Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
2013
Conselho editorial:
Nilton Silva dos Santos (PPGA-UFF), Lígia Maria de Souza Dabul (PPGAS-UFF),
Kadma Marques Rodrigues (UECE) e Caleb Faria Alves (IFCH-UFRGS)
Produção editorial:
Livraria e Edições Folha Seca
37, rua do Ouvidor, 37
Centro – 20010-150 – Rio de Janeiro, RJ
tel.: (21) 2507-7175
folhaseca@livrariafolhaseca.com.br
Revisão: Frederico Hartje e Fernanda Mello
Apoio técnico: Ana Paula Reis
Projeto gráfico e composição: Leo Boechat
Capa: Patrícia Reinheimer sobre gravura de Olly Reinheimer, s.d.
Inclui bibliograia
ISBN 978-85-87199-21-8
CDD 306
Sumário
Introdução 7
Alessandra Rinaldi, Ana Paula Alves Ribeiro, Carly Machado e Patrícia Reinheimer
7
8 | Reflexões sobre arte e cultura material
que Nathalie Heinich trabalhou nos livros Le Triple jeu de l’art contempo-
rain (1993) e Pour en inir avec la querelle de l’art contemporain (2000).
Uma série de valores e antivalores que incluem o respeito e o des-
respeito, a adesão e a crítica constituem os critérios de participação no
jogo da arte contemporânea: repetição e inovação, referência aos mes-
tres e demarcação em relação ao passado, unicidade da obra e multipli-
cação em série, personalidade e recusa da expressão, criação e imitação,
inspiração e constrangimento, bom gosto e vulgaridade, materialidade e
imaterialidade dos objetos, perenidade e o caráter efêmero da obra, di-
ferenciação entre obra de arte e objetos do mundo ordinário ou redução
das fronteiras entre uns e outros, convenção do quadro de cavalete ou re-
cusa dos suportes convencionais, interioridade e empréstimo, sinceridade
e cinismo, inocência e oportunismo, esteticismo e trivialidade, emoção
e neutralização dos afetos, integridade mental e alienação, seriedade e
derrisão, iguração e abstração, respeito e desconstrução dos cânones da
representação – tornando o jogo da arte contemporânea um terreno de
escolhas para observar a articulação entre fronteiras cognitivas para além
de suas fronteiras tradicionais e o registro de valores, mais ou menos au-
tônomos e heterônomos.
A arte contemporânea forma assim um mundo altamente especiali-
zado que remete a uma tradição especíica acessível apenas a um número
pequeno de especialistas, bem longe dos especialistas éticos e estéticos do
grande público e das exigências de universalidade que estruturam o senso
comum da arte. É em certa medida com base nessa especialização e nas
prerrogativas atribuídas aos produtores artísticos no século XX que a au-
tora desenvolve uma investigação sobre a noção de elite.
O debate acerca dessa noção se inaugura com o livro L’élite artis-
te (2005). Ali ela trata de questões como hierarquia e igualdade, elite e
democracia. Sua intenção é fazer sociologia a partir da arte, e não me-
ramente tomar a arte como objeto sociológico. Assim, a autora classiica
esse trabalho como sociologia dos valores e ciência política, isto é, toma
o fenômeno artístico como um campo de investigação de forma a contri-
buir, conceitual ou metodologicamente, para essas disciplinas.
Heinich relaciona o tema da luta pela “liberdade” do artista ao período
revolucionário francês. As regras legislativas requeriam que as obras fossem
O fenômeno artístico como uma sociológica | 19
Notas
1
Heinich, 1993. Paris, Minuit, coll. Paradoxe.
2
Rockhill, 2010.
3
Heinich, 1998.
4
Heinich, 1991, p. 24.
5
Elias, 1980.
6
Heinich, 2005, p. 258.
7
Heinich, 2005.
Referências bibliográficas
__________. Le triple jeu de l’art contemporain. Sociologie des arts plastiques. Paris:
Éditions de Minuit, 1996.
__________. La faute, l’erreur, l’échec: les formes du ratage artistique In: Sociolo-
gie de l’art, n. 7. Paris, 1994.
SIMMEL, Georg. 1971. Freedom and the individual In: On individuality and
social forms. Donald N. Levine (ed.) Chicago University Press, 1971.
Da visibilidade: excelência e singularidade
em regime midiático
(em versão condensada)
O capital de visibilidade
* (N.T.) O termo francês vedette é utilizado pelo autor no texto original. Optou-se aqui por
traduzi-lo como “estrela”.
Excelência e singularidade em regime midiático | 25
celebridade, no qual os nomes contavam antes de tudo, mas com este novo
mundo no qual os rostos importam pelo menos tanto ou até mais que os
nomes – ainda que estes últimos permaneçam indispensáveis.
Se é importante insistir, por meio da noção de “visibilidade”, na re-
produtibilidade das imagens, é que estas últimas, porque reproduzidas,
suscitam uma expectativa de colocação em presença diante do “aqui e
agora do original”, para retomar a deinição de “autenticidade” segundo
Benjamin. A dimensão mediatizada da reprodução técnica cria uma dis-
tância fundamental entre o referente e o signo, o modelo e a imagem, o
real e a representação – de onde nasce o desejo de ser colocado na presen-
ça do original, uma vez que não se conhece senão a cópia. Essa expecta-
tiva engendra um investimento emocional considerável, o mesmo que, no
tempo em que a autenticidade ainda não tinha se tornado “o substituto
do valor cultural”, se aplicava às aparições e, na ausência delas, às relíquias
– estes substitutos da presença do santo.
Chamfort deinia a celebridade como “a vantagem de ser conheci-
do por aqueles que não te conhecem”. Eis o que nos leva a duas noções
tão fundamentais quanto indissociáveis: por um lado, o conhecimento ou,
antes, o “reconhecimento” pelo qual se associa um nome a um rosto e,
por outro, a dissimetria ou, dito de outro modo, a desigualdade numérica
entre “aqueles que reconhecem” e os “reconhecidos”. Com a visibilidade, a
imagem multiplicada confere grandiosidade e clama ao reconhecimento-
-identiicação, o qual possibilita, por sua vez, quando a situação o permite,
o reconhecimento-conirmação e o reconhecimento-deferência, ou mes-
mo o reconhecimento gratidão, quando o ídolo em pessoa concede o dom
de sua presença. O próprio das estrelas em regime mediático é a ligação
estreita entre todos os sentidos da palavra “reconhecimento”: cognitivo,
interacional, hierárquico, emocional. Basta ser “reconhecido” para ser tri-
plamente “reconhecido”; a identiicação torna-se assim conirmação, de-
ferência e gratidão.
O segundo grande critério da visibilidade, após a difusão em larga
escala da imagem do sujeito, é a dissimetria: dissimetria entre aquele que
é visto e aqueles que veem, entre aquele que é identiicado e aqueles que
identiicam, entre aquele que é reconhecido e aqueles que reconhecem;
aquele cuja presença, para além das imagens, é tida como uma graça por
26 | Reflexões sobre arte e cultura material
O culto das celebridades não seria uma nova forma de religião ou, antes,
um “substituto da religião”, segundo uma fórmula já bastante batida, e,
portanto, um “culto”, e não somente uma cultura? Para conferir todo o
sentido sociológico à noção de “religião”, é preciso, em primeiro lugar,
considerar que a religião não é uma matriz original, mas uma coniguração
28 | Reflexões sobre arte e cultura material
isso; no terceiro caso, ela não é justiicada por nenhum ato exterior e ante-
rior à visibilização, e não tem outra causa senão ela própria (por exemplo, os
apresentadores de televisão), a estrela é conhecida essencialmente “por sua
notoriedade”, segundo a famosa fórmula de Daniel Boorstin. A visibilidade
é portanto um valor que se pode chamar de “endógeno” ou de “autoendóge-
no”: são os meios técnicos de visibilização que, simultaneamente, fabricam
e mantêm o capital de visibilidade, por meio de um movimento circular ou,
mais exatamente, espiral.
Entre valor agregado a outro valor e valor endógeno, autoproduzido,
a visibilidade das diferentes categorias de celebridades se desloca de um
polo a outro, sobre um eixo evidentemente hierarquizado que vai do mais
ao menos “justiicado”, segundo as normas da moral ordinária – ou, em
outros termos, do mais ao menos legítimo, ao mesmo tempo que do re-
curso mais antigo ao mais atual. Desse modo, a televisão e as novas mídias
produzem “celebridades instântaneas” que só se beneiciam de uma visibi-
lidade endógena, na ausência de apoio em valores mais sólidos.
Veriica-se antes de tudo a visibilidade como valor agregado ao nas-
cimento, com os soberanos e membros das famílias reais; a visibilidade
como valor agregado à performance, com os políticos e os esportistas; a
visibilidade como valor agregado ao talento, com os sábios e criadores; a
visibilidade como misto de valor agregado ao talento e de valor endógeno,
com os cantores e atores, bem como as modelos; a visibilidade como misto
de valor agregado ao carisma e de valor endógeno, com as personalidades
da televisão, proissionais ou amadores; e, por im, a visibilidade como
valor acidental, com o herói ou anti-herói das manchetes.
Há uma hierarquia não dita entre celebridades, cujo princípio é a
duração. Pode-se até esquematizar um quadro com dupla entrada para
a “hierarquia da visibilidade”, cruzando, de um lado, o eixo espacial – do
local ao internacional, passando pelo regional e pelo nacional – e, do outro,
o eixo temporal – de “um dia” a “sempre”, passando por “uma semana”,
“um ano”, “uma geração” –, já que o inconveniente da glória, para o novo
mundo dos “people”, reside, antes de tudo, em seu caráter efêmero, que faz
com que o interessado experimente espetaculares variações de grandeza
das quais corre o risco de ter diiculdades em se refazer. É importante
30 | Reflexões sobre arte e cultura material
Psicofisiologia da visibilidade
Axiologia da visibilidade
Notas
1
O esboço dessa trajetória de produção cientíica foi construído principalmente pelo exame
de duas fontes: o currículo Lattes do pesquisador – com prioridade para publicações de arti-
gos em periódicos, livros e capítulos – e o memorial requerido para o concurso de professor
titular de Antropologia Social na UFRJ, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social (PPGAS) do Museu Nacional, gentilmente cedido pelo próprio autor.
2
O autor deine construção social da pessoa: “Essa locução nunca designou um segmento
estabilizado da disciplina antropológica, embora evoque claramente a força seminal do
artigo de Marcel Mauss sobre a ‘noção de pessoa’, os desenvolvimentos da antropologia
social inglesa sobre a distinção entre ‘pessoa’ e ‘indivíduo’, e alguns desenvolvimentos da
escola de ‘cultura e personalidade’ e do interacionismo simbólico (a propósito do self).”
(Duarte, 2012, memorial, p. 7).
3
Dumont, 1997.
4
Duarte; Leal, 1998.
5
Duarte, 2000.
6
Duarte; Russo; Venâncio, 2005, p. 7.
7
Duarte; Russo; Venâncio, 2005, p. 8.
8
Duarte, 2012, memorial, p. 28.
9
Cf. Duarte; Heilborn; Peixoto; Barros, 2005; Duarte; Heilborn; Peixoto; Barros, 2006.
10
Duarte, 2012, memorial, p. 22.
11
Religião & Sociedade, v. 30, n. 2, 2010.
12
Duarte, 1983a.
13
Duarte; Aranha Filho, 2003.
14
Duarte, 2006.
15
Duarte, 2012, memorial, p. 24.
16
Duarte, 2012, memorial, p. 26.
17
Duarte, 2004.
18
Duarte, 2012, memorial, p. 25.
19
Duarte, 2011b. Uma primeira versão resumida dessa mesma relexão acerca das “artes
ambientais” foi publicada, em português, em Ciências Humanas e Sociais em Revista (Du-
arte, 2009) e, em sua versão integral em inglês, em Vibrant (Duarte, 2011b).
Referências bibliográficas
__________. Damascus in Dahlem: art and nature in Burle Marx tropical landscape
design. Vibrant (Florianópolis), v. 8, p. 1, 2011b.
“Se tens o teu jardim ao lado da tua biblioteca, o que mais podes
querer da vida” (Cícero)
Pode-se objetar que já não damos tanta atenção aos jardins quanto os
ingleses do século XVIII e que a questão do meio ambiente não tem nada
de sentimental. Mas a verdade é que, mesmo em nossas mais pragmáticas
lutas por um mundo ambiente sustentável e protegido, pulsa a sensibili-
dade afetiva da percepção de uma paisagem envolvente.
A defesa da mata atlântica ou da Grande Barreira de Corais não é
apenas um gesto de autopreservação economicista; não só ela se opõe fun-
damentalmente a fortes interesses comerciais imediatistas, como contém
um cultivado afeto por essas preciosas paisagens de um mundo natural
em que vemos espelhados nossos valores mais íntimos de singularidade,
diversidade, beleza, liberdade e autonomia. Uma paisagem moral!
Notas
1
O tema, além de me interessar de perto, serviu de homenagem a minha companheira
de mesa no “Seminário Manifestações Artísticas e Ciências Sociais: relexões sobre arte
e cultura material – UFRRJ”, a socióloga Nathalie Heinich, uma das mais importantes
especialistas da arte contemporânea, discípula de Luc Boltanski e grande divulgadora do
pensamento de Norbert Elias – com quem compartilhei em Paris, anos atrás, a observa-
ção admirada e a relexão sensível sobre os jardins e as paisagens de sua terra.
2
Heinich, 2001, p. 20; citando Elias, 2001, pp. 273-4.
3
Ver, sobre a paisagem na cultura ocidental, e.g., Simmel, 1988 [1912]; Cosgrove, 1984;
Cauquelin, 1989; Conan, 1991; Descola, 1996; Laird, 1993; Hirsch & O’Hanlon, 1995,
e McCall, 1997.
4
Elias, 2001.
5
Cf. Elias, 1990.
6
Boltanski, 1993.
7
“O espaço público supõe a constituição de um observador desprendido, desengajado,
sem compromissos prévios e, sobretudo, sem vínculos locais, capaz de pairar sobre as sin-
gularidades da sociedade, da mesma maneira com que o geógrafo, o cartógrafo ou o pintor
inspirados pelo ideal cartográico pairam sobre as singularidades da paisagem”, Boltanski,
1993. p. 51 (tradução do autor).
8
Boltanski, 1993, p. 44.
9
Cf. Shapin, 2003.
10
“Nature herself is sublimely eloquent. he stars as they sparkle in irmament ill us with de-
light and ecstasy, and yet they all move in orbit marked out with mathematical precision.”
(Humboldt, 1814). Ver sobre Humboldt e paisagem, Recht, 2006 e Ricotta, 2003.
Jardinagem como projeto no Ocidente | 57
11
Seguindo um uso mais explícito da expressão por Heidegger em seu O ser e o tempo.
“In the Ideas II, Husserl introduces the Umwelt as the realm populated by all kinds of things
that present themselves to us in our everyday experience not just in terms of their perceptible
properties, but also in terms of their values and uses to us. It is the world as it shows itself not in
the naturalistic attitude (for instance, that of modern natural science) but in what he calls the
‘personalistic’ attitude in which we actually conduct our daily lives.” (Nenon, 2012).
12
Cf. Buttlar, 1993.
13
Discípulo de Jean-Charles Alphand, o paisagista associado ao Barão Haussmann na
renovação urbana de Paris e de Bordéus.
14
Lembremo-nos de que o mesmo Rousseau produziu um manual de botânica amadora,
a partir de suas herborizações na terra genebrina.
15
Cf. DeJean, 2012.
16
Blacker, 2000. O primeiro serviço de venda, aluguel e manutenção de plantas em vasos
foi instalado em Londres em 1816; o primeiro lorista comercial foi Jules Lachaume,
instalado em Paris, na Chaussée d’Antin, em 1840.
17
Não há como explorar aqui a concomitante transposição também de alguns animais
domésticos, como cães, gatos e passarinhos em gaiolas, para o interior das casas, com-
pondo desde então uma dimensão fundamental da ambiência das residências modernas.
18
A proissionalização impõe hoje uma distinção entre a “decoração de interiores” e o “de-
sign de interiores” (interiorismo, em espanhol), associado à arquitetura e às variantes mais
altas da formalização estetizante. No Brasil contemporâneo, repetem-se com grande su-
cesso em todas as capitais, copiando uma tendência internacional, exposições integradas,
de caráter espetacular (as “Casas Cor”, por exemplo), em que os interesses publicitários e
as paixões estéticas se dão o braço.
19
Os famosos produtos para jardins em ferro fundido do Val-d’Osne se espalharam pelo
mundo, com suas crateras, seus chafarizes e suas ‘fontaines Wallace’ – de que o Rio de
Janeiro tem uma importante coleção, em parte pela inluência de Glaziou (cf. Robert-
-Dehault et al., 2000).
20
Outro exemplo é o da criação da Floresta de Fontainebleau, em 1861, como “reser-
va artística”. Para tanto havia sido fundamental a publicação, por Claude Denecourt, em
1839, de um guia público de visitação e passeio pelas trilhas que ele próprio lá implantava
progressivamente (cf. Schama, 1995 e Pitte, 1989). No Brasil, a ocorrência mais típica é a
da Floresta da Tijuca carioca, recuperada a partir de 1861 e transformada em paisagem e
passeio público pela ação do Barão d’Escragnolle, tornando-se inclusive o cenário do ro-
mance de José de Alencar Sonhos de ouro e de muita produção pictórica oitocentista, como
a das telas de Nicholas-Antoine Taunay. Nessa mesma época, em 1854, horeau publicou
Walden, or Life in the Woods, o relato de uma íntima relação com a natureza e a paisagem
natural produzida como um experimento vital, em uma propriedade de R. W. Emerson.
21
Toda uma teoria do “passeio”, da promenade, da viagem, do deslocamento entre espaços
ou tempos vivenciais é contemporânea da airmação da perspectiva paisagística. Esteve
presente em pioneiros como J.-J. Rousseau ou D. Diderot (2005 [1747]), mas sobretudo
em Karl G. Schele, com sua famosa Arte de passear (2001 [1802]). O tema emergiu cons-
tantemente na literatura, desde a Sentimental Journey de Sterne [1768] até a Recherche de
58 | Reflexões sobre arte e cultura material
Referências bibliográficas
DESCOLA, Philippe. Landscape and cosmos. In: In the society of nature: a native
ecology in Amazonia. DESCOLA, Phillipe. Cambridge: Cambridge University
Press, 1996.
__________. O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1990.
INGOLD, Tim. Lines. A brief history. Londres e Nova York: Routledge, 2007.
60 | Reflexões sobre arte e cultura material
NENON, homas J.. Umwelt in Husserl and Heidegger. Proceedings of the 43rd
Annual Meeting of the Husserl Circle, http://www.husserlcircle.org/HC%20
Preceedings%20Boston%202012.pdf, 2012.
RECHT, Roland. Jardin avec paysage. In: RECHT, Roland. La lettre de Humboldt:
du jardin paysager au daguerréotype. Paris: Christian Bourgeois Éd., 2006.
SCHELLE, Karl Gottlob. A arte de passear. São Paulo: Martins Fontes, 2001
[1802].
O estado da arte
no Brasil, lançado pela editora SENAC. Por sua vez, o Seminário de So-
ciologia da Cultura e da Imagem, organizado por Glaucia Villas Bôas na
UFRJ, desde 2004, tem sido pioneiro em procurar convidar pesquisadores
na área para manter contato no encontro que tem periodicidade anual.
Finalmente, também o seminário Manifestações Artísticas e Ciências So-
ciais: relexões sobre arte e cultura material, ora organizado pelo Núcleo de
Pesquisa em Cultura, Identidades e Subjetividades (CULTIS), marca a
consolidação da participação de pesquisadores da UFRRJ nesse debate.
Em múltiplos espaços, a rede de pesquisadores ganha corpo e visibilidade.
É preciso lembrar o esforço de internacionalização do grupo, em
particular o encaminhamento de um dossiê, em torno da sociologia da
arte no Brasil, à revista Sociologie de L’art, reunindo participantes do
grupo; as participações junto ao Research Committee of Art Sociology nas
seções da International Sociological Association; a publicação de um livro
organizado por Glaucia Villas Bôas e Alain Quemin em cooperação bi-
lateral com inanciamento Saint Hilaire/CAPES (no prelo); e a presença
de pesquisadores brasileiros no grupo de pesquisa OPuS, coordenado por
Bruno Péquignot.
Do ponto de vista da Antropologia da Arte, o crescimento da área é
também expressivo. Desde 2006, o GT Arte e Antropologia, criado por
Lígia Dabul e Caleb Faria Alves, na Reunião Brasileira de Antropologia,
tem tido papel fundamental na agremiação de pesquisadores para debates
de suas pesquisas e formação de redes em âmbito nacional. O Grupo de
Trabalho da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) conta também
com número crescente de participantes. Em 2006, o grupo foi inaugurado
com 16 comunicações. Em 2008, embora o GT não tenha sido editado,
duas mesas redondas5 se debruçaram sobre temas correlatos. Em 2009,
foram 19 trabalhos e um painel, e, em 2012, o número saltou para um total
de 25 trabalhos e seis painéis.
Em todos os espaços institucionais a participação da Sociologia e da
Antropologia da Arte vem crescendo frente a temas considerados clás-
sicos nas Ciências Sociais. Em 2012, na reunião da Associação Nacional
de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), as comunicações
sobre o tema, antes esparsamente apresentadas nos GTs de abordagens
correlatas, foram reunidas no Fórum O mundo das artes, práticas sociais e
68 | Reflexões sobre arte e cultura material
Notas
1
Ver, p. ex., Péquignot, 2009.
2
Bueno, 2012, p. 12.
3
Ver, p. ex., Miceli, 1996; Bueno, 1999; Dabul, 2001; e Simioni, 2002.
4
A edição do Grupo de Trabalho de Sociologia da Arte foi coordenada em 2011 por
Maria Lucia Bueno e Sabrina Parracho Sant’Anna.
5
Antropologia & Estética II: A Arte como Conhecimento Antropológico e Arte e Patrimônio
Cultural Indígenas.
6
O trabalho de Mathias e Bispo consistiu no levantamento de todos os trabalhos apre-
sentados nos dois últimos congressos da Sociedade Brasileira de Sociologia nas suas se-
guintes categorias: o grupo “Sociólogos do futuro”, que agrega a apresentação de pôsteres
de pesquisadores da graduação e mestrado; os “Grupos de Trabalho”, que contam com a
apresentação oral de mestres, doutores e pós-doutores, com variações dos critérios entre
um congresso e outro; e, por im, as “Mesas Redondas”, cuja proposta é ter o tema discu-
tido por convidados.
7
Mathias; Bispo, 2012.
8
Péquignot, 2009, p. 11.
9
Zolberg, 2010.
10
Cf. Crane, in Bueno, 2011.
11
Morató, 2009.
Referências bibliográficas
BASTIDE, Roger. Problemas da sociologia da arte. Tempo social. São Paulo, 2006.
BUENO, Maria Lucia. Sociologia das Artes Visuais no Brasil. São Paulo: Senac, 2012.
DURAND, José Carlos. Arte, privilégio e distinção. São Paulo: Perspectiva, 1989.
ZOLBERG, Vera. Incerteza estética como novo cânone. Ciências Humanas e So-
ciais em Revista. Seropédica: EDURR, 2009.
__________. Para uma Sociologia das Artes. São Paulo: Senac, 2006.
José da Silva Costa, Lygia Clark, Lygia Pape e Vicent Ibberson; a segun-
da teve apresentação de Mario Pedrosa. O grupo era assim apadrinhado
por dois dos críticos de maior destaque na imprensa carioca à época. Aos
fundadores do grupo se uniram Abraham Palatnik, César Oiticica, Franz
Weissmann, Hélio Oiticica, Rubem Ludolf, Elisa Martins da Silveira e
Emil Baruch. A historiograia,19 fundada nas pelejas críticas dos integran-
tes do concretismo, sublinha na constituição do Grupo Frente a inexistên-
cia de determinação clara em direção ao concretismo, ressaltando que nele
havia tendências diversas, inclusive o primitivismo, característica que em
muito o distinguia do Grupo Ruptura, radicado em São Paulo e seguidor
dos preceitos da arte concreta sob a orientação de Waldemar Cordeiro.
Os argumentos não eram muito convincentes: dizia-se que Ivan Serpa era
contrário aos ismos e Mario Pedrosa evocava a liberdade de criação, conse-
quentemente, o grupo não tinha projeto renovador. Contudo essas ideias
passaram com força para a fortuna crítica do Ateliê de Ivan Serpa e do
Grupo Frente, repetindo-se em verbetes de enciclopédias, textos e catá-
logos de exposições, retrospectivas, quando não em pesquisas acadêmicas.
Na realidade, os artistas que estudaram com Ivan Serpa e aprenderam os
ensinamentos libertários de Mario Pedrosa, por meio de uma convivência
muito próxima com ambos,20 foram forjando uma identidade com base
nos valores estéticos que lhes eram incutidos, nas exposições coletivas, no
favorecimento dos críticos e incentivo à experimentação. Um trecho da
entrevista concedida por Aluisio Carvão é esclarecedor do modo como os
artistas foram constituindo sua identidade:
Notas
1
Carvão, Aluísio. In: Cocchiarale, Fernando; Geiger, Anna Bela (orgs.). Abstracionismo
geométrico e informal: a vanguarda brasileira nos anos 50. Rio de Janeiro: Funarte, 1987,
p. 141.
2
A respeito da Teoria do Não objeto, ver de Martins, Sergio Bruno, Phenomenogical
Openness: Historicist Closure: Revisiting the heory of the Non-Object, hird Text,
vol. 26, Issue 1, 2012, pp. 79-90.
3
Entre os concretistas, Almir Mavignier, Ivan Serpa, Lygia Pape, César e Hélio Oiti-
cica eram cariocas. No Rio de Janeiro moravam: Aluísio Carvão, paraense; Lygia Clark
e Amílcar de Castro, mineiros; Rubem Rudolf, alagoano; Eric Baruch, holandês; além
de Abraham Palatnik, vindo de Israel, e Franz Weissman, da Áustria. Luiz Sacilotto e
Geraldo de Barros eram paulistas e moravam em São Paulo, juntamente com Willis de
Castro, mineiro; Samson Flexor, romeno; Kazmer Fejer, húngaro; Leopold Harr, polonês;
e Waldemar Cordeiro, italiano que optou pela nacionalidade brasileira.
4
Projeto Construtivo na Arte: 1950-1962. Coordenadora Aracy Amaral. Rio de Janeiro:
MAM; São Paulo: Pinacoteca do Estado, 1977, pp. 136-137.
5
Os três poetas paulistas fundaram, em 1952, um grupo intitulado Noigandres no qual
disseminaram suas novas ideias e experimentos por meio de uma revista lançada com o
mesmo nome. A revista Noigandres n. 4 traz importante contribuição para o movimento
da Poesia Concreta, inclusive com a publicação do “Plano-Piloto para a Poesia Concreta”,
manifesto que apresenta as principais diretrizes e propostas do movimento.
6
Ver Belluzo, Ana Maria de Moraes (org.). Modernidade: vanguardas artísticas na América
Latina. São Paulo: Unesp, 1990, p. 118; e Cordeiro, Waldemar. “Teoria e prática do con-
cretismo carioca”. In: Cocchiarale, Fernando; Geiger, Anna Bela (orgs.), 1987, pp. 225-227.
7
Ver carta depositada no arquivo do Centro de documentação do movimento operário
Mario Pedrosa da Universidade Estadual de São Paulo e também entrevista de Gullar
sobre a carta em Formas do afeto. Um ilme sobre Mario Pedrosa (35 min), direção Nina
Galanternick, produção e pesquisa, Glaucia Villas Bôas, 2010, Nusc/UFRJ, Faperj.
Os dois lados do concretismo | 87
8
Em 1959, I Exposição de Arte Neoconcreta no MAM; Exposição de Arte Concreta, em
Salvador; Balé Neoconcreto de Lygia Pape e Reynaldo Jardim. Em 1960, Exposição Inter-
nacional de Arte Concreta em Zurique, organizada por Max Bill, e, em 1961, Exposição
Neoconcreta em São Paulo.
9
Villas Bôas, Glaucia. A estética da conversão: o Ateliê do Engenho de Dentro e a Arte
Concreta carioca: 1946-1951, Tempo social, vol. 20. n. 2, novembro, 2008.
10
Sobre as obras dos internos, ver catálogo da exposição Images of the Unconscious from
Brazil, Conluência de Culturas, Câmara Brasileira do Livro, São Paulo, 46ª Feira de Li-
vro de Frankfurt, 1996. Ver também Raphael e Emydio: dois modernos no Engenho de
Dentro, Instituto Moreira Sales, 2012.
11
Silveira apud Gullar, 1996. Gullar, Ferreira. Nise da Silveira: uma psiquiatra rebelde. Rio
de Janeiro: Prefeitura da Cidade, Relume Dumará, 1996.
12
Pedrosa, Mario. Mestres da Arte Virgem, In: Arantes, Otíla (org.). Forma e percepção
estética – Textos Esolhidos II. São Paulo: Edusp, 1996, pp. 85-88.
13
Ver Mari, Marcelo. “Estética e Política em Mario Pedrosa”. Tese de doutorado apresen-
tada no Departamento de Filosoia da Faculdade de Filosoia, Ciências e Letras da USP,
2006; e Ribeiro, Marcelo, “Arte, socialismo e exílio: Formação e atuação de Mario Pedrosa
de 1930 a 1950”. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação
em Sociologia e Antropologia da UFRJ.
14
Barcinski, Fabiana; Siqueira, Vera Beatriz; Ferreira, Hélio Márcio Dias (orgs.). Ivan
Serpa. Rio de Janeiro: S. Roesler/Instituto Cultural Axis, 2003, p. 15.
15
Erber, Pedro. Políticas da abstração: pintura crítica no Brasil e Japão, anos 1950. In:
Villas Bôas, Glaucia (org). Vida da crítica: percursos de Mario Pedrosa, Poiesis, Revista
do Programa de Pós-graduação em Ciência da Arte, UFF, n. 14, vol. 1, 2009 pp. 44-57; e
Mari, Marcelo. Estética e Política em Mario Pedrosa. Tese apresentada no Departamento
de Filosoia da Faculdade de Filosoia, Ciências e Letras da USP, 2006.
16
Niomar Muniz Sodré trabalhou no MAM de 1951 e 1966, tendo assumido sua direção
em 1952; Carmem Portinho foi diretora executiva de 1951 a 1966.
17
Ferreira, Hélio Márcio Dias. “Ivan Serpa, Artista-Educador”. In: Ivan Serpa. Rio de
Janeiro: S. Roesler/Instituto Cultural Axis, 2003, p. 205.
18
Barcinski, Fabiana; Siqueira, Vera Beatriz; Ferreira, Hélio Márcio Dias (orgs.). Ivan
Serpa. Rio de Janeiro: S. Roesler/Instituto Cultural Axis, 2003.
19
Ver, como exemplo, Couto, Maria de Fátima Morethy. Por uma vanguarda nacional. A
crítica brasileira em busca de uma identidade artística (1940-1960). Campinas: Unicamp,
2004; e Sant’Anna, Sabrina Marques Parracho. Construindo a memória do futuro. Uma
análise da fundação do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: FGV, 2011.
20
A origem social do grupo era heterogênea, assim como sua procedência. Lygia Clark,
por exemplo, vinha de família abastada, Mavignier era ilho de classes médias, quase todos
eles porém tiveram algo em comum, como o aprendizado da arte com Ivan Serpa ou com
artistas estrangeiros que se radicaram no Rio de Janeiro durante a II Guerra Mundial.
Não foram alunos da Escola Nacional de Belas-Artes ou a abandonaram, como fez Franz
Weissmann, em 1940, quando era aluno do curso de arquitetura. Não frequentaram os
ateliês conhecidos, na cidade, como o de Portinari. Poucos viajaram para o exterior no
88 | Reflexões sobre arte e cultura material
início da carreira, como o fez Lygia Clark. Almir Mavignier e Ivan Serpa, Fayga Ostrover,
Renina Katz, estudaram com Axel Leskoschek e Arpad Szenes, artistas estrangeiros que
se radicaram no Rio durante a Segunda Guerra Mundial.
21
Aluisio Carvão, apud Cocchiarale, Fernando; Geiger, Anna Bela (orgs.). 1987, p. 141.
22
Di Cavalcanti, Revista Fluminense, n. 3, 1948 apud Bandeira, João. 2002, p. 17.
23
Cordeiro, Waldemar. “Balanço da vida oicial das artes plásticas em 1950””. In: Ban-
deira, João (org.). Arte concreta paulista: documentos. São Paulo: Cosac Naify, 2002, p.16.
24
A hipótese de Aracy Amaral foi publicada em Amaral, Aracy (org.). Projeto Construtivo
Brasileiro na Arte (1950-1962). Rio de Janeiro: MAM; São Paulo: Pinacoteca do Estado,
1977, pp. 312-317. De acordo com Amaral, no Rio de Janeiro, os concretistas eram artis-
tas plásticos, à exceção de poucos. Na realidade, a formação dos artistas cariocas era dife-
renciada, tendo alguns começado diretamente com o aprendizado da pintura, enquanto
outros haviam estudado arquitetura ou direito antes de voltar-se para a prática artística.
Contudo, quase todos trabalharam em desenhos têxteis, propaganda, cartazes, ilustrações
e capas de capas, diagramação, móveis etc.
25
Ibid.
26
Sobre a crítica à obra de Calder ver Arantes, Otília. 2000, n. 4, pp. 47-90.
27
Osório César foi casado com Tarsila do Amaral de 1931 a 1935.
28
Carvalho, Rosa C. M; Reily, Lucia. “Arte e Psiquiatria: um diálogo com artistas plásti-
cos no Hospital Psiquiátrico de Juqueri”. In: ArtCultura, Uberlândia, v. 12, n. 21, jul–dez,
2010, pp. 165–180.
29
Cocchiarale, Fernando; Geiger, Anna Bela (orgs.). 1987, pp. .220-223.
30
Naves, Rodrigo, A complexidade de Volpi. Nota sobre o diálogo do artista com concre-
tistas e neoconcretista em Novos Estudos. CEBRAP, 81, julho, 2008, pp. 148-149.
31
Quanto a essa questão, ver análise da obra Concreção (1957) de Luiz Sacilotto, em
Moura, Flávio Rosa de. Obra em construção: a recepção do neoconcretismo e a invenção
da arte contemporânea no Brasil, Tese de doutorado, USP, 2011.
32
Reinheimer, Patrícia. A singularidade como regime de grandeza: nação e indivíduo
como valores nos discursos artísticos brasileiros. Tese de doutorado. Programa de Pós-
-graduação em Antropologia Social, no Museu Nacional, UFRJ, 2008.
33
Ver catálogo da exposição sobre a Arte Neo-concreta promovida pela a Akademie der
Künste, em Berlin, 2010.
Gastronomia e sociedade de consumo.
Tradições culturais brasileiras e estilos de vida
na globalização cultural
Com a globalização do turismo, no inal dos anos 1970 e início dos 1980, re-
des hoteleiras internacionais se instalaram no país, como as francesas Soitel
e Méridien, que levaram seus hotéis de luxo para a praia de Copacabana, no
Rio de Janeiro. Com um olho no turismo soisticado e outro no consumidor
interno, os hotéis importaram chefs estrelados para criar espaços dedicados
à alta gastronomia, como o Le Pré Catelan, no Soitel, com menu assinado
por Gaston Lenôtre, e o Saint-Honoré, no Méridien, sob a orientação de
Paul Bocuse. Para gerir os estabelecimentos, foram contratados proissio-
nais franceses formados dentro dos preceitos da nouvelle cuisine. No Pré
Catelan icou Claude Troisgros, ilho de Pierre Troisgros, um dos pioneiros
da nova corrente, e no Saint-Honoré, Laurent Suaudeau, que trabalhava
para Paul Bocuse. Muito jovens, casaram-se com brasileiras e mais tarde se
ixaram no país à frente de seus próprios restaurantes. Ambos ajudaram a
formar um campo de gastronomia no Brasil, criando associações e escolas, e
impulsionando uma nova maneira de pensar a culinária.
Trabalhavam ainados com o pensamento contemporâneo, mas recor-
rendo a componentes e práticas da cozinha tradicional brasileira, mobili-
zando um movimento de pesquisa e valorização das tradições regionais. A
100 | Reflexões sobre arte e cultura material
Digressão final
Não vou citar um método nem um produto. Foi fato que comer virou
uma experiência multisensorial, com o prazer se incorporando a nova
dimensão emocional.
Notas
1
O conceito de estilo de vida foi forjado pela primeira vez pelo sociólogo alemão Georg
Simmel (Simmel, 1999), ao reletir sobre a emergência de uma nova sensibilidade, com
base no ritmo intenso e acelerado da vida urbana nas metrópoles da virada do século XIX
para o XX. Leitor assíduo de Baudelaire, Simmel compreendeu essa nova sensibilidade
como expressão do moderno estilo de vida, decorrência do impacto da economia mo-
netária sobre a realidade subjetiva dos sujeitos. Ver Simmel, Georg. Le style de vie, em
Philosophie de l’argent. Paris: PUF, 1999. Ver também Waizbort, Leopoldo. As aventuras
de Georg Simmel. São Paulo: Editora 34, 2000.
2
Na segunda metade do século XX, outros autores recorrerão ao conceito de estilo de vida,
associado ao consumo, para analisar a cultura e o processo de constituição de identidades
no mundo contemporâneo. Mencionamos particularmente: Bourdieu, Pierre. La distinc-
tion. Critique sociale du jugement. Paris: Minuit, 1979; e Giddens, Anthony. Modernidade e
identidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. Pensando a partir do inal do século XX, o estilo
106 | Reflexões sobre arte e cultura material
de vida para Giddens “pode ser deinido como um conjunto mais ou menos integrado
de práticas que um indivíduo adota não só porque essas práticas satisfazem necessidades
utilitárias, mas porque dão forma material a uma narrativa particular de auto-identidade”
(Giddens, 1997, p. 75).
3
Bueno, 2001.
4
Habermas, 1984.
5
Crane, 2011, p. 25.
6
Mattelart, 1994.
7
Ortiz, 2000, p. 12.
8
A nomenclatura e a graia que nomeia o novo proissional da gastronomia contemporâ-
nea obedece à designação globalizada de chef.
9
Heinich, 1993.
10
Elias, 1990; De Jean, 2010; Poulain, 2004; Vitaux, 2007.
11
Poulain, 2004, p. 223.
12
Poulain, 2004, p. 226.
13
Ibid.
14
A noção de terroir, conforme Rambourg (2010, p. 271), remete à relação de determinado
produto com a terra e a cultura agrícola da qual ele deriva. O melhor exemplo é o vinho.
15
O problema da relexividade está no centro da análise da dinâmica da vida social na alta
modernidade para Anthony Giddens. A relexividade se manifesta em diversos aspectos:
1. No entrelaçamento das instituições modernas com a vida individual, na interação entre
inluências globalizantes de um lado e disposições pessoais de outro; 2. Nos processos de reorga-
nização do tempo e do espaço, associados a mecanismos de desencaixe – mecanismos que desco-
lam as relações sociais de seus lugares especíicos, recombinando-as através de grandes distâncias
no tempo e no espaço.Ver Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2002, p.10.
16
Entre os chefs apontados nessa matéria por Gault e Millau estavam Michel Guérard e
Claude Verger.
17
Rambourg, 2010.
18
Entre eles constavam chefs da nova geração, como Bocuse, Troisgros, Haeberlin, Peyrot,
Denis, Guérard, Manière, Minot, Chapel, ao lado de outros estabelecidos, como Girard,
Senderens, Oliver, Minchelli, Barrier, Vergé, Delaveyne, descontentes com o quadro con-
vencional e ultrapassado da cozinha dominante na França. Ver Rambourg, Patrick. His-
toire de la cuisine et de la gastronomie francaises. 2010, p. 297.
19
Vitaux, 2007; Suaudeau, 2004; Rambourg, 2010.
20
Rambourg, 2010.
21
Conforme Jean-Pierre Poulain em Sociologia da alimentação (2004), nos anos 1980 os
novos chefs franceses percorrem o mundo, convidados a promover a cozinha francesa,
sendo que os mais eminentes foram contratados como consultores de redes de hotelaria
internacionais ou de grupos industriais agroalimentares: Verger e Blanc em Bangkoc; Rebu-
chon, Gagnaire, Loiseau, Bras no Japão; Guérard nos Estados Unidos; Bocuse um pouco em
toda parte, revezado atualmente por Ducasse (p. 39). Esses encontros, que possibilitaram o
Gastronomia e sociedade de consumo | 107
Referências bibliográficas
Gerais
__________. Pierre, A Economia das trocas simbólicas (org. Sergio Miceli). São
Paulo: Perspectiva, 1974.
CRANE, Diana. Ensaios sobre moda, arte e globalização cultural (org. Maria Lucia
Bueno). São Paulo: Senac, 2011.
ELIAS, Norbert. O processo civilizador (volume 1): Uma História dos Costumes.
Rio de Janeiro: Zahar, 1994.
KONTIC, B.. Inovação e redes sociais. A indústria da moda em São Paulo. 157 f.
Tese de Doutorado em Sociologia. FFLCH-USP, 2008.
MELO E SOUZA, Gilda. O espírito das roupas. A moda no século dezenove. São
Paulo: Companhia das Letras, 1987.
ROCHE, Daniel, História das coisas banais. Nascimento do consumo nas sociedades
do séculoXVII-XIX. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
VEBLEN, hostein. A Teoria da classe ociosa. São Paulo: Abril (Os pensadores,
vol. XL), 1974.
Gastronomia
BARBOSA, Lívia. Feijão com arroz e arroz com feijão: o Brasil no prato dos
brasileiros. Horizontes Antropológicos, n. 28, pp. 87-116, jul./dez. 2007.
JAMES, Keneth. Escoier: o rei dos chefs. São Paulo: Senac, 2008.
KELLY, Ian. Carême: o cozinheiro dos reis. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
Introdução
Pedrosa justiicava:
alheio. A produção artística dos internos pensada com base em sua relação
com o sentido de suas psicoses é a objetivação dos transtornos psiquiátri-
cos, transformando-os em sofrimento moral. Ao mesmo tempo, os quadros
pintados sem o aprendizado das técnicas de representação e valorizados
por importantes atores do mundo artístico carioca apresentava o fenômeno
artístico sob uma perspectiva inusitada.
Nas primeiras falas sobre arte, ouvimos que existe um outro conceito
que tem em todos os ofícios. Existe a arte, por exemplo, se você per-
tence ao meio militar você vai usar a arte da guerra, se é cozinheiro
vai usar a arte de cozinhar […].23 E, como foi dito aqui, a arte de
pintar foi uma das primeiras que o homem pensou, e junto com isso
vieram a arte da escrita, vieram os hieróglifos. E veio a guerra e os
conlitos. E isso fez o homem inventar muitas coisas […].24 O con-
lito sempre fez parte do ser humano. E o ritual. A igura do Pajé e
do xamã foi feita para orientar. Isso mostra que o ser humano em si
é integrado na arte espiritual, mas também na sobrevivência. E estar
fazer com nossas artes e o nosso diálogo é nosso meio de superar
nossos conlitos.
É nesse sentido que novas categorias têm sido forjadas para designar esses
atores. Ainda que não seja justo deixar de reconhecer o papel inovador que
Nise da Silveira teve ao introduzir relexões sobre uma complexidade que
não cabia no coninamento de hospitais psiquiátricos, daí a fundação de
um serviço alternativo como a Casa das Palmeiras, o papel que a produção
e os produtos artísticos tiveram no sistema de saúde mental em meados do
século XX foi distinto daquele que se pode observar atualmente. Seguindo
a proposta de Monteiro, Arruti e Pompa,26 podemos argumentar que hoje
esses atores são agentes num “teatro do reconhecimento” que as políticas
da diferença potencializam por meio da possibilidade de encenação quase
ritual 27 das identidades.
No dia 27 de setembro de 2012, o jornal O Dia trouxe na coluna Ciên-
cia e Saúde uma nota divulgando o evento “Arte insensata”. A nota dizia:
que são parte das atividades dos eventos. A categoria usuário tem espe-
cial interesse para a análise aqui empreendida, pois denota uma forma de
delimitação de coletividade sem distingui-la pela relação com a normali-
dade, a razão ou a doença, mas pelo fato de fazer ou não uso de determi-
nado tipo de serviço29.
Em sentido abrangente, o termo diferencia qualquer pessoa ou or-
ganização para a qual um serviço ou produto foi concebido. Assim, en-
contramos, por exemplo, em qualquer site – desde páginas do governo
a sites de pornograia –, o termo usuário referindo-se ao indivíduo que
utiliza o serviço oferecido. A única aplicação na qual o termo adquire um
valor é em sua acepção jurídica para diferenciar aqueles que usam drogas
ilícitas daqueles que as comercializam. Em seu sentido social, o termo
permite a inserção desses agentes numa humanidade pautada pela dife-
rença. Não mais um ser humano normal ou anormal, mas determinado
segmento da humanidade que se distingue de outros pelo uso de certos
serviços de saúde que demandam condições especíicas de participação
da vida social.
122 | Reflexões sobre arte e cultura material
sua diferença passam pela delimitação da “loucura” como uma das dimen-
sões da vida dos sujeitos, mas não a única. O ingresso no universo dos
transtornos físico-morais36 psiquiátricos torna as pessoas suscetíveis de
momentos de maior ou menor habilidade para a vida social convivendo
com momentos de crise ou inabilidade para a vida social. A reivindicação
de Vicente diz respeito ao papel da sociedade em lidar com essas pessoas
em seus momentos de habilidade maior ou menor, enquanto o papel dos
serviços de saúde mental icaria restrito ao trato com a manutenção dessas
competências – com tratamentos proiláticos – e os momentos de crise ou
inabilidade social.
É principalmente durante os períodos de inabilidade para o convívio
social que se estabelecem as fronteiras entre razão e desrazão, entre nor-
malidade e loucura. É quando as interdições são promulgadas e aos usuá-
rios dos serviços de saúde mental se torna proibido uma série de situações
que são de acesso corrente a “qualquer um”: participação em oicinas, pas-
seios e, em última instância, o convívio social.
Notas
1
A enorme produtividade desses internos fez com que se instituísse no CNP um museu
para abrigar os trabalhos. Inaugurou-se então, em 1952, o Museu de Imagens do Incons-
ciente, no mesmo complexo arquitetônico onde se localizava o CNP.
2
O Globo, s/data, apud Dias, 2003, p. 125.
3
Dias, 2003.
4
Doze de autoria de Mário Pedrosa, nove de Quirino Campoiorito e as outras sete de
outros autores, tais como Jorge de Lima, Osório Borba, Flávio de Aquino, Antonio Bento
e Yvonne Jean (Dias, 2004).
5
Dias, 2004, p. 9.
6
Dias, 2004.
7
Silveira, s/data.
8
Ibid.
9
Heinich, 1991.
10
Silveira, s/data.
11
Ibid.
12
Bento, 1949.
13
Pedrosa, 1947.
14
Claverie, 1994. Utilizo a noção de afaire nas duas situações históricas que descrevo
aqui pensando na dimensão de formação de opinião e publicização de um assunto que até
então era considerado privado de uma categoria proissional, os psiquiatras. Em ambas as
situações históricas, a opinião pública foi acionada como forma de publicizar o conlito
de valores acerca das práticas, normas e saberes sobre a loucura.
15
Bourdieu, 1996.
16
Para a psiquiatra, o quadro era essencial para compreender o processo psicótico de
Emygdio de Barros.
17
Bourdieu, 1996.
18
Pedrosa, 1947. Énfase no original.
19
Foram inaugurados diversos museus de arte moderna no Brasil; foi instituída uma
Associação Brasileira de Críticos de Arte relacionada a outra internacional e vinculada
à UNESCO; um primeiro grupo de intelectuais completou uma formação universitária
desvinculada da principal e quase exclusiva instância legitimadora do fenômeno artístico,
a Escola Nacional de Belas Artes, e começava a entrar no mercado editorial como críticos
especializados em dimensões especíicas da esfera social (literatura, música, artes plásticas,
moda etc.). Isso contribuía para a multiplicação das instâncias de aferição da produção
artística e a construção de um conjunto de posições e um mercado artístico com regras
próprias de funcionamento.
20
Pedrosa, 1947. A noção de unidade da espécie humana era hegemônica também como
forma de oposição aos nacionalismos que levaram à Segunda Grande Guerra. Foi o
132 | Reflexões sobre arte e cultura material
e a Aids por “colocarem em jogo dimensões vivenciais muito críticas, em função de sua
associação com a sexualidade, com a moralidade e com a responsabilidade individual sobre
a Aids no Brasil” (Duarte, 2003). Duarte chama atenção para alguns fenômenos referentes
à “reprodução” e “contracepção” como passiveis de implicar moralmente as pessoas por eles
afetados e, nesse sentido, poderem ser incluídos no horizonte analítico das perturbações
físico-morais (alguns exemplos de estudos sobre essas outras formas do fenômeno são
mencionados pelo autor Leal, Erotildes Maria. O agente do cuidado na reforma psiquiá-
trica brasileira: modelos de conhecimento. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Gradua-
ção em Psiquiatria e Saúde Mental do IPUB/UFRJ, 1999; Luna, Naara. Bebê de proveta,
barriga de aluguel, embriões de laboratório: as representações sociais das novas tecnologias
reprodutivas. Dissertação de mestrado em antropologia social, Museu Nacional/Universi-
dade Federal do Rio de Janeiro. 1999; Víctora, Ceres. As imagens do corpo: representações
do aparelho reprodutor feminino e reapropriações do modelo médico. In: Leal, O. (Org.).
Corpo e signiicado: ensaios de antropologia social. Porto Alegre: UFRGS, 1995.).
37
Hall, 1996.
38
Santos, 2009.
39
Belting, 2006.
40
Foucault, 2004.
41
Sorj, 2013, p. 10.
42
Uso somente aqui essa categoria, única que presenciei ser manipulada por alguns usuá-
rios dos serviços de saúde mental para se localizarem no interior desse sistema. O termo
não é um consenso, mas parece ser o início da inversão de uma categoria antes associada
a valores pejorativos que passa a ser apropriada de forma risível entre eles. O termo tem
uma conotação positiva, mas não em relação à saúde mental. Compõe o jargão de grupos
sociais que se identiicam com determinados comportamentos que se opõem à norma
moralmente consagrada e relacionada à postura racional; “Maluco” pode ser usado como
auto-atribuição para designar pessoas pertencentes a grupos de jovens, praticantes de
esportes especíicos e diversas outras fronteiras de pertencimento social que não passam
por proissão, identidade étnica ou classe social. O termo então tem, no uso amplo, a
conotação do estabelecimento de uma fronteira que une as pessoas em torno de uma
identidade que desaia os códigos de comportamento esperados na dimensão proissional,
mas também que ultrapassa as distinções sociais que convencionalmente separam pessoas.
Adotá-lo como totalização em relação aos usuários dos serviços de saúde mental parece
ser uma maneira de tentar incorporar positivamente essa representação de fuga às normas
e à racionalidade como forma de construção de subjetividade.
43
Na Lei da Economia Solidária, no Rio de Janeiro, pessoas com transtornos mentais
estão incluídas nas cotas obrigatórias das empresas (Lei 8.213).
44
Foucault, 2004.
45
Vasconcellos; Giglio, 2007. Termo cunhado por Jane Russo (2002) para falar do surgi-
mento, institucionalização e oicialização das proissões, crenças, teorias e práticas psiqui-
átricas, psicanalíticas e psicológicas no Brasil.
134 | Reflexões sobre arte e cultura material
46
Auguste Ambroise Tardieu: Étude médico-légale sur la folie, 1872; Paul-Max Simon:
L’imagination dans la folie: Étude sur les dessins, plans, descriptions, et costumes des
alienes. Ann. med.-psychol., 1876 e Les écrits et les dessins d’aliénés, Archives d’anthropo-
logie criminelle, 3, pp. 318-355, 1988; Cesare Lombroso: L’uomo di genio in rapporto alla
psichiatria, 1889; Fritz Mohr: Über zeichnungen von Geisteskranken und ihre diagnos-
tische Verwertbarkeit In: Journal für Psychologie und Neurologie, n. 8, 1906; Marcel Réja
(pseudônimo do doutor Paul Meunier, 1873-1957). L’Art chez les fous. Le Dessin, la Prose,
la Poésie, 1907.
47
Russo, 2002.
48
Heinich, 1993, p. 20.
49
Simmel, 1971.
50
Heinich, 1993, p. 142.
51
Heinich, 1993, p. 299.
Referências bibliográficas
BELTING, Hans. O im da história da arte: uma revisão dez anos depois. São
Paulo: Cosac Naify, 2006.
BOURDIEU, Pierre. Regras da arte. São Paulo: Companhia das Letras, 1996
[1992].
O DIA. Santa Teresa recebe mostra de arte insensata. Caderno Ciência e Saúde.
27 de setembro de 2012.
OLIVEIRA Fº, João Pacheco de. O nosso governo. Os ticuna e o regime tutelar. São
Paulo: Marco Zero, 1988.
PEDROSA, Mário. Arte, necessidade vital. In: ARANTES, Otília (org.). Forma
e Percepção Estética. Textos escolhidos II. São Paulo: Edusp, 1996 [1947].
RUSSO, Jane. O mundo PSI no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.
136 | Reflexões sobre arte e cultura material
SIMMEL, Georg. 1971. Freedom and the individual In: On individuality and
social forms. Donald N. Levine (ed.) Chicago University Press, 1971.
* Mestre em Antropologia Social pela USP e Doutora em Antropologia Social pela UNI-
CAMP. Docente do Centro Universitário SENAC e da Fundação Getúlio Vargas – SP. Auto-
ra de O Brasil best-seller de Jorge Amado: literatura e identidade nacional (SENAC, 2003). Con-
sultora em projetos socioculturais junto a organizações públicas, privadas e do terceiro setor.
137
138 | Reflexões sobre arte e cultura material
Figura 2. Trançado de fibra vegetal com franjas elaborado por artistas aborígines
de Arnhem Land decorando o saguão do Vibe Hotel, em Darwin.
Fotografia de Ilana Goldstein, 2010.
De artefato a obra de arte | 139
Figura 4b. Papa Tjukurpa Pukara, a tela premiada, feita com tinta acrílica sobre tela.
Imagens de divulgação. Fonte: http://blogs.crikey.com.au/northern/2010/08/13/mr-
-jimmy-donegan-wins-the-2010-telstra-art-award.
De artefato a obra de arte | 141
Isso ajuda e explicar por que são faladas, hoje, apenas vinte das mais
de 200 línguas indígenas registradas no momento da chegada dos bri-
tânicos, no inal do século XVIII. E também por que as taxas de alcoo-
lismo, associadas ao “tédio” e à “perda de sentido” após o contato com os
colonizadores, são tão altas.4 Atualmente, um indivíduo indígena vive, em
média, 17 anos menos que um australiano branco, e sua renda é cerca de
35% da renda média dos brancos.
Vale ressaltar que o termo indigenous, na Austrália, engloba duas macro-
divisões. De um lado, os Aborigenes, majoritários, que vivem no continente,
têm a pele negra e, apesar das diferenças linguísticas, partilham um substrato
mítico comum, chamado de Dreaming ou “tempo dos sonhos”. De outro
lado, os Torres Strait Islanders, uma minoria de 5% que mora em pequenas
ilhas do Estreito de Torres, no nordeste da Austrália, tem a pele um pouco
mais clara e apresenta proximidade cultural com povos da Melanésia.
A produção artística é valorizada e pujante tanto entre as etnias abo-
rígines, quanto entre os habitantes do Estreito de Torres. Tradicionalmen-
te, os grupos indígenas da Austrália cultivam diversas formas expressivas,
do canto à cestaria, da dança à pintura corporal. Algumas dessas formas
De artefato a obra de arte | 143
são bastante antigas, como as pinturas rupestres dos Kakadu, que datam
de mais de 20 mil anos e foram declaradas Patrimônio Mundial pela
UNESCO (Figura 6).
Figura 6. Pintura rupestre no Kakadu National Park, em Arnhem Land, figurando uma
pequena espécie de canguru chamada wallaby. Fotografia de Ilana Goldstein, 2010.
Figura 7. Aquarela sobre papel de Albert Namatjira, sem título e sem data,
anunciada para venda pela casa de leilões Southeby’s. Imagem publicada no site:
http://www.artrecord.com.
De artefato a obra de arte | 145
A aceitação pelos brancos não foi imediata. Até 1979, não se encon-
trava nenhuma pintura acrílica feita em Papunya em museus de arte aus-
tralianos. Porém, na década de 1980, a pintura acrílica indígena se expan-
diu. Em 1988, o faturamento anual da cooperativa Papunya Tula Artists
Ltd. atingiu US$ 1 milhão; sua produção começou a entrar nos museus
públicos e galerias comerciais. As telas ganharam formatos e tamanhos
variados, e novas cores passaram a ser utilizadas. No inal dos anos 1990,
o valor das telas dos membros da Papunya Tula atingiu cifras tão elevadas
que ocorreram roubos em museus. Em 2010, quando visitei sua galeria, a
cooperativa vendia trabalhos de 120 artistas, em um espaço próprio gran-
de e elegante, no centro de Alice Springs. Ningura Napurrula, de 74 anos,
é uma de suas artistas mais famosas (Figura 8).
Arnhem Land é uma área tropical com 97.000 km2, no extremo norte da
Austrália (assinalada pelo retângulo, no mapa da Figura 9), onde a vida
é ritmada pelas estações seca e chuvosa. Ali existe uma reserva indígena
148 | Reflexões sobre arte e cultura material
desde 1931. De 1910 a 1970, grande parte das pessoas vivia em torno
das missões metodistas e anglicanas. A partir de 1970, com as primeiras
vitórias nas lutas por terras, elas se redistribuíram, retornando às àreas que
pertenciam tradicionalmente a seus clãs ou a suas famílias.
O grupo étnico mais numeroso de Arnhem Land se autodenomina
Yolngu. O contato dos Yolngu com os brancos se deu há mais de cem
anos. Nos séculos XVIII e XIX, eles também tiveram intenso contato com
mercadores macassar da Indonésia, que, por meio do comércio marítimo,
forneciam-lhes pepinos do mar, iguaria muito apreciada.
Figura 10. Båru at Yathikpa, de Djambawa Marawilli, c. 2004. Coleção do centro de artes
Buku-Larnnggay Mulka, em Yirrkala, Arnhem Land. Foto de divulgação publicada no
site: http://www.mulka.org/theartcentre/artwork/4964/B%C3%A5ru%20at%20Yathikpa
152 | Reflexões sobre arte e cultura material
Considerações finais
Our position is that the anthropology of art is not simply the study
of those objects that have been classiied as art objects by Western art
history or by the international art market. Nor is art an arbitrary cat-
egory of objects deined by a particular anthropological theory; rather,
156 | Reflexões sobre arte e cultura material
art making is a particular kind of human activity that involves both the
creativity of the producer and the capacity of others to respond to and use
art objects. […] Anthropology must be open to classiications of the
phenomenal world that do not correspond to Western categories. […]
Art describes a range of thoughts and practices that employ creativity in
the production of expressive culture, regardless of whether that production
adheres to prescribed forms or embodies individual innovations.27
Notas
1
Uso aqui o exemplo de Emily Kame, porque suas pinceladas largas e suas cores vibrantes
são consensualmente apreciadas pela crítica e pelos colecionadores. Mas, na verdade, os
preços das obras variam bastante. Um artista iniciante, considerado talentoso e promissor,
consegue entre US$ 2 mil e US$ 5 mil por uma tela. No polo oposto, o maior valor de
venda já atingido por uma tela aborígine da Austrália foi US$ 2,4 milhões, pago por uma
grande pintura de Cliford Possum Tjapaltjarri, num leilão da casa londrina Sotheby’s,
em 2007. Em relação ao destino desse dinheiro, nas vendas do mercado primário, metade
chega às mãos dos artistas e é distribuída por suas redes de parentesco. A outra metade,
em geral, ica com os intermediários. Já no mercado secundário, o valor de revenda pode
ser dezenas de vezes mais alto do que aquele pago inicialmente ao artista. Nesses casos, a
Austrália criou, em 2011, um imposto que obriga o revendedor a repassar uma porcenta-
gem do lucro ao autor da obra.
2
Goldstein, 2012.
3
Kleinert; Neale, 2000.
4
Schmidt, 2005.
5
Shapiro, 2007, p. 137.
6
A noção de sistema de arte vem sendo delineada nas duas últimas décadas, sobretudo na
sociologia da arte francesa. Autores como Alain Quemin (2001), Nathalie Heinich (1998)
De artefato a obra de arte | 157
e Raymonde Moulin (1992) consideram sistema de arte como a rede que compreende
todos os sujeitos e organizações envolvidos na produção, exibição, avaliação, divulgação,
circulação e comercialização das artes. Fazem parte do sistema de arte, por exemplo, ar-
tistas individuais, coletivos, galerias, casas de leilões, museus, bienais, críticos, curadores e
diretores de instituições. Anne Cauquelin (2005) chama a atenção ainda para o fato de que,
no caso especíico da arte contemporânea, essa rede de interações ultrapassa as fronteiras
regionais e mesmo nacionais. Daí a expressão “sistema internacional de artes”.
7
French et al., 2008.
8
Os protestos de ativistas haviam começado já nos anos 1950 e 1960, mas foi só em 1976
que o Aboriginal Land Rights Act devolveu 50% do estado Northern Territory a comuni-
dades indígenas.
9
O interesse pela chamada “arte primitiva” loresceu inicialmente entre as vanguardas
do século XX. A partir de 1920 e 1930, a África, a Oceania e a América passaram a re-
presentar, para artistas como Matisse, Picasso e Breton, um reservatório de novas formas
e valores (Perry, 1998; Cliford, 1996). A categoria ganhou força entre as duas Guerras
Mundiais e teve seu apogeu entre 1957, com a criação do Museu de Arte Primitiva, em
Nova York, e meados da década de 1980 (Errington, 1998). Convém, no entanto, proble-
matizar o uso dessa categoria. Em primeiro lugar, além da produção indígena atual, ela
tem abarcado – em catálogos, leilões e mesmo museus – fenômenos tão diferentes como
pinturas rupestres pré-históricas, telas naïf, entalhes populares e trabalhos de pacientes
psiquiátricos. De acordo com Sally Price, “tudo o que essas diversas manifestações cha-
madas de ‘arte primitiva’ têm em comum é que são encaixadas, pelo Ocidente, em uma
espécie de estereótipo simpliicador do Outro exótico” (Price apud Goldstein, 2011, s.p.).
Em segundo lugar, não se pode negligenciar que a expressão “arte primitiva” é proble-
mática por remeter ao paradigma evolucionista, sugerindo que haveria formas artísticas
“inferiores”. Não obstante, fora das Ciências Sociais, não é raro encontrar-se tal categoria
sendo utilizada de forma pouco problematizada.
10
Altman, 2005.
11
As lojas das missões haviam se multiplicado a partir dos anos 1930, forçando os nativos
a produzirem cestaria, lechas etc. para o público externo. O dinheiro icava nas mãos dos
missionários, ao passo que, nas cooperativas atuais, cerca de metade da receita é repassada
aos artistas. Nas lojas das missões, não havia preocupação com o registro das histórias
míticas relacionadas aos objetos produzidos, enquanto nas cooperativas contemporâneas
o registro em foto, vídeo e textos é uma atividade rotineira. A tomada de decisões, nas
lojas das missões, era feita exclusivamente por brancos. Hoje, os conselhos diretores das
cooperativas são compostos por representantes indígenas. Outra grande diferença é que
os missionários nunca trataram aqueles objetos como obras de arte. Seu público-alvo
eram, sobretudo, turistas.
12
Johnson, 2006.
13
McCulloch; Schilds, 2009. Embora esta pesquisa tenha se debruçado sobre as artes vi-
suais, é importante destacar que, na Austrália, existem também bandas de rock que aliam
a guitarra elétrica ao djidjiridoo – instrumento de sopro feito de um tronco oco –, como é
158 | Reflexões sobre arte e cultura material
o caso do grupo Yothu Yindie, que já se apresentou, inclusive, no Brasil. Há também com-
panhias de dança renomadas, como o Bangara Dance heatre e videomakers aborígines
com circulação internacional, como Curtis Taylor, que apresentou seus vídeos na Reunião
da Associação Brasileira de Antropologia – ABA, em São Paulo, em julho de 2012.
14
Morphy, 2008.
15
McCulloch, 2009.
16
Anderson, 2006.
17
Spencer publicou Native Tribes of the Northern Territory of Australia em 1914, descre-
vendo de regras de matrimônio a ritos de iniciação, passando pela medicina e pelas “artes
decorativas”.
18
Morphy, 2008.
19
Caruana, 2003.
20
Interessante notar que uma palavra yolngu designa desenhos, de uma maneira geral:
miny’tji. O termo se aplica a qualquer motivo composto por linhas e cores, seja ele produ-
zido por um ser humano ou não. As asas de uma ave colorida, a estampa de um vestido
e uma pintura sobre casca de árvore são igualmente chamadas de miny’tji. Em todos os
casos, o desenho é considerado um sinal aparente da identidade das coisas e dos seres
(Morphy, 2008). Um mesmo miny’tji pode cobrir uma prancha de madeira, o peito de um
jovem que será circuncidado, ou um mastro fúnebre.
21
Morphy, 2005.
22
Essa rápida interpretação do conteúdo representado na bark painting reproduzida na
Figura 10 é baseada em minhas conversas com Howard Morphy, que há 40 anos trabalha
com os Yonlgu, e também em informações obtidas nos arquivos do Australian National
Maritime Museum, em Sydney.
23
Os mastros funerários são troncos ocos, comidos por formigas, que abrigam parte dos
restos mortais do falecido durante um ano de luto – depois do qual são deixados ao relen-
to para ser reintegrados à natureza. O mastro funerário é decorado com as mesmas pintu-
ras corporais que cobriam a pessoa em vida. Intitulada Aboriginal Memorial, a instalação
composta por mastros funerários metafóricos ica hoje numa sala de destaque da National
Gallery of Australia, em Camberra.
24
Goldstein, 2012.
25
Belting, 2006, pp. 101-104.
26
Embora Belting (2006) proponha uma arte mais inclusiva, não discute a primazia da
certas produções no mercado, nem as assimetrias de poder que ocorrem nesse processo,
tampouco a relação entre centro e periferia que vigora no sistema internacional – no qual,
inclusive, a arte latino-americana feita por brancos é marginalizada, não apenas a arte
“étnica”. Para reletir sobre tudo isso, a interface entre a antropologia, a museologia, a his-
tória da arte, a sociologia, a economia e o direito se faz necessária e promete ser frutífera.
27
Morphy; Perkins, 2006, p. 12, grifos da autora.
De artefato a obra de arte | 159
Referências bibliográficas
BELTING, Hans. O im da história da arte: uma revisão dez anos depois. São Paulo:
Cosac Naify, 2006.
GOLDSTEIN, Ilana S. Entrevista com Sally Price. In: Proa – Revista de Antro-
pologia e Arte [on-line]. Ano 02, vol. 1, n. 2, nov. 2010. Disponível em: http://
www.ifch.unicamp.br/proa/EntrevistasII/entrevistasallyprice.html. Acesso em:
01/01/2012.
SHAPIRO, Roberta. Que é artiicação? In: Sociedade e estado vol. 22, n. 1, p. 135
-151, 2007. Disponível em: www.scielo.br/pdf/se/v22n1/v22n1a06.pdf. Acesso
em 05/05/2012.
Notas
1
Durkheim, [1912] 1996.
2
Turner, 1982 e 1987.
3
Mauss, 2003.
4
Tambiah, 1997.
5
Esta já realizada amplamente na literatura, com destaque para Peirano, 2002.
6
O esforço analítico acerca das categorias natureza e cultura é presente em diversos cam-
pos da antropologia. A etnologia indígena alimenta fortemente este debate em seus estu-
dos clássicos e contemporâneos, tal como o faz Mura em seu texto neste livro. Cabe des-
tacar também, no contexto desta publicação, o trabalho de Luiz Fernando Dias Duarte.
7
Dentre diversos eventos e publicações sobre os cem anos deste livro de Durkheim, des-
taca-se o dossiê temático publicado na revista Debates do Ner, ano 13, n. 22, jul/dez 2012.
8
Asad, Talal. [1993] 2010, p. 264.
9
No campo da antropologia brasileira, sugiro a leitura dos trabalhos de Giumbelli (2002),
Birman (2012) e Montero (2012) que, em diferentes contextos, abordam de maneira igual-
mente relevante a questão da construção das categorias de religioso e secular no Brasil.
10
Duarte, 2006.
11
Firth, 1974; Gluckman, [1958] 2010; Levi Strauss, 2008; e Sahlins, 1985.
12
Gupta; Ferguson, 1997.
13
Marcus, 1995.
14
Um meme, termo criado em 1976 por Richard Dawkins no seu best-seller O gene egoísta,
é para a memória o análogo do gene na genética, a sua unidade mínima. É considerado
Objetos, pessoas e valores | 171
Referências bibliográficas
DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo. Col. Debates. São Paulo: Perspectiva, 1976.
LEVI STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2008.
PEIRANO, Mariza (Org.). O dito e o feito: ensaios de antropologia dos rituais. Rio
de Janeiro: Relume-Dumará/Núcleo de Antropologia da Política/UFRJ (Cole-
ção Antropologia da Política, v. 12), 2002.
SAHLINS, Marshall. Ilhas de história. Rio de Janeiro: Jorhe Zahar Ed., 1985.
TURNER, Victor. From Ritual to heatre: the Human Seriousness of Play. Nova
York: PAJ Publications, 1982.
Começo por apresentar alguns aspectos de uma das fases da vida da ban-
deira e da máscara no contexto de sua restrita circulação ritual entre foli-
ões e devotos, a partir de pesquisa realizada no Complexo da Mangueira,
no Rio de Janeiro, entre 2004 e 2007. A bandeira pode ser sumariamente
descrita como um suporte sobre o qual são ostentadas imagens de santos
católicos e representações pictóricas de narrativas bíblicas, como os Reis
Magos, a Sagrada Família, ou ainda outros santos com os quais se mantém
um vínculo especial. Normalmente é dotada de uma proeminente aparên-
cia estética dada pela cuidadosa ornamentação feita com o uso de lores,
pequenos espelhos, rendas, enfeites natalinos, lâmpadas e itas de seda co-
loridas. Considera-se que a bandeira seja detentora de poderes especiais,
sendo capaz de trazer bênçãos e graças a quem a recebe. A máscara, por
Cultura popular em trânsito | 175
Figura 1. Bandeira. Foto: Daniel Bitter. Figura 2. Máscara. Foto: Daniel Bitter.
178 | Reflexões sobre arte e cultura material
aos santos ou, inversamente, pelos santos aos devotos. Neste último caso,
o mestre protagoniza um ato ritual de retirada de alguns desses objetos da
bandeira para dar aos devotos. Bilhetes, pedidos e mensagens são comu-
mente endereçados aos santos, ingressando numa intensa circulação cós-
mica. Doam-se e recebem-se coisas através da bandeira, e o que se veriica é
que há um verdadeiro intercâmbio entre o mundo “visível” e o “invisível”. Há
um luxo permanente de objetos entre esses planos, e, como bem sinaliza K.
Pomian, os objetos, “oferecidos em sacrifício, vão do primeiro desses mundos
para o segundo. Os outros seguem o percurso inverso, quer directamente,
quer introduzindo em imagens pintadas ou esculpidas elementos do mundo
‘invisível’”.13 O autor acrescenta que o que torna esses objetos distantes do
circuito das atividades econômicas é a função de garantir a comunicação
entre os dois mundos que compõem o universo. Costuma-se também levar
a bandeira aos cômodos mais recônditos e íntimos da casa. Esse gesto parece
destinar-se a sacralizá-los, puriicá-los ou afastar maus espíritos. O mesmo
se aplica quando a bandeira é usada para benzer uma pessoa ou um defunto.
Em suma, chamo aqui a atenção para o fato de que, nesse contexto, a ban-
deira é detentora de amplos poderes de agência.
A performance do palhaço se desenrola quase sempre na rua, mas
pode também se realizar ocasionalmente no interior da residência. Nesse
caso, sua entrada na casa é feita gradualmente e requer insistentes pedi-
dos de licença feitos aos residentes que recebem a folia. Muitas vezes, a
bandeira é retirada do espaço onde o palhaço realizará sua apresentação.
Outras vezes, ela é apenas coberta com um pano, o que indica que a visibi-
lidade desse objeto é uma via privilegiada para a manifestação de seus po-
deres. Ainda assim, a presença da bandeira e sua proximidade são aspectos
que garantem sua eicácia, visto que os palhaços não devem se aproximar
demasiadamente desta, a não ser que estejam sem suas máscaras, como
também não devem afastar-se muito, pois necessitam de sua proteção. A
razão desse perigo potencial e desses interditos pode ser encontrada em
exegeses mitológicas.
O palhaço declama versos de memória ou de improviso, de acordo
com as circunstâncias do momento. Seu caráter é fortemente cômico, ten-
do muitas vezes o público, mas principalmente o próprio dono da casa,
como alvo de suas brincadeiras. Seu jogo está em divertir os espectadores e
Cultura popular em trânsito | 179
Folk festivals have obvious ainities with museums, which also exist for
the display of culturally valued forms, thought where museums tend to-
wards the display of material objects, folk festivals, in keeping with the
ambience and dynamic of the festival form, are more participatory and
oriented toward action and performance.29
Figura 4. Palhaços posando para a fotografia. Ribeirão Preto (SP). Foto: Daniel Bitter.
Cultura popular em trânsito | 185
Com efeito, o que faz passar uma ação da esfera do rito à da arte ou do
jogo, e vice-versa, não são tanto as suas propriedades intrínsecas como
os efeitos variáveis que elas possuem em contextos diversos e sobre
espectadores diversos”.31
Notas
1
Mauss, 2003.
2
Handler, 1985.
3
Valeri, 1994.
4
Kopytof, 2008.
5
Appadurai, 2008.
6
As jornadas são fases liminares, vistas em relação às ações cotidianas. Foliões consideram
que inúmeros perigos ameaçam a integridade do grupo e comprometem o êxito de sua
missão (Pereira, 2011).
7
Turner, 1974.
8
Mauss, 2003.
9
Mauss, 2003; Gell, 1998; Bitter, 2010.
10
Latour, 2007.
11
Godelier, 2001, p. 206.
12
A festa de arremate é celebrada ao im do ciclo de visitações, conigurando-se numa
ostentosa cerimônia para a qual são convidados todos aqueles que contribuíram com as
jornadas.
13
Pomian, 1997, p. 66.
14
O contraste entre os sentidos do dinheiro ofertado à bandeira e ao palhaço é, de fato,
muito lagrante. Enquanto o primeiro é incontornavelmente destinado a uma redistribui-
ção, regida por uma economia e uma moral do dom, o segundo pode, muitas vezes, seguir
o curso de uma acumulação possessiva e individual.
15
Weiner, 1992.
16
Douglas, 1976.
17
Sabe-se que objetos sagrados, como imagens de santos católicos, coroas, relíquias etc.,
são muitas vezes cobiçados, vendidos, trocados e mesmo roubados. Contudo, essas ativi-
dades existem em função da própria inalienabilidade dos objetos (Pomian, 1997, p. 66).
Isso aponta precisamente para as ambiguidades dos objetos e para os múltiplos enquadra-
mentos com base nos quais são classiicados e reclassiicados.
18
Gonçalves, 2007, p. 27.
19
Kopytof, 2008.
20
Distanciando-me das concepções de senso comum sobre a noção de “folclore”, frequen-
temente apropriada de forma pejorativa e simpliicada, reiro-me aqui a uma categoria de
pensamento amplamente mobilizada tanto por intelectuais envolvidos com o chamado
campo de “estudos do folclore” e da cultura popular no Brasil quanto por foliões de reis.
Chamo aqui a atenção para a notável articulação dos folcloristas em torno do desenvol-
vimento de políticas públicas para a valorização e a proteção das culturas populares no
Brasil, desde pelo menos os anos 1930, com Mário de Andrade. Os festivais folclóricos
aqui analisados são desdobramentos do prestigioso Movimento Folclórico (1947-64) e
190 | Reflexões sobre arte e cultura material
do trabalho das comissões de folclore, algumas delas atuantes nos dias de hoje. Ver, a esse
respeito, Vilhena (1997) e Cavalcanti (2005), entre outros.
21
Vilhena, 1997.
22
Bauman e Sawin, 1991, p. 289.
23
Myers, 1994.
24
Bauman e Sawin, 1991, p. 290.
25
Ibid.
26
Noto que as regras de manipulação da bandeira, tais como o impedimento dos foliões
de avançar à sua frente, podem ser momentaneamente suspensas nesses contextos.
27
Kirshenblatt-Gimblett, 1998.
28
Ibid., p. 64.
29
Bauman e Sawin, 1991, p. 289.
30
Na cosmologia de foliões e devotos, a casa é concebida como o lugar original onde teria
ocorrido a visita dos Magos ao menino-Deus. Ao mesmo tempo, é um espaço básico onde
se estabelecem e se hierarquizam relações fundamentais entre parentes, vizinhos e amigos.
Daí ser a casa um importante foco dos rituais das folias de reis.
31
Valeri, 1994, p. 356.
32
Cliford, 1994.
33
Appadurai, 2008.
34
Ibid., p. 32.
35
Kopytof, 2008, p. 121.
Referências bibliográficas
APPADURAI, Arjun. A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva
cultural. Niterói: EdUFF, 2008.
MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades
arcaicas. In: Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
POMIAN, Krzysztof. Entre o visível e o invisível: teoria geral das coleções. In: A
Coleção, Enciclopédia Einaudi, v. 1: memória−história. Lisboa: Imprensa Nacio-
nal/Casa da Moeda, 1997. pp. 51-85.
VALERI, Valério. Rito. In: Enciclopédia Einaudi, v. 30: religião-rito. Lisboa: Im-
prensa Nacional/Casa da Moeda, 1994. pp. 325-359.
Apresentando
Um caso
Antes…
Depois…
E ainda depois…
Notas
1
Ligia Dabul (2000) chama a atenção para os trabalhos de antropologia da arte que uti-
lizam como eixo os objetos materiais, considerando-os como realidades ixas e acabadas:
“Talvez não seja exagero airmar que boa parte das perguntas seja dirigida aos objetos:
o que signiicam? O que simbolizam? O que representam? Por que e por quem foram
produzidos? Em que contexto são utilizados?”.
2
Dias, 2006.
3
Em 4 de agosto de 2000, o Decreto nº 3.551 deine um programa voltado especialmente
para os Bens Culturais de Natureza Imaterial. O decreto institui o registro e, com ele, o
compromisso do Estado em inventariar, documentar, produzir conhecimento e apoiar a
dinâmica dessas práticas socioculturais. O registro é, antes de tudo, uma forma de reco-
nhecimento e busca a valorização desses bens, sendo visto mesmo como um instrumento
legal. Registram-se Saberes e Celebrações, Rituais e Formas de expressão e os espaços
onde essas práticas se desenvolvem (Iphan, 2006, p. 22).
4
Dias, 2006.
5
A Festa das Paneleiras foi uma iniciativa da Secretaria de Ação Social e da Secretaria de
Cultura do Município que tinha como objetivo fortalecer a entidade e promover a panela
como um bem cultural da cidade. O evento oferece shows musicais com artistas nacionais
e capixabas, apresentações de bandas de congo, barracas com comidas típicas e venda de
panelas de barro. Além disso, as pessoas podem conhecer a rotina e as etapas de produção
dos utensílios. Atualmente a festa ocorre por meio de uma parceria entre a Secretaria
Municipal de Cultura (SEMC) e a Associação das Paneleiras de Goiabeiras (APG).
6
Em 1999 minha dissertação de mestrado foi defendida e inscrita no concurso Silvio
Romero de Monograias sobre Cultura Popular, onde recebeu uma Menção Honrosa. A
pesquisadora Guacira Waldeck, do CNFCP encaminhou uma cópia desse trabalho para
a Superintendência do Iphan do Espírito Santo.
7
Berenícia conta que foi sugerido que ela, como presidente da APG na época (e atual),
preparasse um documento para entregar ao ministro da Cultura, Francisco Wefort, quan-
do este fosse visitá-las. Foi preparada uma recepção no galpão para receber o ministro e
sua equipe, com a presença de representantes da 21ª Regional do Iphan (ES), quando o
documento foi entregue. O ministro prometeu às mulheres se empenhar para que o Ofício
das Paneleiras fosse inscrito no Livro dos Saberes.
8
Iphan, 2006. O parecer do processo de registro de Patrimônio Imaterial das Paneleiras
de Goiabeiras foi realizado por Luiz Fernando Dias Duarte.
9
Neves, 1966.
10
Cada argila possui composição e características diferentes que possibilitam o emprego
de técnicas distintas, tanto de confecção quanto de queima.
11
Graburn, 1976.
12
O Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) deferiu, em 26/07/2011, a
Indicação Geográica (IG) para a Associação das Paneleiras de Goiabeiras (APG). O
reconhecimento é na categoria Indicação de Procedência (IP). A certiicação protege
208 | Reflexões sobre arte e cultura material
de origem do produto visando à sua proteção contra imitações; 15. Tratar os problemas
relativos à embalagem e ao transporte das panelas de barro.
22
O Iphan, através de sua regional, tentou interceder nas negociações estabelecidas com o
Governo do Estado para a implantação de uma usina de tratamento de esgoto na região
do barreiro. O assédio do governo foi intenso e as Paneleiras acabaram se afastando do
grupo do Iphan que tentava orientá-las sobre os riscos de ceder o terreno. O Governo do
Estado, na época, acenou com benfeitorias e bens de consumo, inclusive com a montagem
do Restaurante das Paneleiras.
23
Baudrillard, 1993.
24
A Associação de Paneleiras de Goiabeiras (APG) ganhou reconhecimento internacio-
nal. Agora, o grupo possui o certiicado 2010 Best Practices – Dubai International Award
for Best Practices to Improve the Living Environment (2010 Melhores Práticas – Prêmio
Internacional de Dubai para Melhores Práticas para Melhoria das Condições de Vida),
distribuído pelo Município de Dubai, dos Emirados Árabes Unidos, e a Organização das
Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (UN-HABITAT).
25
Canclini, 1997.
Referências bibliográficas
APPADURAI, Arjun. A vida social das coisas. As mercadorias sob uma perspectiva
cultural. Niterói: EdUFF, 2008.
DIAS, Carla C. Panela de barro preta – a tradição das paneleiras de Goiabeiras. Rio
de Janeiro: Mauad X, 2006.
210 | Reflexões sobre arte e cultura material
Introdução
ríamos deinir como duas esferas cosmológicas: uma que diz respeito à
atuação dos próprios indígenas e outra especíica dos brancos. Essas esfe-
ras parecem regular a distribuição de elementos no cosmo. Assim, certos
materiais (como vidro, metais e plásticos) foram atribuídos aos brancos
durante o Tempo-Espaço das Origens e apenas esses seres podem hoje
produzi-los, com os Kaiowa podendo tão somente adquiri-los.
Uma terceira e última etapa espaço-temporal é o Ararapyre: o im do
mundo. Essa etapa, na verdade, está já em formação, constituindo um pro-
cesso, concomitantemente ao Áry Ypyrã. Existem indicadores da decadên-
cia do mundo devido a comportamentos e ações manifestadas pelos seres
imperfeitos, algo que, dependendo da situação, pode levar as divindades a
acelerar ou desacelerar a chegada do im do mundo. A atuação dos Kaiowa
é, nesse caso, decisiva, com os xamãs tentando persuadir os deuses a pos-
tergar esse evento nefasto ou, por outro lado, de acelerar sua chegada, no
caso em que se pretenda ascender de modo coletivo aos patamares (yváy)
de além Yvy Rendy.
Essas três etapas na história do universo permitem a construção de
um quadro moral que serve como ponto de referência para as ações dos
indivíduos e para o julgamento de suas experiências. Serve também para
orientar e distribuir hierarquicamente competências para executar ativida-
des e manifestar percepções do mundo. Nesses termos, se o Áry Ypy era
caracterizado pelas contínuas variações de comportamentos, substâncias e
formas, no Áry Ypyrã apenas os espaços onde vivem os seres imperfeitos
continuam manifestando o que os indígenas consideram uma instabilidade
desses três fatores. Os xamãs kaiowa airmam que os patamares onde vivem
os deuses e as almas dos próprios indígenas (antes do nascimento ou depois
da morte do corpo) são caracterizados pela ixidez e a constância, resultado
de um amadurecimento com relação ao Tempo-Espaço das Origens. Nes-
ses patamares, os comportamentos, as substâncias e as formas são perfeitos,
ou, melhor, plenos ou maduros (aguyje), como airmam os indígenas, algo
que os torna fonte de admiração e de imitação. São entendidos como belos
e benéicos, o que em guarani se expressa com a mesma palavra: porã, cujo
antônimo é vai, que signiica simultaneamente feio e maléico.
Outro fator importante nesse quadro é a relação entre o corpo e as
substâncias-sujeitos que o agenciam. Essas podem ser entendidas como
218 | Reflexões sobre arte e cultura material
Os chiru e as ogapysy
proper units of comparison are the system of settings, which have irst to be
discovered before they can be compared. his discovery helps to avoid the
problems that can arise from the discrepancy between our own analytic
concepts and those of the peoples whom we study, that is between ‘etic’ and
‘emic’ models.
Reflexões finais
Notas
1
Meliá, Grünberg & Grünberg, 1976; Susnik, 1979-80; Gadelha, 1980.
2
Susnik, 1979-80; Mura, 2006.
3
homaz de Almeida, 1991; Mura, 2006.
4
homaz de Almeida, 1991.
5
Mura, 2006.
6
Meliá, Grünberg & Grünberg, 1976; Susnik, 1979-80; Mura, 2006.
7
homaz de Almeida, 1991; Brand, 1997.
8
Mura, 2006. Wilk (1984) deine as unidades domésticas não a partir da corresidência,
mas pelas lógicas de cooperação entre seus membros. Assim, observa que na maioria dos
casos, uma unidade doméstica agrega mais de uma habitação, conigurando uma household
cluster.
9
Mura, 2000 e 2006.
10
Brand, 1997; homaz de Almeida, 2001; Mura, 2006; Barbosa da Silva, 2007.
11
homaz de Almeida, 2001.
12
Mura, 2006.
13
Ibid.
14
Mura, 2006 e 2010.
15
As informações contidas neste item procedem de Melià, Grünberg & Grünberg, 1976; e
Mura, 2006; bem como de entrevistas e conversas mantidas pelo autor com xamãs kaiowa.
16
O suixo rã indica futuro. Portanto, deve-se entender o tempo-espaço atual como o
futuro com relação àquele das origens.
17
Wilde, 2009.
18
Mura, 2010, p. 131.
19
Mura, 2006 e 2010.
20
Mura, 2006.
21
Mura, 2010.
22
Mura, 2000 e 2006.
23
Mura, 2006; Barbosa da Silva, 2007.
24
Mura, 2000.
Gerando formas | 231
25
Ibid.
26
Esta variação deve-se ao fato de que os índios não possuem técnicas e ferramentas
apropriadas para cortar as pranchas de ibra-cimento e, assim, fechar os ângulos exigidos
por tetos com mais de duas águas.
27
Mura, 2000 e 2006.
28
Ibid.
29
Palavra derivada de óga (casa) ypy (origem) sy (mãe).
30
Rapoport, 1994.
31
Ibid., p. 463.
32
Se nos é permitida uma metáfora, poderíamos dizer que o corpo visível do chiru é
como a ponta de um iceberg, em que a superfície do mar representaria a linha de divisão
interdimensional.
33
Ingold, 2007 e 2012.
34
Ingold, 2012, p. 29.
35
Ingold, 1995; Descola, 1992; Latour, 1994.
36
Descola & Pálsson, 1996.
37
Ibid., p. 2.
38
Mura, 2011.
39
Schwartz, 1978; Barth, 1987, 2000a, 2000b e 2005; Hannerz, 1992.
40
Barth, 2000a.
41
Barth, 2005.
42
Barth, 2000b.
43
Barth, 2000b.
44
Ibid., p. 109.
Referências bibliográficas
__________. Lines: the Brief History. Londres e Nova York: Routledge, 2007.
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.
SILVA, Alexandra Barbosa da. Mais além da ‘aldeia’: território e redes sociais entre
os Guarani do Mato Grosso do Sul. Tese de doutorado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social/Museu Nacional/UFRJ, 2007.
WILDE, Guillermo. Religión y poder en las misiones guaraníes. Buenos Aires: SB,
2009.
235
236 | Reflexões sobre arte e cultura material
lado, havia uma tendência a pensar essa relação como diádica, isto é, en-
volvendo um santo e um devoto, sem atentar para possíveis enredamentos
desse par de destaque em outros conjuntos de relações.
Ao recuperar as relações com os santos a partir das formulações en-
contradas em campo, pude perceber que a situação era mais complexa do
que o modelo promessa-graça-agradecimento deixava transparecer. Se a
troca é um momento dessas relações, o momento em que ela se torna mais
visível a um observador externo, ela não a esgota, nem representa a relação
sua totalidade. Os pedidos e os agradecimentos seriam, na verdade, menos
o objetivo inal da relação com os santos, e mais formas de sua manuten-
ção: “a gente está sempre pedindo e agradecendo alguma coisa”.10
Primeiro, a relação entre pedidos, agradecimentos, graças e devoção
era menos automática e linear. Nem todos os pedidos são promessas: a
promessa se paga, o pedido se agradece. Nem todos os que pedem a um
santo se consideram seus devotos: pode-se pedir a ele por sua especia-
lidade, ou por outra razão, sem que a pessoa se torne devota, bastando
pagar a promessa para se considerar quites. Por outro lado, os devotos de
um santo nem sempre precisam pedir as graças, mas podem recebê-las
mesmo assim. Nem tudo o que se pede é concedido, o que também pode
ser considerado uma graça, pois “o santo sabe o que é melhor para mim”.
E muitas vezes, não há nenhum pedido em jogo. Mas tudo aquilo que é
considerado graça – e que pode variar de coisas aparentemente pequenas,
como achar uma chave, a coisas espetaculares, como sair do coma sem se-
quelas – é agradecido, mesmo o que não for pedido. Além disso, a relação
não se dá necessariamente apenas entre o santo e o devoto: ela envolve
outras pessoas, pois se pode pedir por outros; pode-se pedir a mesma coisa
a vários santos; e muitas pessoas e diversos pedidos podem estar mobili-
zados diante de um mesmo problema. Há, portanto, redes de relações que
se articulam em torno do culto aos santos, e não apenas díades.
As nuances permitiram-me localizar as especiicidades da relação de
devoção.11 Há muitas maneiras de se relacionar com os santos, até mesmo
simpatias. Mas a devoção assume uma série de características distintivas
quanto às demais. Ela implica num vínculo duradouro e permanente de
uma pessoa com um santo, que envolve a idelidade, mas não a exclusi-
vidade, pois é possível se combinar devoções. Este vínculo é permanente
Reflexões sobre a imagem sagrada | 241
Apresentando o episódio
uma vândala inocente. Diferente dos vândalos normais por não terem a míni-
ma ideia de que estavam destruindo alguma coisa, os vândalos inocentes
[Elas] não acreditam ser possível nem necessário se livrar das imagens.
O que eles combatem é o congelamento das imagens, ou seja, extrair
uma imagem do luxo, e se tornar fascinado por ela, como se isso fosse
suiciente, como se todo movimento tivesse parado.
Lo hizo con toda la buena fe del mundo. Solo quiso darle un poco de color,
ya que la iglesia está en muy malas condiciones, hay goteras y salitres y
el Cristo se estaba deteriorando. […] Siempre ha tenido la pasión de la
pintura. Y lo hizo para que la iglesia quedara más bonita, para ayudar.45
256 | Reflexões sobre arte e cultura material
Notas
1
Agradeço a Patrícia Reinheimer e às demais colegas do CULTIS/UFRRJ o convite e
os estímulos para apresentar este trabalho. E a Daniel Bitter, pela enorme gentileza de
me ajudar com a edição das imagens. Este texto é fruto do projeto “Devoção e Formas
de sociabilidade nas festas e no cotidiano”, inanciado pelo programa Jovens Cientistas do
Nosso Estado, da Fundação de Amparo à Pesquisa Carlos Chagas Fo/FAPERJ.
2
Para que os leitores possam eventualmente localizar esses debates, eles têm sido ali-
mentados por livros como os de Strathern, 1990 e 1999; homas, 1991; Weiner, 1992;
Gell, 1998; Severi, 2007, ou em coletâneas tais como as de Appadurai, 1990; Marcus &
Myers, 1995; Miller, 1998 e 2005; Myers, 2001; Westermann, 2005; Tilley, 2006; Henare,
Holbraad, & Wastell, 2007; entre outros. Encontram-se ainda em números especiais de
periódicos clássicos da área, como o de Sciences Humaines, da primavera de 2002; o n. 165
de L’Homme, de 2003; o n. 2 do v. 54 de Social Analysis; o n. 13 de Gradhiva, de 2011; ou
o v. 14, de 2007, de Archeologial Dialogues; além, obviamente, de artigos em vários perió-
dicos de destaque na área. Ou ainda se torna visível no lorescimento de periódicos mais
especializados na temática, como Res – Anthropology and Aestethics, Journal of Material
Culture e Material Religion.
3
Para uma síntese dessas distintas abordagens, ver Tilley et al., 2006.
4
Como, por exemplo, no diálogo que o sociólogo Pierre Bourdieu e o artista plástico
Hans Haacke travaram em Livre-troca (Bourdieu & Haacke, 1995).
5
Westermann, 2005, p. vii.
6
El País, 21/08/2012.
7
El País, 23/08/2012.
8
Segundo a Wikipedia e o Dictionary.com, o termo meme vem de memético (imitativo)
e tem sua origem no livro do biólogo britânico Richard Dawkins, o Gene Egoísta, de
1976. Usado para unidades de evolução cultural que podem se autopropagar, meme se
refere a uma ideia ou elemento de comportamento social transmitido entre gerações em
Reflexões sobre a imagem sagrada | 257
uma cultura, especialmente por imitação. Ou a um item cultural que é transmitido por
repetição, em maneira análoga à transmissão biológica de genes. As imagens, os vídeos
e as músicas que se propagam rápida e maciçamente pela internet, muitas vezes com
alterações cômicas, têm sido chamados de meme (http://dictionary.reference.com/brow-
se/meme; http://en.wikipedia.org/wiki/Meme, capturado em 17/01/2013). Agradeço a
minha orientanda, Izabella Bosisio, o apoio na busca dessas deinições.
9
O interesse pelo culto aos santos levou à criação do GPAD – Grupo de Pesquisa em
Antropologia da Devoção. Para maiores informações, consultar: http://dgp.cnpq.br/
buscaoperacional/detalhegrupo.jsp?grupo=0202703R0U4BLX.
10
Joaquim: – “Toda vez que venho aqui, toco no quadro de Santo Antônio, que é um
quadro muito antigo, que tem uma grande energia, que é energizado. Passo e toco, agrade-
cendo por ter podido vir mais uma vez.” Renata: – “Mas então você não pede?” Joaquim:
– “Peço também. A gente está sempre pedindo, porque estamos sempre carentes. Hoje,
por exemplo, pedi pela pessoa que me trouxe até o convento, porque ela está muito mal,
teve um derrame e tem quarenta anos… E está sendo cuidada por uma ilha de 17 anos
que teve que parar de estudar para tomar conta da mãe, então é uma pessoa que precisa
muito, então eu pedi por ela”. ( Joaquim, entrevista realizada em 7/6/2001 no Convento
de Santo Antônio, Largo da Carioca, centro do Rio de Janeiro). É preciso reconhecer que
trabalhos dos anos 1980 dedicados às religiões populares, como os de Carlos Rodrigues
Brandão e os de Rubem César Fernandes, apontavam na direção dessa complexidade,
embora não tenham ampliado suas relexões.
11
As formulações sobre devoção aqui apresentadas sumariam os capítulos 9 e 10 de meu
livro A dinâmica do sagrado (Menezes, 2004).
12
Revel, 1996.
13
Ibid., p. 20.
14
Um tipo de jogo como esse não implica apenas em vantagens. Ele também pode trazer
problemas: há o risco da ingenuidade na “descoberta permanente da pólvora”, isto é, de,
por desconhecimento das especiicidades de um campo de discussões, refazer questões
que há muito já foram tratadas, não conhecendo o acúmulo de conhecimento diante de
determinado tema ou conceito. Para um jogo de percurso, há um esforço de tradução
e socialização que precisa ser feito, sob pena de pensarmos estar tratando das mesmas
coisas quando estamos tratando de coisas diferentes, e vice-versa. Mesmo assim, acredito
que este livro, bem como o seminário que lhe deu origem, sejam ocasiões propícias para
ensaiar jogos de percurso e apostar em seus resultados.
15
Agradeço a Marina Menezes Leite ter-me apontado essa nuance.
16
O coletivo se apresenta assim em sua página na internet: “Wallpeople es un proyecto de
arte colaborativo con base en Barcelona que invita a las personas a crear y a formar parte de un
momento único en un espacio urbano determinado. Nuestras acciones tienen como objetivo la
creación de obras callejeras irrepetibles gracias a las aportaciones de todos los participantes. Una
de las razones de ser de Wallpeople es devolver el arte a las calles y reivindicar el espacio público
como medio de expresión y de interacción ciudadana. Creemos que la creatividad es libre y no
debe quedarse encerrada en los museos” http://wallpeople.org/index.php/homenaje-a-ecce-
homo/, capturado em 28/01/2013.
258 | Reflexões sobre arte e cultura material
17
El País, 07/09/2012.
18
A representação como Mr. Bean pode estar associada a um ilme deste personagem, Mr.
Bean, o ilme, de 1997, em que ele, como funcionário de um museu londrino, vai aos Es-
tados Unidos para buscar um quadro para uma exposição e, no processo suja uma obra de
arte, ao espirrar sobre ela, e a deforma, ao tentar limpá-la. Depois tenta resolver o estrago
com um desenho seu, de caneta esferográica, por sobre a face do quadro. Essa associação
entre “trapalhadas” está presente de forma explícita em muitos comentários sobre o Cristo
de Borja em redes sociais, mas foi Ilana Goldenstein, a quem agradeço, que primeiro me
indicou a referência.
19
Blogue Vírgula, 31/10/2012.
20
Kaz, Roberto. Revista O Globo, 09/09/2012, p. 17.
21
La decisión [de cobrar ingresso para visitar a imagem] no ha gustado ni a la octogenaria
artista ni a su familia, que han decidido tomar acciones legales por entender que Cecilia, que
apenas sale a la calle por culpa de la repercusión mundial del eccehomo, debería cobrar derechos
de autor por la obra, puesto que la fundación recibe ingresos por un trabajo que ella ha realizado.
(El País, 19/09/2012).
22
Latour, 2008, pp. 112-113.
23
Latour, 2008, p. 128.
24
Os As são: “aqueles que querem libertar os crédulos – os que eles julgam ser crédulos –
do falso vínculo com ídolos de todos os tipos e forma […] [Eles] acreditam que não só é
necessário, mas também possível, prescindir inteiramente de intermediários e ter acesso
à verdade, à objetividade e à santidade. Eles pensam que sem estes obstáculos ter-se-á
inalmente acesso mais suave, mais rápido, mais direto à coisa real.” (Latour, 2008, p. 129).
25
“Os Bs [...] causam devastação nas imagens, rompem costumes e hábitos, escandalizam
os devotos […]. Mas a enorme diferença entre os As e os Bs [...] é que estes não acreditam
ser possível nem necessário se livrar das imagens. O que eles combatem é o congelamento
das imagens, ou seja, extrair uma imagem do luxo, e se tornar fascinado por ela, como
se isso fosse suiciente, como se todo movimento tivesse parado.” (Latour, 2008, p. 130).
26
“Os Cs também querem desacreditar, desencantar, destruir ídolos. [...] [Mas ao con-
trário dos As e dos Bs, eles não têm nada contra as imagens em geral: eles só se opõem à
imagem à qual seus oponentes aderem com mais força. É o bem conhecido mecanismo de
provocação: para destruir alguém com rapidez e eiciência máximas, basta atacar o que é
mais adorado, o que se tornou o repositório de todos os tesouros simbólicos de um povo.”
(Latour, 2008, p. 132).
27
“Eles desconiam de quaisquer distinções marcadas entre os dois polos; eles exercem
sua ironia devastadora contra todos os mediadores; não que queiram livrar-se destes, mas
porque estão muito conscientes de sua fragilidade.” (Latour, 2008, p. 135).
28
Latour, 2008, p. 134. Grifos da autora.
29
Gonçalves, 1988. No caso da Espanha, lembro-me de uma visita guiada à restauração
do pórtico da catedral de Santiago de Compostela, que iz em julho de 2009, em que a
guia nos explicou como a dimensão policromada das imagens era identiicada, e passava a
ser mencionada em registros, mas não era reproduzida pois, conforme foi dito, a política
Reflexões sobre a imagem sagrada | 259
de restauração espanhola não permitia a repintura, mesmo que para o retorno a cores
originais. Pobre dona Cecília! Justo num país com essa concepção de patrimônio foi exer-
citar seus cuidados!
30
Latour, 2008, p. 130.
31
Latour, 2008, p. 131.
32
Latour, 2008, p. 135.
33
Ibid., pp. 135-136.
34
Favret-Saada, 1994 e 2007. A única referência a blasfêmia que encontrei no material
levantado foi feita por María Giménez, irmã de dona Cecília, referindo-se, contrariada,
à falta de respeito das variantes cômicas lançadas na internet, mas não à restauração de
Borja (El País, 25/08/2012). A Igreja não usou a categoria para se referir ao fato.
35
Favret-Saada, 1994, p. 29.
36
El País, 23/08/2012.
37
Favret-Saada, 1994, p. 27.
38
Belting, 2012, p. 32.
39
Belting, 1988.
40
Ibid.
41
Belting, 2005.
42
Belting, 1988 e 2012.
43
Schmitt, 2007, pp. 44-45.
44
Montes, 2010, pp. 18-20. Grifos da autora.
45
El País, 23/08/2012.
Referências bibliográficas
BELTING, Hans. O im da história da arte – uma revisão dez anos depois. São
Paulo: Cosac Naify, 2012.
__________. Image et culte. Une Histoire de l’art avant l’époque de l’art. Paris: Cerf,
1988.
260 | Reflexões sobre arte e cultura material
GELL, Alfred. Art and Agency: an Anthropological heory. Nova York e Londres:
Clarendon Press, 1998.
MARCUS, George E.; MYERS, Fred R. he traic in culture: reiguring art and
anthropology. Berkeley: University of California Press, c.1995.
STRATHERN, Marilyn. he Gender of the Gift: Problems with Women and Problems
with Society in Melanesia. Berkeley: University of California Press, 1990.
Jornais citados
__________, “La restauradora del eccehomo de Borja quiere su parte del pastel”
publicado em 19/09/2012. Acesso em 10/10/2012. http://cultura.elpais.com/
cultura/2012/09/07/actualidad/1347035155_147259.html
Home-pages citadas
https://www.facebook.com/FasDaDonaCeciliaRestauradoraDoCristoDeBorja.
Acesso em 21/01/2013.
http://www.naosalvo.com.br/compilado-do-meme-jesus-restaurado/, Acesso em
21/01/2013.
http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos/a-arte-e-o-legado-de-cecilia-
de-borja. Acesso em 21/01/2013. [Girassóis, de Van Gogh]
http://virgula.uol.com.br/ver/noticia/inacreditavel/2012/10/31/312258-
restauracao-frustrada-de-ecce-homo-faz-sucesso-como-fantasia-de-halloween.
Acesso em 28/01/2013).
Figuras extras
https://www.facebook.com/photo.php?fbid=282816175161841&set=a.2698304
29793749.54119.269828149793977&type=1&theater [Halloween]
https://www.facebook.com/photo.php?fbid=270167173093408&set=a.2698304
29793749.54119.269828149793977&type=1&theater [Cristo Redentor]
Reflexões sobre a imagem sagrada | 263
https://www.facebook.com/photo.php?fbid=270962589680533&set=a.2700826
79768524.54191.269828149793977&type=1&theater [O Grito, de Munch]
https://www.facebook.com/FasDaDonaCeciliaRestauradoraDoCristoDeBorja
https://www.facebook.com/photo.php?fbid=280743902038968&set=a.2805991
58720109.62055.280597732053585&type=1&theater [Figura 4, hi art]
https://www.facebook.com/photo.php?fbid=280985135348178&set=a.2805993
32053425.62056.280597732053585&type=1&theater a criação de adão.
https://lh6.googleusercontent.com/-SaB968u6u7o/UD3YZKlgV4I/AAAAA
AABZU/GwgdjAveSVY/s662/restoration_he_Kiss_Gustav_Klimt.jpg [Klimt]
http://fantasticocenario.com.br/2012/08/22/idosa-restaura-cristo-de-borja-a
sua-propria-versao/ [Chewbacca]
http://arte-factoheregesperversoes.blogspot.com.br/2012_08_01_archive.html
[Mr. Bean]
Este livro foi impresso em papel ofset 90g,
com tipos Adobe Caslon e Trade Gothic,
pela psi7, em São Paulo.