do comportamento individual para um comportamento realizar grandes feitos em
prol da humanidade, mas,
social mais amplo, por meio da utilização da noção de “figuração” como ao mesmo, são protago-
categoria de análise. Isso diz respeito às redes formadas por seres hu- nistas dos mais terríveis
horrores.
manos interdependentes, que podem mudar conforme a situação e a
HAHARI, Y. N. 1. ed. Porto Alegre:
posição do indivíduo na escala social. L&PM, 2015.

Com sua teoria das figurações, Norbert Elias, segundo Neiburg


(1999, p. 14), formula a ideia dos modelos “como modelos de jogo e
formas de jogo”, além de retomar a discussão em torno da relação en-
tre indivíduo e sociedade, dialogando com a antropologia na medida
em que analisa as dimensões simbólicas das sociedades ocidentais em
uma abordagem interdisciplinar.

O conceito de figuração fundamenta a ideia de interdependência


que existe entre os indivíduos, o que significa dizer que a vida de todos
se desenrola de acordo com as relações que estabelecem uns com os
outros. Assim, na sociedade como um todo, as figurações mudam e
têm um dinamismo que gera mudanças mais ou menos lentas, mais ou
menos impactantes, mais ou menos efêmeras.

O processo civilizatório e a cultura 35


São exemplos de figuração instituições como família, escola e igreja,
nas quais grupos de pessoas são interdependentes e só podem ser ex-
plicados se forem analisados em sua rede, e não por meio da observa-
ção dos indivíduos de modo isolado. De acordo com Elias (2015, p. 79),
as configurações de seres humanos interdependentes não se
pode explicar se estudarmos os seres humanos isoladamente.
Em muitos casos é aconselhável um procedimento contrário – só
podemos compreender muitos aspectos do comportamento ou
das ações das pessoas individuais se começarmos pelo estudo
do tipo de sua interdependência, da estrutura das suas socie-
dades, em resumo, das configurações que formam uns com os
outros.

Outro exemplo de figuração comum nas sociedades são os jogos,


que se estruturam com base nas relações de interdependência entre
seus participantes, ao lado da compreensão de que haverá regras e
normas que deverão ser conhecidas e obedecidas para que a competi-
ção aconteça. O futebol seria um modelo para explicitar como relações
de interdependência se configuram, e como se enredam os fins e as
ações dos indivíduos em um jogo cujas regras devem ser seguidas. Ao
longo da competição, poderá haver momentos de tensão, confronto,
cooperação, estratégia, alegria e tristeza, em um espetáculo durante o
qual cada equipe deverá se comportar como um time, e não somente
como um grupo.

Além disso, haverá uma relação de interdependência entre os joga-


dores e a torcida, que poderá ser mais ou menos amistosa. Em maior
ou menor grau, durante uma partida de futebol, explicita-se uma re-
lação de poder, o que, mais uma vez, diz respeito à ideia de figura-
ção. Cada indivíduo tem ciência de que haverá, durante o jogo, uma
interdependência funcional entre os envolvidos, porque a força do jogo
de um jogador varia de acordo com o seu adversário.

E é preciso se lembrar que durante o jogo a questão do controle


dos instintos também se torna essencial, uma vez que a ausência
desse controle levaria os homens a agirem somente de acordo com
sua vontade, a qual seria arbitrária, resultando em um desequilí-
brio nas relações de poder. O poder da sociedade, da comunidade
ou do grupo (dado pelas regras e normas de conduta) devem se
sobrepor aos impulsos dos indivíduos. Em última instância, isso é
o que define civilização.

36 Antropologia Cultural
2.3 Práticas culturais e as formas
Vídeo de distinção social
Antes do surgimento de uma classe social intermediária naquela rí-
gida estrutura social, que até o século XVII havia marcado as sociedades
ocidentais, cada indivíduo sabia claramente qual era seu lugar na socie-
dade. Caso alguém resolvesse se insurgir contra esse estado de coisas,
rapidamente era “lembrado” de que não poderia romper aquele sistema
com facilidade. Havia, nesse momento, diversos fatores de distinção so-
cial, os quais são marcadores de posição social que regem a lógica da
convivência social e decorrem da estrutura da sociedade. Isso porque
Os comportamentos que são menos discutíveis e discutidos de
uma sociedade, como os cuidados corporais, as maneiras de
vestir-se, a organização do trabalho e o calendário das atividades
cotidianas refletem um sistema de representação do mundo que
os liga, em profundidade, às formulações intelectuais as mais
elaboradas, como as concepções religiosas, o direito, o pensa-
mento filosófico ou científico. (BURGUIÈRE, 1993, p. 62)

Burguière sinaliza a questão do fundamento cultural que orienta a


vida em sociedade, que muda muito a partir do momento que o siste-
ma feudal começa a se esfacelar. Isso porque quando o comércio avan-
ça e se torna uma atividade econômica cada vez mais importante para
as economias das monarquias nacionais europeias, as cidades, espe-
cialmente as portuárias, atraem população e interessados em romper
com o sistema feudal. Naquele contexto, a interface e a interdependên-
cia entre os reis soberanos e os comerciantes burgueses é muito forte.

Quando ocorreu o rompimento dessa relação por conta da necessi-


dade de liberdade para as atividades comerciais, o novo estrato social
já ocupava seu lugar, e logo os efeitos disso iriam aparecer, particu-
larmente na França, palco da mais importante revolução burguesa da
história: a Revolução Francesa.

Nesse momento, os valores e costumes burgueses formam um


sistema cultural que em quase tudo se diferencia daqueles opera-
dos pela sociedade de corte. O que se vê são lugares, antes criados
e ocupados pela nobreza e regidos pela lógica da etiqueta e pelo
domínio do bom tom, começarem a se alterar de acordo com as
mudanças verificadas na sociedade.

O processo civilizatório e a cultura 37


Filme Como se afirmou anteriormente, a sociedade de corte absolutista
O filme Maria Antonieta foi o local no qual mais se desenvolveu o controle dos impulsos e das
narra a história da esposa
austríaca do rei francês paixões pelos indivíduos, e de onde, segundo Elias (1994), a socieda-
Luís XVI quando eclode de ocidental herdou boa parte dos seus costumes e padrões de com-
a Revolução Francesa,
permitindo conhecer um portamento chamados de civilizados ou corteses. Foi nessa sociedade
pouco mais a sociedade que foram engendradas, ou pelo menos modeladas, grande parte das
de corte, seus rituais,
seus protocolos e suas proibições que ainda hoje estão vigentes, em especial nas sociedades
maneiras de se relacio- ocidentais. Isso porque a conduta da sociedade de corte absolutista
nar. Com esse filme, é
possível avaliar o quanto representa uma marca de distinção da nobreza em relação à burguesia
os fatores de distinção que ascendia socialmente.
social estão presentes em
uma sociedade cuja elite Observe, na Figura 9, como o vestuário era marcante, com mui-
praticamente não perce-
be que existe uma classe
tos elementos e adereços, aos quais a população mais pobre não
de desvalidos que estão conseguia ter acesso. Dessa forma, percebemos como o vestuário
morrendo de fome.
claramente era um fator de distinção social. Só por isso já se pode
Direção: Sofia Coppola. Estados
Unidos: Columbia Pictures, 2007.
inferir que havia um grande abismo social entre as os estratos so-
ciais na sociedade francesa da época.

É em relação a essas coisas que a burguesia preten-


dia se diferenciar, por não querer ser identificada com a
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nobreza, a qual desprezava por sua ociosidade, frivoli-


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dade, ganância e maneira como explorava os pobres.


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Ao mesmo tempo, também não desejava ser identifi-


cada com as camadas inferiores da sociedade. Enfim,
precisava construir sua própria identidade e, desse
modo, definir novos marcadores sociais.

Essa constante busca de distinção pela nobreza


sobre outras classes sociais, particularmente em rela-
ção à burguesia, pode ser percebida no esforço daquela
elite em forjar um novo código de conduta e um novo
padrão de controle para a vida em sociedade. Ambos
serviriam para demarcar espaços sociais e expressam,
na sociedade de corte,
um grau de compulsão e renúncia, mas também se transfor-
mam imediatamente em arma contra os inferiores sociais,
Figura 9 em uma maneira de separar. [...] A crescente compulsão para
Vestuário da controlar-se e moderar-se torna-se uma marca de distinção
nobreza a mais, que é imediatamente imitada abaixo e difundida com
a ascensão de classes mais numerosas. (ELIAS, 1994, p. 154
e 161)

38 Antropologia Cultural
Mas essas mudanças refletem novos costumes, comportamentos,
moralidade, desejos e emoções, compondo um código cultural que aos
poucos submete outros setores da sociedade, e não só as classes privi-
legiadas. Nesse contexto, há cada vez menos espaço para espontanei-
dade, autenticidade e improviso. Tem-se uma era de predomínio das
aparências e do espetáculo: não bastava que o indivíduo “fosse”, era
preciso “parecer ser”. Isso, de certa forma, é resultante do fato de que,
a partir desse período, será a interdependência social que determinará
o controle dos impulsos e das emoções. Para Elias (apud BRANDÃO,
2003, p. 15), “o nível de controle das emoções de qualquer sociedade
é diretamente proporcional ao grau de ‘civilidade’ dessa sociedade, ou
seja, quanto mais elevado for esse patamar, mais distante essa socie-
dade estará da barbárie”.

Lembra a Figura 4, que mostrava dois homens, com vestimentas


que sugeriam serem executivos (terno e gravata), em vias de agressão?
Esse contexto da imagem ilustra bem o que não pode ser feito em um
ambiente de trabalho, sob pena de ambos sofrerem represálias. E o
mais interessante é pensar sobre o fato de que parece que os padrões
de comportamento esperados sempre existiram, sendo naturais ou
voluntariamente criados pelos indivíduos. No entanto, como parte da
cultura, são social e historicamente construídos.

Por meio da prática da etiqueta e das boas maneiras, Elias mostra


como cada indivíduo tem seu prestígio e sua posição de poder confir-
mados pelos outros. Isto é, o prestígio de cada um precisa ser validado
pelos outros indivíduos com os quais interage, seguindo as regras esta-
belecidas por essa mesma sociedade.

Aos poucos, surgem também os fatores de distinção social, que


podem ser de vários tipos, em especial aquilo que se relaciona com
a aparência do indivíduo ou com seu padrão de comportamento.
Estão incluídos, nesse contexto, a maneira como esse indivíduo se
veste, quais são seus hábitos alimentares, quais atividades realiza
em seus momentos de lazer, quais atrações culturais – música, ci-
nema, entre outras – mais gosta etc., ou seja, o que caracteriza seu
estilo de vida.

Além dessas, outras atividades humanas são fortemente marcadas,


definidas e vistas como sistemas simbólicos, tais como a comida, a se-
xualidade e as relações de poder. Elias, utilizando fontes como manuais

O processo civilizatório e a cultura 39


de comportamento e de boas maneiras, investiga a relação entre mu-
danças nos comportamentos, nos costumes e na personalidade dos
indivíduos com as mudanças sociais, tudo isso com reflexos no pro-
cesso civilizador. Segundo Neiburg (1999), Elias mostra que ocorre um
crescimento dos patamares de vergonha, repugnância, controle e, prin-
cipalmente, autocontrole, novos modelos de comportamento e novas
formas de expressão dos sentimentos que servirão como marcadores
sociais, isto é, fatores de distinção social.
Novas maneiras de se portar à mesa, de manejar o garfo, a faca,
as mãos, o guardanapo; de lidar com as funções corporais, com
os cheiros, a comida, a sexualidade, o escarro, o banho, a su-
jeira; de se comportar em relação aos outros, os superiores, os
inferiores, os mais próximos; de se relacionar com pessoas do
mesmo sexo e de sexo diferente, com adultos, velhos e crian-
ças; de expressar e controlar a agressividade, as emoções, os
sentimentos; de se comportar, sozinho ou em companhia, no
quarto, na sala e demais espaços da casa e da rua, sedimentan-
do-se no decorrer dos séculos. Esses novos códigos de conduta
[...] são a um só tempo indicadores e expressão do comporta-
mento civilizado. (NEIBURG, 1999, p. 25)

Norbert Elias analisa a modernização dos comportamentos na Eu-


ropa a partir do Renascimento como uma progressiva vitória do que é
racional sobre as pulsões, pelo aprendizado do pudor e pela dissimula-
ção das funções orgânicas, investigando como aconteceu a remodela-
gem do corpo social e como se constituiu um novo discurso normativo
a partir dos novos códigos de comportamento.
Curiosidade
Outra referência importante para se pensar o processo civilizador
Pierre Bourdieu foi um sociólogo é Pierre Bourdieu, cuja contribuição teórica também alimenta a dis-
francês que se tornou uma das
maiores referências do século cussão antropológica em torno da questão das diferenças sociais, por
XX para as Ciências Humanas, meio dos fatores de distinção. Ele parte do princípio de que a produção
inclusive para a antropologia. simbólica decorre também da oposição entre classes, o que significa di-
Ele abordou temas como a
desigualdade social e os fatores zer que as culturas individual e coletiva são fortemente marcadas pela
de distinção social, buscando posição que o indivíduo ocupa na escala social.
suas origens e tentando decifrar
sua lógica a partir de conceitos A partir do conceito de habitus, também utilizado por Norbert Elias,
que se tornaram fundamentais. Bourdieu analisa a produção simbólica de diferentes classes sociais
na França e mostra como as diferenças são resultantes dos diversos
habitus sociais, responsáveis pela identidade da classe enquanto tal.
O autor retoma esse termo, de origem latina e que também é adota-
do pela antropologia, que expressa “o modo de ser de um indivíduo

40 Antropologia Cultural
ligado a um grupo social, que se relaciona especialmente à aparência
física (roupa, atitude etc.) e aos costumes e formas específicas de li-
dar com as instituições sociais, como a família, o trabalho e a religião”
(BOURDIEU apud COSTA, 2016, p. 199).

A ideia de habitus, para Bourdieu, analisa as diferentes realidades


sociais e os sistemas de classificação que preexistem em uma socieda-
de, e que se relacionam com as normas e os valores que essa socieda-
de validou. Para o autor, segundo Ortiz (2006, p. 15), habitus são
sistemas de disposições duráveis, estruturas estruturadas pre-
dispostas a funcionarem como estruturas estruturantes, isto é,
como princípio que gera e estrutura as práticas e representações
que podem ser objetivamente “regulamentadas” e “reguladas”
sem que por isso sejam o produto de obediência de regras, ob-
jetivamente adaptadas a um fim, sem que se tenha necessidade
da projeção consciente deste fim ou do domínio das operações
para atingi-lo, mas sendo, ao mesmo tempo, coletivamente or-
questradas sem serem o produto da ação organizadora de um
maestro.

O habitus, de acordo com a visão de Bourdieu, tem duplo papel na


configuração de uma sociedade: ao mesmo tempo que serve como
parâmetro para que ela se organize e se estruture, também tem sua
estrutura própria. Isso significa dizer que, ainda de acordo com Ortiz
(2006), a sociedade acaba se constituindo em uma forma de expres-
são que irá orientar práticas e comportamentos sociais, uma vez
que também se integra a um sistema de interpretação. Quando uma
ação humana, uma prática cultural ou um sistema de significados se
tornam realidade, vemos o resultado do habitus da sociedade.

Fica mais fácil compreender o significado de habitus quando se


pensa no que é, por exemplo, um teatro cheio durante um espe-
táculo de ópera. É possível observar, nesse contexto, que há uma
certa homogeneização no comportamento do público, que seguirá
o padrão esperado da classe social que costuma frequentar esse
tipo de lugar para esse tipo de lazer. O teatro se torna o campo no
qual o habitus dessa camada da população, comumente localizada
no alto da escala social, concretiza-se.

Por outro lado, quando se observa o padrão de comportamento de


outro público, em uma roda de pagode, por exemplo, fica claro que ali ha-
verá outro tipo de indivíduos, com características e comportamentos bem

O processo civilizatório e a cultura 41


diferentes do grupo anterior. Isso porque em cada um desses dois
locais, em eventos tão diferentes como os citados, pode-se ver con-
cretamente como a posição de classes se torna real. Cada grupo, em
cada campo, estará sendo orientado por regras, normas, valores,
costumes e comportamentos decorrentes do processo de socializa-
ção pelo qual passou.

A formação do habitus é um processo contínuo, que acontece du-


rante toda a vida e que define quem é quem na estrutura social. E
é importante ressaltar que os indivíduos, na maioria das vezes, não
têm consciência de que isso ocorre, ou seja, não percebem que seus
hábitos, seus pensamentos e suas ações são determinados por sua
posição social. Em outras palavras, cada indivíduo age no interior de
um campo socialmente determinado por sua percepção e aprecia-
ção determinadas pelo habitus.

O habitus é algo homogêneo por decorrer do fato de que os in-


divíduos se diferenciam uns dos outros por sua posição social, ao
mesmo tempo que se identificam com aqueles que se encontram
no mesmo campo, ou seja, partilham das mesmas condições de
existência.

É interessante observar que esse habitus é o que determinará,


em última instância, o próprio questionamento dos indivíduos e gru-
pos acerca de sua condição e de tudo o que resulta do processo de
diferenciação social. Por isso, muitas vezes, chama atenção a falta de
criticidade e mobilização dos indivíduos diante de situações que exi-
giriam deles uma ação, inclusive no sentido de melhorar suas con-
dições de vida. Isso acontece porque se interroga a sociedade tendo
como referência um esquema de pensamento fundamental.

Através de um sistema de expressão e de interpretação,


internalizam-se princípios que definirão as práticas culturais que
identificarão um indivíduo a seu grupo e, ao mesmo tempo, o diferen-
ciarão de outros. Assim, o habitus é uma maneira de interrogar a rea-
lidade, tendo como referência um esquema de interpretação global.

Com base na análise da realidade de diferentes estratos sociais,


Bourdieu forja também o conceito de capital simbólico para definir “o
conjunto de bens culturais, como o conhecimento, a trajetória social
familiar e o gosto, ou seja, elementos aos quais os indivíduos têm
acesso por meio da família, da escola e das diversas formas de con-

42 Antropologia Cultural
vívio, que, portanto, dependem da classe social a que se pertence”
(COSTA, 2016, p. 199).

Assim, pensando no processo civilizador, Bourdieu se alinha a


pensadores como Elias, que sinaliza a necessidade de conter os im-
pulsos e dominar as regras sociais para adotar o comportamento
esperado pelo grupo. E Bourdieu vai além quando chama a atenção
para o fato de que esses hábitos, comportamentos, atitudes, gos-
tos etc. têm um forte componente de distinção social, uma vez que
expressam a posição do indivíduo na hierarquia social e definem
identidades (individuais e de grupo).

A história dos costumes é a história do processo civilizador, e


ambas se fundem, em grande parte, na ideia de cultura, tão cara à
antropologia cultural.

CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Como indicaram vários autores citados ao longo deste texto, o pro-
cesso civilizador é contínuo, não terá fim e tem uma múltipla causalidade,
isto é, não há apenas uma única causa que explique como e por que
ele ocorre. O processo civilizador também não se presta para estratificar
sociedades ou as próprias civilizações, uma vez que é uma construção de-
finida social, histórica e culturalmente, sendo que cada civilização tem seu
ritmo e segue um caminho único, e, ao contrário do que muitos possam
imaginar, não é um processo natural. Ele se relaciona e é resultante das
relações humanas, da estrutura social e de formas de comportamentos
correspondentes.
Ainda que por muito tempo, dentro das diferentes orientações epistemo-
lógicas, cultura e civilização tenham sido consideradas sinônimos, elas não têm
exatamente o mesmo significado, mesmo que sejam ideias correlatas.
No início da construção do termo civilização, parecia que somente a
sociedade de corte francesa era civilizada, sendo que se sabe que esse
monopólio não existiu. Mas é notável que a França foi uma inspiração e,
certamente, definiu alguns dos atuais padrões de civilidade das sociedades
ocidentais.
Assim, quando se pensa o processo civilizador, o que é observado é
o impacto do surgimento das novas classes médias que buscavam seu
espaço e sua identidade social. Dessa forma, e à luz do pensamento de

O processo civilizatório e a cultura 43


autores como Norbert Elias e Pierre Bourdieu, é possível perceber que
não há como dissociar esse processo da ideia de construção de um novo
arcabouço cultural e, consequentemente, uma dimensão simbólica. Com
base nessas premissas, fica claro que só se pode analisar os fenômenos
sociais e culturais por meio da busca dos significados que as práticas so-
ciais e culturais adquirem na interação humana. Afinal, o ser humano só
se humanizou a partir da possibilidade de pensar, imaginar e refletir sobre
sua própria existência e sobre os fenômenos sociais e culturais.
A ideia de civilização, de certa forma, ainda está muito relacionada
às sociedades ocidentais, que não são as únicas, uma vez que o que
define civilização é a centralidade da vida que acontece nas cidades,
o aumento da interdependência entre as pessoas que compõem a
sociedade, o crescente processo de contenção das emoções e das
pulsões e o surgimento das instituições.
A antropologia cultural, em um diálogo com outras áreas do conhe-
cimento, como a sociologia, a filosofia e a história, entende o processo
civilizador como parte da caminhada do ser humano em seu processo de
humanização. E certamente ainda há muito o que fazer.

ATIVIDADES
1. Analise as imagens.

curiosity/Shutterstock

44 Antropologia Cultural
A partir do que estudou, faça uma leitura dessas imagens com base na
ideia de fatores de distinção social. Primeiramente, responda: o que são
fatores de distinção social? Em seguida, aponte ao menos três elementos
que indicam que há uma diferença de classe entre os dois indivíduos.

2. Norbert Elias e Pierre Bourdieu analisam o processo civilizador e


compartilham ideias semelhantes, ainda que sejam originários de
tradições intelectuais diferentes (alemã e francesa), o que significa
dizer que o primeiro é mais teórico, enquanto o segundo se volta mais
para o papel que o intelectual deve ter – atuar mais ativamente na
promoção de discussões críticas em relação às desigualdades sociais.
No entanto, ambos utilizam o conceito de habitus. Ainda que cada um
deles veja o habitus de maneira diferente, o que os aproxima?

3. A partir da ideia de que o ser humano, ao longo do processo civilizador,


foi se humanizando, descobre-se que é importante, para que se possa
dizer que alguém “é civilizado”, que essa pessoa se comporte em
conformidade com a sua posição social, sempre lembrando que essa
posição precisa ser validada pelo outro. Explique por que a sociedade
de corte francesa, para Elias, torna-se objeto de análise.

REFERÊNCIAS
BRANDÃO, C. F. Norbert Elias: formação, educação e emoções no processo de civilização.
Petrópolis: Vozes, 2003.
BRANDÃO, C. R. A educação como cultura. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986.
BURGUIÈRE, A. Dicionário das ciências históricas. 3. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1993.
COSTA, C. Sociologia: introdução à ciência da sociedade. 5. ed. São Paulo: Moderna, 2016.
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ELIAS, N. O processo civilizador. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. v. 1.
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ORTIZ, R. Mundialização e cultura. São Paulo: Brasiliense, 2006.

O processo civilizatório e a cultura 45


3
A experiência de alteridade
Neste capítulo, trataremos dos dois conceitos mais presen-
tes e mais importantes na antropologia: o etnocentrismo e o seu
oposto, o relativismo cultural. Essa discussão se dará tendo como
pano de fundo a reflexão sobre o diálogo como caminho para se
tentar equacionar igualdade e diferença, compreendendo a impor-
tância da alteridade, avaliando o impacto negativo de atitudes e
comportamentos etnocêntricos na convivência social e valorizando
o diálogo e o respeito ao outro.
Com o objetivo de identificar e interpretar esses conceitos e seus
desdobramentos nas relações humanas, analisamos as manifesta-
ções culturais pela abordagem etnográfica. O mundo atual exige a
nossa compreensão de que a formação integral de um indivíduo
não se dá, de maneira plena, à parte, por exemplo, do processo
educativo. Formar cidadãos críticos, éticos e capazes de estabele-
cer relações empáticas e respeitosas com seus opostos deveria ser
o grande propósito de qualquer sociedade. Entretanto, o que se
observa é que nem sempre isso ocorre. Por que ainda não se tem
um consenso em torno da necessidade de se priorizar a educação,
não só no Brasil, mas, também, em vários lugares do mundo?
O grande questionamento que norteará essa reflexão está na
dificuldade que a humanidade ainda tem de lidar com as diferen-
ças. Por que isso acontece?

3.1 O eu e o outro
Vídeo Para dar início à discussão, observe a imagem a seguir, que apre-
senta uma situação em que duas visões diferentes de uma mesma coi-
sa podem coexistir. Qual dos dois está certo, o homem ou a mulher?
Aliás, algum deles está errado?

46 Antropologia Cultural
Figura 1
Diferentes pontos de vista

Dooder/Shutterstock
O que está explícito é que essa diferença em relação ao algarismo
– seis ou nove – acabou gerando uma hostilidade e um conflito entre
eles. E o que essa situação pode acarretar? Muitas coisas, entre elas,
um crescente afastamento dos envolvidos ou, até mesmo, a transfor-
mação da discussão e do conflito em julgamento, violência, discrimina-
ção, exclusão etc.

A antropologia é a ciência que tem o propósito de compreender o por-


quê de os indivíduos enxergarem o mundo em que vivem de modos di-
ferentes por meio da operacionalização de conceitos importantes, como
o etnocentrismo. Marconi (2011, p. 3) define a antropologia cultural como
a ciência da humanidade e da cultura. Como tal, é uma ciência
superior social e comportamental, e mais, na sua relação com
as artes e no empenho do antropólogo de sentir e comunicar o
modo de viver total dos povos específicos, é também uma disci-
plina humanística.

Assim, a antropologia estuda o ser humano e suas práticas cul-


turais, apresentando uma ampla visão do que, ao longo do tempo,
possibilitou o processo de humanização. De acordo com essa ideia,
ao produzir cultura, o indivíduo se torna agente da história e, por-
tanto, com um potencial para transformar o mundo em que vive.
O ser humano é mais do que mero receptor da cultura. Cultura

A experiência de alteridade 47
e sociedade são dinâmicas e, por fazerem parte de um processo
contínuo de transformação, nunca estão acabadas, mantendo-se
sempre em andamento.

Mas o que se observa é que essas mudanças produzidas pela cul-


tura e dela decorrentes nem sempre se dão de maneira tranquila ou
sem conflitos. Pelo contrário, são muitos os exemplos de transforma-
ções culturais que só se concretizaram depois de muitos altos e bai-
xos, de muitos conflitos e embates entre forças opostas. O que se pode
perceber é que esses conflitos, quase sempre, são oriundos da não
percepção, do não reconhecimento, da desvalorização e da não aceita-
ção das diferenças. Na maioria das vezes, a intolerância em relação às
diferenças é o resultado de situações desse tipo.

A ideia que fundamenta essas situações é o chamado etnocentrismo,


que, para Guizzo (2009, p. 308), é o “comportamento pelo qual as
pessoas de uma sociedade focalizam uma cultura diferente sob os cri-
térios de sua própria sociedade”. Ainda segundo o autor, esse conceito
“é universal e inerente à visão de mundo da maioria das sociedades,
mas deve ser combatido quando resulta em intolerância, discrimina-
ção, exclusão e nacionalismo extremado” (GUIZZO, 2009, p. 308).

Percebe como a situação apresentada na imagem, anteriormente,


está relacionada com essa conceituação? Cada um dos indivíduos en-
volvidos estava defendendo e lutando por seu ponto de vista, sem con-
siderar que pudesse haver outra possibilidade de entendimento e que
era preciso procurar enxergar o que o outro estava vendo.

Rocha (1996, p. 7) conceitua etnocentrismo como sendo a “visão


do mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de
tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos
valores, nossos modelos, nossas definições do que é a existência”.
O autor lembra, também, que a atitude etnocêntrica mobiliza tanto
a razão quanto os sentimentos do indivíduo, que podem ser de
estranheza, medo e hostilidade.

Recuperando um pouco a história da antropologia, o que se vê é


que o etnocentrismo foi a marca das primeiras análises dessa ciência,
sobretudo porque a percepção da alteridade – que, conceitualmente,
quer dizer perceber, reconhecer e conviver com as diferenças – se dava
em um contexto no qual o progresso era central. Significa dizer que
eram análises nas quais grupos e sociedades humanas, diferentes en-

48 Antropologia Cultural
tre si, eram comparados por meio de uma única lógica: a das socieda-
des ditas “evoluídas”, as quais já haviam alcançado um determinado
nível de desenvolvimento que as chamadas sociedades “primitivas” ain-
da não haviam conseguido. E mais: essas sociedades mais “atrasadas”
precisariam de ajuda para conquistar e mudar o seu estilo de vida.

Dessa percepção da diferença como resultado de uma ideologia


de povos dominadores, opressores, sobretudo no contexto dos pri-
meiros contatos entre a Europa e, mais tarde, os Estados Unidos
com povos de outras regiões do planeta – África, Ásia e Oceania –,
acontece o choque cultural que marcou vários grupos humanos.
A lógica da conquista, em especial, acabou gerando muita violência
e opressão.

O estranhamento em relação ao “outro”, ao diferente, no caso do


contato dos europeus quando chegaram às Américas, por exemplo,
deu-se em função das enormes diferenças entre ambos os lados
– exploradores e nativos. Isso porque estavam em confronto dife-
rentes crenças, valores, costumes e comportamentos que não eram
reconhecidos por nenhum dos dois lados. Esse estranhamento era
consequência do não reconhecimento por um grupo das práticas
culturais do outro. Mas o que se deve ressaltar é que, para os indiví-
duos de cada uma das culturas, ela fazia sentido. Significa dizer que
seu mundo fazia sentido por conta daquele conjunto de elementos
que havia sido construído pelo grupo.

Como se viu na imagem, certamente, para cada um dos sujeitos sua


lógica estava correta e a do outro, errada. Mas o que é certo ou errado?
Quais são os critérios para fazer essa classificação? A dificuldade de defini-
ção dessas questões está exatamente no fato de o ponto central ser a dife-
rença, a existência do “outro”. O embate entre o “eu” e o “outro” é o ponto
central da questão, porque a diferença é vista, por muitos, como uma
ameaça que deve ser combatida, e o foco, abatido. Espanto, curiosidade,
hostilidade, violência, segregação e exclusão são alguns dos sentimentos
que fundamentam o etnocentrismo. Isso porque há quem acredite que
a sociedade do “eu” é a melhor, a superior. É representada
como o espaço da cultura e da civilização por excelência. É
onde existe o saber, o trabalho, o progresso. A sociedade do
“outro” é atrasada. É o espaço da natureza. São os selvagens,
os bárbaros. São qualquer coisa menos humanos, pois estes
somos nós. (ROCHA, 1996, p. 9)

A experiência de alteridade 49
A barbárie versus a civilização. O bom versus o mal. O normal versus
o estranho. As oposições se dão em razão do fato de que nenhum dos
polos procura apreender a lógica que dá sentido e atribui significados
aos elementos e às práticas culturais da outra sociedade. Isto é, quan-
do se procura entender a diferença tecendo algum juízo de valor em
relação àquilo que não é familiar, não se conhece e, sobretudo, não se
quer conhecer. Ao utilizar seus valores, suas crenças e seus costumes
como parâmetros para avaliar uma cultura diferente da sua, o indiví-
duo tem poucas chances de relativizar.

Hoje, o relativismo cultural é um dos fundamentos de uma socieda-


de justa, respeitosa e igualitária, na qual todo e qualquer indivíduo tem
o direito de ser o que quiser; e deve ter voz e representatividade. Na
atualidade, a questão indígena é um dos melhores exemplos para se
pensar a desigualdade e a exclusão, uma vez que, tal como aconteceu
no século XVI, ainda hoje, parte da sociedade brasileira vê o indígena
como “não brasileiro”. Isso implica em descaso, violência, desrespeito
aos direitos humanos e até extermínio. Imagens distorcidas das comu-
nidades indígenas ainda marcam o imaginário de parte da população,
que ora as vê como agentes de violência e detentoras de “privilégios”
(como ter “tanta” terra), ora como vítimas. Porém o fato de não serem
vistos como cidadãos é o maior reflexo de uma visão etnocêntrica.

Como mudar essa realidade? Começando pela problematização do


papel da educação nesse contexto. Veja a imagem a seguir.

Figura 2
Sala de aula moderna

Rawpixel.co/Shutterstock

50 Antropologia Cultural
Qual a chance de, no Brasil, hoje termos salas de aula como essa
Livro
para todos, sejam eles brancos, negros, pardos, indígenas, ricos, po-
bres, moradores das cidades ou do campo, de qualquer região do
país, enfim, sem nenhum tipo de diferença em termos de oportuni-
dade? Como alcançar a equidade? De início, podemos arriscar uma
resposta chamando a atenção para o importante papel da escola na
manutenção, reprodução, preservação, transmissão e valorização das
culturas de cada grupo social que compõe o Brasil. O respeito à diver-
sidade e às múltiplas identidades é a chave para a construção de uma
sociedade mais tolerante.
A obra Diversidade na
Aqui, é importante lembrar o papel de instituições sociais como a educação: implicações
culturais é importante pela
escola. A escola e a educação não podem colaborar para que imagens
discussão que promove a
negativas do “outro” sejam reforçadas pelas elites dominantes. Como respeito da diversidade e
de como esta impacta na
contraponto ao etnocentrismo, o relativismo cultural permite um olhar
educação, destacando a
para os “vários outros” que estão presentes na sociedade e nas salas necessidade de se comba-
ter o racismo e outras prá-
de aula por meio de seus valores, e não dos grupos que se colocam
ticas reprováveis no espaço
em uma posição superior – grupos ou indivíduos que transformam a escolar e na sociedade.
diferença em modelos explicativos para justificar a desigualdade de di- CASALI, A.; CASTILHO, S. D. de. São
reitos e de oportunidades. Paulo: EDUCA, 2017.

A análise antropológica pela lógica do relativismo cultural sobre a


educação e o processo educativo permite a superação do etnocentrismo
quando se vê a diferença como algo falso, menor, irracional ou exótico.
E por que dar tanto destaque à educação? Porque é por meio das prá-
ticas educativas repetidas ao longo do tempo e, muitas vezes, sem criti-
cidade que crenças e valores são reproduzidos e, sobretudo, validados.

3.2 A igualdade e a diferença em


Vídeo uma perspectiva dialógica
Na antropologia, há muito se debate sobre a unidade que mar-
ca a humanidade enquanto espécie e a diversidade, que também é
uma das características dos grupos humanos. Mas como lidar com
as diferenças harmoniosamente? Como transformar as sociedades
que hoje têm muita dificuldade para estabelecer formas de convi-
vência respeitosas entre os diferentes indivíduos? Pela educação.
Adotando-se práticas educativas que efetivamente promovam a dis-
cussão sobre a alteridade.

A experiência de alteridade 51
Uma escola que oportunize o conhecimento dos modos de vida, va-
Saiba mais lores, costumes e comportamentos de diferentes povos se tornará uma
Você já se perguntou escola inclusiva. Além do mais, a educação é um direito de todo cida-
por que a educação é dão e tem seus princípios bem definidos na documentação brasileira.
tão importante para um
povo e um país? Por que A antropologia, por meio de seus conceitos mais básicos, fornece
ela deve ser priorizada
quando se pretende
uma visão mais ampla da heterogeneidade e da complexidade das
construir uma nação mais sociedades. Olhar para as diferentes culturas de modo mais objetivo
justa e igualitária? Como
isso pode acontecer?
e sem pré-conceitos decorrentes do estranhamento inicial favore-
Para compreender ce a construção de ritos, rituais e práticas que podem desconstruir
melhor essas questões,
pesquise na Constituição
ideias negativas, pré-concebidas em relação ao “outro”. A atitude
Brasileira de 1988, em relativista permite a compreensão de que, independentemente de
seus artigos 205 a 214,
e veja o que lá está
como se vê uma prática cultural, é preciso entender que esta, de
firmado. alguma forma, faz sentido para quem a pratica, para quem viven-
Disponível em: http://www. cia certa cultura. De acordo com Marconi (2011, p. 32), “a posição
planalto.gov.br/ccivil_03/Constitui-
cao/Constituicao.htm. Acesso em:
relativista liberta o indivíduo das perspectivas deturpadoras do et-
1 abr. 2020. nocentrismo, que significa a supervalorização da própria cultura em
detrimento das demais”.

Ao longo do processo civilizatório, sempre houve conflitos, confron-


tos e até guerras por conta da falta de diálogo entre indivíduos e gru-
pos. Quando cada lado tem a plena convicção de que é detentor da
verdade, a discussão se trava e tensiona ainda mais as relações sociais.
Além disso, observamos nessas circunstâncias que, muitas vezes, falta
flexibilidade para compreender a lógica que norteia as práticas cultu-
rais de um grupo quando elas são diferentes da sua cultura.

Quando uma pessoa tece algum juízo de valor em relação a um


comportamento ou a uma visão de mundo de outro indivíduo ou grupo
social, ela assume uma atitude etnocêntrica. Isso compromete a inte-
ração social exatamente porque pode ter como consequência a estig-
matização, a discriminação, a hostilidade e, finalmente, o preconceito.

Hoje, a escola e todo o processo educativo se veem em um mo-


mento de grandes questionamentos, pois se tem a percepção de que a
sociedade avançou e mudou mais profunda e rapidamente do que as
instituições e os sistemas de ensino. E por que isso ocorreu? Porque va-
lores, costumes e comportamentos não mudam tão facilmente e tudo
o que diz respeito à educação demanda atenção. Trabalhar a diver-
sidade em sala de aula, por exemplo, muitas vezes, exige um grande
esforço da comunidade acadêmica, especialmente dos professores, no

52 Antropologia Cultural
sentido de abordar temáticas que podem entrar em rota de colisão
com valores praticados pelas famílias dos estudantes.

Ao longo de sua constituição enquanto ciência, a antropologia foi


Site
incorporando temas que têm uma interface com a cultura e que a cons-
Consulte o site para
tituem concretamente, tais como ética, orientação sexual, questões re- conhecer melhor os
lacionadas ao meio ambiente e à saúde, cidadania, consumo, além de Temas Contemporâneos
Transversais na BNCC e
um dos mais caros à análise antropológica: a pluralidade cultural. sua importância para a
educação brasileira.
Essas e outras temáticas passam a compor a pauta de discussão
Disponível em: http://basenacio-
sobre um currículo nacional para a educação básica no Brasil, o que foi
nalcomum.mec.gov.br/images/
amplamente debatido até se chegar à versão que orientará as ações a implementacao/contextualiza-
cao_temas_contemporaneos.pdf.
serem desenvolvidas e o currículo nacional, bem como as formas de
Acesso em: 27 jul. 2020.
implementação em toda a educação.

Com o objetivo de preparar melhor os estudantes para os desafios


que se apresentam na atualidade e garantir uma maior qualidade de
ensino, a permanência na escola, o reconhecimento e o acolhimento
da diversidade, além de maior equidade de oportunidades a todos, a
BNCC deve servir de referência para a elaboração de currículos que
permitam o desenvolvimento de competências e habilidades ao longo
da educação básica. Por meio dela, é possível deixar claro o que os
estudantes devem aprender, o que devem ser capazes de fazer com
o conhecimento construído e como devem se comportar. Além disso,
professores, gestores e formuladores de políticas públicas terão mais
claro como promover uma educação de qualidade.

Dessa maneira, entende-se que a implementação da BNCC con-


tribuirá para que os estudantes sejam capazes de mobilizar conheci-
mentos, habilidades, atitudes e valores que lhes permitam atender às
demandas da sociedade na qual se inserem, resolvendo problemas,
apresentando soluções, criando e inovando.

São competências estabelecidas na BNCC (BRASIL, 2018):

• Conhecimento;

• Pensamento científico, crítico e criativo;

• Repertório cultural;

• Comunicação;

• Cultura digital;

• Trabalho e projeto de vida;

A experiência de alteridade 53
• Argumentação;

• Autoconhecimento e autocuidado;

• Empatia e cooperação;

• Responsabilidade e cidadania.

Analisando-se as competências, é possível perceber que a imple-


mentação da BNCC e o desenvolvimento de práticas educativas que
contextualizem o mundo no qual os estudantes vivem, assegurando as
individualidades e a grande diversidade que caracteriza o Brasil, favo-
recerão a construção de uma visão de mundo mais justa e igualitária.
Ao conceber o conhecimento em bases científica, crítica e com estímulo
à criatividade, será possível desenvolver um poder de argumentação
e um repertório cada vez mais amplo. Isso contribui para o questio-
namento por parte do estudante em relação ao mundo onde ele vive
e a maneira como pode atuar no sentido de promover as mudanças
necessárias para a construção da cidadania.

Com as discussões sobre questões que podem ser bastante sensí-


veis a alguns grupos sociais, caso das relações de gênero, a atenção se
volta aos docentes, que precisam estar preparados para enfrentar os
desafios colocados à educação. Esses profissionais devem repensar as
suas estratégias e práticas pedagógicas para que a alteridade seja pro-
blematizada nas aulas, uma vez que ela já há muito ali se faz presente.

Mas para que esse trabalho seja realizado de maneira mais eficiente,
professores devem rever as suas metodologias, priorizando aquelas que
coloquem o estudante no centro do processo de ensino-aprendizagem,
destacando a sua responsabilidade, entendendo que deve ser autôno-
mo, independente e protagonista. O docente se torna um facilitador da
aprendizagem, permitindo ao aluno construir as ferramentas necessárias
para saber o que fazer com os conhecimentos que já tem e que irá conce-
ber de modo colaborativo e cooperativo.

É sempre importante lembrar que a heterogeneidade marca a maio-


ria das escolas, e as diferenças são de todos os tipos. Além disso, a sala
de aula não é mais o único espaço de aprendizagem para crianças, jo-
vens e adultos. Na sociedade informatizada que hoje vivemos, o acesso
à informação se amplia a mais pessoas e acontece em diferentes espa-
ços, o que não implica, necessariamente, produção de conhecimento.

54 Antropologia Cultural
Esse cenário mostra que novos modelos relacionais são caracte-
rísticos das novas gerações e exigem, também, que os docentes se
reinventem, atualizem-se e abram-se a essas temáticas que dialo-
gam com a antropologia. Assim,
a escola precisa assumir o papel de formar cidadãos para
a complexidade do mundo e dos desafios que ele propõe.
Preparar cidadãos conscientes, para analisar criticamente
o excesso de informações e a mudança, a fim de lidar com
as inovações e as transformações sucessivas dos conheci-
mentos em todas as áreas. [...] Garantir aos alunos-cidadãos
a formação e a aquisição de novas habilidades, atitudes e
valores, para que possam viver e conviver em uma socie-
dade em permanente processo de transformação. (KENSKI,
2012, p. 64)

Apesar de ainda não se ver a educação como prioridade para a


promoção não só do desenvolvimento econômico do país, como
também do desenvolvimento social, a produção teórica da área
aponta para a certeza de que ações, costumes, hábitos, compor-
tamentos e visões de mundo podem ser mudados, promovendo
transformações sociais e viabilizando novos projetos de interação
entre indivíduos que são diferentes, mas que precisam conviver.

E nessa linha percebemos que é necessário repensar a atuação


de vários profissionais, em especial, do professor, pois “quem não
está preparado para travar o diálogo entre sujeito e objeto, quem
não observa o contexto da vida de quem aprende e de quem ensi-
na, não está preparado para este momento. Teria sido, talvez, um
bom professor para nossos avós” (WERNECK, 2014, p. 144). Isso
porque o mundo mudou; práticas que eram adotadas há décadas
já não funcionam mais e não atendem ao que se espera da educa-
ção no século XXI. Habilidades, atitudes e competências precisam
ser construídas e/ou desenvolvidas nos professores e estudantes
para que ambos tornem-se cidadãos capazes de olhar para a alte-
ridade e perceber a riqueza dela. Sujeitos aptos a avaliar que a di-
versidade tem grande potencial para aproximar os indivíduos pelo
que têm em comum, e não pelo que os difere. A mudança depende
fortemente de uma visão plural da humanidade e da percepção da
alteridade de modo positivo, e não excludente.

A experiência de alteridade 55
A aprendizagem relevante é aquela que transforma os indi-
víduos e suas vidas no sentido de torná-los mais éticos, críticos,
atuantes, tolerantes e receptivos à diversidade. É aquela que cons-
trói significados e dá sentido ao conteúdo que, por sua relevância,
terá aplicabilidade e poderá ser compartilhado. Nesse sentido, a
antropologia dialoga com a educação na medida em que propõe
uma interpretação holística da aprendizagem, das práticas educati-
vas que, por suas proposições, podem mudar o olhar de cada indi-
víduo. Quando esse diálogo se efetiva, torna-se possível reinventar
a escola para que a educação possa atender às diferentes deman-
das sociais e individuais da contemporaneidade.

Entretanto, sendo a educação vista como um processo de hu-


manização, é certo que ela colabora fortemente para o desenvol-
vimento civilizatório da humanidade. Esse processo é promovido
pelos indivíduos que atuam nas comunidades nas quais se inserem,
sendo uma prática social construída por diferentes instituições so-
ciais. Como afirmamos anteriormente, não é mais apenas a escola
o único espaço de aprendizagem, ainda que esse seja o lugar no
qual a educação formal se realiza. Mas é preciso lembrar do que
afirma Moran (2013, p. 12) quando avalia a escola na atualidade:
Enquanto a sociedade muda e experimenta desafios mais com-
plexos, a educação formal continua, de maneira geral, organiza-
da de modo previsível, repetitivo, burocrático, pouco atraente.
Apesar de teorias avançadas, predomina, na prática, uma visão
conservadora, repetindo o que está consolidado, o que não ofe-
rece risco nem grandes tensões. A escola precisa reaprender
a ser uma organização efetivamente significativa, inovadora,
empreendedora. Ela é previsível demais, burocrática demais,
pouco estimulante para os bons professores e alunos.

Complementamos as afirmações do autor defendendo que esse


conservadorismo que ainda se mantém em algumas escolas se
deve, em parte, à falta de uma visão mais pluralista e inclusiva de
alguns professores e alunos. Uma formação integral prevê o diálo-
go entre diferentes e a busca de relações mais horizontais, pauta-
das na compreensão e na comunicação fluida entre os indivíduos.

Os estudos culturais e os multiculturalistas tomam como pre-


missa a ideia de que os conflitos não estão relacionados apenas
com as diferenças, mas, sobretudo, decorrem do fato de se tratar

56 Antropologia Cultural
a diversidade como um problema e os diferentes como inferiores.
Também chamam a atenção para a realidade na qual os grupos do- Atenção
minantes se impõem e impõem a sua cultura, consequentemente
Os estudos culturais surgem
definindo os princípios que orientarão as várias instâncias da vida na Inglaterra, entre os anos
social, inclusive a educação. 1950 e 1960, e têm como
proposta analisar a cultura pela
Analisando de maneira crítica o sistema educativo, podemos forma como os indivíduos se
perceber quantos rituais reforçam práticas educativas anacrônicas, relacionam, como articulam
as suas práticas culturais e as
que em nada colaboram para a construção da convivência pacífica relações de poder que as defi-
entre diferentes e a valorização da alteridade. É o caso de práticas nem. Também tratam de temas
relacionados às camadas mais
racistas ou homofóbicas, tais como a interdição de alunos negros
marginalizadas da sociedade,
nas peças publicitárias escolares ou a proibição de meninas joga- incluindo as minorias.
rem futebol em uma aula de Educação Física, que separa garotos
de garotas e define atividades “próprias” para cada sexo. Por conta
de atitudes desse tipo, indivíduos podem ser estigmatizados e dis-
criminados em seu meio por aqueles que se recusam a reconhe-
cer a diferença como algo a ser respeitado e valorizado. É sempre
importante lembrar que a cultura define identidades individuais e
coletivas e que, portanto, tem enorme relevância na educação.

3.3 O etnocentrismo e o relativismo cultural


Vídeo A antropologia, ao tomar a humanidade e as suas manifesta-
ções culturais como objeto de estudo, colabora para que se com-
preenda que a transmissão do conhecimento acumulado por um
grupo às futuras gerações é primordial para a coesão social. E não
se está tratando apenas do conhecimento acadêmico-científico,
mas do saber-fazer, o qual é fruto da experiência de anos, às vezes
séculos, de indivíduos que vieram antes e que buscaram soluções
para os problemas.

A continuidade de um grupo depende da sua capacidade de


transmitir conhecimentos importantes que possibilitem às novas
gerações condições de sobrevivência e, preferencialmente, em
patamares melhores, em termos de qualidade de vida, do que os
das gerações anteriores. Nesse processo, são transmitidos não só
práticas relacionadas às questões concretas de sobrevivência do
grupo, mas também valores, costumes e comportamentos que o
identificam.

A experiência de alteridade 57
A memória é resguardada, como se afirmou anteriormente, por
meio de rituais que reforçam a identidade individual e coletiva e
que, por sua vez, criam tradições e mantêm a coesão do grupo e o
sentimento de pertencimento. No entanto, os saberes acumulados
não devem ser transmitidos somente por indivíduos isolados ao
seu próprio grupo. Esse compartilhamento também é de respon-
sabilidade de algumas instituições que organizam a vida e a socie-
dade. Uma delas é a escola, que, por sua importância na estrutura
social, é responsável, junto à família, pela chamada socialização
primária, a qual acontece ao longo da infância. A reprodução do
saber é fundamental para garantir a continuidade histórica e asse-
gurar que não se perca aquilo que define uma determinada socie-
dade e que eventualmente pode diferenciá-la de outras.

Essa lógica, de alguma forma, aproxima-se daquilo que a antro-


pologia pratica tanto em termos teóricos quanto metodológicos.
Justamente porque, ao ter como objetivo o estudo do ser humano
por inteiro, essa ciência busca o sentido e os significados cons-
truídos pelos indivíduos em seu processo de interação e que es-
truturam a sua cultura. Nesse sentido, o que resulta do trabalho
humano se configura em elemento estruturante da cultura e da
vida social, constituindo-se em um todo complexo que articula a
Figura 3
vida em sociedade.
Representação da diversidade
Graphics Master/Shutterstock Continuando nessa linha de racio-
cínio, é possível compreender a
função das práticas culturais de
orientar cada indivíduo e seu
grupo em relação àquilo que
foi validado e que deve ser
compartilhado, transmitido
e seguido. Mas o que ocor-
re quando isso não aconte-
ce ou quando nem todos os
indivíduos seguem esses pa-
râmetros? É possível pensar
que um indivíduo não com-
pactue dos princípios básicos
de sua cultura porque não con-

58 Antropologia Cultural
corda com eles, ou porque não consegue se inserir plenamente
na sociedade por alguma característica sua que o diferencia dos
demais. Veja a imagem a seguir.

Que leitura você faz dela? Supondo que o guarda-chuva em des-


taque seja amarelo, o que pode significar ser um “guarda-chuva
amarelo” em meio a tantos outros pretos? Apenas observando a
imagem, é possível dizer que os guarda-chuvas pretos são melho-
res ou piores que o amarelo? Fazendo uma analogia com as socie-
dades humanas, ser diferente em meio à maioria é melhor ou pior?
A discussão realizada neste capítulo tem sinalizado para a necessi-
dade de se reconhecer e valorizar a diversidade.

Tratar da relação entre antropologia e educação é pontuar a


necessidade de se reforçar a interface entre as diferentes áreas
do saber para potencializar o diálogo em torno do conceito de cul-
tura. Em uma ou em outra dessas duas áreas se está tratando de
construções culturais que se concretizam por meio de diferentes
práticas que decorrem de códigos e símbolos. Tudo isso somado
fundamenta a sociedade. Dessa forma, a antropologia pode con-
tribuir significativamente para pensar o processo educativo. E por
que isso é possível? Pela própria trajetória da antropologia cultural
em sua tentativa de explicar a diferença com o propósito de valori-
zar a alteridade e colocar o “outro” em seu lugar de direito.

Ao longo da história da disciplina, com o aparecimento de no-


mes como Émile Durkheim (para quem não se explica o social pelo
individual), Bronislaw Malinowski (precursor do trabalho de cam-
po na antropologia) e Alfred Radcliffe-Brown (que propõe a análi-
se sincrônica na antropologia), a antropologia avança no caminho
da superação do etnocentrismo e da consolidação do relativismo
cultural. Cada uma, a seu modo, contribuiu para ampliar a visão
relativista das diferenças; o etnocentrismo vai sendo superado (ao
menos da teoria antropológica) e a alteridade se torna o objeto de
estudo, por excelência, da antropologia. Esse novo momento do
desenvolvimento dessa ciência possibilita que não se olhe para o
presente apenas considerando a história, mostrando que é pos-
sível enxergar as diferentes culturas analisando a forma como as
sociedades se organizam.

A experiência de alteridade 59
À medida que percebemos a sociedade e, dentro dela, o pro-
cesso educativo sem a preocupação de classificar ou hierarquizar
indivíduos ou grupos, afastamo-nos mais da visão etnocêntrica e
aproximamo-nos do relativismo cultural. Não se trata mais de so-
ciedades “primitivas” e “atrasadas” contra “civilizadas” e “avança-
das”. Retomando a ideia de pensar a contribuição da antropologia
para a educação, é preciso compreender o processo educativo em
sua própria lógica, isto é, sem utilizar critérios de outra sociedade,
que pensa e vivencia a educação de outra forma e para a qual tudo
faz sentido tal como é.

Quando se pensa na estrutura tanto da sociedade como um


todo quanto da educação – parte tão importante da cultura e da
identidade de qualquer povo –, é preciso considerar que novos ter-
mos passam a ser utilizados, tais como função, processo e estrutu-
ra. Para isso, podemos representar da seguinte forma:
Figura 4
Estrutura social

PROCESSO

Processo social
FUNÇÃO

ESTRUTURA

Formas regulares, repetitivas

SISTEMA SOCIAL

Fonte: Elaborada pela autora.

Todo processo social se fundamenta em determinadas estrutu-


ras que, por sua vez, desempenham funções específicas no sistema
social. Uma forma de compreender melhor o que isso significa é
comparar o sistema social ao corpo humano, o qual, para o seu

60 Antropologia Cultural
bom funcionamento, conta com várias estruturas. O sistema diges-
tório, por exemplo, se compõe de diversos órgãos, cada um desem-
penhando uma função para que o processo digestivo aconteça da
forma correta. O mau funcionamento ou o colapso de um órgão
comprometerá todo o sistema, ou seja, o processo vital.

Quando se pensa no processo social, é possível perceber que


determinadas estruturas aparecem em todas as sociedades, de-
sempenhando funções específicas para manter o sistema funcio-
nando. São instituições como escola, Estado, Igreja, família e outras
que organizam a vida em sociedade e atribuem significado a de-
terminadas práticas sociais. Isso tornou as comunidades cada vez
mais complexas e, de certa forma, implicou uma mudança meto-
dológica, tornando o trabalho de campo a estratégia mais comum
para contatar e analisar o objeto de estudo que faz a especificidade
da antropologia: o “outro”. Nesse sentido, o olhar para a educação
também mudou em função dessa nova complexidade.

Não significa afirmar que o passado não importa, mas apenas


que não é essa a única forma pela qual se pode explicar os fenôme-
nos sociais e a cultura de um indivíduo ou do grupo social no qual
ele se insere. Assim, os fenômenos sociais, dentre eles o processo
educativo, têm seu próprio ritmo, caminho e propósito e, portanto,
não se explicam por nenhum outro. O que faz uma sociedade é a
cultura que a define, e não apenas a soma dos indivíduos que a
compõem, muito menos ainda suas personalidades.

Por essa visão, e pela de outros antropólogos que apareceram


ao longo do século XX, a antropologia se torna mais autônoma ao
mesmo tempo que, ciente de sua identidade e especificidade, pas-
sa a dialogar mais com outras ciências. Nessa caminhada, marcada
1
também por pensadores como Claude Lévi-Strauss , o “outro”, a 1
“diferença” e a experiência do contato e da vivência da diversidade Antropólogo francês que, com
se concretizam. Trata-se, agora, de reconhecer que a diferença não seu trabalho, mostrou que as so-
ciedades têm algumas estruturas
é mais uma ameaça a ser destruída, e sim algo a ser preservado. básicas e comuns a todas, caso
Assim, a educação pode aproveitar da antropologia essa capa- da linguagem e dos sistemas de
parentesco.
cidade de olhar para cada grupo ou sociedade e buscar a lógica
segundo a qual cada indivíduo pensa sua vida, seu mundo e suas
experiências. É dessa forma que se configura a ideia de educar
para a cidadania global, que, para Moraes (1997, p. 226),

A experiência de alteridade 61
significa formar seres capazes de conviver, comunicar e dia-
logar num mundo interativo e interdependente utilizando os
instrumentos da cultura. Significa preparar o indivíduo para
ser contemporâneo de si mesmo, membro de uma cultura
planetária e, ao mesmo tempo, comunitária, próxima, que,
além de exigir sua instrumentação técnica para comunicação
a longa distância, requer também o desenvolvimento de uma
consciência de fraternidade, de solidariedade e a compreen-
são de que a evolução é individual e, ao mesmo tempo, co-
letiva. Significa prepará-lo para compreender que, acima do
individual, deverá sempre prevalecer o coletivo.

Segundo a autora, ainda, isso exige que se reconheça a multi-


culturalidade e que o indivíduo “compreenda que é parte de um
todo, um microcosmo dentro de um macrocosmo, parte integrante
de uma comunidade, de uma sociedade, de uma nação ou de um
planeta” (MORAES, 1997, p. 226). Já segundo Costa (2016, p. 136),
“para nos inserirmos em uma coletividade, temos que ser educados;
introjetando valores, desenvolvendo habilidades e dominando um
repertório linguístico que permita nos comunicar com os demais”.
Nesse sentido, trata-se de compreender o processo educativo como
meio pelo qual são construídas as habilidades e competências, hoje,
necessárias a uma convivência respeitosa em relação às diferenças.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O diálogo entre a antropologia e a educação se configura em uma
estratégia que pode ser transformadora e, em alguns casos, até revolu-
cionária quando se reflete sobre o papel da educação. Pensando na es-
cola e em tudo o que a envolve, é fácil compreender que em sociedades
muito marcadas pela desigualdade e pela rejeição da diversidade a edu-
cação assume um papel que transcende a transmissão do conhecimen-
to acumulado pela humanidade. Isso porque pode ser pelo processo
educativo que as novas gerações, em especial, poderão discutir sobre a
maneira como as diferenças têm sido tratadas. O preconceito, a discrimi-
nação, a estigmatizarão e a exclusão que sofrem aqueles que compõem
as minorias, muitas vezes, afetam o acesso desses indivíduos a direitos
humanos básicos, comprometendo a construção de sua cidadania.

62 Antropologia Cultural
A mudança nesse quadro de não reconhecimento e não valoriza-
ção da diversidade – étnico-racial, econômica, religiosa, de gênero,
de orientação sexual – virá da desconstrução e da revisão de valo-
res e atitudes de indivíduos e grupos que adotam posições hostis
em relação àqueles que não são como eles. Trata-se da superação
da hegemonia da sociedade do “eu” para a sociedade do “outro”. A
transmissão de novos conhecimentos e valores, ao lado da adoção
de comportamentos diferentes daqueles utilizados até hoje por parte
das elites hegemônicas, poderá trazer como resultado uma socieda-
de mais justa e harmônica, diminuindo, assim, o controle social exer-
cido sobre as minorias.
A socialização e a integração social das novas gerações preci-
sam ser discutidas no espaço da escola, e em todos os espaços
de aprendizagem aos quais têm acesso, sempre pensando que a
educação não pode ignorar seu papel em relação à exclusão e à
intolerância.
O compromisso da educação deve ser com a construção da cida-
dania, com a formação de cidadãos críticos, éticos, solidários, respei-
tosos, compreensivos e empáticos. Educação de qualidade também
é um caminho para a superação da pobreza porque, muitas vezes, a
desigualdade social tem como fundamento outra diferença. Podemos
citar como exemplo o caso da violência contra jovens negros e par-
dos, moradores das periferias das cidades, com baixa escolaridade,
em sua maioria, oriundos de famílias desestruturadas. Essa camada
da população não vive essa realidade apenas por questões econômi-
cas, mas, também, pelas características já citadas. Culturalmente, ao
longo do tempo, essas comunidades foram vistas como inferiores e
não merecedoras dos mesmos direitos e das mesmas oportunidades
que o restante da população tem acesso.
Sendo a cultura universal, adquirida, cumulativa, compartilhada,
é uma produção simbólica cujos elementos constituintes – valores,
hábitos, crenças, normas, leis, língua, símbolos, produção material e
intelectual – são partilhados entre seus membros e, dessa forma, re-
produzidos e internalizados. Nesse processo, uma abordagem mais
relativista pode significar uma mudança significativa na educação e
nos processos educativos.

A experiência de alteridade 63
ATIVIDADES
1. A educação sempre foi pensada como caminho para se combater
a intolerância e como uma das estratégias para se construir a ideia
de igualdade. Tendo a responsabilidade, entre outras coisas, de
ser um dos canais de transmissão da herança cultural de grupos
humanos, a escola possui um grande desafio: articular igualdade
e diferença, combatendo o etnocentrismo. Assim, qual o papel do
relativismo cultural nesse processo?

2. Observe a imagem e faça o que se pede.

Vjacheslav_Kozyrev/Shutterstock
Na atualidade, o que mais se espera é que a temática da diversidade
cultural faça parte da pauta de discussões de diferentes setores da
sociedade. Relacione a imagem com questões como alteridade,
discriminação e tolerância, e elabore um texto no qual esses
três termos apareçam.

3. Podemos compreender a alteridade e o pensar antropologicamente


como ferramentas para se viver em um mundo marcado pela
tolerância, pela aceitação do outro, pelo diálogo e pela inclusão.
Dessa forma, é possível combater o etnocentrismo. Como essa
atitude se relaciona com o relativismo cultural?

64 Antropologia Cultural
REFERÊNCIAS
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, DF: Ministério da Educação, 2018.
Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_
versaofinal_site.pdf. Acesso em: 28 jul. 2020
COSTA, C. Sociologia: Introdução à ciência da sociedade. 5. ed. São Paulo: Moderna,
2016.
GUIZZO, J. Introdução à sociologia. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2009.
KENSKI, V. M. Educação e tecnologias: O novo ritmo da informação. 8. ed. Campinas:
Papirus, 2012.
MARCONI, M. A. Antropologia: uma introdução. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2011.
MORAES, M. C. O paradigma educacional emergente. Campinas: Papirus, 1997.
MORAN, J. M. Ensino e aprendizagem inovadores com apoio de tecnologias. In:
MORAN, J. M.; MASETTO, M. T.; BEHRENS, M. A. Novas tecnologias e mediação
pedagógica. 21. ed. Campinas: Papirus, 2013.
ROCHA, E. P. G. O que é etnocentrismo. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1996.
WERNECK, H. O profissional da educação para o século XXI. 5. ed. Rio de Janeiro: Wak,
2014.

A experiência de alteridade 65
4
O multiculturalismo
Um dos temas mais relevantes na contemporaneidade é o
multiculturalismo, que precisa ser entendido para ser respeitado
e valorizado. Nesse sentido, especialmente em um país como o
Brasil, que teve sua formação original definida pela miscigenação,
a antropologia promove uma reflexão importante sobre as diferen-
ças culturais.
A proposta deste capítulo é analisar como se dão, na sociedade
atual, as relações étnico-raciais, as relações de gênero e o contato
com imigrantes, avaliando em que medida as desigualdades obser-
vadas se relacionam com práticas discriminatórias e preconceituo-
sas em relação aos diferentes. Com isso, espera-se compreender
melhor como e por que isso acontece e o que pode explicar a ex-
clusão de indivíduos e grupos devido às características da sua cor
de pele, sua identidade ou orientação sexual e sua origem.
É importante lembrar que, sobretudo após a industrialização
decorrente da Revolução Industrial, surgiram vários problemas
sociais que exigiram ações no sentido de inserir cada vez mais
indivíduos no sistema produtivo. Entretanto, isso ocorreu de
modo desigual e, quando se analisam as causas da desigualda-
de, observa-se que uma imensa camada da população não tem
oportunidade de se inserir dignamente nessa nova sociedade
urbano-industrial. Assim, inciou-se um rápido processo de exclu-
são social, cultural e econômica de indivíduos e grupos que pas-
sam a constituir algumas das chamadas minorias, aumentando a
desigualdade social.
Nesse cenário, a problematização das relações étnico-raciais e
das relações de gênero se torna o caminho para a superação da
desigualdade e para a justiça social. Por meio desse debate, é pos-
sível pensar em transformações sociais que permitam a igualdade
de oportunidades e direitos. Isso porque, quando se dialoga com
a antropologia, tem-se como base a discussão de temáticas que
se relacionam com o papel da cultura em uma sociedade. Dessa
forma, questões como a diversidade, as relações étnico-raciais e as
questões de gênero se colocam e devem ser debatidas.

66 Antropologia Cultural
4.1 As relações étnico-raciais e o racismo
Vídeo Tendo como objetivo a formação de indivíduos críticos, éticos e em-
páticos, a superação do racismo se torna o caminho para uma nova
sociedade. No entanto, isso não acontece sem a participação e o en-
volvimento de toda a sociedade – é válido lembrar que a antropologia
tem como objeto a sociedade e seus anseios, não apenas o indivíduo
e seus interesses. E de onde vem essa perspectiva? Da noção de que
nenhum ser humano é uma ilha. Certamente essa ideia lhe é familiar,
mas aqui deve ser retomada para reforçar que o ser humano é um ser
social, e isso implica na premissa de que o processo de socialização
deve acontecer durante toda a sua existência e que, sendo assim, não
acontece somente no seio da família ou da escola. De qualquer forma,
isso irá sempre se fundamentar no ideal de comunidade, de coletivida-
de. E mais: o propósito maior será sempre a construção da cidadania.

A antropologia, ao propor a discussão sobre a alteridade e a diversi-


dade, apresenta uma nova perspectiva para se pensar as relações hu-
manas; mostra que a vida em comunidade envolve inclusão, respeito
e tolerância, sem os quais se corre o risco de voltar à barbárie. Além
disso, em razão dessa percepção, aumenta a possibilidade de transfor-
mações sociais que os indivíduos são capazes de promover no sentido
de atender às necessidades sociais. E não parece haver outro caminho
para melhorar as condições de vida de todas as camadas de uma socie-
dade. Você concorda com isso?

O primeiro tema que será discutido aqui diz respeito à forma como
se dão as relações étnico-raciais no Brasil e o impacto do racismo, que
infelizmente ainda persiste no país. Considerando que tudo o que a
humanidade produz é cultura, as relações sociais se concretizam com
base naquilo que já foi validado pela própria sociedade como sendo o
que a constitui. A antropologia cultural se debruça sobre as diferentes
práticas culturais no sentido de buscar a lógica que as orienta e como
definem a identidade de um indivíduo, de um povo, de uma nação.
Dessa forma, quando volta o olhar para as relações étnico-raciais, a an-
tropologia busca compreender os significados dessas práticas e o im-
pacto que causam na maneira como se consolidam as relações sociais.

No estágio em que se encontra a antropologia, o termo etnia é utili-


zado para discutir as desigualdades causadas pelas diferenças relacio-

O multiculturalismo 67
nadas à cor de pele, tipo de cabelo, traços faciais, estrutura do crânio
etc. O termo raça continua sendo utilizado apenas para sinalizar que
todos os indivíduos pertencem a uma mesma raça – a raça humana –, e
não como já foi operacionalizado, com o objetivo de estratificar e classi-
ficar grupos de indivíduos. A herança cultural compartilhada no interior
Leitura de várias sociedades ainda carrega o legado desse tempo em que se
Para saber mais sobre firmaram as ideias racistas, o que traz como consequência a discrimi-
a história e o sofrimen- nação e o racismo.
to pelo qual o povo
curdo tem passado, leia O que caracteriza a etnia é o fato de indivíduos terem a mesma cul-
a reportagem Qual é o
maior povo sem país?, na tura, a mesma língua e poderem se perpetuar biologicamente ao longo
revista Mundo Estranho, de gerações tentando manter essas características. Podem ou não par-
que mostrará um pouco
dessa realidade tilhar um mesmo território e ter ou não um Estado organizado. Hoje,
Disponível em: https://super.abril. infelizmente, o mundo vive diversos conflitos e guerras por causa da
com.br/mundo-estranho/qual-e- intolerância de um grupo étnico em relação a outro. É o caso dos cur-
-o-maior-povo-sem-pais/. Acesso
em: 8 abr. 2020. dos, etnia que vive espalhada em países como Iraque, Irã e Síria, área
historicamente marcada por conflitos. Um povo que não tem direito a
Filme um território, que se debate entre os interesses desses países que não
querem reconhecer seu direito histórico a um território e que, por tudo
isso, são alvos constantes de violência, inclusive na forma de atos que
podem ser vistos como tentativas de genocídio.

E são vários os exemplos desse tipo de conflito, cuja motivação tem


um forte componente étnico-racial, chegando muitas vezes a concre-
tizar o racismo. Essa discriminação muitas vezes vê as diversidades
­étnica e cultural como problema, e não como riqueza. Isso pode levar a
guerras que, segundo Kuper (2015, p. 150),
O filme Tartarugas podem geralmente podem ser caracterizadas como: civis (provocadas
voar mostra o dia a dia
por grupos que querem assumir o poder, governar um país ou
de um acampamento
curdo na fronteira entre parte de seu território); étnicas (desencadeadas por grupos rivais
o Irã e o Iraque nos dias que querem eliminar o inimigo, levando a práticas de genocídio
que antecedem a invasão e à expulsão de grande parte da população de um país); e eco-
dos Estados Unidos, em
março de 2003, e revela
nômicas (causadas pela disputa de poder, com o objetivo de ex-
como a rotina bélica plorar riquezas como o gás natural, os diamantes e o petróleo).
muda a vida dos mais
jovens. Em que momento da história a diferença se tornou justificativa para
Direção: Bahman Ghobadi. Irã; mortes, guerras e sofrimento? Sofrimento que muitas vezes está pre-
Iraque: IFC Films, 2004. sente no dia a dia de indivíduos e grupos que não são vistos como de-
tentores de uma mesma e única natureza. A desigualdade étnica é uma
condição de várias sociedades ao redor do mundo, as quais, ao longo
do seu processo de formação, consideraram a diversidade étnica como

68 Antropologia Cultural
motivo para subjugar e dominar indivíduos. No Brasil, por exemplo,
essa desigualdade é evidente e tem suas bases no processo histórico
de formação do país, cuja economia, por mais de três séculos, foi fun-
damentada no escravismo. Negros africanos foram arrancados de sua
terra e trazidos ao Brasil para serem escravizados, constituindo mão de
obra para fomentar a atividade econômica do Brasil Colônia até 1888,
ano da abolição da escravidão.

No Brasil, ao contrário do que ocorreu em países como Estados Uni-


dos e África do Sul, o racismo acontece principalmente de forma vela-
da, mais dissimulada, o que não o torna menos danoso ao discriminar
e excluir cidadãos pela cor de sua pele. E, com a manutenção do racis-
mo, aumentam as desigualdades sociais no país.

Pensando na construção de sociedades mais justas, igualitárias e


respeitosas, livres de preconceitos, é imprescindível que se tenha como
foco o respeito aos direitos humanos e que, cada vez mais, a diversi-
dade étnico-racial-cultural seja valorizada. E isso não ocorrerá se cada
sociedade não questionar como e por que os preconceitos surgem e no
que se fundamentam.

Nesse sentido, as Ciências Sociais, a Sociologia e a Antropologia


tornam-se fundamentais para conhecer e questionar criticamente as
bases históricas, sociais, econômicas e culturais do processo de forma-
ção de cada sociedade.

Quando se pensa na importância da cultura – valores, crenças, atitu-


des, comportamentos etc. – de uma sociedade, é possível avaliar que isso
fundamenta a visão de mundo que esse grupo terá em relação a tudo,
incluindo-se aí sua percepção sobre diversidade e desigualdades sociais.

Ainda que existam leis para combater a discriminação e o precon-


ceito, isso não basta para mudar o comportamento de uma sociedade.
Isso se deve ao fato de que mudanças culturais podem ser lentas e de-
mandam a desconstrução de um sistema de práticas culturais conso-
lidadas ao longo de séculos – no caso do Brasil, séculos de escravismo
seguidos pela falta de políticas públicas para inserção da população
afrodescendente na sociedade após a abolição. São séculos durante
os quais as instituições responsáveis pela socialização dos indivíduos
(família, escola, Estado, Igreja) colaboraram com a reprodução de pre-
conceitos que promoveram atitudes negativas em relação àqueles indi-
víduos e grupos que constituem as minorias.

O multiculturalismo 69
Vale chamar a atenção para outra questão muito séria: o comporta-
mento de indivíduos e grupos que sofrem com os estereótipos e pre-
conceitos e que muitas vezes nem percebem que são vítimas. Tudo o
que vivenciam em seu dia a dia e nas interações sociais é resultado de
um pensamento coletivo que se impõe e que, não sendo questionado,
permanece, aprofundando as desigualdades.

Mas vamos aos fatos, mostrados por meio de números do Institu-


to Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cujas pesquisas permi-
tem avaliar o impacto da questão étnico-racial na inserção social e nas
condições de vida da população afrodescendente. Quando se avaliam
dados relativos à inserção e remuneração no mercado de trabalho,
acesso à educação e moradia e representação política ou violência, fica
nítida a desigualdade social por cor ou raça no país. Observe o infográ-
fico a seguir.
Figura 1
Dados do mercado de trabalho

MERCADO DE TRABALHO

Cargos gerenciais 2018 Taxa composta de subutilização(1) 2018

68,6% x 29,9% 18,8% 29,0%


ocupados ocupados por Branca Preta ou parda
por brancos pretos ou pardos

(1) Soma das populações subocupadas por


insuficiência de horas, desocupada e força
de trabalho potencial.

DISTRIBUIÇÃO DE RENDA E VIOLÊNCIA


CONDIÇÕES DE MORADIA
Pessoas abaixo das linhas de pobreza Taxa de homicídios, por 100 mil jovens(2)

2018 Branca Preta ou parda 2017 Total Homens Mulheres


Inferior a
US$ 5,50/dia 15,4% 32,9% Branca 34,0 63,5 5,2
Preta
Inferior a ou parda 98,5 185,0 10,1
US$ 1,90/dia 3,6% 8,8% (2) Pessoas de 15 a 29 anos de idade.

(Continua)

70 Antropologia Cultural
EDUCAÇÃO REPRESENTAÇÃO POLÍTICA

Taxa de analfabetismo(3) Deputados federais eleitos

2018 Total Urbano Rural 2018

Branca 3,9% 3,1% 11,0%


Preta
ou parda 9,1% 6,8% 20,7%
(3) Pessoas de 15 anos ou 24,4% 75,6%
mais de idade. Preta Branca e
ou parda outras

Fonte: IBGE, 2019.

É flagrante a diferença de acesso a direitos básicos como educação


e moradia entre a população branca e não branca – preta ou parda.
Trata-se de uma camada da população à qual não é permitido ocupar
cargos de direção nas empresas, que ganha menos, que tem menor
representatividade política e que está mais exposta à violência. E por
que isso ocorre? Você já se perguntou isso?

Ainda que tenha havido uma melhora desses indicadores nos úl-
timos anos – fruto de políticas com o objetivo de corrigir essa desi-
gualdade histórica –, ainda há muito o que se fazer para diminuir a
desvantagem da população preta, sempre mais vulnerável, em relação
à parcela branca de brasileiros.

A história precisa ser resgatada no início da ocupação estrangeira


das terras brasileiras. Indígenas, portugueses e africanos são os for-
madores originais do povo brasileiro e o curioso é que cada um de-
les era formado por diferentes etnias. Parece, no entanto, que isso foi
esquecido, ou que deve ser esquecido. Milhares de indivíduos dessas
três matrizes foram se misturando ao longo dos séculos e formando a
essência do brasileiro. Em que momento, então, o país se tornou ra-
cista? Quando viu a diversidade étnica como algo que não favorecia o
progresso e o desenvolvimento do país.

Hoje, um dos exemplos da visão que os colonizadores, que deram


origem às elites político-econômicas do país, tiveram sobre povos nati-
vos é a forma como a questão indígena é tratada pelos governantes. É
um dos mais graves problemas sociais do Brasil, e, ao mesmo tempo,

O multiculturalismo 71
parece que toda essa população é invisível, não tendo, muitas vezes,
seus direitos básicos garantidos, sendo alvo de violência, discriminação
e preconceito.

A influência de cada um desses grupos é marcante na cultura bra-


sileira, mas isso não impede que haja desigualdade étnica. Vale dizer
que, ao contrário do que muitas pessoas pensam, os negros resistiram
muito à escravidão, e isso deu origem aos quilombos, comunidades
que surgiram com a fuga de escravos e se desenvolveram mantendo ao
máximo os traços culturais originais das etnias africanas.

Com o fim da escravidão, os ex-escravizados foram abandonados à


própria sorte, sem que o governo brasileiro tivesse qualquer preocupa-
ção com seu destino ou com como iriam viver dali para a frente. Esse
descaso custa caro ao país até hoje, tal como mostrado no infográfico
anterior, e colabora para colocar um ponto final no mito da democracia
racial brasileira, que, desde o final do século XIX, alimenta a ideia de
que não existe racismo no Brasil. Guizzo (2009, p. 306) assim define de-
mocracia racial: “teoria segundo a qual todos os grupos étnicos de uma
sociedade vivem em perfeita harmonia [no Brasil] foi difundida pelas
elites a fim de esconder a situação de desigualdade social que atinge os
afrodescendentes e os indígenas”.

Em meio à proliferação de ideias racistas no país, consolida-se a teo-


ria que pregava a superioridade da raça branca em relação às demais.
Não lhe parece um pouco absurdo que isso tenha ido em frente em
um país tão marcado pela diversidade étnica? A maioria dos intelec-
tuais que compactuavam desse ideário temia que a mistura de raças
degenerasse a população, impedindo o progresso do país e, por esse
motivo, essas pessoas condenavam a mestiçagem.

De acordo com Kuper (2015, p. 313):


Ao longo da história brasileira, essas explicações sem base cien-
tífica foram superadas, passando-se, então, a divulgar a ideia de
que o Brasil teria escapado do racismo e da discriminação ra-
cial que ocorria em outros países, ou seja, haveria no país uma
“democracia racial”. Essa expressão é do sociólogo francês Roger
Bastide (1898-1974), que aqui viveu por mais de uma década, e
teria sido confirmada com base nos pensamentos de Gilberto
Freyre e de Sérgio Buarque de Holanda.

72 Antropologia Cultural
A ideia da democracia racial atendeu, por muito tempo, ao projeto
desenvolvimentista das elites, mas, a partir do surgimento do movimen-
to negro nos Estados Unidos nos anos 1960, isso começa a se esvaziar e
fica inegável a prática velada, mas intensa, do racismo no Brasil.

Para se ter uma ideia de como se deu a mudança no cenário de lutas


contra a discriminação de origem étnico-racial, observe a linha do tempo
a seguir, que mostra alguns dos fatos mais marcantes desse processo.
Figura 2
Linha do tempo dos marcos contra a discriminação

1888
Abolição da escravidão no Brasil.
1948
Institucionalização da segregação racial na África
do Sul – o sistema de apartheid.

1950
Declaração das Raças da Unesco. 1951
Promulgação da Lei Federal n. 1.390/1951,
­conhecida como Lei Afonso Arinos, que tornou o
1955 racismo uma contravenção penal do Brasil.

Rosa Parks, negra norte-americana, rebela-se


contra a lei de segregação racial no estado do
Alabama, nos Estados Unidos, marcando o iní-
cio da luta pelos direitos civis naquele país.
1963
Cerca de 250 mil manifestantes reúnem-se em
Washington, capital dos Estados Unidos, para a
1965 marcha pelos direitos civis.

O sociólogo brasileiro Florestan Fernandes


­ ublica uma das suas obras mais importantes
p
– A integração no negro na sociedade de classes.
1988
A nova Constituição Brasileira reconhece a diver-

1989 sidade cultural do país.

Promulgada a Lei n. 7.716/1989, que torna o


racismo crime inafiançável no Brasil.
1994
Nelson Mandela é eleito presidente da África do
Sul, acabando com o apartheid.

(Continua)

O multiculturalismo 73
2001
Conferência Mundial da ONU contra o racismo, a
discriminação racial, a xenofobia e intolerâncias
realizada em Durban, na África do Sul, condenan-
do a discriminação e a intolerância e aprovando 2002
um programa de ação para combater o racismo
em nível internacional, nacional e regional. Promulgada a Lei Federal n. 10.558/2002 no
Brasil, que cria o Programa Diversidade na Univer-
sidade, no âmbito do Ministério da Educação.

2003 2003
Promulgada a Lei Federal n. 10.639/2003, que A Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ)
torna obrigatório o ensino de história da cultura adota o sistema de cotas raciais e sociais com a
afro-brasileira e africana nas escolas de Educação aprovação da Lei Estadual n. 4151/2003.
Básica do Brasil.

2004
A Universidade de Brasília (UnB) aprova a
adoção de cotas para negros, indígenas e
­afrodescendentes. 2012
O Supremo Tribunal Federal confirma a constitu-
cionalidade da Lei de Cotas Raciais no Brasil.

Fonte: Adaptado de Silva, 2018, p. 110-111.

Além disso, é necessário reforçar que a diversidade cultural não se


restringe à questão étnica, mas diz respeito também a outras formas
de discriminação, tais como aquelas relacionadas à questão de gênero
e à xenofobia, que serão discutidas a seguir.

Artigo

http://periodicos.ufes.br/simbiotica/article/view/10324

Para conhecer mais as teorias raciais que contribuíram para a construção do


racismo no Brasil, leia o artigo Apenas uma questão de cor? As teorias raciais
dos séculos XIX e XX, de Pollyanna Rangel, publicado na revista Simbiótica,
v. 1, n. 2, de 2015..

Acesso em: 8 abr. 2020.

74 Antropologia Cultural
4.2 As relações de gênero e a
Vídeo antropologia cultural
A desigualdade de gênero, a homofobia e a discriminação baseada
em critérios de orientação sexual estão entre as injustiças sociais e as
formas de violência que persistem na maioria das sociedades, inclusi-
ve na brasileira. Em sociedades mais ou menos modernizadas, urba-
nizadas e industrializadas, a desigualdade de gênero ainda se faz
presente, frequentemente impedindo milhões de indivíduos – homens
e mulheres – de terem seus direitos básicos respeitados.

Quando se fala em questões de gênero, não se


Importante
está falando apenas da condição feminina, ainda
De acordo com Silva (2018,
que essa seja a mais discutida. Há de se chamar a p. 343, grifo nosso), “Andro-
atenção, também, para os indivíduos que têm outra centrismo é a atitude de
orientação ou identidade de gênero, questões rela- supervalorizar o masculino
e tudo o que diz respeito à
cionadas ao preconceito de que são vítimas homos- experiência masculina como
sexuais e transgêneros. sendo o princípio universal e
normativo da humanidade,
Para começar a análise desse tema, é preciso isto é, ver como ‘natural’ a
esclarecer que, em uma sociedade patriarcal como hegemonia e a dominação
masculinas sobre o restante da
a brasileira – isto é, uma sociedade cuja base é a sociedade”.
dominação masculina –, é natural que se tenha a
prevalência do androcentrismo.

No Brasil, como em outros países, consolidou-se a ideia de que


as atividades exercidas pelos homens seriam mais importantes para
garantir a sobrevivência do grupo, enquanto o que a mulher fazia, es-
pecialmente as atividades relacionadas à domesticidade, era desvalo-
rizado. Fica estabelecida, assim, uma relação de poder absolutamente
vertical, fazendo com que as mulheres sofram discriminação apenas
pelo fato de serem mulheres. Isso faz com que elas r­ epresentem uma
das minorias que precisa lutar por igualdade e equidade para garantir
seus direitos. Culturalmente, mulheres são vistas como inferiores aos
homens; o homem é visto como o provedor do lar, e da mulher espe-
ra-se total subserviência e submissão.

Essa cultura machista acabou se refletindo em diferentes instân-


cias da vida social: na família, no mercado de trabalho, na política e

O multiculturalismo 75
em outras áreas nas quais se observa não haver ainda uma repre-
sentatividade feminina equivalente à proporção de mulheres na po-
pulação brasileira. Com relação a salários de homens e mulheres no
exercício das mesmas funções ou atividades, segundo dados do IBGE,
as mulheres ganham, em média, 20,5% menos do que os homens,
ainda que tenha havido uma queda nessa desigualdade salarial entre
2012 e 2018 (OLIVEIRA, 2019).

A análise antropológica tem um papel importante por problemati-


zar os aspectos culturais fundamentadores dessas disparidades, que
têm origem em preconceitos. Nas últimas décadas, essa situação vem
mudando – mais por conta dos movimentos sociais do que por ações
do poder público.

O sexismo se tornou item importante nas pautas de discussão de


vários segmentos à medida que a sociedade foi adquirindo consciên-
cia do papel que essa cultura desempenha quando se analisam, por
exemplo, indicadores como a violência contra a mulher. Trata-se de
justificar atitudes e comportamentos preconceituosos com base no
gênero visando reforçar a ideia de que algumas atividades, a presen-
ça em determinados espaços e as posições sociais seriam vetadas às
mulheres. Um bom exemplo disso é o futebol, atividade na qual as
mulheres ainda não recebem o devido reconhecimento, ainda que
haja exceções, como é o caso da jogadora Marta Vieira da Silva, atleta
brasileira que foi eleita seis vezes a melhor jogadora do mundo. Isso,
entretanto, não foi suficiente para que ela fosse enaltecida na mesma
proporção ou recebesse patrocínios à altura daqueles recebidos por
outros atletas homens ao serem eleitos pela Federação Internacional
de Futebol Associado (FIFA) nessa mesma categoria.

Outro ponto que deve ser destacado quando se fala em condição


feminina pode ser visto no Atlas da Violência, que fornece dados im-
portantes sobre essa área. Os dados mostram que houve, em 2017,
um crescimento dos homicídios de mulheres no Brasil – aproxima-
damente 13 assassinatos por dia, totalizando 4.936 por ano. O au-
mento dos feminicídios (crescimento de 30,7% entre 2007 e 2017) tem
chamado a atenção da sociedade, sobretudo no que diz respeito à
cobrança por políticas públicas que amparem as mulheres vítimas de
violência (IPEA, 2019). Observe o gráfico a seguir.

76 Antropologia Cultural
Gráfico 1
Taxa de homicídios por 100 mil mulheres nas UFs (2017)

Roraima
Rio Grande do Norte
Acre
Ceará
Goiás
Pará
Espírito Santo
Rondônia
Amapá
Sergipe
Alagoas
Pernambuco
Bahia
Amazonas
Mato Grosso
Rio Grande do Sul
Tocantins
Brasil
Rio de Janeiro
Mato Grosso do Sul
Paraná
Paraíba
Minas Gerais
Maranhão
Piauí
Santa Catarina
Distrito Federal
São Paulo
0,0 2,0 4,0 6,0 8,0 10,0 12,0

Fonte: IBGE/Diretoria de Pesquisas, retirado de IPEA, 2019, p. 38.

Os estados do Norte e do Nordeste do país apresentam números


expressivos de feminicídio, o que pode ser explicado pela forte per-
sistência do patriarcado e do machismo ainda hoje nesses locais. Esse
documento sinaliza outra questão que deve ser considerada quando
se analisa a condição da mulher na sociedade brasileira e a violência: a
desigualdade racial. Isso diz respeito ao fato de que mais mulheres ne-
gras morrem assassinadas em relação às mulheres não negras – 66%
de todas as mulheres assassinadas no país em 2017.

O multiculturalismo 77
Gráfico 2
Evolução da taxa de homicídios femininos no Brasil, por raça/cor (2007-2017)

6,0
5,6 5,6
5,5 5,5
5,3 5,4
5,2 5,3
5,0 4,9
4,6
4,3
4,0

3,3 3,2 3,3 3,2


3,2 3,2 3,2
3,0 3,0 3,1 3,1 3,1

2,0

1,0

0,0
2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017
Negras Não Negras

Fonte: IBGE/Diretoria de Pesquisas, retirado de IPEA, 2019, p. 39.


Além de tudo isso – ou talvez também por causa disso –, as repre-
sentações que a sociedade faz da mulher, sedimentadas na cultura
machista, estão muito marcadas pela visão dela como objeto, especial-
mente sexual. Na publicidade, por exemplo, não faltam exemplifica-
ções disso. Com certeza você deve se recordar de algum comercial em
que a mulher aparece de maneira estereotipada e sexualmente obje-
tificada para vender de cerveja a perfume – isso quase sempre em um
cenário no qual o homem é o centro. Outro aspecto relacionado ao
sexismo é o assédio sexual, que tem sido fortemente problematizado e
combatido no mundo e na sociedade brasileira, que começa a não tole-
rar mais esse tipo de comportamento. Lembrou-se de algum exemplo?
Nos anos 1970, iniciam-se os estudos sobre as relações de gêne-
ro, que hoje estão consolidados e apresentam uma ampla gama de
temas que se tronaram objeto de inúmeras pesquisas. Na antropolo-
gia, ao contrário da história (que só a partir dos anos 1940 começa a
contemplar os estudos sobre o cotidiano e as mulheres), por exemplo,
a temática feminina já se fazia presente bem antes disso por meio das
pesquisas de antropólogos como Bronislaw Malinowski (nos anos 1930)
e Margaret Mead (entre os anos de 1930 e 1940), que se dedicaram a
investigar como aconteciam as relações entre homens e mulheres e os
papéis desempenhados por eles em diferentes sociedades.

78 Antropologia Cultural
O cotidiano das mulheres e suas lutas estimulam a reflexão de dife-
rentes pesquisadores de várias áreas do conhecimento, especialmente
com o surgimento do movimento feminista nos Estados Unidos, duran-
te os anos 1960 – momento a partir do qual as mulheres não deixaram
mais de lutar por seus direitos e pelo fim da discriminação, do precon-
ceito e da violência.
Filme
Temas relacionados à questão de gênero, como sexualidade e re-
produção, geram estudos sobre vários outros assuntos – por exemplo,
os diferentes tipos de relações de gênero; a violência contra as mulhe-
res; homens e a comunidade LGBTTTQ; a influência da religião nas rela-
ções de gênero; classe social e etnia como marcadores das relações de
gênero, entre outros. Em paralelo, especialmente na antropologia, para
que se possa compreender melhor os desdobramentos das discussões
em torno da questão de gênero, estabeleceu-se também a problema-
tização das masculinidades, isto é, das representações que envolvem a
forma como homens se colocam e se veem na sociedade. Para saber mais sobre
um dos aspectos da luta
A partir dos anos 1990, pesquisas sobre as identidades masculinas, a das mulheres na história,
assista ao filme As sufra-
heterossexualidade como normativa social, a questão da paternidade, gistas, que trata da histó-
da reprodução, da sexualidade e do eventual novo modelo de homem ria real da luta feminina
pelo direito ao voto.
e de masculinidade se difundem e começam a colocar em xeque ati-
Direção: Sarah Gravon. Inglaterra:
tudes, comportamentos e práticas culturais antes consolidadas nas
Pathé; Film4, Ruby Films, 2015.
sociedades, inclusive no Brasil. Isso tudo acontece no contexto de um
campo de pesquisa multidisciplinar, tendo a antropologia um lugar de
destaque ao tomar a cultura patriarcal e machista como foco. Descons-
truir padrões de comportamento cristalizados na sociedade se torna
uma das formas de promover a mudança de paradigma sobre o tema
das relações de gênero.

Segundo Grossi (2010, p. 294), o conceito de gênero


foi rapidamente incorporado no campo das Ciências Sociais no
Brasil no decorrer dos anos 1980 e se tornou uma c­ ategoria-chave
também na formação de políticas públicas, destinadas em sua
maioria a mulheres. O uso amplamente disseminado do conceito
de gênero possibilitou o desenvolvimento, nas últimas décadas
no Brasil, de estudos que se debruçaram sobre as origens so-
ciais das diferenças entre homens de mulheres e sobre a forma
como cada cultura transforma tais diferenças em desigualdade,
tema caro ao movimento feminista contemporâneo, do qual ele
se origina.

O multiculturalismo 79
Não é possível, entretanto, discutir gênero sem contemplar um con-
ceito correlato a esse tema: o conceito de orientação sexual, que
reivindicado pelo movimento homossexual brasileiro em contra-
ponto ao de opção sexual, tem permitido aos/às pesquisadores/
as das temáticas relativas à sexualidade distinguir diferentes
formas que o desejo sexual toma em articulação com as identi-
dades de gênero: hetero, homo ou bissexualmente orientados.
(GROSSI, 2010, p. 294-295)

A questão de gênero é mais complexa do que parecia quando co-


meçaram a discussão e os estudos em torno desse tema. Observe na
ilustração a seguir como os indivíduos são classificados no que diz res-
peito a esse aspecto. Há classificações no que se refere a sexo biológico,
identidade de gênero, expressão de gênero e orientação sexual.
Figura 3
Classificações de indivíduos

SEXO BIOLÓGICO
É sua genitália e combinação de cromossomos

macho intersexual fêmea

IDENTIDADE DE GÊNERO*
É a maneira com a qual você se enxerga e se identifica

homem cisgênero mulher cisgênero


homem transgênero mulher transgênero

EXPRESSÃO DE GÊNERO
É a forma e comportamento que você expressa seu gênero

masculina não binária feminina

*TRANSGÊNERO:
identidade de gênero
difere do sexo biológico
ORIENTAÇÃO SEXUAL *CISGÊNERO:
É por quem você sente atração identidade de gênero
não difere de sexo biológico
homossexual bissexual heterossexual

Fonte: Alencar, 2018.


80 Antropologia Cultural
No Brasil, a discussão sobre a temática de gênero na antropologia
Desafio
está ligada ao desenvolvimento do movimento feminista no país, nos
Você já havia pensado que a
anos 1970, unindo gênero e sexualidade em um mesmo campo de questão de gênero envolve
pesquisa. Ao mesmo tempo, amplia-se a pesquisa antropológica em tantas variáveis?
torno do movimento e das reivindicações da comunidade LGBTTT (lés-
bicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros), sigla que
já recebeu também a letra Q, para pontuar a incorporação das teorias
queer (que pesquisam sexualidades não hegemônicas) a esse campo
de estudos.

De acordo com Louro (2008, p. 38), “queer pode ser traduzido por
estranho, talvez ridículo, excêntrico, raro, extraordinário. Mas a expres-
são também se constitui na forma pejorativa com que são designados
homens e mulheres homossexuais”. A pessoa de maior destaque dessa
teoria é a americana Judith Butler, que, com suas obras, a partir do final
dos anos 1990, dá voz a uma parte do movimento homossexual que
busca a contestação e a oposição a qualquer tipo de normalização, so-
bretudo a “heteronormatividade compulsória da sociedade” (­LOURO,
2008, p. 38). Segundo a teoria, o movimento homossexual quer contes-
tar, transgredir e questionar, não apenas ser tolerado por uma socieda-
de na qual a heterossexualidade é o padrão aceito.

Ao afirmar que esse padrão é construído, fala-se em normas que


estruturam práticas culturais relativas também às relações de gênero
que, para se consolidarem, precisam ser repetidamente reforçadas.
Afinal, é preciso compreender que
a sexualidade humana é uma dimensão da experiência social
permeada por inumeráveis questões. Através dela, todo um uni-
verso de desejos, crenças e valores são articulados, definindo um
amplo espectro do que entendemos como sendo nossa identida-
de. Todavia, [...] esse jogo não se faz à margem da história: muito
pelo contrário, ele se fabrica no intercâmbio de significados e
contextos que ocorre entre o “eu” e o “outro”, o “eu” e o “nós”, o
‘nós’ e o ‘eles’, enfim, acontece na troca reinterpretativa de signi-
ficados e interações sociais e institucionais que criam posições
sociais e, consequentemente, posições identitárias e políticas.
(PRADO; MACHADO, 2012, p. 7)

Aqui se percebe a importância da antropologia cultural para ques-


tionar esses padrões e contribuir para a superação da discriminação e
da violência a que estão sujeitos indivíduos que compõem essas par-

O multiculturalismo 81
celas da sociedade e que encontram diversos obstáculos no proces-
so de construção da sua cidadania. É importante considerar, também,
que tudo isso impacta as mudanças observadas na configuração das
famílias na contemporaneidade. Embora ainda prevaleça o modelo
nuclear (pai, mãe e filhos), “surgem versões inéditas de conjugalidade”
(GOLDEMBERG, 2004, p. 79), com novos arranjos familiares que con-
templam as diferentes relações parentais homoafetivas.

4.3 A questão da imigração e a


Vídeo antropologia cultural
Não seria prudente encerrar a discussão sobre multiculturalismo
sem trazer outro tema que é um dos mais relevantes na atualidade – a
questão da imigração –, para refletir sobre qual seria o papel da antro-
pologia nessa questão. Isso porque ainda se está falando de identidade
étnica e o que ela implica.

Considerando o cenário da contemporaneidade, mundo afora se


observa o aumento das manifestações de rejeição a outro tipo de “di-
ferente”: o imigrante. Trata-se daquele indivíduo “que não é daqui”, o
“outro” que veio de fora, que entra em conflito com o “eu” local. Para a
antropologia cultural, essa discussão passa pela percepção de que não
existe identidade fora da interação social. No início do capítulo, chama-
mos a atenção para o fato de que o ser humano é um ser social, e não
uma ilha. O que isso significaria quando se fala em identidade? O que
você acha? Como você sabe que você é você? Como sabe que é brasilei-
ro? Ou, se for o caso, que não é brasileiro? Você sabe disso porque se
viu diferente de outro indivíduo – aquele que não é daqui.

Isso mostra que a identidade é individual, mas, ao mesmo tempo,


coletiva, o que leva a uma estrada que tem via de mão dupla: eu sei
quem sou porque sei também quem não sou. Antes mesmo de nascer,
o indivíduo já é enquadrado em uma categoria (em várias, na verdade).
Como vimos nas seções anteriores, uma pessoa pode ser classificada
de acordo com sua origem étnica, seu gênero, sua orientação sexual
e também por sua nacionalidade. Em relação à etnia, por exemplo, o
indivíduo pode se autodefinir branco, pardo ou negro, isto é, ­define-se
como pertencente a determinado grupo. Ao fazer isso, automatica-
mente se vê como não pertencente a outros grupos.

82 Antropologia Cultural
É importante destacar que pertencer a determinada etnia é mais
do que apenas considerar a cor da pele ou outros traços físicos; diz
respeito a compartilhar uma mesma cultura e uma mesma origem na-
cional. Talvez os exemplos mais conhecidos sejam os dos judeus e dos Figura 4
ciganos, ambos historicamente segregados, perseguidos e humilhados Acampamento cigano
em diferentes momentos da história.

Em diferentes lugares do mundo, é


muito comum as pessoas reagirem com
hostilidade quando veem uma cena como
a apresentada na imagem ao lado, que
mostra parte de um acampamento cigano.
São muitos os estereótipos construídos
em torno dessa cultura que, como todo es-
tereótipo, não se sustentam diante de uma
análise que não seja etnocêntrica. Isso sig-
nifica dizer que, para entender esse povo,
é necessário buscar a lógica que rege sua
visão de mundo.

O sentimento de identidade se forma


com base no compartilhamento de uma
mesma cultura e também da sensação de
Yavuz Sariyildiz/Shutterstock
pertencimento ao grupo. Assim, quando
se olha para a história e para as pesquisas realizadas por antropólogos
em várias regiões do mundo, com diferentes grupos étnicos, o que se
percebe é que alguns grupos sofreram muito em busca de uma terra
para se instalar e de condições para garantir sua subsistência. Nem
todos conseguiram as duas coisas simultaneamente, o que os obrigou
a um constante movimento, como é o caso dos judeus antes da criação
do estado de Israel, em 1948. Até aquele momento, o povo judeu so-
freu perseguições e teve constantes deslocamentos em massa.

A busca por melhores condições de vida é um dos fatores mais de-


terminantes para explicar a razão pela qual um grupo abandona seu
local de origem e migra para outra região ou país. A penúria e a hu-
milhação a que muitas vezes se é submetido, bem como o sofrimento
decorrente da saudade de casa e, muitas vezes, da família que ficou
para trás acabam estreitando laços identitários. Isso aproxima esses
indivíduos e reforça o sentimento de pertencimento. Tentar superar

O multiculturalismo 83
as inúmeras dificuldades que enfrentam ao chegar a um novo territó-
rio se torna uma tarefa menos penosa quando o grupo étnico se une.
Manter, por exemplo, a língua ou alguma prática cultural relacionada à
alimentação se transforma em resistência para tentar manter sua cul-
tura original.

Na atualidade, principalmente em razão do fenômeno da globali-


zação, de algumas guerras e conflitos decorrentes da ação de grupos
terroristas e das mudanças climáticas, contingentes imensos de popu-
lações oriundas dos locais atingidos por esses acontecimentos migram
em busca de segurança e novas perspectivas de vida. Fugir de uma
guerra pode significar deixar toda uma vida para trás, e isso implica o
indivíduo aceitar o fato de que, a partir desse momento, será um “es-
trangeiro”. E quais são os desdobramentos desse novo status? Você já
teve vontade de ir embora do Brasil e viver em outro país? Por quê? De
onde veio esse desejo?

Será que, quando um indivíduo migra, ele tem noção de que pos-
sivelmente será discriminado pelos nativos do lugar no qual ele será
sempre um estrangeiro e que, por isso, poderá ser alvo de intolerância?
Para Costa (2016, p. 412), discriminar significa ver o
diferente como rival ou hostil, contra o qual se desenvolve um
sentimento de rejeição. Isso acontece pela criação de estereóti-
pos, ou seja, de uma visão generalizante e simplificada do que é
o diferente, definindo-o por meio de estigmas socialmente acei-
tos e compartilhados. Os estereótipos ganham então rigidez e o
diferente passa a ser evitado e rechaçado.

É o caso, por exemplo, de nativos de um país que começa a receber


imigrantes e passam a hostilizá-los pela certeza de que essas pessoas
irão “roubar” seus empregos. Isso, na maioria das vezes, não ocorre de-
vido às inúmeras dificuldades enfrentadas pelos imigrantes, o que não
impede o sentimento de permanecer. A esse sentimento de rejeição ao
estrangeiro se dá o nome de xenofobia.

Na atualidade, em vários lugares do mundo, milhões de pessoas


abandonam seus países de origem e tentam ser recebidos em outros
lugares. São migrações em massa como a que aconteceu em consequên-
cia de anos de guerra na Síria. O país perdeu mais da metade da sua
população, que deixou suas casas para tentar sobreviver à extrema vio-

84 Antropologia Cultural
lência praticada pelos dois lados do conflito: governo e rebeldes, inter- Figura 5
mediados pela ação de um grupo terrorista – o chamado Estado Islâmico. Refugiados sírios

Imagens como a figura ao lado corre-


ram o mundo e chamaram ­atenção para o
imenso deslocamento de pessoas que es-
tava acontecendo e para o impacto dessa
migração, especialmente no que se refere
às crianças, muitas delas já órfãs dessa
guerra. Entre aqueles que deixaram a Síria
e os que se deslocaram dentro do país, há
uma estimativa da Organização das Nações
Unidas (ONU, 2018) de que mais de 12 mi-
lhões de pessoas tenham abandonado seu
local de origem.

Você consegue imaginar a vida em um


campo de refugiados? Trata-se de campos
nos quais passam a viver os indivíduos que quetions123/Shutterstock
não conseguem se instalar de uma forma
mais digna em algum país ou para onde são levados compulsoria-
mente. Para sobreviver, essas pessoas buscam mais do que água,
comida e refúgio. Ao buscar manter sua língua, crenças, costumes e
valores, tentam preservar sua identidade cultural.

Para a antropologia, a alteridade é um valor em si mesmo e todo o


esforço da análise antropológica é para demonstrar que a percepção
do “outro” é o que aproxima os indivíduos independentemente de
suas diferenças. Isso ocorre porque o processo civilizatório da huma-
nidade se deu a partir da compreensão de que todas as culturas têm
valor e que não há uma escala que determine que uma é superior à
outra. Essa visão etnocêntrica há muito foi superada em termos teó-
ricos, mas ainda precisa ser superada na prática.

A igualdade de tratamento precisa se concretizar para que atitu-


des discriminatórias deixem de existir. E isso acontecerá quando ne-
nhuma característica – étnica, física, sexual, religiosa – for utilizada
para segregar, afastar, hostilizar ou distinguir indivíduos, grupos ou
instituições. Dessa forma, as relações sociais deixarão de ser marca-
das por exclusão ou estigmatização. Partindo dessa premissa e da va-

O multiculturalismo 85
lorização do multiculturalismo, o deslocamento geográfico não pode
ser um fator gerador de conflitos.

Para Silva (2018, p. 126),


o conceito de multiculturalismo surge nas sociedades contem-
porâneas como um meio de combater, por um lado, a ideia de
homogeneidade cultural fundamentada no eurocentrismo, isto
é, na visão de superioridade dos povos colonizadores europeus,
e, por outro, as desigualdades sociais e as diversas formas de
racismo, preconceito e discriminação social. A ideia de homoge-
neidade cultural afirma que a cultura, o modo de vida e visão de
mundo dos europeus são universais e únicos, subordinando os
dos demais povos. Disseminada mundialmente, essa concepção
tem um papel central no desenvolvimento da xenofobia.

É quase inacreditável que essa visão de povos dominantes sobre os


demais ainda resista. Como visto, discriminação, racismo e xenofobia
têm uma origem comum, que é a não aceitação da diversidade e das
inúmeras diferenças que constituem a humanidade. Defender mino-
rias, marginalizados e excluídos é o foco da antropologia quando toma
o conceito de multiculturalismo para analisar atitudes de intolerância
e rejeição do “outro”. A questão principal não são as diferenças em si
mesmas, mas as discussões sobre a forma como elas são tratadas.

Para a antropologia cultural, o direito de ser diferente e de existir é


a base da atitude antropológica. Reconhecer as diferenças e valorizar a
diversidade é o foco dessa ciência, que vê a construção da(s) identida-
de(s) como um processo social e historicamente definido.

Assim, quando se discute a xenofobia, é preciso considerar que


discriminações de origem étnica fazem parte do momento pelo qual a
humanidade está passando, com uma intensidade nunca vista. E como
lidar com isso? Ampliando-se cada vez mais o campo de análise da an-
tropologia. De acordo com Sacristán (2011, p. 18), é preciso
ensinar a condição humana para que todos se reconheçam em
sua humanidade comum e, ao mesmo tempo, reconhecer a di-
versidade cultural inerente à humanidade. [ensinando] a com-
preensão, tanto interpessoal e intergrupal como planetária,
mediante a abertura empática aos demais e a tolerância às ideias
e formas diferentes, desde que não atentem contra a dignidade
humana. A ética do gênero humano é válida para todos.

Minorias étnicas, sobretudo quando se constituem também em imi-


grantes, não podem ser vítimas de tratamento desigual, discriminação,

86 Antropologia Cultural
expulsão, escravização, segregação ou até mesmo genocídio – fatos já
observados ao longo da história, em diferentes lugares do mundo. A
tendência da humanidade de ver o seu oposto como problema e de
não valorizar o pluralismo é o que tem causado tantos conflitos. Tole-
rância parece ser a melhor maneira de se construir relações mais sau-
dáveis, fundamentadas no respeito e na liberdade individual e coletiva.
Para que isso se concretize, nenhuma cultura ou povo pode ser visto
como superior em relação a(o) outra(o).

As diferenças sempre existiram e a questão ainda é como equacio-


nar a igualdade, as diferenças e a garantia do respeito aos direitos de
todos. Como afirma Moreira (1999, p. 85), “vivemos num mundo ines-
capavelmente multicultural”. Diferenças sempre existirão, mas resta
saber como isso poderá gerar menos embates.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A antropologia cultural traz o tema do multiculturalismo à discussão
por sua representatividade para a compreensão do valor das diferenças
e da sua importância para a superação do etnocentrismo. Esse conceito
tem um papel importante na construção de relações mais empáticas e
acolhedoras, independentemente da diversidade.
Questões relacionadas às diferenças étnico-raciais, de gênero ou de
origem e nacionalidade não podem atentar contra a dignidade huma-
na, nem suprimir o acesso a direitos básicos de indivíduos ou grupos.
Ao reproduzir práticas discriminatórias e excludentes, instituições sociais
colaboram para cristalizar preconceitos, atitudes violentas e exclusão, es-
pecialmente das minorias.
A constituição de sociedades mais justas e igualitárias passa pela con-
solidação da democracia, considerando-se que somente com liberdade
e transparência isso é possível. Garantir a equidade de oportunidades é
outro objetivo, e sem isso a desigualdade social persistirá. Não se constrói
uma democracia sem o reconhecimento da pluralidade cultural.
A valorização das diferenças, a busca pelo diálogo e a criticidade para
questionar a intolerância são o contraponto à persistência da discrimina-
ção e de tantos preconceitos que causam a exclusão de segmentos da
população que sofrem com práticas etnocêntricas e, muitas vezes, violen-
tas. A transformação social acontecerá a partir da ação de cada um e da
capacidade de todos em reconhecer, valorizar e enaltecer as diferenças.

O multiculturalismo 87
ATIVIDADES
1. Observe a figura a seguir e reflita: se a população brasileira tem essa
distribuição, o que justificaria a desigualdade baseada em diferenças
étnico-raciais?

Se o Brasil tivesse 100 pessoas, seríamos*...

45 BRANCOS 45 PARDOS

9 PRETOS 1 amarelo
ou indígena
Ilustração simplificada para fins pedagógicos Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílios
*Informação fornecida por autodeclaração (PNAD) 2015

Fonte: IBGE, 2015 apud IBGE, 2020.

2. Quando se discutem as relações de gênero, um aspecto que sempre


vem à tona é a questão dos múltiplos papéis desempenhados pelas
mulheres e as várias atividades que elas precisam realizar. Estando ou
não no mercado de trabalho, a mulher ainda é a grande responsável
pelos cuidados com a casa e com a família. Observe a ilustração.

88 Antropologia Cultural
tock
ers
utth
/S
V.A
D.
Relacione a ilustração com a frase: Para o empoderamento feminino
se concretizar, “precisamos combater os estereótipos que limitam
homens e mulheres tanto no ambiente de trabalho como fora dele”
(ENVOLVERDE, 2017).

3. De acordo com o que estudou no capítulo, qual é a contribuição da


antropologia cultural para se pensar a xenofobia?

REFERÊNCIAS
ALENCAR, P. Entenda a diferença entre sexo biológico, identidade de gênero, expressão de
gênero e orientação sexual. Psicólogo Paulo Alencar, 19 mar. 2018. Disponível em: https://
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90 Antropologia Cultural
5
A antropologia cultural
e os símbolos
A vida em sociedade é marcada por representações, simbolis-
mos e códigos que orientam atitudes, comportamentos e rituais,
disseminando ou reforçando valores que fundamentam as intera-
ções entre indivíduos e grupos. A partir disso, é possível compreen-
der a importância da antropologia e da análise antropológica para
que se possa entender como as práticas culturais são construídas
e compartilhadas.
O objetivo deste capítulo é compreender como símbolos, rituais
e diferentes práticas culturais são construídos, analisando como
estereótipos e preconceitos são determinantes na discriminação,
na exclusão social e, sobretudo, no preconceito. Isso é importante
quando se pensa no impacto que ações resultantes da não acei-
tação da diferença causam na vida de indivíduos e grupos, em es-
pecial daqueles discriminados por serem classificados a partir de
alguma característica, física ou não, que os diferencia da maioria da
sociedade da qual fazem parte.
O preconceito decorrente de algumas dessas situações deve
ser visto como algo inaceitável, que demanda uma reflexão mais
ampla para que aumente a conscientização de que a humanidade
é uma só. A reflexão sobre isso precisa considerar que o ser huma-
no é capaz de abstrair e, portanto, criar representações sobre as
coisas. Assim, os símbolos constituem um aspecto extremamente
importante da cultura.

A antropologia cultural e os símbolos 91


5.1 Imagens, símbolos e sociedade
Vídeo A sociedade contemporânea tem sido vista como aquela que, como
nunca antes na história, cria, valoriza e reproduz imagens dos mais
variados tipos, especialmente a partir do surgimento da comunicação
em massa. As redes sociais, de diferentes maneiras e de acordo com o
conceito de cada uma delas, têm como fundamento, na atualidade, o
uso, o compartilhamento e a disseminação de imagens e mensagens
curtas praticamente em tempo real. Há todo um questionamento pro-
Vídeo movido por diferentes áreas do conhecimento acerca do valor e do
Para você relembrar a sentido que essa forma de interação tem para os indivíduos.
­Revolução Industrial e
quais foram as caracte- Na comunicação, na sociologia, na história, na economia e, claro,
rísticas e as consequên-
cias da sua primeira
na antropologia, discute-se qual será o futuro da humanidade com
fase, assista ao vídeo base no fato de que muito do que antes era uma certeza – como a
1ª Revolução Industrial
- Tudo que você precisa
ideia de que a industrialização traria o progresso para todos – não se
saber, publicado pelo confirmou. Pelo contrário: a industrialização e a urbanização descon-
canal História Contada.
trolada dela decorrente amplificaram as diferenças e potencializaram
Disponível em: https://
os problemas sociais já existentes. A separação do indivíduo da sua
www.youtube.com/
watch?v=wKVZT6K0AtE. Acesso casa e da sua família para poder trabalhar causa mudanças extrema-
em: 6 jul. 2020.
mente profundas não só na vida de cada operário, mas também na
sociedade como um todo e, acima de tudo, na sua visão de mundo.

A partir daí, a humanidade encontrou novas formas de produzir,


de se comportar, de pensar e de se expressar. Ao mesmo tempo, as
diferenças econômicas se redefinem e se ampliam, uma vez que o
principal objetivo, naquele momento, era o lucro a qualquer custo. A
nova divisão do trabalho, o trabalho assalariado, o surgimento de no-
vas classes sociais, as inovações mecânicas, as ferrovias, entre outras,
foram algumas das novidades que marcaram essa etapa.

O surgimento da eletricidade, no final do século XIX, foi um fator


determinante para que tudo isso acontecesse. Já a segunda etapa
consolida a produção em massa por meio da linha de montagem, tal
como ainda se vê nas montadoras de automóveis, por exemplo. Em
sua terceira fase, nos anos 1970, ocorrem as inovações no âmbito
da comunicação e dos transportes, em especial com o surgimento da
internet e dos microchips, configurando a sociedade atual.

De acordo com Schwab (2016), no entanto, já se fala na quarta fase


da Revolução Industrial, que agregaria todas as novidades do perío-

92 Antropologia Cultural
do anterior e geraria ainda mais inovação, trazendo novas temáticas
Desafio
e áreas do conhecimento, como a inteligência artificial, a robótica, a
Você já ouviu falar desses temas?
automação e a Internet das Coisas. Que tal começar a pesquisar e
conhecer um pouco mais o que
Mas o que mudou tanto a partir dessas inovações? De maneira nun-
isso tudo significa e como já
ca vista, tem-se agora uma combinação de diferentes formas de inte- influencia as nossas vidas?
ração e comunicação que integram, muito rapidamente, mundo físico,
digital e biológico. Isso tudo demanda que sejam revistos paradigmas e
teorias em várias áreas do conhecimento. E mais: como a antropologia
se coloca diante de tantas, tão rápidas e tão profundas mudanças? De
muitas formas. Isso porque esse novo cenário coloca em xeque a pró-
pria percepção do que é ser humano, ou melhor, questiona como as
relações sociais estão sendo afetadas e, eventualmente, transformadas
por tantas inovações.

É claro que a humanidade, ao longo da história, sempre se depa-


rou com mudanças e inovações tecnológicas, e isso sempre causou
muitos questionamentos e inseguranças. No começo dos anos 1990,
por exemplo, muito se debateu que a tecnologia tomaria o lugar dos
indivíduos e haveria uma perda de empregos porque a máquina rea-
lizaria as atividades humanas. O que se viu foi outra coisa: sim, houve
perda de empregos, mas nem sempre porque a máquina assumiu o
protagonismo, e sim porque, em função das inovações, algumas ati-
vidades simplesmente deixaram de existir, tornaram-se obsoletas.
Algumas das profissões que deixaram de existir são datilógrafo, te-
lefonista, vendedor de enciclopédia, telegrafista, entre outras. Isso
aconteceu, mas, por outro lado, outras profissões surgiram, como
as de programador de computador, mecânicos de robôs, designers
e várias outras que exigem, sobretudo, criatividade, capacidade de
inovação e proatividade dos profissionais.

O consenso quando se pensa a contemporaneidade e o que in-


teressa à antropologia é analisar as consequências dessas trans-
formações na cultura e nas relações humanas. O mundo está mais
tolerante? Mais inclusivo? Quando se pensa no modo como os indiví-
duos se relacionam, qual é a imagem que vem à cabeça? Houve quais
tipos de ganhos para a humanidade?

Que tal, antes, definir melhor uma dessas imagens possíveis? Ob-
serve a foto a seguir e responda aos questionamentos.

A antropologia cultural e os símbolos 93


O que você vê? O que parece ser? Qual é a pri-
meira ideia que lhe vem à mente? Provavelmen-
te que são pessoas pobres, desamparadas, que
devem viver em péssimas condições. Mas como
é possível afirmar tudo isso? Porque há algumas
ideias preconcebidas em relação ao que seja a
pobreza e o ser pobre. São ideias, concepções
mentais que representam algo concreto, que,
nesse caso, é a pobreza e o pobre.

O que leva a se pensar isso? Alguns “sinais”


presentes na imagem, tais como a vestimenta
Wittystef/Wikimedia Commons de cada um deles, o entorno, isto é, onde se en-
contram, que não parece ser um local agradável e
Figura 1
adequado para se estar, especialmente com crianças, por ser insalubre.
Representação de família
em situação de pobreza O balde com roupas pode indicar que elas sejam lavadas ali, naquelas
águas. Assim, tem-se um quadro que pode representar a pobreza.

Da mesma forma, é comum, principalmente na publicidade, a asso-


ciação entre carros e outros artigos de luxo ao sucesso, à riqueza e a
um status social que distingue alguém da maior parte da população.
Carros, como outros bens de consumo, comumente são símbolos
de riqueza e distinção social. Outro exemplo: o que diferencia uma
caneta comum, barata e disponível em qualquer papelaria de outra
que carrega uma marca que agrega valor à peça pelo que simboliza?
Consegue pensar em outros exemplos desse tipo? São vários, não é
mesmo? E isso acontece porque a sociedade é muito marcada por
simbolismos.

O que são símbolos? De acordo com Marconi e Presotto (2011,


p. 30), “são realidades físicas ou sensoriais às quais os indivíduos que
os utilizam lhes atribuem valores ou significados específicos. Comu-
mente representam ou implicam coisas concretas ou abstratas”. Sem-
pre estão ligados e representam aspectos da cultura do grupo no qual
aparecem e ganham sentido à medida que são reproduzidos. Podem
ter diversas formas, como gestos, sinais, valores, crenças, sentimentos,
palavras, objetos, rituais, cerimônias, protocolos e muitas outras, pre-
sentes em todas as comunidades humanas, em todos os lugares do
mundo. Ocasionalmente, serão diferentes, mas sempre representam
um contexto cultural.

94 Antropologia Cultural
Cada grupo ou sociedade atribuirá significados aos símbolos, que
podem ou não ter correspondência com o bem (material ou imate-
rial) ao qual fazem referência. Os símbolos podem ser classificados de
acordo com a aderência ou a afinidade ao objeto ou fenômeno que
representam. Um dos mais clássicos símbolos conhecidos é a cruz,
símbolo máximo do cristianismo e ao qual estão atrelados os valo-
res cristãos e tudo o que a eles se relaciona – por exemplo, a ideia
de sofrimento, fardo e redenção, em uma referência ao sofrimento
de Jesus Cristo. Nessa linha, é possível perceber que o significado é
absolutamente arbitrário, uma vez que não há uma correspondência
direta, clara e explícita entre o símbolo e os valores cristãos, como a
caridade, virtude muito valorizada no cristianismo.

Outros símbolos podem ter um mesmo sentido entre diferentes cul-


turas ou agrupamentos humanos, como é o caso da batida de palmas
ou do beijo, que, mesmo assumindo uma ou outra diferença em sua
prática, tem seu significado partilhado como sendo manifestação de
carinho, deferência ou cumprimento.

Símbolos podem referenciar outra coisa, e os exemplos mais co-


muns nesse caso são os hinos nacionais e as bandeiras de cada país.
Tanto em cerimônias oficiais quanto em atos espontâneos da popu-
lação, a execução do hino nacional e a presença da bandeira remete
a sensações e emoções que reforçam a nacionalidade e a identidade
individual e coletiva como pertencente àquele país e, acima de tudo, ao
sentimento de patriotismo.

Por que os símbolos são necessários? Eles são importantes por vá-
rios motivos, e a antropologia se debruça sobre isso desde o seu sur-
gimento como ciência. Uma das razões que explicam a relevância dos Figura 2
símbolos em uma sociedade e em uma cultura é o fato de que, por Bandeira do Brasil
meio deles, são transmitidos às novas gerações e X p o s e/Shutterstock
os conhecimentos produzidos, sistematizados
e acumulados das gerações mais velhas, garan-
tindo, assim, a manutenção de valores, crenças
e outras práticas culturais. Aquilo que o grupo
ou a sociedade considera importante acaba
por ser resguardado e reforçado, e isso ocor-
re devido à c­apacidade humana de elaborar
simbologias. Tradições, saberes e valores têm

A antropologia cultural e os símbolos 95


enorme importância por se constituírem pilares sobre os quais se fun-
da determinado grupo.

Quando coletivamente se atribui significado a alguma coisa ou a


algo que possa ser percebido de alguma forma, seja observando, sen-
tindo, ouvindo, cheirando ou tocando, símbolos estão sendo criados. É
o caso de uma imagem sacra num altar que, por seu significado e valor
agregado, faz com que indivíduos sintam a necessidade de tocá-la na
crença de que os “poderes” do objeto estarão ao alcance. Um exem-
plo muito comum são cheiros, aromas ou perfumes. Você é capaz de
pensar em um cheiro – de perfume ou comida – que, assim que sente,
traz à sua memória uma pessoa, um momento ou uma experiência?
Memórias estão muito relacionadas a símbolos.

E o que acontece quando um indivíduo não faz parte de uma deter-


minada cultura e, por isso, não conhece o significado de certos símbo-
los? Podemos começar pela língua, que é um dos mais conhecidos e
importantes valores simbólicos e pode ser absolutamente incompreen-
sível para aqueles que não sejam nativos de determinada cultura. Qual
é o impacto desse não compartilhamento ou, ainda, não conhecimento
do significado de determinados símbolos? O efeito imediato é a difi-
culdade de comunicação ou convivência, podendo até gerar atritos ou
conflitos. Se uma mulher ocidental, em visita a um país de cultura is-
lâmica, acredita que apenas as mulheres nativas devam usar o véu na
cabeça quando estiverem em público e que, portanto, ela não precisa
usá-lo, incorrerá em um ato que pode ser visto como desrespeitoso e
até mesmo como uma afronta àquele povo e àquela cultura.

Diante desse quadro, é possível perceber a importância de se pro-


curar conhecer o mínimo de uma cultura, uma vez que só assim será
possível decifrar o simbolismo que a caracteriza. Nesse sentido, a ob-
servação e o olhar antropológico são ferramentas preciosas para ten-
tar captar o significado por trás de cada representação e cada símbolo.
Assim, busca-se o significado entre os que construíram esses símbolos,
e não atribuir sentido a eles a partir de um olhar etnocêntrico. Essa
atitude invariavelmente levaria ao etnocentrismo.

Se o sentido de cada símbolo em uma sociedade ou no grande grupo


da humanidade é de conhecimento entre seus componentes, tende a
haver um consenso em relação à importância que ele tem para todos

96 Antropologia Cultural
e, consequentemente, um respeito ao valor que lhe é atribuído. Isso só
ocorre quando há o entendimento do sentido dos valores simbólicos en-
tre todos os indivíduos que pertencem a uma determinada cultura, bem
como aos valores que norteiam a humanidade como um todo.

Para que isso ocorra, é importante que as diferenças que marcam


as sociedades e os indivíduos sejam reconhecidas, valorizadas e res-
peitadas. Entretanto, uma das mais marcantes características da so-
ciedade contemporânea é o individualismo e o fato de que as relações
sociais tendem a ser mais temporárias, fluidas e espontâneas, muito
pautadas no momento presente e no prazer que podem proporcionar
naquele instante. Nessa lógica, nem sempre a percepção da alteridade
se realiza, o que intensifica o processo de individualismo em um círculo
vicioso que, em grande parte, determina a forma como se vive hoje.

5.2 Ritos, rituais e práticas culturais


Vídeo Quando se fala em simbologia, inevitavelmente imagina-se que,
de alguma forma, esses símbolos aparecerão concretamente nas
relações sociais. Como isso acontece? Práticas culturais se concreti-
zam e são explicitadas por diversas maneiras, mas em especial por
meio de ritos e rituais.

A partir do momento em que os indivíduos passam a interagir,


formando grupos que começam a viver em coletividade, são criados
recursos para explicar o mundo em que vivem e os fenômenos natu-
rais que observam e encontram muita dificuldade para explicar. São
criados símbolos que, como se afirmou anteriormente, passam a ter
significado, fazendo sentido para aqueles que pertencem a uma deter-
minada cultura. E como esses símbolos são vivenciados pela sociedade
na qual são criados? Por meio dos ritos e dos rituais.

Todo e qualquer costume, rito, ritual ou comportamento deve ser


visto em seu contexto, analisado a partir da lógica de quem os produ-
ziu, buscando-se captar o significado de cada um deles e o valor que
têm para seus praticantes. Isso colabora para manter a coesão de um
grupo social, pois é dessa maneira que sua identidade é construída,
reforçada e valorizada. Por meio de alguns rituais, essa coesão não só
é mantida como também é reforçada.

A antropologia cultural e os símbolos 97


Ritos e rituais se diferenciam com base em seu propósito, isto é,
para que servem. A antropologia tem uma longa trajetória de pesquisas
em sociedades primitivas e, também, em sociedades mais complexas
que buscavam compreender o sentido de ritos e rituais, investigando
o momento em que ocorrem na sociedade, em quais circunstâncias,
com qual objetivo, quem pode ou deve participar, como se configuram;
enfim, como acontecem.

Vamos pensar em um exemplo concreto? Em muitas sociedades,


há ritos de passagem, que há muito tempo são objetos de estudo da
antropologia. Mas o que são os ritos de passagem? São cerimônias ou
rituais que servem como marco de uma fase da vida de indivíduos na
sociedade, como o caso da transição da infância para a adolescência,
de meninos e meninas, possuindo uma forte carga simbólica.

Sobretudo em culturas mais tradicionais, a transição para a fase


adulta é sempre muito importante e, assim, torna-se um marco
na vida de toda a comunidade. Em muitos casos, são ritos que se
­caracterizam por infligir dor e sofrimento ao indivíduo que está
passando por essa transição. A ideia não é lhe causar um dano
ou prejuízo definitivo, irreversível, mas verificar se ele está apto a
passar para a vida adulta e assumir todas as responsabilidades que
ela impõe.

Assim, entre os ritos de passagem, é possível encontrar alguns


bem diferentes, como é o caso do baile de debutantes, a primeira
comunhão entre os católicos ou o Bar Mitzvah dos judeus. Outro
exemplo de rito de passagem, comum entre algumas tribos, é o de
meninos serem deixados no alto de uma montanha durante parte do
Vídeo dia e toda a noite, expostos ao frio e a todos os perigos eminentes,

O vídeo Homens da tribo


sentindo medo, fome etc.
são mordidos por formigas
A antropologia já estudou alguns ritos de passagem ou de inicia-
em ritual | América Latina
Selvagem, publicado pelo ção, como aquele por qual passam meninos de tribos da Amazônia que
canal Discovery Brasil,
são obrigados a manter suas mãos dentro de um recipiente no qual há
mostra como acontece o
ritual de passagem dos dezenas de formigas venenosas muito tóxicas, cuja picada é bastante
jovens na tribo Sateré-
dolorosa e provoca grande sofrimento. No entanto é preciso, aqui, cha-
-Mawé, na Amazônia.
mar a atenção para o fato de que esses ritos não dizem respeito apenas
Disponível em: https://
www.youtube.com/ ao indivíduo – no caso, o menino ou a menina que está passado por
watch?v=d6F8BgMn5vU. Acesso
uma fase de transição particular –, mas se referem a toda a sociedade
em: 7 jul. 2020.
na qual eles se inserem.

98 Antropologia Cultural
Há ritos de transição em religiões,
como é o caso do candomblé, nos quais
há toda uma dinâmica para a inserção de
membros ou ascensão na hierarquia.

O rito funciona quase como uma lei,


uma prescrição mais formal e, em alguns
casos, bem severa. É o caso, por exemplo,
dos ritos que têm como fundamento va-
lores e normas éticas que são importan-
tes para a sociedade e podem se tornar
Toluaye/Wikimedia Commons
leis, constituindo-se em um cerimonial
que está ­q uase sempre ligado a um culto. Compõem-se de vários Figura 3
Rito de passagem no
rituais que colaboram para expressar e reforçar os valores que fun- candomblé
damentam um rito na prática. Cada ritual deve seguir normas e
procedimentos, o que faz com que alguns se tornem tradição. Importante
Um exemplo de rito é o regimento interno de uma instituição Os ritos são conjuntos de
como o Supremo Tribunal Federal, que, em sua rigidez, define a cerimônias e têm relação com
costumes e práticas que já estão
base do funcionamento do tribunal, também composto por diver-
consolidadas em um grupo,
sos rituais que normatizam a atuação de todos os atores envolvi- isto é, relacionadas a costumes
dos. Tudo – a toga de um ministro, a linguagem formal, o cerimonial que não variam mais e que se
organizam por meio de regras e
– constitui rituais que, juntos, reforçam a importância da institui-
normas bem definidas. Baseiam-
ção na vida democrática do país. -se nas crenças de quem os
pratica, como uma oração diária,
Já os rituais têm uma característica diferente, uma vez que fa- por exemplo.
zem mais referência a sentimentos de indivíduos ou grupos, isto O ritual é o rito colocado em
é, podem ter, tal como os ritos, um caráter religioso, mágico ou prática, é a celebração do rito,
a concretização dos costumes,
transitório, mas se relacionam a ações. O que isso significa? Que os
das regras e das normas que
rituais precisam de reforço, repetição, persistência, adesão e, com estruturam o rito, sempre muito
tudo isso, podem ser estabelecidos como tradições. simbólico e com o objetivo de
manter ou reforçar uma tradição.
Um dos rituais mais marcantes de quase todas as sociedades do
mundo é o casamento, que se concretiza em cerimoniais diversos e
variam de acordo com a cultura. Mas, seja onde for, ele segue algumas
normas e padrões, e espera-se que todos os participantes compreen-
dam seus fundamentos e se comportem de acordo com o estabeleci-
do. De alguma forma, sempre explicitam sentimentos, atitudes, além
de, como toda prática cultural, revelar determinados valores, crenças
e visões de mundo do grupo que o pratica. Ele é um ritual composto
de várias partes, que simboliza o rito de unir duas pessoas.

A antropologia cultural e os símbolos 99


Em uma cerimônia de casamento, tudo o
que faz parte desse ritual tem uma função e
um propósito. Que tal observar a imagem
ao lado?

O que mais chama sua atenção? O


vestido da noiva, o terno do noivo, o
buquê de flores, o adereço na cabeça
da noiva ou a aliança que o noivo colo-
ca no dedo da noiva? São muitas coisas
em uma só imagem? A vestimenta do ca-
sal destoa completamente daquilo que
vestem no cotidiano; o buquê suposta-
mente deve ser diferente de qualquer
Yuliya Loginova/Shutterstock
outro; a aliança, sobretudo, tem uma
Figura 4 simbologia extremamente marcante e, por isso, torna-se um dos focos
Cerimônia de casamento
ocidental
de atenção do casal. A escolha desse acessório é um dos momentos
mais esperados durante os preparativos do casamento. Além desses,
há outros elementos que podem fazer parte desse ritual: a lista de con-
vidados (que revela muito do casal e da sua família – quem é importan-
te ou querido o suficiente para ser convidado?), a celebração religiosa,
a festa, o bolo (outro ponto crucial para que tudo seja perfeito e atenda
ao protocolo) e outros tantos itens que, em conjunto, formam o ritual
do casamento.

Cada sociedade o configura de acordo com seus valores e crenças,


variando por diversas razões. Mas, principalmente pelo fato de ser visto
como o passo inicial de uma família, instituição-base de todas as socie-
dades, o casamento acaba sendo um dos momentos mais importantes
da vida dos indivíduos. Mesmo quando essa cerimônia não acontece
por escolha dos próprios cônjuges, o casamento não deixa de ter uma
importância simbólica porque pode significar a negação de tudo o que
Desafio ele significa enquanto ritual, indicando certo desejo de ruptura com pa-
drões preestabelecidos pela sociedade na qual aquele casal se insere e
Pare e pense: desde o início da
vida de todos os indivíduos, em com os quais não concordam ou não valorizam.
quantos momentos é possível
perceber a presença e a força De qualquer forma, o casamento normatiza as relações entre os
de rituais? Reflita e pontue ao sexos, uma vez que também representa um tipo de contrato (ainda
menos três momentos, desde o que informal) que concretiza uma união, estabelecendo alianças, laços
nascimento, que são marcados
por algum tipo de ritual. e direitos que envolvem o casal e seus grupos sociais, em especial as
famílias. Vale lembrar que, quase sempre, é por meio do casamento

100 Antropologia Cultural


que se forma um dos mais caros objetos de estudo da antropologia: os
sistemas de parentesco, estudados por grandes nomes da área, como Saiba mais
Claude Lévi-Strauss. Claude Lévi-Strauss foi um dos
maiores nomes da antropo-
De acordo com Marconi e Presotto (2011, p. 152-155), existe “um logia contemporânea por sua
conjunto de crenças relacionadas com diferentes práticas rituais que contribuição metodológica para
a área, associando análise estru-
varia de uma cultura para outra, e alguns rituais podem abranger, ao
tural e psicanálise. Interessado
mesmo tempo, vários outros rituais relacionados entre si, como é o em investigar mitos e sistemas
caso de algumas festas religiosas, que contam com cerimônias, procis- de parentesco, funda a análise
estruturalista, que defende a
sões, cantos”. presença de certas estruturas
Desse modo, quando se pensa em ritos e rituais, é possível perceber básicas em todas as sociedades
humanas. Um exemplo é a
que eles são culturalmente construídos. Assim sendo, refletem valores família, que pode até mudar de
e princípios que orientam a sociedade na qual foram estabelecidos. O formato, mas está presente em
todos os grupamentos humanos.
sentimento de pertencimento de um povo depende muito do quanto
seus membros se enxergam partilhando uma mesma identidade e do
quanto percebem sua sociedade coesa. Nesse sentido, os momentos
nos quais se realizam determinados ritos ou rituais são importantes
exatamente por seu papel de meios de socialização e de compartilha-
mento dos elementos que compõem a cultura do grupo.

5.3 Estereótipos, discriminação e preconceito


Vídeo A reflexão sobre símbolos, ritos e rituais permite que se avance um
pouco mais em uma direção: pensar como essas práticas podem ser
vistas por indivíduos que não façam parte daquela sociedade na qual
elas aparecem ou que, ainda que pertencentes ao grupo, não compar-
tilhem dos valores e crenças a eles relacionados. É importante lembrar
que, ainda que tenham um papel agregador e de reforço de identida-
des – individual e coletiva –, certos ritos de passagem passaram a ser
questionados.

A antropologia se viu sendo, de certa forma, cobrada em relação ao


fato de algumas dessas práticas culturais não poderem mais ser justifi-
cadas em nome do relativismo cultural. Talvez o exemplo mais conhe-
cido desse debate seja o caso da mutilação genital feminina praticada
em países como Sudão, Chade e Serra Leoa, todos na África, e que não
é mais aceita pelo restante do mundo, além de, hoje, ser criminalizada
no Sudão. E o que vem a ser essa prática? Trata-se de um rito de passa-
gem que se vincula ao futuro casamento da menina, que, ainda criança
(por volta dos três a cinco anos), passa por uma violência inominável.

A antropologia cultural e os símbolos 101


Em um ritual, seu clitóris é extirpado com algum tipo de lâmina,
Filme
sem anestesia e sem higiene, pela própria mãe, avó ou, na falta de
ambas, uma irmã mais velha ou uma tia. Depois, é realizada uma
sutura muito rudimentar (novamente sem anestesia), sendo que
muitas meninas não sobrevivem, seja porque o ferimento infecciona
ou porque sangram até a morte. Depois disso, a maioria delas fica
com cicatrizes horríveis e, prolongando ainda mais o sofrimento, no
momento da primeira menstruação, deve passar por outro proce-
dimento para abrir o canal vaginal para o escoamento do sangue
menstrual e, mais tarde, para permitir relações sexuais e a passa-
O filme Flor do deserto
gem do bebê no momento do parto.
narra a história de uma
menina nascida em uma
São muitas as chances de essa garota morrer ou ficar com seque-
família pobre da Somália,
na África, que passou las cada vez mais graves. Essa meninas são submetidas a tamanha
pelo ritual de mutilação
violência para garantir ao seu futuro marido que ela se resguardou
e, aos 13 anos, fugiu de
casa e foi parar em Lon- e, principalmente, que nunca terá nenhum prazer sexual, reforçando
dres. Depois de algum
a desigualdade de gênero nas sociedades onde essa prática ocorre.
tempo dividindo um
apartamento com uma Qualquer tipo ritual que cause tanto sofrimento a um ser huma-
inglesa, é descoberta por
um fotógrafo e começa a no não pode ser tolerado sob nenhum argumento, e há bastante
entender que aquilo que tempo a antropologia percebeu isso, revendo seus paradigmas de
havia lhe acontecido não
era algo normal. respeito à diversidade em nome do relativismo cultural. Não se tra-
Direção: Sherry Hormann. Reino ta, portanto, de tentar compreender uma cultura a partir da sua pró-
Unido; Áustria; Alemanha: pria lógica, mas entender que é necessário respeitar e, sobretudo,
Imovision, 2010.
lutar pelos direitos humanos.

Esse exemplo serve para pensar sobre como indivíduos podem


ser discriminados ou estigmatizados na sociedade em que vivem.
Retomando o caso dos ritos de passagem, é possível imaginar como
seriam vistos pelo restante do seu grupo os indivíduos que se re-
cusassem a passar pelos ritos que representam tradições cultu-
rais. Garotos que se recusassem a se submeter aos procedimentos
prescritos ou que não suportassem todo o cerimonial poderiam ser
vistos como covardes, fracos e despreparados para assumir uma po-
sição de relevância e respeito no grupo. A menina que não sofresse
a mutilação seria vista como impura e seria banida da sociedade por
não conseguir se casar, pois nenhum homem iria querer se unir a
ela. Ambos seriam alvo de discriminação e, quase sempre, de exclu-
são social.

102 Antropologia Cultural


Conflitos e discriminações decorrem das mais variadas causas e
ficam evidentes no mundo globalizado, marcado pelo multicultura-
lismo, uma vez que casos como os já citados vão na contramão da
ideia de percepção e respeito à alteridade. Mais uma vez, a antropo-
logia assume um papel de grande relevância ao propor que se adote
uma atitude de combate ao preconceito e à intolerância.

Na contemporaneidade, cada vez mais se luta contra a discrimi-


nação, sobretudo aquela relacionada a algum tipo de diferença –
sexual, étnico-racial, socioeconômica, religiosa etc. Como se viu ao
longo deste capítulo, indivíduos e práticas culturais são alvo de cons-
tante julgamento, pautado, na maioria das vezes, por valores e cren-
ças de quem julga, e não de quem está inserido naquela cultura. Isso
porque, ao se julgar a validade de determinado ritual, por exemplo,
provavelmente isso será feito a partir da compreensão e do valor a
ele atribuído. Quando isso ocorre, o risco de se adotar uma atitude
discriminatória e, por conseguinte, preconceituosa, é grande.

Retomando o caso dos ritos de passagem praticados por grupos


indígenas e fazendo uma relação com a visão que a sociedade branca,
urbana e elitizada explicita acerca dessas comunidades, observa-se
que predomina uma atitude etnocêntrica e, portanto, discriminató-
ria. Isso acontece porque, quase sempre, baseia-se em estereótipos
construídos e reforçados ao longo de muito tempo. Os estereótipos
do indígena no Brasil são quase os mesmos de 500 anos atrás: su-
põe-se que são indivíduos preguiçosos, lentos, ignorantes, sujos e
rudes, que não gostam de trabalhar. Assim, as elites praticamente
ignoram esses grupos, descendentes dos povos nativos que já ha-
bitavam o Brasil muito antes da chegada do europeu colonizador e
que são detentores de boa parte da cultura original do país.

Além dos indígenas, outros segmentos da população brasileira


são alvo de preconceito e discriminação decorrentes de estereóti-
pos construídos com base em uma visão etnocêntrica. Entre eles,
tem-se: moradores em situação de rua, desempregados, população
carcerária, deficientes físicos ou mentais, trabalhadores de deter-
minadas atividades econômicas, moradores de periferias, mulheres,
homossexuais, transexuais, negros, imigrantes e outros tantos gru-
pos que, por alguma razão, são o que se chama de minorias. Esses

A antropologia cultural e os símbolos 103


são os alvos, por excelência, de comportamentos racistas, discrimi-
natórios e, em alguns casos, bastante violentos.

Como se tem afirmado, o mundo é simbólico e a cultura é um sis-


tema de significados, construídos longamente no tempo, fruto das
interações humanas e da sua complexidade. Nesse contexto, a an-
tropologia cultural, ao estudar a cultura vista como produto huma-
no, permite constante reflexão e questionamento em torno daquilo
que gera conflito entre os indivíduos e os grupos, buscando explici-
tar as causas do dissenso. Assim, conforme Kuper (2015, p. 147):
o mundo cultural é um sistema de significados preestabele-
cidos. Quando nascemos, temos contato com os valores da
sociedade normatizados: a língua que aprendemos e absor-
vemos, as relações familiares, a forma como andamos, brin-
camos e sentimos. Por isso, a cultura é também denominada
herança social. Todas as diferenças de comportamento resul-
tam das relações entre os indivíduos, seja no que diz respeito
a valores, seja no que se refere a regras de conduta.

Tal como ocorre nos ritos e rituais, as diferenças de ­comportamento


ou de compreensão dos significados das práticas culturais quase
sempre estão na base dos conflitos. O não cumprimento de regras ou
respeito a protocolos e cerimoniais pode gerar reações indesejáveis
e, em alguns casos, inaceitáveis. Entretanto, é necessário lembrar que
é exatamente a existência das diferenças que caracteriza a humani-
dade e, sendo assim, a diversidade e as diferenças não podem ser
utilizadas para justificar qualquer tipo de conflito.

Pensando nisso, que tal refletir um pouco sobre o papel da arte


nesse processo de construção de uma sociedade mais justa, respeito-
sa e igualitária? Lenine, artista pernambucano, tem uma canção que
mostra como, nesse caso, uma música pode tratar de temas sensí-
veis à sociedade e provocar um questionamento sobre a diversidade.
Preste atenção no fragmento da música “Diversidade”, a seguir.
Foi pra diferenciar
Música
Que Deus criou a diferença
Ouça a música Diversida- Que irá nos aproximar
de, de Lenine, completa
no canal oficial do artista.
Intuir o que ele pensa
Se cada ser é só um
Disponível em: https://
www.youtube.com/ E cada um com sua crença
watch?v=BuCN4BlFrPc. Acesso em: Tudo é raro, nada é comum
7 jul. 2020. Diversidade é a sentença. (DIVERSIDADE, 2010)

104 Antropologia Cultural


O que você achou? O que essa letra provocou em você? O que
acha da ideia de que a diferença irá nos aproximar? Qual é o va-
lor de versos como “cada um com sua crença, tudo é raro, nada é
comum” e “diversidade é a sentença”? O autor chama a atenção
para as contradições, os dualismos e as diferenças que marcam a
existência humana e as relações sociais. Sobretudo, alerta para o
valor da diversidade. Isso é importante porque os sistemas utili-
zados para classificar um indivíduo, enquadrá-lo em determinado
lugar ou categoria, quase sempre decorrem de visões distorcidas,
equivocadas e inadequadas sobre ele.

Por que isso é assim? Porque cada indivíduo também se coloca


em determinada posição, o que significa dizer que ele é o resultado
de sua cultura, sua identidade, sua percepção de mundo. Um judeu,
por exemplo, não precisa que ninguém lhe diga que ele é judeu. Ele
se sente e se vê judeu, percebe a si mesmo como pertencente a
essa cultura, pratica os rituais prescritos por essa comunidade.

Esse também é o caso de outros grupos étnicos que frequente-


mente são alvos de atitudes discriminatórias por assumirem sua
cultura e se colocarem no mundo nessa condição, como os ciganos,
estereotipados em quase todo o mundo em decorrência, na maior
parte das vezes, do total desconhecimento em relação à sua cultu-
ra, sobre quem eles realmente são e como vivem.

O sentimento de identidade dos membros de um grupo étni-


co também pode ser originado ou reforçado pela necessidade de
superar dificuldades no novo território, como acontece nas migra-
ções. Nessa situação, torna-se extremamente importante tentar
manter principalmente a língua, código simbólico fundamental na
construção da identidade, bem como a religião, o tipo de roupa e
os hábitos alimentares. Diz-se que um grupo étnico transporta sua
ancestralidade para a outra sociedade em que vai viver.

Concordando com Guizzo (2009, p. 305), toda ação preconceituo-


sa, discriminatória ou segregacionista perpetrada contra quaisquer
indivíduos e grupos por causa de sua origem étnica “é uma visão
de mundo carregada de ideologia (pensada como falsa consciência
da realidade)”. Trata-se de uma ideologia que deve ser combatida e
superada em suas bases, e isso ocorre quando se compreende que
a discriminação sempre será a negação da alteridade, da diversi-

A antropologia cultural e os símbolos 105


dade e das diferenças que se transforma em ação. E vale lembrar,
aqui, que a discriminação e o preconceito não são ações apenas de
indivíduos ou grupos, mas também de instituições e da sociedade
como um todo quando transformam parcelas da população em “in-
visíveis” sociais. Aqueles indivíduos e grupos que não são vistos em
suas necessidades e direitos vivem à margem e deixam de ser foco
de atenção, cuidado e respeito.

Nesse momento, pode-se recorrer a Zygmunt Bauman, pensa-


dor que analisou muito bem a sociedade contemporânea e suas
mazelas, em especial a questão do individualismo e as relações
humanas em tempos de comunicação virtual e redes sociais. Ele
afirma:
Quanto mais as pessoas permanecem num ambiente uni-
forme – na companhia de outras “como elas” com as quais
podem ter superficialmente uma “vida social” praticamente
sem correrem o risco da incompreensão e sem enfrentarem
a perturbadora necessidade de traduzir diferentes universos
de significado –, mais é provável que “desaprendam” a arte de
negociar significados compartilhados e um modus covivendi
agradável. Uma vez que esqueceram ou não se preocupa-
ram em adquirir as habilidades necessárias para uma vida
satisfatória em meio à diferença, não é de estranhar que os
indivíduos que buscam e praticam a terapia da fuga encarem
com horror cada vez maior a perspectiva de se confrontarem
cara a cara com estranhos. (BAUMAN, 2007, p. 94, grifo do
original)

É muito interessante a percepção do autor para o fato de que


somos seres sociais que têm necessidade da convivência com o
outro, mas que relutam em ver nesse outro a riqueza dessa convi-
vência, preferindo se manter “entre seus pares”. Na percepção que
muitos indivíduos têm sobre o diferente, ele é sempre ameaçador,
o que não se compreende não deve ter valor e o exótico é sempre
assustador. Qual seria, então, o caminho? O diálogo, a escuta ativa
e respeitosa, quase em uma atitude antropológica de buscar a lógi-
ca de uma ação, de uma prática – enfim, de uma cultura – onde ela
está: entre aqueles que a praticam.

106 Antropologia Cultural


CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerando o que se viu, sobretudo em relação à importância que
símbolos, ritos e rituais têm na vida em sociedade e as consequências de
atitudes discriminatórias e preconceituosas para a vida de indivíduos e
grupos, é necessário pensar como mudar, como transformar e promover
a inclusão. Nesse sentido, não parece haver outro caminho mais efetivo
do que a educação. É por meio da educação – e não se está falando aqui
apenas da educação formal, institucionalizada nas escolas – que será pos-
sível alcançar um outro patamar de civilidade e de convivência, pautado
no respeito e na tolerância.
Para tanto, é preciso resgatar um ensinamento básico, que deveria
sempre começar na família e ser reforçado por todas as demais ins-
tituições sociais: a diversidade define e é inerente à condição humana.
Trata-se de recuperar uma ética que frequentemente é perdida em meio
a tantos julgamentos, incompreensões, desrespeitos e negações, princi-
palmente em relação aos mais fracos, mais vulneráveis e menos favoreci-
dos sob todos os aspectos.
Não compreender ou, pessoalmente, não aceitar determinadas práti-
cas culturais – desde que elas não atinjam a dignidade, a integridade e a
essência do outro – implica que não há empatia, respeito e acolhimento,
o que dá lugar à negação da alteridade. Valores, crenças, ideias, atitudes,
comportamentos e práticas culturais serão sempre pontos de divergên-
cia, mas não podem se tornar alvo de discriminação. Para isso é preciso
começar, com as novas gerações, preferencialmente dentro de casa, no
âmbito da família, a ensinar a compreensão. Individual e coletivamente, é
urgente que se construam relações pautadas naquilo que a antropologia
cultural tanto preza: o respeito ao outro, a noção de alteridade e o relati-
vismo cultural.
Dessa forma, toda e qualquer mudança só será possível quando a so-
ciedade compreender que essa é uma tarefa de todos, e não apenas de
um ou outro indivíduo (por mais que cada ação tenha seu valor). A antro-
pologia, quando instituiu o trabalho de campo como seu método de pes-
quisa mais importante, já indicava que somente o confronto, a convivência
e, acima de tudo, a proximidade com o outro permitiriam um olhar mais
atento e aberto sobre as diferenças.

A antropologia cultural e os símbolos 107


ATIVIDADES
1. Pensando no que foi discutido neste capítulo, sobretudo em relação
ao papel dos ritos e rituais, qual é a principal função da antropologia
nesse contexto?

2. Alguns rituais são muito importantes na vida dos indivíduos, e alguns


deles têm um significado de ruptura, de rito de passagem para uma
nova etapa da vida. Observe a imagem a seguir e explique por que esse
ritual é importante para o indivíduo e seu grupo social, apontando três
razões que podem esclarecer seu valor.

VGstockstudio/Shutterstock

3. Em quase todas as sociedades há indivíduos e grupos estereotipados


que, em razão disso, sofrem preconceito e discriminação. Quando se
pensa, por exemplo, na população encarcerada, quais características,
em geral, são relacionadas a ela? Cite uma dessas características e
explique como a educação pode contribuir para mudar essa visão.

REFERÊNCIAS
BAUMAN, Z. Tempos líquidos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
GUIZZO, J. Introdução à sociologia. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2009.
KUPER, A. Sociologia: diálogos compartilhados. São Paulo: FTD, 2015.
DIVERSIDADE. Intérprete e compositor: Lenine. In: Lenine Doc/Trilhas. Intérprete: Lenine.
São Paulo: Universal Music, 2010. Faixa 10 (5 min). Disponível em: https://www.youtube.
com/watch?v=BuCN4BlFrPc. Acesso em: 7 jul. 2020.
MARCONI, M. de A.; PRESOTTO, Z. M. N. Antropologia: uma introdução. 7. ed. São Paulo:
Atlas, 2011.
SCHWAB, K. A quarta revolução industrial. São Paulo: Edipro, 2016.

108 Antropologia Cultural


6
A antropologia cultural
e a cultura brasileira
Um dos temas mais sensíveis a todas as Ciências Sociais é a for-
mação do povo brasileiro, isto é, como o Brasil se constituiu enquan-
to país e nação. Vale observar que esse é um tema que marcou a
trajetória intelectual de muitos pensadores no Brasil, sobretudo a
partir do início do século XX.
Num contexto de surgimento, disseminação e repercussão de
teorias racistas, higienistas e nacionalistas, esse conjunto de ideias
encontra espaço e dá início à construção de um projeto novo,
numa tentativa de responder à seguinte questão: quem é o povo
brasileiro? Como ele se formou? Quais são suas características
mais marcantes?
Além disso, há de se perguntar também como esse processo
impactou a maneira como os indivíduos se veem, com o que e com
quem se identificam e, especialmente, como se formou o ethos do
povo brasileiro. Significa refletir sobre como o brasileiro se vê, como
se comporta, enfim, como vê o seu próprio país e o mundo.
Alguns elementos precisam ser considerados nessa busca das
origens do povo brasileiro, que de alguma forma contribuíram para
a construção da identidade nacional, sempre lembrando que se
está falando de um povo multiétnico, formado por indígenas, ne-
gros africanos e brancos imigrantes. E isso na vigência do projeto
colonial empreendido pelas potências europeias dos séculos XV e
XVI, Portugal e Espanha, a partir da necessidade de encontrar novas
rotas comerciais com o Oriente e estimular o comércio além-mar.
Para compreender melhor este processo, temas como mesti-
çagem e patriarcalismo, além do próprio colonialismo, precisam
ser discutidos.

A antropologia cultural e a cultura brasileira 109


6.1 A formação do povo brasileiro
Vídeo Um dos temas mais presentes nas discussões da intelectualidade
brasileira é a formação do povo brasileiro, isto é, pensar como o país se
formou a partir de características muito próprias. Quais seriam essas
particularidades?

Primeiramente, o Brasil se insere naquilo que poderíamos chamar


de economia-mundo dos séculos XV e XVI, no contexto da expansão
ultramarina promovida pelos reinos da Península Ibérica – Portugal e
Espanha. Esse é o momento em que, após a formação dos Estados-
-nacionais, a recém surgida burguesia comercial já teria acumulado o
capital necessário para estar à frente de um projeto ambicioso de am-
pliação de mercados para trocas comerciais. Esses dois países estariam
à frente do projeto colonialista que impactaria o presente e o futuro de
várias regiões do planeta, de formas distintas e com diversos propósi-
tos. Porém, o que há em comum entre todos esses lugares que passa-
ram pela experiência da colonização é o fato de que, por muito tempo,
conforme o período ao qual foram submetidos a isso, foram impedidos
de construir sua autonomia e conquistar sua liberdade.

Quando falamos em autonomia, estamos falando em soberania,


autossuficiência, algo que esses países tiveram que esperar algumas
décadas ou séculos para conquistar. Mas por que o projeto daque-
las grandes potências europeias exigia a expansão das suas áreas de
influência? Porque à medida que o feudalismo entrava em colapso,
muitas mudanças alteraram para sempre a vida na Europa e em al-
gumas regiões do mundo. Como dito anteriormente, a formação dos
Estados-nacionais implica novas relações de poder, que passam a ser
centralizadas na figura do rei, cercado por sua corte, pela nobreza e
sob a égide da Igreja Católica, que, durante toda a Idade Média, se
constituiu na instituição mais rica, importante e influente da época.
Também interessavam a esses reis absolutistas o enriquecimento e a
possibilidade de aumentar a cobrança de impostos sobre as ativida-
des econômicas, sempre procurando equilibrar a seguinte equação:
mais dinheiro, mais poder.

Nesse contexto também acontece um grande êxodo rural, quando


indivíduos, em sua maioria servos, migram para as cidades, que pas-
sam a se tornar centros da atividade econômica, pois eram os lugares

110 Antropologia Cultural


onde as transações comerciais aconteciam. Mas o que se comerciali-
zava? Desde alimentos até ferramentas, instrumentos, vestuário etc.
Algumas das mercadorias mais cobiçadas eram as especiarias, cuja
venda gerava enorme lucro para o empreendedor da jornada, que se
constituía em uma viagem rumo às fontes – em especial orientais, por
exemplo, a Índia, que era o país mais visado no período em questão.
Havia também o desejo por novas terras, nas quais os europeus ima-
ginavam encontrar outras riquezas, principalmente metais preciosos
– ouro e prata.

Observe a imagem a seguir.


Figura 1
Mapa representando As Grandes Navegações nos séculos XV-XVI.

AS GRANDES NAVEGAÇÕES
(séculos XV-XVI)

Oceano Europa
América Atlântico
do
Açores
Norte (1431) Espanha Veneza
Portugal Lisboa Ásia
Sevilha Pequim
Madeira Palos
(1419) Cipango (Japão)
Ceuta (1415) (1542)
Guanaani
(1492) Canárias Cabo Bojador (1434) Cantão Oceano
(1402) Macau Pacífico
Cabo Verde Goa (1516) Filipinas
(1456)
África Calicute (1498)
América Central Guiné (1462) Cechim Mort
Malaca (1511) de M e de Fern
agalh ã
ães – o
Congo Melinda 1521
Ba

(1482 - 1485)
rto

América Porto
Oceania
lom

do Seguro
eu

Sul (1500) Moçambique


Fernão M 22
Dia

agalhães Cabo da Boa - 158


ano
s

1519 - 15 Esperança o Elc


21 stiã
(1488) Seba
Oceano Atlântico

Oceano Oceano Atlântico


Pacífico
Rotas dos navegadores portugueses Rotas dos navegadores espanhóis
Primeiras viagens Cristóvão Colombo
Vasco da Gama Fernão de Magalhães
e Sebastião Elcano
Pedro Álvares Cabral (primeira viagem de
Primeira viagem até o Japão circunavegação)

Fonte: Atlas Histórico apud Arruda; Piletti, 2007, p. XVII.

Podemos perceber que foram várias expedições financiadas pela


nobreza e pela Igreja, com o objetivo de estabelecer novas rotas co-
merciais, que foram por muito tempo dominadas pelos italianos, a
partir dos portos das cidades de Gênova e Veneza, no Mar Medi-
terrâneo. Qualquer outro país que desejasse realizar atividades co-
merciais por ali deveria pagar pedágio aos italianos, o que encarecia
a operação. A grande motivação para a busca de alternativas para
chegar ao Oriente se dá, sobretudo, após o fechamento do Mar Me-

A antropologia cultural e a cultura brasileira 111


diterrâneo pelos turcos-otomanos, depois da tomada da cidade de
Constantinopla, em 1453.

Nesse ponto, precisamos entender o pioneirismo de Portugal, que


terá grande importância na compreensão do sucesso alcançado por
esse país no projeto colonial, relacionado com o alto grau de investi-
mento, inclusive em conhecimento, com a criação da Escola de Sagres
para estudos náuticos. Isso, aliado ao fato de Portugal já ter larga ex-
periência com viagens marinhas e atividades comerciais, proporcio-
nada pela pesca do bacalhau, deixa o país em grande vantagem.

Com isso, não foi difícil para os navegadores portugueses empreen-


derem expedições em direção a oeste no Oceano Atlântico, para des-
bravar o que se convencionou chamar à época de Novo Mundo. E,
assim, em 1500, Pedro Álvares Cabral chega ao litoral sul da região,
onde hoje é a Bahia. O Brasil, então, entra na “era dos descobrimentos”.
A partir daí, muita coisa mudaria. Mas mudaria para quem? Inicialmen-
te, para os povos nativos que aqui viviam: um grande número de indi-
víduos oriundos de diversas etnias, com sua própria maneira de viver e
de ser. Para eles, o mundo nunca mais seria o mesmo. Aliás, para aque-
les que conseguiram sobreviver ao contato com os portugueses coloni-
zadores – porque, para a grande maioria, o que viria pela frente seria a
morte, num dos maiores genocídios já vistos na história das Américas.

Mas não podemos atropelar os fatos, sendo assim, voltemos ao mo-


mento da chegada da expedição de Cabral. O que aconteceu em segui-
da? Aquilo que a antropologia chama de choque cultural, isto é, quando
indivíduos, grupos e culturas defrontam-se com o que não conhecem
e/ou não compreendem, vivendo uma sensação de estranhamento. Ou
seja, o que estão vendo não lhes parece familiar e, por conta disso, po-
dem ter atitudes e comportamentos mais ou menos hostis. Foi o que
aconteceu quando os portugueses viram os indígenas que aqui viviam.
Suas percepções se dividiram entre ver essa população e sua nudez
como exemplo de inocência e pureza, ou indignação e susto.

Com o tempo, e por influência da Igreja, os nativos foram vistos


também como gente sem fé, sem lei e sem rei, como afirmou o cronis-
ta e historiador português Pero de Magalhães Gandavo, em sua obra
Tratado da Terra do Brasil, em 1576. Sua fala representa muito aquilo
que a antropologia chama de etnocentrismo: atitude daquele que avalia
uma cultura diferente da sua a partir de seus próprios valores, não con-

112 Antropologia Cultural


siderando compreender a lógica que orienta as práticas culturais entre
aqueles que a vivenciam.
A língua deste gentio, toda pela costa, é uma: carece de três le-
1
tras – scilicet , não se acha nela F, nem L, nem R, cousa digna 1
de espanto, porque assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei; e desta Significado: isto é, em latim
maneira vivem sem Justiça e desordenadamente. Estes índios antigo.
andam nus sem cobertura alguma, assim machos como fêmeas,
não cobrem parte nenhuma de seu corpo, e trazem descoberto
quanto a natureza lhes deu. [...] Não há como digo entre eles
nenhum Rei, nem Justiça, somente em cada aldeia tem um prin-
cipal que é como capitão, ao qual obedecem por vontade e não
por força; morrendo este principal fica seu filho no mesmo lugar;
não serve doutra cousa se não de ir com eles à guerra, e conse-
lhá-los como se hão de haver na peleja, mas não castiga seus
erros nem manda sobre eles cousa alguma contra sua vontade.
Este principal tem três, quatro mulheres, a primeira tem em mais
conta, e faz dela mais caso que das outras. Isto tem por estado
e por honra. Não adoram cousa alguma nem têm para si que
há na outra vida glória para os bons, e pena para os maus, tudo
cuidam que se acaba nesta e que as almas fenecem com os cor-
pos, e assim vivem bestialmente sem ter conta, nem peso, nem
medida. (GANDAVO, 2008, p. 65-66)

Fica claro, nesse trecho, a incompreensão de Gandavo a respeito da


cultura nativa, além dos valores e da organização social dessa cultura.
Ainda que os portugueses não tivessem encontrado grandes civilizações
no Brasil, tal como os espanhóis encontraram no restante das Américas
– Central e do Sul, onde se depararam com incas, maias e astecas –, essa
não era uma terra inabitada. Aqui havia grupos organizados e com estru-
turas de poder, práticas religiosas e costumes muito bem definidos. Mas
o etnocentrismo dos portugueses os impediu de perceber a riqueza das
culturas dos povos que já habitavam as terras descobertas.

Em geral, os colonizadores foram sedimentando uma imagem ne-


gativa dos nativos, classificando-os como indolentes, rudes e pouco
aptos a aprender alguma coisa. Por outro lado, ao tentarem escravi-
zá-los e não obterem o resultado desejado, uma vez que os indígenas
pereciam pelo contato com as doenças do homem branco, além de
não se submeterem facilmente a essa condição e fugirem, passaram a
vê-los como irremediavelmente indolentes e preguiçosos. O comparti-
lhamento dessa visão, de certa forma, unia os colonizadores, uma vez
que o etnocentrismo

A antropologia cultural e a cultura brasileira 113


ajuda a manter a lealdade, a coesão e a unidade dos grupos. E
também serve para reforçar sentimentos patrióticos e naciona-
listas. Mas pode também apresentar consequências negativas.
Pode incrementar a resistência à mudança e encorajar a exclu-
são de elementos que poderiam contribuir para o seu desenvol-
vimento. Também pode incentivar o racismo e fomentar conflitos
entre grupos. (GIL, 2011, p. 59)

Infelizmente, graças a atitudes etnocêntricas, essa imagem se man-


tém entre muitos até hoje e, ao lado do descaso histórico em relação a
essa parcela da população brasileira, o que se vê é um enorme precon-
ceito que acaba por gerar discriminação e exclusão social.

A situação dos negros africanos, compulsoriamente trazidos da


África para aquela que se tornaria a mais importante colônia de Portu-
gal, o Brasil, não foi mais fácil. Pelo contrário, uma vez que, nesse caso,
a escravidão se consolidou e permaneceu por mais de 300 anos. Vio-
lenta e desumana, a escravidão causou danos ainda hoje irreparáveis
na sociedade brasileira. Último país americano a abolir essa prática,
o Brasil não conseguiu abolir o racismo, a discriminação e a exclusão
social a que são expostos os afrodescendentes no país. Isso porque,
após a abolição, não houve a preocupação do Estado com o futuro dos
recém-libertos, com sua inserção na sociedade mais ampla em igualda-
de de condições. Não houve, naquele momento (nem posteriormente),
a preocupação com a equidade, com a igualdade de oportunidades,
para que esses indivíduos tivessem condições de construir uma vida
digna, similar àquela que tinham os brancos.

Já os imigrantes brancos tinham melhores condições de acesso a


Vídeo direitos e à mobilidade social. Ainda que mais recentemente um sis-
No vídeo Ser brasileiro: qual tema de ações afirmativas tenha sido adotado, como as cotas raciais
a minha identidade?, de Lilia
Moritz Schwarcz, publicado
para ingresso em universidades, a injustiça social e a desigualdade se
pelo canal Casa do Saber, a mantêm. No Brasil, percebe-se que há uma subcidadania decorrente
antropóloga brasileira fala
sobre as raízes históricas,
do movimento de apagar o passado negro, negar a escravidão e refor-
os impactos culturais e a çar a inferioridade de negros e mestiços (SCHWARCZ, 2015).
persistência do racismo
no Brasil. Assim, o negro africano e seus descendentes são parte do tripé que
Disponível em: https://www.youtube. forma o povo brasileiro, caracterizado pela mistura étnico-racial e pe-
com/watch?v=rbg8NyUxCic. Acesso
las trocas culturais entre indígenas, negros e colonizadores europeus,
em: 3 jul. 2020.
originalmente portugueses e, ao longo da sua história, por outros imi-
grantes de diversas origens. Essa é base que deu origem ao povo bra-
sileiro. Porém, o que isso significa? Que o legado de cada uma dessas

114 Antropologia Cultural


Figura 2
culturas contribuiu, de alguma forma, na cons- trução Diversidade de etnias
da identidade nacional, tornando o Brasil plu-
ral, multicultural e heterogêneo.

Entretanto, a sociedade brasileira, ainda


que com essa marca da diversidade gerada
pelo convívio entre várias culturas, carac-
teriza-se também, ao contrário do que
acontecia na metrópole portuguesa, pelo
fato de a cor da pele ter se tornado um
fator de distinção social. A classificação
pela cor, segundo Schwarcz (2015, p. 70),
fez com que houvesse “gradações culturais
que demarcavam hierarquias internas, as Rawpixel.com/Shutterstock

quais, no limite, implicavam maior ou me-


nor exclusão social”. De acordo com a autora, o termo pardo, em es-
pecial, muito utilizado no Brasil em diferentes contextos sociais e de
acordo com quem faz uso dele, classifica indivíduos e indica o passado
escravocrata e a ideia do trabalho manual coercitivo.

Perceba que estamos falando de questões consideradas perma-


nentes na sociedade brasileira; só recentemente foi possível mudar as
bases que regulam algumas dessas relações, como é o caso dos filhos
ilegítimos, que por séculos foram, muitas vezes, fruto de violência se-
xual do senhor contra negras escravizadas. Só a partir da Constituição
de 1988, deixa de existir a discriminação em termos de estatuto jurídi-
co entre filhos legítimos e ilegítimos, que, aos poucos, já vinha sendo
alterado sem, no entanto, banir de vez a figura da ilegitimidade.

O que você pode perceber é que a formação do povo brasileiro


acontece num cenário de séculos de interação, trocas culturais (entre
as três etnias originais), relações verticalizadas (forte e marcante es-
tratificação social) e muita violência praticada pelas elites dominantes
Glossário
(violência física, sexual, moral, psicológica etc.). Mas também houve o
sincretismo: quando cultos ou
sincretismo, em especial de práticas religiosas, como é o caso do can-
doutrinas religiosas distintas se
domblé e da umbanda, que agregam elementos das religiões africanas juntam ou se misturam, dando
com santos e rituais católicos. novo sentido original a cada um,
muitas vezes originando uma
O que não se pode perder de vista é que, por mais harmônicas nova prática religiosa.
que, em alguns contextos, as relações interétnicas possam ter ocor-
rido, o povo brasileiro surge também do conflito, do desrespeito e
da discriminação. Ainda hoje, a diversidade do povo brasileiro não é

A antropologia cultural e a cultura brasileira 115


bem recebida por grande parcela da população, que se vê superior
pela cor de sua pele.

E você, como você vê essa diversidade? Gosta da ideia de ser par-


te desse povo mestiço? Como percebe que a sociedade brasileira vê a
mestiçagem?

Alguns dos mais importantes pensadores brasileiros, alguns de-


les antropólogos, debruçaram-se sobre o tema da formação do povo
brasileiro e, com suas obras, contribuíram para o debate em torno do
impacto dessa mistura de raças e culturas para a ideia de identidade
nacional, como veremos nas próximas seções.

6.2 A diversidade cultural brasileira


Vídeo Como é possível que o Brasil avance enquanto nação e se tor-
ne um país mais acolhedor, igualitário, menos injusto e violento? A
antropologia e a análise antropológica fornecem elementos e ferra-
mentas que podem auxiliar nessa discussão. A atitude antropológica
de respeito à alteridade e à diversidade pode ser o início de uma
transformação mais profunda na visão de mundo dos indivíduos,
ao lado de ações que promovam as mudanças estruturais das quais
a sociedade brasileira necessita. De todo modo, enquanto isso não
acontece, não se pode simplesmente aceitar, mas mobilizar esforços
para tornar a vida das minorias mais digna. E não se está falando
aqui somente do acesso a direitos básicos como saúde, educação,
moradia, emprego, lazer, cultura etc., trata-se de respeito e reconhe-
cimento do seu valor.

Há muito se diz na antropologia que a diversidade não deveria ser


um problema para a humanidade, uma vez que ela é exatamente sua
maior riqueza. E no caso do Brasil, país plural e multiétnico desde sua
origem, a diversidade já poderia ser mais valorizada. No senso comum,
é normal se ouvir expressões como “não existe povo como o brasilei-
ro”, “o brasileiro é o povo mais acolhedor do mundo”, “o Brasil é uma
mistura maravilhosa”. Porém, no dia a dia, nem sempre é o que se vê
nas relações sociais, principalmente quando se observa dados e indi-
cadores sociais, que deixam clara a desigualdade e as diferenças entre
brancos e afrodescendentes.

116 Antropologia Cultural


Figura 3
Gráfico populacional brasileiro

População residente, por cor ou raça, 2010

Branca

Preta

Amarela

Parda

Indígena

Sem declaração

0 10mi 20mi 30mi 40mi 50mi 60mi 70mi 80mi 90mi

Fonte: IBGE, 2010.

Observe que a população brasileira tem grande parcela de indi-


víduos não brancos, o que mostra que a mestiçagem efetivamente é
uma das marcas do perfil demográfico do país. Diante dessa realidade
e considerando a dívida histórica que tem o país em relação a essa po-
pulação, a necessidade de se discutir a questão da discriminação efeti-
vamente se impõe.

É preciso também não perder de vista que viver em sociedade é


estar em contato com o outro e, portanto, a realidade é e sempre será
relacional, isto é, não podemos imaginar que determinantes biológi-
cos ou culturais sejam algo inerente aos indivíduos ou aos grupos. São
sempre social e historicamente construídos. Do contrário, anulamos a
perspectiva do conflito, o que atende aos interesses das elites domi-
nantes, que optam por não problematizar aquilo que realmente impor-
ta: a superação da desigualdade. Se não considerarmos que isso tem
desdobramentos na convivência, corremos o risco de colocar um véu
sobre a discriminação e a exclusão às quais as populações mais pobres
e as minorias estão expostas, considerando-as “naturais”.

A antropologia, ao propor o estudo do homem e da cultura, tem


a diversidade como um dos seus temas mais importantes. Na con-
temporaneidade, a análise de como a humanidade se defronta com

A antropologia cultural e a cultura brasileira 117


as diferenças assume ainda mais relevância quando observados os
desdobramentos da globalização, que tende a homogeneizar e pa-
dronizar práticas, costumes, comportamentos e valores. No caso da
formação da sociedade brasileira, tão multicultural, isso se torna
ainda mais relevante.

Ao considerarmos ainda o passado histórico da formação do povo


brasileiro, em especial quando, a partir da segunda metade do século
XIX, a solução apresentada para que o Brasil progredisse foi o “bran-
queamento” da população, colocamos luz sobre as dificuldades de en-
frentar o preconceito e de intensificar o combate e a superação das
desigualdades decorrentes da diversidade.

Essa política de branqueamento é reforçada quando surge a ne-


cessidade de se substituir a mão de obra negra africana no momento
em que o movimento abolicionista e a pressão exercida pela Inglaterra
para que o Brasil acabasse com a escravidão davam sinais de que al-
cançariam seu objetivo. Tornando-se política de Estado, foi absoluta-
mente seletiva ao propor que europeus brancos fossem atraídos para
o Brasil, muitas vezes sob falsas promessas de que aqui encontrariam
terra e trabalho com facilidade.

É claro que não foi assim que tudo aconteceu, mas o fato de um
Figura 4
dia ter sido pensada e implementada uma política desse tipo mostra
Nelson Mandela, ex-presi-
dente da África do Sul o quão difícil era a relação entre a elite branca e o res-
tante da população, em sua maioria, pobre, negra e de-
South Africa The Good News/Wikimedia Commons

sassistida. Imigrantes de várias origens foram atraídos


para o Brasil para trabalhar como agricultores, sobre-
tudo nas regiões do Vale do Paraíba, em São Paulo e
Rio de Janeiro, onde a cultura do café se expandia, ge-
rava riqueza e ainda mais desigualdade.

Mas a ideologia da mestiçagem permaneceu e se fir-


mou no imaginário nacional. Mais uma vez a antropolo-
gia amplia o horizonte de reflexão quando promove a
problematização da ideia de que, no Brasil, não haveria
racismo, ao contrário do que aconteceria nos Estados
Unidos ou na África do Sul, por exemplo. Nesses países,
a segregação se tornou política de Estado e, mesmo com
o surgimento do movimento negro nos anos 1960 (EUA)
ou a luta de Nelson Mandela (África do Sul), não foi pos-
sível acabar definitivamente com o racismo.

118 Antropologia Cultural


E no Brasil? O que se pode dizer sobre essa questão? Ainda que se
relacionem na forma, o racismo visto na sociedade americana e na
brasileira são bem diferentes no conteúdo, a começar pelo fato de
que, aqui, não existiu segregação. Assim, a discussão sobre o racismo
no Brasil não pode continuar a ser pautada pelos interesses dos ou-
tros, mas, sim, pelos da sociedade brasileira e de seus atores, particu-
larmente os envolvidos na questão. Nesse contexto, e considerando
que, no Brasil, a parcela da população não branca é numericamente
majoritária, mas constitui-se como minoria em termos de construção
da cidadania, isso é ainda mais proeminente. A luta contra o racismo
não é apenas questão dos negros, mas de toda a sociedade, que pre-
cisa ser antirracista.

No Brasil, a figura mais emblemática da luta dos negros, ainda sob


a vigência do escravismo, Zumbi dos Palmares, foi suprimida da his-
toriografia oficial por décadas por seus inimigos, e ainda hoje é alvo
de movimentos de negação ou desqualificação de sua importância
para a compreensão da luta dos negros por liberdade. O dia de sua
morte, 20 de novembro de 1695, se tornou a data oficial para se lem-
brar da luta do movimento negro no Brasil, em detrimento do dia
13 de maio de 1888, quando se comemorava a abolição da escravidão Figura 5
Estátua de Zumbi dos
pela Princesa Izabel, ao promulgar a Lei Áurea. Isso porque, conforme
Palmares no Centro Históri-
avançamos em termos de conscientização acerca des- co de Salvador (BA)
sa página da história do país, 13 de maio foi perdendo
o sentido. Vale lembrar que essa substituição ainda
gera polêmica em relação à sua validade. Nem todos
os estados brasileiros, por exemplo, adotaram 20 de
novembro como um de seus feriados. Essa negação,
como muitos outros silêncios, grita sobre como essa
mudança é percebida por parcela da população.

Entretanto, o que se pode afirmar com segurança


é que o desaparecimento desse personagem da histó-
ria fala muito sobre como os brasileiros se relacionam
com seu passado e com sua formação étnico-racial.
Para muitos, seria preferível que figuras como essa
Cassiohabib/Shutterstock

não ganhassem visibilidade para que não fosse preci-


so reconhecer que o Brasil é mestiço e que ainda não
lida bem com essa característica fundadora da sua
nacionalidade.

A antropologia cultural e a cultura brasileira 119


A existência de quilombos sinaliza que havia forte resistência negra
à violência da escravidão e, pelo que representavam, sempre foram
alvo da ira e das perseguições dos colonos e dos governantes, portu-
gueses ou brasileiros. A cada fuga de um escravo ou surgimento de um
quilombo, aumentavam a hostilidade e a estigmatização da população
negra no país durante os períodos colonial e imperial.

Além disso, por aqui, as forças da lei, aquelas que detêm o poder
constitucional de zelar pela segurança dos cidadãos, nem sempre o
exerceram em detrimento da manutenção do apoio a forças histori-
camente opressoras e antidemocráticas. E o alvo tem sido a mesma
parcela da população que sempre foi discriminada e excluída.

Na verdade, o Brasil do começo do século XIX se via às voltas com


problemas e desafios que ainda hoje não conseguiu equacionar. Para
Gomes (2009, p. 293), “era um país perigosamente indomável, onde
brancos, negros, mestiços, índios, senhores e escravos conviviam de
forma precária, sem um projeto definido de sociedade ou nação”. Essa
visão, partilhada por muitos pensadores que se dedicaram a explicar o
Brasil, ainda encontra eco na atualidade. Mas é sempre bom lembrar
que, no Brasil, as raízes do racismo estão no colonialismo, quando os
europeus exploraram as terras conquistadas no Novo Mundo, extermi-
nando parte da população nativa, instituindo o escravismo e deixando
um legado de violência e discriminação.

A antropologia, em sua fase inicial, em alguma medida compactuou


com as teorias racistas que circulavam durante aquele período, utilizando
o conceito de raça como categoria de análise discriminatória. Porém vai
abandonando essa postura à medida que a teoria antropológica abando-
na o conceito de raça, que classificava e hierarquizava seres humanos a
partir de características físicas como a cor da pele. Ao adotar o conceito de
etnia, a antropologia, inclusive no Brasil, adota também uma postura críti-
ca sobre a não percepção da alteridade e as consequências dessa atitude,
especialmente a discriminação. Hierarquizar seres humanos em razão de
sua etnia ou de suas práticas culturais é reproduzir o que vem sendo im-
posto a milhões de indivíduos ao longo do processo civilizatório.

A discriminação tem sido um fator essencial para se compreender


a realidade brasileira e se relaciona com a existência de preconceito,
intolerância, hostilidade, violência, ódio, rejeição, ressentimento e ex-
clusão. É muito grave quando se percebe que, muitas vezes, as próprias

120 Antropologia Cultural


vítimas internalizam o sentimento de inferioridade e passam a acredi-
tar que realmente elas são as responsáveis por sua exclusão, e não a
sociedade que as rejeita. Considerando que o preconceito acontece em
níveis pessoal/individual e ao mesmo tempo coletivo, as ações contra o
preconceito são de cada um e de todos.

No Brasil, onde muitos indivíduos não assumem ser racistas, aca-


bar com o preconceito e com a discriminação, por qualquer razão, será
mais difícil. Essa dificuldade se deve ao fato de que efetivamente não
solucionamos um problema sem antes ao menos assumirmos que ele
existe concretamente. O reconhecimento do racismo estrutural, que é
velado, é o primeiro passo para que a mudança aconteça. Revermos
criticamente algumas narrativas que formam a visão dos indivíduos em
relação às diferenças é urgente e demanda criticidade e discernimento.
Narrativas podem gerar distorções, inverdades e mitos.

Uma obra importante para se pensar a construção da nacionalidade


brasileira é o livro Casa-grande e senzala, de Gilberto Freyre, publicado em
1933, no qual é criado um dos mitos sobre as relações étnico-raciais no
Brasil. Trata-se do mito da democracia racial, que não se sustenta diante
de uma análise mais crítica, que considere a realidade da exclusão socioe-
conômica que marca a vida da população afrodescendente.

Inicialmente foi muito aclamado em razão do ineditismo da análise


sobre a formação do povo brasileiro, partindo de um olhar sobre a for-
mação e o cotidiano de uma sociedade agrária, escravocrata e marcada
pelo legado da presença dos engenhos de açúcar. Essa atividade, exercida
com mão de obra escrava negra, deixou marcas na cultura e colaborou
para a construção da ideia de nacionalidade. Freyre (1986) elabora uma
imagem do brasileiro e do caráter nacional que, naquele momento, não
refletia propriamente a realidade, mas contribui para mudar o rumo do
pensamento brasileiro à época, com fortes referências às teorias racistas
que circulavam.

Ao tomar objetos de estudo relacionados ao cotidiano, como a co-


zinha e a comida, as festas e rituais, as relações sociais que se configu-
ravam entre a casa-grande e a senzala, o autor apresenta uma visão
nostálgica e idealizada do passado colonial do Brasil. Mas o valor da
obra de Gilberto Freyre reside no fato de abordar de forma inovadora
temas como a escravidão, a monocultura da cana e o latifúndio – ainda
que utilize o conceito de raça –, como ninguém havia feito. É vista como

A antropologia cultural e a cultura brasileira 121


uma primeira tentativa relevante de discutir a construção da identida-
de brasileira, valorizando em especial o papel da cultura negra nesse
processo. Para Ventura (2000, p. 11), segundo a visão de Freyre e de
sua ideia de democracia racial, o Brasil é apresentado como
um paraíso tropical e mestiço, em que se daria a confraterniza-
ção de raças e culturas oriundas da Europa, África e América. A
ideia de uma história em que os conflitos se harmonizam pas-
sou a fazer parte do senso comum do brasileiro e da cultura
política do país, tendo sido veiculada pelos sucessivos governos
a partir dos anos 1940. Incorporado por grande parte da po-
pulação, o mito da “democracia racial” se tornou um obstáculo
para o enfrentamento das questões étnica e sociais e uma bar-
reira para as minorias, como os negros, os índios, as mulheres
e os homossexuais, cujos movimentos lutam por identidades
diferenciadas e reivindicações específicas.

Como dito anteriormente, enquanto não questionarmos efetiva-


mente o que causa a discriminação de indivíduos e grupos, superá-la
fica mais complicado. Mesmo propondo uma análise a partir da cultu-
ra, e não mais de critérios biológicos, Freyre minimiza os conflitos que
marcaram a realidade das relações entre brancos, negros e índios no
país, diferenciando-se de outros intelectuais que escreveram sobre o
caráter nacional antes dele. Ele afirma que não tem nenhum funda-
mento a ideia de superioridade de uma raça sobre outra e valoriza
a cultura popular e a mestiçagem, para ele, a maior riqueza do povo
brasileiro. Entretanto, exagera ao dizer que haveria uma fusão das
três raças de forma harmônica. Destaca fortemente a inter-relação
entre o ambiente, a raça e a cultura.

2 Foi o estudo de Antropologia sob a orientação do Professor


2
Boas que primeiro me revelou o negro e o mulato no seu justo
Franz Boas é um antropólogo
americano culturalista com valor – separados dos traços de raça os efeitos do ambiente
quem Gilberto Freyre estudou e ou da experiência cultural. Aprendi a considerar fundamental a
que influenciou toda a sua obra. diferença entre raça e cultura; a discriminar entre os efeitos de
relações puramente genéticas e os de influências sociais, de he-
rança cultural e do meio. Neste critério de diferenciação funda-
mental entre raça e cultura assenta todo o plano deste ensaio.
(FREYRE, 1986, p. 11)

Gilberto Freyre, de certa maneira, produz uma ideologia que sus-


tenta o mito da democracia racial, forjada do encontro das três raças
que fundam o povo brasileiro, na contramão da ideia de mestiça-
gem como algo negativo. Mas acaba gerando um movimento que

122 Antropologia Cultural


se mostrou prejudicial ao longo da história: a demora em se tratar
do tema do racismo e da discriminação dele decorrente de maneira
mais incisiva.

Lilia Schwarcz (2015, p. 342) destaca que o


cruzamento de raças passava a singularizar a nação nesse
processo que leva a miscigenação entre diferentes grupos so-
ciais – na maioria das vezes violenta – a se transformar em
modelo de sociabilidade. [...] idealizava uma nova civilização,
cujo modelo era agora o da casa-grande nordestina. Diferen-
temente do modernismo paulista e carioca eminentemente
urbano, nesse caso era a sociedade colonial da cana, pesca-
da no passado, que virava forma de nacionalidade. Inclusão
casava-se com exclusão social e os opostos se equilibrava: o
senhor patriarcal e o escravo fiel. Freyre mantinha intocados
em sua obra os conceitos de hierarquia social dada por crité-
rios raciais, assim como não deixava de descrever a violência
e o sadismo presentes durante o período escravista. A novida-
de do seu argumento estava em destacar a intimidade do lar,
suavizar a vida dura do eito e fazer de tudo material de exalta-
ção: enfim uma “boa escravidão”, como se essa não fosse uma
contradição em seus termos.

Ao se transformar num modelo de sociabilidade, a ideia de mesti-


çagem dificultou o movimento de luta da sociedade brasileira contra a
discriminação, de certa forma negando o racismo estrutural que per-
siste, em todas as suas contradições.

6.3 O colonialismo, a mestiçagem e


Vídeo o patriarcalismo no Brasil
Todo o cenário aqui apresentado sobre o racismo e a discriminação
tem raízes históricas no Brasil, em especial no colonialismo e no modo
de produção que lhe deu sustentação: o escravismo.

O processo de colonização aconteceu a partir do século XIV e diz


respeito à ocupação de territórios ao redor do mundo pelas potências
da época, que na primeira fase eram Portugal e Espanha. Mais tarde,
Inglaterra, França e Holanda, entre outros, também participaram dessa
corrida. Avançando mar afora, esses países foram descobrindo e ocupan-
do novas terras, e em todos os continentes foram instauradas colônias, a
partir das quais se dava o comércio. Numa espécie de pacto, oficializado

A antropologia cultural e a cultura brasileira 123


ou não, as colônias se tornavam fornecedoras de mercadorias para as
metrópoles, que muito lucravam enquanto sufocavam qualquer iniciati-
va de rompimento dessa estrutura. Por sua vez, as colônias eram obriga-
das a comprar produtos oriundos apenas das suas metrópoles.

Instaurou-se principalmente na costa africana, em partes da Ásia


e nas Américas, dois tipos de colonização: de exploração e de povoa-
mento. Em regiões que foram ocupadas pela Inglaterra, predominou
a colonização de povoamento, uma vez que o interesse prioritário era
povoar e promover o desenvolvimento dessas regiões. Nesse modelo,
a maior parte das riquezas geradas permanecia nas colônias, que, as-
sim, tinham condições de se desenvolver de maneira mais ou menos
autônoma. Isso não eliminava a necessidade de importar produtos vin-
dos da metrópole. Entretanto, o controle da vida econômica da colônia
era severo, com taxas e impostos que, em certos momentos, sufoca-
vam a vida financeira dos colonos. De todo modo, e mesmo havendo
a implementação do escravismo em algumas regiões, como foi o caso
do sul dos Estados Unidos, esse sistema permitia o progresso das colô-
Leitura
nias. Algumas delas são hoje grandes potências mundiais.
Sempre é muito bom
conhecer mais sobre Já na colonização baseada no modelo de exploração, as regiões ocu-
eventos importantes
padas tinham o papel de fornecer tudo aquilo que fosse interessante
do nosso passado,
especialmente quando e, portanto, desejado pela metrópole, fossem recursos naturais ou, no
foram tão impactantes
caso do Brasil e de outras colônias nas Américas Latina e Central, os
quanto o Nazismo. A
matéria Neocolonialismo: chamados produtos tropicais. A expansão e a exploração dessas terras,
o fardo do homem branco
nas quais foi adotada a mão de obra negra africana para o trabalho nas
em charges do século 19
esclarece mais sobre as culturas implementadas, foram danosas para o futuro de todos esses
bases da Eugenia, teoria
países. No Brasil, a cultura da cana-de-açúcar é o melhor exemplo des-
racista que repercutiu
fortemente nas primeiras se arranjo.
décadas do século XX.
Esse ordenamento deixou como herança o subdesenvolvimento
Disponível em: https://
aventurasnahistoria.uol.com.br/ de muitas das ex-colônias pelo mundo, enquanto suas metrópoles
noticias/reportagem/o-fardo-do- se tornaram potências imperialistas a partir do século XIX e ao longo
homem-branco-em-charges.phtml.
Acesso em: 3 jul. 2020. do século XX. Esse fato histórico, conhecido por neocolonialismo, pre-
dominou na Ásia e na África como resultado da Revolução Industrial
e num contexto de necessidade de ampliação de mercado, avanço
do capitalismo, alocação de populações nos países metropolitanos
e alargamento do comércio marítimo internacional. Uma das ideias
que justificavam a ocupação de territórios na África era a suposta
necessidade de civilizar os povos nativos das regiões colonizadas,
em sua maioria de população negra – o chamado fardo do homem

124 Antropologia Cultural


Leitura
branco. Os europeus teriam a missão civilizatória de ajudar em seu
A matéria Eugenia não
processo de desenvolvimento. é coisa do passado traz
elementos para enten-
Nesse momento, a antropologia tem participação na difusão de dermos a conexão entre
teorias racistas, principalmente por conta dos trabalhos desenvolvidos a eugenia e o neocolonia-
lismo. Vale a pena!
pela Antropologia Biológica, que analisa características físicas de indi-
Disponível em: https://super.abril.
víduos não brancos e não europeus para buscar justificativas científi- com.br/ciencia/a-longa-historia-
cas que explicassem as diferenças entre os seres humanos. Também da-eugenia/. Acesso em: 3 jul.
2020.
o Darwinismo social, que incorpora a Teoria da Evolução de Charles
Darwin para analisar os fenômenos sociais e a diversidade. Mas, a par-
tir do momento em que se intensifica o trabalho de campo em busca
de populações primitivas mais distantes do local de origem dos pesqui-
sadores, a antropologia cultural muda de rumo.

O Brasil não fica impune a tudo isso, por aqui as teorias racistas
repercutem fortemente e, ao lado do passado colonial escravista, ge-
ram uma desigualdade que persiste e se alimenta do preconceito que
se consolidou contra a população afrodescendente particularmente.
Como se viu anteriormente na fala de Schwarcz, uma das formas en-
contradas para tentar sublimar, ocultar e até mesmo negar o racismo
no país foi acolher a teoria da democracia racial de Freyre ao idealizar a
mestiçagem. Com Freyre, o que se vê é uma tentativa de construção de
uma ideia de Brasil que ameniza o peso do legado do passado.

A identidade nacional foi forjada por Freyre e outros intelectuais


brasileiros a partir da análise das relações étnico-raciais, o que já dá
pistas de como esse era um tema relevante e muito presente. Porém,
isso não significa que o projeto de busca do caráter nacional tenha co-
locado em xeque a relação entre a desigualdade e a etnicidade. Isso
pode ter contribuído dramaticamente para a persistência do racismo
no Brasil, mas tanto Freyre quanto Sérgio Buarque de Holanda, e ou-
tros pensadores, ao discutirem o tripé étnico-racial (indígena, negro e
branco europeu), contribuíram para definir também outro traço mar-
cante da formação do povo brasileiro: o patriarcalismo.

Desde o início da colonização, em especial pela importância da so-


ciedade açucareira, que tinha no Nordeste brasileiro seu modelo mais
bem-acabado, a família era a célula original das relações sociais. No
engenho de açúcar, fundam-se as relações sociais, apresentando, em
suas organizações econômica, política e cultural, a figura do pai – do
homem, do patriarca – como a figura central, logo, a mais importante.

A antropologia cultural e a cultura brasileira 125


Tudo acontecia ao seu redor e sob suas vistas, já que detinha todos os
poderes sobre a família, que não era composta apenas de pais e filhos,
mas incorporava outros parentes (avós, tios, sobrinhos), afilhados e
agregados, além do plantel de escravos.

Esse homem, que comumente tinha amantes e filhos ilegítimos, na


maioria das vezes, exercia seu poder com rigor, mantendo tudo sob
seu controle, muitas vezes de forma violenta. Em alguns casos, tinha o
poder de vida e de morte sobre todos ao seu redor.

O próprio Freyre (1986, p. LXXV) dá a exata dimensão da importância


desse patriarca:
a casa-grande venceu no Brasil a Igreja, nos impulsos que esta
a princípio manifestou para ser a dona da terra. Vencido o je-
suíta, o senhor de engenho ficou dominando quase sozinho. O
verdadeiro dono do Brasil. Mais do que os vice-reis e os bispos.
A força concentrou-se nas mãos dos senhores rurais, donos das
terras. Donos dos homens. Donos das mulheres. Suas casas re-
presentam esse imenso poderia feudal. “Feias e fortes”. “Paredes
grossas. Alicerces profundos”.

A figura do patriarca era temida, ela assustava, intimidava e oprimia,


mas, ao mesmo tempo, era admirada e sua autoridade, reconhecida. A
submissão e a subserviência de todos que orbitavam ao redor do chefe
da família eram comuns, o que contribuía para a manutenção dessa
estrutura. Na verdade, a imagem do patriarca era dúbia, variando en-
tre algoz e protetor daqueles que de alguma maneira dele dependiam.
E como isso tudo era possível? Porque, mesmo sendo a família uma
instituição universal, não é uma instituição homogênea em todos os
lugares do mundo. Varia em relação à forma, figura central (homem/
patriarcado ou mulher/matriarcado), graus de dependência de seus
membros em relação a ela e padrão de autoridade.

Mas o que define o patriarcado é o padrão de autoridade no inte-


rior da família, como o poder é exercido e como estabelece as rela-
ções. Significa dizer que “quando a sociedade espera que o homem
domine em todas as decisões, esse padrão é denominado patriarcado”
(GIL, 2011, p. 170). São muitos os países nos quais o patriarcado define
as relações sociais e impacta na cultura local, como é o caso da Ará-
bia Saudita, onde só recentemente as mulheres puderam começar a
dirigir carros. Esse é um exemplo da importância que tem o homem

126 Antropologia Cultural


nessas sociedades, que exerce sua autoridade em todas as instâncias
da vida do grupo que o cerca e sobre o qual se impõe e impõe as suas
vontades.

Para Fausto (1999, p. 72), o modelo patriarcal de família “teve gran-


de importância, marcando inclusive [...] as relações entre sociedade e o
Estado, mais exatamente da classe dominante do Nordeste”. Por déca-
das, a autoridade política na região foi exercida por indivíduos que, no
3
âmbito familiar, exerciam o poder e, na maioria das vezes, o faziam de
3 Poderes econômico e político
forma autoritária, dando origem ao coronelismo .
historicamente exercidos no
A cultura da violência no Brasil ganha mais esse componente, uma Nordeste brasileiro, em geral
decorrente do lucro derivado do
vez que a autoridade do coronel era garantida pelo uso da força policial latifúndio agroexportador. Se
sempre que seus interesses pudessem estar em risco. O que se observa intensifica a partir do final da
é mais uma vez o reforço ao patrimonialismo, ou seja, a não definição primeira fase da República no
Brasil, no início do século XX.
de limites entre a esfera pública e privada. A ação dessas autoridades
locais, que se impunham sobre o restante da população em seu entor-
no, gerou ainda mais exclusão política, sobretudo de indivíduos pardos
e negros, que historicamente não tinham condições econômicas de fa-
zer frente ao poder dos coronéis. Dessa forma, a sociedade brasileira
ganhava cada vez mais contornos autoritários, desenhando-se uma na-
ção na qual o paternalismo se tornava parte de sua identidade.

A civilização do açúcar, fundada em contradições, conflitos e rela-


ções verticalizadas entre senhores de engenho e escravos e homens
pobres, foi vista pelo olhar de Freyre, em sua dimensão paternalista e
violenta. No entanto, ele não problematizou essa violência e sua rela-
ção com a discriminação e exclusão dos negros, quase naturalizando-a
sob o manto da mistura e democracia racial. Assim,
[a] mistura deixou de ser desvantagem para tornar-se elogio, e
diversas práticas regionais associadas ao popular – na culinária,
na dança, na música, na religião – seriam devidamente desafrica-
nizadas, por assim dizer. Transformadas em motivo de orgulho
nacional, foram aclamadas, e são até hoje consideradas, marca
da originalidade cultural do país. (SCHWARCZ, 2015, p. 378)

A autora exemplifica essa ideia de mistura com um dos mais legí-


timos e reconhecidos pratos da culinária brasileira: o arroz com fei-
jão. Quando se misturam, os dois elementos seriam representativos
do povo brasileiro e da mestiçagem, representando a nacionalidade
brasileira à mesa.

A antropologia cultural e a cultura brasileira 127


Livro
Esses temas – formação do povo brasileiro, mestiçagem e patriarca-
lismo (e sua relação com o patrimonialismo) – também foram analisa-
dos por dois outros grandes pensadores brasileiros: Sérgio Buarque de
Holanda e Darcy Ribeiro.

O livro Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, publicado


em 1936, dialoga com a ideia de buscar uma identidade do caráter do
No livro O que faz o brasil, brasileiro e vai destacar o conceito de homem cordial, um dos mais
Brasil?, o antropólogo
importantes das Ciências Humanas no Brasil. Ele afirma que uma das
Roberto Damatta tenta
traçar o que caracteriza o mais importantes marcas do brasileiro é a cordialidade, que ele não
povo brasileiro analisan-
entende como bondade, generosidade ou qualquer outro tipo de rela-
do como se constituem
algumas relações sociais ção benéfica. Define-a como um agir com o coração, com afetos, que
para compreender o
acabam mascarando as relações de conflito, de violência e de exclusão
caráter nacional, a partir
da discussão do binômio da sociedade brasileira (HOLANDA, 1936).
casa-rua.
Um bom exemplo são as relações sociais entre patroas e empre-
DAMATTA, R. Rio de Janeiro: Rocco,
1999. gadas domésticas no Brasil. Ainda que muitas vezes trabalhem em
condições inaceitáveis, empregadas acabam
se tornando amigas das patroas, mascarando
uma relação de exploração e baixos salários.
Ao invés de relações formais e profissionais, tal
como ocorre em outros países, por aqui mistu-
ra-se trabalho com afetos, camuflando o confli-
to e a desigualdade.

Com a ideia de cordialidade, Holanda se con-


trapõe a Freyre, sobretudo à visão de democra-
cia racial. Para ele, a visão positiva ou otimista
que geralmente predominava – e de certa forma
ainda se mantém – em relação à violência da es-
cravidão no país é uma visão cordial e mascara
Cassiohabib/Shutterstock
o conflito. E o que se pode depreender dessa
visão da cordialidade? Que as relações sociais podem ser profunda-
Figura 6
mente hipócritas, de mascaramento das múltiplas violências a que são
Relacionamento com em-
pregadas domésticas submetidas as populações mais oprimidas e discriminadas. A realidade
acaba sendo ocultada e os conflitos minimizados.

A questão que se coloca então é pensar como um povo que se diz


pacífico consegue ao mesmo tempo ser tão violento. Holanda (1995)
responde dizendo que essas relações de afeto são fachadas para ocul-
tar o que acontece na realidade: discriminação, exclusão e violência.
As relações de conflito e de violência no Brasil não são necessariamen-

128 Antropologia Cultural


te explícitas; passam por essas relações afetuosas e por um discurso
que minimiza o fato de que as diferenças existem, impactam no cotidia-
no de muitos indivíduos, geram sofrimento, muita discriminação e ex-
clusão. Outro exemplo da cordialidade: estacionar “cinco minutinhos”
em vaga preferencial sem ter direito a ela. O uso do diminutivo ajuda
a criar essa relação de afeto que tenta minimizar ou descaracterizar o
fato em si – a corrupção e o não respeito às regras.

O antropólogo Darcy Ribeiro, um dos mais importantes do país,


tentou, com seu trabalho, propor uma teoria geral sobre o Brasil. Em
seu livro O povo brasileiro (1995), tenta traçar matrizes nacionais, ou
seja, descobrir quais são as vertentes étnicas dos povos implicados no
surgimento do Brasil. Um segundo aspecto seria tentar nortear as rela-
ções que se deram entre essas populações. Isso é fundamental. Se por
um lado temos diferentes populações, por outro precisamos traçar as
inter-relações entre elas, uma vez que isso vai pautar o futuro de cada
uma delas. Ele apresenta os pilares fundamentais populacionais do
Brasil e, ao mesmo tempo, mostra as conexões entre eles e as relações
entre esses múltiplos povos.

Um fato interessante é que a ideia de Ribeiro (1995) apresenta


uma sociedade totalmente conflituosa, em contraposição à ideia de
Freyre, dizendo que o Brasil é fruto de uma grande catástrofe, de Filme
uma grande briga, de uma grande guerra e de uma luta extrema-
mente desproporcional, inicialmente entre portugueses e indígenas,
e mais tarde entre os portugueses e negros trazidos da África para
serem escravizados no Brasil.

Para Ribeiro (1995), o brasileiro foi gestado a partir da sociedade


portuguesa e da violência, manifestada em forma desproporcional
com ênfase sobre as populações negras e indígenas. Ao contrário do
O filme Que horas ela
que pensava Freyre, a miscigenação, para ele, vai ser uma pista, uma
volta? narra a história
evidência de uma catástrofe. Não vai ser um elemento de paz ou de de uma empregada
doméstica que mora há
harmonização das classes sociais ou das múltiplas etnias, mas, sim,
muito tempo na casa
um elemento para confirmar que essa miscigenação na verdade é dos patrões (no modelo
tradicional do Brasil, ser
a maior característica que temos de um passado violento. De uma
“quase da família”), mas
violência que foi exercida de forma militarizada, ou seja, de forma tudo muda quando sua
filha vem morar com ela.
bélica, como também de forma sexual. A miscigenação também in-
dica violência sexual contra esses povos, o que implica também uma MUYLAERT, A. Brasil: Paris Filmes,
2015.
certa interação entre eles.

A antropologia cultural e a cultura brasileira 129


Essa visão de Freyre, pioneira nos estudos sobre a formação do
povo brasileiro, repercutiu entre intelectuais e, por muito tempo, vali-
dou a visão de um Brasil harmônico e sem conflitos étnico-raciais. Mas
isentar a sociedade de conflitos foi algo que Ribeiro não fez, ele tenta
traçar as múltiplas origens do Brasil em sua enorme diversidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A antropologia cultural ao longo da sua história, em diversos lugares do
mundo, esteve à frente da discussão sobre a formação da identidade de um
povo, de uma nação. No Brasil, não foi diferente. O fato de ter sido um país
estratégico para o projeto colonial de Portugal no contexto da expansão ul-
tramarina por mais de 300 anos, quase o mesmo tempo que durou a escra-
vidão por aqui, acaba pautando temas para a pesquisa acadêmica na área.
Nesse contexto, o colonialismo e todos os seus desdobramentos – falta de
autonomia, liberdade e muita violência – irão marcar para sempre o modo de
ser e de estar no mundo do povo brasileiro.
Cada um a seu modo, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Darcy
Ribeiro e tantos outros pensadores brasileiros tentaram definir o caráter na-
cional, em especial o papel desempenhado pela prevalência da mão de obra
negra na atividade econômica colonial e suas consequências para o futuro
do país. Ainda que não concordem em relação a muitos pontos, convergem
na percepção da necessidade de se pensar a mistura de raças que aqui se
verifica desde os primórdios da ocupação portuguesa do território brasilei-
ro. Analisando as visões que imperavam sobre a mestiçagem, dialogam com
diferentes interlocutores para tentar compreender em que medida esse foi
um traço decisivo para a constituição da sociedade e da identidade do Brasil.

ATIVIDADES
1. Gilberto Freyre foi um dos pioneiros a pensar sobre a formação do
povo brasileiro e a cultura brasileira, focando a ideia da miscigenação
de povos que formou o Brasil. Conforme o autor, esse é um aspecto
original da identidade nacional. Explique por que a visão de Freyre é
polêmica e deve ser revisitada.

2. Para Sérgio Buarque de Holanda, a forte presença da afetividade nas


relações pessoais no Brasil colabora para a permanência do mito de
que o país é pacífico. Entretanto, o que se vê no cotidiano são dados
que comprovam que, em particular, a população está exposta a todo
tipo de violência. Como o conceito de homem cordial pode explicar
essa contradição e a relação com o patriarcalismo?

130 Antropologia Cultural


3. A antropologia cultural contribui para a construção do pensamento
sobre a cultura brasileira com temas que há muito fazem parte da
agenda de pesquisadores e da própria sociedade. Nessa trajetória,
vem à luz a formação étnico-racial do Brasil – o tripé indígena, negro
africano e branco europeu. Entretanto, por muito tempo essa origem
foi mal vista ou parte da sua influência sobre o caráter nacional foi
negada. Como a antropologia cultural influenciou o debate sobre as
origens do Brasil e a construção da brasilidade?

REFERÊNCIAS
ARRUDA, J. J. de A.; PILETTI, N. Toda a História Geral e História do Brasil. 13. ed. São Paulo:
Ática, 2007. (v. único)
FAUSTO, B. História do Brasil. 6. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999.
FREYRE, G. Casa grande e senzala. São Paulo: Círculo do Livro, 1986.
GÂNDAVO, P. M. Tratado da terra do Brasil. Brasília: Edições do Senado Federal, 2008. v. 100.
Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/188899/Tratado%20
da%20terra%20do%20Brasil.pdf?sequenc. Acesso em: 5 abr. 2020.
GIL, A. C. Sociologia geral. São Paulo: Atlas, 2011.
GOMES, L. 1808: como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta
enganaram Napoleão e mudaram a história de Portugal e do Brasil. 3. ed. São Paulo: Editora
Planeta do Brasil, 2009.
HOLANDA, S. B. de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1936.
HOLANDA, S. B. de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. Censo demográfico. IBGE,
2020. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/9662-censo-
demografico-2010.html?edicao=10503&t=destaques. Acesso em: 17 jul. 2020.
RIBEIRO, D. O povo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
SCHWARCZ, L. M. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
SCURO NETO, P. Sociologia ativa e didática: um convite ao estudo da ciência do mundo
moderno. São Paulo: Saraiva, 2004.
VENTURA, R. Casa-grande & senzala. São Paulo: Publifolha, 2000. (Coleção Folha explica)

A antropologia cultural e a cultura brasileira 131


7
Relações entre espaço,
cultura e sociedade
A antropologia há muito dialoga com outras áreas do saber e,
com isso, novos temas foram sendo incorporados nessa discussão,
em uma interface bastante fértil. O conceito de cultura, central para
a antropologia, de certa forma na maior parte das vezes é a catego-
ria de análise por excelência, balizando as reflexões em torno das
criações humanas, mesmo na análise de novos objetos.
É importante pensar a relação entre espaço, cultura e socie-
dade na contemporaneidade, em especial porque o fenômeno da
globalização impacta o processo de desterritorialização. Por quê?
O que isso significa? Porque diz respeito a um movimento de que-
bra de vínculos, por diferentes razões, entre elas as migrações e a
impossibilidade de entrada desses povos ao novo território, inclu-
sive em termos simbólicos. Espaço e território são aspectos funda-
mentais no processo de construção da cultura de um indivíduo ou
grupo, eles fazem parte de sua identidade.
O conceito de cultura foi construído ao longo do processo de
consolidação da antropologia e pode ser definido de diferentes for-
mas, mas, aqui, será compreendido como o conjunto de crenças,
valores, padrões, hábitos, comportamentos e práticas que configu-
ram uma visão de mundo, individual ou coletiva. Trata-se de uma
acepção mais ampla do termo e, neste capítulo, será norteador da
reflexão sobre como os indivíduos percebem e se relacionam com
o espaço, físico ou simbólico. Isso em razão de o espaço poder ser
intangível, isto é, não ter a concretude do território físico, mas ser
fundamental para o compartilhamento das práticas culturais pos-
tuladas e aceitas que caracterizam determinada sociedade.
A antropologia passa, então, a discutir como indivíduos e gru-
pos se relacionam com o espaço que ocupam, em um movimento
que implica intervenção sobre o ambiente no qual vivem ou ocu-
pam por determinado tempo. Assim, o dualismo natureza-cultura
se apresenta de maneira clara e marcante, uma vez que toda e
qualquer ação humana se constitui em uma manifestação cultural
que, por sua vez, traz algum desdobramento sobre a natureza.

132 Antropologia Cultural


7.1 A construção social das categorias
Vídeo de espaço e tempo
Entre suas várias divisões, a antropologia acaba se desdobrando em
uma subárea que discute a relação entre cultura e espaço – a antropo-
logia ecológica ou ambiental. O meio ambiente, no contexto da moder-
nidade, torna-se objeto de estudo das ciências humanas, e não mais
apenas das chamadas ciências naturais. Dessa forma, e aos poucos, o
meio ambiente e as distintas representações da natureza passam a
despertar o interesse dos pesquisadores na antropologia e em outras
áreas do conhecimento.

Glossário A relação do ser humano com o meio ambiente tem relevân-


cia quando se pensa na totalidade de suas práticas culturais. A
Commodities: são produtos
básicos que são transformados alimentação, por exemplo, uma das atividades mais básicas e
em mercadorias por serem cotidianas da humanidade, é profundamente dependente da
matéria-prima para a indústria
maneira como os indivíduos e as sociedades utilizam os recur-
de processamento cujo preço
oscila de acordo com a demanda sos naturais e como isso impacta o meio ambiente.
do mercado; são importantes
Quando se observa as bases sobre as quais se funda o sistema
para os mercados importadores
para garantir que suas indústrias alimentar, é possível perceber que o abastecimento é garantido mui-
continuem funcionando. São to mais pela agricultura de subsistência do que pelo grande agro-
exemplos de commodities bra-
sileiras: soja, milho, café, açúcar, negócio. Isso porque o segundo é, sobretudo, voltado ao mercado
madeira, entre outros. externo, comercializando commodities. Como pano de fundo a essa
questão estão a ocupação do território e o uso do espaço natural: o
grande capital versus o pequeno agricultor, cada um atuando com
propósitos, na maioria das vezes, bastante diversos.

O agronegócio no Brasil, no Figura 1


qual predomina a monocultura Pequeno agricultor no Brasil Jorge Maricato/Shutterstock

(de commodities) tem caráter em-


presarial, com grande aplicação de
capital, insumos químicos e tecno-
logia, pouca mão de obra e grandes
extensões de terra. Em contrapar-
tida, a agricultura familiar, em pro-
priedades menores, muitas vezes
preservando um saber-fazer tra-
dicional, pratica a policultura com
foco na produção de alimentos.

Relações entre espaço, cultura e sociedade 133


Assim, com relação à alimentação, o que efetivamente é consumido
no dia a dia das famílias no país vem da produção de pequenos pro-
dutores e da agricultura familiar, o que indica que para essas pessoas
a terra tem um valor muito além do que possa ser mensurado apenas
em termos econômico-financeiros. Diz respeito à sua maneira de viver,
de se ver e se colocar no mundo; é nesse espaço que sua vida ganha
sentido e significado.

O lugar e o território também passam a ter valor simbólico, confi-


gurando a relação do homem com o meio ambiente que, por sua vez,
concretiza representações acerca da natureza e dos recursos naturais
e que podem ser analisadas pela antropologia.

A relação entre os seres humanos e a natureza tem sido tema de


muitos questionamentos e reflexões, porque sintetiza um dos maiores
dilemas com os quais a humanidade já se defrontou: como se colocar
diante da natureza sendo parte dela? Em particular, quando se consi-
dera o pensamento antropocêntrico, segundo o qual o homem ocu-
paria uma posição central no universo, de modo que tudo giraria em
torno dele e tudo deveria convergir para ele.

Contudo, no contexto da ampliação da discussão da relação


homem-natureza no âmbito da perspectiva ecológica e ambiental,
prospera a crítica a essa visão de mundo que atribui à humanidade a
responsabilidade pelas crises ambientais e pela degradação dos recur-
sos naturais. A centralidade dos seres humanos tem sido relativizada
com a ampliação do pensamento antropológico que revê esse papel.

A soberania dos humanos tem sido alvo de muitos debates e emba-


tes em várias áreas do conhecimento, especialmente quando se insere
nessa discussão a ideia de local e global. Significa dizer que ainda que
a produção das condições materiais de existência da humanidade de-
mande o consumo de recursos naturais, é também ela que interage
com o meio ambiente com vistas à sua preservação ou conservação.

Com base nessa lógica, a natureza estaria “a serviço” dos interesses


e das necessidades dos seres humanos, o que tem gerado intensos de-
bates em razão da forma como essa relação tem impactado os ecossis-
temas. Entretanto, também é criada uma rede de interdependência
que promove dinâmicas que oscilam entre equilíbrio e desequilíbrio.

Além disso, não há como descolar a organização social da organiza-


ção espacial, uma vez que a maneira como os indivíduos se apropriam

134 Antropologia Cultural


do espaço explicita algumas características individuais e coletivas, em
particular quando esse espaço ou território é base para a manuten-
ção de tradições, caso de povos tradicionais, como as comunidades
quilombolas. Segundo Bonnemaison e Cambrèzy (apud PIVOTO, 2019,
p. 424), para os membros dessas comunidades, o território
não se define por um princípio material de apropriação, mas por
um princípio cultural de identificação ou, se preferirmos, de per-
tencimento. Este princípio explica a intensidade da relação ao
território. Ele não pode ser percebido apenas como uma posse
ou como uma entidade exterior à sociedade que o habita. É uma
parcela de identidade, fonte de uma relação de essência afetiva
ou mesmo amorosa ao espaço [...] Esquecer esse princípio espi-
ritual e não material é se sujeitar a não compreender a violência
trágica de muitas lutas e conflitos que afetam o mundo de hoje:
perder território é desaparecer.

O território também deve ser visto em sua dimensão cultural, como


base material para a construção de identidades, o que implica conside-
rar os valores materiais, simbólicos, afetivos e éticos, e não apenas o
aspecto político ou econômico. Está ligado ao sentimento de pertenci-
mento de um indivíduo ou uma comunidade com relação a uma parte
do espaço geográfico – região, lugar ou território. Rogério Haesbaert
(1999, p. 172), geógrafo brasileiro, parte do pressuposto de que
toda identidade territorial é uma identidade social definida funda-
mentalmente através do território, ou seja, dentro de uma relação
de apropriação que se dá tanto no campo das ideias quanto no da
realidade concreta, o espaço geográfico constituindo assim parte
fundamental dos processos de identificação social. De forma
muito genérica podemos afirmar que não há território sem algum
tipo de identificação e valoração simbólica (positiva ou negativa)
do espaço pelos seus habitantes.

Como se pode perceber, quando se fala na categoria espaço, um


olhar sobre a forma como ocorre a ocupação do território é relevante
para que indivíduos e grupos compreendam o processo de significação
do território que ocupam.

Já a categoria tempo diz respeito à maneira pela qual indivíduos


e grupos entendem o mundo, captam sua lógica, organizam suas
experiências e localizam fatos, acontecimentos, momentos e me-
mórias que dão sentido à sua existência. Passado, presente e uma
expectativa quanto ao futuro, de alguma forma, orientam como

Relações entre espaço, cultura e sociedade 135


indivíduos e sociedades estruturam suas vivências, experiências,
enfim, suas vidas.

Diferentes grupos humanos constroem práticas culturais – ritos,


rituais, códigos e simbolismos – para cultuar, reverenciar ou reforçar
aspectos relacionados à ancestralidade (o passado), para reforçar valo-
res e promover a coesão social (o presente) e, finalmente, para definir
ações, objetivos e metas para conquistar ou preservar algo (o futuro).
A humanidade opera com a categoria tempo em todos os aspectos de
sua existência, em todas as sociedades, sempre com um traço em co-
Figura 2 mum: organizar a vida em grupos e nortear ações individuais. Que tal
Dependência para com o
relógio um exemplo?

Hoje, o que orienta e de alguma forma determina a rotina de cada


indivíduo que more em áreas urbanas é o relógio. O tempo da vida é o
tempo do relógio.

Todavia, o que isso quer dizer? Por que a pressão do tempo se


tornou tão presente na vida de cada um? Por-
que desde a Revolução Indus-
trial, quando o trabalho humano
passou a ser normatizado, contro-
lado e guiado pela produtividade e
pela busca do maior lucro possível,
o ritmo que se impôs foi o ritmo
das fábricas. Portanto, o ritmo da
GaudiLab/Shutterstock
produção determina horários, roti-
nas e formas de relacionamento.

A nova divisão social do trabalho implica cada um fazer a sua parte,


da maneira correta e, mais importante, no tempo certo. Entretanto, o
que é esse tempo certo? O tempo da maximização na utilização dos
recursos (humanos, financeiros e naturais) com vistas à produção em
grande escala. Diferentemente das épocas anteriores, a natureza, seu
tempo e seus ciclos deixam de ser o referencial para a organização e
o funcionamento da rotina diária. A humanidade passa a ser “escrava”
do relógio.

Na contemporaneidade, essa relação tem sido bastante questio-


nada sob o argumento de que retirou dos indivíduos aquilo que mais
valor tinha para ele: a liberdade. Mais recentemente, principalmente
com as obras de alguns pensadores das ciências humanas, a relação

136 Antropologia Cultural


da humanidade com o tempo vem sendo novamente problematizada,
particularmente no que diz respeito aos valores que fundamentam as Livro
relações humanas. O dualismo tempo do trabalho versus tempo do la-
zer, por exemplo, é um dos pontos que mais despertam a atenção.

Questões temporais fazem parte da pauta da análise antropológica


na reflexão sobre a alteridade, visto que, historicamente, a antropolo-
gia buscou o distanciamento – geográfico e temporal – de seu objeto
de estudo. O outro era aquele que não estava perto, que vivia em outro
espaço, que não era igual, que se colocava em outra temporalidade,
em outra etapa do processo civilizatório. Ocorre, assim, um processo Um dos conceitos mais
de espacialização do outro, colocando-o fora do espaço e do tempo do interessantes nessa
discussão sobre a relação
pesquisador. Isso se explica quando se considera que a antropologia se dos indivíduos e grupos
desenvolve e se consolida como ciência em um contexto de poder e do- com o tempo e o trabalho
é o de ócio criativo,
minação exercido por nações que imprimiam sua marca sobre culturas concebido pelo sociólogo
diferentes em diversos lugares do mundo. italiano Domenico de
Masi, na obra O ócio
O tão pregado e desejável distanciamento entre pesquisador e criativo. Vale a leitura!

seu objeto de estudo na antropologia, mais do que em qualquer ou- MASI, D. de. Rio de Janeiro:
tra ciência, talvez seja o melhor exemplo da forma como a relação Sextante, 2012.

espaço-tempo se concretiza: por muito tempo, o antropólogo buscou


comunidades e culturas que em nada lembrassem a sua própria sob o
argumento de que, assim, a objetividade científica estaria preservada.
No entanto, o que se viu foram análises etnocêntricas, em contextos
etnográficos exóticos, pautadas na lógica da cultura do pesquisador, e
que reafirmaram as diferenças, muitas vezes vistas como indesejáveis.

De todo modo, a superação pela ciência moderna da separação en-


tre natureza e cultura coloca luz sobre a forma como cada população
vivencia e se apropria do espaço em sua temporalidade, com o objetivo
comum de classificar o mundo para poder compreendê-lo. E isso cada
grupo humano faz à sua maneira, de acordo com a forma como se
relaciona com o meio no qual se insere. Para a antropologia cultural,
a polaridade natureza versus cultura faz parte, como se afirmou ante-
riormente, de sua fundação como ciência, partindo de princípios filo-
sóficos, morais e ecológicos, adotando, também, mais recentemente,
critérios políticos. Com isso, cresce a compreensão de que o ambiente
tem papel incontestável na construção de processos sociais e nas inte-
rações entre indivíduos e grupos.

Desde seus primórdios, a análise antropológica apresenta as cha-


madas culturas tradicionais (ou povos tradicionais) como aquelas que

Relações entre espaço, cultura e sociedade 137


estão mais próximas da natureza e que com ela se relacionam de ma-
neira mais orgânica. Em oposição, as sociedades urbano-industriais, as
culturas mais contemporâneas, se debatem entre saciar seu desejo de
consumo e construir uma relação mais equilibrada com o meio am-
biente; buscam uma reconexão com a natureza. São duas realidades
temporais e espaciais que ainda não conseguiram efetivamente supe-
rar essa polaridade. Os povos indígenas que se mantêm mais distantes
das cidades e da cultura urbana, ainda que sofram interferências ex-
ternas, em alguns casos conseguem manter uma relação mais próxima
com a natureza. Sabem que, muitas vezes, dependem dela para man-
ter sua identidade e seu patrimônio cultural.
Figura 3 Especialmente para as novas gerações de indígenas, a pre-
Crianças indígenas
servação da cultura nativa é fundamental para que sua
identidade não seja perdida ou subjugada por proces-
sos de aculturação ou homogeneização. Sua cosmo-
logia, seus rituais, mitos e hábitos têm na natureza
fortes referências e com ela esses povos procuram
manter uma relação, em geral, bastante diferente
daquela estabelecida pela sociedade mais ampla,
não indígena.

Todavia, também é papel da an-


tropologia cultural procurar des-
mistificar essas concepções que se
fundam em visões idílicas e ideali-
zadas do estilo de vida dos povos
tradicionais, superando, assim, po-
sicionamentos por vezes ingênuos e
ESB Professional/Shutterstock
utópicos. Há muito preconceito com
relação a essas populações, alguns enraizados no imaginário coletivo,
como é o caso de vê-los ora como indivíduos preguiçosos, indolentes e
pouco inteligentes, ora como eternas vítimas do sistema e da tutela do
Estado. Geralmente, esse posicionamento acarreta uma visão bastante
distorcida dos anseios e sonhos dessas populações, que vivem margi-
nalizadas, cujos direitos muitas vezes não são respeitados.

Quando se fala nas categorias espaço e tempo, impõe-se uma revi-


são crítica da relação que esses povos mantêm com a natureza, par-
ticularmente quando já convivem com outros atores sociais, como
garimpeiros e madeireiros, que muitas vezes conseguem cooptar in-

138 Antropologia Cultural


dígenas por conta das péssimas condições de vida em que estes se
encontram. Sabe-se que por conta dos danos ambientais causados em
ou próximo a reservas indígenas, muitas culturas já foram perdidas,
o que mostra que pode ser preciso rever a ideia de perfeito equilíbrio
entre essas culturas e a natureza.

Assim, inserir a questão ambiental na antropologia cultural foi um


ganho particularmente em razão da ampliação do escopo da análise
dos modos de vida de populações tradicionais e sua interface com so-
ciedades urbanas. Um marco importante foi a introdução do conceito
de ecossistema na análise antropológica, sobretudo por permitir uma
visão mais holística, tendo o conceito de cultura como a sua categoria
de análise mais importante. Isso porque, ao tomar a população local
como objeto de estudo, fica claro o papel da cultura e das práticas cul-
turais como um recurso por meio do qual essas populações se adap-
tam e/ou modificam o meio ambiente para sua sobrevivência.

A humanidade, ao longo da sua longa história, tem se relacionado com


a natureza de diferentes formas, de acordo com o momento, em atendi-
mento a uma necessidade de explorar os recursos disponíveis. Como se
afirmou anteriormente, em especial quando se considera a alimentação, Livro
em suas múltiplas dimensões (fisiológica, social, cultural), o que se vê é
uma histórica e persistente tentativa de buscar a maior eficiência possível.

O ser humano é o único animal que cozinha, bem como o único que
pensa sobre comer. Por isso, ele tem uma maior segurança de que, se
souber como fazer, nunca faltará alimento, que a natureza é rica e que
proverá os meios necessários para que a fome não inviabilize a exis-
tência da espécie no planeta. Entretanto, sabe-se hoje que não é bem
assim. Sua viabilidade biológica está muito condicionada por sua capa-
No livro Mundo susten-
cidade de refletir sobre seu papel social, histórico, político, econômico
tável: abrindo espaço na
e cultural na maneira como busca a subsistência. Isso tudo remete à mídia para um planeta
em transformação, o
dimensão cultural e simbólica do trabalho humano, visto aqui como
jornalista André Trigueiro
toda e qualquer ação humana no sentido de prover sua sobrevivência. discute temas relaciona-
dos ao meio ambiente
Mais do que nunca, quando se analisa a construção social de cate- com uma reflexão sobre
gorias como espaço e tempo, a antropologia dá enorme contribuição consumo e perspectivas
para o futuro, no que diz
para a discussão do papel da cultura e seu impacto sobre a natureza, respeito aos impactos
desde o momento em que a humanidade se tornou sedentária, passan- da ação humana sobre a
natureza.
do pelos diferentes modos de produção e chegando à modernidade, à
TRIGUEIRO, A. São Paulo: Globo,
pós-modernidade e à sociedade do conhecimento. 2005.

Relações entre espaço, cultura e sociedade 139


7.2 A diversidade cultural e ambiental
Vídeo A centralidade do conceito de cultura já foi bastante reforçada e
permite que se possa prosseguir trazendo para a reflexão a contri-
buição dessa categoria de análise para pensar a diversidade cultural
e ambiental. Independentemente da acepção do termo que se ado-
te, é possível afirmar que a ideia de cultura sempre foi colocada em
oposição à natureza, ao componente biológico da existência huma-
na. Algo como: para que o processo de humanização acontecesse,
seria preciso o distanciamento do biológico, do natural e do animal.
A oposição do cultural ao natural foi uma das marcas mais fortes da
evolução da antropologia e do conceito de cultura. No entanto, rom-
per com o biológico e assumir que nada é inato e que o que define
o ser humano é sua capacidade de produzir cultura, de certa forma,
empobreceu o conceito.

Desconsiderar o papel e o vigor do ambiente natural na concep-


ção das práticas culturais e dos sistemas simbólicos apenas contri-
buiu para reafirmar o antropocentrismo e tudo o que dele decorre,
especialmente uma certa arrogância da humanidade relativamente
aos demais seres vivos e ao meio ambiente.

Como se pode perceber ao observar a trajetória do surgimento


e consolidação da antropologia enquanto ciência, diversos termos
foram sendo forjados e, de algum modo, fazem referência à tempo-
ralidade, como é o caso de civilização, evolução, primitivo, tradicional
e outros. Todos, de alguma forma, reforçam a relação desigual que
sempre se estabeleceu entre o pesquisador e seu objeto de estudo
– o outro. Colaboram para explicitar a relação de poder e domina-
ção que se mencionou há pouco, chegando a ponto de impedir que
o antropólogo, em seu trabalho de campo, se percebesse na mesma
temporalidade do seu objeto de estudo.

Contudo, a antropologia seguiu adiante e conseguiu superar esses


obstáculos teórico-metodológicos até construir contrapontos, sobre-
tudo, ao etnocentrismo. O conceito de relativismo cultural será o gran-
de produto desse processo, dessa reflexão em torno da percepção da
alteridade em sua grandeza e riqueza. Colocar-se no tempo e no es-
paço do grupo que estuda foi o que permitiu ao antropólogo superar
as limitações de uma visão etnocêntrica.

140 Antropologia Cultural


Nessa linha, ao pensar o papel da diversidade cultural e sua rela-
ção com a diversidade ambiental, é importante chamar a atenção para
a estreita relação entre ambas – uma depende da outra. Atualmente,
essa reflexão deve contemplar temáticas que até aqui não faziam parte
do escopo da análise antropológica, como é o caso das mudanças cli-
máticas e outras questões relacionadas ao meio ambiente e à susten-
tabilidade. O debate em torno do modelo capitalista de produção se
impõe na mesma velocidade com que as ações humanas surgem como
responsáveis pelos danos causados à natureza e às culturas que a ela
estão mais conectadas.

Entendendo o homem e sua relação com a natureza, com o meio


ambiente, a antropologia cultural dá sua contribuição para a busca de
soluções aos problemas que hoje se colocam para a humanidade nessa
área. O objetivo de antropólogos e outros pesquisadores é contribuir
para a construção de uma sociedade mais sustentável, considerando
um modelo de desenvolvimento que seja socialmente justo, economi-
camente viável e ambientalmente limpo.

Esse entendimento de que as relações sociais têm ligação com o


ambiente natural é extremamente relevante e leva a um novo para-
digma, pautado em um maior equilíbrio entre as ações e as necessi-
dades humanas em termos materiais e a capacidade da natureza de
fornecer os recursos necessários. Nunca se viu tão claramente os
impactos decorrentes de uma cultura predatória da natureza como
na atualidade. As diferenças entre povos, classes sociais e culturas
aparecem com mais clareza e deixam mais agudos os conflitos entre
sociedade e meio ambiente.

O conceito mais relevante e impactante para essa discussão é o


de sustentabilidade, em especial para a antropologia, a ciência social
que mais tem se envolvido nesse debate sobre a questão ambiental
(FOLADORI; TAKS, 2004). Segundo esses autores, a antropologia pode-
ria contribuir para desconstruir alguns mitos que permeiam a questão
ambiental, tais como:
a. As sociedades primitivas estabeleciam uma relação
harmônica com a natureza: essa é uma visão bastante idealizada
e que, sobretudo na contemporaneidade, não corresponde à
verdade, visto que alguns povos já não têm condições de manter
uma real e equilibrada conexão com o ambiente natural.

Relações entre espaço, cultura e sociedade 141


b. A crise ambiental é resultado do grau de desenvolvimento
técnico: nesse caso, deve-se recorrer à história para verificar que
sempre houve inovações tecnológicas (não considerando apenas
a tecnologia eletrônica, mas qualquer acréscimo técnico que
agregue valor ao ou facilite o trabalho humano) e que isso, de
alguma forma, sempre impacta as relações sociais de produção.
c. Os problemas ambientais são objetivos e devem ser
assumidos cientificamente: devem ser assumidos por todos,
uma vez que, principalmente após os anos 1980, eles deixam
de ser importantes ou devem ser problematizados apenas
em nível local ou regional. Sobretudo, as mudanças climáticas
unificaram os problemas ambientais. Tratar de maneira científica
esses problemas implica refletir a respeito da apropriação e do
compartilhamento do conhecimento sobre a área.

A principal mensagem que fica desse raciocínio é que as análises so-


bre os problemas ambientais, a discussão sobre a ocupação e o uso do
território, dos espaços naturais e os problemas decorrentes da interfe-
rência humana não podem ser descoladas da realidade social. Significa
dizer que é preciso olhar para essas questões tendo em vista a pre-
missa de que há indivíduos e grupos sociais que se organizam no e por
conta do meio ambiente. As relações humanas “desenham” também as
relações com o meio natural, com o ambiente no qual elaboram suas
práticas culturais e seus sistemas simbólicos.

Isso porque o meio ambiente é um fator gerador de cultura, o que


reforça o grande potencial da pesquisa e da análise antropológica na
discussão e construção de uma cultura ecológica. Pensar em susten-
tabilidade é produzir conhecimento e práticas que possibilitem uma
nova visão da relação do homem com a natureza, com novas formas
de produção e padrões de consumo que não só preservem o meio
ambiente hoje, mas que também garantam recursos naturais para
as próximas gerações. O que se vê na atualidade, na maior parte do
mundo, é um descaso com o futuro, com o tipo de legado que ficará
para quem ainda virá.

A antropologia ecológica, segundo Neves (apud MAZZOLA, J.;


MAZZOLA, G., 2016, p. 4), “aborda o estudo das relações entre a estru-
tura populacional, organizacional e cultural das sociedades humanas
e o contexto ambiental onde estão inseridas”. Nessa linha, a antropo-
logia assume, com outras ciências, o compromisso de estimular dis-

142 Antropologia Cultural


cussões que promovam mudanças sociais e culturais no sentido de
construir sociedades mais justas, igualitárias, com mais respeito e equi-
dade, combatendo a discriminação e o desequilíbrio ambiental. São
muitos objetivos, mas esse parece ser o caminho para também garan-
tir a preservação de espaços e culturas que sejam importantes para a
identidade de indivíduos e grupos.

Esses autores ainda ressaltam que somente o diálogo interdiscipli-


nar com a sustentabilidade poderá dar conta desse enorme desafio,
uma vez que
os fenômenos associados às mudanças planetárias são comple-
xos, o que exige olhares e saberes distintos. Soluções possíveis
passam pelo entendimento do ser humano, de suas comunida-
des, de suas culturas e saberes, e de sua interação com o meio
natural em que está inserido. [...] Com essa visão do homem em
simbiose com seu ambiente, a Ecologia acabou interagindo com a
Antropologia, considerada como ciência-chave para a compreen-
são do homem, sobre o homem e sua sociedade, e das relações do
homem com seu ambiente. (MAZZOLA, J.; MAZZOLA, G., 2016, p. 5)

Nesse trecho, destaca-se a afirmação da importante colaboração


entre a antropologia (ciência que estuda o homem por inteiro) e ou-
tras áreas do conhecimento quando o objetivo for pensar como a
civilização impacta o meio ambiente. Desde o surgimento do termo
ecologia (ao fim do século XIX), problematizou-se a ideia de ecossis-
tema e o papel dos seres humanos em busca de uma maior cons-
ciência ambiental. Isso porque já é consenso que a relação homem
versus natureza influencia e, em alguns casos, é determinante na
construção de outras dimensões da sociedade, particularmente da
relação ambiente-cultura.

A cultura, vista em sua dupla concepção, como algo que fala sobre
um indivíduo ou grupo – isto é, seus valores, costumes, suas crenças,
ideias – e sobre o conjunto de significados que as práticas e sistemas
simbólicos assumem, é o conceito que permite esse olhar sobre a ação
humana no planeta.

Em 1992, o tratado da Convenção pela Diversidade Biológica, pro-


movida pela Organização das Nações Unidas (ONU) por meio de seu
programa para o meio ambiente e no contexto da Eco-92, no Rio de
Janeiro, foi assinado por mais de 150 países, definindo alguns termos
que foram incorporados à análise antropológica:

Relações entre espaço, cultura e sociedade 143


•• Ecossistema: “um complexo dinâmico de comunidades vege-
tais, animais e de micro-organismos e o seu meio inorgânico que
interagem como uma unidade funcional” (BRASIL, 2000, p. 9).
•• Diversidade biológica: “significa a variabilidade existente en-
tre organismos vivos de todas as fontes, abrangendo, entre
outros, ecossistemas terrestres, marinhos e outros aquáticos,
bem como os complexos ecológicos de que são parte; isso in-
clui a diversidade de todas as espécies, entre espécies e ecos-
sistemas” (BRASIL, 2000, p. 9).
•• Utilização sustentável: “utilização de componentes da diver-
sidade biológica de modo e em ritmo tais que não levem, no
longo prazo, à diminuição da diversidade biológica, mantendo
assim seu potencial para atender as necessidades e aspirações
das gerações presentes e futuras” (BRASIL, 2000, p. 10).

No artigo 10 desse documento (BRASIL, 2000), coloca-se, também,


a importância da diversidade biológica para a cultura como um valor
intrínseco, destacando o compromisso com a utilização sustentável,
da proteção e o encorajamento na utilização de componentes da
biodiversidade de acordo com as práticas culturais tradicionais com-
patíveis com a sustentabilidade. Como vimos, esse texto, reconhece
não só a importância da diversidade biológica para a cultura dos
povos e populações dos países signatários.

Por outro lado, em 2005, a Organização Cultural, Científica e Edu-


cacional das Nações Unidas (Unesco) promoveu a Convenção pela
Diversidade Cultural, quando ficou estabelecido que cultura não é
mercadoria, o que era algo muito novo naquele momento. Cultura
passa a ser vista em seu sentido mais amplo, como “um conjunto
distinto de elementos espirituais, materiais, intelectuais e emocio-
nais de uma sociedade ou de um grupo social e que abarca também
estilos de vida, modos de convivência, sistemas de valores, tradições
e crenças” (UNESCO, 2005).

Essa ampliação do conceito de cultura incorpora a noção de iden-


tidade cultural e incentiva o diálogo intercultural, ainda que isso seja
difícil, uma vez que a diversidade cultural nem sempre é vista de
maneira positiva, apesar de seu importante papel para a dignidade
humana, a cultura de paz e o desenvolvimento sustentável.

144 Antropologia Cultural


Também em 2005, em 1º de agosto de 2007, o governo brasileiro
emitiu um decreto para promulgar a Convenção sobre a Proteção e
Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, que havia sido
assinada em Paris, em 20 de outubro de 2005. Em seu artigo 2º, que
trata dos Princípios Diretores, é estabelecido o Princípio do Desenvol-
vimento Sustentável, segundo o qual “a diversidade cultural constitui
grande riqueza para os indivíduos e as sociedades. A proteção, promo-
ção e manutenção da diversidade cultural é condição essencial para o
desenvolvimento sustentável em benefício das gerações atuais e futu-
ras” (BRASIL, 2007).

Assim, é explicitada a interdependência entre a diversidade cultu-


ral e a diversidade ambiental, sendo a interação com o meio ambien-
te uma condição para dar concretude à relação dos indivíduos com o
meio natural no qual se inserem. Quando se compreende que a diversi-
dade cultural diz respeito às muitas maneiras pelas quais os indivíduos
e as sociedades se expressam, fica mais clara a interdependência entre
natureza e cultura, principalmente porque os recursos naturais são uti-
lizados de várias formas para dar concretude a elementos da cultura,
caso, por exemplo, do processo de seleção dos alimentos que farão
parte dos hábitos e padrões alimentares.

Nesse sentido, a sinergia e a interdependência entre diversidade


cultural e ambiental tornam-se essenciais para a promoção do desen-
volvimento sustentável. Ao mesmo tempo, e com a mesma relevância,
são fatores importantes para a luta pela paz e contra o preconceito, a
discriminação e a intolerância. A percepção e a valorização da alterida-
de, central para a antropologia, é a base do respeito às múltiplas possi-
bilidades que a humanidade encontrou para se expressar e classificar
o mundo em que vive.

Na contemporaneidade, os estudos e as discussões decorrentes do


diálogo entre diferentes áreas do conhecimento convergem no sentido
de deixar claro o quanto a preservação do meio ambiente e o desen-
volvimento sustentável são essenciais para a cultura e a diversidade
cultural. Trata-se de afirmar que cultura e meio ambiente não existem
de maneira isolada ou descolada, uma vez que os indivíduos, grupos
humanos e as sociedades dependem do meio no qual se inserem. Por
conta disso, a preservação da biodiversidade é também a preservação
da sua cultura e do seu patrimônio cultural. Caso contrário, ao se ne-

Relações entre espaço, cultura e sociedade 145


gligenciar o meio ambiente, corre-se o
risco de perda para a diversidade cul-
tural, para os referenciais identitários e
do patrimônio histórico-cultural.

Um caso que pode elucidar melhor


essa interdependência é o de comuni-
dades que, sob o risco de perecerem
em razão do rápido avanço sobre seu
território, o que compromete ou mes-
mo inviabiliza seu modo de vida tra-
Anahy Modeneis/Shutterstock
dicional, precisam se reinventar. Para
isso, buscam atividades que possam gerar renda para a comunidade
Figura 4
Artesanato indígena sem precisar comprometer o equilíbrio ambiental. O artesanato à base
brasileiro
de produtos naturais locais costuma ser a saída mais comum.

Dessa forma, conseguem gerar renda para o grupo e, de modo sus-


tentável, preservam o meio ambiente, que é fundamental para prote-
ger seu patrimônio cultural. Encontrar formas de manter o ambiente
natural é essencial para a manutenção da cultura.

A consciência de que tanto a biodiversidade quanto a diversidade


cultural podem ser perdidas exige o compromisso e a responsabilidade
de todos para sua preservação, uma vez que a humanidade como um
todo se enriquece com as diferenças.

7.3 A cultura, o espaço e a globalização


Um dos fenômenos mais complexos já vivenciados pela humani-
Vídeo dade é o da globalização, especialmente quando se avalia que seus
impactos ocorrem em diversas áreas. Sua capilaridade se reflete: nos
âmbitos da política tanto quanto da economia; e na cultura assim como
nas relações humanas. Dela decorre certa padronização de hábitos,
costumes, crenças e valores, que vão perdendo suas raízes e originali-
dade. Entretanto, movimentos de resistência também se contrapõem a
essa tentativa de anular as diferenças e suprimir conflitos gerados pelo
estranhamento quanto à diversidade.

De certa maneira, tal como se viu no século XVI, quando o mundo


“diminuiu de tamanho” por conta da expansão ultramarina dos países
ibéricos – Portugal e Espanha –, hoje isso ocorre graças ao avanço dos

146 Antropologia Cultural


transportes e das comunicações. Nos dois momentos, o que caracteri-
za mais fortemente esse processo é o maior trânsito e intercâmbio de
pessoas, mercadorias e culturas. Entretanto, para Costa (2016, p. 131), a
globalização também tem outro lado, ela
tem promovido o contato entre grupos, sociedades e culturas
muito diferentes, permitindo a todos perceber a diversidade da
cultura humana. Por outro lado, esse processo tem estimulado
a assimilação de traços culturais, hábitos de vida e de consumo,
especialmente aqueles existentes nos países econômica e poli-
ticamente dominantes, pelos demais países, fazendo com que
certos padrões de comportamento se tornem mundiais. Assim,
temos nos tornado mais parecidos uns com os outros, mas, ao
mesmo tempo, mais conscientes de nossas diferenças. [...] Além
disso, a globalização tem tornado os países mais interdependen-
tes uns dos outros – o que ocorre em uma nação rapidamente se
torna conhecido e influencia o que ocorre em outra. Essa comu-
nicação tende a reforçar as relações globais e a tornar mais raros
os fatores de isolamento das sociedades e das culturas.

Essa aproximação entre diferentes culturas potencializa a necessi-


dade de se rever a forma como a humanidade vem lidando com a di-
versidade – étnica-racial, de gênero, religiosa, socioeconômica –, no
sentido de reforçar todas as maneiras de lutar contra as tentativas
de homogeneização. Isso inclui tanto o cuidar da diversidade cultural
quanto da preservação ambiental, visto que, como dito anteriormente,
elas são interdependentes.

Em nível local, regional e global, a agilidade de circulação de infor-


mações e as novas tecnologias favorecem a diminuição das distâncias
entre as pessoas e as culturas, dando a impressão de que o mundo
encolheu e que o tempo ganhou outra dimensão. A discussão sobre
cultura, espaço, tempo e o fenômeno da globalização são temas impor-
tantes para a antropologia, haja vista os debates travados atualmente
em várias instâncias sobre a relação entre sustentabilidade e cultura.
Isso porque a relação da humanidade com o mundo mudou. Antes,
ela era local-local; agora, é local-global, e os danos causados ao meio
ambiente em determinado lugar de alguma maneira impactam o seu
entorno e até mesmo no restante do mundo. O problema de um indiví-
duo ou de uma região passa a ser problema de todos!

Além disso, entendendo-se o território como o conjunto dos siste-


mas naturais de um país e considerando as intervenções humanas no

Relações entre espaço, cultura e sociedade 147


espaço, a questão da preservação das identidades no contexto da glo-
balização é importante. Isso porque o sentimento de pertencimento
ganha ainda mais relevância diante da fragmentação, da padronização
e da desterritorialização.

De acordo com Kupper (2015, p. 45),


a globalização contemporânea tem provocado, ainda, a homoge-
neização de comportamentos ao estimular o consumo e o mo-
dismo, introduzindo novos valores e hábitos, como os passeios
aos shopping centers e o consumo de refeições fast food. [...]
Mas, paralelamente à padronização de comportamentos, assis-
te-se à proliferação de grupos étnicos, sexuais, econômicos, reli-
giosos e culturais. Urgem novas formas de vida societária, como
se houvesse uma busca de alternativas ao que se instituiu como
comum, representando uma resistência aos padrões estabeleci-
dos. Desenha-se, assim, uma nova alteridade que a antropologia
tende a explorar.

Essa alteridade, que resiste e se mostra em toda a sua riqueza, ain-


da é geradora de conflitos, inclusive por conta da maior mobilidade
geográfica que se verifica hoje, com migrações de enormes contingen-
tes populacionais em vários lugares do mundo. Esses deslocamentos,
gerados por diferentes razões, mas em sua maioria por conta de con-
flitos internos e guerras civis, acabam colocando em contato culturas
completamente diferentes. Essas culturas híbridas de algum modo dão
concretude a processos de aculturação, mas, também, acabam geran-
do um sentimento de xenofobia.

Um dos antropólogos da contemporaneidade, Roque Laraia (2009,


p. 45), lembra que “o homem é o resultado do meio cultural em que foi
socializado. Ele é um herdeiro de um longo processo acumulativo, que
reflete o conhecimento e a experiência adquiridos pelas numerosas ge-
rações que o antecederam”. O autor afirma também que a cultura não
é algo inato; ao contrário, é aprendida, construída e repassada pelos
atores sociais, seja na esfera global, seja na regional.

Assim, cada lugar pode ser um novo lugar e cada indivíduo ou grupo
pode se adaptar a uma nova condição, a um novo espaço. Contudo,
nem por isso ser inexoravelmente afetado por esse processo de ho-
mogeneização ou padronização impulsionado pela globalização; local e
global se fundem e se confundem. Tradição e mudança se alternam, se
mesclam e distinguem sociedades modernas de tradicionais, sempre
lembrando que as características de cada sociedade em termos de or-

148 Antropologia Cultural


ganização e a forma como cada uma atende às suas necessidades são
fundamentais para a sua identificação cultural.

Além disso, o dualismo entre regional e global deixa de fazer muito


sentido, uma vez que nesse contexto o espaço adquire novas configu-
rações. As interconexões entre as duas dimensões são importantes;
entretanto, valoriza-se cada vez mais as particularidades territoriais, o
que acaba aproximando os conceitos de cultura e de globalização.

Para as ciências sociais – entre elas, a antropologia – , o conceito


de espaço se relaciona com os conceitos de lugar, território, paisagem
e região, mesclando aspectos naturais e culturais, locus de realizações
humanas que podem, por sua vez, agregar valor a esse espaço. Essa
ideia remete à ideia de espaço social que Lakatos e Marconi (2011,
p. 348) definem como
uma espécie de universo construído pela população humana; não
havendo seres humanos ou existindo apenas, um, não há espaço
social. Dessa maneira, espaço social é totalmente diverso do es-
paço geográfico, cuja existência independe dos seres humanos.

A atuação humana sobre o espaço é o que o caracteriza como social,


assim como ao se tornar produto dessa atuação, o espaço se torna cul-
tural. Esse processo se deu desde os primórdios da existência humana
na Terra e aconteceu no sentido de permitir a sobrevivência da espé-
cie. De pequenos grupos e indivíduos, surgiram outros maiores e mais
bem organizados, de tribos a clãs, ocupando espaços que foram sendo
alterados, marcando territórios como sendo seus. Com modelos mais
voltados para a vida rural ou de aldeias e vilas que se tornaram cidades,
os indivíduos foram dando forma a organizações sociais que também
foram adquirindo diferentes características.

Todavia, o que não se questiona é que, ao longo desses milhões de


anos da presença de hominídeos na Terra, foi se buscando maneiras
de torná-la não só possível, mas também melhor. Isso implicou retirar
do espaço natural tudo o que fosse necessário, sempre que fosse preci-
so. Particularmente em um período mais recente, no século XVIII, com a
mudança nas relações de produção e no uso dos recursos naturais pro-
movida pela Revolução Industrial, a presença humana se torna mais
predatória, considerando-se sobretudo a necessidade de utilização de
fontes de energia para manter esse sistema. Inicialmente com o carvão,
mais tarde com petróleo, em pouco tempo a devastação começa a apa-
recer como jamais vista.

Relações entre espaço, cultura e sociedade 149


A urbanização que vem seguindo a industrialização também cobra-
Vídeo rá do planeta um alto preço, tanto por conta do adensamento popu-
O homem (man by Steve lacional dela decorrente quanto do aumento da demanda de alguns
Cutts), publicado pelo
canal End Times, mostra recursos naturais, especialmente a água. O que mais chama atenção é
um pouco os impactos que ainda levaria um bom tempo para que a questão da preservação
da presença humana
sobre o meio ambiente, do meio ambiente se tornasse uma preocupação. O alto preço cobrado
que muitas vezes podem por esse processo evolutivo exigiu que essa questão passasse a ser
ser devastadores. Assista
ao vídeo e reflita sobre tratada de maneira científica, o que deu origem à ecologia.
o que foi discutido neste
capítulo. Esse novo ramo da ciência se debruça sobre a relação que os dife-
Disponível em: https:// rentes organismos vivos estabelecem com o meio ambiente. A intera-
www.youtube.com/ ção entre os seres humanos e o meio no qual se inserem são palco de
watch?v=RbpL5xGCXx8. Acesso
em: 13 jul. 2020. intensos debates e questionamentos sobre o impacto que isso vem ge-
rando para manter determinado estilo de vida muito pautado no con-
sumo, que não considera o futuro. No entanto, o que talvez não tenha
recebido a devida atenção é o fato de que
o ambiente natural é constituído pela superfície terrestre e pela
atmosfera, incluindo os organismos vivos, o ar, a água, o sol e
todos os outros recursos necessários para a sustentação da vida
no planeta. Como todos os demais seres vivos, os humanos de-
pendem do ambiente para viver. Mas, justamente em função da
ação cada vez mais intensa do humano sobre o ambiente, este
vem se tornando vítima das várias formas de poluição: do ar, da
água e do solo. (GIL, 2011, p. 230)

Essa é a ideia de que mais cedo ou mais tarde as consequências


desse tipo de interação entre seres humanos e o ambiente preci-
sariam ser discutidas e revistas. No diálogo promovido entre várias
ciências, inclusive a antropologia, toma corpo a ideia de que mone-
tarizar o meio ambiente, isto é, tornar os recursos naturais simples
mercadorias, tem sido uma péssima escolha. Hoje está evidenciado
que nem toda devastação poderá ser revertida e que, em certos ca-
sos, não haverá dinheiro suficiente para diminuir os danos causados
pela presença humana.

O que se coloca em pauta agora são questões éticas, critérios de


análise que passam por valores morais e por uma ampliação do esco-
po da análise, que deve ser mais holística, vendo não só os indivíduos,
mas também a natureza. É nesse momento que a antropologia contri-
bui efetivamente, mostrando o quanto o homem depende da natureza,
muito mais do que ela depende dele.

150 Antropologia Cultural


No cenário da globalização, essa dependência fica ainda mais es-
cancarada, especialmente se for considerada a facilidade com que na
atualidade os fluxos comerciais acontecem, desconsiderando frontei-
ras geográficas e em um ritmo jamais visto. Além disso, percebe-se
também que estão em curso muitas mudanças em termos de estilos
de vida e padrões de consumo.

Desenha-se um cenário de rápidas e intensas mudanças na percep-


ção do que seja preço e valor, dois conceitos que surgem na modernida-
de e que hoje são revisitados. Qual é o preço de uma vida sustentável?
Qual o valor do ar puro e da água potável? Como você se posiciona com
relação a uma imagem como a que vem a seguir?
Figura 5
Lixo descartado em Lixão
Roman Mikhailiuk/Shutterstock

Como você e a comunidade na qual vive têm lidado com a questão


do lixo? Como avalia que essa questão tem sido tratada, individual e co-
letivamente? Como se sente diante de posicionamentos adotados por
alguns indivíduos que tomam como base a ideia de que basta separar
e colocar seu lixo na lixeira fora de sua casa e tudo está resolvido? Re-
solvido como? Por quem? Para quem? Se tudo está resolvido, o que
explica a persistência de locais como esse apresentado na imagem? En-
tão, o que está em jogo é a necessidade de se pensar de maneira mais
ampla, com critérios mais bem definidos e que contemplem uma visão
de futuro que passa pela ideia de que é urgente pensar o planeta seus

Relações entre espaço, cultura e sociedade 151


filhos e netos irão herdar. Já pensou nisso? Tudo pode ser pago? Tudo
tem valor monetário? E mais: em nome do progresso ou do desenvolvi-
mento, tudo pode ser feito?

Assim, amplia-se bastante a área na qual o debate se dispõe, colo-


cando frente a frente, inclusive, a antropologia e a economia, quando,
de acordo com Neiburg (2010, p. 2),
o interesse contemporâneo da Antropologia pela Economia
surge a partir da identificação de uma confluência entre esses
dois processos: um conjunto de transformações na vida coleti-
va, tidas como de ordem ‘econômica’, e a aquisição de enorme
legitimidade pública por parte da linguagem e dos profissionais
da Economia – os economistas acadêmicos, os jornalistas eco-
nômicos, os operadores e mercado (como os investidores ou os
publicitários) e os funcionários de agências internacionais ou dos
governos.

Em razão de movimentos como esse, o olhar antropológico se en-


riquece, mas também dá uma enorme contribuição para a construção
dessa visão mais holística sobre o debate que coloca de um lado o pro-
gresso e o desenvolvimento econômico e de outro o desenvolvimento
social e a questão ambiental. Na verdade, o que deve ser debatido são
as relações de poder, que muitas vezes são beneficiadas pela manuten-
ção da oposição entre natureza e sociedade. A antropologia colabora
para questionar os discursos que alimentam essa oposição, mostrando
que diferenças deixam de ser discutidas, vozes são caladas, discursos
hegemônicos são reforçados, tudo isso em nome de um desenvolvi-
mento que não considera a sustentabilidade e a diversidade cultural.

A interface da antropologia com a ecologia produziu estudos mais


contextualizados, nos quais as populações que ocupam determinado
território também são vistas com base no viés cultural e, com isso, con-
sideradas uma parte daquele lugar, pertencentes a um sistema no qual
são protagonistas. Sua presença se dá em interação com o ambiente,
ainda que nem sempre dê a percepção do impacto que suas ações po-
dem exercer em termos socioambientais.

Nesse sentido, pensar a natureza como algo radicalmente separado


dos indivíduos e das sociedades ou, quando muito, como alguma coisa
que remeteria ao nível apenas da contemplação não permite que se
tenha uma visão além da ideia de preservação. Preservar não pode ser
o único objetivo, inclusive porque no Brasil, particularmente a partir

152 Antropologia Cultural


da década de 1970, essa corrente levou à criação de muitos parques
nacionais, nos quais a presença humana não seria permitida.

Entretanto, o problema é que naquele momento já havia grupos


vivendo naqueles lugares: “povos indígenas, ribeirinhos, quilombo-
las, caiçaras, agroextrativistas – e essa gente resistiu às demandas
dos preservacionistas [...] para entregar seus territórios em nome
da preservação da natureza” (LITTLE, 2010, p. 343). Segundo o mes-
mo autor (2010, p. 344), com relação à corrente conservacionista,
que defende a ideia de desenvolvimento sustentável, com foco “no
manejo dos recursos naturais, orientando cientificamente, para ga-
rantir seu uso sustentável por múltiplas gerações”, há semelhanças
com a visão preservacionista, já que
ambas levam dentro de si o projeto modernizador do ocidente.
As duas modificaram significativamente o âmbito das políticas
ambientais brasileiras, mostrando sua alta visibilidade e poder.
Ambas são passíveis de serem analisadas e criticadas antropo-
logicamente. E, finalmente, provocaram um conjunto amplo de
respostas dos grupos sociais afetados pela implantação dessas
vertentes nas suas terras. (LITTLE, 2010, p. 344-345)

Acima de tudo, a repercussão desse diálogo tem sido dar voz às


populações que são afetadas de alguma maneira, seja por políticas
preservacionistas, seja por medidas de caráter conservacionista. É o
que se observa no Brasil, por exemplo, com relação à Amazônia. Uma
área que desperta o interesse e a curiosidade do mundo inteiro, por
sua indiscutível importância como ecossistema, mas que, em geral,
ainda tem sido vista como algo “sagrado”, que deveria ser mantido a
qualquer custo, ou como um conjunto de preciosos recursos naturais
que poderiam ser explorados em benefício do desenvolvimento re-
gional e nacional.

São discussões antigas que, na maioria das vezes, não consideram


os interesses dos povos que lá habitam e para os quais tem um valor
que transcende o monetário-financeiro. Tem valor porque é a base da
sua cosmovisão, isto é, fundamenta e se relaciona com a visão de mun-
do das diferentes populações que lá vivem. Grupos que em sua maioria
vivem em harmonia com a floresta e dela tiram todos os recursos ne-
cessários para viver.

Contudo, a Amazônia também desperta a cobiça e atrai indivíduos


para os quais ela só tem valor econômico, indivíduos que não têm in-

Relações entre espaço, cultura e sociedade 153


teresse algum pelas culturas que com base na floresta e nos seus re-
cursos constroem sua história e suas tradições. Tudo isso mostra que
pensar o meio ambiente, especialmente um bioma tão rico quanto o
amazônico, requer uma análise muito mais ampla e cuidadosa, me-
nos etnocêntrica, procurando o olhar de quem ali vive. A antropologia,
diante de desafios como esse, mais do que nunca precisa lançar mão
de suas mais importantes categorias de análise para produzir estudos,
com base particularmente no conceito de relativismo cultural.

Dessa forma, a antropologia, talvez mais do que outras áreas do


conhecimento, entende a biodiversidade como fator importante para a
cultura e, no contexto da globalização, essa percepção é ainda mais va-
lorizada. Quanto aos impactos da presença humana em determinados
ambientes, ainda que possam ser importantes, devem ser avaliados de
maneira contextualizada, especialmente quando alguma dessas ações
tiver relação com práticas culturais tradicionais para os povos. Desse
modo, não é possível comparar esses impactos àqueles causados pelas
populações em áreas urbano-industrializadas.

Quando os movimentos socioambientalistas da segunda metade


dos anos 1980 avançaram, surgiram novos atores e espaços de dis-
cussão sobre as questões ambientais, com destaque para ativistas
como Chico Mendes, que atrai pesquisadores de várias áreas por seu
discurso e sua ação na luta por políticas ambientais que têm como base
a justiça social com garantia dos direitos humanos.

À vista disso, o que se pode afirmar é que a antropologia acom-


panha a retomada dos conceitos de território e espaço, a reflexão so-
bre as questões socioambientais, fornecendo um importante suporte
teórico-conceitual para abordagens que relativizam as análises sobre a
interação homem-sociedade-meio ambiente.

A integração de pesquisadores e o cuidado para que não se configu-


rasse uma prática etnocêntrica permitiu que saberes das comunidades
e povos que vivem em áreas remotas fossem resgatados, valorizados e
integrados aos conhecimentos científicos.

Considerando também a necessidade de se rever modelos de de-


senvolvimento que foram adotados até hoje, ao lado do respeito à al-
teridade, é preciso resgatar a questão da justiça social, tão cara para
personagens como Chico Mendes. Isso porque ainda

154 Antropologia Cultural


prevalecem na sociedade focos de injustiça ambiental, quando
se constatam comunidades residindo em locais insalubres e
poluídos. [...] miséria, falta de acesso a água potável, o baixo
nível de atendimento com rede e tratamento de esgoto e
coleta de lixo, e a população infanto-juvenil em risco social,
condições sociais essas que comprometem a conservação
do ambiente e o desenvolvimento de atividades econômicas.
(MACEDO, 2015, p. 155)

Essas condições precisam ser superadas, e somente por meio de


uma real empatia com o outro e suas necessidades será possível pro-
mover a justiça social e ambiental. Em uma perspectiva mais ampla,
em nível planetário, como afirma Leonardo Boff (2009, p. 47), “ganha
centralidade a dimensão coletiva, afetando não apenas as sociedades,
mas, devido à interdependência de todas com todas, o próprio sistema
social mundial”.

É possível analisar a cultura tendo em vista uma abordagem que


considere a espacialidade no diálogo com a antropologia e demais
ciências afins, em especial quando se incorpora à análise conceitos
como espaço, território, lugar, memória, patrimônio e identidade. Prá-
ticas culturais e simbólicas e o imaginário coletivo podem ser com-
preendidos quando se busca compreender ideias, valores, crenças e Filme
significados. Nessa perspectiva, a antropologia cultural busca com-
preender a cultura à luz da operacionalização dos conceitos acima
citados, uma vez que, considerando essa opção teórico-metodológi-
ca, é possível pensar as relações entre paisagem, cultura e patrimô-
nio – natural e cultural.

Ao produzir cultura, os indivíduos e grupos elaboram sistemas


simbólicos e representações de mundo que passam pela maneira
como se apropriam do território no qual se instalam e vivem. Mais O filme O sal da Terra
conta a trajetória do fotó-
uma vez, a antropologia reflete o dualismo natural/biológico contra o grafo brasileiro Sebastião,
cultural/social, em um movimento que é parte essencial de sua prática que percorreu o mundo
buscando a diversidade
analítica. Nessa ótica, o território passa a ser um lugar de construção cultural e para quem o
de identidades – locais, regionais, nacionais e globais. De todo modo, meio ambiente nunca foi
apenas um pano de fun-
o que há muito antropólogos e outros pensadores já compreenderam do, mas parte da vida das
é que apenas o conhecimento interdisciplinar e a construção de sabe- pessoas que nele vivem.

res integram as ciências naturais e as ciências humanas em torno de Direção: Wenders, W.; Salgado, J. R.
Brasil: Imovision, 2015.
objetos de estudo comuns.

Relações entre espaço, cultura e sociedade 155


CONSIDERAÇÕES FINAIS
A trajetória da antropologia cultural é especialmente rica quando se
observa como foi incorporando novos temas de estudo em suas análises,
que foram sendo cada vez mais pautadas pela valorização da alteridade e
do respeito ao outro. Quando as questões ambientais passaram a apare-
cer em seu radar, o que se viu foi a ampliação das possibilidades de pes-
quisa e de atuação do antropólogo, que logo foi chamado a fazer parte de
grupos de pesquisa e ações públicas voltadas às populações tradicionais,
em especial para os povos indígenas ou quilombolas.
Diante da necessidade de compreender esses grupos e suas práticas cul-
turais, o antropólogo é chamado para dar sua contribuição. Atuando com a
metodologia da observação participante – o trabalho de campo no qual o pes-
quisador passa a viver entre o grupo pesquisado –, produzindo um material
de caráter etnográfico, a antropologia cultural traz à luz a lógica dessas popu-
lações, a forma como veem o mundo. Consequentemente, quando a questão
ambiental deixa de ser tratada de forma marginal aos demais setores da vida
e da interação humana, o olhar antropológico ganha ainda mais relevância.
Aos poucos, a antropologia, em paralelo a outras ciências, passa a ver
o meio físico como algo fundamental para se pensar diferentes fenôme-
nos sociais, desde a religião até a economia. Isso porque, para muitos gru-
pos humanos, a religiosidade está muito conectada com a natureza, bem
como a garantia da sobrevivência material também dela depende. Dessa
forma, a relação homem-natureza passa a ser equacionada em outras
bases, mais próximas de uma percepção de interdependência. Retoma-se
o tema do desenvolvimento no contexto da globalização com base em
novas premissas para que os princípios da sustentabilidade guiem as aná-
lises e políticas sociais, ambientais, econômicas e culturais.
Contudo, isso acontece em um momento no qual há certo consenso de
que essa relação sociedade-natureza é uma via de mão dupla. O que há,
na verdade, é o permanente questionamento sobre o papel do ambiente
na formação da cultura ao mesmo tempo que se pergunta o quanto a
cultura repercute no meio natural, seja para degradar, seja para preservar
e conservar. De todo modo, sociedade e meio ambiente não são coisas
separadas, mas, sim, interligadas. Assim como a cultura, o meio ambiente
também é social e historicamente construído, tendo em vista a maneira
como as sociedades com ele se relacionam. Da mesma forma, o espaço
geográfico, o território, de alguma forma é condicionado pela cultura.
Na história da antropologia e da construção de suas matrizes teóricas,
a relação do homem com o meio ambiente foi tomada como tema, dire-

156 Antropologia Cultural


ta ou indiretamente, fosse para afirmar ou para combater o determinis-
mo geográfico. Isso porque, em certos momentos, o ambiente apareceu
como fator limitador para a produção de cultura; já para algumas correntes
teórico-metodológicas, como o culturalismo, fatores ambientais ou geográfi-
cos são secundários na construção de sistemas simbólicos, constituindo-se
em fatores limitantes para a atuação humana e suas produções culturais.
Finalmente, nessa linha, a antropologia pode dar sua parcela na cons-
trução do conhecimento acerca das formas de interação da humanidade
com a natureza considerando a ideia do homem por inteiro. Do mesmo
modo que tem esse homem como objeto de estudo, a antropologia pode
se constituir na lente por meio da qual se poderá olhar a natureza como
parte integrante da cultura e, com o respeito à alteridade, mostrar como a
coexistência homem-meio ambiente pode e deve ser harmoniosa.

ATIVIDADES
1. Leia o fragmento de texto a seguir e faça o que se pede.
Qual é a civilização que queremos? A que reforça as expectativas de
que para ser feliz é preciso um dia consumir o mesmo que um nor-
te-americano médio (ainda que sabendo de antemão que não há
planeta suficiente para isso)? Ou podemos almejar outro modelo ci-
vilizatório, em que todos tenham direito a uma digna e plena, com a
satisfação de necessidades básicas – alimentação, saúde, moradia,
educação, lazer etc. – e a chance de desenvolver nossas potenciali-
dades? Nessa civilização, os meios de produção seriam capazes de
satisfazer necessidades demarcadas por uma realidade inexorável:
ou a economia se ajusta aos limites do planeta, ou não haverá pla-
neta para suportar a economia. (TRIGUEIRO, 2012, p. 305)

O autor nos coloca uma questão importante: o que queremos para


nosso futuro ao pensarmos nossa relação com o planeta. Como a
antropologia contribui para a reflexão sobre a temática meio ambiente?

2. Em sua vertente ambiental, a antropologia contribui para a construção


de categorias como espaço e tempo. De que forma isso ocorre?

3. A antropologia em sua vertente ambiental estuda as relações das


populações com o meio ambiente, com pesquisas etnográficas que
abordam não só o ambientalismo, visto como movimento social, e os
estudos ecológicos, mas sobretudo a ocupação dos territórios por
diferentes grupos culturais. No Brasil, há muitos exemplos de áreas
naturais que se tornam áreas culturais. Dê dois exemplos desse tipo
de grupos culturais para os quais o ambiente natural tem estreita
ligação com suas práticas culturais.

Relações entre espaço, cultura e sociedade 157


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www.unesco.org/new/fileadmin/MULTIMEDIA/HQ/CLT/diversity/pdf/declaration_cultural_
diversity_pt.pdf. Acesso em: 13 jul. 2020.

158 Antropologia Cultural


GABARITO
1 Antropologia e cultura
1.
a) As imagens apresentam duas concepções de cultura: na
primeira, temos a ideia de que ter cultura é estudar, concluir
uma faculdade. Na segunda, se vê que pelo mundo os indivíduos
falam diferentes línguas, conforme o país ou local onde vivem.
Mesmo que possamos aprender a falar outro idioma, ainda
assim continuaremos a ter a nossa língua-mãe, aquela do local
onde nascemos ou fomos criados. Portanto, é na segunda
imagem que vemos o conceito de cultura exemplificado.
b) Considerando que a língua é uma produção humana e uma das
diversas manifestações da cultura, podemos concluir que todos
nós temos cultura. Isso porque ser humano é ter cultura.
2. Se a sociedade e a cultura são anteriores aos indivíduos, pensar que
seja possível manter integralmente os elementos da natureza que
nos definem como seres humanos não é possível. E é assim porque,
do nascimento à morte, inclusive se pensarmos nos rituais fúnebres,
estamos sempre aprendendo, internalizando e vivenciando elementos
da nossa cultura. Isso posto, podemos perceber que a expressão aja
naturalmente! não faz muito sentido se considerarmos que o binômio
natureza e cultura é relacional, isto é, a natureza é modificada pela
cultura que, por sua vez, representa a natureza de diferentes maneiras.
Ao se dizer isso, na verdade, estamos querendo dizer “se comporte de
acordo com o padrão!”, que é definido pela cultura.

3. Sendo a cultura um processo coletivo, se uma criança não puder viver e


crescer entre outros indivíduos da sua espécie, ela não terá condições
de aprender e internalizar os modelos de comportamento, os valores, as
crenças e os costumes que a identifiquem como membro de determinado
grupo. Assim, uma criança criada na China aprenderá a cultura daquele
país, e o mesmo acontecerá com a outra, nascida na França.

2 O processo civilizatório e a cultura


1. Fatores de distinção social são marcadores que servem para demarcar
a posição social que o indivíduo ocupa na escala social por conta da

Gabarito 159
oposição entre classes. Nas imagens, é possível notar diferenças entre
os dois rapazes por meio de suas vestimentas: um está com roupas
rasgadas e sapatos arrebentados, enquanto o outro se apresenta com
terno, gravata e um par de sapatos que combinam com o restante da
roupa. É possível perceber diferenças também em relação ao cuidado
pessoal: o da esquerda está com a barba por fazer e cabelos sem
corte, e o da direita está bem barbeado e penteado. Finalmente, outro
indício de que não pertencem à mesma classe social é a presença
da mala cheia de dinheiro na mão de um deles, enquanto o outro,
conforme a imagem sugere, parece ser uma pessoa em situação de
rua. Isso mostra que há um grande abismo social entre os dois, o que
se reflete em suas aparências.

2. Para os dois autores, o conceito de habitus se refere à relação entre o


individual e o social. Elias vê o habitus como resultante de um processo
histórico referente à relação de interdependência entre os indivíduos
em uma sociedade, o que, de certa forma, condiciona as ações e os
comportamentos humanos: o processo civilizador. Já Bourdieu reafirma
que para compreender o processo civilizador é preciso compreender
que os comportamentos, as visões de mundo e os estilos de vida dos
indivíduos são condicionados pela posição que ocupam na escala
social. Habitus, para Bourdieu, aproxima-se muito da ideia de cultura; é
individual, mas determinado socialmente.

3. Norbert Elias se debruça sobre a sociedade de corte francesa


porque, para ele, ela seria a estrutura social que melhor representa
as mudanças que foram decisivas para se caracterizar o processo
civilizador: um poder centralizado, forte e absolutista, uma corte que
buscou avidamente construir elementos que a diferenciassem na
estrutura social e, por fim, uma sociedade que criou regras, normas e
padrões de comportamentos que foram sistematizados e transmitidos
entre os cortesãos, constituindo-se como fatores de distinção social e
modelando a sociedade ocidental.

3 A experiência da alteridade
1. O conceito de relativismo cultural nasceu de uma visão crítica no seio
da própria sociedade ocidental, a que mais dominou e explorou outras
sociedades, em sua maioria, consideradas inferiores. Ele se contrapõe
ao etnocentrismo, o qual se fundamenta na ideia de que apenas a
própria sociedade produtora de uma cultura pode avaliar e julgar suas
práticas. Essa é a atitude que tem como base o relativismo cultural, que

160 Antropologia Cultural


não pretende apagar as diferenças nem reproduzir as desigualdades.
Assim, articular igualdade e diferença pode exigir uma revisão de
todo o processo educativo, abrindo espaço para interlocutores que
tradicionalmente não têm sido ouvidos e respeitados.

2. Quando observamos os conflitos que hoje estão acontecendo no


mundo, tal como já ocorreu em outros momentos da história, o
que podemos ver é que falta a muitos indivíduos a percepção da
alteridade, isto é, entender que as diferenças existem e que elas
fazem parte da humanidade. Ao mesmo tempo, tal como representa
a imagem, a não aceitação do “outro” faz com que a discriminação
aconteça, enquanto o correto seria a aceitação e a tolerância ao invés
de atitudes etnocêntricas, hostis e desrespeitosas.

3. Compreender a importância da alteridade, avaliando o impacto


negativo de atitudes e comportamentos etnocêntricos na convivência
social e valorizando o diálogo e o respeito ao outro, é exatamente o
que propõe o relativismo cultural. Significa buscar o significado de
cada cultura entre os seus praticantes por meio da lógica deles e não
dos nossos valores ou da nossa cultura.

4 O multiculturalismo
1. Quando se observa a ilustração, é possível perceber que a população
não branca é maioria no Brasil. Entretanto, constitui-se como minoria
porque não tem acesso a direitos básicos aos quais todo cidadão
do país deveria ter. Isso se deve ao fato de não ter havido nenhuma
preocupação com o futuro dos ex-escravos após a abolição da
escravidão, em 1888. Outro ponto que deve ser considerado é o
fato de que aqui, ao contrário do que acontece em outros países, o
racismo é principalmente velado, o que dificulta o combate a esse tipo
de preconceito. Diferentemente do praticado em outras partes do
planeta, o racismo no Brasil é mascarado.

2. Devido à disseminação da discussão sobre a condição da mulher em


diferentes sociedades, o tema do empoderamento feminino se impôs
dizendo que as mulheres devem e precisam ir em busca dos seus
direitos na sociedade para adquirir cidadania plena. A imagem mostra
o estereótipo de alguns dos vários papéis desempenhados pela mulher
que se insere no mercado de trabalho – ela precisa, ao mesmo tempo,
cuidar da família, dos filhos, de si mesma, sempre tentando atender ao
que a sociedade convencionou ser sua atribuição.

Gabarito 161
3. A xenofobia pode ser compreendida como a rejeição ao “outro” e a
tudo o que ele significa. É a negação da sua identidade, construída e
reforçada no contexto do convívio social. Trata-se de entender que
todo indivíduo é um sujeito social e historicamente construído.

5 A antropologia cultural e os símbolos


1. O papel da antropologia – tal como de outras ciências humanas,
cada uma a seu modo – deve ser propiciar uma análise pautada na
curiosidade em relação às diferentes motivações e significados de
cada rito ou ritual para aqueles que o praticam, sempre na busca de
compreender o sentido dessas práticas e do papel que exercem para
a construção e o reforço da identidade de indivíduos e do grupo.

2. A imagem retrata uma colação de grau, um ritual que simboliza um


dos ritos de passagem mais importantes na maioria das sociedades,
representando o final de uma etapa da vida – a educação básica, que
deve dar início a outra, a vida profissional –, e que é sempre bastante
ritualizado e pleno de significados. Entre as razões que se podem
inferir da imagem e que justificam sua importância, podemos apontar
a alegria dos pais ao abraçar e cumprimentar o rapaz, uma vez que
esse é o sonho de muitas famílias; a satisfação do recém-graduado
com sua conquista e o fato de que esse momento quase sempre é
marcado por um ritual fortemente cerimonioso e cheio de símbolos,
como a beca e o capelo, o chapéu que é um marco do evento.

3. Um dos estereótipos mais comuns em relação à população


encarcerada ­diz respeito ao fato de que todos os indivíduos nessa
condição são iguais, isto é, o mundo de fora os vê como uma massa
homogênea, que merece estar onde está. São indivíduos que o mundo
julga não terem direito a uma nova oportunidade, uma vez que são
vistos como “bandidos” perigosos. A sociedade tende a enxergar esse
grupo de maneira preconceituosa, e isso faz com que as pessoas que
dele fazem parte sejam discriminadas mesmo quando recuperam sua
liberdade. O estereótipo permanece.

6 A antropologia cultural e a cultura brasileira


1. A originalidade de Gilberto Freyre se deve ao fato de ter introduzido na
análise da realidade brasileira aspectos do cotidiano, como a comida,
para tentar definir o caráter nacional. Porém, ao analisar as relações
étnico-raciais e a mistura de culturas que deram origem ao Brasil,
o autor vê na mestiçagem o ponto forte da identidade brasileira e

162 Antropologia Cultural


idealiza as relações interétnicas a partir do conceito de democracia
racial. Esse pensamento teve grandes consequências políticas, uma vez
que minimizou o conflito e a violência a que negros eram submetidos
desde a escravidão.

2. Para ele, a cordialidade brasileira não significaria generosidade ou


qualquer outro tipo de relação benéfica. Pelo contrário, o autor explica
que, ao agir com o coração, com afetos, o povo brasileiro acaba não
percebendo como o conflito, a violência e a discriminação colaboram
para a exclusão das minorias, dos mais pobres, dos negros, mascarando
um traço que é próprio da nacionalidade no Brasil. Dominado pelo
patriarcalismo, pela confusão entre público e privado e pela falta de
impessoalidade nas relações sociais, acaba reforçando as desigualdades.

3. A antropologia cultural, sobretudo a partir de Gilberto Freyre, um


discípulo do antropólogo culturalista Franz Boas, num contexto de
surgimento, disseminação e repercussão de teorias racistas, higienistas
e nacionalistas, provoca a reflexão em torno da tentativa de responder
à seguinte questão: quem é o povo brasileiro? Como ele se formou?
Quais são suas características mais marcantes? E responde por meio
do trabalho de outros pensadores como Darcy Ribeiro e Roberto
Damatta, que se dedicaram a buscar o ethos do povo brasileiro,
refletindo sobre como o brasileiro se vê, como se comporta, enfim,
como vê o seu próprio país e o mundo.

7 Relações entre espaço, cultura e sociedade


1. Ao fazer parte do grupo de ciências que discute o meio ambiente, a
antropologia pode contribuir de forma significativa ao fornecer um
fundamento teórico-conceitual baseado especialmente no conceito
de cultura. Ao discutir a relação homem-sociedade-natureza, ela nos
ajuda a pensar que civilização queremos para o futuro, que se espera
ser mais justa e que considere a diversidade cultural e ambiental.

2. Ao incorporar esses conceitos, a antropologia contribui mostrando


como se dá a construção social de conceitos como espaço e tempo e
mostra o importante papel da cultura e seu impacto sobre a natureza,
desde o momento em que a humanidade se tornou sedentária,
passando pelos diferentes modos de produção e chegando à
modernidade, à pós-modernidade e à sociedade do conhecimento.

3. Dentre os povos tradicionais que compõem a população brasileira, as


comunidades quilombolas e os grupos indígenas são dois exemplos
de como o meio ambiente é determinante para a construção de sua
cultura, assim como é impactada por ela.
Gabarito 163
Um dos nossos maiores desafios como huma-
nidade é, e sempre foi, vermos uns aos outros e

ANTROPOLOGIA CULTURAL
nossas diferenças de maneira respeitosa, harmonio-
sa e livre de preconceitos. Todavia, o que temos visto tem
sido exatamente o oposto: desrespeito, intolerância, conflitos e muito
sofrimento decorrente de todo tipo de preconceito. Esse é um quadro
preocupante especialmente quando se observa o enorme sofrimento
daqueles que por alguma razão são vistos como “diferentes”. Nesse sen-
tido é que se deve avaliar a enorme importância da antropologia cultural
como ciência que tem o próprio ser humano em sua dimensão cultural
como objeto de estudo.
A grande contribuição da antropologia é propor a discussão da alteri-
dade, isto é, a percepção do outro. E quem é o outro? Aquele que por
alguma razão é diferente de nós e que, por isso mesmo, nos engrandece,
nos ajuda a construir nossa humanidade e nos permite relativizar tudo o
que está fora da nossa cultura.
Esta obra tem como objetivo discutir temáticas relacionadas à cultura,
considerando diferentes eixos organizadores, sempre com foco no pa-
pel que esse conceito desempenha para a análise antropológica.

SOLANGE M. S. DEMETERCO
Código Logístico Fundação Biblioteca Nacional
ISBN 978-85-387-6599-8

59248 9 788538 765998

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