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ANTROPOLOGIA CULTURAL
nossas diferenças de maneira respeitosa, harmonio-
sa e livre de preconceitos. Todavia, o que temos visto tem
sido exatamente o oposto: desrespeito, intolerância, conflitos e muito
sofrimento decorrente de todo tipo de preconceito. Esse é um quadro
preocupante especialmente quando se observa o enorme sofrimento
daqueles que por alguma razão são vistos como “diferentes”. Nesse sen-
tido é que se deve avaliar a enorme importância da antropologia cultural
como ciência que tem o próprio ser humano em sua dimensão cultural
como objeto de estudo.
A grande contribuição da antropologia é propor a discussão da alteri-
dade, isto é, a percepção do outro. E quem é o outro? Aquele que por
alguma razão é diferente de nós e que, por isso mesmo, nos engrandece,
nos ajuda a construir nossa humanidade e nos permite relativizar tudo o
que está fora da nossa cultura.
Esta obra tem como objetivo discutir temáticas relacionadas à cultura,
considerando diferentes eixos organizadores, sempre com foco no pa-
pel que esse conceito desempenha para a análise antropológica.
SOLANGE M. S. DEMETERCO
Código Logístico Fundação Biblioteca Nacional
ISBN 978-85-387-6599-8
Solange M. S. Demeterco
IESDE BRASIL
2020
© 2020 – IESDE BRASIL S/A.
É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito da autora e do
detentor dos direitos autorais.
Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A.
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Demeterco, Solange M. S.
Antropologia cultural / Solange M. S. Demeterco. - 1. ed. - Curitiba
[PR] : IESDE, 2020.
164 p. : il.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-387-6599-8
3 A experiência de alteridade 46
3.1 O eu e o outro 46
3.2 A igualdade e a diferença em uma perspectiva dialógica 51
3.3 O etnocentrismo e o relativismo cultural 57
4 O multiculturalismo 66
4.1 As relações étnico-raciais e o racismo 67
4.2 As relações de gênero e a antropologia cultural 75
4.3 A questão da imigração e a antropologia cultural 82
Gabarito 159
APRESENTAÇÃO
Um dos nossos maiores desafios como humanidade é, e sempre
foi, vermos uns aos outros e nossas diferenças de maneira respeitosa,
harmoniosa e livre de preconceitos. Todavia, o que temos visto tem sido
exatamente o oposto: desrespeito, intolerância, conflitos e muito sofrimento
decorrente de todo tipo de preconceito. Esse é um quadro preocupante
especialmente quando se observa o enorme sofrimento daqueles que por
alguma razão são vistos como “diferentes”. Nesse sentido é que se deve
avaliar a enorme importância da antropologia cultural como ciência que tem
o próprio ser humano em sua dimensão cultural como objeto de estudo.
A grande contribuição da antropologia é propor a discussão da alteridade,
isto é, a percepção do outro. E quem é o outro? Aquele que por alguma razão
é diferente de nós e que, por isso mesmo, nos engrandece, nos ajuda a
construir nossa humanidade e nos permite relativizar tudo o que está fora da
nossa cultura.
Esta obra tem como objetivo discutir temáticas relacionadas à cultura,
considerando diferentes eixos organizadores, sempre com foco no papel que
esse conceito desempenha para a análise antropológica.
No primeiro capítulo, vamos tratar sobre as bases da antropologia cultural,
seu objeto de estudo e seus objetivos, além de apresentar uma reflexão em
torno da diversidade cultural em suas múltiplas dimensões, tão fundamental
para pensarmos a existência de tantas e tão diversas visões de mundo entre
os diferentes povos e culturas. O que a antropologia nos mostra é que essa
diversidade foi essencial para nosso processo civilizatório, sobretudo ao
analisarmos de que modo as práticas culturais podem ser utilizadas como
fator de distinção social e construção de identidades individuais e coletivas –
tema do segundo capítulo.
Já no Capítulo 3, o tema é a experiência da alteridade, com o objetivo de
nos ajudar a compreender o impacto negativo de atitudes e comportamentos
etnocêntricos na convivência social e o quão importante é a valorização do
diálogo e do respeito com o outro para uma boa convivência. Com base em
noções como etnocentrismo e relativismo cultural, vamos discutir questões
muito próximas à nossa realidade, a qual muitas vezes é marcada pelo conflito
em razão de não considerarmos que cada cultura tem sua própria lógica.
Nesse sentido, o multiculturalismo é o tema do Capítulo 4, no qual se
analisa como ocorrem as relações étnico-raciais, as relações de gênero e o
contato com imigrantes na sociedade atual, avaliando como as desigualdades
observadas se relacionam com práticas discriminatórias e preconceituosas
quanto ao diferente e como são responsáveis por sua exclusão.
No Capítulo 5, vamos tratar de algo que é muito importante para a
antropologia cultural: como se formam e para que existem os simbolismos.
Entenderemos como símbolos, rituais e diferentes práticas culturais são
construídos, analisando como estereótipos e preconceitos são determinantes
da discriminação e da exclusão social.
Para pensarmos a antropologia cultural e a cultura brasileira, no
Capítulo 6, o objetivo é investigar como aconteceu o processo de formação
do povo brasileiro, pensando o papel desempenhado pelos povos indígenas
nativos, negros africanos e pelos imigrantes na construção da identidade
nacional, considerando o processo de colonialismo, a mestiçagem e o
patriarcalismo na história do país. Nesse contexto, vamos avaliar o impacto
disso na atualidade e no caráter nacional.
No sétimo e último capítulo, o tema são as relações entre espaço, cultura
e sociedade, avaliando a importância do conceito de cultura para pensarmos a
construção social de categorias de análise como espaço, tempo e territorialidade.
Analisaremos como a presença humana em determinados territórios influencia
não só o ambiente, mas particularmente o espaço, que sempre é uma
construção social, histórica e cultural. Além disso, é importante considerar
que o fenômeno da globalização nos apresenta desafios e impõe reafirmar a
importância da diversidade cultural, ao lado da diversidade ambiental.
Assim, o que mais desejamos é que a sua caminhada seja plena de
descobertas, reflexões e provocações que abram para novas perspectivas e
que estimulem uma prática social pautada na ética, no respeito ao outro e ao
meio ambiente. Que esse seja só um começo.
Bons estudos!
1
Antropologia e cultura
Você já se perguntou como nós, seres humanos, chegamos
até aqui? Como construímos séculos de história, realizações,
invenções e produzimos tanto conhecimento? Sermos animais
nos faz ter conexões com a natureza, mas, diferente dos demais,
temos a capacidade de pensar e racionalizar tudo o que vemos,
vivemos e sentimos. Isso nos define e nos coloca inúmeros desa-
fios, sobretudo por essas nossas singularidades, inclusive nossa
capacidade de interagir com a natureza, transformando-a.
Antropologia e cultura 9
1.1 Cultura: um conceito antropológico
Vídeo Pensar o processo de humanização da nossa espécie é pensar em
uma série de passos dados em direção a uma existência menos sujeita
às condições naturais. Trata-se de avaliar como o ser humano foi crian-
do as condições para sobreviver a um ambiente quase sempre muito
hostil e os meios para tornar sua vida menos difícil. Como buscou aten-
der às necessidades básicas – alimentação, abrigo, proteção etc. – e
outras que transcendem a materialidade, tais como a relação com o
sagrado e as inúmeras tentativas de explicar as próprias manifestações
da natureza e o sentido da vida.
10 Antropologia Cultural
teoria antropológica combate toda e qualquer análise que estabeleça
algum tipo de hierarquia ou juízo de valor entre culturas diferentes.
A discussão sobre a alteridade, isto é, a percepção do outro, seja ele
quem for, é a premissa que há muito a orienta.
Antropologia e cultura 11
te, separada da sociologia, ao passo que antropologia social e cultural
se separam. Vejamos algumas dessas elaborações.
12 Antropologia Cultural
Felix M. Keesing (1958) Leslie A. White (1959)
Comportamento aprendido, aquilo que é transmi- Não deve ser vista como um comportamento em
tido ao longo de gerações, por meio do processo si mesma, fora do organismo humano, constituí-
de socialização. da de elementos materiais e não materiais.
“Comportamento cultivado, ou seja, a totalidade “Quando coisas e acontecimentos dependentes
da experiência adquirida e acumulada pelo ho- de simbolização são considerados e interpre-
mem e transmitida socialmente, ou, ainda, o com- tados num contexto extra somático, isto é, em
portamento adquirido por aprendizado social”. face à relação que têm entre si, ao invés de com
Kessing, 1961, p. 49 apud Marconi; Presotto, os organismos humanos”.
2011, p. 23. White, in Kahn, 1975, p. 129 apud Marconi;
Presotto, 2011, p. 23.
Antropologia e cultura 13
Já segundo White (2009), a cultura não deve ser vista como um com-
portamento em si mesma, como se não fizesse parte do indivíduo, já
que se constitui de elementos materiais e não materiais. Ele diferencia
comportamento e cultura, a qual independe do organismo humano.
Aqui tem-se um avanço em relação à noção de que cultura é aprendida
e determina comportamentos, compreende-se que também é formada
por representações simbólicas construídas pela humanidade.
14 Antropologia Cultural
origem a correntes teóricas que, aos poucos, foram deixando mais cla-
ro como lidar com esse objeto de estudo: a humanidade e suas obras.
Segundo Marconi e Presotto (2011, p. 2),
o objeto da antropologia engloba as formas físicas primitivas e
atuais do homem e suas manifestações culturais. Interessa-se,
preferencialmente, pelos grupos simples, culturalmente diferen-
ciados, e pelo conhecimento de todas as sociedades humanas,
letradas ou ágrafas, extintas ou vivas, existentes nas várias re-
giões da Terra. Atribui-se ao antropólogo a tarefa de proceder a
generalizações, formulando princípios explicativos da formação
e desenvolvimento das sociedades e culturas humanas.
Antropologia e cultura 15
e, sobretudo, usadas pesquisas de campo com a realização de ob-
servação participante. Essa técnica, um dos diferenciais do método
antropológico, implica a inserção do antropólogo-pesquisador no am-
biente que está se propondo a investigar, participando da rotina e dos
eventos do grupo enquanto pesquisa, dando voz ao nativo e procu-
rando interpretar aquilo que vê.
16 Antropologia Cultural
Figura 1
Jornada do homem
Início do cultivo do
milho no Novo Mundo Início do cultivo de cereais
no Oriente próximo
4.000 a.C.
Ascensão da
Civilização Grega
Primeiras cidades
na Mesopotâmia 2.000 a.C.
Nascimento de Cristo
Impérios Asteca e
Inca, civilização Maia
Antropologia e cultura 17
Filme
de “estranhamento” diante daquilo que possa ser familiar, isto é, uma
postura de questionamento diante do que se observa e que muitas ve-
zes não desperta a atenção. De todo modo, a escolha do método e das
técnicas de pesquisa antropológica é importante para que seja possível
dar conta das diversas nuances das práticas culturais.
18 Antropologia Cultural
sociais foram criadas e a vida em sociedade passou a depender da ca-
pacidade humana de conviver. Ao longo de toda a história, é possível
encontrar exemplos de como a vida entre diferentes povos pode ser,
e efetivamente é, complicada. Especialmente ao se incluir na análise a
questão fundamental que aqui já foi introduzida anteriormente, que é
a compreensão de que cultura é também um mecanismo de controle.
Figura 2
A unidade na diversidade
Franzi/Shutterstock
Antropologia e cultura 19
O que se pode observar nessa figura? É possível dizer, por exemplo,
quem é mais rico ou mais importante apenas olhando para os rostos
das pessoas? Quais são as características que as diferenciam? É pos-
sível dizer exatamente o que cada uma dessas pessoas é ou indicar a
priori como elas pensam ou se comportam? Então, o que se pode con-
cluir? A humanidade é um único grupo, mas essa unicidade não exclui
as diferenças. Temos diferentes características: tipo e cor de cabelo,
tom de pele, sexo, idade, entretanto, nenhum desses traços nos define
totalmente. Há muito tempo a antropologia vem tentando mostrar o
quanto a diversidade enriquece a convivência humana, afirmando que
conhecer as diferentes culturas é o que permite ampliar o diálogo.
20 Antropologia Cultural
próprias noções, fruto da posição contingente da civilização ocidental
e de seus valores”. Ao tratar da cultura no plural, Boas acolhe a diversi-
dade e tenta mostrar o valor de todas as culturas, percepção que muda
a antropologia e abre caminho para pensadores como Geertz, que re-
força o papel da diversidade cultural na constituição da humanidade.
Antropologia e cultura 21
O “estar lá” é essencial para que esse olhar em relação ao diferen-
te se amplie, de modo a considerar que diferenças e semelhanças se
complementam em direção a uma unidade, a humanidade. Descobrir
como costumes e comportamentos surgem no seio de uma cultura é
saber mais sobre o indivíduo e o grupo no qual ele se insere, e como se
relaciona com outras culturas.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
A cultura, mesmo considerando as várias acepções do termo, pode
ser definida como o conjunto de ideias, hábitos, crenças, valores e pa-
drões de conduta e de comportamento produzidos pelo ser humano em
seu processo evolutivo. Seja quando se fala em cultura material (bens
materiais, concretos e resultantes da invenção humana) ou em cultura
imaterial (aquela que não tem materialidade, como crenças, normas, ati-
tudes etc.), está se falando em algo que define o processo de humaniza-
ção e de construção de civilização.
Por muito tempo se discutiu na antropologia cultural o peso de deter-
minantes biológicos ou condicionantes espirituais na construção da ideia
de cultura. Hoje, sabe-se que todo e qualquer idealismo tem um contra-
ponto importante na natureza, que exerce, e sempre exercerá, importan-
te papel na sua construção.
A cultura na qual cada ser humano se insere, de alguma forma,
condiciona sua visão de mundo, seus sentimentos, seus ideias e seus
comportamentos. Tem sempre uma lógica própria, sendo absolutamen-
te coerente para aqueles que dela compartilham. E isso é importante
quando se pensa a diversidade cultural, uma vez que, se cada cultura faz
sentido em seus próprios termos, atitudes de julgamento em relação ao
que seja diferente não são plausíveis.
Costumes e crenças são compreensíveis quando analisados em pers-
pectiva de inter-relações sociais, políticas e econômicas. Isso significa
22 Antropologia Cultural
dizer que as diferenças em relação aos padrões culturais são definidas
social e historicamente, e não por características herdadas biologicamen-
te ou definidas pela natureza.
Ao desnaturalizar os comportamentos humanos, a antropologia cultu-
ral eleva a cultura à categoria de conceito estruturado e estruturante de
seu estudo, uma vez que, ao mesmo tempo que tem uma conformação,
define e orienta padrões de pensamento e comportamento do indivíduo
ao longo de toda a sua vida.
A cultura é simbólica (constituída por símbolos) e social (sociedade e
cultura são definidas independentemente dos indivíduos, e são anteriores
a eles), é dinâmica (acompanha a mudança social) e, ainda assim, estável
(uma vez que, sendo uma forma de aprendizado, tem seu próprio tempo
e ritmo), é seletiva (escolhas são realizadas a partir do alicerce cultural de
uma sociedade, o qual pode ser reformulado, com abandonos, incorpo-
rações, redefinições), é universal e regional e, por fim, é determinante e
determinada.
ATIVIDADES
1. Em algum momento da sua vida você já deve ter ouvido essa
pergunta: “Você tem cultura?”. Observe as duas imagens abaixo e
faça o que se pede.
New Africa/Shuttersock
Cienpies Design/Shutterstock
Antropologia e cultura 23
a) Em qual das duas imagens podemos encontrar a representação da
ideia de cultura definida pela antropologia?
b) Diante do que você respondeu no item anterior, “você tem
cultura?”. Justifique sua resposta.
REFERÊNCIAS
CASTRO, C. Franz Boas: antropologia cultural. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
CUCHE, D. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: EDUSC, 1999.
GEERTZ, C. A interpretação das culturas. São Paulo: LTC, 2017.
KLUCKHOHN, C. Antropologia: Um espelho para o homem. São Paulo: Itatiaia, 1972.
KUPER, A. Cultura: a visão dos antropólogos. Bauru: EDUSC, 2002.
MARCONI, M. A.; PRESOTTO, Z. M. N. Antropologia: Uma introdução. 7. ed. São Paulo:
Atlas, 2011.
MELLO, L. G. Antropologia cultural: Iniciação, teoria e temas. 20. ed. Petrópolis: Vozes, 2015.
OLIVEIRA, R. C. O trabalho do antropólogo. São Paulo: UNESP, 1998.
PELTO, P. J. Iniciação ao estudo da antropologia. 7. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1984.
WHITE, L. A. O conceito de cultura. São Paulo: Contraponto, 2009.
24 Antropologia Cultural
2
O processo civilizatório
e a cultura
Ao longo do tempo, o ser humano construiu sua trajetó-
ria com muito esforço. Mas por que se fala em construção?
Porque a humanidade é a única espécie que pensa sobre a sua
existência e, ao fazer isso, modifica o meio no qual se insere,
os outros indivíduos e a si mesma. Desse modo, aos poucos
foi produzindo cultura e mudando a forma como os indivíduos
se relacionavam, ao mesmo tempo que ampliava o repertório
de normas, regras, costumes, comportamentos e atitudes que
constituem o que se chama de processo civilizatório.
O objetivo deste capítulo é investigar o processo de civili-
zação da humanidade, analisando como as práticas culturais
podem ser utilizadas como fator de distinção social e cons-
trução de identidades individuais e coletivas. Isso é importan-
te para que se possa compreender que a cultura é dinâmica,
transforma-se e é transformadora. Tudo impactou a maneira
como civilizações foram sendo constituídas: pessoas, fatos his-
tóricos, conjunturas sociais, políticas e econômicas, mudanças
no próprio planeta.
Os historiadores têm por premissa afirmar que não se pro-
jeta o futuro sem conhecer o passado. A antropologia também
contribui para esse processo sempre que coloca luz sobre a
produção cultural da humanidade.
26 Antropologia Cultural
Foi com o livro O processo civilizador, o qual se tornou conhecido em
1990, ano de seu falecimento, que Elias foi reconhecido como um dos
maiores pensadores no século passado. Escrito em dois volumes, nessa
obra, por meio da observação das mudanças das regras sociais e da forma
como os indivíduos as percebiam e, a partir disso, modificavam seus com-
portamentos e sentimentos, Elias constrói uma narrativa da história dos
costumes. Utilizando como fontes os manuais de etiqueta e boas maneiras
elaborados desde o século XIII, e discutindo como a progressiva contenção
dos impulsos foi determinando formas e padrões de comportamento so-
cial, acabou dando bastante destaque à sociedade de corte francesa abso-
lutista dos Luíses (reinados de Luís XIV, Luís XV e o início do de Luís XVI).
28 Antropologia Cultural
Analisando também o processo de formação do Estado, Elias afirma
que o autocontrole, a contenção das pulsões, assume papel cada vez
mais importante e determinante para o processo civilizador. Isso ocorre
especialmente depois que se passa a ter um poder centralizado e as pes-
soas são forçadas a conviver, preferencialmente de maneira harmonio-
sa, mais afetuosa e, espera-se, menos violenta (ELIAS; SCOTSON, 2000).
O impacto mais marcante desse processo é o fato de que, aos pou- Curiosidade
Figura 4
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30 Antropologia Cultural
cia nem contenção dos impulsos. É na família que inicialmente aconte-
ce o processo de socialização, por meio do qual se aprende a viver em
sociedade. Ao longo de toda a vida acontece esse processo de aprendi-
zagem das regras e dos costumes dos grupos dos quais cada indivíduo
participa. A educação exerce o importante papel de ensinar às crianças
como devem se comportar. Já a Figura 4 desperta mais estranheza, pois
é consenso que a violência física não pode ser o recurso para que adul-
tos, sobretudo no ambiente de trabalho, resolvam seus problemas.
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sz Kurbiel/Shutterst
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iamond67/Shutterst
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Nbeaw/Shutterstock
32 Antropologia Cultural
E o que dizer do que se vê na Figura 8? É um tipo de civilização? O
que você acha? Uma cidade nesse modelo pode ser vista como mostra
de um tipo de civilização? A resposta é sim.
34 Antropologia Cultural
mínio dos códigos de conduta e um alinhamento aos padrões de
comportamento considerados adequados e imprescindíveis para
serem chamados “seres civilizados”.
36 Antropologia Cultural
2.3 Práticas culturais e as formas
Vídeo de distinção social
Antes do surgimento de uma classe social intermediária naquela rí-
gida estrutura social, que até o século XVII havia marcado as sociedades
ocidentais, cada indivíduo sabia claramente qual era seu lugar na socie-
dade. Caso alguém resolvesse se insurgir contra esse estado de coisas,
rapidamente era “lembrado” de que não poderia romper aquele sistema
com facilidade. Havia, nesse momento, diversos fatores de distinção so-
cial, os quais são marcadores de posição social que regem a lógica da
convivência social e decorrem da estrutura da sociedade. Isso porque
Os comportamentos que são menos discutíveis e discutidos de
uma sociedade, como os cuidados corporais, as maneiras de
vestir-se, a organização do trabalho e o calendário das atividades
cotidianas refletem um sistema de representação do mundo que
os liga, em profundidade, às formulações intelectuais as mais
elaboradas, como as concepções religiosas, o direito, o pensa-
mento filosófico ou científico. (BURGUIÈRE, 1993, p. 62)
38 Antropologia Cultural
Mas essas mudanças refletem novos costumes, comportamentos,
moralidade, desejos e emoções, compondo um código cultural que aos
poucos submete outros setores da sociedade, e não só as classes privi-
legiadas. Nesse contexto, há cada vez menos espaço para espontanei-
dade, autenticidade e improviso. Tem-se uma era de predomínio das
aparências e do espetáculo: não bastava que o indivíduo “fosse”, era
preciso “parecer ser”. Isso, de certa forma, é resultante do fato de que,
a partir desse período, será a interdependência social que determinará
o controle dos impulsos e das emoções. Para Elias (apud BRANDÃO,
2003, p. 15), “o nível de controle das emoções de qualquer sociedade
é diretamente proporcional ao grau de ‘civilidade’ dessa sociedade, ou
seja, quanto mais elevado for esse patamar, mais distante essa socie-
dade estará da barbárie”.
40 Antropologia Cultural
ligado a um grupo social, que se relaciona especialmente à aparência
física (roupa, atitude etc.) e aos costumes e formas específicas de li-
dar com as instituições sociais, como a família, o trabalho e a religião”
(BOURDIEU apud COSTA, 2016, p. 199).
42 Antropologia Cultural
vívio, que, portanto, dependem da classe social a que se pertence”
(COSTA, 2016, p. 199).
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Como indicaram vários autores citados ao longo deste texto, o pro-
cesso civilizador é contínuo, não terá fim e tem uma múltipla causalidade,
isto é, não há apenas uma única causa que explique como e por que
ele ocorre. O processo civilizador também não se presta para estratificar
sociedades ou as próprias civilizações, uma vez que é uma construção de-
finida social, histórica e culturalmente, sendo que cada civilização tem seu
ritmo e segue um caminho único, e, ao contrário do que muitos possam
imaginar, não é um processo natural. Ele se relaciona e é resultante das
relações humanas, da estrutura social e de formas de comportamentos
correspondentes.
Ainda que por muito tempo, dentro das diferentes orientações epistemo-
lógicas, cultura e civilização tenham sido consideradas sinônimos, elas não têm
exatamente o mesmo significado, mesmo que sejam ideias correlatas.
No início da construção do termo civilização, parecia que somente a
sociedade de corte francesa era civilizada, sendo que se sabe que esse
monopólio não existiu. Mas é notável que a França foi uma inspiração e,
certamente, definiu alguns dos atuais padrões de civilidade das sociedades
ocidentais.
Assim, quando se pensa o processo civilizador, o que é observado é
o impacto do surgimento das novas classes médias que buscavam seu
espaço e sua identidade social. Dessa forma, e à luz do pensamento de
ATIVIDADES
1. Analise as imagens.
curiosity/Shutterstock
44 Antropologia Cultural
A partir do que estudou, faça uma leitura dessas imagens com base na
ideia de fatores de distinção social. Primeiramente, responda: o que são
fatores de distinção social? Em seguida, aponte ao menos três elementos
que indicam que há uma diferença de classe entre os dois indivíduos.
REFERÊNCIAS
BRANDÃO, C. F. Norbert Elias: formação, educação e emoções no processo de civilização.
Petrópolis: Vozes, 2003.
BRANDÃO, C. R. A educação como cultura. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986.
BURGUIÈRE, A. Dicionário das ciências históricas. 3. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1993.
COSTA, C. Sociologia: introdução à ciência da sociedade. 5. ed. São Paulo: Moderna, 2016.
EAGLETON, T. A ideia de cultura. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2011.
ELIAS, N. O processo civilizador. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. v. 1.
ELIAS, N. Introdução à sociologia. Lisboa: Edições 70, 2015.
ELIAS, N.; SCOTSON, J. L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a
partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
FERGUSON, N. Civilização: Ocidente x Oriente. São Paulo: Planeta, 2012.
MELLO, L. G. Antropologia cultural: iniciação, teoria e temas. 20. ed. Petrópolis: Vozes, 2015.
NEIBURG, F. O naciocentrismo das ciências sociais e as formas de conceituar a violência
política e os processos de politização da vida social. In: WAIZBORT, L. (org.). Dossiê Norbert
Elias. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999.
ORTIZ, R. Mundialização e cultura. São Paulo: Brasiliense, 2006.
3.1 O eu e o outro
Vídeo Para dar início à discussão, observe a imagem a seguir, que apre-
senta uma situação em que duas visões diferentes de uma mesma coi-
sa podem coexistir. Qual dos dois está certo, o homem ou a mulher?
Aliás, algum deles está errado?
46 Antropologia Cultural
Figura 1
Diferentes pontos de vista
Dooder/Shutterstock
O que está explícito é que essa diferença em relação ao algarismo
– seis ou nove – acabou gerando uma hostilidade e um conflito entre
eles. E o que essa situação pode acarretar? Muitas coisas, entre elas,
um crescente afastamento dos envolvidos ou, até mesmo, a transfor-
mação da discussão e do conflito em julgamento, violência, discrimina-
ção, exclusão etc.
A experiência de alteridade 47
e sociedade são dinâmicas e, por fazerem parte de um processo
contínuo de transformação, nunca estão acabadas, mantendo-se
sempre em andamento.
48 Antropologia Cultural
tre si, eram comparados por meio de uma única lógica: a das socieda-
des ditas “evoluídas”, as quais já haviam alcançado um determinado
nível de desenvolvimento que as chamadas sociedades “primitivas” ain-
da não haviam conseguido. E mais: essas sociedades mais “atrasadas”
precisariam de ajuda para conquistar e mudar o seu estilo de vida.
A experiência de alteridade 49
A barbárie versus a civilização. O bom versus o mal. O normal versus
o estranho. As oposições se dão em razão do fato de que nenhum dos
polos procura apreender a lógica que dá sentido e atribui significados
aos elementos e às práticas culturais da outra sociedade. Isto é, quan-
do se procura entender a diferença tecendo algum juízo de valor em
relação àquilo que não é familiar, não se conhece e, sobretudo, não se
quer conhecer. Ao utilizar seus valores, suas crenças e seus costumes
como parâmetros para avaliar uma cultura diferente da sua, o indiví-
duo tem poucas chances de relativizar.
Figura 2
Sala de aula moderna
Rawpixel.co/Shutterstock
50 Antropologia Cultural
Qual a chance de, no Brasil, hoje termos salas de aula como essa
Livro
para todos, sejam eles brancos, negros, pardos, indígenas, ricos, po-
bres, moradores das cidades ou do campo, de qualquer região do
país, enfim, sem nenhum tipo de diferença em termos de oportuni-
dade? Como alcançar a equidade? De início, podemos arriscar uma
resposta chamando a atenção para o importante papel da escola na
manutenção, reprodução, preservação, transmissão e valorização das
culturas de cada grupo social que compõe o Brasil. O respeito à diver-
sidade e às múltiplas identidades é a chave para a construção de uma
sociedade mais tolerante.
A obra Diversidade na
Aqui, é importante lembrar o papel de instituições sociais como a educação: implicações
culturais é importante pela
escola. A escola e a educação não podem colaborar para que imagens
discussão que promove a
negativas do “outro” sejam reforçadas pelas elites dominantes. Como respeito da diversidade e
de como esta impacta na
contraponto ao etnocentrismo, o relativismo cultural permite um olhar
educação, destacando a
para os “vários outros” que estão presentes na sociedade e nas salas necessidade de se comba-
ter o racismo e outras prá-
de aula por meio de seus valores, e não dos grupos que se colocam
ticas reprováveis no espaço
em uma posição superior – grupos ou indivíduos que transformam a escolar e na sociedade.
diferença em modelos explicativos para justificar a desigualdade de di- CASALI, A.; CASTILHO, S. D. de. São
reitos e de oportunidades. Paulo: EDUCA, 2017.
A experiência de alteridade 51
Uma escola que oportunize o conhecimento dos modos de vida, va-
Saiba mais lores, costumes e comportamentos de diferentes povos se tornará uma
Você já se perguntou escola inclusiva. Além do mais, a educação é um direito de todo cida-
por que a educação é dão e tem seus princípios bem definidos na documentação brasileira.
tão importante para um
povo e um país? Por que A antropologia, por meio de seus conceitos mais básicos, fornece
ela deve ser priorizada
quando se pretende
uma visão mais ampla da heterogeneidade e da complexidade das
construir uma nação mais sociedades. Olhar para as diferentes culturas de modo mais objetivo
justa e igualitária? Como
isso pode acontecer?
e sem pré-conceitos decorrentes do estranhamento inicial favore-
Para compreender ce a construção de ritos, rituais e práticas que podem desconstruir
melhor essas questões,
pesquise na Constituição
ideias negativas, pré-concebidas em relação ao “outro”. A atitude
Brasileira de 1988, em relativista permite a compreensão de que, independentemente de
seus artigos 205 a 214,
e veja o que lá está
como se vê uma prática cultural, é preciso entender que esta, de
firmado. alguma forma, faz sentido para quem a pratica, para quem viven-
Disponível em: http://www. cia certa cultura. De acordo com Marconi (2011, p. 32), “a posição
planalto.gov.br/ccivil_03/Constitui-
cao/Constituicao.htm. Acesso em:
relativista liberta o indivíduo das perspectivas deturpadoras do et-
1 abr. 2020. nocentrismo, que significa a supervalorização da própria cultura em
detrimento das demais”.
52 Antropologia Cultural
sentido de abordar temáticas que podem entrar em rota de colisão
com valores praticados pelas famílias dos estudantes.
• Conhecimento;
• Repertório cultural;
• Comunicação;
• Cultura digital;
A experiência de alteridade 53
• Argumentação;
• Autoconhecimento e autocuidado;
• Empatia e cooperação;
• Responsabilidade e cidadania.
Mas para que esse trabalho seja realizado de maneira mais eficiente,
professores devem rever as suas metodologias, priorizando aquelas que
coloquem o estudante no centro do processo de ensino-aprendizagem,
destacando a sua responsabilidade, entendendo que deve ser autôno-
mo, independente e protagonista. O docente se torna um facilitador da
aprendizagem, permitindo ao aluno construir as ferramentas necessárias
para saber o que fazer com os conhecimentos que já tem e que irá conce-
ber de modo colaborativo e cooperativo.
54 Antropologia Cultural
Esse cenário mostra que novos modelos relacionais são caracte-
rísticos das novas gerações e exigem, também, que os docentes se
reinventem, atualizem-se e abram-se a essas temáticas que dialo-
gam com a antropologia. Assim,
a escola precisa assumir o papel de formar cidadãos para
a complexidade do mundo e dos desafios que ele propõe.
Preparar cidadãos conscientes, para analisar criticamente
o excesso de informações e a mudança, a fim de lidar com
as inovações e as transformações sucessivas dos conheci-
mentos em todas as áreas. [...] Garantir aos alunos-cidadãos
a formação e a aquisição de novas habilidades, atitudes e
valores, para que possam viver e conviver em uma socie-
dade em permanente processo de transformação. (KENSKI,
2012, p. 64)
A experiência de alteridade 55
A aprendizagem relevante é aquela que transforma os indi-
víduos e suas vidas no sentido de torná-los mais éticos, críticos,
atuantes, tolerantes e receptivos à diversidade. É aquela que cons-
trói significados e dá sentido ao conteúdo que, por sua relevância,
terá aplicabilidade e poderá ser compartilhado. Nesse sentido, a
antropologia dialoga com a educação na medida em que propõe
uma interpretação holística da aprendizagem, das práticas educati-
vas que, por suas proposições, podem mudar o olhar de cada indi-
víduo. Quando esse diálogo se efetiva, torna-se possível reinventar
a escola para que a educação possa atender às diferentes deman-
das sociais e individuais da contemporaneidade.
56 Antropologia Cultural
a diversidade como um problema e os diferentes como inferiores.
Também chamam a atenção para a realidade na qual os grupos do- Atenção
minantes se impõem e impõem a sua cultura, consequentemente
Os estudos culturais surgem
definindo os princípios que orientarão as várias instâncias da vida na Inglaterra, entre os anos
social, inclusive a educação. 1950 e 1960, e têm como
proposta analisar a cultura pela
Analisando de maneira crítica o sistema educativo, podemos forma como os indivíduos se
perceber quantos rituais reforçam práticas educativas anacrônicas, relacionam, como articulam
as suas práticas culturais e as
que em nada colaboram para a construção da convivência pacífica relações de poder que as defi-
entre diferentes e a valorização da alteridade. É o caso de práticas nem. Também tratam de temas
relacionados às camadas mais
racistas ou homofóbicas, tais como a interdição de alunos negros
marginalizadas da sociedade,
nas peças publicitárias escolares ou a proibição de meninas joga- incluindo as minorias.
rem futebol em uma aula de Educação Física, que separa garotos
de garotas e define atividades “próprias” para cada sexo. Por conta
de atitudes desse tipo, indivíduos podem ser estigmatizados e dis-
criminados em seu meio por aqueles que se recusam a reconhe-
cer a diferença como algo a ser respeitado e valorizado. É sempre
importante lembrar que a cultura define identidades individuais e
coletivas e que, portanto, tem enorme relevância na educação.
A experiência de alteridade 57
A memória é resguardada, como se afirmou anteriormente, por
meio de rituais que reforçam a identidade individual e coletiva e
que, por sua vez, criam tradições e mantêm a coesão do grupo e o
sentimento de pertencimento. No entanto, os saberes acumulados
não devem ser transmitidos somente por indivíduos isolados ao
seu próprio grupo. Esse compartilhamento também é de respon-
sabilidade de algumas instituições que organizam a vida e a socie-
dade. Uma delas é a escola, que, por sua importância na estrutura
social, é responsável, junto à família, pela chamada socialização
primária, a qual acontece ao longo da infância. A reprodução do
saber é fundamental para garantir a continuidade histórica e asse-
gurar que não se perca aquilo que define uma determinada socie-
dade e que eventualmente pode diferenciá-la de outras.
58 Antropologia Cultural
corda com eles, ou porque não consegue se inserir plenamente
na sociedade por alguma característica sua que o diferencia dos
demais. Veja a imagem a seguir.
A experiência de alteridade 59
À medida que percebemos a sociedade e, dentro dela, o pro-
cesso educativo sem a preocupação de classificar ou hierarquizar
indivíduos ou grupos, afastamo-nos mais da visão etnocêntrica e
aproximamo-nos do relativismo cultural. Não se trata mais de so-
ciedades “primitivas” e “atrasadas” contra “civilizadas” e “avança-
das”. Retomando a ideia de pensar a contribuição da antropologia
para a educação, é preciso compreender o processo educativo em
sua própria lógica, isto é, sem utilizar critérios de outra sociedade,
que pensa e vivencia a educação de outra forma e para a qual tudo
faz sentido tal como é.
PROCESSO
Processo social
FUNÇÃO
ESTRUTURA
SISTEMA SOCIAL
60 Antropologia Cultural
bom funcionamento, conta com várias estruturas. O sistema diges-
tório, por exemplo, se compõe de diversos órgãos, cada um desem-
penhando uma função para que o processo digestivo aconteça da
forma correta. O mau funcionamento ou o colapso de um órgão
comprometerá todo o sistema, ou seja, o processo vital.
A experiência de alteridade 61
significa formar seres capazes de conviver, comunicar e dia-
logar num mundo interativo e interdependente utilizando os
instrumentos da cultura. Significa preparar o indivíduo para
ser contemporâneo de si mesmo, membro de uma cultura
planetária e, ao mesmo tempo, comunitária, próxima, que,
além de exigir sua instrumentação técnica para comunicação
a longa distância, requer também o desenvolvimento de uma
consciência de fraternidade, de solidariedade e a compreen-
são de que a evolução é individual e, ao mesmo tempo, co-
letiva. Significa prepará-lo para compreender que, acima do
individual, deverá sempre prevalecer o coletivo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O diálogo entre a antropologia e a educação se configura em uma
estratégia que pode ser transformadora e, em alguns casos, até revolu-
cionária quando se reflete sobre o papel da educação. Pensando na es-
cola e em tudo o que a envolve, é fácil compreender que em sociedades
muito marcadas pela desigualdade e pela rejeição da diversidade a edu-
cação assume um papel que transcende a transmissão do conhecimen-
to acumulado pela humanidade. Isso porque pode ser pelo processo
educativo que as novas gerações, em especial, poderão discutir sobre a
maneira como as diferenças têm sido tratadas. O preconceito, a discrimi-
nação, a estigmatizarão e a exclusão que sofrem aqueles que compõem
as minorias, muitas vezes, afetam o acesso desses indivíduos a direitos
humanos básicos, comprometendo a construção de sua cidadania.
62 Antropologia Cultural
A mudança nesse quadro de não reconhecimento e não valoriza-
ção da diversidade – étnico-racial, econômica, religiosa, de gênero,
de orientação sexual – virá da desconstrução e da revisão de valo-
res e atitudes de indivíduos e grupos que adotam posições hostis
em relação àqueles que não são como eles. Trata-se da superação
da hegemonia da sociedade do “eu” para a sociedade do “outro”. A
transmissão de novos conhecimentos e valores, ao lado da adoção
de comportamentos diferentes daqueles utilizados até hoje por parte
das elites hegemônicas, poderá trazer como resultado uma socieda-
de mais justa e harmônica, diminuindo, assim, o controle social exer-
cido sobre as minorias.
A socialização e a integração social das novas gerações preci-
sam ser discutidas no espaço da escola, e em todos os espaços
de aprendizagem aos quais têm acesso, sempre pensando que a
educação não pode ignorar seu papel em relação à exclusão e à
intolerância.
O compromisso da educação deve ser com a construção da cida-
dania, com a formação de cidadãos críticos, éticos, solidários, respei-
tosos, compreensivos e empáticos. Educação de qualidade também
é um caminho para a superação da pobreza porque, muitas vezes, a
desigualdade social tem como fundamento outra diferença. Podemos
citar como exemplo o caso da violência contra jovens negros e par-
dos, moradores das periferias das cidades, com baixa escolaridade,
em sua maioria, oriundos de famílias desestruturadas. Essa camada
da população não vive essa realidade apenas por questões econômi-
cas, mas, também, pelas características já citadas. Culturalmente, ao
longo do tempo, essas comunidades foram vistas como inferiores e
não merecedoras dos mesmos direitos e das mesmas oportunidades
que o restante da população tem acesso.
Sendo a cultura universal, adquirida, cumulativa, compartilhada,
é uma produção simbólica cujos elementos constituintes – valores,
hábitos, crenças, normas, leis, língua, símbolos, produção material e
intelectual – são partilhados entre seus membros e, dessa forma, re-
produzidos e internalizados. Nesse processo, uma abordagem mais
relativista pode significar uma mudança significativa na educação e
nos processos educativos.
A experiência de alteridade 63
ATIVIDADES
1. A educação sempre foi pensada como caminho para se combater
a intolerância e como uma das estratégias para se construir a ideia
de igualdade. Tendo a responsabilidade, entre outras coisas, de
ser um dos canais de transmissão da herança cultural de grupos
humanos, a escola possui um grande desafio: articular igualdade
e diferença, combatendo o etnocentrismo. Assim, qual o papel do
relativismo cultural nesse processo?
Vjacheslav_Kozyrev/Shutterstock
Na atualidade, o que mais se espera é que a temática da diversidade
cultural faça parte da pauta de discussões de diferentes setores da
sociedade. Relacione a imagem com questões como alteridade,
discriminação e tolerância, e elabore um texto no qual esses
três termos apareçam.
64 Antropologia Cultural
REFERÊNCIAS
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, DF: Ministério da Educação, 2018.
Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_
versaofinal_site.pdf. Acesso em: 28 jul. 2020
COSTA, C. Sociologia: Introdução à ciência da sociedade. 5. ed. São Paulo: Moderna,
2016.
GUIZZO, J. Introdução à sociologia. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2009.
KENSKI, V. M. Educação e tecnologias: O novo ritmo da informação. 8. ed. Campinas:
Papirus, 2012.
MARCONI, M. A. Antropologia: uma introdução. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2011.
MORAES, M. C. O paradigma educacional emergente. Campinas: Papirus, 1997.
MORAN, J. M. Ensino e aprendizagem inovadores com apoio de tecnologias. In:
MORAN, J. M.; MASETTO, M. T.; BEHRENS, M. A. Novas tecnologias e mediação
pedagógica. 21. ed. Campinas: Papirus, 2013.
ROCHA, E. P. G. O que é etnocentrismo. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1996.
WERNECK, H. O profissional da educação para o século XXI. 5. ed. Rio de Janeiro: Wak,
2014.
A experiência de alteridade 65
4
O multiculturalismo
Um dos temas mais relevantes na contemporaneidade é o
multiculturalismo, que precisa ser entendido para ser respeitado
e valorizado. Nesse sentido, especialmente em um país como o
Brasil, que teve sua formação original definida pela miscigenação,
a antropologia promove uma reflexão importante sobre as diferen-
ças culturais.
A proposta deste capítulo é analisar como se dão, na sociedade
atual, as relações étnico-raciais, as relações de gênero e o contato
com imigrantes, avaliando em que medida as desigualdades obser-
vadas se relacionam com práticas discriminatórias e preconceituo-
sas em relação aos diferentes. Com isso, espera-se compreender
melhor como e por que isso acontece e o que pode explicar a ex-
clusão de indivíduos e grupos devido às características da sua cor
de pele, sua identidade ou orientação sexual e sua origem.
É importante lembrar que, sobretudo após a industrialização
decorrente da Revolução Industrial, surgiram vários problemas
sociais que exigiram ações no sentido de inserir cada vez mais
indivíduos no sistema produtivo. Entretanto, isso ocorreu de
modo desigual e, quando se analisam as causas da desigualda-
de, observa-se que uma imensa camada da população não tem
oportunidade de se inserir dignamente nessa nova sociedade
urbano-industrial. Assim, inciou-se um rápido processo de exclu-
são social, cultural e econômica de indivíduos e grupos que pas-
sam a constituir algumas das chamadas minorias, aumentando a
desigualdade social.
Nesse cenário, a problematização das relações étnico-raciais e
das relações de gênero se torna o caminho para a superação da
desigualdade e para a justiça social. Por meio desse debate, é pos-
sível pensar em transformações sociais que permitam a igualdade
de oportunidades e direitos. Isso porque, quando se dialoga com
a antropologia, tem-se como base a discussão de temáticas que
se relacionam com o papel da cultura em uma sociedade. Dessa
forma, questões como a diversidade, as relações étnico-raciais e as
questões de gênero se colocam e devem ser debatidas.
66 Antropologia Cultural
4.1 As relações étnico-raciais e o racismo
Vídeo Tendo como objetivo a formação de indivíduos críticos, éticos e em-
páticos, a superação do racismo se torna o caminho para uma nova
sociedade. No entanto, isso não acontece sem a participação e o en-
volvimento de toda a sociedade – é válido lembrar que a antropologia
tem como objeto a sociedade e seus anseios, não apenas o indivíduo
e seus interesses. E de onde vem essa perspectiva? Da noção de que
nenhum ser humano é uma ilha. Certamente essa ideia lhe é familiar,
mas aqui deve ser retomada para reforçar que o ser humano é um ser
social, e isso implica na premissa de que o processo de socialização
deve acontecer durante toda a sua existência e que, sendo assim, não
acontece somente no seio da família ou da escola. De qualquer forma,
isso irá sempre se fundamentar no ideal de comunidade, de coletivida-
de. E mais: o propósito maior será sempre a construção da cidadania.
O primeiro tema que será discutido aqui diz respeito à forma como
se dão as relações étnico-raciais no Brasil e o impacto do racismo, que
infelizmente ainda persiste no país. Considerando que tudo o que a
humanidade produz é cultura, as relações sociais se concretizam com
base naquilo que já foi validado pela própria sociedade como sendo o
que a constitui. A antropologia cultural se debruça sobre as diferentes
práticas culturais no sentido de buscar a lógica que as orienta e como
definem a identidade de um indivíduo, de um povo, de uma nação.
Dessa forma, quando volta o olhar para as relações étnico-raciais, a an-
tropologia busca compreender os significados dessas práticas e o im-
pacto que causam na maneira como se consolidam as relações sociais.
O multiculturalismo 67
nadas à cor de pele, tipo de cabelo, traços faciais, estrutura do crânio
etc. O termo raça continua sendo utilizado apenas para sinalizar que
todos os indivíduos pertencem a uma mesma raça – a raça humana –, e
não como já foi operacionalizado, com o objetivo de estratificar e classi-
ficar grupos de indivíduos. A herança cultural compartilhada no interior
Leitura de várias sociedades ainda carrega o legado desse tempo em que se
Para saber mais sobre firmaram as ideias racistas, o que traz como consequência a discrimi-
a história e o sofrimen- nação e o racismo.
to pelo qual o povo
curdo tem passado, leia O que caracteriza a etnia é o fato de indivíduos terem a mesma cul-
a reportagem Qual é o
maior povo sem país?, na tura, a mesma língua e poderem se perpetuar biologicamente ao longo
revista Mundo Estranho, de gerações tentando manter essas características. Podem ou não par-
que mostrará um pouco
dessa realidade tilhar um mesmo território e ter ou não um Estado organizado. Hoje,
Disponível em: https://super.abril. infelizmente, o mundo vive diversos conflitos e guerras por causa da
com.br/mundo-estranho/qual-e- intolerância de um grupo étnico em relação a outro. É o caso dos cur-
-o-maior-povo-sem-pais/. Acesso
em: 8 abr. 2020. dos, etnia que vive espalhada em países como Iraque, Irã e Síria, área
historicamente marcada por conflitos. Um povo que não tem direito a
Filme um território, que se debate entre os interesses desses países que não
querem reconhecer seu direito histórico a um território e que, por tudo
isso, são alvos constantes de violência, inclusive na forma de atos que
podem ser vistos como tentativas de genocídio.
68 Antropologia Cultural
motivo para subjugar e dominar indivíduos. No Brasil, por exemplo,
essa desigualdade é evidente e tem suas bases no processo histórico
de formação do país, cuja economia, por mais de três séculos, foi fun-
damentada no escravismo. Negros africanos foram arrancados de sua
terra e trazidos ao Brasil para serem escravizados, constituindo mão de
obra para fomentar a atividade econômica do Brasil Colônia até 1888,
ano da abolição da escravidão.
O multiculturalismo 69
Vale chamar a atenção para outra questão muito séria: o comporta-
mento de indivíduos e grupos que sofrem com os estereótipos e pre-
conceitos e que muitas vezes nem percebem que são vítimas. Tudo o
que vivenciam em seu dia a dia e nas interações sociais é resultado de
um pensamento coletivo que se impõe e que, não sendo questionado,
permanece, aprofundando as desigualdades.
MERCADO DE TRABALHO
(Continua)
70 Antropologia Cultural
EDUCAÇÃO REPRESENTAÇÃO POLÍTICA
Ainda que tenha havido uma melhora desses indicadores nos úl-
timos anos – fruto de políticas com o objetivo de corrigir essa desi-
gualdade histórica –, ainda há muito o que se fazer para diminuir a
desvantagem da população preta, sempre mais vulnerável, em relação
à parcela branca de brasileiros.
O multiculturalismo 71
parece que toda essa população é invisível, não tendo, muitas vezes,
seus direitos básicos garantidos, sendo alvo de violência, discriminação
e preconceito.
72 Antropologia Cultural
A ideia da democracia racial atendeu, por muito tempo, ao projeto
desenvolvimentista das elites, mas, a partir do surgimento do movimen-
to negro nos Estados Unidos nos anos 1960, isso começa a se esvaziar e
fica inegável a prática velada, mas intensa, do racismo no Brasil.
1888
Abolição da escravidão no Brasil.
1948
Institucionalização da segregação racial na África
do Sul – o sistema de apartheid.
1950
Declaração das Raças da Unesco. 1951
Promulgação da Lei Federal n. 1.390/1951,
conhecida como Lei Afonso Arinos, que tornou o
1955 racismo uma contravenção penal do Brasil.
(Continua)
O multiculturalismo 73
2001
Conferência Mundial da ONU contra o racismo, a
discriminação racial, a xenofobia e intolerâncias
realizada em Durban, na África do Sul, condenan-
do a discriminação e a intolerância e aprovando 2002
um programa de ação para combater o racismo
em nível internacional, nacional e regional. Promulgada a Lei Federal n. 10.558/2002 no
Brasil, que cria o Programa Diversidade na Univer-
sidade, no âmbito do Ministério da Educação.
2003 2003
Promulgada a Lei Federal n. 10.639/2003, que A Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ)
torna obrigatório o ensino de história da cultura adota o sistema de cotas raciais e sociais com a
afro-brasileira e africana nas escolas de Educação aprovação da Lei Estadual n. 4151/2003.
Básica do Brasil.
2004
A Universidade de Brasília (UnB) aprova a
adoção de cotas para negros, indígenas e
afrodescendentes. 2012
O Supremo Tribunal Federal confirma a constitu-
cionalidade da Lei de Cotas Raciais no Brasil.
Artigo
http://periodicos.ufes.br/simbiotica/article/view/10324
74 Antropologia Cultural
4.2 As relações de gênero e a
Vídeo antropologia cultural
A desigualdade de gênero, a homofobia e a discriminação baseada
em critérios de orientação sexual estão entre as injustiças sociais e as
formas de violência que persistem na maioria das sociedades, inclusi-
ve na brasileira. Em sociedades mais ou menos modernizadas, urba-
nizadas e industrializadas, a desigualdade de gênero ainda se faz
presente, frequentemente impedindo milhões de indivíduos – homens
e mulheres – de terem seus direitos básicos respeitados.
O multiculturalismo 75
em outras áreas nas quais se observa não haver ainda uma repre-
sentatividade feminina equivalente à proporção de mulheres na po-
pulação brasileira. Com relação a salários de homens e mulheres no
exercício das mesmas funções ou atividades, segundo dados do IBGE,
as mulheres ganham, em média, 20,5% menos do que os homens,
ainda que tenha havido uma queda nessa desigualdade salarial entre
2012 e 2018 (OLIVEIRA, 2019).
76 Antropologia Cultural
Gráfico 1
Taxa de homicídios por 100 mil mulheres nas UFs (2017)
Roraima
Rio Grande do Norte
Acre
Ceará
Goiás
Pará
Espírito Santo
Rondônia
Amapá
Sergipe
Alagoas
Pernambuco
Bahia
Amazonas
Mato Grosso
Rio Grande do Sul
Tocantins
Brasil
Rio de Janeiro
Mato Grosso do Sul
Paraná
Paraíba
Minas Gerais
Maranhão
Piauí
Santa Catarina
Distrito Federal
São Paulo
0,0 2,0 4,0 6,0 8,0 10,0 12,0
O multiculturalismo 77
Gráfico 2
Evolução da taxa de homicídios femininos no Brasil, por raça/cor (2007-2017)
6,0
5,6 5,6
5,5 5,5
5,3 5,4
5,2 5,3
5,0 4,9
4,6
4,3
4,0
2,0
1,0
0,0
2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017
Negras Não Negras
78 Antropologia Cultural
O cotidiano das mulheres e suas lutas estimulam a reflexão de dife-
rentes pesquisadores de várias áreas do conhecimento, especialmente
com o surgimento do movimento feminista nos Estados Unidos, duran-
te os anos 1960 – momento a partir do qual as mulheres não deixaram
mais de lutar por seus direitos e pelo fim da discriminação, do precon-
ceito e da violência.
Filme
Temas relacionados à questão de gênero, como sexualidade e re-
produção, geram estudos sobre vários outros assuntos – por exemplo,
os diferentes tipos de relações de gênero; a violência contra as mulhe-
res; homens e a comunidade LGBTTTQ; a influência da religião nas rela-
ções de gênero; classe social e etnia como marcadores das relações de
gênero, entre outros. Em paralelo, especialmente na antropologia, para
que se possa compreender melhor os desdobramentos das discussões
em torno da questão de gênero, estabeleceu-se também a problema-
tização das masculinidades, isto é, das representações que envolvem a
forma como homens se colocam e se veem na sociedade. Para saber mais sobre
um dos aspectos da luta
A partir dos anos 1990, pesquisas sobre as identidades masculinas, a das mulheres na história,
assista ao filme As sufra-
heterossexualidade como normativa social, a questão da paternidade, gistas, que trata da histó-
da reprodução, da sexualidade e do eventual novo modelo de homem ria real da luta feminina
pelo direito ao voto.
e de masculinidade se difundem e começam a colocar em xeque ati-
Direção: Sarah Gravon. Inglaterra:
tudes, comportamentos e práticas culturais antes consolidadas nas
Pathé; Film4, Ruby Films, 2015.
sociedades, inclusive no Brasil. Isso tudo acontece no contexto de um
campo de pesquisa multidisciplinar, tendo a antropologia um lugar de
destaque ao tomar a cultura patriarcal e machista como foco. Descons-
truir padrões de comportamento cristalizados na sociedade se torna
uma das formas de promover a mudança de paradigma sobre o tema
das relações de gênero.
O multiculturalismo 79
Não é possível, entretanto, discutir gênero sem contemplar um con-
ceito correlato a esse tema: o conceito de orientação sexual, que
reivindicado pelo movimento homossexual brasileiro em contra-
ponto ao de opção sexual, tem permitido aos/às pesquisadores/
as das temáticas relativas à sexualidade distinguir diferentes
formas que o desejo sexual toma em articulação com as identi-
dades de gênero: hetero, homo ou bissexualmente orientados.
(GROSSI, 2010, p. 294-295)
SEXO BIOLÓGICO
É sua genitália e combinação de cromossomos
IDENTIDADE DE GÊNERO*
É a maneira com a qual você se enxerga e se identifica
EXPRESSÃO DE GÊNERO
É a forma e comportamento que você expressa seu gênero
*TRANSGÊNERO:
identidade de gênero
difere do sexo biológico
ORIENTAÇÃO SEXUAL *CISGÊNERO:
É por quem você sente atração identidade de gênero
não difere de sexo biológico
homossexual bissexual heterossexual
De acordo com Louro (2008, p. 38), “queer pode ser traduzido por
estranho, talvez ridículo, excêntrico, raro, extraordinário. Mas a expres-
são também se constitui na forma pejorativa com que são designados
homens e mulheres homossexuais”. A pessoa de maior destaque dessa
teoria é a americana Judith Butler, que, com suas obras, a partir do final
dos anos 1990, dá voz a uma parte do movimento homossexual que
busca a contestação e a oposição a qualquer tipo de normalização, so-
bretudo a “heteronormatividade compulsória da sociedade” (LOURO,
2008, p. 38). Segundo a teoria, o movimento homossexual quer contes-
tar, transgredir e questionar, não apenas ser tolerado por uma socieda-
de na qual a heterossexualidade é o padrão aceito.
O multiculturalismo 81
celas da sociedade e que encontram diversos obstáculos no proces-
so de construção da sua cidadania. É importante considerar, também,
que tudo isso impacta as mudanças observadas na configuração das
famílias na contemporaneidade. Embora ainda prevaleça o modelo
nuclear (pai, mãe e filhos), “surgem versões inéditas de conjugalidade”
(GOLDEMBERG, 2004, p. 79), com novos arranjos familiares que con-
templam as diferentes relações parentais homoafetivas.
82 Antropologia Cultural
É importante destacar que pertencer a determinada etnia é mais
do que apenas considerar a cor da pele ou outros traços físicos; diz
respeito a compartilhar uma mesma cultura e uma mesma origem na-
cional. Talvez os exemplos mais conhecidos sejam os dos judeus e dos Figura 4
ciganos, ambos historicamente segregados, perseguidos e humilhados Acampamento cigano
em diferentes momentos da história.
O multiculturalismo 83
as inúmeras dificuldades que enfrentam ao chegar a um novo territó-
rio se torna uma tarefa menos penosa quando o grupo étnico se une.
Manter, por exemplo, a língua ou alguma prática cultural relacionada à
alimentação se transforma em resistência para tentar manter sua cul-
tura original.
Será que, quando um indivíduo migra, ele tem noção de que pos-
sivelmente será discriminado pelos nativos do lugar no qual ele será
sempre um estrangeiro e que, por isso, poderá ser alvo de intolerância?
Para Costa (2016, p. 412), discriminar significa ver o
diferente como rival ou hostil, contra o qual se desenvolve um
sentimento de rejeição. Isso acontece pela criação de estereóti-
pos, ou seja, de uma visão generalizante e simplificada do que é
o diferente, definindo-o por meio de estigmas socialmente acei-
tos e compartilhados. Os estereótipos ganham então rigidez e o
diferente passa a ser evitado e rechaçado.
84 Antropologia Cultural
lência praticada pelos dois lados do conflito: governo e rebeldes, inter- Figura 5
mediados pela ação de um grupo terrorista – o chamado Estado Islâmico. Refugiados sírios
O multiculturalismo 85
lorização do multiculturalismo, o deslocamento geográfico não pode
ser um fator gerador de conflitos.
86 Antropologia Cultural
expulsão, escravização, segregação ou até mesmo genocídio – fatos já
observados ao longo da história, em diferentes lugares do mundo. A
tendência da humanidade de ver o seu oposto como problema e de
não valorizar o pluralismo é o que tem causado tantos conflitos. Tole-
rância parece ser a melhor maneira de se construir relações mais sau-
dáveis, fundamentadas no respeito e na liberdade individual e coletiva.
Para que isso se concretize, nenhuma cultura ou povo pode ser visto
como superior em relação a(o) outra(o).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A antropologia cultural traz o tema do multiculturalismo à discussão
por sua representatividade para a compreensão do valor das diferenças
e da sua importância para a superação do etnocentrismo. Esse conceito
tem um papel importante na construção de relações mais empáticas e
acolhedoras, independentemente da diversidade.
Questões relacionadas às diferenças étnico-raciais, de gênero ou de
origem e nacionalidade não podem atentar contra a dignidade huma-
na, nem suprimir o acesso a direitos básicos de indivíduos ou grupos.
Ao reproduzir práticas discriminatórias e excludentes, instituições sociais
colaboram para cristalizar preconceitos, atitudes violentas e exclusão, es-
pecialmente das minorias.
A constituição de sociedades mais justas e igualitárias passa pela con-
solidação da democracia, considerando-se que somente com liberdade
e transparência isso é possível. Garantir a equidade de oportunidades é
outro objetivo, e sem isso a desigualdade social persistirá. Não se constrói
uma democracia sem o reconhecimento da pluralidade cultural.
A valorização das diferenças, a busca pelo diálogo e a criticidade para
questionar a intolerância são o contraponto à persistência da discrimina-
ção e de tantos preconceitos que causam a exclusão de segmentos da
população que sofrem com práticas etnocêntricas e, muitas vezes, violen-
tas. A transformação social acontecerá a partir da ação de cada um e da
capacidade de todos em reconhecer, valorizar e enaltecer as diferenças.
O multiculturalismo 87
ATIVIDADES
1. Observe a figura a seguir e reflita: se a população brasileira tem essa
distribuição, o que justificaria a desigualdade baseada em diferenças
étnico-raciais?
45 BRANCOS 45 PARDOS
9 PRETOS 1 amarelo
ou indígena
Ilustração simplificada para fins pedagógicos Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílios
*Informação fornecida por autodeclaração (PNAD) 2015
88 Antropologia Cultural
tock
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utth
/S
V.A
D.
Relacione a ilustração com a frase: Para o empoderamento feminino
se concretizar, “precisamos combater os estereótipos que limitam
homens e mulheres tanto no ambiente de trabalho como fora dele”
(ENVOLVERDE, 2017).
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SILVA, A. et al. Sociologia em movimento. São Paulo: Moderna, 2018.
90 Antropologia Cultural
5
A antropologia cultural
e os símbolos
A vida em sociedade é marcada por representações, simbolis-
mos e códigos que orientam atitudes, comportamentos e rituais,
disseminando ou reforçando valores que fundamentam as intera-
ções entre indivíduos e grupos. A partir disso, é possível compreen-
der a importância da antropologia e da análise antropológica para
que se possa entender como as práticas culturais são construídas
e compartilhadas.
O objetivo deste capítulo é compreender como símbolos, rituais
e diferentes práticas culturais são construídos, analisando como
estereótipos e preconceitos são determinantes na discriminação,
na exclusão social e, sobretudo, no preconceito. Isso é importante
quando se pensa no impacto que ações resultantes da não acei-
tação da diferença causam na vida de indivíduos e grupos, em es-
pecial daqueles discriminados por serem classificados a partir de
alguma característica, física ou não, que os diferencia da maioria da
sociedade da qual fazem parte.
O preconceito decorrente de algumas dessas situações deve
ser visto como algo inaceitável, que demanda uma reflexão mais
ampla para que aumente a conscientização de que a humanidade
é uma só. A reflexão sobre isso precisa considerar que o ser huma-
no é capaz de abstrair e, portanto, criar representações sobre as
coisas. Assim, os símbolos constituem um aspecto extremamente
importante da cultura.
92 Antropologia Cultural
do anterior e geraria ainda mais inovação, trazendo novas temáticas
Desafio
e áreas do conhecimento, como a inteligência artificial, a robótica, a
Você já ouviu falar desses temas?
automação e a Internet das Coisas. Que tal começar a pesquisar e
conhecer um pouco mais o que
Mas o que mudou tanto a partir dessas inovações? De maneira nun-
isso tudo significa e como já
ca vista, tem-se agora uma combinação de diferentes formas de inte- influencia as nossas vidas?
ração e comunicação que integram, muito rapidamente, mundo físico,
digital e biológico. Isso tudo demanda que sejam revistos paradigmas e
teorias em várias áreas do conhecimento. E mais: como a antropologia
se coloca diante de tantas, tão rápidas e tão profundas mudanças? De
muitas formas. Isso porque esse novo cenário coloca em xeque a pró-
pria percepção do que é ser humano, ou melhor, questiona como as
relações sociais estão sendo afetadas e, eventualmente, transformadas
por tantas inovações.
Que tal, antes, definir melhor uma dessas imagens possíveis? Ob-
serve a foto a seguir e responda aos questionamentos.
94 Antropologia Cultural
Cada grupo ou sociedade atribuirá significados aos símbolos, que
podem ou não ter correspondência com o bem (material ou imate-
rial) ao qual fazem referência. Os símbolos podem ser classificados de
acordo com a aderência ou a afinidade ao objeto ou fenômeno que
representam. Um dos mais clássicos símbolos conhecidos é a cruz,
símbolo máximo do cristianismo e ao qual estão atrelados os valo-
res cristãos e tudo o que a eles se relaciona – por exemplo, a ideia
de sofrimento, fardo e redenção, em uma referência ao sofrimento
de Jesus Cristo. Nessa linha, é possível perceber que o significado é
absolutamente arbitrário, uma vez que não há uma correspondência
direta, clara e explícita entre o símbolo e os valores cristãos, como a
caridade, virtude muito valorizada no cristianismo.
Por que os símbolos são necessários? Eles são importantes por vá-
rios motivos, e a antropologia se debruça sobre isso desde o seu sur-
gimento como ciência. Uma das razões que explicam a relevância dos Figura 2
símbolos em uma sociedade e em uma cultura é o fato de que, por Bandeira do Brasil
meio deles, são transmitidos às novas gerações e X p o s e/Shutterstock
os conhecimentos produzidos, sistematizados
e acumulados das gerações mais velhas, garan-
tindo, assim, a manutenção de valores, crenças
e outras práticas culturais. Aquilo que o grupo
ou a sociedade considera importante acaba
por ser resguardado e reforçado, e isso ocor-
re devido à capacidade humana de elaborar
simbologias. Tradições, saberes e valores têm
96 Antropologia Cultural
e, consequentemente, um respeito ao valor que lhe é atribuído. Isso só
ocorre quando há o entendimento do sentido dos valores simbólicos en-
tre todos os indivíduos que pertencem a uma determinada cultura, bem
como aos valores que norteiam a humanidade como um todo.
98 Antropologia Cultural
Há ritos de transição em religiões,
como é o caso do candomblé, nos quais
há toda uma dinâmica para a inserção de
membros ou ascensão na hierarquia.
VGstockstudio/Shutterstock
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Z. Tempos líquidos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
GUIZZO, J. Introdução à sociologia. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2009.
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Atlas, 2011.
SCHWAB, K. A quarta revolução industrial. São Paulo: Edipro, 2016.
AS GRANDES NAVEGAÇÕES
(séculos XV-XVI)
Oceano Europa
América Atlântico
do
Açores
Norte (1431) Espanha Veneza
Portugal Lisboa Ásia
Sevilha Pequim
Madeira Palos
(1419) Cipango (Japão)
Ceuta (1415) (1542)
Guanaani
(1492) Canárias Cabo Bojador (1434) Cantão Oceano
(1402) Macau Pacífico
Cabo Verde Goa (1516) Filipinas
(1456)
África Calicute (1498)
América Central Guiné (1462) Cechim Mort
Malaca (1511) de M e de Fern
agalh ã
ães – o
Congo Melinda 1521
Ba
(1482 - 1485)
rto
América Porto
Oceania
lom
do Seguro
eu
Branca
Preta
Amarela
Parda
Indígena
Sem declaração
É claro que não foi assim que tudo aconteceu, mas o fato de um
Figura 4
dia ter sido pensada e implementada uma política desse tipo mostra
Nelson Mandela, ex-presi-
dente da África do Sul o quão difícil era a relação entre a elite branca e o res-
tante da população, em sua maioria, pobre, negra e de-
South Africa The Good News/Wikimedia Commons
Além disso, por aqui, as forças da lei, aquelas que detêm o poder
constitucional de zelar pela segurança dos cidadãos, nem sempre o
exerceram em detrimento da manutenção do apoio a forças histori-
camente opressoras e antidemocráticas. E o alvo tem sido a mesma
parcela da população que sempre foi discriminada e excluída.
O Brasil não fica impune a tudo isso, por aqui as teorias racistas
repercutem fortemente e, ao lado do passado colonial escravista, ge-
ram uma desigualdade que persiste e se alimenta do preconceito que
se consolidou contra a população afrodescendente particularmente.
Como se viu anteriormente na fala de Schwarcz, uma das formas en-
contradas para tentar sublimar, ocultar e até mesmo negar o racismo
no país foi acolher a teoria da democracia racial de Freyre ao idealizar a
mestiçagem. Com Freyre, o que se vê é uma tentativa de construção de
uma ideia de Brasil que ameniza o peso do legado do passado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A antropologia cultural ao longo da sua história, em diversos lugares do
mundo, esteve à frente da discussão sobre a formação da identidade de um
povo, de uma nação. No Brasil, não foi diferente. O fato de ter sido um país
estratégico para o projeto colonial de Portugal no contexto da expansão ul-
tramarina por mais de 300 anos, quase o mesmo tempo que durou a escra-
vidão por aqui, acaba pautando temas para a pesquisa acadêmica na área.
Nesse contexto, o colonialismo e todos os seus desdobramentos – falta de
autonomia, liberdade e muita violência – irão marcar para sempre o modo de
ser e de estar no mundo do povo brasileiro.
Cada um a seu modo, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Darcy
Ribeiro e tantos outros pensadores brasileiros tentaram definir o caráter na-
cional, em especial o papel desempenhado pela prevalência da mão de obra
negra na atividade econômica colonial e suas consequências para o futuro
do país. Ainda que não concordem em relação a muitos pontos, convergem
na percepção da necessidade de se pensar a mistura de raças que aqui se
verifica desde os primórdios da ocupação portuguesa do território brasilei-
ro. Analisando as visões que imperavam sobre a mestiçagem, dialogam com
diferentes interlocutores para tentar compreender em que medida esse foi
um traço decisivo para a constituição da sociedade e da identidade do Brasil.
ATIVIDADES
1. Gilberto Freyre foi um dos pioneiros a pensar sobre a formação do
povo brasileiro e a cultura brasileira, focando a ideia da miscigenação
de povos que formou o Brasil. Conforme o autor, esse é um aspecto
original da identidade nacional. Explique por que a visão de Freyre é
polêmica e deve ser revisitada.
REFERÊNCIAS
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moderno. São Paulo: Saraiva, 2004.
VENTURA, R. Casa-grande & senzala. São Paulo: Publifolha, 2000. (Coleção Folha explica)
seu objeto de estudo na antropologia, mais do que em qualquer ou- MASI, D. de. Rio de Janeiro:
tra ciência, talvez seja o melhor exemplo da forma como a relação Sextante, 2012.
O ser humano é o único animal que cozinha, bem como o único que
pensa sobre comer. Por isso, ele tem uma maior segurança de que, se
souber como fazer, nunca faltará alimento, que a natureza é rica e que
proverá os meios necessários para que a fome não inviabilize a exis-
tência da espécie no planeta. Entretanto, sabe-se hoje que não é bem
assim. Sua viabilidade biológica está muito condicionada por sua capa-
No livro Mundo susten-
cidade de refletir sobre seu papel social, histórico, político, econômico
tável: abrindo espaço na
e cultural na maneira como busca a subsistência. Isso tudo remete à mídia para um planeta
em transformação, o
dimensão cultural e simbólica do trabalho humano, visto aqui como
jornalista André Trigueiro
toda e qualquer ação humana no sentido de prover sua sobrevivência. discute temas relaciona-
dos ao meio ambiente
Mais do que nunca, quando se analisa a construção social de cate- com uma reflexão sobre
gorias como espaço e tempo, a antropologia dá enorme contribuição consumo e perspectivas
para o futuro, no que diz
para a discussão do papel da cultura e seu impacto sobre a natureza, respeito aos impactos
desde o momento em que a humanidade se tornou sedentária, passan- da ação humana sobre a
natureza.
do pelos diferentes modos de produção e chegando à modernidade, à
TRIGUEIRO, A. São Paulo: Globo,
pós-modernidade e à sociedade do conhecimento. 2005.
A cultura, vista em sua dupla concepção, como algo que fala sobre
um indivíduo ou grupo – isto é, seus valores, costumes, suas crenças,
ideias – e sobre o conjunto de significados que as práticas e sistemas
simbólicos assumem, é o conceito que permite esse olhar sobre a ação
humana no planeta.
Assim, cada lugar pode ser um novo lugar e cada indivíduo ou grupo
pode se adaptar a uma nova condição, a um novo espaço. Contudo,
nem por isso ser inexoravelmente afetado por esse processo de ho-
mogeneização ou padronização impulsionado pela globalização; local e
global se fundem e se confundem. Tradição e mudança se alternam, se
mesclam e distinguem sociedades modernas de tradicionais, sempre
lembrando que as características de cada sociedade em termos de or-
res integram as ciências naturais e as ciências humanas em torno de Direção: Wenders, W.; Salgado, J. R.
Brasil: Imovision, 2015.
objetos de estudo comuns.
ATIVIDADES
1. Leia o fragmento de texto a seguir e faça o que se pede.
Qual é a civilização que queremos? A que reforça as expectativas de
que para ser feliz é preciso um dia consumir o mesmo que um nor-
te-americano médio (ainda que sabendo de antemão que não há
planeta suficiente para isso)? Ou podemos almejar outro modelo ci-
vilizatório, em que todos tenham direito a uma digna e plena, com a
satisfação de necessidades básicas – alimentação, saúde, moradia,
educação, lazer etc. – e a chance de desenvolver nossas potenciali-
dades? Nessa civilização, os meios de produção seriam capazes de
satisfazer necessidades demarcadas por uma realidade inexorável:
ou a economia se ajusta aos limites do planeta, ou não haverá pla-
neta para suportar a economia. (TRIGUEIRO, 2012, p. 305)
Gabarito 159
oposição entre classes. Nas imagens, é possível notar diferenças entre
os dois rapazes por meio de suas vestimentas: um está com roupas
rasgadas e sapatos arrebentados, enquanto o outro se apresenta com
terno, gravata e um par de sapatos que combinam com o restante da
roupa. É possível perceber diferenças também em relação ao cuidado
pessoal: o da esquerda está com a barba por fazer e cabelos sem
corte, e o da direita está bem barbeado e penteado. Finalmente, outro
indício de que não pertencem à mesma classe social é a presença
da mala cheia de dinheiro na mão de um deles, enquanto o outro,
conforme a imagem sugere, parece ser uma pessoa em situação de
rua. Isso mostra que há um grande abismo social entre os dois, o que
se reflete em suas aparências.
3 A experiência da alteridade
1. O conceito de relativismo cultural nasceu de uma visão crítica no seio
da própria sociedade ocidental, a que mais dominou e explorou outras
sociedades, em sua maioria, consideradas inferiores. Ele se contrapõe
ao etnocentrismo, o qual se fundamenta na ideia de que apenas a
própria sociedade produtora de uma cultura pode avaliar e julgar suas
práticas. Essa é a atitude que tem como base o relativismo cultural, que
4 O multiculturalismo
1. Quando se observa a ilustração, é possível perceber que a população
não branca é maioria no Brasil. Entretanto, constitui-se como minoria
porque não tem acesso a direitos básicos aos quais todo cidadão
do país deveria ter. Isso se deve ao fato de não ter havido nenhuma
preocupação com o futuro dos ex-escravos após a abolição da
escravidão, em 1888. Outro ponto que deve ser considerado é o
fato de que aqui, ao contrário do que acontece em outros países, o
racismo é principalmente velado, o que dificulta o combate a esse tipo
de preconceito. Diferentemente do praticado em outras partes do
planeta, o racismo no Brasil é mascarado.
Gabarito 161
3. A xenofobia pode ser compreendida como a rejeição ao “outro” e a
tudo o que ele significa. É a negação da sua identidade, construída e
reforçada no contexto do convívio social. Trata-se de entender que
todo indivíduo é um sujeito social e historicamente construído.
ANTROPOLOGIA CULTURAL
nossas diferenças de maneira respeitosa, harmonio-
sa e livre de preconceitos. Todavia, o que temos visto tem
sido exatamente o oposto: desrespeito, intolerância, conflitos e muito
sofrimento decorrente de todo tipo de preconceito. Esse é um quadro
preocupante especialmente quando se observa o enorme sofrimento
daqueles que por alguma razão são vistos como “diferentes”. Nesse sen-
tido é que se deve avaliar a enorme importância da antropologia cultural
como ciência que tem o próprio ser humano em sua dimensão cultural
como objeto de estudo.
A grande contribuição da antropologia é propor a discussão da alteri-
dade, isto é, a percepção do outro. E quem é o outro? Aquele que por
alguma razão é diferente de nós e que, por isso mesmo, nos engrandece,
nos ajuda a construir nossa humanidade e nos permite relativizar tudo o
que está fora da nossa cultura.
Esta obra tem como objetivo discutir temáticas relacionadas à cultura,
considerando diferentes eixos organizadores, sempre com foco no pa-
pel que esse conceito desempenha para a análise antropológica.
SOLANGE M. S. DEMETERCO
Código Logístico Fundação Biblioteca Nacional
ISBN 978-85-387-6599-8