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Manifestações artísticas e ciências sociais:

Relexões sobre arte


e cultura material
Manifestações artísticas e ciências sociais:

Relexões sobre arte


e cultura material

Patrícia Reinheimer e Sabrina Parracho Sant’Anna (organização)


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2013

Conselho editorial:
Nilton Silva dos Santos (PPGA-UFF), Lígia Maria de Souza Dabul (PPGAS-UFF),
Kadma Marques Rodrigues (UECE) e Caleb Faria Alves (IFCH-UFRGS)

Produção editorial:
Livraria e Edições Folha Seca
37, rua do Ouvidor, 37
Centro – 20010-150 – Rio de Janeiro, RJ
tel.: (21) 2507-7175
folhaseca@livrariafolhaseca.com.br
Revisão: Frederico Hartje e Fernanda Mello
Apoio técnico: Ana Paula Reis
Projeto gráfico e composição: Leo Boechat
Capa: Patrícia Reinheimer sobre gravura de Olly Reinheimer, s.d.

M278 Manifestações artísticas e ciências sociais: relexões sobre arte e cultura


material / organização de Patrícia Reinheimer e Sabrina Parracho
Sant’Anna. – Rio de Janeiro: Folha Seca, 2013.
264p. : il.

Inclui bibliograia
ISBN 978-85-87199-21-8

1. Cultura. 2. Cultura: Sociedade. I. Reinheimer, Patrícia.


II. Sant'Anna, Sabrina Parracho. III. Título.

CDD 306
Sumário

Introdução 7
Alessandra Rinaldi, Ana Paula Alves Ribeiro, Carly Machado e Patrícia Reinheimer

Arte, sociedade e valores


Nathalie Heinich: o fenômeno artístico como uma sociológica 15
Patrícia Reinheimer (CULTIS, PPGCS e DCS-UFRRJ)

Da visibilidade: excelência e singularidade em regime midiático 23


Nathalie Heinich (CNRS, CRAL-EHESS)

Luiz Fernando Dias Duarte: das redes do suor às “artes ambientais” 39


Naara Luna e Patrícia Reinheimer (CULTIS, PPGCS e DCS-UFRRJ)

Artes ambientais e sociedade: paisagem como projeto no Ocidente 47


Luiz Fernando Dias Duarte (PPGAS-MN-UFRJ)

Algumas perspectivas sobre artes


Algumas perspectivas sobre artes: institucionalização
e identidade disciplinar 63
Sabrina Parracho Sant’Anna (CULTIS, PPGCS e DCS-UFRRJ)

Os dois lados do concretismo 73


Glaucia Villas Bôas (UFRJ)

Gastronomia e sociedade de consumo. Tradições culturais brasileiras


e estilos de vida na globalização cultural 89
Maria Lucia Bueno (UFJF)

Objetos e processos: de testemunho objetivo de uma realidade interior


a agentes de transformação subjetiva 111
Patrícia Reinheimer (CULTIS, PPGCS e DCS-UFRRJ)

De artefato à obra de arte: a inserção de objetos indígenas no sistema


internacional das artes 137
Ilana Goldstein (FGV-SP-SENAC)
Arte e cultura material
Objetos, pessoas e valores: arte e cultura material 163
Carly Machado (CULTIS, PPGCS e DCS-UFRRJ)

Cultura popular em trânsito: circulação e estetização de práticas


performativas e objetos rituais entre folias de reis 173
Daniel Bitter (UFF)

A produção de si na fabricação de objetos materiais 193


Carla Dias (EBA-UFRJ)

Gerando formas: conceituações kaiowa sobre a relação entre


substâncias, forças e ações no universo 211
Fábio Mura (UFPB)

Reflexões sobre a imagem sagrada a partir do “Cristo de Borja” 235


Renata de Castro Menezes (PPGAS-MN-UFRJ)
Introdução

Alessandra Rinaldi, Ana Paula Alves Ribeiro,


Carly Machado e Patrícia Reinheimer

Na sociedade contemporânea, o interesse pelos processos de criação, cir-


culação e consumo de produções artísticas e da cultura material vem se fa-
zendo perceber de forma progressiva entre antropólogos e sociólogos. São
muito variadas as perspectivas a partir das quais se pode apreender e estu-
dar a cultura material e as manifestações artísticas. Nota-se uma amplia-
ção tanto das interpretações que passaram a olhar para a cultura material
e as artes como questões centrais de qualquer análise sociológica ou antro-
pológica quanto daquelas que reletem sobre os bens artísticos e a cultura
material como fenômenos de especial relevância para a compreensão dos
grupos que os produzem, admiram, trocam e/ou consomem.
Resultado do seminário Manifestações Artísticas e Ciências Sociais: re-
lexões sobre arte e cultura material organizado na UFRRJ pelo Núcleo de
Pesquisa CULTIS e patrocinado pela Capes, os artigos reproduzidos nes-
te volume por vezes tangenciam, outras aprofundam algumas das dimen-
sões que constituem este amplo campo de relexão: o papel da arte e da
cultura material, das coleções e dos museus, na construção de identidades,
na relação com os valores religiosos, nas políticas públicas, no estabele-
cimento de representações acerca do produtor artístico, na delimitação e
autonomização do campo artístico, entre outros temas que vêm consoli-
dando arte e cultura material como objetos “bons para pensar”.
O seminário foi aberto com as palestras de Nathalie Heinich e Luiz
Fernando Dias Duarte, autores com trajetórias distintas* que se debru-
çaram com ênfases diferenciadas sobre o tema do fenômeno artístico.

*Apresentadas neste volume por Naara Luna e Patrícia Reinheimer.

7
8 | Reflexões sobre arte e cultura material

Enquanto Nathalie Heinich construiu sua trajetória intelectual toman-


do este como campo privilegiado de investigação, Luiz Fernando Dias
Duarte apresenta a criação artística como tema recente de interesse sis-
temático. Os trabalhos desses autores nos apresentam o fenômeno da
criação artística a partir de um amplo escopo no qual é possível investi-
gar processos de produção e reprodução de valores, sensibilidades e prá-
ticas, assim como a circulação de pessoas, objetos e valores. Vemos ainda,
a partir do cotejamento dos dois trabalhos aqui apresentados por esses
autores, como a categoria “visibilidade” pode ser tomada tanto como uma
perspectiva de constituição de uma interioridade, um “olhar sentimen-
tal”, que produz relações particulares dos agentes com o mundo, quanto
como um dispositivo de transformação da reputação por meio das novas
tecnologias e mídias.
O seminário contou ainda com duas mesas compostas por pesquisa-
dores que se interessam pela relação entre arte e ciências sociais no Brasil:
1) Algumas perspectivas sobre artes: institucionalização e identidade discipli-
nar e 2) Objetos, pessoas e valores: arte e cultura material. A partir de uma
apresentação destas mesas e das questões nelas suscitadas, pretendemos
aqui colocar, à guisa de introdução a este livro, um panorama dos debates
que ele se propõem a suscitar e com os quais pretende contribuir.

Cultis: da diversidade de projetos aos objetivos


em comum

Algumas experiências acadêmicas surgem e tomam forma a partir de con-


vergências temáticas explícitas, do tipo que provocam a célebre frase mui-
to ouvida no meio: “precisamos fazer algo juntos!”. Outras não. O Núcleo
de Pesquisa CULTIS é um caso deste segundo tipo. Sua formação se deu
a partir de diferenças explícitas e convergências insinuadas. Seu amadu-
recimento pauta-se na construção de relações acadêmicas, conceituais, te-
máticas e pessoais, que vêm conirmando a riqueza do desaio a que se
propuseram estas pesquisadoras. Fazer parte do CULTIS signiica pro-
vocar no outro um olhar sobre seu campo de estudos, e ser provocado, na
mão inversa, por outros tantos objetos de pesquisa e formas de trabalhar
para, no inal do processo, render-se ao desaio de fazer-se novo e o mes-
Introdução: apresentação CULTIS | 9

mo continuamente. O seminário Manifestações Artísticas e Ciências Sociais,


o terceiro da série de seminários organizados pelo CULTIS,** foi mais
um desses momentos.
As pesquisadoras que constituem o Núcleo de Pesquisa em Cultura,
Identidade e Subjetividade – CULTIS-UFRRJ investigam a produção de
sujeitos a partir dos conceitos de cultura, identidade e subjetividade, por
meio de práticas e representações sociais com respeito a criação artística,
direito, religião, família/parentesco, corpo, tecnologias. O núcleo se estru-
tura em três linhas: 1) o enfoque da criação artística – valores, práticas,
instituições e os campos por ela constituídos; 2) a produção de sujeitos nas
famílias e instituições; 3) direito e religião como sistemas constituintes de
subjetividades, identidades e práticas sociais. Articulando essas diferentes
dimensões, o CULTIS conta com a participação das seguintes pesquisa-
doras: Alessandra de Andrade Rinaldi, Carly Barboza Machado, Naara
Luna, Patrícia Reinheimer, Sabrina Marques Parracho Sant’Anna e com
a colaboração de Ana Paula Alves Ribeiro, todas da Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
As componentes do CULTIS fazem parte do curso de Graduação em
Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
(PPGCS), sediados na UFRRJ, e suas pesquisas propõem o estudo sobre
saberes e práticas cotidianas, bem como sobre mentalidades e moralidades
emergentes no mundo contemporâneo. Nessas pesquisas são contempladas
as diversas formas por meio das quais os sujeitos sociais se constituem e se
relacionam em âmbito social, assim como as distintas práticas e represen-
tações pelas quais os indivíduos atribuem sentido ao mundo. Sua produção
abrange ainda a análise das dinâmicas entre indivíduo e instituições e os
efeitos intencionais e não intencionais que determinados vínculos, desins-
titucionalizações e reinvenções produzem na esfera individual com res-
sonância na vida social. São vislumbradas também as variadas formas de
produção, transmissão, recepção e difusão da cultura; as análises sobre a
ordenação do espaço, práticas sociais e representações do mundo, além de

** Em junho de 2011 o CULTIS organizou o seminário “Famílias: formações contempo-


râneas” e em maio de 2012: “Constituição de sujeitos e moralidades”.
10 | Reflexões sobre arte e cultura material

estudos sobre a institucionalização de ritos e sobre a produção da cultura


material. Tudo isso a partir de variados universos empíricos.
Dos projetos realizados em conjunto, ressalta-se o projeto inanciado
pela Faperj de extensão e pesquisa Sem nome do pai. Por meio desta inicia-
tiva analisamos junto aos jovens e adolescentes entre 15 e 18 anos, mora-
dores de Seropédica, que não possuam o registro paterno, a forma como
vivenciam tal situação. Além disso, procura-se desenvolver competências
de utilização da linguagem audiovisual em jovens para que, por meio de-
las, esses possam formular os sentidos da iliação e da parentalidade. Há
investimento na promoção de mobilização e participação social através
da produção cultural audiovisual como caminho para o fortalecimento
das vozes dos atores envolvidos na questão do sub-registro paterno. Por
meio de oicinas de capacitação em técnicas e linguagens audiovisuais, o
projeto visa criar um diálogo entre a cidade de Seropédica e a UFRRJ.
Almeja-se, assim, a articulação das práticas e os saberes universitários
com as demandas da população. Como produto inal, pretende-se que
os participantes das oicinas de audiovisual produzam um documentário
sobre suas experiências de iliação e parentalidade.
A ausência do registro paterno no Brasil é atualmente tratada pelo
Estado como uma das principais condições sociais associadas ao risco e à
delinquência de jovens, tendo mobilizado uma intervenção estatal incisiva
visando reverter esse quadro de sub-registro. No entanto, mais do que um
vazio problemático, a ausência do registro paterno conigura um modo de
vida, uma “presença social” cujas razões e consequências devem ser politica-
mente discutidas a partir da experiência concreta daqueles que a vivem. As
oicinas de vídeo do núcleo de pesquisa CULTIS se propõem desenvolver
competências de utilização da linguagem audiovisual a partir da produção
fotográica e de vídeos de curta duração utilizando a linguagem das mídias
digitais de fácil acesso, tais como celulares e point and shoot câmeras. Essas
oicinas tiveram suas formas de apreensão intensiicadas através das redes
sociais, multiplicando seu impacto e desdobrando-se numa mostra organi-
zada pelos próprios participantes da oicina. Essa experiência fez a posição
de “realizadores” se deslocar entre os diversos agentes envolvidos, inserindo
no escopo geral da proposta e no documentário em vista novas temáticas
não previstas inicialmente, como a universidade, a cidade e a relação dessas
com seus moradores.
Introdução: apresentação CULTIS | 11

A produção desse documentário etnográico supõe a união dos dis-


tintos interesses das pesquisadoras envolvidas no projeto num sistema de
representação no qual se pode tratar as temáticas especíicas da família e
da parentalidade expressando, por meio de imagens e sons, as experiências
dos participantes das oicinas de vídeos.
Ainda em andamento, o documentário pronto será, como esse livro e
o seminário do qual foi resultado, Manifestações Artísticas e Ciências Sociais:
relexões sobre arte e cultura material, a concretização de um projeto comum
formulado a partir dos interesses diversos das pesquisadoras. Vemos assim
que a diversidade de projetos e interesses não é excludente de objetivos
comuns.
Por meio deste seminário, as “cultianas” propuseram levar aos estu-
dantes de graduação e pós-graduação das áreas de humanidades alguns
debates contemporâneos acerca da arte e da cultura material. O obje-
tivo foi colocar em contato pesquisadores e pesquisas as mais diversas,
estimulando o interesse sobre essa área de debates e, ao mesmo tempo,
solidiicando um campo de trabalho deste novo, porém produtivo, núcleo
de pesquisa.
Esperamos que os trabalhos aqui apresentados e discutidos coloquem
em evidência a indissociabilidade das manifestações artísticas e da cultura
material e suas interações com outros fenômenos sociais, assim como sua
riqueza como objeto de investigação para as ciências sociais.
Arte, sociedade e valores
Nathalie Heinich: o fenômeno artístico
como uma sociológica

Patrícia Reinheimer (CULTIS, PPGCS e DCS-UFRRJ)

Nathalie Heinich nasceu em Marselha, em 1955. Atualmente é diretora


de pesquisa no Centro de Artes e Línguas (CRAL) do Centro Nacio-
nal de Pesquisas Cientíicas (CNRS). Em sua trajetória, especializou-se
em sociologia das proissões artísticas e práticas culturais (artista, estatuto
do autor, identidade pública dos museus, percepção estética), desenvol-
veu relexões sobre a crise de identidade (provas de deportação, adesão
à reputação, construção iccional, modelos identitários), a epistemologia
das ciências sociais (Elias, Bourdieu, Sociologia da Arte) e sociologia dos
valores. É cofundadora da revista de Sociologia da Arte e vice-presidente
do Comitê de investigação em Sociologia da Arte, da Associação Interna-
cional de sociólogos de língua francesa (AISLF).
Em seu doutorado, pela École des Hautes Études en Sciences So-
ciales (EHESS), Paris, defendido em 1981, a autora dedicou-se a uma
pesquisa sobre a história social do conceito de artista, na qual procura
mostrar o caráter socialmente construído da noção de arte e artista no
século XVII, na Europa. Publicada em 1993, essa pesquisa resultou no
livro Du peintre à l’artiste. Artisans et académiciens à l’âge classique,1 no
qual procurou desnaturalizar o imaginário social que sustenta a moderna
concepção de artista.
Parte de um projeto coordenado por Pierre Bourdieu para mostrar a
constituição do campo da pintura de meados do século XVII ao inal do
século XVIII, esse trabalho de Heinich reforçou a tese de que o imagi-
nário social em torno da arte e do artista, que tem menos de 200 anos, é
constituído por uma série de imagens e suposições que relacionam o su-
posto talento inato do “gênio criativo” a um estilo de vida boêmio, no qual
15
16 | Reflexões sobre arte e cultura material

a pobreza material é a garantia invertida de um legado espiritual. Heinich


não aderiu, entretanto, a uma militância sociológica de denúncia do ima-
ginário em favor de uma realidade social. Ao contrário, argumentou que
esse imaginário social produz efeitos reais.2
Para entender a passagem do “artesanato” às “belas-artes” e do “pin-
tor” ao “artista”, a autora procurou identiicar os efeitos sobre a prática e a
percepção dessa prática: como mudou a hierarquia dos pintores e sua re-
lação com talento, dinheiro, clientes, seu nome e sua autoimagem? Como
evoluiu o olhar para a pintura e como foram, pouco a pouco, cunhados os
termos “belas-artes” e “artista”? Os artistas são observados como membros
de uma categoria que determina seu estatuto, ao mesmo tempo, contri-
buindo em parte para deinir e transformar essa categoria.
Para a autora, a arte é um fenômeno sui generis por permitir observar
em seu espaço social uma série de valores antinômicos, como o individual
oposto ao coletivo, o sujeito ao social, a interioridade à exterioridade, o
inato ao adquirido, o dom natural e as aprendizagens culturais. A presen-
ça dessas antinomias dentro do próprio mundo artístico é para Heinich
o desaio que faz da arte, mais do que outros objetos, um campo propício
para a revisão de certas posturas sociológicas. Observar os valores artísti-
cos seria tomar o fenômeno artístico como uma ideologia do social, uma
“socioideologia”.3
Assim, no livro A glória de Van Gogh (1991), Heinich rompe com a
ideia de mostrar o processo de constituição da história do artista, para uti-
lizar a trajetória do pintor a im de investigar a transformação do que a
autora denomina paradigma clássico em moderno. Apresentando o deslo-
camento do interesse no objeto artístico para a pessoa do criador por meio
da noção de singularidade, na qual originalidade, unicidade, personalidade,
individualidade, transgressão das convenções começaram a ser considera-
das qualidades, e não equívoco, a autora apresentou as condições de possi-
bilidade para o surgimento desses valores no inal do século XIX.
Por intermédio de Van Gogh, a autora observou um período de
rompimento dos critérios do gosto: “Uma demarcação fundamental en-
tre o ‘bom’ e o ‘mau’ que não se operava mais sobre uma escala unilateral
opondo a boa pintura (esclarecida pela academia) à má pintura (engana-
da pela mistiicação), mas sobre uma dupla escala superposta, ao critério
O fenômeno artístico como uma sociológica | 17

tradicional dos valores comuns reproduzidos pela aprendizagem acadê-


mica e o critério moderno dos valores raros que se inventam na ruptura
reiterada com os cânones, na criação individualizada de novas formas de
fazer 4.”Esse rompimento com determinada forma de apreciação estética
teria marcado a passagem de um sistema de valores que privilegia uma
excelência “relativa”, medida pela comparação com os pares e os represen-
tantes da tradição, para um sistema que privilegia uma excelência “absolu-
ta”, que só admite a comparação com outro pelo negativo.
Para compreender a ruptura com a forma de apreciação estética que
marca a passagem do tradicional ao moderno, a autora usa um sistema de
referências baseado na tensão entre uma natureza “doméstica” da tradição
acadêmica – com o privilégio relacionado à proximidade, à antiguidade,
à manutenção da ligação existente na comunidade – que se superpõe aos
critérios de avaliação pictórica da natureza “inspirada” da inovação mo-
derna – com o privilégio dado à distância em relação à rotina, à novidade,
à invenção individual de competências inéditas. Assim, ela apresenta duas
maneiras antinômicas de construir a grandeza em matéria de criação, que
se apóiam na técnica de um lado e na originalidade de outro, como formas
opostas de construção do valor artístico.
A autora chama de “efeito Van Gogh” as propriedades transferidas
para outros artistas, antes e depois dele. A própria ideia do sofrimento do
qual surge a obra de arte vem em grande medida desse mito. Excesso, per-
sonalidade, subjetividade, originalidade, loucura, mistério, marginalidade:
signos da raridade privilegiados pela crítica que insiste no fato de Van
Gogh escapar ao ordinário. Esse seria o novo paradigma manifesto numa
série de deslocamentos do valor artístico: da obra à pessoa, da normalida-
de à anormalidade, da conformidade à raridade, do sucesso à incompreen-
são e do presente (espacializado) à posteridade (temporalizada). Essas são,
para a autora, as características de um regime da singularidade, do qual o
mundo da arte passa a funcionar, principalmente a partir do século XX.
Após os códigos da representação clássica, depois da própria igu-
ração, a partir da Segunda Guerra Mundial são as fronteiras da arte que
foram sistematicamente colocadas à prova. Enquanto a distinção entre o
clássico e o moderno foi importante para o século XIX, a distinção entre
o moderno e o contemporâneo foi importante para o século XX. E é isso
18 | Reflexões sobre arte e cultura material

que Nathalie Heinich trabalhou nos livros Le Triple jeu de l’art contempo-
rain (1993) e Pour en inir avec la querelle de l’art contemporain (2000).
Uma série de valores e antivalores que incluem o respeito e o des-
respeito, a adesão e a crítica constituem os critérios de participação no
jogo da arte contemporânea: repetição e inovação, referência aos mes-
tres e demarcação em relação ao passado, unicidade da obra e multipli-
cação em série, personalidade e recusa da expressão, criação e imitação,
inspiração e constrangimento, bom gosto e vulgaridade, materialidade e
imaterialidade dos objetos, perenidade e o caráter efêmero da obra, di-
ferenciação entre obra de arte e objetos do mundo ordinário ou redução
das fronteiras entre uns e outros, convenção do quadro de cavalete ou re-
cusa dos suportes convencionais, interioridade e empréstimo, sinceridade
e cinismo, inocência e oportunismo, esteticismo e trivialidade, emoção
e neutralização dos afetos, integridade mental e alienação, seriedade e
derrisão, iguração e abstração, respeito e desconstrução dos cânones da
representação – tornando o jogo da arte contemporânea um terreno de
escolhas para observar a articulação entre fronteiras cognitivas para além
de suas fronteiras tradicionais e o registro de valores, mais ou menos au-
tônomos e heterônomos.
A arte contemporânea forma assim um mundo altamente especiali-
zado que remete a uma tradição especíica acessível apenas a um número
pequeno de especialistas, bem longe dos especialistas éticos e estéticos do
grande público e das exigências de universalidade que estruturam o senso
comum da arte. É em certa medida com base nessa especialização e nas
prerrogativas atribuídas aos produtores artísticos no século XX que a au-
tora desenvolve uma investigação sobre a noção de elite.
O debate acerca dessa noção se inaugura com o livro L’élite artis-
te (2005). Ali ela trata de questões como hierarquia e igualdade, elite e
democracia. Sua intenção é fazer sociologia a partir da arte, e não me-
ramente tomar a arte como objeto sociológico. Assim, a autora classiica
esse trabalho como sociologia dos valores e ciência política, isto é, toma
o fenômeno artístico como um campo de investigação de forma a contri-
buir, conceitual ou metodologicamente, para essas disciplinas.
Heinich relaciona o tema da luta pela “liberdade” do artista ao período
revolucionário francês. As regras legislativas requeriam que as obras fossem
O fenômeno artístico como uma sociológica | 19

registradas antes de serem comercializadas. Esse sistema foi objeto de uma


disputa em torno da ideia de uma liberdade que não podia ser compreen-
dida como privilégio, no momento em que estes estavam sendo abolidos.
A solução encontrada foi afastá-la do sinônimo “liberalidade” – por oposi-
ção aos constrangimentos corporativos –, reconhecendo a particularidade
da atividade artística, isto é, sua autonomia: não mais liberal, mas libertá-
ria – a liberdade como especiicidade da arte, isto é, a não subordinação da
arte a critérios heterônomos.
Para aplicar a noção de elite aos criadores artísticos, Heinich faz uma
revisão da trajetória histórica dessa categoria sociológica: após a Revolu-
ção Francesa e a abolição dos privilégios, a distribuição de condições em
função do pertencimento a categorias de nascimento começou a se des-
fazer. Em seu lugar, surgiu uma tendência à individualização das posições
que possibilitou a superposição da promoção individual pela competência
e o trabalho à herança do nome e dos bens pelo nascimento.
Desde então, a noção de excelência foi se complexiicando por ques-
tionar a natureza da elite e sua justiicação. A normatividade na qual a
noção de elite é mergulhada deriva das ambivalências ali inscritas: entre
valorização da excelência e princípio de igualdade, entre admiração e crí-
tica, entre identiicação e inveja. A normatividade pode ser percebida
no nível semântico com as conotações marcadamente negativas, como no
adjetivo “elitista” ou na expressão “classe dominante”. A adoção do termo
elite na análise empreendida pela autora pode ser tomada como mais uma
forma de se afastar dos pressupostos de uma sociologia da suspeição para
investigar os valores que sustentam o fenômeno observado.
Para superar as diiculdades que a noção de elite coloca ao cientista
social, por estar referida ao pertencimento diferenciado, sendo ao mesmo
tempo irredutível ao exercício do poder por parte de uma classe social,
Heinich usa o conceito de “coniguração” 5 que designa um espaço de re-
lações entre indivíduos ocupando posições eminentes. “Esses indivíduos,
fortemente selecionados em suas categorias ou pertencendo eles mesmos
a categorias seletas, estão em relação, efetiva ou potencial (podendo se fre-
quentar), possuindo recursos eventualmente muito diferentes: banqueiros,
ministros, altos funcionários, homens de letras, artistas, podem se perceber
e ser percebidos como elite, apesar da heterogeneidade de suas ocupações.
20 | Reflexões sobre arte e cultura material

A ênfase dessa concepção é então colocada na dimensão relacional 6.” “Eli-


te” deixa de ser uma categoria substancial para se tornar uma saliência no
interior de diferentes categorias sociais.
Dessa perspectiva, existe uma pluralidade de elites, podendo cada
uma ser função de sua inluência, riqueza material ou prestígio. O texto
da autora aqui apresentado é o resumo de seu novo livro, De la visibi-
lité: excellence et singularité en régime médiatique, que retoma a investigação
acerca dessa noção para observar como a difusão em grande escala das
imagens mudou a concepção de celebridade constituindo uma nova elite
no mundo contemporâneo: aquela fundada na produção tecnológica de
uma ubiquidade que modiica em profundidade múltiplas dimensões da
vida social. Esse elitismo “midiático” do inal do século XX seria uma nova
forma de singularidade, dissociada da excelência que fundamentava aque-
la outra elite, a dos artistas.12

Notas
1
Heinich, 1993. Paris, Minuit, coll. Paradoxe.
2
Rockhill, 2010.
3
Heinich, 1998.
4
Heinich, 1991, p. 24.
5
Elias, 1980.
6
Heinich, 2005, p. 258.
7
Heinich, 2005.

Referências bibliográficas

BOLTANSKI, Luc; THEVENOT, Laurent. De la justiication. Les economies de


la grandeur. Paris: Gallimard, 1991.

ELIAS, Norbert. Introdução à sociologia. Lisboa: Edições 70, 1980.

GOFFMAN, Ervin. Frame Analysis: An Essay on the Organization of Experience.


Londres: Harper and Row, 1974.
O fenômeno artístico como uma sociológica | 21

HEINICH, Nathalie. De la visibilité, Excellence et singularité en régime média-


tique. Paris: Gallimard, 2012.

__________. L’élite artiste. Excellence et singularité en régime démocratique. Paris:


Gallimard, 2005

__________. La sociologie de l’art. Paris: Édition la Découverte, [2001] 2004.

__________. Le triple jeu de l’art contemporain. Sociologie des arts plastiques. Paris:
Éditions de Minuit, 1996.

__________. La faute, l’erreur, l’échec: les formes du ratage artistique In: Sociolo-
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__________. Du peintre à l’artiste. Artisans et académiciens à l’âge classique. Paris:


Éditions de Minuit, 1993.

__________. Ce que l’art fait à la sociologie. Paris: Éditions de Minuit, 1998.

__________. La gloire de Van Gogh. Essai d’anthropologie de l’admiration. Paris:


Éditions de Minuit, 1991.

ROCKHILL, Gabriel. Machete Interview with Nathalie Heinich For a


Comprehensive Sociology of Artistic Imaginaries In Machete, vol. 2, n. 12,
vol. 2., n. 13, Philadelia, USA, 2010. http://machetegroup.iles.wordpress.
com/2011/10/heinich-interview-machete.pdf

SIMMEL, Georg. 1971. Freedom and the individual In: On individuality and
social forms. Donald N. Levine (ed.) Chicago University Press, 1971.
Da visibilidade: excelência e singularidade
em regime midiático
(em versão condensada)

Nathalie Heinich (CNRS, CRAL-EHESS)


Tradução de Roberta Ceva

Por muito tempo, na história da humanidade, a celebridade não passou


– ou só excepcionalmente – pela visibilidade, pela difusão do rosto e do
nome no espaço público – mas pela reputação, a difusão do nome e dos
relatos associados ao grande homem. Antes da intervenção dos modernos
meios de reprodução da imagem, há um século e meio, a visibilidade do
grande homem limitava-se a seu nome e à sua biograia, às suas represen-
tações esculpidas, pintadas ou gravadas, e, eventualmente, à sua presença,
para aqueles que tinham a oportunidade de cruzar seu caminho.
A invenção e, em seguida, a expansão em grande escala do retrato
fotográico transformou profundamente as modalidades tradicionais da
celebridade, que passou a assumir a forma de uma reprodução relativa-
mente precisa dos traços do rosto, em número indeinido. A partir de
meados do século XIX, multidões incontáveis puderam reconhecer um in-
divíduo sobre o papel, associando um rosto a um nome conhecido. Desse
modo, formaram-se paralelamente comunidades de admiração poten-
cialmente imensas e objetos de admiração ainda mais singularizados e
valorizados quanto mais amplamente reconhecidos. É graças a essa nova
visibilização da celebridade que, no início do século XX, o “culto das es-
trelas” será criado.
A invenção da fotograia, em seguida do cinema, da televisão e, por
im, da internet, inaugurou uma nova era na história da nossa relação
com o mundo, estendendo desmesuradamente, no espaço e no tempo,
as possibilidades de presentiicação dos seres pela mediação de imagens
23
24 | Reflexões sobre arte e cultura material

altamente iéis à original. Essa fabricação técnica da ubiquidade em larga


escala tornou-se de tal modo familiar para nós que já não percebemos
seu caráter propriamente desconcertante – que teria chocado nossos an-
cestrais – nem as incontáveis consequências sobre nossa relação com o
mundo e com os outros, a extraordinária assunção do valor da celebrida-
de, que modiicou em profundidade a vida social em suas dimensões tan-
to hierárquicas quanto proissionais, econômicas, jurídicas, psicológicas,
políticas ou morais.
A extensão do domínio da celebridade, graças às técnicas de visibi-
lização, não se inscreve numa continuidade linear em relação às formas
tradicionais da reputação; ela se faz acompanhar, ao contrário, por uma
dupla ruptura, hierárquica e axiológica, na relação mantida com o segredo
e com a publicidade. A reputação no tempo, que garantia a posteridade
dos grandes homens muito após a sua vida terrestre, foi substituída em
algumas gerações pela visibilidade no espaço, que garante a mediatização
das estrelas muito além do local de sua presença física.
De maneira correlata, essa virada conjunta do tempo ao espaço e do
antigo ao novo se faz acompanhar por uma inversão hierárquica entre o
baixo e o alto, o vulgar e o nobre, em relação ao valor atribuído à repre-
sentação pública. Longe de representar, como antigamente, uma deca-
dência da dignidade, a exposição pública de sua própria imagem tornou-
-se, portanto – e mesmo para categorias que lhe eram tradicionalmente
refratárias –, um modo de engrandecimento.

O capital de visibilidade

Novo fenômeno, nova terminologia. Para pensar efetivamente a especii-


cidade das formas modernas da celebridade é preciso levar a sério sua di-
mensão de “visibilidade”, no sentido mais literal do termo – presente, aliás,
na etimologia do próprio termo “vedete”*: É o único que nos convém a
partir do momento em que não mais lidamos com o mundo intemporal da

* (N.T.) O termo francês vedette é utilizado pelo autor no texto original. Optou-se aqui por
traduzi-lo como “estrela”.
Excelência e singularidade em regime midiático | 25

celebridade, no qual os nomes contavam antes de tudo, mas com este novo
mundo no qual os rostos importam pelo menos tanto ou até mais que os
nomes – ainda que estes últimos permaneçam indispensáveis.
Se é importante insistir, por meio da noção de “visibilidade”, na re-
produtibilidade das imagens, é que estas últimas, porque reproduzidas,
suscitam uma expectativa de colocação em presença diante do “aqui e
agora do original”, para retomar a deinição de “autenticidade” segundo
Benjamin. A dimensão mediatizada da reprodução técnica cria uma dis-
tância fundamental entre o referente e o signo, o modelo e a imagem, o
real e a representação – de onde nasce o desejo de ser colocado na presen-
ça do original, uma vez que não se conhece senão a cópia. Essa expecta-
tiva engendra um investimento emocional considerável, o mesmo que, no
tempo em que a autenticidade ainda não tinha se tornado “o substituto
do valor cultural”, se aplicava às aparições e, na ausência delas, às relíquias
– estes substitutos da presença do santo.
Chamfort deinia a celebridade como “a vantagem de ser conheci-
do por aqueles que não te conhecem”. Eis o que nos leva a duas noções
tão fundamentais quanto indissociáveis: por um lado, o conhecimento ou,
antes, o “reconhecimento” pelo qual se associa um nome a um rosto e,
por outro, a dissimetria ou, dito de outro modo, a desigualdade numérica
entre “aqueles que reconhecem” e os “reconhecidos”. Com a visibilidade, a
imagem multiplicada confere grandiosidade e clama ao reconhecimento-
-identiicação, o qual possibilita, por sua vez, quando a situação o permite,
o reconhecimento-conirmação e o reconhecimento-deferência, ou mes-
mo o reconhecimento gratidão, quando o ídolo em pessoa concede o dom
de sua presença. O próprio das estrelas em regime mediático é a ligação
estreita entre todos os sentidos da palavra “reconhecimento”: cognitivo,
interacional, hierárquico, emocional. Basta ser “reconhecido” para ser tri-
plamente “reconhecido”; a identiicação torna-se assim conirmação, de-
ferência e gratidão.
O segundo grande critério da visibilidade, após a difusão em larga
escala da imagem do sujeito, é a dissimetria: dissimetria entre aquele que
é visto e aqueles que veem, entre aquele que é identiicado e aqueles que
identiicam, entre aquele que é reconhecido e aqueles que reconhecem;
aquele cuja presença, para além das imagens, é tida como uma graça por
26 | Reflexões sobre arte e cultura material

aqueles que, em troca, o gratiicam com sua admiração. À multiplicação das


imagens – primeiro critério – faz eco a multiplicidade dos sujeitos capazes
de identiicar essas imagens de uma única pessoa – segundo critério. A
dissimetria na identiicação assinala e opera uma separação grandiosa: uma
grandiosidade que, mais do que se dever a propriedades pessoais, deve-se
antes de tudo ao número de pessoas capazes de associar um nome a um
rosto, de tal modo que a separação entre a multiplicidade dos sujeitos que
“reconhecem” e a unicidade do objeto “reconhecido” estende o laço que os
une à dimensão de uma admiração coletiva. Em resumo, a desigualdade no
interconhecimento é uma das formas mais simples e mais fundamentais de
desigualdade – demasiado simples talvez para ter sido observada?
Por que, ainal, é tão importante levar a sério esta questão, aparente-
mente trivial e evidente, da dissimetria? Porque ela cria um diferencial de
recursos entre as pessoas conhecidas e desconhecidas, diferencial esse que
pode ser assimilado a um verdadeiro capital. Este último confere a seu de-
tentor prestígio, poder, relações e dinheiro; mas não é redutível a nenhuma
das outras formas de capital, nem ao “capital social”, já que este último
mede a extensão e a qualidade dos “conhecimentos” ou das relações, não
o grau de reciprocidade. Como prova de que estamos lidando com um
verdadeiro “capital”, no sentido literal do termo, o capital de visibilidade
possui todas as características de um capital no sentido clássico (econômi-
co) do termo: constitui, de fato, um recurso mensurável, acumulável, trans-
missível, que amealha interesses e é convertível.
O capital de visibilidade operou uma importante transformação na
hierarquia, ao criar uma nova categoria social. Surgida ao longo do século
XX, ela ainda não foi percebida como tal. A visibilidade é transmitida
como uma herança, negociada como um dote e utilizada como um apa-
drinhamento. Trata-se não somente da proteção das fronteiras entre a ca-
tegoria das pessoas célebres e aquela das pessoas comuns, mas também da
conservação de um privilégio. Essa estreita associação entre a existência de
uma verdadeira categoria social e sua posição privilegiada nos leva a acres-
centar aos três primeiros critérios que deinem o fenômeno da visibilidade
– a reprodução técnica da imagem, a dissimetria e a categoria social – o
critério hierárquico, que transforma essa categoria numa nova elite.
Por vários aspectos, a visibilidade aparece atualmente como uma for-
ma de aristocracia, mas não identiicada como tal a despeito da onipresença
Excelência e singularidade em regime midiático | 27

de seus membros no espaço público. Trata-se, paradoxalmente, da aristo-


cracia escondida das personalidades em evidência. Ao associar uma posição
eminente a uma ruptura com as formas clássicas de dominação (poder,
nascimento, patrimônios), essa nova elite permite, se não resolver, ao me-
nos atenuar a tensão entre a exigência de igualdade própria às sociedades
democráticas e, por outro, a aspiração a um ordenamento das grandezas
que permita operar uma partilha consensual entre pequenos e grandes,
oferecendo, aos primeiros, modelos a serem imitados ou ao menos admi-
rados. Do mesmo modo como no século XIX a nova elite artista, por sua
assimilação à marginalidade, permitia conjugar a rejeição democrática dos
valores aristocráticos com a aspiração elitista a uma excelência reconheci-
da, no século XX a nova elite da visibilidade vincula a singularidade à po-
pularidade, de encontro às formas tradicionais de excelência tanto quanto
ao valor do mérito.
Reprodutibilidade técnica em larga escala das imagens, dissimetria
entre objetos e sujeitos do olhar, criando enormes diferenças no capital
da visibilidade e instaurando, entre seus detentores, uma categoria social
especíica, situada no topo de uma hierarquia cuja estrutura foi profun-
damente renovada pela irupção dessa nova elite – eis os quatro critérios
que deinem a visibilidade na época mediática. Os autores que se inte-
ressaram por esta questão perceberam um ou outro destes critérios, mas
nunca os quatro ao mesmo tempo; ora, é essa articulação que, sozinha,
permite mensurar em toda a sua amplitude um fenômeno tão espetacular
e profundamente inovador quanto pouco observado e compreendido em
todas as suas dimensões – já que oculto pelo duplo véu da familiaridade e
do desprezo de classe.

Culto ou cultura da celebridade?

O culto das celebridades não seria uma nova forma de religião ou, antes,
um “substituto da religião”, segundo uma fórmula já bastante batida, e,
portanto, um “culto”, e não somente uma cultura? Para conferir todo o
sentido sociológico à noção de “religião”, é preciso, em primeiro lugar,
considerar que a religião não é uma matriz original, mas uma coniguração
28 | Reflexões sobre arte e cultura material

contextual – a coniguração cristã não é senão a forma mais familiar às


sociedades ocidentais –, e, em segundo lugar, que ela é uma noção nativa,
e não uma ferramenta do pensamento erudito. Desse modo, torna-se inal-
mente possível falar não mais somente em cultura da celebridade, mas em
culto das celebridades, desobrigando-se do uso das aspas, já que não se
trata mais de uma metáfora, mas literalmente de uma conduta, cuja redu-
ção ao “religioso” impediria compreender suas especiicidades.
Podemos assim airmar a existência de similitudes e diferenças, mais
ou menos centrais ou marginais, entre o fenômeno familiar – mas ainda
maldeinido – das condutas qualiicadas como religiosas e este fenôme-
no moderno – tão familiar quanto pouco deinido – que é a cultura das
celebridades. Observa-se de imediato que a ascensão da visibilidade em
regime mediático não é somente a consequência de uma série de inova-
ções técnicas na reprodutibilidade da imagem, provindo igualmente da
propensão a construir comunidades de admiração por condutas cultuais e
culturais aplicadas a personalidades carismáticas, cuja imagem é abundan-
temente igurada – condutas associadas, em outras conigurações, ao que
nomeamos na cultura ocidental como “religião”.
Na transformação da economia emocional de qualquer um de nós,
produzida pelos modernos meios de reprodutibilidade técnica do rosto e
da voz, veriica-se certa continuidade com formas anteriores, e bem co-
nhecidas, de cultos. E, provavelmente, só o desprezo dos eruditos em rela-
ção à cultura popular pôde nos dissimular essa evidência, ainda que esteja
bem diante de nossos olhos.

A distribuição do capital de visibilidade

Em que medida a visibilidade é motivada por capacidades próprias à pessoa


em questão, ou se deve ao acaso, ou é fabricada por instrumentos próprios à
visibilidade, tornando esta última, se assim se pode dizer, autorrealizadora?
No primeiro caso, a visibilidade é plenamente justiicada, já que não é se-
não um valor agregado a um valor que a precede e motiva (por exemplo, o
talento); no segundo caso, ela não se justiica, sendo imputável somente ao
acaso (por exemplo, um acidente), ninguém poden ser responsabilizado por
Excelência e singularidade em regime midiático | 29

isso; no terceiro caso, ela não é justiicada por nenhum ato exterior e ante-
rior à visibilização, e não tem outra causa senão ela própria (por exemplo, os
apresentadores de televisão), a estrela é conhecida essencialmente “por sua
notoriedade”, segundo a famosa fórmula de Daniel Boorstin. A visibilidade
é portanto um valor que se pode chamar de “endógeno” ou de “autoendóge-
no”: são os meios técnicos de visibilização que, simultaneamente, fabricam
e mantêm o capital de visibilidade, por meio de um movimento circular ou,
mais exatamente, espiral.
Entre valor agregado a outro valor e valor endógeno, autoproduzido,
a visibilidade das diferentes categorias de celebridades se desloca de um
polo a outro, sobre um eixo evidentemente hierarquizado que vai do mais
ao menos “justiicado”, segundo as normas da moral ordinária – ou, em
outros termos, do mais ao menos legítimo, ao mesmo tempo que do re-
curso mais antigo ao mais atual. Desse modo, a televisão e as novas mídias
produzem “celebridades instântaneas” que só se beneiciam de uma visibi-
lidade endógena, na ausência de apoio em valores mais sólidos.
Veriica-se antes de tudo a visibilidade como valor agregado ao nas-
cimento, com os soberanos e membros das famílias reais; a visibilidade
como valor agregado à performance, com os políticos e os esportistas; a
visibilidade como valor agregado ao talento, com os sábios e criadores; a
visibilidade como misto de valor agregado ao talento e de valor endógeno,
com os cantores e atores, bem como as modelos; a visibilidade como misto
de valor agregado ao carisma e de valor endógeno, com as personalidades
da televisão, proissionais ou amadores; e, por im, a visibilidade como
valor acidental, com o herói ou anti-herói das manchetes.
Há uma hierarquia não dita entre celebridades, cujo princípio é a
duração. Pode-se até esquematizar um quadro com dupla entrada para
a “hierarquia da visibilidade”, cruzando, de um lado, o eixo espacial – do
local ao internacional, passando pelo regional e pelo nacional – e, do outro,
o eixo temporal – de “um dia” a “sempre”, passando por “uma semana”,
“um ano”, “uma geração” –, já que o inconveniente da glória, para o novo
mundo dos “people”, reside, antes de tudo, em seu caráter efêmero, que faz
com que o interessado experimente espetaculares variações de grandeza
das quais corre o risco de ter diiculdades em se refazer. É importante
30 | Reflexões sobre arte e cultura material

notar a concomitância da modernização técnica, da multiplicação dos pú-


blicos, da democratização dos pretendentes à visibilidade, da desmoraliza-
ção de suas qualidades, bem como do encurtamento dos laços espaciais e
temporais entre as personalidades e seus admiradores – o conjunto desses
fenômenos caracteriza a “peoplelização” das celebridades. Essas mutações
espetaculares na distribuição do capital de visibilidade – que, por sua vez,
constitui uma mutação igualmente espetacular da noção de elite – vincu-
lam-se, num nível mais geral, a uma mutação histórica da excelência, de
suas deinições e atribuições.

Economia e direito da visibilidade

A assunção da visibilidade levou à criação ou à extensão de toda uma


série de ofícios: fotógrafos e paparazis, maquiadores, agentes, personal
trainers, guarda-costas ou mesmo sósias. Ela também suscitou uma ver-
dadeira indústria, feita de turismo e de produtos derivados, centrados nas
celebridades, como na imprensa, as edições especializadas. Ela permitiu o
desenvolvimento de uma economia especíica: uma economia “em regime
de singularidade”, na qual o estrelato engendra enormes lucros por meio
do consumo intensivo da imagem das estrelas, da prática das promoções
publicitárias, das remunerações exorbitantes pagas às estrelas de cinema,
da música ou do esporte, dos preços fabulosos alcançados por suas relí-
quias em leilões, ou ainda das indenizações regularmente atribuídas pelos
tribunais por atentado à vida privada.
Essa prática, amplamente desenvolvida há mais de uma geração,
também nos fornece indícios sobre o impacto da visibilidade no direi-
to – o direito ao nome, o direito à imagem e o direito à vida privada
foram profundamente remodelados, em nível internacional, pelas ações
levadas a cabo pelas celebridades visando à defesa de seus interesses. As-
sim, do mesmo modo como a visibilidade modiicou a hierarquia social,
engendrou novos ofícios, deu lugar a uma economia especíica, também
contribuiu para criar ou ao menos transformar as regras de direito que a
concernem.
Excelência e singularidade em regime midiático | 31

Psicofisiologia da visibilidade

O vínculo com as celebridades tem a especiicidade de se dar na não fa-


miliaridade, na não reciprocidade e na admiração. No entanto, ele partilha
com o vínculo a pessoas comuns, por um lado, o vínculo pela identiicação
com a pessoa admirada e, por outro, o vínculo por desejo de possessão
dessa pessoa. Na vida cotidiana, não se considera anormal fazer de uma
pessoa um objeto de identiicação, não mais do que fazer dela um objeto
de amor ou de desejo, seja ele sexual ou presencial. Consideremos, portan-
to, que, no mundo regido pela visibilidade, não é de estranhar que os fãs
admirem uma estrela e com ela se identiiquem, nem que experimentem
sentimentos amorosos em relação a ela. A única coisa que deve nos fazer
reletir é o caráter extremo das emoções experimentadas.
Ao se aproximar de seu ídolo – o que se dá somente por meio de seus
vestígios –, o admirador ou a admiradora não se contenta em se confor-
mar aos standards da relação amorosa, ainda que sob a forma particular de
um vínculo necessariamente assimétrico, não recíproco e, essencialmente,
fantasmático. Ele ou ela foge também, ao fazê-lo, do anonimato do gran-
de público, destacando-se da multidão dos outros fãs, esforçando-se para
instaurar uma relação única. Tal dualidade entre objeto e sujeito de admi-
ração permanece, no entanto, imaginária: o sujeito tem noção de que não é
o único a amar – mas ainda assim ele pode se iludir, narrando a si mesmo
a história romântica de uma proximidade, de uma intimidade ou de uma
relação exclusiva com o objeto de sua admiração. Longe de estar só diante
da estrela, ele é rodeado por uma multidão de outros fãs com os quais pode
se identiicar, ao partilhar um mesmo sentimento pelo objeto comum. A
relação não é dual, mas múltipla – e multiplicada quase ao ininito. Ela
envolve outros admiradores, ou mesmo coletivos de admiradores, quer já
instituídos, como os fãs clubes, quer constituídos pontualmente para deter-
minada ocasião, como os públicos reunidos por ocasião de uma cerimônia
funerária, um evento, uma representação.
Quanto ao encontro com uma estrela, seus efeitos podem ir de um
extremo a outro na escala dos graus de admiração: reforço ou conirmação
de sua grandeza, normalização por sua redução ao ordinário, desilusão ao
32 | Reflexões sobre arte e cultura material

serem frustradas as expectativas, ou mesmo “dissonância cognitiva”, quan-


do o aspecto ou o comportamento da estrela entra em violenta contradição
com sua imagem pública. Mas qualquer que seja a origem do acontecimen-
to, este último tem toda a chance de exercer um notável “efeito disruptivo”
sobre a vida daquele que o vivencia, dotado assim de uma experiência emo-
cional especíica, a qual terá grande interesse em partilhar com terceiros.
Decididamente, nunca se está totalmente sozinho com uma celebridade,
mesmo – e sobretudo – por ocasião de um encontro face a face. Mas a
colocação em presença em si mesma não criaria qualquer emoção se não
houvesse, precedendo-a, a imagem, ou as imagens, cuja carga emocional
tão poderosa se deve ao fato de sempre haver – ainda que remotamente – a
eventualidade da presença ou sua realidade passada. Ao mesmo tempo que
a fascinação tem sua fonte no vai e vem entre singularidade do admirado e
multiplicidade de admiradores, ela ganha consistência no vai e vem entre
presença e ausência, proximidade e distância. Trata-se do “efeito referen-
cial”. Inacessível em pessoa, ao mesmo tempo que indeinidamente dispo-
nível em suas imagens: esse é, portanto, por princípio, o detentor de um
capital de visibilidade.
Enim, do lado dos detentores de um forte capital de visibilidade,
esta última é, ao mesmo tempo, um trunfo e um handicap – pode ofere-
cer tanto as formas mais extremas de gratiicação quanto de abandono,
mesmo para uma única pessoa. Admirado, observado, o homem célebre
é, ao mesmo tempo, como notava Paul Valéry, “um homem vigiado” que
“se sente como tal”. Instrumento ímpar de sedução erótica, a celebridade
é também fator de vício e de decadência moral, em seguida, social; a am-
biguidade é o apanágio da ubiquidade.

Axiologia da visibilidade

A dimensão moral não é o domínio da vida social menos afetado pela


visibilidade. Mas a visibilidade é tão ambivalente no plano axiológico
quanto no plano psicoafetivo; ela ocupa um lugar particular na escala da
“publicidade” ou da legitimidade de valores; e, ao colocar de modo crucial
a questão do mérito numa sociedade democrática, obriga a relativizar este
Excelência e singularidade em regime midiático | 33

último, ao realocá-lo em meio a um leque mais amplo de justiicativas


da “grandeza”, no sentido de um estado do ser ao qual foi atribuído um
valor positivo. Eis o que faz da visibilidade o princípio de uma grandeza
“singular” num duplo sentido: repousando por princípio na excepcionali-
dade, ela também ocupa um lugar atípico na gramática das justiicativas
da grandeza e, mais geralmente, no sistema de valores.
O sucesso da famosa frase de Daniel Boorstin, repetida por toda par-
te, sobre a circularidade da celebridade – um homem célebre sendo “uma
pessoa conhecida por sua notoriedade” –, é um sintoma de sua consonância
com uma exigência axiológica profundamente enraizada em nossas socie-
dades. É precisamente essa exigência que é colocada em evidência – enfa-
tizada tanto quanto ridicularizada – na célebre frase de Warhol sobre “os
quinze minutos de fama”, prometida a qualquer um, já que, se qualquer um
pode se tornar famoso, mesmo que por pouco tempo, não seria um quase
nada a motivar esse acesso a uma grandeza que, logo em seguida, deixa
de sê-lo? Mas a coisa é evidentemente um pouco mais complexa do que
sugere essa pirueta de artista, da qual ninguém dúvida, aliás, que não tenha
outro valor senão o da bricandeira. Seria preciso uma profunda revolução
axiológica para que uma grandeza acordada a qualquer um continue a sê-
-lo, e para que deixemos de buscar explicações em qualquer diferencial de
estatuto entre os seres e, sobretudo, justiicativas fundadas sobre valores.
A crítica da celebridade ainda tem muitos dias pela frente. Por pouco
que se assimile esta questão àquela, mais geral, da exposição aos olhares, é
de fato toda a dependência em relação à opinião de outrem que se encontra
estigmatizada por uma parte da tradição ilosóica. Nessa perspectiva, a
visibilidade, não atribuída a um mérito e marcada pela supericialidade das
relações inautênticas, aparece como o contrário de um valor: um “antiva-
lor”. No entanto, a perspectiva inversa também existe: diferentes argumen-
tos há para fazer a apologia da exposição ao olhar de outrem, colocando
em evidência a visibilidade como uma necessidade humana fundamental.
Simetricamente, é a invisibilidade que aparece nessa perspectiva como um
antivalor, uma infração à ética, já que lhe seria prejudicial.
Em resumo, a visibilidade é axiologicamente ambivalente: ela oscila
entre direito moral e privilégio indevido, e não somente para os pensado-
res, mas também para as pessoas comuns. Os discursos inlamados contra
34 | Reflexões sobre arte e cultura material

a “peoplelização” são numerosos, mas não impedem que milhões de leito-


res comprem, a cada semana, as revistas que dela izeram seu ganha pão.
Os próprios fãs oscilam entre admiração e inveja, devoção e ressentimen-
to, desolação e júbilo quando da queda de seu ídolo.
A querela do iconoclasmo opunha aqueles que aceitam ou mesmo
veneram a imagem do ídolo – pois seria uma mediação positiva que daria
acesso ao divino – e aqueles que recusam ou mesmo destroem tal imagem,
na medida em que seria uma mediação negativa, ocultando a presença do
divino. Por trás da contradição entre uma visibilidade aceita ou mesmo
desejada e uma visibilidade rejeitada ou mesmo deprezada perila-se uma
mesma lógica, centrada sobre o papel ambíguo atribuído à mediação, quer
se veja o que se aproxima, quer, ao contrário, o que separa do objeto de
admiração de amor ou de observação. A ambivalência da mediação surge
assim como homóloga da própria ambivalência da visibilidade, ao mesmo
tempo denegrida por sua falta de autenticidade (o “espetáculo”) e louvada
por sua capacidade em revelar, em tornar público o segredo, em dizer tudo
(Loft story). Em resumo, não é a visibilidade enquanto tal que é inautênti-
ca, e portanto, má, mas antes, sua mediação pela mediatização.
A visibilidade possui a particularidade de ser uma qualidade ao mes-
mo tempo eminentemente pública – já que não existe senão pela exposição
de um ser no espaço público mediatizado – e um valor – já que o é – es-
sencialmente privado. O vínculo às estrelas tende a ser mais experimenta-
do e praticado do que reivindicado.
Desse ponto de vista, a visibilidade é muito próxima da beleza, a
qual também constitui um valor que tende muito mais ao polo “privado”
do que ao “público”. Encontramos, por seu lugar homólogo na escala en-
tre valores públicos e privados, a proximidade entre visibilidade e beleza.
Aliás, a visibilidade é também um valor que se acorda com a feminilidade
não somente por permitir às mulheres o acesso a posições eminentes,
mas também devido porque esse tipo de admiração pelas estrelas, que se
desdobra no modo positivo do amor e do reconhecimento, é tradicional-
mente mais familiar à cultura popular e, em particular, às mulheres.
Há, na herança religiosa da cultura ocidental, uma dualidade mar-
cada entre dois princípios que permitem construir uma axiologia da jus-
ta retribuição: o mérito, que privilegia a tradição axiológica e política
Excelência e singularidade em regime midiático | 35

própria ao regime democrático, e a graça, que privilegia certa tradição


religiosa. Se o primeiro é, simultaneamente, negado pelas atuais formas
de prestígio mediático e sempre reairmado por suas condenações, não
restaria a segunda para dar consistência moral à grandeza das pessoas cé-
lebres? Porque a graça, a verdadeira graça reconhecida pelas pessoas sim-
ples – aqueles que não se preocupam nem com racionalizações nem com
justiicativas e que preferem a admiração à crítica –, não existe senão para
emanar de uma instância superior que não deriva da ação humana, seja
ela divina, para os crentes; astrológica, para os crédulos; ou aletória, para
aqueles que preferem invocar o acaso ou a sorte. A seus olhos, a exce-
lência não tem por que ser merecida ou discutida; ela deve ser celebrada,
venerada, adorada, ou de qualquer modo reconhecida, num movimento
coletivo de admiração que une uma comunidade diante da singularidade
de um ser fora do comum. Que a grandeza possa ser dada a alguns e não
a outros, isso não choca nem ofende o sentido de justiça de seus mem-
bros, mas satisfaz a sua necessidade de admirar, todos juntos, sem reserva,
com fervor e volúpia. E falar “deles” não signiica dividir a sociedade em
duas categorias – os letrados e os simples, os racionais e os irracionais –,
mas designar duas polaridades que nos habitam a todos nós e nas quais
temos consciência de investir, mesmo se uma ou outra for mais familiar
a alguns entre nós que a outros. A graça é portanto o modo de acesso à
grandeza das pessoas célebres aos olhos daqueles que, antes de mais nada,
têm prazer em reconhecer, em todos os sentidos do termo (identiicar e
conirmar), mais do que em justiicar.
Isso quer dizer que a crítica dos letrados encontra um alvo sonhado: o
“mundo do renome” para retomar a terminologia de Boltanski e hévenot
é, na cultura ocidental atual, particularmente vulnerável à crítica. A visi-
bilidade, com os fenômenos extremos que gera, não pode senão exarcebar
essa desconiança em relação ao que não cessa de ser estigmatizado como
vulgaridade, publicidade, inautenticidade, mercantilização, alienação e irra-
cionalidade. A ilosoia, o direito, a moral, a política e a preocupação com as
distâncias hierárquicas conjugam-se, portanto, para opor, a um consumo da
celebridade que não cessa de se desenvolver, as barreiras de uma condena-
ção por parte do mundo letrado de práticas percebidas como essencialmen-
te populares, iconóilas e idólatras. Assim, vemos novamente em cena – a
36 | Reflexões sobre arte e cultura material

propósito de uma forma de relação com os ídolos modernizada pelos meios


técnicos de fabricação de ícones – a tensão milenar que habitava, desde a
baixa Antiguidade, o culto dos santos. O que mudou na relação com os
“grandes singulares”, entre os primeiros tempos do Cristianismo e nossa
entrada na era mediática, é que, como explicava Peter Brown, “essas iguras
protetoras são agora seres humanos”.

Um fato social total

A visibilidade é tipicamente o que Marcel Mauss chamava de “fato social


total”, a propósito do dom. Ela toca todos os domínios da vida coletiva e,
portanto, só pode ser plenamente apreendida se levarmos em conta essa
globalidade. Eis por que foi preciso percorrer passo a passo a história das
técnicas, as representações mentais, a hierarquia, as religiões, a política, o
esporte, o jornalismo, a arte, as proissões, a economia, o direito, a psico-
logia, a moral etc.
Eis por que também tivemos de nos apoiar sobre toda uma gama
de disciplinas universitárias que se interessaram pelo fenômeno: ilosoia,
história, comunicação, direito, economia, psicologia, antropologia, polito-
logia, sociologia – e, no interior desta última, especializações tão diferentes
quanto a sociologia das proissões, a sociologia da arte, a sociologia das
mídias, a sociologia das religiões, a sociologia dos valores, a sociopsicologia,
o interacionismo e mesmo a sociologia geral. Eis por que enim não pude-
mos nos limitar à nossa era geográica inicial – à França –, mas tivemos de
atravessar e reatravessar as fronteiras e o Oceano Atlântico para ver como
se desdobra esse fenômeno entre o antigo e o novo continente.
Tivemos de nos deslocar mentalmente de um meio social a outro;
utilizar os recursos do mundo letrado para compreender o mundo po-
pular, mas também utilizar essa compreensão para nos distanciarmos da
visão própria ao mundo letrado, com seus preconceitos e ângulos mortos.
A cultura da visibilidade, ainda que impregne profundamente os meios
populares, não poupa os meios mais favorecidos e, em particular, aqueles
que detêm os meios para pensá-la – os universitários –, mesmo que seus
valores os incitem a denegri-la. O leitor terá compreendido, portanto, que
Excelência e singularidade em regime midiático | 37

o “momento axiológico” (o desejo de defender seus valores) não deve en-


travar o “momento epistêmico” (o desejo de compreender, descrever, ex-
plicar); um não é excludente ao outro, à condição de não os praticar ao
mesmo tempo, no mesmo contexto.
Se o fenômeno da visibilidade na era mediática é tão novo quanto
as técnicas que o tornaram possível, a economia hierárquica, emocional
e axiológica na qual ele se inscreve – ao mesmo tempo que a renovo – é
muito antiga. Para terminar, é na longa duração, portanto, que é preciso
considerá-lo substituto de práticas profundamente enraizadas em nossa
cultura, graças, particularmente, às formas religiosas que assumiram du-
rante muito tempo. No Antigo Regime, reinava o elitismo aristocrático,
fundado sobre uma excelência sem singularidade – já que devida ao per-
tencimento familiar –, mas com uma “particularidade” que remetia, justa-
mente, à “partícula” aristocrática: a de uma excelência coletiva sustentada
por um relato familiar e resumida num nome. Após a Revolução Francesa,
instalou-se um elitismo burguês, no qual a excelência rimava com mérito,
a conformidade às convenções e o respeito do standard do dinheiro. Mui-
to rapidamente, a partir de meados do século XIX, ao elitismo burguês
acrecentou-se o elitismo artístico, no qual, pela primeira vez, a excelência
pôde repousar sobre a singularidade – aquela do talento e da originalida-
de, mas também da marginalidade social. Por im, o elitismo mediático
surgido no século XX colocou em primeiro plano a singularidade, mas
uma singularidade ainda mais dissociada da excelência, uma vez que re-
pousa unicamente sobre a visibilidade.
Da excelência sem singularidade à singularidade sem excelência –
assim oscilam as concepções da grandiosidade e, com elas, a economia
das relações entre as comunidades e as singularidades em torno das quais
elas se ligam, entre a multidão e o ser fora do comum, engrandecido por
suas façanhas, seus sofrimentos, sua inteligência, ou pelo amor coletivo
que inspira.
Luiz Fernando Dias Duarte:
das Redes do Suor às “artes ambientais” 1

Naara Luna e Patrícia Reinheimer


(CULTIS, PPGCS e DCS-UFRRJ)

Luiz Fernando Dias Duarte é graduado em Direito pela UERJ, mestre e


doutor em antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropo-
logia Social, Museu Nacional (PPGAS-UFRJ), onde é professor titular. O
autor se destaca entre os antropólogos brasileiros por sua atuação na área
de Antropologia das Sociedades Complexas com enfoque na construção
social da pessoa,2 reletindo sobre os temas: pessoa, identidade, doença,
família, religião, natureza e modernidade.
O tema da individualização atravessa toda a sua obra. É possível per-
ceber em seu trabalho uma longa linha de estudos dos saberes sobre o
sujeito, em particular na linha da psicologização, compreendidos no qua-
dro da Antropologia da Saúde e da Doença. Mais recentemente, em sua
abordagem da cultura ocidental moderna, ele tem articulado o problema
investigativo da pessoa com os objetos família e religião, além de analisar
os elementos instituintes da cosmologia ocidental moderna, com ênfase
no tema da natureza.
Duarte desenvolveu trabalho de campo com pescadores que resultou
na dissertação de mestrado As Redes do Suor: a reprodução social dos trabalha-
dores da produção de pescado em Jurujuba. No doutorado, com a tese Da vida
nervosa, pessoa e modernidade entre as classes trabalhadoras urbanas, desenvol-
veu seu trabalho sobre a dimensão do “nervoso” como um nódulo ideológico
estratégico para a compreensão das formas culturais especíicas em que se
constituem as classes populares em relação à classe dominante, com posição
diferencial face ao modelo da Pessoa individualizada moderna. Essa análise
inspirada em Dumont3 marcou o percurso de seu trabalho.
39
40 | Reflexões sobre arte e cultura material

O investimento inicial na pesquisa entre as classes trabalhadoras vol-


tou-se inicialmente para a construção de sua identidade, mas se abriu para
o atendimento em saúde psicológica desses grupos. No quadro dos saberes
sobre o que a cultura ocidental moderna designa como saúde, doença e
medicina4 – o que inclui “doença mental” e as terapêuticas psicológicas e
biopsicológicas – se insere sua produção nos anos seguintes.
Um dos exemplos de seu interesse na percepção das classes populares
sobre a medicina é o artigo “A medicina e o médico na boca do povo”.5
O investimento no estudo dos “nervos” iniciado no doutorado o di-
recionou à pesquisa das relações entre saberes psicológicos/psicanalíticos
e as ciências sociais: os saberes psicológicos se tornaram para o autor im-
portante material para a análise da construção social da pessoa.

A conformação da pessoa na cultura ocidental moderna está relacio-


nada a uma coniguração de valores que tem sido chamada de indivi-
dualismo: a laicização e universalização do conhecimento, a constru-
ção de instituições políticas pautadas pelo ideário da igualdade e da
liberdade e a própria singularização e interiorização dos sujeitos. […]
Esses valores estavam envolvidos no processo de institucionalização
da psicologia, da psiquiatria e da psicanálise.6

No esforço de análise da produção de teorias voltadas para a com-


preensão da vida “interior” dos sujeitos humanos,7 o autor desenvolveu
“uma história social das perturbações no Ocidente e uma interpretação da
localização cultural da psicanálise (em suas dimensões práticas; clínicas,
pelo menos)”.8 Vários artigos seus, do meado da década de 1980 até pu-
blicações recentes, são dedicados a esses temas.
Além dos saberes psicológicos, retomando questões que haviam sido
levantadas em publicações anteriores (Três ensaios sobre a construção da pes-
soa, de 1983), outros eixos foram agregados: a moral, na incorporação do
debate feito por Luc Boltanski em La Soufrance à distance; o eixo da religião
na concepção cristã de pessoa; o individualismo; e noções de indivíduo e
pessoa na saúde e na doença. Essa tendência se ampliou na nova linha
de estudos sobre família e religião, que começou a ser publicada a partir
de 2005 com diversos livros, capítulos e artigos.9 Ali o autor articulou a
Das redes do suor às “artes ambientais” | 41

relação entre pessoa, família e religiosidade, acrescentando o debate sobre


moralidade e sexualidade. Sua grande contribuição nesses estudos foi seu
trabalho analítico com o conceito de ethos, além da relação tensa de todos
esses valores com a modernidade.
Segundo essa hipótese, os traços cosmológicos de subjetivismo e na-
turalismo sustentariam “um ethos privado mais generalizado nos meios
populares, preliminar às eventuais adesões religiosas. Dessa forma, não são
hoje propriamente os preceitos religiosos que inluenciam as dinâmicas
ideológicas gerais; suas diferentes alternativas confessionais apenas con-
formam um mercado de possibilidades diacríticas com base em marcos
cosmológicos que os ultrapassam”.10 Em seu investimento no campo da
religião, destaca-se a organização do número sobre comunidade na revista
Religião & Sociedade,11 com objetivo de analisar as modalidades de utiliza-
ção da noção de comunidade e seus entrelaçamentos políticos, religiosos,
ilosóicos e sociais.
Uma das principais teses de A vida nervosa é a descrição da conigu-
ração dos nervos como parte do complexo físico-moral anterior ao para-
digma biomédico de construção do corpo e da pessoa. Além dos saberes
psicológicos como material de investigação, o trabalho de Duarte propõe
a análise de aspectos que remetem à dimensão física, incorporada da pes-
soa, como dor e a perturbação dos nervos. Esses aspectos serão desenvol-
vidos em sua relexão sobre natureza e modernidade.
Duarte também aborda os temas do patrimônio cultural e natural,
questões associadas pelo próprio autor autor, sendo o primeiro deste uma
investigação sobre cemitério de escravos em bairro operário,12 em artigos
sobre museus e patrimônio,13 e em sua atividade de relator num processo
de registro de patrimônio imaterial pelo Iphan sobre o ofício de paneleiras
de Goiabeiras.14
Duarte considera o estatuto do natural nas representações de pes-
soa fundamental para compreender os nervos, a psicologização, a famí-
lia, a religião na área do ethos privado e para compreender temas morais
controversos como aborto, contracepção, reprodução artiicial, eutanásia,
homossexualidade.15 O tema da natureza é abordado na discussão sobre
a cosmologia nativa do Ocidente, a explorar a “hipótese de uma ‘tensão
instituinte’ entre o iluminismo e o romantismo na formação do pensa-
mento ocidental moderno”.16
42 | Reflexões sobre arte e cultura material

A proposta de arcabouço interpretativo para essa questão se apresenta


no artigo programático “A pulsão romântica e as Ciências Humanas no Oci-
dente”.17 Outro registro da natureza, complementar ao da ciência, refere-se à
área da sensibilidade, razões e emoções, que o levaram a concentrar “investi-
mentos no processo histórico de construção dos ambientes ‘naturais’ da mo-
dernidade (jardins, parques, reservas etc.)”.18 Assim, ele analisou a natureza
como símbolo da particularidade das nações, em contraposição à abordagem
universalista da ciência. A abordagem da natureza está presente nos artigos
sobre paisagismo em Burle Marx 19 e aparece novamente no artigo publicado
no presente livro com referência a artes ambientais e a paisagem.
Nesse último, “Artes ambientais e sociedade: a paisagem como proje-
to no Ocidente”, o autor desenvolveu a ideia de dispositivo da sensibilidade
como um “olhar sentimental de visibilização interior sobre os mundos
projetados – capaz de acolher e reverberar a dinâmica das emoções que
se considera desencadeadas no íntimo de cada sujeito”. Com base nessa
ideia, a dimensão da sensibilidade humana é tomada como uma mediação
entre os mundos externo e interno que pode ser apreendida de um tipo
especíico de arte, que o autor denomina “artes ambientais”.
Duarte argumenta que a modernidade ocidental depende de uma or-
ganização do mundo ambiente marcada pela ideia de paisagem, tanto no
sentido de representação sensorial de horizontes de signiicação discretos
observados à distância, quanto experimentados de modo sentimental. Isso
ensejou a proliferação de “artes ambientais”, das quais se destacam a jardi-
nagem e o paisagismo do Renascimento ao Romantismo.
No Ocidente, desenvolveu-se uma modalidade de relação com o am-
biente em que o distanciamento entre observador e campo de observação
se tornou uma estratégia básica de construção de sentido no mundo, es-
tando o fenômeno da perspectivação intimamente ligado ao novo estatuto
de verdade do testemunho dos sentidos corporais no contato com a em-
piria produtora das sensações. A disposição em olhar o mundo à distância
seria acompanhada de uma enorme ênfase na sensorialidade: a sensibi-
lidade nervosa periférica e a sensibilidade afetiva íntima. O processo de
estetização do mundo seria então inseparável da observação em “regime
de paisagem” e é assim que a paisagem se impõe aos poucos como recurso
expressivo no plano das ciências descritivas e interpretativas e no plano da
estética da vida e do cotidiano.
Das redes do suor às “artes ambientais” | 43

O autor mostra como a história da arte caminhou no mesmo pas-


so que a botânica e a literatura, ao ensejar racionalizações e crescentes
exegeses da verdade interior, mas também no cruzamento entre a produ-
ção industrial e a arte. Duarte considera a generalização do “olhar turista”
inseparável desses movimentos, ao ampliicar o olhar distanciado. Nesse
sentido, a pintura de paisagem seria seguida pela fotograia como consoli-
dação do olhar focalizado à procura do enquadramento da “paisagem” ou
do “retrato”. Em sua interpretação, teria sido assim que o jardim fechado,
hegemônico no Renascimento, cedeu lugar ao mundo como jardim.
Para o autor, o mesmo desejo de intensiicação interior combinado
com a maximização da expressão espacial veio a se apresentar nas artes
contemporâneas. Nestas, são prestigiosas as conigurações chamadas de
instalações: uma fusão de artes ambientais e artes representacionais, as-
sociadas a pressões popularizantes intrínsecas às formas mais recentes das
vanguardas modernas.
Tema que vem perpassando suas análises em sala de aula, a dimen-
são da criação artística até pouco tempo atrás ainda não tinha sido ob-
jeto de uma relexão sistemática que resultasse em publicações. O in-
vestimento mais aprofundado sobre o tema se iniciou em 2009, quando
elaborou uma palestra que transformou no primeiro artigo sobre Burle
Marx. O artigo aqui publicado é um desdobramento desse tema, no qual
o autor explora a relação entre “natureza” e “sentidos” na cultura ocidental
moderna, investindo sobre a possibilidade de perceber a organização das
sensibilidades com base nas expressões simbólicas e artísticas ao longo da
história no Ocidente.
Esses desenvolvimentos indicam o possível início de uma nova linha
de investigação para o autor, na qual as manifestações artísticas se apresen-
tam como material empírico para a formulação de relexões acerca da sensi-
bilidade, da interioridade, da natureza e da modernidade. Ao mesmo tempo,
vemos como as categorias “paisagem” (“natureza”, jardins, “artes ambien-
tais”) e “retrato” (“construção social da pessoa”, identidade) são, além de de-
signações que compõem o quadro de alternativas da relação entre imagem
e suporte na impressão de imagens digitais, duas formas de representação
do pensamento ocidental moderno e duas possibilidades de enquadramento
dos temas que compõem o quadro de interesses do autor.
44 | Reflexões sobre arte e cultura material

Notas
1
O esboço dessa trajetória de produção cientíica foi construído principalmente pelo exame
de duas fontes: o currículo Lattes do pesquisador – com prioridade para publicações de arti-
gos em periódicos, livros e capítulos – e o memorial requerido para o concurso de professor
titular de Antropologia Social na UFRJ, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social (PPGAS) do Museu Nacional, gentilmente cedido pelo próprio autor.
2
O autor deine construção social da pessoa: “Essa locução nunca designou um segmento
estabilizado da disciplina antropológica, embora evoque claramente a força seminal do
artigo de Marcel Mauss sobre a ‘noção de pessoa’, os desenvolvimentos da antropologia
social inglesa sobre a distinção entre ‘pessoa’ e ‘indivíduo’, e alguns desenvolvimentos da
escola de ‘cultura e personalidade’ e do interacionismo simbólico (a propósito do self).”
(Duarte, 2012, memorial, p. 7).
3
Dumont, 1997.
4
Duarte; Leal, 1998.
5
Duarte, 2000.
6
Duarte; Russo; Venâncio, 2005, p. 7.
7
Duarte; Russo; Venâncio, 2005, p. 8.
8
Duarte, 2012, memorial, p. 28.
9
Cf. Duarte; Heilborn; Peixoto; Barros, 2005; Duarte; Heilborn; Peixoto; Barros, 2006.
10
Duarte, 2012, memorial, p. 22.
11
Religião & Sociedade, v. 30, n. 2, 2010.
12
Duarte, 1983a.
13
Duarte; Aranha Filho, 2003.
14
Duarte, 2006.
15
Duarte, 2012, memorial, p. 24.
16
Duarte, 2012, memorial, p. 26.
17
Duarte, 2004.
18
Duarte, 2012, memorial, p. 25.
19
Duarte, 2011b. Uma primeira versão resumida dessa mesma relexão acerca das “artes
ambientais” foi publicada, em português, em Ciências Humanas e Sociais em Revista (Du-
arte, 2009) e, em sua versão integral em inglês, em Vibrant (Duarte, 2011b).

Referências bibliográficas

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Das redes do suor às “artes ambientais” | 45

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Público de Provas e Títulos para provimento de uma vaga de Professor-Titular
de Antropologia Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro (Departa-
mento de Antropologia, Museu Nacional), conforme o disposto no edital UFRJ
n. 74, de 29 de maio de 2012, publicado no Diário Oicial da União n. 107, em 4
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46 | Reflexões sobre arte e cultura material

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SIMMEL, Georg. On individuality and social forms: selected writings. Chicago:


he University of Chicago Press, 1971.
Artes ambientais e sociedade:
paisagem como projeto no Ocidente1

Luiz Fernando Dias Duarte


(PPGAS-MN-UFRJ)

“Se tens o teu jardim ao lado da tua biblioteca, o que mais podes
querer da vida” (Cícero)

“Peu à peu, en efet, se produit une double distanciation: et par


rapport à l’intériorité des émotions, et par rapport au monde
extérieur. Ainsi, de plus en plus, les hommes “regardent la ‘na-
ture’ comme ‘paysage’, comme ‘monde des objets’, comme ‘objet de
la connaissance’” (Heinich; citando Elias)2

A intensa preocupação contemporânea com a preservação do “meio am-


biente” suscita um dos mais fundamentais movimentos sociais em curso,
uma vez que se dirige à sobrevivência da espécie humana como um todo
sobre a face deste planeta, o único em que sua vida pode se desenvolver –
pelo menos por enquanto. Não apenas isso: visa também à sobrevivência
do fabuloso tesouro das formas de vida que hoje povoam a Terra, compa-
nheiras de nossa própria e tão improvável e frágil evolução.
Os argumentos para esse empreendimento são, em primeiro lugar,
práticos: a sobrevivência narcisista dessa espécie que ameaça a si mesma;
a sobrevivência do cenário vital que a viu emergir e que guarda, por assim
dizer, algo de sua “humanidade”.
Contudo, o ambiente não é apenas um “meio” neutro e pragmático; é
um “mundo ambiente”, cheio de conotações simbólicas, de sentidos vitais,
frequentemente experimentados sob a forma do que chamamos banal-
mente de “paisagens”.
47
48 | Reflexões sobre arte e cultura material

Embora toda a experiência humana (na verdade, de todo ser vivo!) só


faça sentido imersa no contexto em que se institui, e este seja participante
ativo da forma e sentido geral de sua vida, nem todas as culturas organi-
zam a percepção desse mundo envolvente como uma “paisagem”.3
O que chamo aqui de “artes ambientais” – uma locução inabitual que
pode englobar a arquitetura, o urbanismo, o paisagismo, a jardinística,
a decoração de interiores, a mobiliária, a cenograia, as artes gráicas, o
design, a moda, a joalheria, a cosmética, a culinária – corresponde justa-
mente ao conjunto de atividades de cunho estético que se desenvolvem em
nossa cultura informadas pela estratégia conceitual e sensorial da coloca-
ção em “paisagem”.
Diferentemente de suas irmãs mais reconhecidas – as grandes artes:
plásticas, musicais e literárias –, caracterizam-se estas outras pela entra-
nhada dimensão prática, vivencial; ao alcance da mão, por assim dizer.
Seus produtos não se beneiciam completamente – a não ser na arquite-
tura e em alguns outros pequenos segmentos e condições – da sacralidade
romântica dos objetos singulares de devoção. O fato de conterem “valor de
uso” – enquanto “artes aplicadas”, “artes decorativas”, Angewandte Künste –
ameaça-as com uma aura de impermanência e uma suspeita de banalidade
– em eventual conlito com as intenções estetizantes de origem.
O desenvolvimento dessas artes acompanha de maneira muito ime-
diata os movimentos mais amplos de mudança social e reordenação de
valores, envolvidos na história da racionalização do mundo público e
da sentimentalização do mundo privado em curso no Ocidente desde o
século XVII. Seus desenvolvimentos são solidários, por outra parte, da
instituição da grande arte ocidental moderna, igualmente comprometida
com os caminhos maiores da civilização, mas detentora de racionalizações
formais muito mais elaboradas. Basta evocar os ios complexos que vieram
amarrando nestes últimos séculos a transformação da pintura de gênero
– nos temas históricos, na paisagem e no retrato – às transformações da
heroicidade política, das formas do paisagismo e da concepção da pessoa
individualizada.
Norbert Elias descreveu bem, em seu estudo clássico sobre a “socie-
dade de corte” europeia do século XVII,4 o processo pelo qual se desenvol-
veu na cultura ocidental uma modalidade de relação com o ambiente em
Jardinagem como projeto no Ocidente | 49

que o distanciamento entre observador e campo de observação se tornou


uma estratégia básica de construção do sentido do mundo.
Esse campo de observação podia ser o mundo exterior, sob a forma das
paisagens visuais naturais, da vista das alamedas de um jardim barroco ou
da perspectiva embutida nas recém-inventadas pinturas “de paisagem”. Mas
podia ser também o mundo interior, os “horizontes interiores” a que se refe-
re Elias, por meio da prática dos exames da consciência ética e da exploração
dos tesouros da sensibilidade5. O processo de distanciamento, de colocação
do mundo em perspectiva, fazia parte da grande transformação dos valores
característica da modernidade, de suspensão da crença numa razão divina e
da consequente inquietação sobre o estatuto da razão humana.
Luc Boltanski também contribuiu certeiramente para a compreen-
são do fenômeno da perspectivação, no registro da produção de um olhar
distanciado em relação aos próprios humanos, na instituição da piedade
moderna, oposta à compaixão cristã tradicional. Em seu clássico trabalho
sobre “o sofrimento à distância” 6 revelou-nos a solidariedade entre a dis-
tância que passa a se interpor necessariamente entre o sofredor e os que se
dão conta de seu sofrimento, por um lado, e a constituição de um espaço
público “generalizado”, ou universalizado, característico da ordem política
moderna, por outro7. Revela-nos ao mesmo tempo a ação de outros meca-
nismos sociais de elaboração das novas relações societárias pelo distancia-
mento, como a plateia dos teatros, o público dos cafés e a instituição dos
jornais modernos, “observadores” do mundo por meio de seus reporters/
repórteres. Tratava-se em todos esses casos da adoção de “uma observação
sem perspectiva particular”.8
Esses desenvolvimentos tinham uma íntima relação com o novo es-
tatuto de verdade do testemunho dos sentidos corporais no contato com
a empiria produtora das sensações. Uma enorme ênfase na sensorialidade
acompanhava assim a disposição em olhar o mundo à distância: entre a
sensibilidade nervosa periférica e a sensibilidade afetiva íntima disten-
diam-se os novos olhos, ouvidos e línguas da sociabilidade moderna.
Não podemos dissociar desse processo a generalização do olhar cien-
tíico sobre o universo, pela via de telescópios ou microscópios certamente,
mas sobretudo da dúvida sobre a evidência do senso comum, em busca
da verdade oculta sob a aparência banal das coisas.9 Embora Boltanski
50 | Reflexões sobre arte e cultura material

houvesse desprezado explicitamente essa dimensão em sua análise, foi ele


mesmo quem aproximou a teoria das paixões de Adam Smith da revolu-
ção newtoniana – com seu pano de fundo galileano.
Também ocorre em sua análise a correlação desse processo com a “es-
tetização” do mundo, inseparável da observação em regime de paisagem.
O estranhamento intrínseco à tradição artística ocidental moderna, que
acabaria por redundar na “estética do mal”, não é senão uma colocação à
distância da experiência sensível imediata, doravante exposta a traduções,
interpretações, reduções, essenciais à boa e plena incorporação da qualida-
de ‘“cultivada” dos processos vitais.
A disposição para adoção de uma perspectiva universalizada não é
contraditória com a interiorização concomitante dos sujeitos. O proces-
so civilizatório, com sua disciplinarização e seu autocontrole, implica um
investimento na vida interior como instância crucial da vida pública. Esse
“cuidado de si” é a garantia de uma medida comum que amarre os cida-
dãos na nova commonwealth e que faculte aos cultivados um juízo estético
compartilhado e generalizado – ao mesmo tempo uma “opinião pública” e
uma taste culture.
Essa intersecção foi postulada pelos predecessores e contemporâneos
da Naturphilosophie também no tocante ao mundo físico ambiente. Já
Goethe, na Doutrina das cores, buscava articular o conhecimento do mun-
do com a sensibilidade humana – em oposição ao “materialismo” da física
newtoniana. O processo atingiu seu ápice com as publicações de Alexandre
Von Humboldt sobre sua viagem às Américas. O tema das “vistas” apare-
ceu no título mesmo de sua primeira obra, as Vues des Cordillères, e seria re-
tomado nas Ansichten der Natur (vistas, visões, pontos de vista, da Nature-
za). Para Humboldt, a geograia a construir deveria conter uma percepção
integrada do mundo ambiente, do ponto de vista de sua estrutura física, das
condições de manifestação da vida e da sua percepção sensorial, humana.
Essa perspectiva se completaria com a publicação do monumental Cosmos
[1845-62], em que uma versão particularmente serena do monismo na-
turphilosophisch seria uma das inspirações para a constituição das “ciências
humanas” na passagem do século XIX para o XX.10
Essa percepção integrada, holista, bem ao gosto da ilosoia român-
tica, entranhou-se no io de ideias que redundaria na fenomenologia,
Jardinagem como projeto no Ocidente | 51

particularmente pelas mãos de Wilhelm Wundt e de Wilhelm Dilthey.


Um discípulo deste último, Edmund Husserl, cunharia uma série de ex-
pressões associáveis ao que estou chamando aqui de “mundos ambientes”,
entre as quais avulta a de Umwelt (mais linearmente, o mundo circundan-
te),11 retomada posteriormente pelo etólogo Jakob Von Uexküll e, suces-
sivamente, pelo antropólogo Tim Ingold. A categoria expressa no alemão
corrente a moderna ideia de um “meio ambiente”, com as implicações
decorrentes da constituição de uma ciência da ecologia e das lutas pela
preservação ambiental.
Se a paisagem se impõe progressivamente como recurso expressi-
vo no plano das ciências descritivas e interpretativas, outro não é seu
destino no plano da estética da vida e do cotidiano, desde meados do
século XVIII. Solidariamente à airmação de uma paisagem interior, de
um mundo ambiente íntimo, onde razão e emoção se unem à imaginação
para propiciar o alto valor da “criação”, desenvolve-se um intenso projeto
de transformação e reinamento das condições ambientais mais imedia-
tamente próximas da vida cotidiana humana. Como modelo reduzido
da oposição entre mundo público e mundo privado, desdobram-se os
investimentos sobre os cenários externo e interno das próprias residên-
cias das classes cultivadas. No exterior, assiste-se à grande transformação
representada pela invenção dos jardins à inglesa (landscape gardens), como
parte do enorme investimento que mereceu a construção de jardins na
Europa, já a partir do século XVII.12
Embora já o Renascimento, concomitantemente com o gosto pela
perspectiva linear, tivesse investido fortemente naquilo que hoje chama-
mos justamente de “paisagismo”, ou seja, de tratamento do mundo am-
biente como uma paisagem, o apogeu desse gosto se deu com a estética
barroca, seja no formato inicial italiano, seja no formato tardio francês –
comumente chamado de “clássico”, como no exemplo notório do palácio
de Versalhes.
O jardim de Versalhes, esse lugar por excelência da lógica de corte,
fora organizado como uma gigantesca máquina do olhar sensível, com
alternâncias de ritmo e de intensidade que as fontes monumentais subli-
nhavam mais dramaticamente ainda do que o tratamento das plantas e
da estatuária. Seu modelo, generalizado na Europa, logo cederia lugar a
52 | Reflexões sobre arte e cultura material

outra lógica da visibilização e do distanciamento: a dos jardins paisagistas,


íntima engrenagem do gosto romântico.
Esse modelo de jardim, trazido para o Brasil pelo botânico francês
Auguste Glaziou13 em meados do século XIX e ainda hoje visível nos sí-
tios cariocas da Quinta da Boa Vista, do Parque da Tijuca e do Campo de
Santana, combinava a ênfase no distanciamento das “vistas” com recursos
de intimização, em suas grutas, colinas, lagos e bosques discretos.
Efetivamente, o jardim paisagista buscava combinar a amplidão dos
horizontes públicos (ainda que restrita a alguns happy few) com o recolhi-
mento bucólico propício às rêveries du promeneur solitaire. A intimidade com
o mundo vegetal, animada pelos intensos desenvolvimentos da botânica e
da loricultura entre os séculos XVII e XVIII,14 permitia uma notável ex-
pansão dos recursos de expressão das emoções. As novelas românticas se
distendem em espaços naturais ao mesmo tempo vastos e intimistas, cami-
nhadas às montanhas ou às matas, perspectivas sobre o Reno, o Tâmisa ou
o Neva, relexões sobre a homologia entre os estados d’alma e as transfor-
mações sazonais dos bosques e dos canteiros. Sublinha-se a relação desses
investimentos com o horizonte do protestantismo intimista, sentimental,
dos pietistas (como Goethe) aos latitudinários (como Pope).
Essa intimização podia ser mais cultivada na elaboração dos interiores
domésticos, palacianos e burgueses. Mais uma vez na pioneira Inglaterra,
a decoração suntuária, de aparato, começou a ceder espaço ou a se nuançar
com as exigências do “conforto”, da produção de um ambiente elaborado
ao mesmo tempo para expressar a distinção social e a disposição para um
lazer cultivado e intimista.15 O clima do boudoir se estende às zonas semi-
públicas das residências, às bibliotecas e aos escritórios, em íntima e esca-
lonada articulação com os exteriores ajardinados: canteiros loridos próxi-
mos, gramados de mediação, bosquetes verdes à distância. A utilização de
plantas na decoração interior, seja sob a forma das lores cortadas, seja sob a
dos vasos plantados, se amplia enormemente, constituindo desde então um
mercado lorescente ininterrupto.16 Pelo inal do século XVIII passou-se a
transferir para o interior dos palácios os vasos com árvores grandes que an-
tes circulavam apenas entre as estufas e as alamedas, ao sabor das estações.
Logo em seguida, generalizou-se o afastamento dos móveis das paredes,
compondo agrupamentos funcionais e estéticos intercalados com plantas
Jardinagem como projeto no Ocidente | 53

– abrigadas nos recém-inventados cache-pots e “jardineiras”, por exemplo17.


Iniciava-se aí a trajetória da paisagem doméstica ocidental contemporânea,
a que se dedica regularmente uma enorme produção imaginária, proissio-
nal e amadora, impressa e encenada.18
A decoração de interiores e a jardinística amarram considerações fun-
cionais com uma atividade que podemos chamar de intelectual, no senti-
do de explorar sistematicamente os quadros conceituais e as implicações
históricas dos investimentos nas paisagens envolventes do humano, o que
é o próprio processo de estetização – com seus corolários de distinção. A
história da arte caminha paripassu com a botânica e com a literatura – en-
sejando crescentes racionalizações, crescentes exegeses da verdade interior,
mas também o cruzamento entre a produção industrial e a arte. A partir
da Exposição Universal de 1851, em Londres, em que o imenso Palácio de
Cristal abrigava máquinas, obras de arte, jardins e testemunhos das cultu-
ras exóticas, enseja-se um intenso investimento nas “artes decorativas”, nos
arts & crafts, que obrigarão o ferro a assumir todas as formas clássicas e
lorais outrora reproduzidas no mármore e no bronze.19
Em todo esse processo, os jardins (e a vegetação) desempenharam
um papel crucial, como a grande dobradiça entre os ambientes externos,
públicos, e os ambientes internos. Não é conveniente, no entanto, separá-
-los totalmente dos demais fenômenos do processo de colocação em pai-
sagem. É inseparável dos investimentos jardinísticos, o que colocou sob
novo olhar as vistas da natureza. Pode-se sublinhar, como exemplo, a coe-
taneidade do registro de um dos primeiros “parques naturais” preservados
(Yellowstone, EUA, 1872) com a grandiosa realização do Central Park,
de Nova York – ambos sob a inspiração do mesmo paisagista, Frederick
Olmsted. A ideia já estava bem impressa no imaginário romântico, pic-
tural e literário, mas encontrava em meados do século XIX sua chancela
institucional, pública, oicial.20
Também é inseparável desses desenvolvimentos a generalização e a
progressiva massiicação do “olhar turista”, dos que fazem os tours neces-
sários à visualização das paisagens do mundo, numa ampliicação do olhar
distanciado analisado por Boltanski: um verdadeiro plaisir à distance. O lâ-
neur de G. Simmel, suscetível de se transformar no tipo blasé, está na base
dessa disposição, treinada nas paisagens urbanas, dos passeios públicos, dos
54 | Reflexões sobre arte e cultura material

bulevares, das galerias de arte, dos camarotes da ópera – e logo transposta


para essa visitação universal dos portadores dos almanaques Baedecker.21 A
pintura de paisagens, o aquarelismo de viagem e a litograia de reproduções
artísticas logo seriam seguidas pela fotograia, com uma irreversível conso-
lidação do olhar focalizado na câmera escura à procura do enquadramento
da “paisagem” ou do “retrato”.22
Homólogas considerações poderiam ser feitas em relação às grandes
artes, sobretudo a música e a literatura, ao longo desse período. As duas
caminharam juntas num trajeto de espacialização, de produção de paisagens
sonoras e discursivas sempre mais “ambientes”, até cederem, no ritmo das
exigências de mudança intrínsecas ao ideal de vanguarda, ao privilégio da
“maneira”, da “forma”, característico dos desenvolvimentos do século XX. Já
em Mozart, sobretudo nos concertos, a produção de paisagens sonoras se
avivara, prenunciando o expressivismo crescente da “música de programa”,
com suas associações explícitas a perspectivas naturais ou a estados d’alma.
Uma articulação direta foi cultivada no modelo dos Lieder germânicos e
certamente também na da ópera – envolvendo nesse caso as artes cênicas.
As dimensões técnicas desse longo processo podem tender a parecer
mais determinantes do que as culturais, cosmológicas. Devemos conside-
rar, porém, que emergem de disposições preexistentes, a que imprimem
evidentemente rumos e intensidades novas e imprevistas. A industriali-
zação, as tecnologias de produção e conservação de imagens, os recursos
de transporte ao longo do globo, o próprio crescimento do conhecimento
técnico sobre as relações entre a natureza e a ação antrópica são hoje inse-
paráveis da colocação do mundo em paisagem. Não ica suicientemente
claro para a percepção contemporânea como foram cruciais as transfor-
mações das sensibilidades e das sensorialidades ocidentais modernas na
deinição do lugar humano sobre a terra. Pode-se sublinhar as transfor-
mações do olhar, da visão, das vistas e panoramas, certamente – já que essa
ênfase é nativa, fundamental para todo o processo. Mas há alterações mais
“ambientes”, por assim dizer, em que os outros sentidos desempenham
seu papel. Os sons, os odores, os sabores, as percepções táteis e cenesté-
sicas compuseram, tanto quanto o olhar, o quadro da hegemonia do jar-
dim, como modelo da relação homem/mundo.23 Pode-se falar, grosso modo,
de uma longa transição dos dois conceitos clássicos dos jardins: o hortus
Jardinagem como projeto no Ocidente | 55

conclusus e o locus amoenus. O jardim fechado, murado, ainda hegemônico


no Renascimento e no primeiro barroco, cedeu progressivamente lugar
ao mundo como jardim – ao universo, quiçá, se pensarmos nas celebradas
imagens da Terra tomadas do espaço sideral e das extasiantes construções
imaginárias da icção cientíica.24 Por outro lado, o ideal de amenidade e
conforto espraiou-se como corolário de toda paisagem desejada, das mais
íntimas – as do pensamento e das emoções – às mais estendidas e abran-
gentes, passando pelos jardins, pelas cidades, pelos “monumentos naturais”
e pelas “unidades de conservação”. Esse estado de satisfação, de plenitude
do conatus de cada ente, antropocêntrico e culturocêntrico, pode deslizar
inclusive para outras subjetividades, como a dos animais25 ou dos ecosiste-
mas em si mesmos, como emanações localizadas da “vida” ou de Gaia.
Um mesmo desejo de intensiicação interior combinada com o da
maximização da expressão espacial se apresentou vívidamente nas artes
contemporâneas. Às antigas artes cênicas juntou-se a pintura – longa-
mente rainha da compactação e focalização visual, concretizada nessas
paisagens em modelo reduzido que são os “quadros”, autonomizados das
paredes a partir do Renascimento. São particularmente prestigiosas na
arte atual as conigurações chamadas de “instalações”: uma fusão das artes
ambientais com as artes representacionais, que projetam a criação para di-
mensões excepcionalmente vastas26 e recriam, com novos materiais, ambi-
ções totalizantes já presentes no imaginário romântico original. Também
a música popular, ou pelo menos suas manifestações mais tingidas pela
estetização erudita, buscam hoje criar ambientações vivenciais aproximá-
veis da experiência da grande ópera tradicional.27
Esses deslizamentos são exemplares da constituição do regime de
“mundos ambientes” e de “paisagens envolventes” que nos caracteriza
fundamentalmente. O distanciamento não deve ser mais apenas o de um
olhar soberano, de visibilização externa, mas o de um olhar sentimental,
de visibilização interior sobre os mundos projetados – capaz de acolher
e reverberar a dinâmica das emoções que se considera desencadeadas no
íntimo de cada sujeito. Chamei esse mecanismo social, em outro texto, de
um ‘dispositivo de sensibilidade’, parafraseando Foucault, em busca desse
patamar mais abrangente no interior do qual se passou a cultivar a própria
então nascente “sexualidade”.28
56 | Reflexões sobre arte e cultura material

Pode-se objetar que já não damos tanta atenção aos jardins quanto os
ingleses do século XVIII e que a questão do meio ambiente não tem nada
de sentimental. Mas a verdade é que, mesmo em nossas mais pragmáticas
lutas por um mundo ambiente sustentável e protegido, pulsa a sensibili-
dade afetiva da percepção de uma paisagem envolvente.
A defesa da mata atlântica ou da Grande Barreira de Corais não é
apenas um gesto de autopreservação economicista; não só ela se opõe fun-
damentalmente a fortes interesses comerciais imediatistas, como contém
um cultivado afeto por essas preciosas paisagens de um mundo natural
em que vemos espelhados nossos valores mais íntimos de singularidade,
diversidade, beleza, liberdade e autonomia. Uma paisagem moral!

Notas
1
O tema, além de me interessar de perto, serviu de homenagem a minha companheira
de mesa no “Seminário Manifestações Artísticas e Ciências Sociais: relexões sobre arte
e cultura material – UFRRJ”, a socióloga Nathalie Heinich, uma das mais importantes
especialistas da arte contemporânea, discípula de Luc Boltanski e grande divulgadora do
pensamento de Norbert Elias – com quem compartilhei em Paris, anos atrás, a observa-
ção admirada e a relexão sensível sobre os jardins e as paisagens de sua terra.
2
Heinich, 2001, p. 20; citando Elias, 2001, pp. 273-4.
3
Ver, sobre a paisagem na cultura ocidental, e.g., Simmel, 1988 [1912]; Cosgrove, 1984;
Cauquelin, 1989; Conan, 1991; Descola, 1996; Laird, 1993; Hirsch & O’Hanlon, 1995,
e McCall, 1997.
4
Elias, 2001.
5
Cf. Elias, 1990.
6
Boltanski, 1993.
7
“O espaço público supõe a constituição de um observador desprendido, desengajado,
sem compromissos prévios e, sobretudo, sem vínculos locais, capaz de pairar sobre as sin-
gularidades da sociedade, da mesma maneira com que o geógrafo, o cartógrafo ou o pintor
inspirados pelo ideal cartográico pairam sobre as singularidades da paisagem”, Boltanski,
1993. p. 51 (tradução do autor).
8
Boltanski, 1993, p. 44.
9
Cf. Shapin, 2003.
10
“Nature herself is sublimely eloquent. he stars as they sparkle in irmament ill us with de-
light and ecstasy, and yet they all move in orbit marked out with mathematical precision.”
(Humboldt, 1814). Ver sobre Humboldt e paisagem, Recht, 2006 e Ricotta, 2003.
Jardinagem como projeto no Ocidente | 57

11
Seguindo um uso mais explícito da expressão por Heidegger em seu O ser e o tempo.
“In the Ideas II, Husserl introduces the Umwelt as the realm populated by all kinds of things
that present themselves to us in our everyday experience not just in terms of their perceptible
properties, but also in terms of their values and uses to us. It is the world as it shows itself not in
the naturalistic attitude (for instance, that of modern natural science) but in what he calls the
‘personalistic’ attitude in which we actually conduct our daily lives.” (Nenon, 2012).
12
Cf. Buttlar, 1993.
13
Discípulo de Jean-Charles Alphand, o paisagista associado ao Barão Haussmann na
renovação urbana de Paris e de Bordéus.
14
Lembremo-nos de que o mesmo Rousseau produziu um manual de botânica amadora,
a partir de suas herborizações na terra genebrina.
15
Cf. DeJean, 2012.
16
Blacker, 2000. O primeiro serviço de venda, aluguel e manutenção de plantas em vasos
foi instalado em Londres em 1816; o primeiro lorista comercial foi Jules Lachaume,
instalado em Paris, na Chaussée d’Antin, em 1840.
17
Não há como explorar aqui a concomitante transposição também de alguns animais
domésticos, como cães, gatos e passarinhos em gaiolas, para o interior das casas, com-
pondo desde então uma dimensão fundamental da ambiência das residências modernas.
18
A proissionalização impõe hoje uma distinção entre a “decoração de interiores” e o “de-
sign de interiores” (interiorismo, em espanhol), associado à arquitetura e às variantes mais
altas da formalização estetizante. No Brasil contemporâneo, repetem-se com grande su-
cesso em todas as capitais, copiando uma tendência internacional, exposições integradas,
de caráter espetacular (as “Casas Cor”, por exemplo), em que os interesses publicitários e
as paixões estéticas se dão o braço.
19
Os famosos produtos para jardins em ferro fundido do Val-d’Osne se espalharam pelo
mundo, com suas crateras, seus chafarizes e suas ‘fontaines Wallace’ – de que o Rio de
Janeiro tem uma importante coleção, em parte pela inluência de Glaziou (cf. Robert-
-Dehault et al., 2000).
20
Outro exemplo é o da criação da Floresta de Fontainebleau, em 1861, como “reser-
va artística”. Para tanto havia sido fundamental a publicação, por Claude Denecourt, em
1839, de um guia público de visitação e passeio pelas trilhas que ele próprio lá implantava
progressivamente (cf. Schama, 1995 e Pitte, 1989). No Brasil, a ocorrência mais típica é a
da Floresta da Tijuca carioca, recuperada a partir de 1861 e transformada em paisagem e
passeio público pela ação do Barão d’Escragnolle, tornando-se inclusive o cenário do ro-
mance de José de Alencar Sonhos de ouro e de muita produção pictórica oitocentista, como
a das telas de Nicholas-Antoine Taunay. Nessa mesma época, em 1854, horeau publicou
Walden, or Life in the Woods, o relato de uma íntima relação com a natureza e a paisagem
natural produzida como um experimento vital, em uma propriedade de R. W. Emerson.
21
Toda uma teoria do “passeio”, da promenade, da viagem, do deslocamento entre espaços
ou tempos vivenciais é contemporânea da airmação da perspectiva paisagística. Esteve
presente em pioneiros como J.-J. Rousseau ou D. Diderot (2005 [1747]), mas sobretudo
em Karl G. Schele, com sua famosa Arte de passear (2001 [1802]). O tema emergiu cons-
tantemente na literatura, desde a Sentimental Journey de Sterne [1768] até a Recherche de
58 | Reflexões sobre arte e cultura material

Proust [1913-22], passando pela Voyage autour de ma Chambre de X. de Maistre [1872]


e pelas Viagens na minha Terra, de Almeida Garrett [1846]. Para as viagens românticas
germânicas, usou-se o termo Wanderlust (gosto pela viagem), aplicável tipicamente aos
irmãos Humboldt, e que seria o núcleo vivencial do modelo do “trabalho de campo”
dos antropólogos. Tim Ingold retomou o io em sua obra sobre as “linhas” e os “traços”
na experiência humana, concedendo-lhe uma dimensão fenomenológica do mais alto
alcance (2007).
22
É interessante que essas duas designações continuem compondo o quadro de alternati-
vas de relação entre imagem e suporte na impressão por computadores.
23
A palavra inglesa para paisagem, landscape, se presta a grandes manobras vocabulares,
expressivas dessa extensão continuada do termo, como odourscape ou soundscape. O antropó-
logo Arjun Appadurai cunhou um conjunto de locuções desse teor (ethnoscapes; mediascapes;
technoscapes; inancescapes e ideoscapes), buscando atrair para a compreensão dessas dimensões
da vida contemporânea, globalizada, a dimensão holística do termo original.
24
O Blade Runner, de Ridley Scott [1982], continua sendo provavelmente a obra-prima
de uma estética paisagística futurista no cinema, mas não se pode deixar de pensar numa
space opera tão prestigiosa como a da série de Guerra nas Estrelas (George Lucas, 1977) ou
na fascinante caverna dos ovos de monstros, desenhada pelo artista plástico H. R. Giger,
no início de Alien, também dirigido por R. Scott [1979].
25
Cf. Ingold, 2000.
26
Esse processo obedece também a pressões antielitistas ou popularizantes intrínsecas às
formas mais recentes da ideologia da vanguarda moderna, envolvendo uma generaliza-
da “fuga do cavalete”. Suponho que as espetaculares intervenções de Christo & Jeanne
Claude possam ser consideradas o acme dessa manifestação (a que embrulhou o Pont-
-Neuf data de 1985).
27
A construção do mundo como paisagem contém uma permanente tensão entre a ob-
servação distanciada e a participação sensorial densa, que é ainal considerada o “verda-
deiro” testemunho da experiência vivencial íntima. A temática de uma arte de “imersão”
pulsou sob toda a invenção artística romântica, atingindo sua plenitude mais óbvia na
ópera wagneriana enquanto Gesamtkunstwerk. Como não a reconhecer sempre em ação,
em experiências tão diversas quanto os festivais de rock, os desiles das escolas de samba
cariocas ou as reiteradas expectativas em torno de um cinema 3-D, plurisensorial?
28
Cf. Duarte, 1999.

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Algumas perspectivas sobre artes
Algumas perspectivas sobre artes:
institucionalização e identidade disciplinar

Sabrina Parracho Sant’Anna


(CULTIS, PPGCS E DCS-UFRRJ)

O objetivo de organizar a mesa Algumas perspectivas sobre artes no âmbito


de um seminário internacional num Programa de Pós-Graduação emer-
gente foi fundamentalmente ouvir e debater trabalhos recentes de pesqui-
sa que pudessem contribuir tanto para a consolidação da linha de pesquisa
Dinâmicas sociais, práticas culturais, representações e subjetividade no Pro-
grama de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro quanto para a manutenção dos vínculos de uma
rede nacional de pesquisadores que vêm de mais a mais ganhando espaço
nas agências de fomento e nos fóruns nacionais de debate das Ciências
Sociais. Ao convidar os pesquisadores para compor esta mesa, levamos
em consideração a diversidade dos temas a serem abordados, no intento
de contribuir para a divulgação da mais recente produção em Sociologia
e Antropologia da Arte e de fomentar o intercâmbio de questões e ideias
numa área em processo de crescente institucionalização.
A organização desta mesa deu-nos, assim, a oportunidade de conhe-
cer em primeira mão pesquisas em fase de desenvolvimento que apresen-
tam diferentes objetos e diferentes metodologias de pesquisa.
Em sua comunicação, Glaucia Villas Bôas apresenta pesquisa sobre a
instauração de um segundo modernismo brasileiro em meados da década
de 1950 e discute a formação de uma arte concretista no Rio de Janeiro
com base na sociabilidade e na contingência do encontro de atores sociais.
Tentando reconstruir os nexos que tornaram possível a emergência de
uma nova forma artística no país, a autora constrói uma narrativa para o
movimento, baseada em suas relações sociais concretas, evitando as saí-
das fáceis das explicações que fazem uso de genealogias das inluências
forâneas ou recorrem a processos que estão para além da vida cotidiana a
pairar sobre os fatos e se impor sobre eles.
63
64 | Reflexões sobre arte e cultura material

A pesquisa de Maria Lucia Bueno aqui apresentada se debruça sobre


a alta gastronomia como elemento constitutivo dos estilos de vida. Após
analisar o universo dos chefs nas últimas décadas do século XX, Bueno
chama a atenção para as mudanças que se processaram no Brasil nesse
setor da produção cultural, relacionando as descontinuidades nas práti-
cas culturais à construção de identidades em contextos de globalização.
Em certo sentido, também Maria Lucia Bueno procura entender como as
práticas sociais se estruturam na vida cotidiana para conformar processos
sociais nem sempre previsíveis.
Patrícia Reinheimer, por sua vez, apresenta relexão sobre tema que
vem sendo, há algum tempo, objeto de sua análise: a construção da loucura
como categoria classiicatória capaz de deinir agentes e práticas legítimas
dentro do mundo da arte. Neste trabalho em particular, a autora apre-
senta análise comparativa sobre duas exposições ao longo do tempo. De
um lado, a exposição organizada do trabalho de Nise da Silveira e Almir
Mavignier na segunda metade da década de 1940; de outro, a 1ª Mostra
de Arte Insensata do Rio de Janeiro, organizada em 2012 no Centro Cul-
tural Municipal Laurinda Santos Lobos. A comparação, analiticamente
reveladora, descortina as descontinuidades na atribuição de estigmas e
positivação de identidades.
Finalmente, Ilana Goldstein apresenta os resultados de sua tese de
doutoramento sobre a inserção da pintura aborígine australiana no sis-
tema internacional das artes. Chamando a atenção para os processos de
circulação e recepção, a autora discute o modo como se tornou possível
que obras anteriormente classiicadas como primitivas pudessem ocupar
lugar de destaque em coleções nacionais e galerias de arte. Trata-se de
entender como “objetos carregados de signiicados míticos e fabricados
com base em técnicas e códigos indígenas tradicionais fossem progressi-
vamente alçados à categoria de arte”. O trabalho de Ilana Goldstein traz
à tona questões fundamentais para entender a construção da artisticidade,
do mercado e das instituições no mundo da arte.
Fechando o circuito destes trabalhos, o inusitado objeto proposto por
Goldstein dá ainda especial contribuição para que se possa perceber que, ao
abordarem a Arte, as Ciências Sociais brasileiras parecem acionar uma in-
inita gama de diferentes interesses de pesquisa. O convite às pesquisadoras
Algumas perspectivas sobre artes | 65

que compõem o panorama ora apresentado em muito corresponde ao atual


momento de consolidação da investigação sobre as artes com base no ins-
trumental teórico-metodológico das Ciências Sociais. Ao olhar o desenho
que se conformou com o convite a Glaucia Villas Bôas, Maria Lucia Bue-
no, Patrícia Reinheimer e Ilana Goldstein para participar deste evento,
podem se notar duas das principais tendências que se têm veriicado nos
trabalhos em Sociologia e Antropologia da Arte em âmbito nacional: de
um lado, a diversidade temática e metodológica dos trabalhos; de outro, as
abordagens inovadoras que podem contribuir para o conhecimento sobre
arte no Brasil.

O estado da arte

Ao olhar os trabalhos aqui reunidos, vale situá-los em relação ao atual mo-


mento da Sociologia e da Antropologia da Arte no país. Para que seja possí-
vel compor uma mesa tão diversa e com trabalhos de tão alto nível, é preciso
atentar para o processo de institucionalização da arte como objeto para as
Ciências Sociais no Brasil. Se em outros países a formação de grupos de
pesquisa em torno da Sociologia e da Antropologia da Arte vem de longa
data,1 no Brasil a consolidação de grupos, núcleos e linhas de pesquisa dedi-
cados ao objeto é relativamente nova, porém profícua e crescente.
Ao olhar supericialmente o processo de institucionalização da So-
ciologia e da Antropologia da arte no país, chamam a atenção as descon-
tinuidades e os saltos por que passa a área ao longo do tempo. Se, desde a
década de 1940, Roger Bastide já introduzira as primeiras relexões sobre
o campo, muito pouco se publicou sobre o tema mesmo depois da fortuna
crítica da coletânia de Gilberto Velho de meados dos anos 1960, Arte e
sociedade – ensaios de Sociologia da Arte.
Ao recompor a trajetória da Sociologia da Arte no país, a história do
campo retoma o livro de José Carlos Durand como a primeira pesquisa
de mais fôlego realizada no Brasil sobre essa problemática.2 Publicado em
1989, Arte, privilégio e distinção marca a recepção da Sociologia da Arte
francesa no Brasil e se torna referência para as esparsas pesquisas que
começavam a emergir na área.
66 | Reflexões sobre arte e cultura material

É apenas na década de 1990 e princípios de 2000 que a publica-


ção de livros de Sociologia e Antropologia da Arte vai amiúde tomando
corpo e produzindo obras dignas de nota.3 No entanto, é apenas a partir
de meados dos anos 2000 que a área começa efetivamente a se institu-
cionalizar, ocupando espaços nos fóruns de debates das ciências sociais
no Brasil e consolidando uma identidade própria e um conjunto de te-
máticas compartilhadas. Os grupos de trabalho no Congresso Brasileiro
de Sociologia e na Reunião Brasileira de Antropologia vêm sendo fun-
damentais nesse sentido.
Fundado por Lígia Dabul e Rogério Medeiros, o Grupo de Trabalho
de Sociologia da Arte na Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS) vem,
desde 2007, contribuindo para a consolidação da pesquisa sociológica em
Arte no Brasil. Nas três edições em que esteve inscrito como parte da
programação do Congresso Brasileiro de Sociologia, o grupo foi capaz de
agregar sociólogos com relevante produção acadêmica.
Em sua primeira edição em 2007, o Grupo de Trabalho (GT) contou
com trinta comunicações. Na edição seguinte, em 2009, foram proferidas
35 comunicações nas sessões ordinárias e mais oito comunicações nos La-
boratórios de Pesquisa. O volume de palestrantes, 7% maior nas seções
ordinárias, correspondia ao esforço de inclusão de trabalhos num con-
texto de ampliação de demanda. Debatedores foram também convidados
a discutir os trabalhos, colaborando para o fortalecimento das redes de
pesquisadores e reforçando sua articulação nacional.
Mais recentemente, em 2011, a organização do XV Congresso Bra-
sileiro de Sociologia (CBS) informou às atuais coordenadoras4 que o GT
de Sociologia da Arte havia sido um dos grupos com maior demanda, e o
número de comunicações chegou a 36 nas sessões ordinárias.
Já no primeiro encontro do grupo, os resultados se puderam fazer
sentir e tiveram como parte de seus desdobramentos a apresentação da
mesa redonda Sociologia das Artes Plásticas: focos e enfoques de abordagens
comparativas, na edição seguinte do congresso, em 2009. Nessa mesma
edição, múltiplos esforços começaram a ser empreendidos para consolidar
uma agenda de discussões de pesquisa. Em 2010, Lígia Dabul organizou,
na Revista de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará, dossiê
reunindo as comunicações proferidas nas sessões do último encontro. Em
2012, Maria Lucia Bueno organizou o livro A Sociologia das Artes Visuais
Algumas perspectivas sobre artes | 67

no Brasil, lançado pela editora SENAC. Por sua vez, o Seminário de So-
ciologia da Cultura e da Imagem, organizado por Glaucia Villas Bôas na
UFRJ, desde 2004, tem sido pioneiro em procurar convidar pesquisadores
na área para manter contato no encontro que tem periodicidade anual.
Finalmente, também o seminário Manifestações Artísticas e Ciências So-
ciais: relexões sobre arte e cultura material, ora organizado pelo Núcleo de
Pesquisa em Cultura, Identidades e Subjetividades (CULTIS), marca a
consolidação da participação de pesquisadores da UFRRJ nesse debate.
Em múltiplos espaços, a rede de pesquisadores ganha corpo e visibilidade.
É preciso lembrar o esforço de internacionalização do grupo, em
particular o encaminhamento de um dossiê, em torno da sociologia da
arte no Brasil, à revista Sociologie de L’art, reunindo participantes do
grupo; as participações junto ao Research Committee of Art Sociology nas
seções da International Sociological Association; a publicação de um livro
organizado por Glaucia Villas Bôas e Alain Quemin em cooperação bi-
lateral com inanciamento Saint Hilaire/CAPES (no prelo); e a presença
de pesquisadores brasileiros no grupo de pesquisa OPuS, coordenado por
Bruno Péquignot.
Do ponto de vista da Antropologia da Arte, o crescimento da área é
também expressivo. Desde 2006, o GT Arte e Antropologia, criado por
Lígia Dabul e Caleb Faria Alves, na Reunião Brasileira de Antropologia,
tem tido papel fundamental na agremiação de pesquisadores para debates
de suas pesquisas e formação de redes em âmbito nacional. O Grupo de
Trabalho da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) conta também
com número crescente de participantes. Em 2006, o grupo foi inaugurado
com 16 comunicações. Em 2008, embora o GT não tenha sido editado,
duas mesas redondas5 se debruçaram sobre temas correlatos. Em 2009,
foram 19 trabalhos e um painel, e, em 2012, o número saltou para um total
de 25 trabalhos e seis painéis.
Em todos os espaços institucionais a participação da Sociologia e da
Antropologia da Arte vem crescendo frente a temas considerados clás-
sicos nas Ciências Sociais. Em 2012, na reunião da Associação Nacional
de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), as comunicações
sobre o tema, antes esparsamente apresentadas nos GTs de abordagens
correlatas, foram reunidas no Fórum O mundo das artes, práticas sociais e
68 | Reflexões sobre arte e cultura material

dimensão simbólica: pesquisas recentes, coordenado por Glaucia Villas Bôas


e Ana Paula Simioni. A Arte vem crescendo como objeto de estudo em
todos os fóruns das Ciências Sociais.
Ao olhar com mais atenção os trabalhos que vêm sendo apresentados
nesses espaços de discussão de pesquisa, algumas tendências predominan-
tes podem ser delineadas. Numa análise mais detida das comunicações
apresentadas nas sessões dos Congressos Brasileiros de Sociologia,6 Pérola
Mathias e Bruno Bispo chegaram à seguinte conclusão:

Observamos ainda, para iniciar nosso trabalho quantitativo, a curiosa


e luida divisão entre a pesquisa que se considera “cultural” e a que
se considera “artística”, assim pudemos também perceber e analisar o
discurso e a heterogeneidade do pensamento apresentado pelos pes-
quisadores sobre a abordagem e a concepção da “sociologia da arte”.7

Os trabalhos ora apresentados parecem em muito expressar as ca-


racterísticas diagnosticadas por Mathias e Bispo em sua análise dos con-
gressos da SBS. Encontrar relação entre algumas das questões abordadas
tem sido a tarefa das discussões dos fóruns aqui elencados (SBS, ABA,
ANPOCS). A criação do novo e da ruptura no pensamento social, o con-
sumo como estilo de vida, a estigmatização e formação de identidades e
a construção de legitimidade em espaços institucionais são algumas das
questões que norteiam há algum tempo as Ciências Sociais. Que essas
questões sejam, no entanto, colocadas a objetos tão díspares quanto um
movimento artístico de meados do século XX, a arte aborígine australiana,
as classiicações da loucura na arte no Rio de Janeiro e a alta gastronomia
nacional é o que deine a luidez de fronteiras ressaltada no artigo de Ma-
thias e Bispo.
No entanto, a luidez que poderia ser atribuída a alguma diiculdade
de deinição do campo tem sido, ao contrário, ao mesmo tempo deinidora
da identidade das pesquisas em Sociologia e Antropologia da Arte, de sua
capacidade explicativa do mundo contemporâneo, e de sua possibilidade
de encontrar ressonância no mundo da vida. Como procurarei argumentar
a seguir, o turvamento das fronteiras da arte como objeto vem caracte-
rizando o campo e conferindo também a possibilidade de sua fortuna
crítica junto a leitores de disciplinas correlatas.
Algumas perspectivas sobre artes | 69

A construção de uma identidade para a Sociologia


e a Antropologia da Arte

A ideia de uma luidez de fronteiras entre o que se poderia chamar de uma


Sociologia da Cultura e uma Sociologia da Arte, ou outros ramos da So-
ciologia e da Antropologia, parece chamar a atenção quando objetos tão
díspares e metodologias tão dessemelhantes são acionados. No entanto,
se a identidade da Sociologia da Arte poderia ser deinida com pesquisas
sobre uma atividade bastante precisamente delimitada no tempo e no es-
paço, “objeto criado pelos homens da Renascença europeia”,8 fato é que
desde os anos 1960 as nítidas fronteiras que separavam arte e não arte
parecem vir sendo colocadas em questão:

Hoje problemática, a arte costumava ser, em tempos anteriores, fa-


cilmente reconhecível. Ela incluía pintura, escultura, música, poesia e
outras obras literárias cujos conteúdos estavam baseados numa lógica
teórica, historicamente fundamentada e associada a prestigiosas insti-
tuições e grupos de status social.9

Como argumenta Vera Zolberg, as últimas décadas têm assistido ao


turvamento das fronteiras entre alta e baixa cultura, arte erudita e popular, e
os diversos gêneros que antes deiniam o que era a arte socialmente aceita.
Se a arte se deine como aquilo que é socialmente classiicado como tal,
de mais a mais a crítica ao papel das instituições tem sido crescentemente
responsável por uma ampliação do espectro daquilo que pode ser entendido
como objeto de apreciação estética. Quando as autoridades instituídas são
questionadas pelas vanguardas históricas, quando a história da arte deixa de
ser narrada como uma sucessão necessária de formas artísticas em evolução,
as deinições eurocêntricas do bom gosto e do bom senso são colocadas em
xeque e grupos tradicionalmente excluídos das instituições de arte podem
reivindicar o direito à artisticidade, tornando-se também objeto de estudo
sociológico e antropológico, por excelência.
Se, como chamam aqui a atenção Goldstein e Reinheimer, as institui-
ções de arte abriram crescente espaço para os grupos de artistas que Zolberg
deiniria como outsiders, também a Sociologia e a Antropologia da Arte
70 | Reflexões sobre arte e cultura material

ampliaram seu horizonte de interesse e se debruçaram sobre a artisticidade10


de objetos tradicionalmente tidos como não arte. Desse modo, também a
moda e a gastronomia, que aparecem no importante artigo de Maria Lucia
Bueno, podem ser tomadas como objeto de análise da área.
As consequências sobre a deinição de um métier próprio para a So-
ciologia e a Antropologia da Arte não param na ampliação do espectro de
objetos que podem ser abarcados pelas disciplinas, mas, sobretudo, esbar-
ram na possibilidade de pensar o objeto da apreciação estética com base
numa metodologia que é especiicamente pertinente às Ciências Sociais.
Na medida em que o mundo da arte deixa de deinir o objeto de aprecia-
ção baseado numa essência que lhe é própria e passa a entender que, como
a fonte de Duchamp, a artisticidade do objeto se deine do ponto de vista
de seus mecanismos de recepção e produção social, a obra pode se tornar
por excelência objeto das Ciências Sociais. Quando a obra de arte perde
não apenas sua aura, mas também sua sacralidade, solapando museus e
instituições, faz sentido que ela se torne mais que objeto da estética, objeto
de análises que se perguntam sobre o lugar das relações sociais na produ-
ção de bens de cultura e da arte.
Se o métier do sociólogo consiste em analisar racionalmente os fenô-
menos que observa, apreender o sentido das ações sociais ou os processos
que as encompassam, faz sentido que Glaucia Villas Bôas retome o estudo
do surgimento de uma nova forma artística nos anos 1950 do ponto de
vista da sociabilidade que lhe dá origem, em detrimento das análises pu-
ramente formais que são tradicionalmente objeto da estética e da crítica
de arte. A possibilidade de pensar a arte em escopo ampliado, procurando
entender as especiicidades de sua produção, recepção e circulação como
fenômeno social, é o que vem dando a pertinência e o crescimento da arte
como objeto legítimo das Ciências Sociais.
Não por acaso também a Sociologia e a Antropologia da Arte vêm
tendo espaço ampliado nas interpretações sobre a arte. A recente publica-
ção de livros de referência, como os de Nathalie Heinich, Sociologia da Arte
(2008), de Vera Zolberg, Para uma Sociologia da Arte (2006), e de Raymon-
de Moulin, O Mercado de Arte (2007), atesta que, ao menos no mercado
editorial, há crescente público para o tema. Ao organizar a mesa Algumas
perspectivas sobre artes, levamos em consideração não apenas o crescente in-
teresse da Sociologia por explicações que levem em consideração a cultura
Algumas perspectivas sobre artes | 71

e a produção cultural, como tem salientado Arturo Morató,11 mas sobre-


tudo a percepção de que a arte tem de mais a mais ampliado seu escopo e
demandado análises que façam uso do instrumental sociológico para seu
entendimento. A publicação dos presentes textos se dirige tanto aos es-
pecialistas na área quanto aos diferentes campos que se debruçam sobre
temas correlatos, borrando também do ponto de vista analítico as margens
das fronteiras disciplinares.

Notas
1
Ver, p. ex., Péquignot, 2009.
2
Bueno, 2012, p. 12.
3
Ver, p. ex., Miceli, 1996; Bueno, 1999; Dabul, 2001; e Simioni, 2002.
4
A edição do Grupo de Trabalho de Sociologia da Arte foi coordenada em 2011 por
Maria Lucia Bueno e Sabrina Parracho Sant’Anna.
5
Antropologia & Estética II: A Arte como Conhecimento Antropológico e Arte e Patrimônio
Cultural Indígenas.
6
O trabalho de Mathias e Bispo consistiu no levantamento de todos os trabalhos apre-
sentados nos dois últimos congressos da Sociedade Brasileira de Sociologia nas suas se-
guintes categorias: o grupo “Sociólogos do futuro”, que agrega a apresentação de pôsteres
de pesquisadores da graduação e mestrado; os “Grupos de Trabalho”, que contam com a
apresentação oral de mestres, doutores e pós-doutores, com variações dos critérios entre
um congresso e outro; e, por im, as “Mesas Redondas”, cuja proposta é ter o tema discu-
tido por convidados.
7
Mathias; Bispo, 2012.
8
Péquignot, 2009, p. 11.
9
Zolberg, 2010.
10
Cf. Crane, in Bueno, 2011.
11
Morató, 2009.

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72 | Reflexões sobre arte e cultura material

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Site da Associação Brasileira de Antropologia. http://www.abant.org.br/ (con-


sultado em 02/03/2013)
Os dois lados do concretismo

Glaucia Villas Bôas (UFRJ)

“…vi que havia uma preocupação de espaço mais do que uma


simples localização de objetos no espaço. Por exemplo: vi que
uma praia muito longa era rigorosamente colocada sobre um
triângulo em movimento, em certa altura outro triângulo em
contramovimento, de repente uma sinuosa cortando tudo, mas
eu ainda não fazia com essa intenção. Com o decorrer do tempo
vi que construía mais do que documentava”.
(Aluísio Carvão)1

Textos programáticos como o Manifesto ruptura (1952), o Manifesto


neoconcreto (1959), A teoria do não objeto (1959), seguidos de imagens do
Suplemento Dominical do Jornal do Brasil (1956-1961) e talvez de uma
imagem de Formas (1951) de Ivan Serpa, um dos Bichos (1960-64) de
Lygia Clark ou um Metaesquema (1958/1959) de Helio Oiticica com
referências aos críticos Mario Pedrosa e Ferreira Gullar são “ingredien-
tes” que há mais de sessenta anos coniguram a memória do concretismo
como um movimento histórico social. Está por se fazer a crítica cons-
trutiva das fontes impressas e iconográicas que recorrentemente servem
de base aos catálogos de exposições, aos textos de blogs e pesquisas aca-
dêmicas sobre a arte concreta no Brasil, e procurar novas fontes e inter-
pretações que alarguem os horizontes do conhecimento da virada da arte
concreta no Brasil, contribuindo para a revisão que vem sendo feita nos
últimos anos. O texto “os dois lados do concretismo” quer contribuir para
incentivar a pesquisa sobre o movimento, agrupando, ainda que inicial e
precariamente, alguns dados históricos sobre o surgimento da arte con-
creta no Rio de Janeiro e em São Paulo, com o intuito de perguntar pelas
73
74 | Reflexões sobre arte e cultura material

diferenças que geraram tantas tensões e pelejas e acabaram por dividir os


artistas concretos e adeptos ao concretismo, dissolvendo o movimento.
Em 1955, Ferreira Gullar integrou a equipe do Suplemento Domi-
nical do Jornal do Brasil, tornando-se seu editor de artes visuais. Aos 25
anos, o poeta e crítico de arte escreve no SDJB os primeiros textos sobre
a poesia concreta e, em 1959, publica o Manifesto neoconcreto e a Teoria do
não objeto. Nos dois últimos escritos, Gullar distingue o aparecimento de
uma nova vertente concretista entre os artistas cariocas, deinindo-a em
oposição ao concretismo racional, cientíico e matemático. Enquanto o
manifesto estabelecia os parâmetros de distinção do neoconcretismo, a
Teoria do não objeto se ocupava do desdobramento do plano bidimensional
no espaço como um desenvolvimento histórico da arte.2
As pelejas de Ferreira Gullar e Waldemar Cordeiro, crítico de arte e
artista concreto, separando as vertentes carioca e paulista do concretismo,
ganharam centralidade no debate sobre as artes visuais. A mobilização de
teorias para fundamentar as tendências do concretismo, a exemplo das
ideias de Merleau Ponty por Ferreira Gullar e de Konrad Fiedler por
Waldemar Cordeiro, não impediu que a adesão ao concretismo ou ao neo-
concretismo fosse atribuída à naturalidade dos artistas. A naturalidade3
ou local de moradia diicilmente imprimiriam as qualidades de maior ou
menor rigor às formas geométricas ou de maior ou menor afeição à objeti-
vidade ou subjetividade. Contudo, as relexões de Mario Pedrosa, em texto
de 1957, “Paulistas e cariocas” ,4 relativas à maior ou menor ainidade de
coletividades sociais com a teoria, qualiicou os paulistas de teóricos e os
cariocas de empíricos. Tais relexões contribuíram para irmar na história
da arte uma disputa entre cariocas e paulistas sobre as diferenças de suas
obras. A polêmica cariocas versus paulistas não acrescentou subsídios à
análise das diferenças do desenvolvimento da produção plástica dos artis-
tas concretos; ao contrário, obstaculizou um exame mais acurado das duas
orientações do concretismo brasileiro.
Em dezembro de 1956 foi organizada a I Exposição Nacional de
Arte Concreta no Museu de Arte Moderna de São Paulo, exibida no Rio
de Janeiro, em fevereiro de 1957, no Museu de Arte Moderna instalado
no Ministério da Educação e da Cultura. A exibição fora planejada em
São Paulo com o objetivo de ampliar a discussão sobre o concretismo na
Os dois lados do concretismo | 75

poesia, nas artes plásticas e no design em nível nacional. À participação


ativa dos paulistas nas revistas Arquitetura e Decoração, Módulo, Vértice e
Noigandres, acrescentou-se a participação de Ferreira Gullar e dos irmãos
Campos no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, de grande pene-
tração nos meios artísticos e intelectuais, tanto pelas suas matérias quanto
pelo seu projeto gráico de autoria de Reynaldo Jardim, diagramador e
poeta concreto. A exposição exibiu textos de poesia, escultura, pintura,
desenho e gravura. Crescia o movimento neoconcreto na poesia com Dé-
cio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos, Reynaldo Jardim, heon
Spanudis e Ferreira Gullar. O Manifesto Plano-Piloto para a Poesia Con-
creta foi lançado nesta exposição.5 Os textos poéticos foram expostos jun-
to às obras bidimensionais nas paredes, alinhados pela base com o objetivo
de evitar a hierarquização entre eles. No que respeita à produção plástica,
entretanto, ao serem postas lado a lado as diversas obras, sobressaíram-
-se as diferenças da produção dos dois grupos, gerando polêmicas.Essas
polêmicas tinham como eixo o racionalismo impregnado na produção dos
artistas radicados em São Paulo versus o expressionismo dos artistas in-
tegrantes do Grupo Frente, além de seu subjetivismo e sensualismo, con-
trastante com o formalismo e a objetividade dos paulistas.6
As discussões sobre a I Exposição Nacional de Arte Concreta leva-
ram ao Manifesto neoconcreto, lançado em março de 1959, e assinado por
Amílcar de Castro, Ferreira Gullar, Franz Weissmann, Lygia Clark, Lygia
Pape, Reynaldo Jardim e heon Spanúdis. Liderado por Ferreira Gullar, o
manifesto tinha como objetivo a distinção entre o concretismo do Rio de
Janeiro e o de São Paulo. Mario Pedrosa encontrava-se no Japão, onde or-
ganizara uma exposição de arte brasileira e ocupava-se com a programa-
ção do I Encontro Extraordinário de Críticos de Arte sobre a cidade de
Brasília, a ser realizado no Brasil. Ferreira Gullar escreve-lhe uma carta7
prestando conta do manifesto e argumentando em favor da deinição das
diferenças existentes entre os dois grupos. Advertia não ser mais possível
identiicar ciência com a arte, mas valorizar a expressão visual, plástica,
imaginativa e existencial das formas. A repercussão do manifesto levou à
cisão do movimento. Exposições e textos críticos sobre o concretismo e o
neoconcretismo foram realizadas de 1959 até início de 1960,8 quando os
grupos e seus líderes começam a se dispersar.
76 | Reflexões sobre arte e cultura material

Se as cidades, onde os grupos surgiram, propiciaram cenários dife-


rentes para suas práticas artísticas, o desenrolar dos acontecimentos evi-
dencia que os concretistas numa ou noutra metrópole usaram estratégias
distintas para enfrentar as resistências às suas proposições estéticas e al-
cançar o reconhecimento que almejavam, o que provavelmente lhes deu a
chance de construir uma identidade própria.

No Rio de Janeiro, o Ateliê do Engenho de Dentro, como parte do Setor


de Terapia Ocupacional do Hospital Nacional Psiquiátrico Pedro II, di-
rigido pela psiquiatra Nise da Silveira, protagonizou um feito importante
na história do concretismo na cidade.9 Sua montagem deve-se ao artista
Almir Mavignier. Ele orientava os pacientes a pintar e desenhar. Logo
angariou a simpatia e o interesse de Abraham Palatnik, Ivan Serpa e Ma-
rio Pedrosa, com os quais conviveu durante cinco anos, de 1946 a 1951,
acompanhando e discutindo com outros artistas e críticos a qualidade das
obras dos artistas/internos do Ateliê, a exemplo de Lygia Pape e Leon
Dégand, diretor do Museu de Arte Moderna paulista. As primeiras ex-
posições da produção dos pacientes esquizofrênicos, realizadas em 1947
e 1949, no Ministério da Educação e Saúde e no MAM de São Pau-
lo,10 renderam uma polêmica de dois anos na imprensa carioca e paulista.
Nela não aparece a palavra concretismo ou construtivismo, mas o termo
modernismo dividia os críticos, que debatiam, calorosamente, os limites
entre a normalidade e a anormalidade, arte e razão, academicismo e expe-
rimentação. Discordavam quanto às questões de autoria e do estatuto do
artista. Que obras poderiam ser nomeadas obras de arte? Argumentavam
com veemência que entre os doentes não havia nenhuma atribuição de
sentido, muito menos a intenção de compor uma obra de arte. Os traba-
lhos dos internos do Engenho de Dentro não poderiam ser classiicados
no campo das artes porque àqueles pintores faltava discernimento, razão
e vontade. Os críticos não tinham posições idênticas quanto aos limi-
tes entre normalidade e anormalidade. Para alguns, a razão não era mais
suiciente para fundamentar o juízo artístico, desde que a psicanálise, a
Os dois lados do concretismo | 77

crítica bergsoniana e o surrealismo se difundiram nos meios intelectuais


no século XX. O crítico paulista Sergio Milliet posicionou-se, distinguin-
do os elementos estéticos de sociológicos, históricos e psicológicos das
obras expostas. Apostando nessa distinção, mostrou que, entre os nove
artistas do Ateliê, que expuseram suas obras no MAM de São Paulo, qua-
tro apresentavam obras de grande valor artístico, enquanto os restantes
demonstravam apenas expressividade em suas obras. A loucura não era
para o crítico condição sine qua non para a confecção de trabalhos com
valor artístico, com o que concordava Nise da Silveira, autora do texto do
catálogo da exposição: “Haverá doentes artistas e não artistas, assim como
entre os indivíduos que se mantêm dentro das imprecisas fronteiras da
normalidade só alguns possuem a força de criar formas dotadas do poder
de suscitar emoções naqueles que as contemplam11.”
Ao lado de Adelina, Fernando Diniz, Carlos Petuis, Arthur Amora,
Kleber, Raphael e Isaac Liberato, Emydio de Barros foi um daqueles
pintores internos que causavam espanto e emoção. Pintor de memória,
segundo Mavignier, pintava tela sobre tela sem interrupção. Era preci-
so sempre dar-lhe mais telas. Mais de uma década depois das primeiras
exposições, Mario Pedrosa escrevia sobre sua pintura, ressaltando a com-
posição e o desenho além da distribuição das cores por massas e linhas
cromáticas: “Raros entre os raros, no Brasil, ele compõe pela cor, como
mandava Cézanne, e daí seu ‘impressionismo’ ter estupenda solidez estru-
tural. Seu Jarro de lores é, sem favor, uma obra prima da pintura brasileira,”
advertia o crítico.12
No debate sobre arte e loucura, destacou-se a crítica de Mario Pe-
drosa. Ele assumiu uma posição distinta de seus colegas Quirino Campo-
iorito, Rubem Navarra e Sergio Miliet ao defender o caráter artístico dos
desenhos e da pintura dos internos. Airmava que a quebra dos cânones
renascentistas com o advento da pintura moderna havia gerado uma in-
compreensão quanto à concepção de arte. Advertia que a criação artística
estava relacionada à imaginação, à intuição, à sensibilidade, desvinculando-
-se cada vez mais dos cânones convencionais. As experimentações eram
fundamentais para que um indivíduo aprendesse com suas emoções e “pu-
sesse no mundo” formas que transmitissem modos de sentir e imaginar.
Tais formas tinham força intelectual porque organizavam a intuição, mas
78 | Reflexões sobre arte e cultura material

não podiam ser consideradas expressão de um projeto intelectual conscien-


te. A diferença da análise crítica de Pedrosa à dos outros críticos se dá em
sua convicção na ruptura de um padrão estético. Suas relexões sobre a Psi-
cologia da Forma lhe garantiam instrumentos conceituais para as querelas
sobre as exposições do ateliê do Engenho de Dentro, mas principalmente
para alcançar o reconhecimento de seu projeto construtivista de renovação
da linguagem artística, que o crítico acalentava desde sua chegada do exílio
nos Estados Unidos.13
Quando, em 1951, o acervo do Ateliê de Pintura transferiu-se para
o Museu de Imagens do Inconsciente, criado e dirigido por Nise da Sil-
veira, para ins de estudo e pesquisa das imagens do inconsciente, os três
jovens artistas tinham se convertido ao concretismo. Em 1951, Ivan Serpa
recebeu o Prêmio de Aquisição de Jovem Pintor com o quadro Formas, na
I Bienal de São Paulo, e abriu seu Ateliê Livre de Pintura, na sede provi-
sória do MAM, que funcionava nos pilotis do Edifício do Ministério da
Educação e Saúde. Abraham Palatnik expôs sua primeira obra cinética
na mesma Bienal sob estímulos de Mario Pedrosa, e Mavignier ganhou
uma bolsa na França e depois na Alemanha, onde foi aceito na primeira
turma da Escola de Ulm, sob a direção de Max Bill.
As mudanças ocorridas no Ateliê do Engenho de Dentro levaram ao
im os encontros regulares entre os artistas e o crítico Mario Pedrosa, po-
rém a convivência muito próxima entre eles, ao longo de cinco anos, dei-
xou um saldo positivo para o reconhecimento da arte concreta no Brasil.
O quadro Formas (1951), de Ivan Serpa, tornou-se um ícone do concretis-
mo, contribuindo para divulgar a nova orientação estética. Ao comentar a
obra, Fabiana Barcinski enfatiza a expectativa de movimento criada pelo
quadro, apesar de suas formas estáticas, e o contraste entre o seu caráter
artesanal e a orientação concretista de um afazer universal: “A construção
apresentada nessa tela alcança um grau de equilíbrio que prende a atenção
de quem o vê por criar uma expectativa de movimento, como uma dança,
que nunca se realiza de fato, das formas circulares que dominam o espaco
pictórico14.” Entre outros legados, a experência sui generis do Ateliê do
Engenho de Dentro revelou a Abraham Palatnik uma nova possibilidade
da criação artística. Ele juntou tecnologia e cinética ao criar seus apare-
lhos cinecromáticos, inventando um mecanismo complexo que obedecia
Os dois lados do concretismo | 79

ao principio do caleidoscópio e facultava ao expectador a visão do movi-


mento de diferentes formas coloridas, compondo-se e decompondo-se
com delicadeza e leveza ímpares.
A rede de jovens que havia se unido a Mario Pedrosa encontra no
Ateliê Livre de Pintura de Ivan Serpa um novo espaço de sociabilidade,
o que o torna um dos principais elos da cadeia de acontecimentos que
contribuem para a imposição e a consagração da arte concreta no Rio
de Janeiro. Na realidade, a experiência e o convívio ocorridos no Ateliê
do Engenho de Dentro e a polêmica sobre arte e loucura, protagonizada
pelos críticos cariocas e paulistas, estavam intimamente associados à aber-
tura do curso de Ivan Serpa no Museu de Arte Moderna e, consequente-
mente, à formação do Grupo Frente. As realizações revelavam efeitos do
projeto político e inovador das artes plásticas acalentado por Mario Pe-
drosa.15 O curso de Ivan Serpa, com apoio de Niomar Sodré, diretora do
MAM, e Carmem Portinho, engenheira que dirigia as obras da nova sede
do museu,16 signiicou mais do que uma simples alternativa aos ateliês de
ensino da arte, tornando-se um lócus especial em que o pintor, utilizando
uma metodologia nada convencional, insistia na pesquisa da forma. Serpa
pedia aos alunos que desenhassem ou pintassem algo que estivesse na sua
imaginação, recomendando um conjunto de exercícios por meio dos quais
os alunos desenvolviam exaustivamente suas criações, fazendo com que
apresentassem por si suas necessidades de busca da forma, da cor, do equi-
líbrio, da harmonia.17 Transmitia o que aprendera com Pedrosa no Ateliê
do Engenho de Dentro sem, entretanto, nomear as diretrizes de seus ensi-
namentos e experiências de construtivistas. Considerado um mestre seve-
ro, o aluno fazia diversos exercícios com base na ideia inicial até encontrar
um resultado satisfatório. A crítica de Mario Pedrosa, Ferreira Gullar e
Jayme Maurício deu grande visibilidade às aulas de Serpa, impulsionando
o projeto de renovação das artes no Rio de Janeiro na direção da abstração
geométrica e do concretismo.
A atividade intensa de Ivan Serpa,18 no início da década de 1950,
culminou com a criação do Grupo Frente, que expõe na Galeria IBEU,
em 1954, no MAM/RJ, e, posteriormente, em 1956, em Resende e Volta
Redonda. A primeira exposição, apresentada pelo crítico Ferreira Gullar,
exibiu obras de Aluísio Carvão, Carlos Val, Décio Vieira, Ivan Serpa, João
80 | Reflexões sobre arte e cultura material

José da Silva Costa, Lygia Clark, Lygia Pape e Vicent Ibberson; a segun-
da teve apresentação de Mario Pedrosa. O grupo era assim apadrinhado
por dois dos críticos de maior destaque na imprensa carioca à época. Aos
fundadores do grupo se uniram Abraham Palatnik, César Oiticica, Franz
Weissmann, Hélio Oiticica, Rubem Ludolf, Elisa Martins da Silveira e
Emil Baruch. A historiograia,19 fundada nas pelejas críticas dos integran-
tes do concretismo, sublinha na constituição do Grupo Frente a inexistên-
cia de determinação clara em direção ao concretismo, ressaltando que nele
havia tendências diversas, inclusive o primitivismo, característica que em
muito o distinguia do Grupo Ruptura, radicado em São Paulo e seguidor
dos preceitos da arte concreta sob a orientação de Waldemar Cordeiro.
Os argumentos não eram muito convincentes: dizia-se que Ivan Serpa era
contrário aos ismos e Mario Pedrosa evocava a liberdade de criação, conse-
quentemente, o grupo não tinha projeto renovador. Contudo essas ideias
passaram com força para a fortuna crítica do Ateliê de Ivan Serpa e do
Grupo Frente, repetindo-se em verbetes de enciclopédias, textos e catá-
logos de exposições, retrospectivas, quando não em pesquisas acadêmicas.
Na realidade, os artistas que estudaram com Ivan Serpa e aprenderam os
ensinamentos libertários de Mario Pedrosa, por meio de uma convivência
muito próxima com ambos,20 foram forjando uma identidade com base
nos valores estéticos que lhes eram incutidos, nas exposições coletivas, no
favorecimento dos críticos e incentivo à experimentação. Um trecho da
entrevista concedida por Aluisio Carvão é esclarecedor do modo como os
artistas foram constituindo sua identidade:

[…] senti que o entendimento de linguagem e de procura de algo, a


existência de uma ainidade, foi em torno do movimento que a gente
tinha com Ivan Serpa, com Palatnik e depois Pedrosa, Gullar. Co-
meçamos a conversar, a fazer reuniões para ter um pensamento, man-
ter o mesmo vocabulário, entende? 21

No Rio de Janeiro, o surgimento do concretismo se deve aparente-


mente ao entrecruzamento de indivíduos com interesses ains cujas ini-
ciativas e ações encadeiam-se numa sequência que se inicia com a criação
do Ateliê do Engenho de Dentro, desloca-se para as aulas de Ivan Serpa
Os dois lados do concretismo | 81

no Ateliê Livre de Pintura do Museu de Arte Moderna e culmina com


a formação do Grupo Frente. A crítica de arte sob a liderança de Mario
Pedrosa garantia os primeiros passos do construtivismo e, ao incentivar
os jovens e insistir no caráter libertário da experimentação, os reconhecia
e legitimava.

O entrecruzamento de fatos, indivíduos e instituições foi diferente em


São Paulo. Não havia na capital paulista uma instituição tão antiga, con-
solidada e poderosa quanto a Escola Nacional de Belas-Artes, verdadei-
ro baluarte a que se opuseram os modernos igurativos e concretos. Ao
campo artístico paulista, entretanto, pertenciam tanto os integrantes mais
ativos da Semana de 1922 quanto os idealizadores da Bienal de São Paulo,
que cunharam, cada grupo a seu modo, projetos voltados para o futuro
moderno. A vanguarda concreta paulista enfrentou fortes resistências dos
partidários do modernismo igurativo, que expressavam suas convicções
sem temor, como o fez Di Cavalcanti:

O realismo é sempre rico quando não se limita a um exercício hábil


de reprodução da realidade – é o realismo dos atenienses, dos venezia-
nos da renascença, de Coubert, de Corot, Daumier, Renoir, Degas, e
mesmo Picasso, na sua fase anterior ao cubismo. Pode haver hoje um
realismo que não menospreze as pesquisas técnicas modernistas? Sim.
O que acho, porém, vital é fugir do abstracionismo. A obra de arte dos
abstracionistas, tipo Kandinsky, Klee, Mondrian, Arp, Calder é uma
especialização estéril. […] Os apologistas dessa arte, como o senhor
Léon Degand, ora entre nós, possuem uma verve terrível que consiste
em acumular deinições para deinir o indeinível.22

As adversidades e as disputas não impediram, entretanto, que o cam-


po artístico se renovasse. Em “Balanço da vida oicial das artes plásticas
em 1950”, publicado em 1951, na Folha da Manhã, Waldemar Cordeiro
assinala as mudanças ocorridas nas instituições da cidade, mencionando as
82 | Reflexões sobre arte e cultura material

atividades da Galeria Domus, as exposições e os cursos promovidos pelo


Museu de Arte Moderna, entre os quais iguravam os cursos práticos de
gravura, livre desenho com modelo vivo e o clube infantil de arte. Cordeiro
faz um “prognóstico auspicioso” para as artes plásticas, sem, no entanto,
deixar de chamar a atenção para os altíssimos gastos de instituições na
compra de obras ou na própria manutenção, em detrimento do apoio aos
artistas com condições socioeconômicas precárias, advertindo sobre a ne-
cessidade de maior apoio à classe artística da qual dependia a produção da
arte: “Ressalta-se particularmente o esforço dos artistas modernos paulis-
tas que, apesar das diiculdades econômicas com que lutam, forneceram
quase todo o material das exposições realizadas.”23
Os reclamos de Waldemar Cordeiro fazem relembrar a hipótese de
Aracy Amaral sobre as diferentes tendências artísticas entre o grupo ca-
rioca e paulista. Para a crítica e historiadora da arte, os artistas paulistas,
vinham de classes médias pouco abastadas, e sua origem social os levou
cedo a buscar uma formação proissionalizante, em escolas ou nos cursos
oferecidos no Museu de Arte Moderna de São Paulo: Luiz Sacilotto
era desenhista técnico; Cordeiro, publicitário, ilustrador e paisagista; Fia-
minghi, cromista, gráico e publicitário; Barsotti, artista gráico; Maurício
Nogueira Lima, arquiteto e cartazista; Willys de Castro, artista gráico;
Fejer, químico industrial; Wollner, artista gráico; Geraldo de Barros, fo-
tógrafo, desenhista gráico e cartazista; Antonio Maluf, cartazista e vitri-
nista; e Leopoldo Haar, paginador, cartazista, vitrinista e diagramador.24
A pertença a classes menos abastadas e a formação proissionalizante do
grupo paulista teriam propiciado, segundo Aracy Amaral, escolhas volta-
das para a produção de objetos mais industriais que artesanais. De início,
o Grupo Ruptura fora inluenciado por Mondrian e pelos neoplasticistas,
valorizando a invenção das formas e os trabalhos seriais e modulados.
Mas a presença da delegação suíça na primeira Bienal e as concepções de
Max Bill provocaram uma mudança notável no trabalho do grupo.

Foi de tal índole o impacto da delegação suíça da I Bienal que quase


instantaneamente todos deixam a tela pintada a óleo e, seguindo as
observações dos suíços […] passam a pintar sobre “Eucatex”, recor-
rendo logo ao esmalte para a mais rigorosa pintura das superfícies,
Os dois lados do concretismo | 83

aos poucos abandonando o pincel pela pistola, evitando, portanto, não


apenas o material de remanescência artesanal como a sua manipula-
ção por um processo mais diretamente relacionado com a indústria.25

A hipótese de Amaral abre o leque de possibilidades sociológicas que


permite compreender as escolhas feitas pelos artistas concretos paulistas,
muito embora a origem social e a formação proissional não justiiquem na
sua inteireza as preferências e as escolas do Grupo Ruptura. Acrescente-se
à formação social do Grupo Ruptura o teor do projeto renovador de Wal-
demar Cordeiro, com metas e regras muito bem-deinidas, enquanto no
Rio o projeto de Mario Pedrosa não se inicia com a proposição de regras,
mas com o debate sobre arte e loucura; a crítica à obra de Calder 26 e a tese
“Da natureza afetiva da forma na obra de arte”, escrita em 1949. A discus-
são dos princípios do construtivismo foi paulatinamente convencendo os
artistas à experimentação sem a rigidez de um nome ou de um rótulo.
Em São Paulo ocorreram iniciativas relacionando arte e loucura.
O tema interessou artistas como Tarsila do Amaral, Lasar Segall, Flávio
de Carvalho e Alice Brill. A Colônia Psiquiátrica do Juqueri, localizada
na região metropolitana, tinha sido objeto de atenção do médico Osório
César,27 estudioso da estética primitivista e autor de A expressão artística
dos alienados, de 1929, e A arte nos loucos e vanguardistas, de 1934. Nos
anos 1950, com a abertura de um ateliê, Maria Leontina Franco da Costa
acompanhou o trabalho plástico de diversos pacientes.28 Contudo, a dis-
cussão sobre arte e loucura nem de longe teve a dimensão que alcançou
no Rio, no que concerne ao surgimento do concretismo. Em São Paulo,
a liderança do movimento estava nas mãos do artista plástico Waldemar
Cordeiro, nascido em Roma e portador de dupla nacionalidade, que che-
gou ao Brasil, em 1946, aos 20 anos de idade, para trabalhar como jorna-
lista fazendo reportagens e ilustrações. Iniciara sua formação em Roma na
Accademia di Belle Arti di Roma, onde aprendeu gravura e pintura. Logo
depois de sua chegada, além das atividades no jornal Folha da Manhã,
Cordeiro conheceu Geraldo de Barros, Luiz Sacilotto e Lothar Charoux,
com os quais compartilhou seus projetos de mudança no campo da arte.
Em 1949, têm início as primeiras atividades de artistas junto a Cordeiro,
com a realização de pesquisas com linhas horizontais e verticais, além da
84 | Reflexões sobre arte e cultura material

criação do Art Club de São Paulo, dedicado ao experimentalismo. Cor-


deiro opta pela nacionalidade brasileira, ao voltar de breve viagem à Itália,
e, logo depois, tem exibida sua obra Movimento na I Bienal de São Paulo.
No quadro, Cordeiro põe em jogo a precedência de uma forma sobre a
outra e de uma cor sobre outra, ao dispor faixas de diferentes tamanhos e
cores, numa sequência em busca de equilíbrio.
Em 1952, promove a exposição e lança o Manifesto Ruptura no Mu-
seu de Arte Moderna de São Paulo. O manifesto não foi bem recebido
pelo crítico Sergio Milliet, acadêmico da Universidade de São Paulo e
ligado à criação do Museu de Arte Moderna e da Bienal. Milliet desqua-
liica o manifesto pela falta de explicação clara dos princípios norteadores
do programa de renovação das artes plásticas. A resposta de Cordeiro não
tarda. Fazendo uso de texto crítico de Milliet sobre Cícero Dias, Cordeiro
conclui que a crítica de Milliet serviria apenas para os “joguinhos políticos
do mundanismo artístico”.29
Cordeiro vive a efervescência das disputas vanguardistas, defen-
dendo a arte concreta e polemizando com os críticos Sergio Milliet e
Ferreira Gullar. Integra-se deinitivamente aos circuitos da arte concreta,
juntando-se aos poetas paulistas, Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de
Campos, e aos concretistas argentinos, a exemplo de Tomás Maldonado.
Se fosse possível traçar com maior rigor os peris de Mario Pedrosa e
Waldemar Cordeiro para compará-los, possivelmente se haveria de ver
as diferenças sensíveis entre os dois líderes do movimento concretista, no
que respeita a sua origem, idade, formação, proissão e círculos sociais,
que, se não determinaram, certamente contribuíram para marcar os de-
bates voltados para a ruptura com os modernistas, adeptos da iguração,
e, sobretudo, orientar as celeumas entre os concretistas. Em São Paulo, a
articulação do concretismo esteve às mãos de um artista plástico e crítico
de arte. Portador de dupla atividade no campo artístico, Cordeiro, um
polemista inquieto, levou a cabo seus projetos em meio a adversidades e
conlitos. Notabilizou-se pela composição de obras como Estudo (1952) e
da série Ideia visível (1956 e 1957), ainda que a crítica lhe tenha sido pou-
co favorável. Os materiais e as técnicas de caráter industriais – o esmalte,
a pistola, o compensado – utilizados por Cordeiro o colocaram no rol dos
racionalistas que desejam a supressão da subjetividade e da intuição. Para
Os dois lados do concretismo | 85

Rodrigo Naves, por exemplo, o uso do plexiglass, em Ideia visível, exposta


na I Exposição de Arte Concreta, em 1956,

já é um indicador seguro de suas intenções [de Cordeiro]. A trans-


parência do suporte, acentuada por um anteparo preto colocado por
trás, ajuda realmente a tornar visível a ideia do artista, que de certo
modo se resume a recusar a simples reiteração concêntrica dos diver-
sos círculos, construindo iguras que,em sua excentricidade,produzem
a impressão de que aquele desequilíbrio conduzirá a uma dinâmica
dos círculos desencadeada pela falta de balanceamento entre eles.30

Contudo, o reconhecimento e a legitimação do concretismo na cida-


de de São Paulo seria impensável sem o crítico e o artista. Foi enfrentando
resistências e obstáculos que ele levou a cabo seu intento de promover a
estética concretista nas interseções com o Museu de Arte Moderna e a
Bienal de São Paulo, fosse sob os efeitos das ideias de Max Bill, fosse com
as críticas duras de Sergio Milliet, numa cidade cuja identidade se fazia
em meio a rápido processo de industrialização e atividades múltiplas de
seus imigrantes. Aceito nos locais de exposição mas rechaçado entre os
críticos pelo seu racionalismo industrialista, o projeto liderado por Cor-
deiro e as obras do grupo concreto paulista merecem estudos mais acu-
rados, que possam distinguir as ideias polêmicas do crítico de arte de sua
ressonância na obra conjunta dos concretistas paulistas.31
São diversos os pontos de vista por meio dos quais se podem apreciar
as diferenças dos concretos e buscar compreender por que o desenvolvi-
mento de sua produção plástica desdobrou-se em distintas orientações.32
Ainda que todos os artistas tenham limitações, talvez seja possível apro-
ximar a formação menos rigorosa do grupo carioca a uma prática mais
aberta às contingências, enquanto a constituição mais coesa, presidida
por preceitos, tenha levando os paulistas a orientar-se de modo racional
e planejado, o que inclui necessariamente a previsibilidade. O que pare-
ce inadmissível, entretanto, é considerar cariocas, de um lado, e paulistas,
de outro, como seres possuidores de uma “essência” determinante de sua
produção plástica. Em plena era de revisão dessa importante fase da arte
brasileira e internacional,33 é pouco rentável do ponto de vista cognitivo
86 | Reflexões sobre arte e cultura material

adotar uma concepção essencialista para a interpretação das tendências


do movimento concretista brasileiro, cuja maior conquista foi realizar-se,
rompendo com uma das mais fortes tradições intelectuais e artísticas do
país voltada para a construção igurativa da identidade nacional, e promo-
vendo experiências plásticas que resultaram em novo acervo brasileiro. De
outro modo, aprofundar a pesquisa sobre o surgimento do concretismo,
investigando as ações e os discursos dos que participaram no movimento
pode contribuir para alargar o escopo do conhecimento sobre as mudan-
ças no campo artístico brasileiro, afastando-se das repetições infecundas
que modelam sua memória.

Notas
1
Carvão, Aluísio. In: Cocchiarale, Fernando; Geiger, Anna Bela (orgs.). Abstracionismo
geométrico e informal: a vanguarda brasileira nos anos 50. Rio de Janeiro: Funarte, 1987,
p. 141.
2
A respeito da Teoria do Não objeto, ver de Martins, Sergio Bruno, Phenomenogical
Openness: Historicist Closure: Revisiting the heory of the Non-Object, hird Text,
vol. 26, Issue 1, 2012, pp. 79-90.
3
Entre os concretistas, Almir Mavignier, Ivan Serpa, Lygia Pape, César e Hélio Oiti-
cica eram cariocas. No Rio de Janeiro moravam: Aluísio Carvão, paraense; Lygia Clark
e Amílcar de Castro, mineiros; Rubem Rudolf, alagoano; Eric Baruch, holandês; além
de Abraham Palatnik, vindo de Israel, e Franz Weissman, da Áustria. Luiz Sacilotto e
Geraldo de Barros eram paulistas e moravam em São Paulo, juntamente com Willis de
Castro, mineiro; Samson Flexor, romeno; Kazmer Fejer, húngaro; Leopold Harr, polonês;
e Waldemar Cordeiro, italiano que optou pela nacionalidade brasileira.
4
Projeto Construtivo na Arte: 1950-1962. Coordenadora Aracy Amaral. Rio de Janeiro:
MAM; São Paulo: Pinacoteca do Estado, 1977, pp. 136-137.
5
Os três poetas paulistas fundaram, em 1952, um grupo intitulado Noigandres no qual
disseminaram suas novas ideias e experimentos por meio de uma revista lançada com o
mesmo nome. A revista Noigandres n. 4 traz importante contribuição para o movimento
da Poesia Concreta, inclusive com a publicação do “Plano-Piloto para a Poesia Concreta”,
manifesto que apresenta as principais diretrizes e propostas do movimento.
6
Ver Belluzo, Ana Maria de Moraes (org.). Modernidade: vanguardas artísticas na América
Latina. São Paulo: Unesp, 1990, p. 118; e Cordeiro, Waldemar. “Teoria e prática do con-
cretismo carioca”. In: Cocchiarale, Fernando; Geiger, Anna Bela (orgs.), 1987, pp. 225-227.
7
Ver carta depositada no arquivo do Centro de documentação do movimento operário
Mario Pedrosa da Universidade Estadual de São Paulo e também entrevista de Gullar
sobre a carta em Formas do afeto. Um ilme sobre Mario Pedrosa (35 min), direção Nina
Galanternick, produção e pesquisa, Glaucia Villas Bôas, 2010, Nusc/UFRJ, Faperj.
Os dois lados do concretismo | 87

8
Em 1959, I Exposição de Arte Neoconcreta no MAM; Exposição de Arte Concreta, em
Salvador; Balé Neoconcreto de Lygia Pape e Reynaldo Jardim. Em 1960, Exposição Inter-
nacional de Arte Concreta em Zurique, organizada por Max Bill, e, em 1961, Exposição
Neoconcreta em São Paulo.
9
Villas Bôas, Glaucia. A estética da conversão: o Ateliê do Engenho de Dentro e a Arte
Concreta carioca: 1946-1951, Tempo social, vol. 20. n. 2, novembro, 2008.
10
Sobre as obras dos internos, ver catálogo da exposição Images of the Unconscious from
Brazil, Conluência de Culturas, Câmara Brasileira do Livro, São Paulo, 46ª Feira de Li-
vro de Frankfurt, 1996. Ver também Raphael e Emydio: dois modernos no Engenho de
Dentro, Instituto Moreira Sales, 2012.
11
Silveira apud Gullar, 1996. Gullar, Ferreira. Nise da Silveira: uma psiquiatra rebelde. Rio
de Janeiro: Prefeitura da Cidade, Relume Dumará, 1996.
12
Pedrosa, Mario. Mestres da Arte Virgem, In: Arantes, Otíla (org.). Forma e percepção
estética – Textos Esolhidos II. São Paulo: Edusp, 1996, pp. 85-88.
13
Ver Mari, Marcelo. “Estética e Política em Mario Pedrosa”. Tese de doutorado apresen-
tada no Departamento de Filosoia da Faculdade de Filosoia, Ciências e Letras da USP,
2006; e Ribeiro, Marcelo, “Arte, socialismo e exílio: Formação e atuação de Mario Pedrosa
de 1930 a 1950”. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação
em Sociologia e Antropologia da UFRJ.
14
Barcinski, Fabiana; Siqueira, Vera Beatriz; Ferreira, Hélio Márcio Dias (orgs.). Ivan
Serpa. Rio de Janeiro: S. Roesler/Instituto Cultural Axis, 2003, p. 15.
15
Erber, Pedro. Políticas da abstração: pintura crítica no Brasil e Japão, anos 1950. In:
Villas Bôas, Glaucia (org). Vida da crítica: percursos de Mario Pedrosa, Poiesis, Revista
do Programa de Pós-graduação em Ciência da Arte, UFF, n. 14, vol. 1, 2009 pp. 44-57; e
Mari, Marcelo. Estética e Política em Mario Pedrosa. Tese apresentada no Departamento
de Filosoia da Faculdade de Filosoia, Ciências e Letras da USP, 2006.
16
Niomar Muniz Sodré trabalhou no MAM de 1951 e 1966, tendo assumido sua direção
em 1952; Carmem Portinho foi diretora executiva de 1951 a 1966.
17
Ferreira, Hélio Márcio Dias. “Ivan Serpa, Artista-Educador”. In: Ivan Serpa. Rio de
Janeiro: S. Roesler/Instituto Cultural Axis, 2003, p. 205.
18
Barcinski, Fabiana; Siqueira, Vera Beatriz; Ferreira, Hélio Márcio Dias (orgs.). Ivan
Serpa. Rio de Janeiro: S. Roesler/Instituto Cultural Axis, 2003.
19
Ver, como exemplo, Couto, Maria de Fátima Morethy. Por uma vanguarda nacional. A
crítica brasileira em busca de uma identidade artística (1940-1960). Campinas: Unicamp,
2004; e Sant’Anna, Sabrina Marques Parracho. Construindo a memória do futuro. Uma
análise da fundação do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: FGV, 2011.
20
A origem social do grupo era heterogênea, assim como sua procedência. Lygia Clark,
por exemplo, vinha de família abastada, Mavignier era ilho de classes médias, quase todos
eles porém tiveram algo em comum, como o aprendizado da arte com Ivan Serpa ou com
artistas estrangeiros que se radicaram no Rio de Janeiro durante a II Guerra Mundial.
Não foram alunos da Escola Nacional de Belas-Artes ou a abandonaram, como fez Franz
Weissmann, em 1940, quando era aluno do curso de arquitetura. Não frequentaram os
ateliês conhecidos, na cidade, como o de Portinari. Poucos viajaram para o exterior no
88 | Reflexões sobre arte e cultura material

início da carreira, como o fez Lygia Clark. Almir Mavignier e Ivan Serpa, Fayga Ostrover,
Renina Katz, estudaram com Axel Leskoschek e Arpad Szenes, artistas estrangeiros que
se radicaram no Rio durante a Segunda Guerra Mundial.
21
Aluisio Carvão, apud Cocchiarale, Fernando; Geiger, Anna Bela (orgs.). 1987, p. 141.
22
Di Cavalcanti, Revista Fluminense, n. 3, 1948 apud Bandeira, João. 2002, p. 17.
23
Cordeiro, Waldemar. “Balanço da vida oicial das artes plásticas em 1950””. In: Ban-
deira, João (org.). Arte concreta paulista: documentos. São Paulo: Cosac Naify, 2002, p.16.
24
A hipótese de Aracy Amaral foi publicada em Amaral, Aracy (org.). Projeto Construtivo
Brasileiro na Arte (1950-1962). Rio de Janeiro: MAM; São Paulo: Pinacoteca do Estado,
1977, pp. 312-317. De acordo com Amaral, no Rio de Janeiro, os concretistas eram artis-
tas plásticos, à exceção de poucos. Na realidade, a formação dos artistas cariocas era dife-
renciada, tendo alguns começado diretamente com o aprendizado da pintura, enquanto
outros haviam estudado arquitetura ou direito antes de voltar-se para a prática artística.
Contudo, quase todos trabalharam em desenhos têxteis, propaganda, cartazes, ilustrações
e capas de capas, diagramação, móveis etc.
25
Ibid.
26
Sobre a crítica à obra de Calder ver Arantes, Otília. 2000, n. 4, pp. 47-90.
27
Osório César foi casado com Tarsila do Amaral de 1931 a 1935.
28
Carvalho, Rosa C. M; Reily, Lucia. “Arte e Psiquiatria: um diálogo com artistas plásti-
cos no Hospital Psiquiátrico de Juqueri”. In: ArtCultura, Uberlândia, v. 12, n. 21, jul–dez,
2010, pp. 165–180.
29
Cocchiarale, Fernando; Geiger, Anna Bela (orgs.). 1987, pp. .220-223.
30
Naves, Rodrigo, A complexidade de Volpi. Nota sobre o diálogo do artista com concre-
tistas e neoconcretista em Novos Estudos. CEBRAP, 81, julho, 2008, pp. 148-149.
31
Quanto a essa questão, ver análise da obra Concreção (1957) de Luiz Sacilotto, em
Moura, Flávio Rosa de. Obra em construção: a recepção do neoconcretismo e a invenção
da arte contemporânea no Brasil, Tese de doutorado, USP, 2011.
32
Reinheimer, Patrícia. A singularidade como regime de grandeza: nação e indivíduo
como valores nos discursos artísticos brasileiros. Tese de doutorado. Programa de Pós-
-graduação em Antropologia Social, no Museu Nacional, UFRJ, 2008.
33
Ver catálogo da exposição sobre a Arte Neo-concreta promovida pela a Akademie der
Künste, em Berlin, 2010.
Gastronomia e sociedade de consumo.
Tradições culturais brasileiras e estilos de vida
na globalização cultural

Maria Lúcia Bueno (UFJF)

Consumo e estilos de vida

Os estilos de vida,1 no mundo moderno e contemporâneo, tornaram-se uma


das principais instâncias de construção de identidades, que aloram e ga-
nham visibilidade no interior de um mosaico de práticas culturais. As ma-
neiras de beber, comer, vestir, morar, associadas às escolhas literárias e artísti-
cas, remetem a níveis de reconhecimento mais profundos – a classe social, a
ocupação, mas também às opções éticas, políticas, estéticas e morais.2
Esse processo resultou numa verdadeira revolução no interior de
domínios associados ao consumo e os estilos de vida, como a moda e a
gastronomia. A valorização crescente desses setores na modernidade, o
aumento do público consumidor, a desterritorialização e a diversiicação
das formas de apropriação provocaram uma ruptura com os modos de
gestão herdados do passado. Estabeleceu-se um clima generalizado de
desorientação com relação às práticas e os hábitos, que evoluem cada vez
mais desconectados da tradição, transmutados pelo luxo do consumo e
da circulação. Em resposta desenvolveu-se um novo arcabouço institu-
cional compatível com as modiicações em curso, com o intuito de criar
formas de regulamentação que acomodassem parte das hierarquias e pro-
cedimentos do passado.3 Podemos mencionar como exemplos os museus
modernos, as imprensas especializadas – arte, moda, decoração, literatura
etc. – e as diferentes modalidades de guias – de turismo, gastronomia etc.
Os espaços de consumo também sofreram alterações, deixando de ter uma
função puramente comercial, para adquirirem cada vez mais conotações e
papéis que até então eram especíicos dos espaços públicos.4
89
90 | Reflexões sobre arte e cultura material

A expansão e a soisticação das práticas de consumo transformaram


alguns redutos associados à tradição e ao mundo dos objetos em esfera cul-
tural, lugar de construção de identidades. As transformações no âmbito do
consumo evoluem sintonizadas com transformações análogas no contexto
da produção, num movimento que vem esgarçando os limites entre as prá-
ticas culturais e as práticas estéticas, promovendo uma aproximação entre
elas. Nesse cenário, artíices como o estilista e o chef despontam como novas
modalidades de produtores simbólicos que lidam com a estética e a cultura.
Os universos da moda e da gastronomia estão associados ao desen-
volvimento do mercado de luxo e sintonizados com a dinâmica do circuito
globalizado, despontando como espaços econômicos e culturais relevantes
no Brasil a partir dos anos 1980. Os estilistas e os chefs são os personagens
mais proeminentes desses contextos, em que a organização do trabalho as-
sume conigurações extremamente individualizadas. Em nosso estudo pro-
curamos traçar, com base nesses agentes e das suas conexões, um primeiro
esboço da evolução histórica e da organização cultural e material dos redu-
tos da moda e da gastronomia. A moda e a gastronomia se converteram em
espaços de construção de estilos de vida, o que resultou numa elevação cul-
tural dos seus principais proissionais, transformando o caráter do trabalho
que desempenham, que evolui de prática artesanal a prática intelectual.
Moda e gastronomia são também formas de cultura material que
produzem e transmitem signiicados culturais. Diana Crane observa que
no contexto globalizado a cultura material adquire relevância como veícu-
lo de mudança cultural

por sua capacidade de incorporar valores simbólicos e mudar ou re-


forçar esses valores para os consumidores, quando estes adquirem e
utilizam produtos materiais. Nessa perspectiva, a cultura material
pode ser considerada um tipo de texto que expressa símbolos e con-
tribui com discursos e repertórios culturais.5

Uma hipótese que permeia nossa relexão é que a moda e a gastro-


nomia no universo contemporâneo, extrapolando o âmbito restrito do
comércio de luxo, expandem-se para um público mais amplo com sua
dimensão estética e cultural. A ampliicação da visibilidade desses seto-
res pela mídia, pela multiplicação de publicações especializadas – livros,
Gastronomia e sociedade de consumo | 91

jornais, revistas, guias e manuais – e pelos programas de televisão con-


solidam uma cultura de moda e uma cultura gastronômica como esfera
de debates, de constituição de diferentes correntes e tendências teóricas,
na qual o estilista e o chef se coniguram, cada vez mais, como agentes
culturais. Nessa perspectiva, talvez a moda e a gastronomia possam ser
pensadas como uma modalidade de indústria cultural, na qual o consumo
simbólico suplanta a apropriação individual.

Globalização cultural e cultura brasileira

Compreendemos como globalização cultural um fenômeno que se for-


talece na virada dos anos 1970 para 1980, associado ao desenvolvimento
de um sistema de comunicação-mundo,6 responsável pela construção de
uma nova base material da qual a vida – social, econômica, cultural e po-
lítica –, em diferentes regiões do planeta, passa a evoluir num movimento
de conexão crescente. Na consolidação dessa nova coniguração social, as
indústrias culturais desempenham um papel fundamental.
A globalização só existe enraizada nas práticas cotidianas. Os ho-
mens encontram-se ligados pelo destino, pelas experiências sociais e polí-
ticas, por uma cultura material e um repertório simbólico comum. Renato
Ortiz observa que trata-se de

um processo social que atravessa de forma diferenciada as realidades


nacionais e locais. Seu vetor se deine por sua transversalidade. Trata-
-se de uma tendência. […] como uma tendência é sempre algo gené-
rico e é preciso aprendê-la indiretamente, torna-se necessário buscar
expressões modais que a explicitem.

Assim, para o sociólogo brasileiro, elementos como gastronomia, cul-


tura popular, consumo, turismo, moda, despontam como

objetos heurísticos que revelam um arranjo social transcendente às exi-


gências e expectativas de uma cultura nacional. Pensá-los em um con-
texto particular é considerá-los como parte de uma matriz mais ampla,
mundial.7
92 | Reflexões sobre arte e cultura material

Reletir sobre a moda e a gastronomia com base nessa matriz é con-


siderá-las objetos privilegiados para compreendermos a organização da
cultura e da sociedade na dinâmica globalizada, na qual operam como
forças motoras importantes no âmbito social, econômico e cultural, e que
por isso nos ajudam a pensar a relação modernidade e cultura brasileira
nos séculos XX e XXI.
Como já foi apontado por vários autores, o que designamos como
cultura brasileira é sempre o resultado de uma construção, articulada
pela visão de alguns segmentos sociais, envolvendo elementos retirados
da memória coletiva e elementos retirados de experiências correntes em
diferentes períodos históricos. No contexto dos séculos XX e XXI, essa
construção se alimenta fortemente de expressões modais como indústria
cultural, cultura popular, turismo, moda etc. São referências constitutivas
do modo de vida contemporâneo que vão produzir novas aproximações
com a memória coletiva.
Dentro dessa perspectiva, os fenômenos da moda e da gastronomia
emergem não apenas como objetos privilegiados, mas como elementos
formadores dessa dinâmica, operando como polos de uma rede, que, em
conexão com outras expressões modais, tornam-se responsáveis pelas
constantes transformações que atravessam tanto o panorama cultural bra-
sileiro, quanto o internacional.
A expansão do consumo na sociedade contemporânea de modo geral,
e no Brasil em particular, teve um impacto transformador na organização
e na dinâmica da moda e da culinária, que passaram de setores associa-
dos aos ofícios e ao artesanato a esferas de produção cultural legitimadas.
Esse movimento levou a uma mudança na nomenclatura dos proissionais
mais prestigiados desses domínios (de costureiro a estilista, de cozinheiro
a chef),8 que está associada a uma mudança de status (de artesãos a produ-
tores intelectuais), indicando transformações correlatas no trabalho e no
modo de produção. A sociedade de massa, a industrialização, a exigência
de padrões pelo mercado, e de normatizações pela indústria, transforma-
ram as áreas da moda e da gastronomia em universos, além de valorizados,
altamente complexos.
Os mundos da moda e da culinária, no inal do século XX e início
do XXI, passaram por um processo semelhante ao do mundo da arte no
renascimento, quando se aprofundou a divisão do trabalho e se estabeleceu
Gastronomia e sociedade de consumo | 93

uma distinção entre o artesão e o artista, entre o trabalho manual e o tra-


balho intelectual. O status da proissão de artista – e também de arquiteto
– surgiu nesse momento, quando ele passou a ser reconhecido como autor
intelectual da obra e gestor de sua execução nos grandes ateliês do Renas-
cimento. O passo seguinte foi a criação das academias de arte9.
O estilista e o chef se distinguem do costureiro e do cozinheiro por-
que não participam diretamente da confecção do produto. Eles são os
autores intelectuais e os gestores do desenvolvimento desse produto na
cadeia industrial, no interior das cozinhas e ateliês ou à frente de laborató-
rios de pesquisa. No contexto contemporâneo, em que as escolhas prois-
sionais aparecem cada vez mais associadas aos estilos de vida, a valorização
do trabalho no âmbito da moda e da gastronomia transformou os setores
numa opção atraente para os jovens, uma área inovadora e ao mesmo tem-
po glamorosa, que passou a atrair um contingente de aspirantes de classe
média e média alta.
Simultaneamente, assistimos a uma mudança no modo de operação
no interior desses universos. Até o inal dos anos 1950 e início dos 1960,
a moda internacional e a culinária internacional tinham Paris como cen-
tro de referência. Imitavam e reproduziam Paris. Desde então, deixaram
de se pautar por modelos importados para se conduzirem fundados em
uma lógica própria, que combina tendências globalizadas com tradições
culturais locais.
Nesta relexão vamos restringir nossa análise ao mundo da gastro-
nomia, salientando alguns aspectos dessas transformações no Brasil e no
contexto globalizado.

A gastronomia e os chefs: uma perspectiva histórica

Assim como aconteceu com a moda, a origem e a base do sistema gas-


tronômico foi a sociedade de corte francesa.10 Expressão de civilidade, a
gastronomia distingue-se das rotinas alimentares comuns, airmando-se
como uma prática erudita

uma estetização da cozinha e das maneiras à mesa, uma virada hedo-


nista dos ins biológicos da alimentação.11
94 | Reflexões sobre arte e cultura material

Diferentemente das cozinhas populares, de tradição oral, objetos de


inúmeros desvios e versões, as cozinhas cultas foram rigorosamente codi-
icadas em obras escritas, contendo registros minuciosos das receitas.
Para o sociólogo francês Jean-Pierre Poulain, a partir do século XVII
houve uma difusão internacional da cozinha francesa, que foi se tornando
mais complexa, conigurando-se como uma disciplina e como um siste-
ma. Esse movimento foi seguido de uma mudança na organização das
publicações especializadas, “passa-se do livro ‘compêndio’, simples lista
de pratos, para uma ferramenta que permite fazer funcionar um código e
quase já uma verdadeira linguagem12.” Opera simultaneamente como um
livro de vocabulário e um manual de gramática.

Expõe um código complexo que distingue os produtos de base, as téc-


nicas de cozimento, as técnicas de combinações, os acompanhamentos
de legumes, os molhos; outros tantos elementos que se combinam
entre si segundo regras de uma extrema precisão, para dar nascimento
a novos pratos: ou seja, pratos não descritos no livro mas contidos no
código. […] o cozinheiro não cria um prato, mas fala uma língua.13

Após a Revolução Francesa, no decorrer do século XIX, com o apa-


recimento de instituições gastronômicas como os restaurantes e os cafés
– que mais tarde se multiplicaram pelas grandes metrópoles em diferentes
regiões do planeta –, o setor se soisticou e se consolidou como um siste-
ma. Nesse contexto de ampliação do mercado, quando os chefs se autono-
mizaram das cozinhas de corte, apareceram os críticos de gastronomia e
os primeiros guias gastronômicos.
Nas cidades europeias do século XIX, reproduzindo a dinâmica domi-
nante na sociedade de corte, os modelos estéticos e literários, assim como
os estilos de vida em moda, gastronomia, lazer, entre outros, evoluíram em
oposição às tradições regionais, em torno de padrões internacionais. Esse
panorama começou a se modiicar no início do século XX com o desen-
volvimento do turismo automobilístico e o aparecimento dos guias espe-
cializados que passaram a destacar as cozinhas regionais. Foi o inicio de
uma grande mudança na cultura gastronômica, marcada pela valorização
da diversidade e da qualidade dos ingredientes, pela crítica à massiicação
Gastronomia e sociedade de consumo | 95

da alimentação, pelo diálogo entre as cozinhas cultas e populares, onde as


culturas locais, com a noção de terroir,14 foram adquirindo centralidade.
Esse movimento de mudança se consolidou nos anos 1970 com o
movimento conhecido como nouvelle cuisine, a partir do qual a proissão
de chef adquiriu sua coniguração atual. O surgimento da nouvelle cuisine
é um exemplo perfeito do que Anthony Giddens designa de relexividade
institucional 15. A nova corrente não foi impulsionada por um chef, mas
por dois críticos, Henri Gault e Christian Millau, responsáveis por uma
publicação gastronômica até então alternativa, Le Nouveau guide Gault et
Millau, que lançaram em 1973 um desaio pela renovação e modernização
da culinária, propondo alguns novos mandamentos que atacavam os pila-
res da tradição gastronômica francesa e da italiana.
Começaram desvinculando a alta gastronomia do mundo do luxo, a
qual estava associada, minimizando a importância dos cenários requin-
tados e dos produtos caros para ressaltar o talento do chef. Em março de
1973, sob o título de À l’ouest du nouveau, anunciavam uma transformação
na geograia gourmande de Paris, chamando a atenção para uma nova
geração de chefs que despontava na periferia parisiense,16 praticando uma
cozinha inventiva, com cardápios reduzidos e um novo estilo, baseado na
simplicidade. Alguns meses depois, em outubro, publicavam outro artigo
formulando o que passaram a designar como os dez mandamentos da
nouvelle cuisine. Entre eles constavam a defesa de uma gastronomia mais
leve; a valorização dos produtos frescos disponíveis no mercado; a utiliza-
ção de novas técnicas e tecnologias; a abolição de anacronismos como os
temperos pesados e os cozimentos excessivos, resíduos de épocas em que
as cozinhas não dispunham de sistemas de refrigeração.17
A adesão entusiasmada de um grupo de chefs18 gerou uma verdadeira
revolução, promovendo uma nova maneira de pensar e fazer cozinha: não
mais como uma tradição a ser reproduzida, mas como um projeto, ligado
a um conceito de gastronomia concebido por estilos de vida, tecnologias,
estudo das novas possibilidades das tradições e dos ingredientes19.
A proposta se difundiu rapidamente para os Estados Unidos e para o
Oriente. O entusiasmo pelo exotismo, pela experimentação e pela inven-
ção estreitou as colaborações, intensiicou o processo de trocas, promo-
vendo o fortalecimento de uma nova rotina, as hibridações. Nesse quesito,
um destaque é a forte inluência da cozinha japonesa sobre a ocidental, de
96 | Reflexões sobre arte e cultura material

modo geral, alterando as técnicas de cozimento, a maneira de lidar com os


produtos e a estética dos pratos.20
A nouvelle cuisine, que foi a primeira de uma série de correntes que
passaram a constituir o campo de debates em torno do qual se organiza
a gastronomia contemporânea, assinalou também o início do processo de
globalização nesse universo21.

Gastronomia e sociedade de consumo no Brasil

O desenvolvimento de uma cultura de moda e uma cultura gastronômi-


ca, a partir da emergência de núcleos de produtores locais nos principais
centros brasileiros, ocorreu em duas etapas, relacionadas a dois momentos
distintos de expansão da sociedade de consumo no país: a década de 1970
e os anos 1990 e 2000. A consolidação da sociedade urbana e industrial
promoveu uma valorização econômica e social de práticas culturais asso-
ciadas ao estilo de vida e aos hábitos de consumo das elites moderniza-
das – um contingente de proissionais urbanos, homens e mulheres, que
trabalham, ganham razoavelmente bem, têm estilos de vida soisticados e
circulam no mundo globalizado.22 Logo, um segmento que se ampliou a
partir dos anos 1970 e 1980.
Desde o inal da Segunda Guerra Mundial vinha se expandindo uma
rede de restaurantes em São Paulo e no Rio de Janeiro, com uma cozinha
com sabores variados, ligada aos diferentes núcleos de imigrantes. Entre os
espaços de maior prestígio predominavam a culinária italiana, na capital
paulista, e a internacional, uma versão padronizada de alguns estereótipos
da cozinha francesa, em ambas as cidades. Mas o “hábito de comer fora” se
fortaleceu e se difundiu nos centros urbanos brasileiros em geral em meados
dos anos 1960 e início dos anos 1970. A partir de então, como revelam
os dados abaixo, temos uma expansão do mercado consumidor, seguida de
uma ampliicação sensível do número de restaurantes no país23.

Evolução da porcentagem da população que realiza refeições fora de casa


nos centros urbanos brasileiros (Fonte: Food Service)
1970 – 11% 1990 – 20% 2006 – 32%
Gastronomia e sociedade de consumo | 97

Aumento do número de restaurantes no Brasil de 1980 a 2003


1980 – 320.000 2003 – 904.000

O Sindicato dos Bares, Restaurantes e Similares em São Paulo registrou


em 2009, apenas em São Paulo, um total de 15 mil bares e 12,5 mil restau-
rantes, classiicados a partir de 55 diferentes especialidades de comida. Entre
os quais: 500 churrascarias, 256 restaurantes japoneses, 1.200 pizzarias.24
Porém, nos primeiros tempos, esse crescimento da gastronomia no
país não levou a uma expansão correlata das tradições culinárias brasilei-
ras. O público consumidor nos anos 1960 e 1970, ainda empenhado em
projetar uma imagem de civilidade moderna e cosmopolita, tendia a va-
lorizar a adoção de modelos importados, que associavam ao estilo urbano,
menosprezando maneiras e hábitos ligados às tradições locais, vistas como
parte do mundo rural que desejavam superar. Se muitas das práticas ali-
mentares regionais foram preservadas no âmbito privado, principalmente
nas residências populares, o mesmo não ocorreu com a rede de estabele-
cimentos comerciais das grandes cidades, onde – com exceção de uma ou
outra casa criada para atender à curiosidade dos turistas – foram ignora-
das. Sem valor comercial, diversas frutas, ervas, raízes, legumes deixaram
de ser cultivados, desaparecendo do mercado.
Um olhar sobre o panorama gastronômico da cidade de São Paulo é
ilustrativo das transformações que estamos apontando. A tabela, na página
seguinte, uma variação da elaborada por Isabella Masano25, mostra a evolu-
ção do universo da gastronomia na cidade de São Paulo a partir da seleção
de estabelecimentos realizada pelo Guia Quatro Rodas entre 1966 e 2011.
O quadro evidencia a alta reputação da cozinha italiana e internacional
nos anos 1960 e 1970, assim como a ausência de prestígio da cozinha brasi-
leira, que era depreciada tanto em número quanto em qualidade, classiicada
genericamente, sem levar em consideração as profundas diferenças regionais
existentes. A preocupação em apresentar nossa cozinha a partir das tradições
e das diferentes regiões só aparece no guia nos anos 2000. Desde então, a
tradição culinária brasileira pode ser identiicada em três diferentes modali-
dades, em função da maneira de trabalhar com as tradições:
1. Regional, conforme tradição e região. No guia aparece organizada em
função das diferentes tradições regionais.
98 | Reflexões sobre arte e cultura material

2. Contemporânea, que realiza uma gastronomia moderna e globalizada,


mas que se desenvolve com práticas e ingredientes locais.
3. Variada, que trabalha com a hibridização das tradições brasileiras
com outras vertentes étnicas, entre as quais a cozinha oriental, que
vem aparecendo como uma das parcerias mais fortes.

Seleção de restaurantes de São Paulo


Especialidades 1966 1971 1986 1990 2001 2006 2011
Brasileira (total) 4 8 12 6 19 36 47
Tradições regionais 15 17 18
Contemporânea 2 11 13
Variada 2 8 16
Churrascos 17 35 37 20 20 27 26
Frutos do mar 2 11 10 7 5 3
Variada 28 36 25 37
Internacional 35 40 27
Italiana 33 51 100 60 75 77 74
Francesa 25 24 23 16 24
Francesa e suíça 9 18
Suíça 4 3 2 1 1
Protuguesa 5 4 9 3 5 5 7
Espanhola 2 8 6 10 6 4
Alemã 9 14 13 7 5 4 4
Japonesa 5 5 20 17 25 26 25
Árabe 4 3 10 5 12 9 11
Chinesa 3 8 19 11 8 6 5
Asiática 1 1 2 3 4
Judaica 2 3 4 4 3 2
Latino-americana 4 7 11
Outras 3 10 22 20 13
Total 131 200 300 225 257 267 285
Gastronomia e sociedade de consumo | 99

A valorização e um interesse mais sistemático pela culinária brasileira


despontaram apenas a partir dos anos 1990. A comida, que até então se
destacava como parte dos eventos familiares, se transformou em tema de
debates cientíicos e intelectuais, assunto de rodas sociais, de programas de
televisão, de revistas, de livros, ocupando um lugar na mídia e se converten-
do em segmento importante da indústria cultural. Nesse curso, o persona-
gem do chef foi ganhando visibilidade. Nos anos 2000 temos um surto de
pequenos restaurantes com chefs estrelados,26 entre os quais a gastronomia
brasileira começa adquirir centralidade. Esse movimento coincidiu com
o boom da gastronomia no país e está associado ao aparecimento do chef
brasileiro. Pela pesquisa realizada até o momento, essa expansão e mudança
na dinâmica da cultura gastronômica, que ainda se encontra em curso, é
decorrência de uma série de fatores relacionados à globalização.

Gastronomia brasileira e globalização

Com a globalização do turismo, no inal dos anos 1970 e início dos 1980, re-
des hoteleiras internacionais se instalaram no país, como as francesas Soitel
e Méridien, que levaram seus hotéis de luxo para a praia de Copacabana, no
Rio de Janeiro. Com um olho no turismo soisticado e outro no consumidor
interno, os hotéis importaram chefs estrelados para criar espaços dedicados
à alta gastronomia, como o Le Pré Catelan, no Soitel, com menu assinado
por Gaston Lenôtre, e o Saint-Honoré, no Méridien, sob a orientação de
Paul Bocuse. Para gerir os estabelecimentos, foram contratados proissio-
nais franceses formados dentro dos preceitos da nouvelle cuisine. No Pré
Catelan icou Claude Troisgros, ilho de Pierre Troisgros, um dos pioneiros
da nova corrente, e no Saint-Honoré, Laurent Suaudeau, que trabalhava
para Paul Bocuse. Muito jovens, casaram-se com brasileiras e mais tarde se
ixaram no país à frente de seus próprios restaurantes. Ambos ajudaram a
formar um campo de gastronomia no Brasil, criando associações e escolas, e
impulsionando uma nova maneira de pensar a culinária.
Trabalhavam ainados com o pensamento contemporâneo, mas recor-
rendo a componentes e práticas da cozinha tradicional brasileira, mobili-
zando um movimento de pesquisa e valorização das tradições regionais. A
100 | Reflexões sobre arte e cultura material

esse respeito, é ilustrativo o depoimento de Suaudeau sobre o início do seu


trabalho no Rio de Janeiro:

Depois de conquistar a equipe, fui descobrindo os produtos brasileiros


e vi que, com eles, teria condições de desenvolver uma boa culinária,
aplicando os conceitos e a metodologia que eu trazia da França. Meu
segundo chef, Paulo Carvalho, era brasileiro, e, com ele, conheci muitos
ingredientes locais. O mais difícil foi fazer com que a clientela assi-
milasse a nova proposta. Naquele momento predominava no Rio uma
cozinha extremamente internacional, baseada em clichês gastronômi-
cos da culinária francesa. As pessoas achavam que eu era doido por
colocar nos pratos aipim e maracujá, ou por usar o tucupi no lugar do
vinagre. Eram produtos encontrados na cozinha doméstica, em casa
de gente pobre.27

A atuação dos chefs franceses atraiu outros proissionais estrangeiros


para o país, que ajudaram a fortalecer as propostas de incorporação das
tradições culinárias brasileiras iniciadas pelos primeiros. Um exemplo é
o francês Olivier Anquier, responsável por um dos primeiros programas
gastronômicos na televisão brasileira a enfocar os hábitos e as práticas
alimentares em diferentes regiões do país.
Por inluência e demanda dos chefs estrangeiros, desenvolveu-se uma
série de novos procedimentos, como o cultivo de ervas frescas e de outros
produtos agrícolas, que não existiam até então nos mercados locais e que
também foram sendo incorporados nas rotinas alimentares dos habitantes
de São Paulo e do Rio.
No início dos anos 1990, dois planos econômicos governamentais
vão inluenciar os rumos da gastronomia entre nós.28 Primeiramente, o
Plano Cruzado, que derrubou as barreiras alfandegárias, possibilitando
a entrada de ingredientes que não havia no país. A seguir, o Plano Real,
que equiparou a moeda brasileira ao dólar, tornando os produtos importa-
dos mais acessíveis. A competição com o produto estrangeiro, instaurada
com a abertura das exportações, obrigou a indústria alimentícia nacional
a melhorar a qualidade e a variedade da produção. Todas essas mudanças
trouxeram também uma nova qualidade para as correntes gastronômicas
Gastronomia e sociedade de consumo | 101

já estabelecidas no país, como as culinárias italiana, japonesa e libanesa em


São Paulo, que lidavam com uma série de restrições.29
O aumento do poder aquisitivo da classe média brasileira e a popula-
rização das viagens internacionais foram responsáveis por um novo peril
de consumidor – mais culto, informado e aberto para experiências inova-
doras –, que respaldou o desenvolvimento de uma cultura gastronômica
contemporânea no país alimentada por tradições locais.
Em meados dos anos 1990, impulsionados por todas essas mudan-
ças, despontou o primeiro núcleo de chefs brasileiros, que, independentes
da tradição local, operavam com base nas correntes gastronômicas con-
temporâneas, mas empenhados em desenvolver uma interpretação pessoal,
mediante a utilização de elementos das cozinhas regionais, que estavam
praticamente esquecidos. Temos uma revitalização de produtos como a
mandioca, o tucupi, o caqui, que ressurgem no interior de práticas culiná-
rias distintas das receitas regionais às quais até então estavam atrelados. Os
novos chefs brasileiros praticam uma culinária contemporânea e globaliza-
da, recorrendo aos perfumes e sabores locais, como um elemento de dife-
renciação, mas procurando construir um estilo próprio. Sobre esse esforço
é revelador o comentário de Alex Atala, um dos pioneiros dessa geração:

A cozinha francesa dos grandes chefs, nos últimos anos, se assemelha a


um ilme de Hollywood: bem-feito, mas sem emoção. Há um ritual no
comer que é muito formal, e só. A mesa é a grande emoção da gastro-
nomia. É preciso cozinhar com alma, provocar, surpreender todos os
sentidos sempre. Desestruturar, olhar o conceito, desmembrar, buscar
na raiz e trazer a mesma receita com uma nova proposta no momento
oportuno. Não somos franceses e não queremos ser franceses.30

A incorporação de ingredientes nativos, baratos e de fácil acesso no


mercado viabilizou economicamente a gastronomia para um público mais
amplo, que tem acompanhado essas transformações pelos programas mi-
nistrados pelos chefs na televisão, contribuindo para sua difusão no país.
Trata-se da primeira geração de chefs, vinda da classe média e média
alta, que não despontou das cozinhas dos restaurantes. Para todos eles a
gastronomia surgiu como uma nova opção, numa fase de crise e transição
da vida proissional. Muitos deles viveram essa transição na Europa e nos
102 | Reflexões sobre arte e cultura material

Estados Unidos, onde se iniciaram nos anos 1990, realizando estágios em


espaços inovadores. Bonitos, jovens e bem-sucedidos, transformaram-se
em referência para toda uma nova geração a partir do ano 2000.
Os chefs, a partir da nouvelle cuisine, lembram um pouco os cineastas
do cinema novo e da nouvelle vague, que nos anos 1950 e 1960 começaram
a pensar o cinema como uma linguagem. Beneiciados pelo avanço das
tecnologias cinematográicas, que se tornavam mais acessíveis em termos
econômicos e de manipulação, eles não surgiram do meio técnico, mas do
meio intelectual – das universidades e das publicações –, o que conferiu
um novo status a esses realizadores ligados à vertente culta do cinema.31
Na gastronomia – o que ocorre também na moda –, o aparato técnico
substitui a virtuose do chef, que ica cada vez mais restrito à concepção
intelectual e à gestão de sua realização.
Por im, temos a emergência dos cursos superiores que se expandem
a partir do ano 2000, assim como dos laboratórios de pesquisa dentro
das universidades e do trabalho de órgãos como o SEBRAE, que iniciam
políticas de revitalização de culturas agrícolas regionais. O primeiro curso
de gastronomia em nível superior apareceu em São Paulo, em 1999. Pe-
los dados do INEP, em 2008 havia 78 cursos superiores de gastronomia
em funcionamento no país, que em 2012 passaram a 124. Na seleção do
vestibular de 2010 da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o novo ba-
charelado em gastronomia foi o curso com maior número de candidatos
por vaga, superando o curso de medicina.

Gastronomia e indústria cultural

Nos anos 2000, registramos uma expansão sensível da gastronomia na in-


dústria cultural brasileira de modo geral. Nos veículos mais soisticados, os
jovens chefs locais dividem espaço com os estrangeiros. Nos de maior pene-
tração, dominam os chefs brasileiros, estrelados ou não, ao lado dos franceses
radicados no país, como Claude Troigros e Olivier Anquier, que viraram
celebridades. Além das publicações especializadas (livros e revistas), aponta-
mos a partir de 2005 o aparecimento dos cadernos semanais de gastronomia
em grandes jornais, como o O Estado de S. Paulo e a Folha de S.Paulo. Para-
lelamente, assistimos a uma extinção gradativa dos cadernos femininos e de
Gastronomia e sociedade de consumo | 103

páginas culinária. A gastronomia vai substituindo a culinária, e os chefs vão


tomando o lugar dos cozinheiros em todas as esferas da indústria cultural,
assinalando uma transformação na maneira de pensar o tema.
Essa mudança do comportamento com relação à gastronomia trans-
parece também nos lançamentos imobiliários. Nos edifícios residenciais
construídos nos últimos anos, as cozinhas dos apartamentos transforma-
das em espaço gourmet ganharam prestígio e adquiriram uma nova cen-
tralidade no universo doméstico da classe média.
Por im, destacamos a inclusão da gastronomia na pauta dos eventos
artísticos e culturais. Em maio de 2012, na última edição da 8ª Virada
Cultural de São Paulo – festival de rua patrocinado pela prefeitura, com
24 horas de duração –, foi criado um espaço gastronômico, “Os chefs na
rua”, no qual o público poderia degustar especialidade de chefs brasileiros.
A equipe de Alex Atala – chef do D.O.M, que acabara de ser indicado
como o quarto melhor restaurante do mundo pela revista britânica Res-
taurant Magazine – ofereceu 600 porções da galinhada, que é servida em
seu outro restaurante, o Dalva & Dito. Quando a distribuição começou,
havia 5 mil candidatos à galinhada do Atala amontoados sobre o viaduto
onde o espaço gastronômico estava instalado. O resultado foi uma grande
conturbação, registrada pelos principais canais de televisão e veiculada no
horário nobre. Por motivos de segurança o chef foi impedido de se apro-
ximar do público, o que gerou novo tumulto, uma vez que muitas pessoas
não estavam interessadas na galinhada e só entraram na ila para ver Atala
de perto. Frente ao sucesso inesperado da alta gastronomia na rua, a pre-
feito da cidade aventou a hipótese de incluir uma “Virada Gastronômica”
na programação cultural do próximo ano.

Digressão final

Como observamos anteriormente, esta relexão é parte de uma pesquisa


sócio-histórica que se encontra em curso e que tem como um dos pontos
de partida o debate em torno do consumo e dos estilos de vida, iniciado
por autores como horstein Veblen, em A teoria da classe ociosa, e Pierre
Bourdieu, em A distinção, que por caminhos diversos abordaram o proble-
ma tendo como foco principal a distinção social.
104 | Reflexões sobre arte e cultura material

A presente investigação busca em relexões de sociólogos – como


Néstor García Canclini, Diane Crane, Mike Featherstone, Anthony
(Giddens) e Renato Ortiz – subsídios para entender como, a partir dos
anos 1960, e da dinâmica globalizada que se instaura posteriormente, a
problemática da cultura e do consumo desloca-se da perspectiva da dis-
tinção social para a dos confrontos culturais, delagrados pela convivência
de uma pluralidade de tradições e estilos de vida, numa dinâmica pautada
pela crescente interconexão entre inluências globalizadas de um lado e
disposições locais e pessoais de outro.32
Na sociedade contemporânea, o mercado de bens de luxo não é mais
o foco do mundo da moda e da gastronomia como no início do sécu-
lo XX; transformou-se num segmento. O moderno estilo de vida, como
identiicado por Georg Simmel – associado ao individualismo e a esteti-
zação do cotidiano, tendo o consumo como um dos vetores na construção
das identidades –, é uma das principais matrizes das práticas culturais
modernas. Na sociedade contemporânea expande-se uma nova dimensão
das praticas de consumo, o moderno hedonismo, que, de acordo com o
inglês Colin Campbell, é uma das bases do consumo na modernidade.
O moderno hedonismo, associado ao prazer, não é percebido como uma
experiência física, dos sentidos, mas como uma emoção, uma experiência
transformadora, da esfera da imaginação. O consumo, para o autor,

emerge como uma espécie de devaneio, operando no hiato entre os


perfeitos prazeres do sonho e as imperfeitas alegrias da vida.33

Práticas culturais, como a moda e a gastronomia, sob essa óptica ga-


nham uma nova dimensão, percebidas como experiências transformado-
ras – em sociedades ou grupos que vivem além das questões utilitárias,
para os quais a sobrevivência básica é um problema superado.
Com base nesse recorte, a moda é vista para além da distinção social
(mas não da distinção/imitação), como uma maneira de autoprodução estética.
Gilda Mello e Souza34 foi um dos primeiros autores a apontar esse aspecto
da moda em seu estudo sobre as mulheres do século XIX, no qual é apre-
sentada como uma dimensão criativa da vida, uma das poucas possíveis para
toda uma geração que viveu coninada no ambiente doméstico.
Gastronomia e sociedade de consumo | 105

A culinária, sob essa perspectiva, não é mais percebida como uma


dietética ou como uma experiência física degustativa,35 mas como um estilo
de vida, uma emoção.36 É exemplar o comentário de Ferran Adria, o célebre
chef de cozinha catalão, discorrendo a respeito da grande revolução gastro-
nômica desses vinte anos:

Não vou citar um método nem um produto. Foi fato que comer virou
uma experiência multisensorial, com o prazer se incorporando a nova
dimensão emocional.

A moda e a gastronomia não se desenvolvem mais em decorrência de


um foco centralizado, exterior, de uma tradição hegemônica internacional
– como foi a cultura francesa até meados do século XX –, mas baseados
no padrão globalizado, arraigado na vida cotidiana e na experiência indi-
vidual das pessoas, que evolui entre uma pluralidade de tradições. Nesse
contexto, as práticas culturais e os estilos de vida icam sujeitos às intem-
péries e as transformações arbitrárias, numa dinâmica social cada vez mais
pautada pela relexividade.
A análise desses universos nos permite compreender, entre outros,
como a emergência dessas produções culturais são indissociáveis tanto do
modo de produção que as viabiliza quanto do complexo de convenções
correntes que permitem que elas sejam compreendidas pelo público.

Notas
1
O conceito de estilo de vida foi forjado pela primeira vez pelo sociólogo alemão Georg
Simmel (Simmel, 1999), ao reletir sobre a emergência de uma nova sensibilidade, com
base no ritmo intenso e acelerado da vida urbana nas metrópoles da virada do século XIX
para o XX. Leitor assíduo de Baudelaire, Simmel compreendeu essa nova sensibilidade
como expressão do moderno estilo de vida, decorrência do impacto da economia mo-
netária sobre a realidade subjetiva dos sujeitos. Ver Simmel, Georg. Le style de vie, em
Philosophie de l’argent. Paris: PUF, 1999. Ver também Waizbort, Leopoldo. As aventuras
de Georg Simmel. São Paulo: Editora 34, 2000.
2
Na segunda metade do século XX, outros autores recorrerão ao conceito de estilo de vida,
associado ao consumo, para analisar a cultura e o processo de constituição de identidades
no mundo contemporâneo. Mencionamos particularmente: Bourdieu, Pierre. La distinc-
tion. Critique sociale du jugement. Paris: Minuit, 1979; e Giddens, Anthony. Modernidade e
identidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. Pensando a partir do inal do século XX, o estilo
106 | Reflexões sobre arte e cultura material

de vida para Giddens “pode ser deinido como um conjunto mais ou menos integrado
de práticas que um indivíduo adota não só porque essas práticas satisfazem necessidades
utilitárias, mas porque dão forma material a uma narrativa particular de auto-identidade”
(Giddens, 1997, p. 75).
3
Bueno, 2001.
4
Habermas, 1984.
5
Crane, 2011, p. 25.
6
Mattelart, 1994.
7
Ortiz, 2000, p. 12.
8
A nomenclatura e a graia que nomeia o novo proissional da gastronomia contemporâ-
nea obedece à designação globalizada de chef.
9
Heinich, 1993.
10
Elias, 1990; De Jean, 2010; Poulain, 2004; Vitaux, 2007.
11
Poulain, 2004, p. 223.
12
Poulain, 2004, p. 226.
13
Ibid.
14
A noção de terroir, conforme Rambourg (2010, p. 271), remete à relação de determinado
produto com a terra e a cultura agrícola da qual ele deriva. O melhor exemplo é o vinho.
15
O problema da relexividade está no centro da análise da dinâmica da vida social na alta
modernidade para Anthony Giddens. A relexividade se manifesta em diversos aspectos:
1. No entrelaçamento das instituições modernas com a vida individual, na interação entre
inluências globalizantes de um lado e disposições pessoais de outro; 2. Nos processos de reorga-
nização do tempo e do espaço, associados a mecanismos de desencaixe – mecanismos que desco-
lam as relações sociais de seus lugares especíicos, recombinando-as através de grandes distâncias
no tempo e no espaço.Ver Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2002, p.10.
16
Entre os chefs apontados nessa matéria por Gault e Millau estavam Michel Guérard e
Claude Verger.
17
Rambourg, 2010.
18
Entre eles constavam chefs da nova geração, como Bocuse, Troisgros, Haeberlin, Peyrot,
Denis, Guérard, Manière, Minot, Chapel, ao lado de outros estabelecidos, como Girard,
Senderens, Oliver, Minchelli, Barrier, Vergé, Delaveyne, descontentes com o quadro con-
vencional e ultrapassado da cozinha dominante na França. Ver Rambourg, Patrick. His-
toire de la cuisine et de la gastronomie francaises. 2010, p. 297.
19
Vitaux, 2007; Suaudeau, 2004; Rambourg, 2010.
20
Rambourg, 2010.
21
Conforme Jean-Pierre Poulain em Sociologia da alimentação (2004), nos anos 1980 os
novos chefs franceses percorrem o mundo, convidados a promover a cozinha francesa,
sendo que os mais eminentes foram contratados como consultores de redes de hotelaria
internacionais ou de grupos industriais agroalimentares: Verger e Blanc em Bangkoc; Rebu-
chon, Gagnaire, Loiseau, Bras no Japão; Guérard nos Estados Unidos; Bocuse um pouco em
toda parte, revezado atualmente por Ducasse (p. 39). Esses encontros, que possibilitaram o
Gastronomia e sociedade de consumo | 107

desenvolvimento de cozinhas eruditas de inspiração local, que resultaram na dissemina-


ção das “novas cozinhas” quebequense, japonesa, california, brasileira etc., por outro lado,
contaminaram a própria evolução da cozinha francesa que passou a incorporar inluências
de diferentes tradições culinárias estrangeiras (p. 40).
22
Em L’élite artiste. Excellence et singularité en régime démocratique (2012), N. Heinich
observa que a coniguração social das elites se modiicou nos últimos cem anos, evoluindo
da “classe ociosa”, descrita por horstein Veblen na virada do século XIX para o XX, para
a concepção contemporânea “bem mais centrada sobre as posições adquiridas por meio
da atividade proissional” (p. 260).
23
Collaço, 2009.
24
Ibid., p. 160.
25
Masano, 2011. A tabela apresenta uma releitura da elaborada por Masano, apresentan-
do um novo enfoque sobre a cozinha brasileira com base na análise dos estabelecimentos
que operam a partir dessa tradição apresentados no guia.
26
Collaço, 2009, p. 160.
27
Ver Suaudeau, Laurent. Cartas a um jovem chefe. Caminhos no mundo da cozinha. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2007, p. 54.
28
Kontic, 2008; Masano, 2011.
29
Masano, 2011.
30
Atala, em Dória, 2009.
31
Bernadet, 1994.
32
Para tratar produção de cultura nesse contexto recorreremos também ao referencial
teórico desenvolvido por Frederic Jameson, para tratar do pós-modernismo, e por Néstor
Carcía Canclini, para abordar o problema do hibridismo cultural.
33
Campbell, 2001.
34
Melo e Souza, 1987.
35
Flandrin e Montanari, 1998.
36
Campbell, 2001.

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Objetos e processos: de testemunho objetivo
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Patrícia Reinheimer (CULTIS, PPGCS e DCS-UFRRJ)

Introdução

Em dezembro de 1946, foi aberta a primeira mostra de pinturas dos inter-


nos do Centro Psiquiátrico Nacional (CNP), no próprio CNP, constituída
de 245 obras.1 Devido ao sucesso de público, a mostra foi transferida, em
fevereiro de 1947, para o salão do primeiro andar do prédio do Ministério
da Educação. Uma nota no jornal O Globo divulgava a exposição, no CNP,
situado no Engenho de Dentro, e anunciava sua ida para o Centro do Rio
de Janeiro:

O grande público há de estacar surpreso, diante das telas e dos de-


senhos que a compõem, e, mais que ele, os pintores impressionistas
ou modernistas. Os seus colegas esquizofrênicos e débeis mentais os
deixarão boquiabertos…2

Em outubro de 1949, outra mostra intitulada 9 artistas de Engenho


de Dentro foi inaugurada, dessa vez no Museu de Arte Moderna de São
Paulo, com 179 trabalhos expostos, entre desenhos, pinturas e esculturas.3
Essa mostra deslanchou uma querela entre críticos de arte cariocas que
resultou em 28 notas nos jornais locais falando sobre a exposição,4 mas
não abalou o meio psiquiátrico.
Os artigos discorriam sobre a qualidade artística das obras, tecen-
do comparações com os artistas modernos. Essas comparações, por vezes,
serviam para desqualiicar as expressões artísticas modernas, outras para
111
112 | Reflexões sobre arte e cultura material

sustentar a diiculdade em deinir fronteiras entre “normalidade” e “anor-


malidade”. Como ressalta Paula Barros Dias, “os desenhos e pinturas dos
doentes mentais também atestavam que a faculdade artística sobrevivia
à perda da razão e das habilidades sociais”,5 ou seja, a produção artística
servia em parte para comprovar a existência de traços de humanidade por
trás da “loucura”.
O advento dessas exposições foi resultado do trabalho iniciado pela
psiquiatra Nise da Silveira e pelo artista plástico Almir Mavigner na Seção
de Terapêutica Ocupacional do Centro Psiquiátrico Nacional, em 1946.
Nise da Silveira inaugurava no Rio de Janeiro o uso do fazer artístico
como complemento ao tratamento de pacientes psiquiátricos. As práticas
terapêuticas da época estavam quase restritas à orientação biológica, como
lobotomia, eletroconvulsoterapia, entre outras. A terapêutica ocupacional
era uma prática conhecida, mas que ainda despertava pouco interesse nos
psiquiatras brasileiros.6
Desde o inal da década de 1920, Osório César já vinha se inte-
ressando pelo uso das expressões artísticas na psiquiatria, no hospital do
Juqueri, em São Paulo, sob inluência da Psicanálise. No Rio de Janeiro,
Nise da Silveira desenvolveu seu trabalho principalmente apoiada nas ela-
borações de C. G. Jung. No entanto, foi menos a diferença entre as linhas
teóricas que sustentavam ambos os trabalhos o que lhes proporcionou vi-
sibilidades tão diversas quanto as distintas redes de relações e os contextos
sócio-históricos nos quais ambos os psiquiatras se inseriam.
Nise da Silveira partilhava com a psiquiatria da época o ideal de cura
das doenças mentais, e o fazer artístico era uma forma de alcançar tal ina-
lidade. Segundo a psiquiatra, as imagens não teriam o signiicado atribuído
por Freud de um meio para chegar ao inconsciente; elas teriam “valor próprio,
não só para pesquisas referentes ao obscuro mundo interno do esquizofrênico,
mas também no tratamento da esquizofrenia”.7 Ela acreditava que as ima-
gens representavam o universo interior do paciente, e objetivar esse universo
era um primeiro passo para a organização da mente dissociada:

Se o indivíduo que está mergulhado no caos de sua mente dissociada


consegue dar forma às emoções, representar em imagens as experiências
internas que o transtornam, se objetiva a perturbadora visão que tem
Objetos e processos | 113

agora do mundo, estará desde logo despotencializando essas vivências,


pelo menos em parte, de suas fortes cargas energéticas, e tentando reor-
ganizar sua psique dissociada.8

Enquanto Nise da Silveira encontrava um sentido proilático na pro-


dução artística, Mário Pedrosa criava um novo espaço hermenêutico no qual
incluir aquela produção até então não classiicada no universo artístico.
“Arte virgem” foi a categoria na qual esses atores sociais, duplamente sin-
gularizados pelo fato de serem ao mesmo tempo loucos e artistas, podiam
se encaixar. A inserção de um artista na história se opera, segundo Na-
thalie Heinich,9 em dois momentos: retira-se o artista do silêncio obli-
terante para, em seguida, reconhecer seu valor pelo duplo movimento de
particularização que o distingue de outros artistas e de generalização que
atribui a ele uma obra, isto é, um conjunto de quadros ou artefatos com
características universais. O conjunto da obra é o que sustenta a ideia de
sensibilidade e criatividade, por oposição à possível coincidência da pro-
dução de um único objeto apreciável.
O espaço hermenêutico que se abria com a construção do lugar dos
loucos-artistas dentro do sistema de interpretações até então vigente entre
os críticos de arte no eixo Rio-São Paulo tornava a produção de pacien-
tes psiquiátricos um tema relevante tanto para a estética e a história da
arte no Brasil quanto para a psicologia e a psiquiatria. A nova categoria
delimitava um gênero de duplo pertencimento e interesse ao universo da
criação artística e dos saberes psi.
Na psiquiatria e na psicanálise, as teorias de Freud e Jung foram acio-
nadas para justiicar, de formas distintas, o uso das expressões artísticas na
identiicação e/ou cura dos transtornos psiquiátricos. É a partir de Jung
que Nise da Silveira argumentava que “a pintura dos esquizofrênicos é
muito rica em símbolos e imagens que condensam profundas signiica-
ções e constituem uma linguagem arcaica de raízes universais”.10
Ainda segundo a psiquiatra, “o indivíduo cujo campo do consciente
foi invadido por conteúdos emergentes das camadas mais profundas da psi-
que estará perplexo, aterrorizado ou fascinado por coisas diferentes de tudo
quanto pertencia a seu mundo cotidiano. A palavra fracassa. Mas a necessi-
dade de expressão, necessidade imperiosa inerente à psique, leva o indivíduo
114 | Reflexões sobre arte e cultura material

a conigurar suas visões, o drama de que se tornou personagem, seja em


formas toscas ou belas, não importa”.11 As produções artísticas são assim
tomadas como expressões de sentimentos, necessidades, vivências. Termos
como sentimento, emoção, impressão, imaginação, sensibilidade, tornavam-se
fundamentais para airmar a validade dessas produções como uma resposta
individual, singularizada, contra a autoridade da razão e da regra.

O affaire arte e loucura em meados do século XX

As fronteiras entre razão e desrazão apareciam deslocadas também no de-


bate entre os críticos de arte. Segundo Antonio Bento, por exemplo, após
o desenvolvimento da noção freudiana de inconsciente, não fazia sentido
acreditar no mito do homem governado pela razão.

Era natural, diante disso, que na arte moderna dominassem também


as forças do irracional. E foi isso exatamente o que aconteceu. Daí, o
interesse que os críticos e os artistas mais conscientes dos problemas
estéticos emprestam aos desenhos das crianças e dos alienados.12

Pedrosa justiicava:

A inalidade de uma cientista da sensibilidade e do valor moral e pro-


issional da drª Nise da Silveira não é de fazer exibição de extrava-
gâncias de doidos e malucos, nem de exaltar o valor artístico dessas
obras (embora muitas delas tenham de fato um autêntico interesse
artístico); mas de educar também o público. […] Já é tempo que todos
compreendam que os limites entre o normal e o ligeiramente anormal,
entre o equilibrado e o pouco equilibrado é muito facilmente trans-
posto. A psiquiatria moderna já nos ensinou que na esquizofrenia e na
mania depressiva há muitos traços que encontramos freqüentemente
nos tipos normais.13

Com esse afaire14, os críticos criavam as condições de possibilidade


para a valorização no Brasil da axiologia referente ao produtor e o produto
artístico modernos, isto é, a ênfase na singularidade e na autenticidade por
Objetos e processos | 115

meio principalmente da experimentação formal. No Brasil essa axiologia


se deu pela separação na apreciação estética das dimensões internas ao
fenômeno artístico, ou seja, aquelas compreendidas como propriamente
estéticas daquelas éticas e morais. Uma das contribuições de Nise da Sil-
veira para esse processo em relação ao universo estético foi a reprodução
da anedota referente ao interesse, em 1949, de Francisco Matarazzo So-
brinho, mecenas que fundou o Museu de Arte Moderna de São Paulo, em
comprar uma obra de Emigdyo de Barros, presente na exposição montada
naquele museu.
Almir Mavigner teria insistido com Nise da Silveira em oferecer o
quadro ao mecenas, ao que a psiquiatra teria contestado que “nem por
ouro nem por prata”. Seu argumento fundava-se na ideia de que o quadro
valia mais como objeto cientíico do que por seu valor de troca ou dis-
tinção,15 ainda que não explicitamente formulado dessa maneira. O valor
econômico imediato passava a signiicar menos que o valor que o quadro
teria na posteridade, testemunho da realidade interior de seu autor.16
A dimensão moral, por sua vez, estava naquele momento relacionada
principalmente ao posicionamento ideológico do artista e à temática ex-
pressa no objeto. Nacionalismo e realismo eram as medidas até então vigen-
tes de aferição do valor de um produtor e sua produção artística. Estimula-
dos em grande medida pelos governos ditatoriais e pelo sistema comunista,
as temáticas nacionalistas e o estilo realista de representação pictórica eram
rejeitados pelos críticos que defendiam os valores da modernidade, objeti-
vados naquele período pela forma de representação abstrata.
Mário Pedrosa voltara em 1945 de um exílio de oito anos em Pa-
ris e Washington. Sua saída do Brasil teve relação com sua participação
no Partido Comunista e o estabelecimento do Estado Novo. No entanto,
durante o exílio, seu descontentamento com ambas as facções do comu-
nismo o levou a assumir uma postura política reservada quanto aos ideais
partidários. Construiu assim uma trajetória atípica que o predispunha a
perceber uma demanda social à procura de apoio num momento em que
ser de esquerda ou de direita estava relacionado a estilos e temas especíi-
cos de expressão artística.
Durante o exílio, Pedrosa tivera contato com intelectuais do movi-
mento surrealista e trabalhara como jornalista para o Boletim da União
116 | Reflexões sobre arte e cultura material

Pan-americana. Em 1942, Pedrosa já esboçava uma nova forma de pensar


a expressão artística que encontrava eco no trabalho que Nise da Silveira
e Almir Mavigner desenvolveriam alguns anos depois com os internos
do hospital do Engenho de Dentro. No artigo de 1942, Pedrosa defendia
a separação entre arte e literatura tanto como forma de excluir uma ca-
tegoria proissional das redes de cooperações que constituem o fenôme-
no artístico (a dos escritores) quanto como maneira de estabelecer uma
linguagem e procedimento analítico especíicos para o objeto artístico,
mediante exclusão das temáticas literárias. Em 1947, sua contribuição na
construção de um campo relativamente autônomo17 para as artes plásticas
estava relacionada à separação entre razão e sensibilidade e à ideia de rea-
lidades internas e externas.
Assim, na conferência que pronunciou no encerramento da exposi-
ção no CNP, exaltou o fato de a dimensão propriamente estética poder
ser identiicada a partir do momento em que a noção de inconsciente foi
formulada pela psicanálise e o “racionalismo mecânico recebeu seu golpe
mortal. O mundo das artes, pela primeira vez, então, […] começ[ou] a ter
condições para abordar o problema preliminar mas fundamental das suas
origens psíquicas”. O inconsciente seria “o mecanismo subjetivo dessa ati-
vidade [artística] antes da obra realizada”.18
Por trás dessas elaborações que levavam à separação entre as dimen-
sões moral, econômica e estética, no momento mesmo em que se consti-
tuíam as condições institucionais de possibilidade do estabelecimento de
uma autonomia relativa para o universo artístico,19 encontrava-se a ideia
de universalidade do gênero humano conirmado nos sentidos impressos
nas expressões artísticas, ou num inconsciente universal. Como airmou
Mário Pedrosa, “a unidade congênita da raça humana recebeu nova con-
irmação”.20 Os objetos artísticos produzidos pelos internos eram assim
os testemunhos não apenas de seus transtornos, mas também de sua hu-
manidade e de uma característica inata que habilitava todo e qualquer ser
humano à produção artística.
Norbert Elias21 argumenta que a ideia de que fazemos parte de uma
mesma humanidade é que permitiu o surgimento de noções como piedade,
ou seja, o fato de compartilharmos todos uma ligação teria transformado
o desdém que imperou até o século XVIII em compaixão pelo sofrimento
Objetos e processos | 117

alheio. A produção artística dos internos pensada com base em sua relação
com o sentido de suas psicoses é a objetivação dos transtornos psiquiátri-
cos, transformando-os em sofrimento moral. Ao mesmo tempo, os quadros
pintados sem o aprendizado das técnicas de representação e valorizados
por importantes atores do mundo artístico carioca apresentava o fenômeno
artístico sob uma perspectiva inusitada.

Universalismo versus particularismo

Nesse processo, a produção artística passava a ser resultado não mais de


formas de representação e estilos aprendidos em Academias de Belas-Ar-
tes, portanto novos parâmetros deveriam ser construídos para avaliação do
fenômeno reformulado. No entanto, todos os produtores daqueles objetos
de apreciação ou desdém, que estavam servindo para uma reconiguração
profunda do fenômeno artístico no Brasil, apareceram nesse afaire, quando
muito, apenas como nomes – em geral, sem seus sobrenomes.
Em 1947, a exposição no CNP contava com a produção de diver-
sos adultos e crianças. Foram selecionados trabalhos de nove adultos para
compor a exposição no MAM, em 1949. Os nomes desses nove não são
coincidentes em todos os lugares onde se fala dessa exposição. Em 2002,
no cinquentenário do Museu de Imagens do Inconsciente, esses nove pro-
dutores se transformaram em cinco: Geraldo Aragão, Artur Amora, Abe-
lardo Correa, Emygdio de Barros e Carlos Pertius.
Nessas exposições posteriores àquelas primeiras, a ênfase passou a
recair mais sobre a dimensão psiquiátrica e psicanalítica das obras. Os
catálogos traziam textos que versavam sobre a trajetória dos artistas ou
depoimentos deles sobre assuntos considerados correlatos às obras e ao
processo terapêutico com arte. Nesses catálogos, ao contrário, não existia
uma dimensão estética como veio a ser instituída a partir das primeiras
exposições do CNP, ou seja, a ênfase numa linguagem que falasse da ma-
nufatura e não do conteúdo da obra e da trajetória do artista. A agência
desses atores icava assim reduzida quase exclusivamente à mediação da
psiquiatria e dos críticos que defendiam sua “humanidade” e as qualidades
estéticas de sua produção artística.
118 | Reflexões sobre arte e cultura material

Inaugurado em 1952, o Museu de Imagens do Inconsciente (MII),


fundado pela psiquiatra Nise da Silveira no complexo arquitetônico do
CNP, tornou-se o espaço destinado a acomodar as obras dos pacientes
daquele serviço de saúde mental. Atualmente, o MII possui uma reser-
va técnica que acomoda a produção dos ateliês terapêuticos do Instituto
Municipal de Atendimento em Saúde Nise da Silveira (IMAS Nise da
Silveira), antigo CNP, e oferece cursos de pintura e modelagem, além de
atendimento clínico.22
Em outubro de 2012, algumas obras acondicionadas na reserva téc-
nica do MII, produção recente de pacientes do IMAS Nise da Silveira,
foram selecionadas para participar de uma mostra de arte denominada
1ª Mostra de Arte Insensata do Rio de Janeiro. O evento aconteceu no
Centro Cultural Municipal Laurinda Santos Lobos, em Santa Teresa, e
foi uma parceria com a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), o
Ministério da Saúde e a rede de atenção psicossocial de Belo Horizonte,
que vem realizando essa mostra a cada dois anos, desde 2008.
Além das obras do MII, diversos outros serviços de saúde mental
do Rio de Janeiro participaram da mostra de diversas formas: venderam
artesanato produzido em seus ateliês, comidas e bebidas feitas em suas
oicinas de culinária, apresentaram grupos de música, dança, teatro e ex-
puseram trabalhos artísticos. O evento, que deveria ter durado quatro dias,
teve a exposição de arte estendida por dez dias. Parte da programação
consistia em duas rodas de conversas sobre “arte, estética e saúde mental” e
“inclusão social pelo trabalho”. Participaram dessas rodas terapeutas ocu-
pacionais, estudiosos, psiquiatras, psicólogos, gestores, artistas e usuários
dos serviços.
Na roda de conversa sobre “arte, estética e saúde mental” foi possível
ouvir um professor de música da UFRJ falar sobre Heidegger, a origem da
linguagem e o conceito de arte, e um médico e artista plástico falar sobre a
arte como espetáculo e o objeto artístico como dotado de um vazio de signi-
icado que possibilita aos expectadores na arte contemporânea suas próprias
interpretações. Depois dessas falas, tomaram a palavra alguns usuários: uma
falou do tempo que levou para que seu trabalho fosse reconhecido como
arte; o outro, da diiculdade em publicar suas poesias; o terceiro, que chama-
rei Vicente, resumiu as falas anteriores:
Objetos e processos | 119

Nas primeiras falas sobre arte, ouvimos que existe um outro conceito
que tem em todos os ofícios. Existe a arte, por exemplo, se você per-
tence ao meio militar você vai usar a arte da guerra, se é cozinheiro
vai usar a arte de cozinhar […].23 E, como foi dito aqui, a arte de
pintar foi uma das primeiras que o homem pensou, e junto com isso
vieram a arte da escrita, vieram os hieróglifos. E veio a guerra e os
conlitos. E isso fez o homem inventar muitas coisas […].24 O con-
lito sempre fez parte do ser humano. E o ritual. A igura do Pajé e
do xamã foi feita para orientar. Isso mostra que o ser humano em si
é integrado na arte espiritual, mas também na sobrevivência. E estar
fazer com nossas artes e o nosso diálogo é nosso meio de superar
nossos conlitos.

E então chegou ao ponto de sua intervenção:

E não é só no meio psiquiátrico que queremos ir para a frente.

Além do sentido dessa intervenção, ao qual voltarei posteriormente,


as situações históricas,25 isto é, os modelos ou esquemas de distribuição
de poder entre os diversos atores sociais participantes desses afaires nos
quais se relacionam “arte” e “loucura”, são distintas. No contexto atual,
os atores sociais podem ser compreendidos a partir da noção de agentes
políticos, cuja posição social e visão de mundo que a participação nos de-
bates lhes propiciou têm garantido que parte de suas reivindicações gere a
regulamentação de direitos. Desde a criação do SUS, em 1988, os usuários
de todos os serviços de saúde vêm sendo sistematicamente chamados a
participar nas reuniões dos centros comunitários, assim como nas confe-
rências municipais, estaduais e federais de saúde. Na saúde mental, essa
participação começou a se efetivar principalmente a partir de 1992, quan-
do se organizou a II Conferência Nacional de Saúde Mental – usuários e
familiares de usuários dos serviços de saúde mental já tinham participação
garantida nas conferências preparatórias.
120 | Reflexões sobre arte e cultura material

Novas categorias para novos agentes políticos

É nesse sentido que novas categorias têm sido forjadas para designar esses
atores. Ainda que não seja justo deixar de reconhecer o papel inovador que
Nise da Silveira teve ao introduzir relexões sobre uma complexidade que
não cabia no coninamento de hospitais psiquiátricos, daí a fundação de
um serviço alternativo como a Casa das Palmeiras, o papel que a produção
e os produtos artísticos tiveram no sistema de saúde mental em meados do
século XX foi distinto daquele que se pode observar atualmente. Seguindo
a proposta de Monteiro, Arruti e Pompa,26 podemos argumentar que hoje
esses atores são agentes num “teatro do reconhecimento” que as políticas
da diferença potencializam por meio da possibilidade de encenação quase
ritual 27 das identidades.
No dia 27 de setembro de 2012, o jornal O Dia trouxe na coluna Ciên-
cia e Saúde uma nota divulgando o evento “Arte insensata”. A nota dizia:

Promover um novo olhar sobre a loucura a partir dos produtos estéti-


cos e artísticos criados por usuários de saúde mental. Essa é a proposta
da I Mostra de Arte Insensata da cidade do Rio de Janeiro, realizada
pela Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil (SMSDC). […]
A mostra é uma proposta de diálogo com a sociedade sobre o lugar
da arte e sua intercessão, desmistiicando a loucura, agregando valores
culturais, propiciando a relexão e trazendo um novo olhar, distancia-
do da exclusão, da não-razão e da patologia.28

Alguns blogues da saúde mental e de cultura do Rio de Janeiro tam-


bém noticiaram a mostra, com mais ou menos o mesmo texto acima apre-
sentado.
A substituição dos termos usados na década de 1940 para desig-
nar os produtores artísticos em questão subentende uma nova forma de
construção da categoria social à qual estão vinculados aqueles agentes.
Em vez de alienados, débeis mentais, doentes, malucos, internados, aos quais
se pretendia atribuir humanidade, mas que não participavam ativamente
dos debates em torno de suas produções, atualmente se fala da produção
artística de usuários/artistas dos serviços (de saúde mental) e de cidadãos
Objetos e processos | 121

Pintura sobre tela exposta no evento Arte Insensata, 2012.

que são parte das atividades dos eventos. A categoria usuário tem espe-
cial interesse para a análise aqui empreendida, pois denota uma forma de
delimitação de coletividade sem distingui-la pela relação com a normali-
dade, a razão ou a doença, mas pelo fato de fazer ou não uso de determi-
nado tipo de serviço29.
Em sentido abrangente, o termo diferencia qualquer pessoa ou or-
ganização para a qual um serviço ou produto foi concebido. Assim, en-
contramos, por exemplo, em qualquer site – desde páginas do governo
a sites de pornograia –, o termo usuário referindo-se ao indivíduo que
utiliza o serviço oferecido. A única aplicação na qual o termo adquire um
valor é em sua acepção jurídica para diferenciar aqueles que usam drogas
ilícitas daqueles que as comercializam. Em seu sentido social, o termo
permite a inserção desses agentes numa humanidade pautada pela dife-
rença. Não mais um ser humano normal ou anormal, mas determinado
segmento da humanidade que se distingue de outros pelo uso de certos
serviços de saúde que demandam condições especíicas de participação
da vida social.
122 | Reflexões sobre arte e cultura material

Em 2001, pouco após o 11 de Setembro, a UNESCO adotou na sua


31ª conferência geral a Declaração Universal sobre a Diversidade Cul-
tural. Em 2003, o Ministério da Cultura passou a ter como uma de suas
secretarias a de Identidade e Diversidade Cultural, e o Brasil ratiicou a
declaração pela diversidade em 2005. Em 2006, a UNESCO foi uma das
apoiadoras do Congresso Brasileiro de Saúde Mental, que aconteceu em
Florianópolis (CSSM, 2006). Em janeiro de 2006 aconteceu também o
I Encontro de Arte e Saúde Mental, organizado por uma entidade de-
nominada Espaço Terapêutico Antonin Artaud, no Centro Cultural da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
No segundo Encontro de Arte e Saúde Mental, em 2008, Paulo
Amarante, coordenador do GT de saúde mental da Associação Brasileira
de Saúde Coletiva (Abrasco) e do Laboratório em Pesquisas em Saúde
Mental e Atenção Psicossocial, da FioCruz, e um dos militantes da Re-
forma Psiquiátrica, apresentou a conferência “Diversidade, cultura e direi-
tos humanos: bases para a Reforma Psiquiátrica”.30 Nessa comunicação o
autor argumentou sobre a necessidade de discutir a Reforma Psiquiátrica,
não mais estritamente com base na construção de um novo tipo de ins-
tituição não hospitalar, mas de elaborar um conjunto de estratégias mais
amplas de cunho epistemológico, jurídico-político e técnico-assistencial.
A encenação dessa diferença é potencializada ao conectar as linhas de
ação da Reforma Psiquiátrica com esferas sociais mais amplas, como o
direito e a “cultura”.
A rede31 que se forma em torno da ideia de Reforma Psiquiatra
constitui-se de agentes com capitais sociais e culturais extremamente di-
ferenciados, orientados por saberes, práticas e poderes distintos. É possível
listar importantes personagens desse afaire no qual os sistemas de valores
e conlitos são encenados: alguns dos primeiros militantes do que seria de-
nominada Reforma Psiquiátrica são servidores públicos, como professores
universitários, em alguns casos, com cargos públicos e a possibilidade de
inluenciar na esfera da construção de políticas públicas de saúde, educa-
ção e cultura para a saúde mental. Diversas pessoas atuam em instituições
de produção cultural e na área do direito. Essa rede é constituída de técni-
cos,32 usuários e familiares desses usuários, e pessoas que se interessam, de
alguma forma, em participar das atividades desenvolvidas nesse campo.
Objetos e processos | 123

Como parte das estratégias de encenação da diferença está a publici-


zação de projetos de arte e cultura. Foi nessa linha de atuação prática que o
projeto Loucos pela diversidade, em pareceria com o Ministério da Saúde e
o Ministério da Cultura, foi elaborado. Tratou-se de um edital, lançado em
2009, para premiar 55 iniciativas divididas em quatro categorias: 1) insti-
tuições públicas ou 2) privadas sem ins lucrativos, 3) grupos artísticos que
tivessem vínculo com instituições e/ou serviços de saúde mental e 4) pessoas
em sofrimento psíquico que tivessem vínculo com instituições e/ou serviços
de saúde mental. O objetivo do projeto foi apresentado como forma de
tomar a noção de diversidade para constituir individualidades a partir da
coletividade.
A publicização dos projetos de “arte” e “cultura” na saúde mental é
uma forma de criar situações nas quais as distintas versões a respeito do
tema podem aparecer. As controvérsias fundadas na diversidade de valores
sobre os quais os atores se afrontam e a atenção pública que elas engen-
dram geram a busca por novas soluções. O tema central da fala de Vicente
na roda de conversa sobre “arte, estética e saúde mental” dizia respeito a
uma dessas controvérsias: “Não é só no meio psiquiátrico que queremos ir
para a frente.”
Esse usuário se apresenta como artista plástico. Sua reivindicação
refere-se ao reconhecimento de seu trabalho não só no âmbito da psi-
quiatria, mas também no universo artístico mais amplo. Hans Belting33
argumenta que a partir de 1945 a história da arte oicial começou a ser
revista para incluir as produções de grupos minoritários, começando pela
produção feminina. Não é coincidência que as disputas por reinventar a
história da arte, buscando o que se pode descobrir que não está escrito na
história da arte universal,34 tenha como marco histórico o período pós-
-Segunda Guerra. Alguns autores35 argumentam que é nesse período que
a ruptura começa a se institucionalizar como um valor entre práticas, nor-
mas e saberes do universo artístico europeu, brasileiro e norte-americano.
A diferença é o que move a reivindicação de Vicente em ser socialmente
inscrito não somente na esfera artística, mas em diversas outras para além
do universo da psiquiatria.
As reivindicações pelo reconhecimento dos “usuários dos serviços
de saúde mental” como parte de uma categoria de atores reconhecida por
124 | Reflexões sobre arte e cultura material

sua diferença passam pela delimitação da “loucura” como uma das dimen-
sões da vida dos sujeitos, mas não a única. O ingresso no universo dos
transtornos físico-morais36 psiquiátricos torna as pessoas suscetíveis de
momentos de maior ou menor habilidade para a vida social convivendo
com momentos de crise ou inabilidade para a vida social. A reivindicação
de Vicente diz respeito ao papel da sociedade em lidar com essas pessoas
em seus momentos de habilidade maior ou menor, enquanto o papel dos
serviços de saúde mental icaria restrito ao trato com a manutenção dessas
competências – com tratamentos proiláticos – e os momentos de crise ou
inabilidade social.
É principalmente durante os períodos de inabilidade para o convívio
social que se estabelecem as fronteiras entre razão e desrazão, entre nor-
malidade e loucura. É quando as interdições são promulgadas e aos usuá-
rios dos serviços de saúde mental se torna proibido uma série de situações
que são de acesso corrente a “qualquer um”: participação em oicinas, pas-
seios e, em última instância, o convívio social.

A mediação dos técnicos

Aos técnicos dos serviços de saúde mental atribui-se a tarefa de mediar


entre esses dois modos de convívio que podem ocorrer simultaneamente
num mesmo usuário. Essa atividade de agenciamento material e simbóli-
co que os mediadores fazem tem por objetivo a construção de agentes po-
líticos capazes de se autorrepresentar. A identidade coletiva, ao modo de
uma identidade étnica atribuída aos usuários dos serviços de saúde men-
tal, tem sido produzida em diversas situações que podem ser percebidas
como rituais de produção de uma cultura da loucura e, consequentemente,
de construção de uma memória social para essa categoria.
Uma das estratégias usadas nesse processo tem sido a comicidade
dos nomes dos projetos no interior do sistema de saúde mental. Assim, Tá
pirando, pirado, pirou!, Harmonia Enlouquece, Sistema Nervoso Alterado, Bi-
bitãtan, Loucura Suburbana, quando pronunciados, sempre levam ao riso.
Riso que exorciza a angústia e neutraliza o medo, mas que, no caso dos
projetos em saúde mental, aparece também como reação de autoderrisão,
Objetos e processos | 125

marcando a singularidade de um grupo diicilmente totalizável de outras


maneiras além das diversas formas de sofrimento de cada um de seus
componentes individuais.
Nessa nova perspectiva de convívio com a diferença, o outro deixa
de ser um termo dado e autoevidente para se tornar um sistema de posi-
ções,37 no qual as situações nas quais esse outro se encontra é que tornam
possível descrevê-lo. A própria concepção de saúde deixa de ser pensada
na atualidade como ausência de doença. Assim, não se trata mais de duas
entidades culturais distintas que estão em relação uma com a outra – lou-
co/não louco, razão/desrazão, normal/anormal, sadio/patológico. Trata-se
de uma nova forma, historicamente situada, de formular a diferença como
posição no interior de um sistema discursivo. É no plano das interações
na vida prática que essa diferença se constrói, seja na delimitação das fron-
teiras próprias ao convívio social que os técnicos dos serviços fazem cons-
tantemente, nas participações dos usuários em diversos eventos públicos,
nos nomes que os deinem a partir do riso e do escárnio e também dos
silêncios e ausências que os retiram de cena nos momentos de crise.
São conjuntos de códigos negociados em situações concretas nos
quais os técnicos aparecem como portadores de especial capacidade de
representar os interesses dos usuários, mas não os únicos. A reivindicação
de Vicente é apenas um exemplo entre vários que podem ser citados de
pessoas que, na participação em diversos eventos e inserção em esferas
distintas da vida cotidiana, se apropriam dos valores expressos pelos mili-
tantes defensores da continuidade das discussões acerca das mudanças na
prática, nos saberes e instituições psiquiátricas, em relação às suas neces-
sidades, interesses e direitos.
As manifestações artísticas – música, artesanato, arte, carnaval (a
“arte do efêmero”, nos termos de Santos38) – produzem uma memória so-
cial da loucura cuja origem é quase invariavelmente remontada ao tempo
do encarceramento. A exposição Arte insensata teve uma sala dedicada aos
instrumentos usados no tratamento da loucura: viam-se objetos e dese-
nhos usados para o aprendizado e a prática da lobotomia, uma cadeira
usada para a eletroconvulsoterapia, antigos recipientes de vidro onde ica-
vam armazenados fármacos usados nos tratamentos, entre outros objetos.
O impacto dessa sala era minimizado pela disposição de itas coloridas e
126 | Reflexões sobre arte e cultura material

pinturas recentes que retiravam do ambiente o pesado teor de tortura que


em geral circunda esse tipo de apresentação. No entanto, a reivindicação
de um lugar na história estava marcada pela origem violenta da relação da
modernidade com a loucura.
Mais uma vez recorremos a Belting39 para mencionar seu argumento
sobre a relação atual entre o interesse cada vez maior pela produção artís-
tica e cultural de determinado grupo social quanto maior for sua impres-
são de ter sido violado durante o período colonial. Na saúde mental, a re-
elaboração das memórias sobre a loucura passa pela constante atualização
da memória do sofrimento durante o período do encarceramento40 e dos
tratamentos de intervenção biomédica.
A construção de identidades com base no sofrimento também pode
ser observada em relação à memória social judaica. Bernardo Sorj fala de
uma mitologia judaica “que se sustenta na valorização do passado, do so-
frimento coletivo e na lexibilidade e angústia existencial”.41 Para Sorj, a
opressão vivida no passado e sustentada via lembrança das perseguições e do
antissemitismo sofrido na história implica a angústia que torna o presente
insatisfatório e estimula a vontade de mudar. Assim como entre os judeus
em países como a Argentina, por exemplo, cuja ameaça por meio da xeno-
fobia e do antissemitismo gerou uma comunidade ativa e relexiva, o recurso
à memória do encarceramento nas instituições totais parece funcionar com
uma forma de manter o temor da opressão como uma realidade latente,
uma possibilidade concreta que necessita ser constantemente rejeitada.
O fantasma da exclusão exorcizado por dispositivos que incluem
discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamen-
tares, leis, medidas administrativas, enunciados cientíicos, proposições
ilosóicas, morais e ilantrópicas renovados de tempos em tempos é assim
objetivado nesse mobiliário antigo que inclui desenhos e fotos de prá-
ticas psiquiátricas “clássicas”. Essa forma de “encenação” contribui para
materializar a identidade desse grupo social, tornando convincente a ne-
cessidade da construção de novos valores que permitam transformar o
presente numa plataforma para um futuro de oportunidades e sonhos de
autorrealização. Mais do que uma memória da loucura, essa exposição e as
outras que têm sido apresentadas com trabalhos dos usuários e dos agen-
tes de mediação no interior da Reforma Psiquiátrica vão constituindo um
Objetos e processos | 127

arquivo organizado a partir de uma lógica preestabelecida sobre a história


dos discursos e práticas.
As manifestações artísticas são talvez o principal dispositivo de rei-
vindicação de um novo lugar social para os “malucos” .42 Sua eicácia é
prática ao ampliar o debate para a opinião pública, fazendo com que as-
pectos normativos do problema sejam revistos e novos direitos sejam re-
gulamentados,43 mas é também simbólica e paradoxal ao contribuir para
a naturalização de uma categoria social que luta para se desvencilhar das
representações estigmatizadas atreladas à ideia de “loucura”. A ideia de
sofrimento tem importante papel na construção desses agentes como su-
jeitos de direito.

Da singularidade qualificante pela renovação


à singularização que desqualifica pelo desvio

Segundo Foucault,44 no século XVIII viu-se construir um parentesco en-


tre a loucura e a devassidão, deinindo-se uma geometria moral para o fe-
nômeno. Foi no inal desse século que a observância das condutas morais
foi substituída pela prática psiquiátrica e a loucura ganhou estatuto de
doença mental. No século XIX, Freud tentou separar a loucura do evolucio-
nismo, voltando à concepção simultaneamente social e moral. Assim, com
o advento da psicanálise, cujo estatuto epistemológico pode ser concebido
como ciência ou arte, realidade ou invenção, no qual o analista descobre
ou cria realidades, as dimensões morais ou orgânicas do fenômeno da lou-
cura ganharam adeptos com ênfases distintas.
Se a literatura encontrou cedo sua relação com a loucura em Cer-
vantes e Shakespeare, na pintura o interesse se apresentou principal-
mente a partir do inal do século XIX. Nesse período, foram publicados
alguns estudos considerados pioneiros sobre a interseção entre arte e os
saberes psi:45 Tardieu, em 1872; Simon, em 1876 e 1888; Lombroso, em
1889; Mohr, em 1906; Rejà, em 1907, entre outros.46
Foi somente no início do século XX que a qualidade artística de tra-
balhos produzidos por internos passou a ser considerada digna de aprecia-
ção. Na segunda década do século XX, a arte ganhou novo estatuto quando
128 | Reflexões sobre arte e cultura material

passou a ser vista também como dispositivo terapêutico. Em 1922, Hans


Prinzhorn publicou o livro Expressões da loucura, sobre a coleção da clínica
psiquiátrica universitária de Heidelberg. Esse trabalho chamou a atenção
para o valor estético dessas obras, atraindo o interesse de artistas como Paul
Klee e André Breton, entre outros. A própria psicanálise se viu difundida
nos Estados Unidos e na Europa em grande medida por artistas e intelec-
tuais, sobretudo pelo movimento surrealista, nas décadas de 1920 e 1930.47
A relação da arte com a psicanálise, na Europa e nos EUA desse momento,
dizia respeito também à vontade de ruptura dos artistas com os cânones até
então vigentes no campo artístico para o qual a loucura constituiu impor-
tante eixo de relexão.
Foi com a arte moderna – que Nathalie Heinich situa entre 1870 e
1940 – que começou o processo de desconstrução dos princípios deini-
dores da obra de arte.

Transgressão dos cânones acadêmicos da representação pelo impres-


sionismo; transgressão dos códigos de iguração das cores pelo fauvis-
mo; depois da iguração dos volumes pelo cubismo; transgressão das
normas da objetividade da iguração pelo expressionismo; transgres-
são dos valores humanistas pelo futurismo, dos critérios do sério pelo
dadaísmo, ou do provável pelo surrealismo; transgressão do imperati-
vo da iguração pelos diferentes abstracionismos, desde o suprematis-
mo ou o construtivismo até o expressionismo abstrato; geração após
geração, a arte moderna coloca em crise, transgredindo, os princípios
canônicos da arte. E provoca, fazendo escândalos.48

A necessidade de inovar para se destacar implicou a explosão de pes-


quisas plásticas. Essa pluralização foi consequência do abandono da dei-
nição proissional da excelência em detrimento de uma deinição centra-
da na ideia de vocação, inspiração e inatismo do talento. A originalidade
tornou-se parceira da transgressão dos cânones, da aceitação e valorização
da anormalidade, de forma que o fora da normalidade se tornou a norma.
O deslocamento da normalidade à anormalidade, da conformidade à rari-
dade, da regra da originalidade, do sucesso à incompreensão, do reconhe-
cimento no presente à glória póstuma foi o movimento feito desde o inal
do século XIX, sendo Van Gogh o caso paradigmático.
Objetos e processos | 129

Porém, Van Gogh é também um exemplo da inversão dos valores atri-


buídos à loucura em relação à arte, transformando a loucura numa categoria
que particulariza o artista, um indivíduo singular.49 Entretanto, o regime
de singularidade supõe o risco permanente da desqualiicação pela falta de
singularidade (ao se seguir os padrões) ou de desqualiicação pelo excesso
de singularidade (manifesta no delírio). Portanto, a loucura, mesmo na arte
moderna, pode também ser tomada como forma de desqualiicação da pro-
dução, sugerindo que o artista não tem bom senso, não tanto como forma de
duvidar de sua saúde mental, como para se rir dele. Ou seja, trata-se menos
da irracionalidade do que da desqualiicação da competência do produtor.
A associação entre arte e doença mental serviu como descrédito da singu-
laridade desviante, fazendo emergir no começo do século XX uma série de
monograias de artistas redigidas por psiquiatras e médicos.
Após os códigos da representação clássica, depois da própria igu-
ração, a partir da Segunda Guerra Mundial as fronteiras da própria arte
foram sistematicamente colocadas à prova. Na década de 1940, Jean Du-
bufet cunhou a expressão Arte bruta como forma de valorizar a produção
plástica dos doentes mentais.

Singularizado em excesso pela demência do autor, a arte bruta só pode


ser integrada no mundo da arte a partir do momento que a proximi-
dade com o inconsciente foi valorizado como singularidade positiva,
consoante à inocência das crianças, o gênio dos grandes artistas ou
do profetismo dos iluminados: por onde o singular se junta à univer-
salidade, apagando toda mediação pela socialização, a observação de
regras ou a submissão aos constrangimentos do mundo.50

Assim, impõe-se uma extensão suplementar do mundo da arte, gra-


ças à transgressão de uma nova fronteira.
Pensar em termos de fronteira incita adotar uma perspectiva que
marca um dentro de um fora, uma arte e uma não arte, ou seja, uma des-
continuidade ontológica na natureza do objeto. Essa ontologização das
fronteiras está associada a uma deinição da arte contemporânea que não
é meramente cronológica. Portanto, é uma forma de associar o termo con-
temporâneo na arte a um gênero, e não a um período temporal.
130 | Reflexões sobre arte e cultura material

A transgressão das fronteiras é a exacerbação da singularidade eri-


gida em sistema de valor. A arte contemporânea coloca assim em questão
suas condições de consagração, ou seja, a autenticidade. Toda singulari-
dade deve, para ser considerada, parecer autêntica. Como o jogo da arte
contemporânea consiste na transgressão dos artistas, na reação do público
e na integração por parte das instituições, as fronteiras a serem rompidas
estão sempre sendo recolocadas. Assim, na arte contemporânea, o que se
compra é em parte, não uma obra de arte, mas a démarche, resumida no
nome do artista que é obrigado a dialogar com todas as fronteiras que já
foram rompidas, estabelecendo novas fronteiras a serem posteriormente
desbravadas.
Como um dos critérios para a classiicação de uma obra como arte
é o conhecimento do campo e suas fronteiras e a intenção de aí se colo-
car, para que a produção dos usuários dos serviços de saúde mental seja
classiicada como arte, é necessário que essa intenção seja explicitamente
colocada a partir de outras fronteiras que não a do pertencimento a esse
grupo de agentes, uma vez que a fronteira entre razão e desrazão, loucura
e normalidade já foi transgredida.
Uma obra será rejeitada se for descoberto que o candidato construiu
sua obra/persona a partir de estratégias de aceitabilidade ou imitação. Por
outro lado, uma obra percebida como singular e autêntica – manifestando
por exemplo uma obsessão – será rejeitada como desconectada de uma
cultura de arte contemporânea se não houver um mínimo de conhecimen-
to e esforço do artista para se inscrever no paradigma artístico contempo-
râneo e para formular um discurso teórico.51
Assim, a relação entre arte e loucura que serviu em meados do sécu-
lo XX como suporte para a revisão da axiologia do fenômeno artístico no
Brasil pode servir hoje para criar espaços de reivindicação política para os
usuários dos serviços de saúde mental, mas já não possui o mérito trans-
gressor necessário para que a produção desses usuários seja classiicada
como produto do “gênero” arte contemporânea, já que lançar mão desse
recurso seria repetir um movimento já realizado anteriormente, e não de
forma autêntica pelo recurso das reinterpretações pela imitação irônica
ou crítica.
Objetos e processos | 131

Notas
1
A enorme produtividade desses internos fez com que se instituísse no CNP um museu
para abrigar os trabalhos. Inaugurou-se então, em 1952, o Museu de Imagens do Incons-
ciente, no mesmo complexo arquitetônico onde se localizava o CNP.
2
O Globo, s/data, apud Dias, 2003, p. 125.
3
Dias, 2003.
4
Doze de autoria de Mário Pedrosa, nove de Quirino Campoiorito e as outras sete de
outros autores, tais como Jorge de Lima, Osório Borba, Flávio de Aquino, Antonio Bento
e Yvonne Jean (Dias, 2004).
5
Dias, 2004, p. 9.
6
Dias, 2004.
7
Silveira, s/data.
8
Ibid.
9
Heinich, 1991.
10
Silveira, s/data.
11
Ibid.
12
Bento, 1949.
13
Pedrosa, 1947.
14
Claverie, 1994. Utilizo a noção de afaire nas duas situações históricas que descrevo
aqui pensando na dimensão de formação de opinião e publicização de um assunto que até
então era considerado privado de uma categoria proissional, os psiquiatras. Em ambas as
situações históricas, a opinião pública foi acionada como forma de publicizar o conlito
de valores acerca das práticas, normas e saberes sobre a loucura.
15
Bourdieu, 1996.
16
Para a psiquiatra, o quadro era essencial para compreender o processo psicótico de
Emygdio de Barros.
17
Bourdieu, 1996.
18
Pedrosa, 1947. Énfase no original.
19
Foram inaugurados diversos museus de arte moderna no Brasil; foi instituída uma
Associação Brasileira de Críticos de Arte relacionada a outra internacional e vinculada
à UNESCO; um primeiro grupo de intelectuais completou uma formação universitária
desvinculada da principal e quase exclusiva instância legitimadora do fenômeno artístico,
a Escola Nacional de Belas Artes, e começava a entrar no mercado editorial como críticos
especializados em dimensões especíicas da esfera social (literatura, música, artes plásticas,
moda etc.). Isso contribuía para a multiplicação das instâncias de aferição da produção
artística e a construção de um conjunto de posições e um mercado artístico com regras
próprias de funcionamento.
20
Pedrosa, 1947. A noção de unidade da espécie humana era hegemônica também como
forma de oposição aos nacionalismos que levaram à Segunda Grande Guerra. Foi o
132 | Reflexões sobre arte e cultura material

indivíduo, como fundamento dessa unidade, o eixo em torno do qual se constituíram os


novos valores da arte moderna e contemporânea.
21
Elias, 1993.
22
http://www.museuimagensdoinconsciente.org.br/index.html
23
Diversas outras formas de “arte” foram mencionadas aqui.
24
Para exaltar a relação entre criação e guerra, ele fala da fusão do átomo e a criação da
bomba nuclear.
25
Oliveira, 1988.
26
Monteiro; Arruti; Pompa, 2011.
27
As aberturas dos eventos da saúde mental são em geral constituídas de mesas compos-
tas por personagens eminentes – políticos, gestores, psiquiatras – que fazem seus pronun-
ciamentos iniciais sobre o processo de construção dos novos serviços, conceitos e práticas.
Esses pronunciamentos constroem as bases de legitimidade para as falas posteriores de
usuários que, quase invariavelmente, participam dessas mesas. Esses usuários em geral se
distinguem por sua produção artística – plástica, literária ou musical – e tomam a palavra
– frequentemente com diiculdades de articulação maior ou menor – para falar de suas
experiências pessoais antes e depois da chamada Reforma Psiquiátrica. Essas falas são em
geral comentadas entre os participantes após a mesa de abertura, explicitando sentidos de
difícil acesso aos não iniciados desse campo de saberes e atuação.
28
O Dia, 2012.
29
Um estudo sobre a trajetória social da categoria usuário nos mostrará que é um termo
que teve seu uso recentemente ampliado. Ainda não tivemos a oportunidade de conirmar
com uma investigação, mas inferimos que dicionários anteriores à década de 1990 prova-
velmente não têm esse termo. Imaginamos que a popularização da Internet no inal dessa
década tenha contribuído para que o termo adquirisse a atual conotação de quem possui
o direito sobre ou usufrui de algo.
30
Amarante, 2008.
31
Foucault, 2003.
32
“Técnico” é o termo genérico que inclui as diversas categorias proissionais que atuam
na área de saúde mental: terapeutas ocupacionais, psiquiatras, psicólogos, servidores so-
ciais, farmacêuticos etc.
33
Belting, 2006.
34
Para esse autor a ideia de uma “história da arte universal” é parte da simbologia de uma
unidade mundial forjada a partir de valores europeus, que deixa de fora uma série de tem-
poralidades e práticas.
35
Heinich, 2005, 1993; Reinheimer, 2008.
36
Duarte, 2003. A noção de “perturbações físico-morais” está relacionada à ideia de dis-
túrbios ou acontecimentos que envolvam ou afetem além da corporalidade das pessoas,
sua vida moral, seus sentimentos e sua auto-representação. Além das doenças chamadas
de “mentais” outros fenômenos têm sido incluídos nessa categoria como a soropositividade
Objetos e processos | 133

e a Aids por “colocarem em jogo dimensões vivenciais muito críticas, em função de sua
associação com a sexualidade, com a moralidade e com a responsabilidade individual sobre
a Aids no Brasil” (Duarte, 2003). Duarte chama atenção para alguns fenômenos referentes
à “reprodução” e “contracepção” como passiveis de implicar moralmente as pessoas por eles
afetados e, nesse sentido, poderem ser incluídos no horizonte analítico das perturbações
físico-morais (alguns exemplos de estudos sobre essas outras formas do fenômeno são
mencionados pelo autor Leal, Erotildes Maria. O agente do cuidado na reforma psiquiá-
trica brasileira: modelos de conhecimento. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Gradua-
ção em Psiquiatria e Saúde Mental do IPUB/UFRJ, 1999; Luna, Naara. Bebê de proveta,
barriga de aluguel, embriões de laboratório: as representações sociais das novas tecnologias
reprodutivas. Dissertação de mestrado em antropologia social, Museu Nacional/Universi-
dade Federal do Rio de Janeiro. 1999; Víctora, Ceres. As imagens do corpo: representações
do aparelho reprodutor feminino e reapropriações do modelo médico. In: Leal, O. (Org.).
Corpo e signiicado: ensaios de antropologia social. Porto Alegre: UFRGS, 1995.).
37
Hall, 1996.
38
Santos, 2009.
39
Belting, 2006.
40
Foucault, 2004.
41
Sorj, 2013, p. 10.
42
Uso somente aqui essa categoria, única que presenciei ser manipulada por alguns usuá-
rios dos serviços de saúde mental para se localizarem no interior desse sistema. O termo
não é um consenso, mas parece ser o início da inversão de uma categoria antes associada
a valores pejorativos que passa a ser apropriada de forma risível entre eles. O termo tem
uma conotação positiva, mas não em relação à saúde mental. Compõe o jargão de grupos
sociais que se identiicam com determinados comportamentos que se opõem à norma
moralmente consagrada e relacionada à postura racional; “Maluco” pode ser usado como
auto-atribuição para designar pessoas pertencentes a grupos de jovens, praticantes de
esportes especíicos e diversas outras fronteiras de pertencimento social que não passam
por proissão, identidade étnica ou classe social. O termo então tem, no uso amplo, a
conotação do estabelecimento de uma fronteira que une as pessoas em torno de uma
identidade que desaia os códigos de comportamento esperados na dimensão proissional,
mas também que ultrapassa as distinções sociais que convencionalmente separam pessoas.
Adotá-lo como totalização em relação aos usuários dos serviços de saúde mental parece
ser uma maneira de tentar incorporar positivamente essa representação de fuga às normas
e à racionalidade como forma de construção de subjetividade.
43
Na Lei da Economia Solidária, no Rio de Janeiro, pessoas com transtornos mentais
estão incluídas nas cotas obrigatórias das empresas (Lei 8.213).
44
Foucault, 2004.
45
Vasconcellos; Giglio, 2007. Termo cunhado por Jane Russo (2002) para falar do surgi-
mento, institucionalização e oicialização das proissões, crenças, teorias e práticas psiqui-
átricas, psicanalíticas e psicológicas no Brasil.
134 | Reflexões sobre arte e cultura material

46
Auguste Ambroise Tardieu: Étude médico-légale sur la folie, 1872; Paul-Max  Simon:
L’imagination dans la folie: Étude sur les dessins, plans, descriptions, et costumes des
alienes. Ann. med.-psychol., 1876 e Les écrits et les dessins d’aliénés, Archives d’anthropo-
logie criminelle, 3, pp. 318-355, 1988; Cesare Lombroso: L’uomo di genio in rapporto alla
psichiatria, 1889; Fritz Mohr: Über zeichnungen von Geisteskranken und ihre diagnos-
tische Verwertbarkeit In: Journal für Psychologie und Neurologie, n. 8, 1906; Marcel Réja
(pseudônimo do doutor Paul Meunier, 1873-1957). L’Art chez les fous. Le Dessin, la Prose,
la Poésie, 1907.
47
Russo, 2002.
48
Heinich, 1993, p. 20.
49
Simmel, 1971.
50
Heinich, 1993, p. 142.
51
Heinich, 1993, p. 299.

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De artefato a obra de arte: a inserção da pintura
aborígine australiana no sistema internacional
das artes

Ilana Seltzer Goldstein*

Introdução: um cenário surpreendente

Como brasileiros, não esperaríamos encontrar peças indígenas à venda em


galerias comerciais de arte moderna e contemporânea. Mas é isso que ocor-
re em Sydney, Melbourne, Cairns, Darwin, Alice Springs e Perth, as maio-
res cidades da Austrália. Tampouco existem acervos ou exposições tempo-
rárias de arte indígena nos principais museus de arte de nossas capitais, tais
como o MASP e a Pinacoteca do Estado, em São Paulo, ou o Museu de
Arte Moderna, no Rio de Janeiro. Porém, é o que se observa na Australian
National Gallery, em Camberra, na Art Gallery of New South Wales, em
Sydney e na National Gallery of Victoria, em Melbourne. É igualmente
difícil imaginar que um colecionador brasileiro pagasse US$ 80 mil por uma
pintura indígena. Pois esse é o preço médio de uma tela de Emily Kame
Kngwarreye, da etnia Anmatyerre – cuja obra já esteve na Bienal de Veneza
e foi adquirida pelo MoMA.1
Tomemos como ilustração – entre tantas outras que seriam possíveis
– o caso de Darwin, capital do Northern Territory, que ica no norte da
Austrália. No porto da cidade, onde há uma praia turística, uma piscina com
ondas, diversas lojas e restaurantes, existe também um jardim de esculturas
em que todas as peças são feitas por artistas indígenas (Figura 1).

* Mestre em Antropologia Social pela USP e Doutora em Antropologia Social pela UNI-
CAMP. Docente do Centro Universitário SENAC e da Fundação Getúlio Vargas – SP. Auto-
ra de O Brasil best-seller de Jorge Amado: literatura e identidade nacional (SENAC, 2003). Con-
sultora em projetos socioculturais junto a organizações públicas, privadas e do terceiro setor.

137
138 | Reflexões sobre arte e cultura material

Figura 1. Escultura feita por um artista indígena não identificado, em estilo


característico das ilhas do Estreito de Torres. Jardim do Porto de Darwin.
Fotografia de Ilana Goldstein, 2010.

Figura 2. Trançado de fibra vegetal com franjas elaborado por artistas aborígines
de Arnhem Land decorando o saguão do Vibe Hotel, em Darwin.
Fotografia de Ilana Goldstein, 2010.
De artefato a obra de arte | 139

Também no Vibe Hotel, um dos locais de hospedagem mais caros e


famosos de Darwin, a decoração é composta por peças indígenas (Figura 2).
Além disso, no maior museu de Darwin, salas permanentes e exposições
itinerantes são dedicadas às artes indígenas da região (Figura 3).

Figura 3. Conception, de Fiona Gavino, 2004. Fibra de pândano trançado. Museum


and Art Gallery of the Northern Territory, Darwin. Fotografia de Ilana Goldstein, 2010.

Ainda na mesma cidade, o Museum and Art Gallery of the Northern


Territory concede, desde 1984, um prêmio anual patrocinado pela empre-
sa de telecomunicações Telstra, cujos vencedores recebem US$ 40.000,00
cada um e têm seus trabalhos adquiridos por museus públicos. O Telstra
Award divulga o trabalho de artistas indígenas de diversas etnias e regiões
da Austrália e, ao mesmo tempo, estimula a apreciação e o entendimen-
to do grande público em relação a essa produção artística. Cerca de 300
trabalhos são submetidos ao júri todo ano. Embora apenas quatro sejam
premiados – nas categorias general painting, bark paiting, work on paper e
three-dimensional –, 100 artistas integram o catálogo e a exposição asso-
ciados à premiação. Em 2010, ano em que estive na Austrália, o vencedor
do Telstra Award na categoria “pintura geral” foi Jimmy Donegan, cujo
trabalho me impactou muito visualmente (Figuras 4a e 4b).
140 | Reflexões sobre arte e cultura material

Figura 4a. Jimmy Donnegan, vencedor do


Telstra Award em 2010.

Figura 4b. Papa Tjukurpa Pukara, a tela premiada, feita com tinta acrílica sobre tela.
Imagens de divulgação. Fonte: http://blogs.crikey.com.au/northern/2010/08/13/mr-
-jimmy-donegan-wins-the-2010-telstra-art-award.
De artefato a obra de arte | 141

Partindo do material coletado durante minha pesquisa de doutorado2


e tendo como pano de fundo o enorme contraste entre o caso australiano
e o brasileiro, no que tange à circulação e à recepção da produção artística
indígena, irei me debruçar aqui sobre alguns processos que permitiram
que objetos carregados de signiicados míticos e fabricados com base em
técnicas e códigos indígenas tradicionais fossem progressivamente alçados
à categoria de arte.
Diversos sujeitos interagiram, de forma encadeada, e por vezes con-
litante, para que isso ocorresse, entre os quais os próprios artistas, os ge-
rentes das cooperativas, galeristas brancos, curadores, diretores de museus,
representantes do poder público e, claro, também antropólogos. O resul-
tado – como permitem notar as imagens que ilustram esse texto – é que
loresce, hoje, na Austrália, grande variedade de estilos e formatos nas
artes indígenas.
Diante de um universo tão complexo e multifacetado, um recorte se
faz necessário. Irei apresentar aqui um tipo de produção pictórica bem
delimitada: a pintura sobre entrecasca de árvore de Arnhem Land. Antes
disso, porém, a primeira parte do texto faz uma breve contextualização
histórica da colonização europeia na Austrália, destacando o papel que a
arte adquiriu na situação pós-contato.

A Austrália indígena e sua produção artística

A colonização da Austrália foi extremamente violenta. Quando a pri-


meira frota chegou, em 1788, os britânicos declararam haver encontrado
uma terra nullius, ou seja, pertencente a ninguém. Naquela época, isso
permitia às nações colonialistas se apropriarem de regiões supostamente
desocupadas para uso “produtivo”. Rapidamente, as terras australianas fo-
ram tomadas por fazendas. Alguns nativos se tornaram peões ou serviçais
domésticos, outros foram mortos.
Uma prática oicial, que perdurou até a segunda metade do século
XX, foi o rapto de crianças, sobretudo as mestiças (chamadas, então, de
half-casts), para que fossem criadas e “civilizadas” em orfanatos, apartadas
para sempre de suas famílias.3 Eram proibidas de falar suas línguas mater-
nas e viviam coninadas em campos cercados (Figura 5).
142 | Reflexões sobre arte e cultura material

Figura 5. Crianças aborígines no campo de Moora River, a 135 km de Perth.


Cerca de 500 pessoas viviam ali contra sua vontade, na década de 1930, quando
a fotografia foi tirada. Imagem do acervo da Battye Library. Disponível no site:
www.noongarculture.org.au.

Isso ajuda e explicar por que são faladas, hoje, apenas vinte das mais
de 200 línguas indígenas registradas no momento da chegada dos bri-
tânicos, no inal do século XVIII. E também por que as taxas de alcoo-
lismo, associadas ao “tédio” e à “perda de sentido” após o contato com os
colonizadores, são tão altas.4 Atualmente, um indivíduo indígena vive, em
média, 17 anos menos que um australiano branco, e sua renda é cerca de
35% da renda média dos brancos.
Vale ressaltar que o termo indigenous, na Austrália, engloba duas macro-
divisões. De um lado, os Aborigenes, majoritários, que vivem no continente,
têm a pele negra e, apesar das diferenças linguísticas, partilham um substrato
mítico comum, chamado de Dreaming ou “tempo dos sonhos”. De outro
lado, os Torres Strait Islanders, uma minoria de 5% que mora em pequenas
ilhas do Estreito de Torres, no nordeste da Austrália, tem a pele um pouco
mais clara e apresenta proximidade cultural com povos da Melanésia.
A produção artística é valorizada e pujante tanto entre as etnias abo-
rígines, quanto entre os habitantes do Estreito de Torres. Tradicionalmen-
te, os grupos indígenas da Austrália cultivam diversas formas expressivas,
do canto à cestaria, da dança à pintura corporal. Algumas dessas formas
De artefato a obra de arte | 143

são bastante antigas, como as pinturas rupestres dos Kakadu, que datam
de mais de 20 mil anos e foram declaradas Patrimônio Mundial pela
UNESCO (Figura 6).

Figura 6. Pintura rupestre no Kakadu National Park, em Arnhem Land, figurando uma
pequena espécie de canguru chamada wallaby. Fotografia de Ilana Goldstein, 2010.

O processo de legitimação de uma parcela dessa produção ocorreu


gradualmente, ao longo do século XX. A socióloga francesa Roberta Sha-
piro 5 chama de “artiicação” a transformação de quaisquer objetos e prá-
ticas, antes vistos como não artísticos, em arte. Utilizando os termos de
Shapiro, seria possível airmar que a “artiicação” da pintura aborígine aus-
traliana fez com que os produtores passassem a ser chamados de artistas;
os objetos por eles fabricados se tornassem criações; e os observadores de
seu trabalho se dividissem entre apreciadores, críticos e colecionadores. O fato
é que, hoje, a arte indígena contemporânea da Austrália está inserida no
sistema internacional de artes.6
Um dos primeiros artistas aborígines a obter reconhecimento indi-
vidual, na Austrália, foi Albert Namatjira, graças a seus retratos de paisa-
gem, que deram origem à Hermannsburg School, até hoje ativa na produ-
ção de aquarelas igurativas. Criado em uma missão luterana, Namatjira
ofereceu-se, em 1936, para ser guia do pintor branco Rex Batterbee, que
144 | Reflexões sobre arte e cultura material

viajara ao deserto em busca de inspiração. Namatjira pediu que, em troca,


o pintor lhe ensinasse a técnica da aquarela. Aprendeu rapidamente e co-
meçou a registrar as cores e as paisagens do deserto. Batterbee organizou
uma exposição individual para Namatjira em Melbourne, em 1938. Em
virtude da visibilidade adquirida por Namatjira, ele foi também o primei-
ro indígena a receber a cidadania australiana, em 1957.
Namatjira ensinou seus ilhos e sobrinhos a pintar como ele. Contu-
do, a recepção da chamada Escola de Hermannsburg no sistema euroa-
mericano das artes foi lenta e controversa. Por algum tempo, ela foi acusa-
da de “inautêntica” e “típica de brancos”. Aos poucos, surgiu o argumento
de que a opção pela aquarela igurativa seria uma estratégia para proteger
a iconograia tradicional, muito poderosa e, até então, secreta. Ademais, a
íntima conexão com a região de Ntaria – nome nativo do local em que i-
cava a missão de Hermannsburg – posicionaria os aquarelistas aborígines
numa linha de continuidade com seus ancestrais, cujas aventuras míticas
ocorreram exatamente naquela paisagem e cujos ensinamentos fazem re-
ferência às árvores, aos rios e às montanhas do Deserto Central.7

Figura 7. Aquarela sobre papel de Albert Namatjira, sem título e sem data,
anunciada para venda pela casa de leilões Southeby’s. Imagem publicada no site:
http://www.artrecord.com.
De artefato a obra de arte | 145

Um segundo movimento artístico indígena surgido na Austrália é a


Acrylic Painting – pintura com tinta acrílica sobre tela –, que nasceu e se
consolidou nas décadas de 1970 e 1980, devido a uma conluência de fato-
res. Nos anos 1970, ocorreram as primeiras concessões de terras indígenas,
iniciando-se um movimento de migração de retorno aos territórios ances-
trais.8 À medida que os grupos foram voltando às terras que consideravam
sagradas, memórias, narrativas míticas e práticas rituais ganharam força,
alimentando a produção pictórica.
O discurso do governo federal, nesse momento, substituiu o ideal
de assimilação dos nativos pelo de autodeterminação, fazendo com que
o estímulo ao protagonismo e às atividades produtivas ligadas a conhe-
cimentos tradicionais fossem vistas com bons olhos. Ademais, no âmbito
internacional, as exposições Magiciens de la Terre, em Paris, e Primitivism
in XXth Century Art, em Nova York, ambas nos anos 1980, ajudaram a
alavancar o valor da arte dita “primitiva”.9 Isso encorajou o governo aus-
traliano e as organizações indígenas a apostarem no segmento.10
O Aboriginal Arts and Crafts, órgão estatal que funcionou de 1971 a
1991, era uma agência de promoção da arte aborígine, que, juntamente
com o Aboriginal Arts Board, fundado em 1973 e hoje integrante do Aus-
tralia Council for the Arts, empenhou-se em organizar exposições dentro
e fora da Austrália, a im de formar públicos e mercados. Localmente,
as duas entidades passaram a apoiar a criação de cooperativas para a co-
mercialização de arte indígena, inspiradas nas lojas que já existiam nas
missões religiosas, procurando, contudo, superar seu caráter paternalista
e autoritário.11
A primeira cooperativa de artistas indígenas voltada à produção de
pinturas com tinta acrílica sobre tela foi fundada em 1972. O arte-educador
branco Geof Bardon, que trabalhava na comunidade de Papunya, no De-
serto Central, incentivou seus alunos das etnias Pintupi, Warlbiri, Anma-
tyierr, Arrente e Luritja a transporem para papéis, latas, muros e, depois,
para telas de tecido, desenhos e cores que já aplicavam sobre a areia e o
corpo em ocasiões cerimoniais.12 No começo, as pinturas eram pequenas e
conseguiam valores baixos no mercado, mas o governo entrava com alguma
verba para auxiliar, por meio do recém-criado Aboriginal Arts Board.
146 | Reflexões sobre arte e cultura material

A aceitação pelos brancos não foi imediata. Até 1979, não se encon-
trava nenhuma pintura acrílica feita em Papunya em museus de arte aus-
tralianos. Porém, na década de 1980, a pintura acrílica indígena se expan-
diu. Em 1988, o faturamento anual da cooperativa Papunya Tula Artists
Ltd. atingiu US$ 1 milhão; sua produção começou a entrar nos museus
públicos e galerias comerciais. As telas ganharam formatos e tamanhos
variados, e novas cores passaram a ser utilizadas. No inal dos anos 1990,
o valor das telas dos membros da Papunya Tula atingiu cifras tão elevadas
que ocorreram roubos em museus. Em 2010, quando visitei sua galeria, a
cooperativa vendia trabalhos de 120 artistas, em um espaço próprio gran-
de e elegante, no centro de Alice Springs. Ningura Napurrula, de 74 anos,
é uma de suas artistas mais famosas (Figura 8).

Figura 8. Wirrulnga, de Ningura Napurrula. 2006. Acrílico sobre linho. Na pintura,


estão representadas uma fonte de água e uma mulher grávida que, no “tempo dos
sonhos”, teve seu parto nesse local. Imagem de divulgação do site:
http://www.deutscherandhackett.com/node/11000022/
De artefato a obra de arte | 147

Existem, hoje, na Austrália, cerca de 7 mil artistas visuais indígenas.1


A produção e a venda de objetos artísticos representa a maior fonte de
ocupação e renda das populações indígenas no país. Ainda que alguns
sejam independentes ou representados individualmente por marchands
brancos, a maioria é associada a cooperativas autogeridas, similares à pio-
neira Papunya Tula.
Aproximadamente 100 cooperativas artísticas – chamadas de art
centres – estão espalhadas pelo território australiano, com maior concen-
tração no deserto e no norte tropical. Contando com subsídios públicos,
organizam exposições e vendas dentro e fora da Austrália, licenciam ima-
gens para que sejam aplicadas em souvenirs turísticos, catalogam a pro-
dução local, emitem certiicados de autencidade e organizam workshops e
viagens para os artistas associados. Normalmente, contratam um ou dois
funcionários brancos, formados em história da arte, marketing ou admi-
nistração, para cuidar de parte dessas tarefas.
Essa vasta de rede de apoio, aliada ao prazer que a pintura proporciona
e à possibilidade de ganhar dinheiro com ela, levou a pintura acrílica do de-
serto, iniciada na comunidade de Papunya, a se espalhar e ramiicar em uma
série de submovimentos e subestilos regionais. Esta é provavelmente a mo-
dalidade que mais admiradores tem conquistado dentro e fora da Austrália.
Por pura coincidência – e para deleite do público branco –, muitas das telas
feitas no deserto australiano lembram o trabalho de pintores modernistas,
como Paul Klee, Jakson Pollock, Wasilly Kandinsky e Mark Rothko.
Após ter delineado um breve panorama introdutório das artes in-
dígenas na Austrália, irei me deter um pouco mais, no próximo item, em
uma vertente especíica, surgida antes mesmo da aquarela e da pintura
acrílica do deserto: a pintura sobre entrecasca de eucalipto, conhecida
como bark painting.

A pintura sobre entrecasca de árvore de Arnhem Land

Arnhem Land é uma área tropical com 97.000 km2, no extremo norte da
Austrália (assinalada pelo retângulo, no mapa da Figura 9), onde a vida
é ritmada pelas estações seca e chuvosa. Ali existe uma reserva indígena
148 | Reflexões sobre arte e cultura material

desde 1931. De 1910 a 1970, grande parte das pessoas vivia em torno
das missões metodistas e anglicanas. A partir de 1970, com as primeiras
vitórias nas lutas por terras, elas se redistribuíram, retornando às àreas que
pertenciam tradicionalmente a seus clãs ou a suas famílias.
O grupo étnico mais numeroso de Arnhem Land se autodenomina
Yolngu. O contato dos Yolngu com os brancos se deu há mais de cem
anos. Nos séculos XVIII e XIX, eles também tiveram intenso contato com
mercadores macassar da Indonésia, que, por meio do comércio marítimo,
forneciam-lhes pepinos do mar, iguaria muito apreciada.

Figura 9. Mapa com os cinco estados e as principais cidades da Austrália. Dentro


do retângulo preto, ao norte, está Arnhem Land, zona em que predomina a bark
painting. A forma preta oval indica a região desértica que ocupa um terço do país,
onde floresce a pintura acrílica e onde Albert Namatjira produziu suas aquarelas, nos
anos 1940. Mapa adaptado a partir do site: http://australiatourism1.blogspot.com.br/

Para além do trançado de ibra, que é soisticado e abundante em


Arnhem Land, a produção artística nessa região utiliza primordialmente
a madeira e os pigmentos naturais como matérias-primas. Alguns autores
De artefato a obra de arte | 149

airmam que, muito antes do contato com os brancos, pranchas de euca-


lipto decoradas vinham sendo utilizadas pelos Yolngu como tetos e pare-
des de cabanas, durante a época das chuvas. Segundo Howard Morphy,
relatos sugerem que havia um segundo uso tradicional para as lâminas de
eucalipto pintadas: elas ajudavam a transmitir ensinamentos restritos, por
meio de desenhos.14
Não se sabe quando foram feitas as primeiras pinturas sobre entre-
casca vegetal, pois o material é perecível. Mas a primeira coleção de pran-
chas de que se tem notícia foi reunida na costa ocidental de Arnhem
Land, em 1838, e hoje pertence à Universidade de Sydney.15
Anderson16 atribui a popularização desse gênero de pintura à atuação
de antropólogos. O primeiro deles foi Baldwin Spencer, que esteve algu-
mas vezes no norte da Austrália, entre 1911 e 1921, em missões cientíicas
e como representante do governo.17 Pediu aos grupos com quem interagiu
que pintassem sobre entrecascas de árvores as mesmas imagens que se
encontravam estampadas nas rochas e cavernas da região. Spencer levou
consigo nada menos do que 962 exemplares dessas pinturas encomenda-
das, que hoje pertencem ao Museu de Melbourne.
Algum tempo depois, foi a vez de Ronald Berndt, professor da Wes-
tern Australia University, trabalhar em Arnhem Land. Sua metodologia
de pesquisa compreendia a encomenda de bark paintings aos Yolngu, so-
bre temas predeinidos.18 Já Charles Mountford, líder de uma expedição
inanciada pela National Geographic Society à Arnhem Land, entre 1947 e
1948, organizou uma mostra internacional de bark paintings que circulou
por toda a Europa.19
A bark painting é realizada sobre uma superfície originalmente curva:
para se obter a lâmina de madeira, a parte externa dos troncos de eucalipto
é arrancada na estação úmida (de novembro a março), aquecida no fogo
por alguns minutos e, então, sua curvatura é atenuada pelo uso de pesos
nas quatro extremidades. Os pincéis, por sua vez, são fabricados com pe-
quenos galhos, que podem ser mastigados em uma das extremidades, para
se tornarem mais macios, ou então ter penas e ios de cabelo colados em
suas pontas. No início dos anos 1960, bark paintings já se faziam presentes
nos principais museus australianos; eram inauguradas as primeiras gale-
rias comerciais de arte indígena em Sydney; e tanto a produção de pintu-
ras como o conhecimento dos brancos sobre elas se intensiicavam.
150 | Reflexões sobre arte e cultura material

Dentro da Austrália, a primeira exposição de bark paintings em um


museu de belas-artes foi idealizada pelo pintor e curador Tony Tuckson,
em 1960. Ele icou muito impressionado com uma exposição que vira em
Sydney, mostrando a coleção particular do casal Berndt. Em 1958 e 1959,
Tuckson fez viagens para Arnhem Land, de onde trouxe mastros ceri-
moniais decorados que até hoje têm destaque na entrada da Art Gallery
of New South Wales, em Sydney. A exposição organizada por Tuckson
viajou por museus de arte na Austrália e em outros países. Inclusive, parte
das peças foi enviada à Bienal de São Paulo, em 1961.
Ainda que haja variações regionais – fundo liso ou texturizado, pre-
sença ou ausência de um personagem central –, em linhas gerais, é fácil
reconhecer uma bark painting de Arnhem Land. Em primeiro lugar, utili-
zam-se apenas quatro cores: o preto extraído do carvão, o branco da lama,
o ocre e o vermelho de pedras da região. Em segundo lugar – ao contrário
da pintura acrílica do deserto que, aos nossos olhos, parece abstrata –, aqui
são igurados animais, homens e lugares que remetem a eventos míticos
do “tempo dos sonhos”.20
Em terceiro lugar, é recorrente a técnica das hachuras cruzadas, que
consiste na multiplicação de linhas paralelas e de linhas convergentes for-
mando ângulos repetidos (observável no corpo dos peixes, na próxima
imagem). Esse uso de inas linhas multiplicadas gera um efeito óptico de
brilho, contraste e movimento. Em algumas pinturas, a superfície parece
instável, como se fosse saltar para fora, atestando o poder dos ancestrais
evocado pelas pinturas.21 Por im, igura e fundo tendem a se confundir
(como ocorre com o crocodilo, na reprodução a seguir), sugerindo a uni-
dade entre os seres vivos, a paisagem e os ancestrais que os criaram e os
impregnam até hoje. Todos esses elementos podem ser identiicados na
Figura 10, uma bark painting de Djambawa-Marawil – líder e ativista de
Arnhem Land cuja obra está presente na maioria das coleções australianas.
A pintura reproduzida na Figura 10 retrata o crocodilo ancestral
Båru, que é relacionado à criação do fogo. A cena se passa numa parte da
costa de Arnhem Land chamada Yathikpa, onde ica o ninho de Båru, que
é o totem do clã Madarrpa, ao qual pertence o artista. Foi ali que apareceu
o fogo, pela primeira vez, como consequência de uma briga de Båru com
sua esposa. O local está associado ainda a uma outra passagem mítica: no
De artefato a obra de arte | 151

Figura 10. Båru at Yathikpa, de Djambawa Marawilli, c. 2004. Coleção do centro de artes
Buku-Larnnggay Mulka, em Yirrkala, Arnhem Land. Foto de divulgação publicada no
site: http://www.mulka.org/theartcentre/artwork/4964/B%C3%A5ru%20at%20Yathikpa
152 | Reflexões sobre arte e cultura material

“tempo dos sonhos” (Dreaming), dois pescadores estavam atrás de uma


espécie australiana de peixe-boi (dugong), quando erraram as lechadas e
atingiram uma pedra sagrada. Nesse momento, o oceano ferveu e a canoa
virou. O peixe-boi dessa história está presente em uma das extremidades
da pintura. O outro peixe, ao lado dele, deve ser um barramundi, que,
como o crocodilo australiano, tem a capacidade de transitar entre a água
doce e o mar, e representa a ligação entre os diversos clãs Yolngu. A tex-
tura que preenche as ondas e a espuma do mar forma, por vezes, losangos
com as extremidades semiabertas. Trata-se do símbolo do clã Madarrpa,
que lembra um diamante, e se faz presente na maioria das pinturas feitas
por seus membros.22
No vilarejo de Yirrkala, onde estive em 2010, há uma cooperati-
va gerida pelos Yolngu que vende predominantemente bark paintings. O
centro de artes Buku-Larrnggay Mulka, inaugurado em 1973, é um dos
mais antigos e bem-sucedidos da Austrália. Com o tempo, o espaço cres-
ceu. Em 1988, foi aberto um museu; em 1996, foi instalada uma oicina
de gravuras; em 1998, foi construído um anexo para colocar dois painéis
gigantes sobre a criação do universo, rejeitados pela igreja local; em 2007,
foi implantado o centro de multimídia, voltado para a documentação e a
produção audiovisual yolngu.
Diariamente, artistas que moram em um raio de 200 km vão ao cen-
tro de artes de Yirrkala vender seus trabalhos. Outros pintam ali mesmo,
no terraço, sentados no chão. Só não é permitido usar tinta acrílica sobre
tela, por decisão da diretoria, que prefere priorizar matérias-primas orgâ-
nicas e regionais. A cooperativa de Yirrkala compra à vista dos artistas.
O preço varia de acordo com o tamanho, a originalidade, a demanda do
mercado e a sabedoria do artista – ligada à sua idade. A cooperativa in-
termedeia as vendas das peças para galerias comerciais, museus públicos
e coleções particulares. Ao mesmo tempo, colecionadores e turistas não
encontram diiculdade em comprar peças pessoalmente em Yirrkala, pois
existem um aeroporto e dois hotéis nas proximidades.
Ao longo dos anos, os artistas yolngu foram se adaptando às novas
demandas. Inicialmente, as pinturas sobre prancha de madeira eram de ta-
manho reduzido. Com o lorescimento do mercado de arte indígena, sofre-
ram adaptações no tamanho – icando maiores – e no conteúdo – imagens
De artefato a obra de arte | 153

Figuras 11a e 11b. Troncos ocos


e esculturas de madeira pintados
com pigmentos naturais, à venda
no centro de artes de Yirrkala.
Fotos de Ilana Goldstein, 2010.
154 | Reflexões sobre arte e cultura material

seculares se multiplicaram e signos de divulgação restrita foram omitidos.


Até os anos 1960, os ixadores de pigmentos vinham de orquídeas, da clara
do ovo de pássaros ou de cera, mas, cada vez mais, torna-se frequente o
uso de colas e resinas industrializadas, para garantir maior durabilidade.
Ganchos foram acoplados no verso, para que as pranchas possam ser pen-
duradas na parede, à maneira de quadros. Desenvolveu-se, também, uma
estrutura metálica para dar suporte às pinturas, evitando que se enrolem
com o passar do tempo.
Além das pranchas de entrecasca de eucalipto aplainadas, outros su-
portes para a pintura têm surgido em Arnhem Land, como ilustram as
Figuras 11a e 11b (página 153).
A cooperativa de artes de Yirrkala, mais do que fomentar e distribuir
a produção artística dos Yonlgu do leste de Arnhem Land, funciona como
um polo articulador e um local para reuniões. Foi ali que nasceram, por
exemplo, duas iniciativas políticas interessantes, combinando arte e políti-
ca. Na década de 1960, lideranças de todos os clãs produziram, juntas, uma
petição exigindo direito à terra, que consistia de um texto datilografado, co-
lado no meio de uma grande e soisticada bark painting, elaborada a várias
mãos. Essa bark petition foi enviada ao governo federal, em Camberra, e,
embora não tenha tido impacto imediato, alguns anos depois, o mesmo juiz
que recebeu a petição pintada concedeu aos Yolngu o direito à terra. Em
1988, ano da celebração do bicentenário da colonização inglesa na Austrá-
lia, 43 artistas da mesma região produziram coletivamente, para a Bienal de
Sydney, uma instalação crítica relacionada à efeméride, consistindo de 200
mastros funerários decorados, um para cada ano da colonização.23

Considerações finais

Como procurei mostrar nas páginas anteriores, a arte contemporânea dos


povos indígenas da Austrália ancora-se em práticas e valores tradicionais,
e, ao mesmo tempo, está inserida nas instituições museológicas e no mer-
cado de arte. Isso só é possível em virtude da existência de políticas públi-
cas – premiações, aquisições de peças por museus, subsídios a cooperativas
indígenas, publicação de código de ética para o setor, entre outras – que
De artefato a obra de arte | 155

fomentam iniciativas locais e que estimulam o mercado e o circuito expo-


sitivo a absorvê-las.
É inegável que existem efeitos perversos, que explorei alhures,24 como
a exploração de artistas indígenas por marchands brancos, a apropriação do
repertório visual indígena por empresas de souvenirs, sem autorização e a
persistência de problemas sérios entre as populações indígenas, acarreta-
dos pelo contato. Não obstante, a produção artística é inegavelmente uma
forma importante de geração de renda para as comunidades indígenas da
Austrália que, ademais, ajuda a conferir visibilidade a populações histori-
camente oprimidas e desvalorizadas.
O caso australiano permite, também, tecer algumas considerações mais
gerais sobre os diálogos nascentes entre a antropologia e a história da arte.
No livro O im da história da arte (2006), Hans Belting faz uma espécie de
autocrítica disciplinar, declarando seu interesse por criações de todas as tra-
dições e regiões, e rompendo com hierarquizações etnocêntricas. “A assim
chamada história da arte é uma invenção de utilização restrita e para uma
ideia restrita de arte”.25 Belting airma ainda que, no Modernismo, teria
existido uma espécie de barreira protegendo a arte euroamericana da “con-
taminação” pela arte étnica e popular. Hoje, ao contrário, o que ele chama
de arte “global” interpela ao mesmo tempo a arte contemporânea (herdeira
e transgressora da tradição moderna ocidental) e a arte pós-étnica, indígena,
ex-“primitiva”, ou como se queira chamá-la.26
Portanto, mesmo que a ideia de arte tenha surgido associada a um
sistema institucional e a um cânone especíicos de uma parte do Ocidente,
talvez se possa, a partir da antropologia, estender essa noção, procurando
contemplar criações e formas expressivas de outras sociedades. O Centro
de Pesquisas Transculturais da Universidade Nacional da Austrália, onde
estive por três meses, reúne pesquisadores da antropologia, da museologia,
da arqueologia e da história da arte que trabalham, justamente, com uma
noção ampla e transcultural de arte:

Our position is that the anthropology of art is not simply the study
of those objects that have been classiied as art objects by Western art
history or by the international art market. Nor is art an arbitrary cat-
egory of objects deined by a particular anthropological theory; rather,
156 | Reflexões sobre arte e cultura material

art making is a particular kind of human activity that involves both the
creativity of the producer and the capacity of others to respond to and use
art objects. […] Anthropology must be open to classiications of the
phenomenal world that do not correspond to Western categories. […]
Art describes a range of thoughts and practices that employ creativity in
the production of expressive culture, regardless of whether that production
adheres to prescribed forms or embodies individual innovations.27

A proposta, que considero estimulante, e com a qual encerro minha


contribuição a este volume, é tratar a arte como uma forma de ação na qual
a criatividade e a técnica do produtor são fundamentais e na qual a capa-
cidade de desencadear uma resposta do receptor é igualmente importante.
Além disso, a ação artística deve necessariamente gerar formas expressivas
que carreguem signiicados e, ao mesmo tempo, possuam propriedades es-
téticas – canções, coreograias, pinturas, esculturas, entre outras, coinciden-
tes ou não com a categoria euroamericana “obras de arte”.

Notas
1
Uso aqui o exemplo de Emily Kame, porque suas pinceladas largas e suas cores vibrantes
são consensualmente apreciadas pela crítica e pelos colecionadores. Mas, na verdade, os
preços das obras variam bastante. Um artista iniciante, considerado talentoso e promissor,
consegue entre US$ 2 mil e US$ 5 mil por uma tela. No polo oposto, o maior valor de
venda já atingido por uma tela aborígine da Austrália foi US$ 2,4 milhões, pago por uma
grande pintura de Cliford Possum Tjapaltjarri, num leilão da casa londrina Sotheby’s,
em 2007. Em relação ao destino desse dinheiro, nas vendas do mercado primário, metade
chega às mãos dos artistas e é distribuída por suas redes de parentesco. A outra metade,
em geral, ica com os intermediários. Já no mercado secundário, o valor de revenda pode
ser dezenas de vezes mais alto do que aquele pago inicialmente ao artista. Nesses casos, a
Austrália criou, em 2011, um imposto que obriga o revendedor a repassar uma porcenta-
gem do lucro ao autor da obra.
2
Goldstein, 2012.
3
Kleinert; Neale, 2000.
4
Schmidt, 2005.
5
Shapiro, 2007, p. 137.
6
A noção de sistema de arte vem sendo delineada nas duas últimas décadas, sobretudo na
sociologia da arte francesa. Autores como Alain Quemin (2001), Nathalie Heinich (1998)
De artefato a obra de arte | 157

e Raymonde Moulin (1992) consideram sistema de arte como a rede que compreende
todos os sujeitos e organizações envolvidos na produção, exibição, avaliação, divulgação,
circulação e comercialização das artes. Fazem parte do sistema de arte, por exemplo, ar-
tistas individuais, coletivos, galerias, casas de leilões, museus, bienais, críticos, curadores e
diretores de instituições. Anne Cauquelin (2005) chama a atenção ainda para o fato de que,
no caso especíico da arte contemporânea, essa rede de interações ultrapassa as fronteiras
regionais e mesmo nacionais. Daí a expressão “sistema internacional de artes”.
7
French et al., 2008.
8
Os protestos de ativistas haviam começado já nos anos 1950 e 1960, mas foi só em 1976
que o Aboriginal Land Rights Act devolveu 50% do estado Northern Territory a comuni-
dades indígenas.
9
O interesse pela chamada “arte primitiva” loresceu inicialmente entre as vanguardas
do século XX. A partir de 1920 e 1930, a África, a Oceania e a América passaram a re-
presentar, para artistas como Matisse, Picasso e Breton, um reservatório de novas formas
e valores (Perry, 1998; Cliford, 1996). A categoria ganhou força entre as duas Guerras
Mundiais e teve seu apogeu entre 1957, com a criação do Museu de Arte Primitiva, em
Nova York, e meados da década de 1980 (Errington, 1998). Convém, no entanto, proble-
matizar o uso dessa categoria. Em primeiro lugar, além da produção indígena atual, ela
tem abarcado – em catálogos, leilões e mesmo museus – fenômenos tão diferentes como
pinturas rupestres pré-históricas, telas naïf, entalhes populares e trabalhos de pacientes
psiquiátricos. De acordo com Sally Price, “tudo o que essas diversas manifestações cha-
madas de ‘arte primitiva’ têm em comum é que são encaixadas, pelo Ocidente, em uma
espécie de estereótipo simpliicador do Outro exótico” (Price apud Goldstein, 2011, s.p.).
Em segundo lugar, não se pode negligenciar que a expressão “arte primitiva” é proble-
mática por remeter ao paradigma evolucionista, sugerindo que haveria formas artísticas
“inferiores”. Não obstante, fora das Ciências Sociais, não é raro encontrar-se tal categoria
sendo utilizada de forma pouco problematizada.
10
Altman, 2005.
11
As lojas das missões haviam se multiplicado a partir dos anos 1930, forçando os nativos
a produzirem cestaria, lechas etc. para o público externo. O dinheiro icava nas mãos dos
missionários, ao passo que, nas cooperativas atuais, cerca de metade da receita é repassada
aos artistas. Nas lojas das missões, não havia preocupação com o registro das histórias
míticas relacionadas aos objetos produzidos, enquanto nas cooperativas contemporâneas
o registro em foto, vídeo e textos é uma atividade rotineira. A tomada de decisões, nas
lojas das missões, era feita exclusivamente por brancos. Hoje, os conselhos diretores das
cooperativas são compostos por representantes indígenas. Outra grande diferença é que
os missionários nunca trataram aqueles objetos como obras de arte. Seu público-alvo
eram, sobretudo, turistas.
12
Johnson, 2006.
13
McCulloch; Schilds, 2009. Embora esta pesquisa tenha se debruçado sobre as artes vi-
suais, é importante destacar que, na Austrália, existem também bandas de rock que aliam
a guitarra elétrica ao djidjiridoo – instrumento de sopro feito de um tronco oco –, como é
158 | Reflexões sobre arte e cultura material

o caso do grupo Yothu Yindie, que já se apresentou, inclusive, no Brasil. Há também com-
panhias de dança renomadas, como o Bangara Dance heatre e videomakers aborígines
com circulação internacional, como Curtis Taylor, que apresentou seus vídeos na Reunião
da Associação Brasileira de Antropologia – ABA, em São Paulo, em julho de 2012.
14
Morphy, 2008.
15
McCulloch, 2009.
16
Anderson, 2006.
17
Spencer publicou Native Tribes of the Northern Territory of Australia em 1914, descre-
vendo de regras de matrimônio a ritos de iniciação, passando pela medicina e pelas “artes
decorativas”.
18
Morphy, 2008.
19
Caruana, 2003.
20
Interessante notar que uma palavra yolngu designa desenhos, de uma maneira geral:
miny’tji. O termo se aplica a qualquer motivo composto por linhas e cores, seja ele produ-
zido por um ser humano ou não. As asas de uma ave colorida, a estampa de um vestido
e uma pintura sobre casca de árvore são igualmente chamadas de miny’tji. Em todos os
casos, o desenho é considerado um sinal aparente da identidade das coisas e dos seres
(Morphy, 2008). Um mesmo miny’tji pode cobrir uma prancha de madeira, o peito de um
jovem que será circuncidado, ou um mastro fúnebre.
21
Morphy, 2005.
22
Essa rápida interpretação do conteúdo representado na bark painting reproduzida na
Figura 10 é baseada em minhas conversas com Howard Morphy, que há 40 anos trabalha
com os Yonlgu, e também em informações obtidas nos arquivos do Australian National
Maritime Museum, em Sydney.
23
Os mastros funerários são troncos ocos, comidos por formigas, que abrigam parte dos
restos mortais do falecido durante um ano de luto – depois do qual são deixados ao relen-
to para ser reintegrados à natureza. O mastro funerário é decorado com as mesmas pintu-
ras corporais que cobriam a pessoa em vida. Intitulada Aboriginal Memorial, a instalação
composta por mastros funerários metafóricos ica hoje numa sala de destaque da National
Gallery of Australia, em Camberra.
24
Goldstein, 2012.
25
Belting, 2006, pp. 101-104.
26
Embora Belting (2006) proponha uma arte mais inclusiva, não discute a primazia da
certas produções no mercado, nem as assimetrias de poder que ocorrem nesse processo,
tampouco a relação entre centro e periferia que vigora no sistema internacional – no qual,
inclusive, a arte latino-americana feita por brancos é marginalizada, não apenas a arte
“étnica”. Para reletir sobre tudo isso, a interface entre a antropologia, a museologia, a his-
tória da arte, a sociologia, a economia e o direito se faz necessária e promete ser frutífera.
27
Morphy; Perkins, 2006, p. 12, grifos da autora.
De artefato a obra de arte | 159

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Arte e cultura material
Objetos, pessoas e valores: arte e cultura material

Carly Machado (CULTIS, PPGCS e DCS-UFRRJ)

A mesa “Objetos, pessoas e valores: arte e cultura material” do seminário


Manifestações artísticas e ciências sociais realizou com precisão um exercí-
cio caro ao Núcleo de Pesquisa CULTIS: a articulação bem-sucedida de
questões comuns por meio de diferentes objetos, abordagens e temas de
pesquisa. Esta mesa colocou em diálogo etnologia indígena, cultura po-
pular, antropologia da religião, antropologia e sociologia da arte, objetos
seculares, imagens religiosas, e, no meandro de tal diversidade, provocou
recortes estimulantes, que favoreceram a articulação produtiva entre esses
diferentes estudos. Com essa perspectiva do entrecruzamento das temá-
ticas apresentadas, discutiremos cada trabalho especíico, investindo no
valor desse desaio saudável e academicamente provocante de convergir
ideias para melhor entendê-las em separado, e a partir delas criar/imagi-
nar outros campos de pesquisa e abordagens possíveis.

A criação, a destruição e a reinvenção de pessoas,


objetos e valores como ação ritual

As relexões sobre o ritual constituem um campo historicamente favorável


às questões que articulam pessoas, objetos e valores, e não foi diferente no
âmbito dos trabalhos apresentados aqui. Falar em rituais é abrir o debate
sobre a produção das fronteiras entre o sagrado e o profano,1 a articulação
entre materialidade, sensibilidade, processos e símbolos,2 a relação entre
pessoas, coisas e a produção de sentido,3 entre vários outros temas. Mais
recentemente, Tambiah4 deu novo vigor aos estudos sobre rituais, con-
tribuindo com vitalidade à perspectiva de uma antropologia da ação so-
cial. Sem a intenção de promover uma revisão bibliográica sobre o tema,5
163
164 | Reflexões sobre arte e cultura material

interessa-nos aqui articular os trabalhos ao campo mais amplo de debates


e, sobretudo, evidenciar como pela questão do ritual é possível pensar e
articular nossos trabalhos.
Fabio Mura, em seu trabalho sobre os Kaiowa, desenvolve uma aná-
lise sobre a articulação entre a cosmologia Kaiowa (enquanto uma visão
cosmo-histórica, nos termos de Mura) e a elaboração e conceituação de
objetos, formas e substâncias. Dedicando-se especiicamente à análise do
chiru (objetos de madeira geralmente em forma de varas e cruzes) e da
ogapysy (construções similares a casas), Mura demonstra com soisticação
analítica como a relação entre as pessoas e esses objetos, pensada a partir
da cosmologia Kaiowa, complica de modo particular a relação entre mate-
rial/imaterial, físico/metafísico, concreto/abstrato. Os dados etnográicos
de Mura iluminam-se pela análise dos rituais nos quais se dá a relação
entre os Kaiowa e esses objetos – orações, canções, disposição de altares, ri-
tuais de iniciação. A análise desses processos evidencia como se produzem
percepções, concepções, relações, cosmologias, sempre na perspectiva de
superação dos limites impostos por dualismos, especiicamente o dualis-
mo ontológico natureza e cultura.6
Daniel Bitter, em sua análise dos objetos cerimoniais da folia de reis
– especiicamente a bandeira e a máscara – apresenta um escopo rico e
diversiicado de rituais nos quais tais objetos circulam, mobilizando dife-
rentes bens materiais e simbólicos como bênçãos, graças, visitas, presentes,
cantos, trabalhos, entre outros. O contexto ritual das visitas às moradias
em Minas Gerais, de um Encontro de Folias de Reis em São Paulo, e de
uma exposição de máscaras de palhaço no Rio de Janeiro, compõem um
amplo conjunto referencial a partir do qual Bitter desenvolve sua análise
sobre o que denomina a biograia ritual da bandeira e da máscara, sua
circulação e seu trânsito entre planos cósmicos. Destaca-se nesse trabalho
a forma como Bitter discute a relação entre pessoas e objetos nesses con-
textos rituais, problematizando em suas considerações inais a oposição
ritual/estético, e coadunando-se assim com as preocupações de Mura e
de toda a mesa de romper analiticamente com dualismos que dominam
e predominam na teoria social, especiicamente na tensão entre forma e
conteúdo, pessoas e objetos e, mais uma vez, natureza e cultura.
Objetos, pessoas e valores | 165

Por meio de seu estudo sobre as mulheres de Goiabeiras Velha (ES)


que fabricam Panelas de Barro de modo tradicional, tal como “suas avós
faziam”, Carla Dias se propõe a discutir, de acordo com as palavras pre-
cisas da autora em seu artigo neste livro, “o processo pelo qual as pessoas
se constroem junto aos objetos que manipulam, como se organizam de
dentro para fora e como a invenção de uma determinada tradição ser-
ve para elaborar uma identidade materialmente encarnada”. O fazer das
panelas por essas mulheres que se denominam paneleiras é discutido por
Dias como um processo técnico de manipulação do material que deve
ser compreendido, sobretudo, como um processo social, produto de uma
dinâmica de interações construída a partir de um sistema de ações. A
importância do fazer enquanto sistema signiicativo de ações nos remete
ao diálogo da mesa sobre performance e ritual, de modo que o trabalho das
paneleiras passa a ser lido não como um simples ato técnico de produção
de um objeto especíico, mas como um ritual de produção de si na fabri-
cação de objetos materiais, e de seu valor, na tensão entre o tradicional e
o novo, também aqui rejeitando-se uma leitura dicotômica improdutiva,
agora entre temporalidades.
Renata Menezes propõe uma relexão sobre a imagem sagrada, na
interface entre os estudos sobre arte e aqueles sobre religião, a partir do
estimulante episódio do Cristo de Borja. Neste episódio dona Cecília,
uma devota octogenária da cidade de Borja, na Espanha, promoveu uma
restauração espontânea da imagem de Jesus, pintada no século XIX nas
paredes de uma pequena igreja local, resultando dessa restauração uma
imagem bem diferente do original. A partir dos desdobramentos e efei-
tos desse episódio, Menezes sugere uma releitura dos acontecimentos to-
mando por ponto de partida a antropologia da devoção e a relação entre
pessoas e santos. Nos termos da autora, em seu texto neste livro, “a de-
voção é um registro de classiicação que atua como ordenador da própria
vida, atribuindo-lhe signiicado”. Problematizando o ato de dona Cecília
e os desdobramentos inesperados da circulação da imagem transformada
por ela do Cristo de Borja, Menezes apresenta questões engenhosas acer-
ca da classiicação dessa imagem como artística e secular e/ou imagem
religiosa e sagrada, bem como a classiicação das ações sobre a imagem
transformada como restauração, destruição, cuidado ou blasfêmia. Sendo
assim, lidas como ações rituais, tanto a devoção de dona Cecília como
166 | Reflexões sobre arte e cultura material

as ações aleatórias e randômicas sobre a imagem do Cristo de Borja na


internet, podem ser pensadas como campos de produção de sentidos e va-
lores na relação entre pessoas e imagens ora compreendidas/vividas como
sagradas e ora como seculares. Também aqui, mais uma vez, a simples
dicotomia sagrado/profano como distinção ontológica não dá conta da
complexidade do campo analítico trazido neste conjunto de trabalhos.
Evidencia-se assim, na perspectiva dos estudos aqui apresentados,
uma etnograia da ação e seus simbolismos, do processo de produção de
subjetividades que se dá na relação com a produção, a reprodução, a criação
e a destruição de objetos. Do ato de fazer, e de fazer-se ao fazer sentido.

Sagrado e profano; religioso e secular:


deliciosos dilemas de classificação

Os trabalhos apresentados na mesa “Objetos, pessoas e valores: arte e cul-


tura material” do seminário Manifestações artísticas e ciências sociais trou-
xeram de forma transversal, nas diferentes apresentações, a questão da
relação entre o sagrado e o profano, o religioso e o secular, mesmo sem ser
a religião um tema central ao debate. A produção das categorias do sa-
grado e do profano informa a teoria e a pesquisa social desde seus autores
clássicos, como é possível conirmar por meio do célebre trabalho agora
centenário7 de Durkheim sobre As formas elementares da vida religiosa e do
precioso livro de Mary Douglas Pureza e perigo (1976).
Já acerca do debate sobre o religioso e o secular, destaco o trabalho
contemporâneo de Talal Asad em sua Genealogia da religião (1993), na
qual o autor propõe uma discussão crítica sobre a construção da categoria
religião na antropologia que, supostamente universal, seria pautada por
concepções datadas do cristianismo e da modernidade ocidental, especi-
icamente no que diz respeito a uma abordagem acerca da relação entre
religião e poder. Airma Asad:8

O meu argumento é que não pode haver uma deinição universal de


religião, não apenas porque seus elementos constituintes e suas relações
são historicamente especíicos, mas porque esta deinição é ela mesma
o produto histórico de processos discursivos.9
Objetos, pessoas e valores | 167

Atrelada à sua revisão da categoria religião, Asad desdobra seu es-


forço analítico ao propor também uma relexão acerca da noção de se-
cular, sugerindo que, ao lado de uma antropologia da religião, seja reali-
zada também uma antropologia do secular e do secularismo, de modo a
alimentar com pesquisas e dados etnográicos os elementos constitutivos
– históricos e discursivos – dessas duas categorias de conceituações inti-
mamente atreladas. Sugiro então que os trabalhos deste volume, mesmo
que alguns sem esta intenção direta, possam ser lidos por essa abordagem,
contribuindo signiicativamente para leituras e releituras acerca do que se
deine como religioso e secular, assim como os desdobramentos previsíveis
e imprevisíveis dessas deinições.
O trabalho de Renata Menezes, dentro do escopo especíico de uma
antropologia da religião em diálogo com uma antropologia da arte, en-
frentou de forma mais direta essas questões pertinentes ao seu próprio ob-
jeto em análise: a relação entre as ações de dona Cecília, o Cristo de Borja
e seus desdobramentos na esfera pública. Tal como discutido pela autora,
as consequências da classiicação dessa imagem como religiosa – imagem
sagrada – ou secular – uma obra de arte – são diferentes, mobilizam agen-
ciamentos especíicos, e se realizam concomitantemente na mesma situa-
ção. Ou seja: não é uma relação “ou isso ou aquilo”, ou religioso ou secular,
mas na mesma situação desdobram-se simultaneamente as consequências
da relação com a imagem do Cristo como obra de arte e como imagem
sagrada. A análise da autora sobre essa temática é preciosa e se arrisca com
destreza no debate sobre as construções das categorias religioso e secular
no âmbito especíico de pesquisas sobre arte.
Ao acompanhar bandeiras e máscaras da folia de reis no contexto das
festividades religiosas e também no âmbito da cultura (encontros e expo-
sições), o trabalho de Bitter recoloca a relação entre o religioso e o secular
ao tratar da circulação de objetos do âmbito religioso para o âmbito secu-
lar/cultural, bem como o caminho de volta. Bitter traz em sua etnograia
situações em que pessoas se relacionam com o objeto religioso como obra
de arte, e outras em que, exposto como objeto de arte, o objeto artístico é
alvo da devoção. Inspira-nos nesse debate as relexões de Luiz Fernando
Dias Duarte acerca do processo de sacralização10 como caminho analítico
interessante ao romper com as dicotomias próprias à discussão entre o
168 | Reflexões sobre arte e cultura material

religioso e o secular. O processo de sacralização, tal como discutido por


Duarte, pode realizar-se sem mobilizar necessariamente aspectos chama-
dos de religiosos ou, mais especiicamente, mobiliza aspectos do religioso
e do secular de modo particular. O trabalho de Bitter é assim rico em ele-
mentos analíticos que estimulam a relexão sobre a relação entre religião e
cultura – tema caro ao campo de debates antropológicos.
Conforme dito anteriormente, em seu estudo sobre os Kaiowa, Fabio
Mura traz continuamente para o debate os limites da contraposição on-
tológica entre natureza e cultura, e as diferentes categorias dela oriundas,
tais como os binarismos material/imaterial, físico/metafísico. Ao recolo-
carmos o debate proposto por Mura em relação com as questões do reli-
gioso e do secular, do sagrado e do profano, o desaio analítico se refaz e
se complexiica. A relação humanos e não humanos, tal como discutida e
etnografada pelo autor, aponta soluções cosmológicas que vão além de tais
dicotomias. A relação entre pessoas e objetos entre os Kaiowa mobiliza
orações, cantos, espíritos e rituais enquanto elementos de sua vida social, e
em sua análise Fabio Mura não faz uso em nenhum momento da cate-
goria religião ou mesmo a ideia de sagrado para categorizá-las. O olhar
atento a esse aspecto do trabalho de Mura, informado pelas preocupações
de Asad, pode nos conduzir ao questionamento sobre a pertinência dessas
categorias no contexto pesquisado pelo autor, sugerindo-nos em última
instância dúvidas acerca de sua suposta e pretensa universalidade.
As relexões engendradas por esses trabalhos, portanto, apontam
questões para um rico diálogo que relaciona os estudos sobre os objetos e
a arte com o campo de pesquisa sobre as religiões, em busca do enfrenta-
mento dos desaios contemporâneos de menos deinir-se e mais discutir-
-se as passagens e as construções recíprocas entre o religioso e o secular.

Dinâmica, movimento e circulação de pessoas e objetos

Por im, interessa-nos destacar a dinâmica, o movimento e a circulação


como aspectos centrais dos trabalhos aqui apresentados. A relação da teo-
ria social com o tempo, o processo e a mudança têm suas particularidades.
Permanências e mudanças são enfrentadas ao longo do fazer sociológico
Objetos, pessoas e valores | 169

de formas variadas. Na antropologia, os trabalhos de Firth, Gluckman,


Levi Strauss e Sahlins11 são signiicativos desse esforço em pensar socie-
dades e culturas a partir da relação entre aquilo que atravessa o tempo e o
que nele se forma e se transforma.
O trabalho de Carla Dias sobre as paneleiras de Goiabeira Velha
(ES) é exemplar ao discutir diretamente a tensão da relação entre passado,
presente e futuro, tradição e inovação, permanência e mudança. Ao fazer
as panelas, as mulheres pesquisadas por Dias esculpem suas subjetividades
em continuidade e em ruptura com suas tradições. “As inovações são per-
mitidas desde que não deixem de fazer as formas tradicionais, aquelas que
legitimam sua permanência, sua existência coletiva”, airma a autora. As-
sim, o processo e a dinâmica da relação entre tempo e espaço é elemento
indispensável às relexões apontadas por Dias para a compreensão dessas
paneleiras e suas panelas, dessas pessoas e sua relação com os objetos, na
produção de valores.
Além da dinâmica no tempo, também os deslocamentos no espaço
tornaram-se um desaio para a antropologia. Classicamente constituída
como o estudo de um povo em um lugar, a antropologia vem assumindo
a necessidade de repensar essa díade e pautar o debate sobre o conceito
de campo,12 lançando-se produtivamente ao desaio de pesquisar pessoas,
objetos e fenômenos em movimento no espaço, como sugerido, por
exemplo, por Marcus13 através de suas relexões acerca de uma etnograia
multisituada.
No trabalho de Bitter, por exemplo, a circulação é elemento-chave. Sua
etnograia em diferentes sítios ou campos favorece o acompanhar de obje-
tos e pessoas na Folia de Reis e a invenção e reinvenção dos seus sentidos
em movimento. A localização de sua análise em um dos campos resultaria
na perda signiicativa dos elementos que Bitter é capaz de nos demonstrar
ao acompanhar a circulação, enfrentando o desaio de etnografar um cam-
po em movimento quando a tradição antropológica oferece mais recursos
para uma pesquisa monossituada do que para um pesquisador em trânsito.
Além de uma biograia dos objetos – que acompanha a dinâmica temporal
dos objetos – Bitter nos apresenta uma cartograia dos objetos – que identiica
diferentes sentidos nos objetos ao ocuparem diferentes lugares e posições no
espaço, e mais, ao se deslocarem e circularem nele.
170 | Reflexões sobre arte e cultura material

Renata Menezes também explora os sentidos da circulação de uma


imagem. Aventurando-se em acompanhar a imagem do Cristo de Borja em
suas várias materialidades – inclusive sua versão digital circulante, alterada
e continuamente alterável – Menezes aceita o desaio que as questões da
ultracirculação, favorecida pelas tecnologias digitais, provocam aos estudos
sobre arte e religião. Levando a sério um meme,14 a autora transforma sua
versão anedótica em questões centrais e surpreendentes quando explora-
das academicamente. Menezes soma-se a Bitter ao relacionar circulação
e transformação, desaiando categorias previamente deinidas de original
e cópia, destruição e reinvenção, escancarando os limites do debate sobre a
imagem e seu potencial de permanência e continuidade versus sua dispo-
nibilidade à alteração em diferentes meios, lugares e relações.

Notas
1
Durkheim, [1912] 1996.
2
Turner, 1982 e 1987.
3
Mauss, 2003.
4
Tambiah, 1997.
5
Esta já realizada amplamente na literatura, com destaque para Peirano, 2002.
6
O esforço analítico acerca das categorias natureza e cultura é presente em diversos cam-
pos da antropologia. A etnologia indígena alimenta fortemente este debate em seus estu-
dos clássicos e contemporâneos, tal como o faz Mura em seu texto neste livro. Cabe des-
tacar também, no contexto desta publicação, o trabalho de Luiz Fernando Dias Duarte.
7
Dentre diversos eventos e publicações sobre os cem anos deste livro de Durkheim, des-
taca-se o dossiê temático publicado na revista Debates do Ner, ano 13, n. 22, jul/dez 2012.
8
Asad, Talal. [1993] 2010, p. 264.
9
No campo da antropologia brasileira, sugiro a leitura dos trabalhos de Giumbelli (2002),
Birman (2012) e Montero (2012) que, em diferentes contextos, abordam de maneira igual-
mente relevante a questão da construção das categorias de religioso e secular no Brasil.
10
Duarte, 2006.
11
Firth, 1974; Gluckman, [1958] 2010; Levi Strauss, 2008; e Sahlins, 1985.
12
Gupta; Ferguson, 1997.
13
Marcus, 1995.
14
Um meme, termo criado em 1976 por Richard Dawkins no seu best-seller O gene egoísta,
é para a memória o análogo do gene na genética, a sua unidade mínima. É considerado
Objetos, pessoas e valores | 171

uma unidade de informação que se multiplica de cérebro em cérebro ou entre locais


onde a informação é armazenada (como livros). No que diz respeito à sua funcionalidade,
o meme é considerado uma unidade de evolução cultural que pode de alguma forma
autopropagar-se. Os memes podem ser ideias ou partes de ideias, línguas, sons, desenhos,
capacidades, valores estéticos e morais, ou qualquer outra coisa que possa ser aprendida
facilmente e transmitida como unidade autônoma. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Meme.
Acesso em: 26/02/2013).

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©1993 he Johns Hopkins University Press. Translated with permission of he
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Cultura popular em trânsito: circulação
e estetização de práticas performativas
e objetos rituais entre folias de reis

Daniel Bitter (UFF)

Em diversas regiões do Brasil, durante o período de festejos natalinos, gru-


pos de cantores e tocadores realizam um longo circuito de visitas rituais às
moradias de familiares, vizinhos e amigos, distribuindo bênçãos em troca de
ofertas destinadas à realização de uma grande festa em louvor aos Reis Ma-
gos do Oriente. As visitas rituais, denominadas “jornadas”, inspiradas nas
peregrinações míticas dos Reis Magos, colocam em circulação uma ampla
gama de bens materiais e simbólicos, tais como: bênçãos, graças, visitas, re-
feições, dinheiro, presentes, favores, cantos religiosos, trabalho, divertimento
etc. Esse rito popular mobiliza diversas categorias sociais, divindades e ante-
passados em intensas e signiicativas trocas, por meio das quais se criam e se
fortalecem laços sociais e cosmológicos duradouros, conigurando-se num
extenso e complexo sistema de prestações recíprocas.1
Nesse contexto, alguns objetos cerimoniais, como a bandeira e a más-
cara do palhaço, ocupam um lugar fundamental, realizando mediações en-
tre domínios sociais e cósmicos. Observa-se que, de forma crescente, esses
objetos materiais têm se deslocado para contextos de colecionamento e
exibição, para além do domínio das relações primárias de parentesco e vizi-
nhança, quando são eventualmente reclassiicados como arte, objeto etno-
gráico, patrimônio etc. Correlativamente, os próprios rituais das folias de
reis têm sido performados numa diversidade de situações, ocupando praças
públicas, palcos de teatros, escolas etc., num intenso processo de estetização
e “objetiicação cultural”.2 Nesses diversos cenários, as práticas de foliões de
reis ganham novos sentidos e dimensões que as enriquecem.
Neste texto abordo esses trânsitos, procurando reletir sobre as conti-
nuidades e descontinuidades entre os vários “enquadramentos” 3 em que se
173
174 | Reflexões sobre arte e cultura material

situam as práticas de foliões, colocando em foco as trajetórias da bandeira


e da máscara. Procuro acompanhar suas “biograias culturais” 4 e observar
as fases de suas “vidas sociais”, inspirado pela sugestão de Arjun Appadurai
de que “são as coisas em movimento que elucidam seu contexto humano
e social”.5 Argumento que esses objetos, bem como a performance, tran-
sitam num contínuo entre os polos ideais do ritual religioso e do estético,
e que, em muitos momentos, essas dimensões se sobrepõem. É possível
veriicar a passagem de sua inalienabilidade à alienabilidade, seu trânsito
para dentro e para fora do mercado, coleções particulares ou museus, en-
im, suas rotas, eventuais desvios e outros detalhes biográicos, dentro de
processos sócio-históricos especíicos. Importa aqui acompanhar o modo
como essas coisas são classiicadas e reclassiicadas em categorias cultural-
mente compartilhadas.
Para ins de análise, proponho discutir essas questões partindo de
distintas situações por mim observadas em trabalho de campo: um ritual
no morro da Candelária, Mangueira, no Rio de Janeiro; o Encontro de
Folias de Reis de Ribeirão Preto, São Paulo, realizado em 2011; e uma
exposição de máscaras de palhaço realizada na Universidade Estadual do
Rio de Janeiro (UERJ) também em 2011.

O circuito ritual da bandeira e da máscara

Começo por apresentar alguns aspectos de uma das fases da vida da ban-
deira e da máscara no contexto de sua restrita circulação ritual entre foli-
ões e devotos, a partir de pesquisa realizada no Complexo da Mangueira,
no Rio de Janeiro, entre 2004 e 2007. A bandeira pode ser sumariamente
descrita como um suporte sobre o qual são ostentadas imagens de santos
católicos e representações pictóricas de narrativas bíblicas, como os Reis
Magos, a Sagrada Família, ou ainda outros santos com os quais se mantém
um vínculo especial. Normalmente é dotada de uma proeminente aparên-
cia estética dada pela cuidadosa ornamentação feita com o uso de lores,
pequenos espelhos, rendas, enfeites natalinos, lâmpadas e itas de seda co-
loridas. Considera-se que a bandeira seja detentora de poderes especiais,
sendo capaz de trazer bênçãos e graças a quem a recebe. A máscara, por
Cultura popular em trânsito | 175

sua vez, é usada por um personagem das folias comumente chamado de


palhaço. Trata-se de um tipo marcadamente liminar, cômico e ambíguo,
e sua máscara, de aparência grotesca, opera signiicativas transformações
simbólicas e sociais, revelando e ocultando identidades pessoais. A más-
cara mostra-se indissociável de seu proprietário, assumindo signiicados
moralmente negativos em contraste com a bandeira, em razão de sua as-
sociação a personagens malévolos, como Herodes. A máscara é também
alvo de uma cuidadosa artesania.
Conforme observei em inúmeras ocasiões, os circuitos de visitação
ritual das folias se iniciam com a reunião dos foliões, compreendendo
homens e mulheres de idade variada, na sede da folia, onde se encontra a
bandeira. Sua manipulação e seus cuidados são restritos a algumas poucas
pessoas. A retirada da bandeira do altar pela bandeireira, comandada pelo
mestre, é um acontecimento ímpar, que envolve cantoria, toque instru-
mental, preces, acendimento de velas etc. A bandeira mantém-se guarda-
da no interior de um altar privado, ornamentado com lâmpadas coloridas,
imagens, itas etc., o que acentua sua sacralidade.
Os ritos que inauguram as jornadas marcam a passagem do tempo-
-espaço cotidiano para o tempo-espaço mito-mágico dos Reis Magos e
visam também conferir proteção espiritual aos componentes do grupo,
que agora se engajam num empreendimento considerado perigoso.6 É
também nesse momento que se realizam ritos especialmente dedicados
aos palhaços, uma vez que se crê que estes precisam de mais proteção do
que os demais, por serem associados a representações negativas, como He-
rodes ou seus soldados, perseguidores do menino-Deus, que ocupam um
importante lugar nas narrativas míticas. Durante esses rituais, os palhaços
retiram suas máscaras, aproximam-se de joelhos do altar e acendem velas
colocadas no chão para seus anjos da guarda.
Retirada a bandeira do altar pela bandeireira, ela entra em circulação
pelas vias públicas da localidade em direção às casas, retornando sempre para
o mesmo altar ao im de cada jornada diária. A folia percorre uma rota de vi-
sitações e seus deslocamentos espaciais descortinam uma cartograia social,
sinalizando a qualidade das relações que foliões mantêm com a comunidade
de devotos. O grupo realiza uma sequência básica de ações durante a visita
a uma casa, envolvendo chegada, cantoria, distribuição de bênçãos, refeição,
176 | Reflexões sobre arte e cultura material

brincadeira do palhaço, agradecimento e despedida, conigurando-se como


um “processo ritual”7 que se desenrola no espaço e no tempo. Durante a
visita, desenvolve-se um contínuo encadeamento de trocas cerimoniais de
dádivas e contradádivas8 entre moradores, foliões e demais participantes. É
dentro desse enquadramento que os familiares costumam fazer doações em
dinheiro aos foliões, no momento de sua despedida. O donativo é entregue
à bandeireira, que por sua vez ixa as notas na bandeira.
Chamo a atenção para a ideia de que a entrada da bandeira e dos
foliões, e de sua música no interior da casa, a transforma. A realidade é
reenquadrada através da performance ritual. A presença dos Reis Magos
e sua ação são, nesse contexto, sentidas e celebradas entre residentes e
foliões, como uma realidade concreta, e a bandeira parece ter um papel
fundamental na presentiicação do santo e na mediação entre domínios
cosmológicos. Nesse sentido, pode-se dizer que a bandeira assume efeti-
vamente o estatuto de uma “pessoa”.9
Um aspecto da biograia ritual da bandeira, revelador de concepções
sobre sua natureza supramundana, merece ser comentado. Uma narrativa
muito disseminada entre foliões explicita que a bandeira e a própria folia
tem origem mítica. Maria teria costurado uma bandeira e a ofertado aos
Reis Magos, de modo que seguissem viagem sob proteção divina. Os Ma-
gos, por sua vez, a teriam dado aos homens, para realizar suas peregri-
nações. O fato de as bandeiras serem fabricadas pelos homens não entra
em contradição com essa ideia. O que as singulariza e as sacraliza é o co-
nhecimento, a que foliões chamam de “fundamento”, por meio do qual
as bandeiras são produzidas. Latour10 sugeriu que a mão humana presen-
te na feitura das imagens religiosas não diminui sua sacralidade, mas, ao
contrário, a torna mais verdadeira. Em certo sentido, as coisas fabricadas
pelos homens, que mantêm vínculos divinos, tendem a ter sua humanidade
apagada, esquecida. De qualquer modo, o passado imaginário das origens
é sempre presentiicado mediante essas formas materiais que se ligam ao
“fundamento”. Como inalmente sugere e nos faz recordar Maurice Gode-
lier, os objetos sagrados

podem se apresentar como fabricados diretamente pelos deuses e pelos


espíritos, ou pelos homens sob indicação dos deuses ou dos espíritos,
Cultura popular em trânsito | 177

mas em qualquer caso os poderes neles presentes não foram fabricados


pelos homens. São dons dos deuses ou dos ancestrais, dons de poderes
presentes doravante no objeto.11

A trajetória da bandeira entre esses planos cósmicos não é, entretanto,


necessariamente de mão única. Seu destino inal pode ser o retorno à esfera
supramundana, como se veriica no caso de um antigo mestre de folia que,
ao declarar encerradas suas atividades rituais, e não tendo a quem trans-
mitir a responsabilidade de seu posto, toma uma tesoura e resolutamente
picota a bandeira, distribuindo cerimonialmente seus fragmentos entre os
presentes durante a festa de arremate,12 enquanto recita os seguintes versos:
“[...] e a bandeira vai para Belém”. São palavras que indicam a intenção de
retornar a bandeira ao seu ponto de origem.
Além de a bandeira realizar inúmeras e importantes mediações entre
esferas e domínios, como passado e presente, vivos e mortos, homens e
mulheres, casa e rua, homens e deuses, mito e rito, ela é o ponto focal de
uma ampla circulação de outros objetos, como itas de seda, santinhos, cru-
ciixos, fotograias, dinheiro etc. Esses objetos são oferecidos por devotos

Figura 1. Bandeira. Foto: Daniel Bitter. Figura 2. Máscara. Foto: Daniel Bitter.
178 | Reflexões sobre arte e cultura material

aos santos ou, inversamente, pelos santos aos devotos. Neste último caso,
o mestre protagoniza um ato ritual de retirada de alguns desses objetos da
bandeira para dar aos devotos. Bilhetes, pedidos e mensagens são comu-
mente endereçados aos santos, ingressando numa intensa circulação cós-
mica. Doam-se e recebem-se coisas através da bandeira, e o que se veriica é
que há um verdadeiro intercâmbio entre o mundo “visível” e o “invisível”. Há
um luxo permanente de objetos entre esses planos, e, como bem sinaliza K.
Pomian, os objetos, “oferecidos em sacrifício, vão do primeiro desses mundos
para o segundo. Os outros seguem o percurso inverso, quer directamente,
quer introduzindo em imagens pintadas ou esculpidas elementos do mundo
‘invisível’”.13 O autor acrescenta que o que torna esses objetos distantes do
circuito das atividades econômicas é a função de garantir a comunicação
entre os dois mundos que compõem o universo. Costuma-se também levar
a bandeira aos cômodos mais recônditos e íntimos da casa. Esse gesto parece
destinar-se a sacralizá-los, puriicá-los ou afastar maus espíritos. O mesmo
se aplica quando a bandeira é usada para benzer uma pessoa ou um defunto.
Em suma, chamo aqui a atenção para o fato de que, nesse contexto, a ban-
deira é detentora de amplos poderes de agência.
A performance do palhaço se desenrola quase sempre na rua, mas
pode também se realizar ocasionalmente no interior da residência. Nesse
caso, sua entrada na casa é feita gradualmente e requer insistentes pedi-
dos de licença feitos aos residentes que recebem a folia. Muitas vezes, a
bandeira é retirada do espaço onde o palhaço realizará sua apresentação.
Outras vezes, ela é apenas coberta com um pano, o que indica que a visibi-
lidade desse objeto é uma via privilegiada para a manifestação de seus po-
deres. Ainda assim, a presença da bandeira e sua proximidade são aspectos
que garantem sua eicácia, visto que os palhaços não devem se aproximar
demasiadamente desta, a não ser que estejam sem suas máscaras, como
também não devem afastar-se muito, pois necessitam de sua proteção. A
razão desse perigo potencial e desses interditos pode ser encontrada em
exegeses mitológicas.
O palhaço declama versos de memória ou de improviso, de acordo
com as circunstâncias do momento. Seu caráter é fortemente cômico, ten-
do muitas vezes o público, mas principalmente o próprio dono da casa,
como alvo de suas brincadeiras. Seu jogo está em divertir os espectadores e
Cultura popular em trânsito | 179

conseguir tirar proveito do dinheiro ofertado pela assistência, que é jogado


ao chão.14 Embora a bandeira e a máscara se apresentem de forma con-
trastiva, inclusive esteticamente, ambas compartilham a característica de
estarem fortemente ligadas aos seus usuários, aos seus corpos, inscrevendo-
-se efetivamente num contexto de intercâmbio de qualidades entre pessoas
e coisas. Se, por um lado, a bandeira é alvo de intensos contatos corporais,
a máscara, por sua vez, é evitada, pelo risco de contágios negativos. No
contexto ritual, a circulação desses objetos é bastante restrita, aproximan-
do-se do que Annette Weiner15 chamou de “possessões inalienáveis”. A
transferência da bandeira de um mestre a outro pode se realizar, mas deve
envolver certos procedimentos rituais, uma vez que esses objetos são vistos
como extensões de seus proprietários ou mesmo como propriedades dos
santos. A máscara é pessoal, e, no contexto ritual, sua circulação é também
bastante restrita, uma vez que não se costuma transferi-la das mãos de um
palhaço a outro, pois considera-se perigoso. Mesmo após a morte de um
palhaço, seus pertences rituais são frequentemente considerados despojos
impuros,16 que precisam ser eliminados adequadamente.
A inalienabilidade dos objetos não é, entretanto, completa ou perma-
nente, mas uma fase de suas “vidas sociais”, conforme venho argumentan-
do. Evidentemente, a condição de inalienabilidade do objeto pode não ser
permanente nem se estender a todos os casos, pois é sempre dependente
de sua posição dentro de um quadro valorativo especíico.17 De acordo
com Gonçalves

os objetos materiais estão submetidos a um processo permanente de


circulação e reclassiicação, podendo ser deslocados da condição de
mercadorias para a condição de presentes; ou da condição de presen-
tes para a condição de mercadorias; e alguns desses objetos podem ser
elevados à condição de “bens inalienáveis”.18

Bandeiras e máscaras podem, inclusive, ser produzidas sob deman-


da, com o propósito de serem imediatamente mercantilizadas, não apenas
como objetos cerimoniais, mas como artefatos valorizados por sua artesa-
nia ou pelo conhecimento etnográico que supostamente encerram.
O que acontece quando esses objetos fortemente “singularizados” e
dotados de signiicados mágico-religiosos, transitando muito restritamente
180 | Reflexões sobre arte e cultura material

entre foliões e devotos, e as performances a eles associados sofrem desloca-


mentos em suas rotas e passam a circular em festivais folclóricos, coleções
e exposições, assumindo eventualmente a condição de mercadoria, arte,
artefato etc.? O que dizer desses objetos de uso ritual quando são pro-
duzidos e imediatamente inseridos em circuitos comerciais, artísticos ou
de colecionamento? Por ora, talvez seja possível deinir provisoriamente o
estatuto desses objetos, seguindo a sugestão de Kopytof: o que caracteriza
a situação de todas essas coisas é sua ambiguidade.19

Os encontros de folias de reis

Os festivais folclóricos20 não são propriamente uma novidade, pois se sabe


que desde pelo menos o chamado “Movimento Folclórico”, transcorrido
entre os anos 1947-1964, estes foram amplamente instituídos como ins-
trumentos de incentivo e proteção das “manifestações folclóricas”.21 Os
eventos são realizados em espaços públicos de algumas cidades, contri-
buindo em certa medida para dar maior visibilidade a práticas sociais e
culturais, bem como a modos de vida desconhecidos da maior parte da
população. Alguns desses eventos revelam uma vitalidade notável, a exem-
plo do Encontro Nacional de Folias de Reis de Muqui-ES, realizado há
mais de cinquenta anos e que já chegou a reunir, num único evento, cerca
de uma centena de grupos. Richard Bauman e Patricia Sawin deiniram
esse tipo de evento do seguinte modo:

he folklife festival is a modern form of cultural production that draws


upon the building blocks and dynamics of such traditional events as fes-
tivals and fairs: complex, scheduled, heightened, and participatory events
in which symbolically resonant cultural goods and values are placed on
public display. 22

Numerosas folias de reis incorporaram à sua rotina a participação


nesses festivais e em outros eventos marcados por uma forte “espetacu-
larização”. Foliões distinguem com clareza essas modalidades de partici-
pação usando as categorias nativas visita e apresentação, transitando com
Cultura popular em trânsito | 181

Figura 3. Folia de Reis se apresentando no palco. Foto: Daniel Bitter.

desenvoltura entre elas. O ponto a assinalar é que a dimensão espetacular


das folias de reis nunca deixou de lhes ser inerente, embora se acentue
bastante nos novos cenários de exibição e mesmo de competição.
O Encontro de folias de Ribeirão Preto é um evento anual que tem
contado com amplo apoio da prefeitura da cidade, por intermédio da Secre-
taria de Cultura. É uma grande festividade pública caracterizada por múlti-
plas práticas, envolvendo devotos, foliões de reis, políticos, intelectuais, fol-
cloristas, pesquisadores, jornalistas, turistas etc., num entrecruzamento de
interesses, sentidos e discursos. Nesse contexto, são acionadas determinadas
políticas de representação e exibição que tendem a reclassiicar as perfor-
mances como arte, folclore, cultura brasileira, patrimônio local ou nacional
etc., noções essas que permeiam largamente os discursos dos apresentado-
res do evento. Proponho que eventos dessa natureza se deem na forma de
“transações interculturais”,23 envolvendo processos contínuos de negociação
por meio dos quais se constroem múltiplas representações identitárias.
O encontro tem lugar na praça José Rossi, no bairro de Vila Virgínia.
No centro da praça há um grande e elevado palco. O evento se inicia com
uma missa, sinalizando a presença da Igreja católica, o que não necessa-
riamente se veriica no contexto do ciclo ritual das folias de reis, quando
182 | Reflexões sobre arte e cultura material

essa relação é, em muitos casos, controversa e conlituosa. Por volta das


10h se iniciam as apresentações das folias presentes, que contabilizaram,
na ocasião, quarenta grupos oriundos de cidades próximas. Os grupos re-
cebiam da comissão organizadora um número de inscrição, de acordo com
a ordem de chegada. Cada grupo tem dez minutos para sua exibição no
palco, incluindo a apresentação dos palhaços. O “limitado” tempo de atu-
ação das folias de reis em contraste com o tempo expandido dos cortejos
de visitação ritual merece ser assinalado. Tenho, entretanto, pensado que
há nesses eventos muitas formas de subverter esse tempo regulado pelo
relógio, e isso parece particularmente visível nas atividades que ocorrem
ao redor do palco, que apresentarei mais adiante. Há, evidentemente, uma
série de adaptações da performance usual para adequá-la ao novo for-
mato, o que, muitas vezes, é motivo de desentendimento entre as partes
envolvidas. Bauman e Sawin24 chamam a atenção para o fato de que es-
sas acomodações, que visam tornar a performance inteligível ao público e
atender a múltiplas demandas de representação, podem se dar em meio a
processos complexos, problemáticos e conlituosos. Os autores partem da
premissa de que a constituição de festivais folclóricos se dá num campo
que tem relações com arenas políticas mais amplas, envolvendo relações
de poder e estruturas de autoridade. Os autores destacam, entretanto, que
é necessário reconhecer a agência dos participantes, uma vez que não são
simplesmente objetos museológicos.25
Um locutor anuncia ao público a apresentação dos grupos, e cada um,
por sua vez, sobe ao palco. É também função do locutor anunciar a presença
de pessoas “ilustres”, o nome dos patrocinadores e apoiadores, bem como
tecer comentários sobre os grupos, enaltecendo suas qualidades: origem,
tempo de existência, formação instrumental, estilo etc. Ocasionalmente,
as representações construídas pelos apresentadores se chocam com aque-
las sustentadas pelos próprios participantes. A apresentação dos grupos se
desenrola em grande interação com o público, embora certa distância física
se mantenha entre eles na maior parte do tempo. O foco está concentrado
na performance, nos seus aspectos formais e estéticos. Ouve-se as pesso-
as tecerem comentários sobre trajes, música, repertório etc. A assistência
aplaude, se entusiasma e se emociona com as apresentações. A música am-
pliicada por potentes caixas acústicas adquire um caráter bastante distinto
Cultura popular em trânsito | 183

daquele que se veriica no contexto solene e intimista de cantoria na casa


de um devoto. Ao inal da performance de cada grupo, a bandeira é levada
ao público pelo bandeireiro para ser beijada, tocada e louvada etc., quando
então a distância é reduzida, e os aspectos mágico-religiosos da performan-
ce tornam-se mais salientes.26
Essa interação é ainda estimulada pela instituição de uma premiação
conferida aos palhaços que conseguem arrecadar a maior quantidade de
dinheiro ofertado pela assistência. É uma espécie de concurso no qual o
júri é o próprio público, que expressa sua preferência ofertando maior ou
menor quantidade de dinheiro. A expectativa do prêmio e a competição
em torno do reconhecimento e da notoriedade de certos indivíduos são
fatores de signiicativa importância no quadro dessa interação. Como ar-
gumentou Barbara Kirshenblatt-Gimblett,27 em contraste com exibições
museológicas convencionais, que tendem a reduzir a complexidade sen-
sorial do evento, festivais folclóricos são multilocalizados, requerendo dos
espectadores um tipo de desatenção que a vitrine, por sua vez, impede.
Como a autora sugere, o palco, o mestre de cerimônias e o programa do
evento estão para o percussionista como a vitrine, a etiqueta e o catálogo
estão para o tambor.28 Como propõem Bauman e Sawin:

Folk festivals have obvious ainities with museums, which also exist for
the display of culturally valued forms, thought where museums tend to-
wards the display of material objects, folk festivals, in keeping with the
ambience and dynamic of the festival form, are more participatory and
oriented toward action and performance.29

Durante o evento, uma prática também muito importante consiste no


hasteamento de três bandeiras representativas localizadas ao lado do palco:
são elas a de Nossa Senhora Aparecida, a de São Sebastião e a dos Magos
do Oriente. Noto que as bandeiras são importantes marcos de sacralização
do espaço de apresentação, apontando para o contínuo entre o polo estético
e o religioso e a luidez e ambiguidade dos enquadramentos. Cabe ressaltar
também o contraste entre o uso do espaço no contexto local e no festival.
No caso dos circuitos de visitação, os foliões se deslocam em direção às
184 | Reflexões sobre arte e cultura material

casas de devotos, espaços privados por excelência. No evento público, ao


contrário, são as pessoas que se deslocam para a praça onde já se encontram
as folias. Esse contraste parece ser signiicativo e aponta também para o fato
de que são as circunstâncias que investem o espaço de um sentido particular.
Se por um lado a bandeira da folia puriica a casa ao adentrá-la, na praça
algo semelhante se dá com o hasteamento das bandeiras.
Argumentei anteriormente que o limitado tempo de apresentação dos
grupos é subvertido, e creio que isso está relacionado às diversas interações
estabelecidas entre foliões e assistência ao largo do palco. Alguns grupos
se dispersam ao redor da praça e costumam executar suas toadas “poético-
-musicais” espontaneamente ou a pedido de um devoto que deseja oferecer
um donativo ao grupo. Dá-se então uma ação ritual altamente codiicada,
muito semelhante à que se veriica quando uma folia visita uma casa. O
ofertante recebe a bandeira das mãos do bandeireiro, mantendo-a consigo
durante a cantoria, primeiramente de joelhos e posteriormente de pé. O
mestre declama versos de acordo com a situação, em tom solene, aben-
çoando o ofertante e sua família por intermédio da agência dos Santos

Figura 4. Palhaços posando para a fotografia. Ribeirão Preto (SP). Foto: Daniel Bitter.
Cultura popular em trânsito | 185

Reis Magos. O bandeireiro recolhe o donativo e, logo em seguida, versos


de agradecimento são cantados pelo grupo, sempre com acompanhamento
instrumental. É também nesse momento que devotos ixam fotograias e
bilhetes com pedidos direcionados aos Magos na bandeira, dentro do qua-
dro interativo das trocas de dons, das promessas e dos sacrifícios.
Enquanto os foliões encontram-se em intensa interação com devotos
na periferia do palco, envolvidos pela solenidade da música e dos versos,
um integrante do grupo oferece ao público CDs, com preços variando en-
tre R$ 10,00 e R$ 15,00. A grande maioria dos grupos dispõe de CDs para
comercializar. Soube que uma das folias presentes no evento, o Terno de
Reis de Taquaras-SC, vendeu em um ano aproximadamente 10 mil unida-
des de seus três CDs, gravados em 2006, 2007 e 2009. O grupo já tem um
DVD e se prepara para gravar seu quarto disco. Simultaneamente às práti-
cas rituais de foliões e devotos, e ao comércio de CDs, observam-se os pa-
lhaços espalharem-se ao redor da praça e executarem também suas perfor-
mances acrobáticas, exibindo suas requintadas máscaras e indumentárias.
Estes costumam posar para os inúmeros fotógrafos e câmeras de plantão,
às vezes em troca de moedas. Aqui, certa dimensão da individualidade cria-
tiva ganha relevo. Muitos palhaços assumem que são artistas acrobáticos e
poetas populares, ou, ainda, artesãos de máscaras. Há um investimento de
trabalho considerável nessa prática, e veriica-se uma intensa circulação
de conhecimentos a esse respeito entre os palhaços. A preocupação com a
identiicação da autoria das máscaras e de sua originalidade e criativida-
de é fator lagrantemente importante nesse quadro. Todos esses aspectos
parecem ganhar uma dimensão ainda mais notável quando as máscaras se
deslocam para uma exposição numa galeria de arte.

Máscaras e bandeiras como objetos de arte?

Em novembro de 2011, inaugurou-se uma bela exposição intitulada Más-


caras na Galeria Cândido Portinari, na Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (Uerj), com curadoria de Ricardo Gomes Lima e Cáscia Fra-
de. Tematizando os palhaços de folias de reis, a mostra continha uma
diversidade de máscaras, algumas indumentárias completas, fotograias e
186 | Reflexões sobre arte e cultura material

vídeos. Estavam presentes trabalhos de 12 artistas populares que inte-


gram acervos de diversas instituições e coleções particulares, identiicados
nas etiquetas. Alguns dos artesãos das máscaras talvez não imaginassem
que suas artesanias teriam esse destino, como é o caso de Manoel Gama
(Mané Gato) de Miracema, um antigo e conhecido palhaço que adquiriu
fama e reputação de exímio versador entre foliões de reis do estado do Rio
de Janeiro. Manoel Batista (Gato Preto), seu ilho, icou surpreso ao ver
uma máscara de seu pai, que não encontrava havia muito tempo, na ex-
posição onde se encontravam muitas de suas próprias máscaras. As novas
gerações de palhaços têm cada vez mais incorporado a artesania à rotina
das atividades desse personagem, ocupando um lugar importante também
no modo como esses “indivíduos” concebem seus selfs.
Em um dos cantos da sala foi montado um altar cuidadosamente
ornamentado com inúmeras imagens de santos, lâmpadas coloridas, itas
de seda, sobre o qual foi depositada uma bandeira que identiiquei como
tendo sido fabricada pelo mestre de folia Augusto Prucolli. No chão, ha-
via um pequeno e sugestivo pote de barro contendo dinheiro. A bandeira
pertence atualmente ao Museu de Folclore Edison Carneiro, instituição
ligada ao Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular/Iphan. A tra-
jetória desse objeto é particularmente interessante para o argumento de-
senvolvido neste texto. Quando estive no Encontro Nacional de Folias de
Reis de Muqui, em 2006, registrei o uso da bandeira por um grupo local.
A bandeira esteve sob a guarda da Comissão Espírito-Santense de Fol-
clore e, tempos depois, foi doada ao Museu Edison Carneiro, conforme
icha documental do artefato. Gostaria de chamar a atenção para o fato de
que, nesse caso, a bandeira sai de seu contexto festivo, usual, para uma ins-
tituição de proteção da cultura popular, ingressa numa coleção etnográica
e é temporariamente reinserida num contexto híbrido de exposição e ri-
tualização. Esclareço. O altar e a bandeira apresentados na exposição não
estavam ali apenas para serem exibidos ou para representarem um univer-
so cultural especíico. A vasilha de cerâmica com dinheiro repousando no
chão parece denunciar isso, incitando o público a ingressar numa relação
de troca com o santo, de modo a oferecer seu donativo à bandeira.
A inauguração da exposição foi marcada pela presença da Folia
Sagrada Família da Mangueira, acompanhada de palhaços de diversos
Cultura popular em trânsito | 187

outros grupos. A folia adentrou a galeria em direção ao altar, diante do


qual executou sua performance poético-musical. Naquele momento, a
galeria transigurou-se na “casa”.30 A intenção dos curadores parecia es-
tar em dissolver, ao menos momentaneamente, as fronteiras entre arte,
ritual e representação cultural.
Após a louvação da bandeira, os foliões voltaram a se reunir do lado
de fora, onde se realizou uma longa performance lúdica com os palha-
ços. Música, movimentos, dança, versos, comicidade e público se integram
num evento sinestésico de grande intensidade. Nessa direção, as palavras
de Valeri parecem ressonantes:

Com efeito, o que faz passar uma ação da esfera do rito à da arte ou do
jogo, e vice-versa, não são tanto as suas propriedades intrínsecas como
os efeitos variáveis que elas possuem em contextos diversos e sobre
espectadores diversos”.31

No interior da galeria, máscaras e outros artefatos sob iluminação di-


recional são cuidadosamente exibidos contra paredes negras, investindo-
-os de certo mistério. A ênfase nos aspectos formais é clara e coerente
com o título da exposição. Tais arranjos e técnicas de exibição envolvidos
na apresentação dos objetos reletem práticas institucionais poderosas que
mobilizam sistemas arbitrários de valor e signiicado, como já sugeriu Ja-
mes Cliford.32 Diversos autores já chamaram a atenção para o fato de
que, quando artefatos destinam-se a um museu ou exposição, há, de certo
modo, um esforço em apagar os detalhes de sua carreira até aquele pon-
to. Que tipo de sistema de valor orienta essa exposição? O que se deseja
despertar na percepção de um visitante? Interesse pelo conhecimento et-
nográico ou histórico, sensibilidade estética ou algum tipo de ressonância
mágico-religiosa? Minha sugestão é que os curadores parecem ter o pro-
pósito de ampliar os sentidos desses artefatos, ainda que o padrão exposi-
tivo adotado privilegie a dimensão estética.
Penso que a essa altura é possível formular de forma mais precisa a
ideia de que a oposição ritual/estético é uma daquelas conhecidas dicoto-
mias que, em grande medida, dominam a teoria social. Em vez de tornarem
mais claros e compreensíveis os contextos sociais e culturais, acabam por
188 | Reflexões sobre arte e cultura material

Figura 5. Bandeira e altar. Foto: Daniel Bitter.

reduzir as diversidades humanas.33 Neste sentido, talvez a noção de “fato


social total” proposta por Marcel Mauss seja interessante para caracterizar
todos os fenômenos em que os objetos estão inseridos e que, a partir des-
te fato, ganham sentido. Neles converge uma diversidade de instituições,
esferas e domínios inseparáveis: econômicos, estéticos, morais, religiosos,
corporais etc. Outro aspecto para o qual procuro dar atenção é a nature-
za processual da vida social dos objetos, o que me permite, parafraseando
Appadurai, escrever que um objeto de arte não é um tipo de coisa, em vez
de outro tipo, mas uma fase na vida de algumas coisas.34
Como bem sugeriu Kopytof: “Uma biograia rica de uma coisa é a
história de suas várias singularizações, das classiicações e reclassiicações
num mundo incerto de categorias cuja importância se desloca com qual-
quer mudança do contexto”.35
Cultura popular em trânsito | 189

Notas
1
Mauss, 2003.
2
Handler, 1985.
3
Valeri, 1994.
4
Kopytof, 2008.
5
Appadurai, 2008.
6
As jornadas são fases liminares, vistas em relação às ações cotidianas. Foliões consideram
que inúmeros perigos ameaçam a integridade do grupo e comprometem o êxito de sua
missão (Pereira, 2011).
7
Turner, 1974.
8
Mauss, 2003.
9
Mauss, 2003; Gell, 1998; Bitter, 2010.
10
Latour, 2007.
11
Godelier, 2001, p. 206.
12
A festa de arremate é celebrada ao im do ciclo de visitações, conigurando-se numa
ostentosa cerimônia para a qual são convidados todos aqueles que contribuíram com as
jornadas.
13
Pomian, 1997, p. 66.
14
O contraste entre os sentidos do dinheiro ofertado à bandeira e ao palhaço é, de fato,
muito lagrante. Enquanto o primeiro é incontornavelmente destinado a uma redistribui-
ção, regida por uma economia e uma moral do dom, o segundo pode, muitas vezes, seguir
o curso de uma acumulação possessiva e individual.
15
Weiner, 1992.
16
Douglas, 1976.
17
Sabe-se que objetos sagrados, como imagens de santos católicos, coroas, relíquias etc.,
são muitas vezes cobiçados, vendidos, trocados e mesmo roubados. Contudo, essas ativi-
dades existem em função da própria inalienabilidade dos objetos (Pomian, 1997, p. 66).
Isso aponta precisamente para as ambiguidades dos objetos e para os múltiplos enquadra-
mentos com base nos quais são classiicados e reclassiicados.
18
Gonçalves, 2007, p. 27.
19
Kopytof, 2008.
20
Distanciando-me das concepções de senso comum sobre a noção de “folclore”, frequen-
temente apropriada de forma pejorativa e simpliicada, reiro-me aqui a uma categoria de
pensamento amplamente mobilizada tanto por intelectuais envolvidos com o chamado
campo de “estudos do folclore” e da cultura popular no Brasil quanto por foliões de reis.
Chamo aqui a atenção para a notável articulação dos folcloristas em torno do desenvol-
vimento de políticas públicas para a valorização e a proteção das culturas populares no
Brasil, desde pelo menos os anos 1930, com Mário de Andrade. Os festivais folclóricos
aqui analisados são desdobramentos do prestigioso Movimento Folclórico (1947-64) e
190 | Reflexões sobre arte e cultura material

do trabalho das comissões de folclore, algumas delas atuantes nos dias de hoje. Ver, a esse
respeito, Vilhena (1997) e Cavalcanti (2005), entre outros.
21
Vilhena, 1997.
22
Bauman e Sawin, 1991, p. 289.
23
Myers, 1994.
24
Bauman e Sawin, 1991, p. 290.
25
Ibid.
26
Noto que as regras de manipulação da bandeira, tais como o impedimento dos foliões
de avançar à sua frente, podem ser momentaneamente suspensas nesses contextos.
27
Kirshenblatt-Gimblett, 1998.
28
Ibid., p. 64.
29
Bauman e Sawin, 1991, p. 289.
30
Na cosmologia de foliões e devotos, a casa é concebida como o lugar original onde teria
ocorrido a visita dos Magos ao menino-Deus. Ao mesmo tempo, é um espaço básico onde
se estabelecem e se hierarquizam relações fundamentais entre parentes, vizinhos e amigos.
Daí ser a casa um importante foco dos rituais das folias de reis.
31
Valeri, 1994, p. 356.
32
Cliford, 1994.
33
Appadurai, 2008.
34
Ibid., p. 32.
35
Kopytof, 2008, p. 121.

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TURNER, Victor. Processo ritual. Petrópolis: Vozes, 1974

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VILHENA, Luís Rodolfo. Projeto e missão: o movimento folclórico brasileiro (1947-


1964). Rio de Janeiro: Funarte/FGV, 1997.

WEINER, Annette. Inalianable Possessions: the Paradox of Keeping While Giving.


Berkeley: University of California Press, 1992.
A produção de si na fabricação
de objetos materiais

Carla Dias (EBA/UFRJ)

Apresentando

Cor, dimensão, forma, textura, brilho, profundidade, peso… Objetos são


bons para tocar, agir, olhar. Sua materialidade nos provoca os sentidos, o
pensamento. O que é o objeto, o que nos faz pensar, o que nos faz ver ou
apreender do outro, daquele que o produz, o usa, o transforma?
Temos observado o crescente interesse nos estudos que tratam da pre-
sença dos objetos materiais na vida social – diferentemente dos estudos
de cultura material, que marcaram um momento da antropologia em que
esses objetos eram pensados como marcadores de distâncias e proximida-
des, intermediadores de uma narrativa, de uma trajetória que se pretendia
universal.1
O objetivo deste texto é apresentar alguns apontamentos de uma
pesquisa que buscou investigar a relação dos objetos materiais em suas
dimensões sociais de produção e apropriação, percebendo processos téc-
nicos que envolvem a manipulação da matéria (físico-química) como
processos sociais, produtos de uma dinâmica de interações construídas,
também, por eles.
Meu interesse situa-se nesse lugar de contato, onde é possível pensar
no processo pelo qual as pessoas se constroem junto aos objetos que mani-
pulam através da materialidade da forma, da transformação da matéria, da
elaboração de sentidos e da vivência e construção da rede de signiicados
compartilhados, onde o mundo se organiza para dentro e para fora. Isso
signiica pensar também na relação dialógica engendrada com as institui-
ções municipal, estadual e federal e as políticas de construção do “patri-
mônio cultural”.
193
194 | Reflexões sobre arte e cultura material

Especiicidades que envolvem situações particulares revelam aspectos


importantes, que fundam a permanência não só do objeto, mas a perma-
nência social dos fazeres. As formas como os grupos vêm incorporando
novos signiicados às suas práticas, à sua organização e, consequentemente,
aos objetos que passam a simbolizar seu pertencimento e sua articulação
com os demais segmentos da sociedade – e também a possibilidade de
acesso a outros bens – são um campo privilegiado para a compreensão da
dinâmica social engendrada pelo fazer. A relação com os objetos é pensada
como fator de formação ou fabricação,2 isto é, como um processo em que se
tenta perceber as pessoas se fazendo com os objetos, com a matéria plástica,
com o fazer.

Um caso

Em 2002, as mulheres de Goiabeiras, as Paneleiras, tiveram seu fazer re-


gistrado na primeira página do Livro dos Saberes, dedicado ao patrimônio
cultural de natureza imaterial do Iphan.3 Inaugurou-se, com o registro
deste fazer, uma escrita que modiicou o modo de olhar as coisas feitas,
fabricadas nos escondidos quintais ou terreiros, dos objetos reconhecidos
como tradicionais.
As Paneleiras são as mulheres que fabricam as panelas de barro pretas
do mesmo modo e no mesmo lugar que suas mães e avós faziam.4 Goiabeiras
Velha – conjunto de ruas margeadas pelo manguezal, em Vitória (ES) – é
o lugar ocupado por elas como território e, portanto, o lugar onde o fazer
foi situado. São Paneleiras, e assim se reconhecem e se diferenciam de
outras pessoas ou grupos que também trabalham com barro ou também
fazem panelas. Invocam a legitimidade do fazer também pela referência
ao território que ocupam. As Paneleiras legítimas são as de Goiabeiras
Velha. Este lugar, social e político, começou a ser construído no inal dos
anos 1980, a partir de uma política de governo que propiciou a organiza-
ção da categoria pela via do trabalho, primeiramente. Ser Paneleira passou
a signiicar ocupar determinado lugar na sociedade, lugar que não existia
a priori e que foi construído pelos sujeitos que o ocupam. O fazer ganhou
novos modos, novas formas, e novos sentidos foram incorporados e são
constantemente modiicados.
A produção de si | 195

Figura 1. Antigo galpão das Paneleiras, 2007. Foto da autora.

Antes…

As mulheres contam que antigamente o transporte era feito de canoa pelos


canais do manguezal, que chegavam quase na porta de seus quintais. Alcan-
çavam o barreiro, lugar da jazida de argila, matéria-prima da confecção das
panelas, e também o mercado da Vila Rubim, localizado no centro da ci-
dade, onde eram vendidas as panelas. Situada na região norte da cidade (no
continente, ao norte da ilha), Goiabeiras Velha foi pouco a pouco se modi-
icando no processo de urbanização empreendido, principalmente quando o
aeroporto foi construído nas proximidades. O manguezal, apesar dos aterros
constantes realizados para abrigar a crescente população, ainda hoje desenha
a geograia desse fazer.
Fazer panela era uma atividade que as mulheres realizavam nas horas
vagas, entre uma e outra tarefa doméstica, nos quintais de suas casas. A
ampliação do aeroporto e da BR-101 gerou uma intensiicação do luxo tu-
rístico também na região de Goiabeiras Velha. A moqueca capixaba feita na
196 | Reflexões sobre arte e cultura material

panela de barro é um dos principais produtos do mercado turístico. O cres-


cente número de restaurantes que oferecem a iguaria inluenciou o modo de
produção das panelas em consequência do aumento da demanda. Algumas
mulheres de Goiabeiras, herdeiras genealogicamente desse saber, passaram
a se ocupar de fazer panela como atividade produtiva. Além de fazer, passa-
ram a comprar a pequena produção de outras para revender, criando pontos
de comercialização próprios. Com a construção das vias de acesso ao bairro,
os turistas, interessados em conhecer o artesanato local, puderam ter acesso
ao lugar de produção para comprar e acompanhar todo o processo.
Em 1987 um pequeno grupo, contando com o apoio de uma vereadora
na elaboração do estatuto, fundou a Associação das Paneleiras de Goiabei-
ras (APG), entidade constituída para lutar pelas condições objetivas de per-
manência e desenvolvimento do ofício. Naquele momento, a preservação do
barreiro, e consequente acesso à matéria-prima, era uma questão premente,
pois, com o crescimento da malha urbana, o Vale do Mulembá (onde está o
barreiro) foi escolhido para a instalação de um aterro sanitário. Melchiadia,
primeira presidente da Associação e, entre as mulheres, principal produto-
ra, incluiu como ponto importante para o desenvolvimento da atividade a
construção de um espaço coletivo, sede da Associação, o galpão, destinado a
abrigar as atividades de produção e venda das Paneleiras.
Com o apoio da Secretaria Municipal de Trabalho, as mulheres fo-
ram conquistando um espaço político intra e extragrupo. O galpão foi
sendo ocupado pouco a pouco e a cada ano o número de Paneleiras traba-
lhando no espaço foi se ampliando. A luta pelo acesso à matéria-prima,
objetivo de todas, contribuiu para a consolidação da Associação, através da
coniguração de uma identidade socioproissional de Paneleira. A matéria-
-prima garante a manutenção do trabalho e, pela via do trabalho, elas se
tornam agentes, produtoras de um bem cultural, de natureza material. As
panelas, os objetos, a materialidade passam a ser fabricados. Sua existência
no mundo das formas é consequência de uma ação sobre a matéria. No
processo de construção dessa identidade de grupo foi criado o Dia da Pa-
neleira e, para festejá-lo, um evento anual, a Festa das Paneleiras. O even-
to, que se realiza todos os anos desde 1992, deu visibilidade às mulheres,
ainda pouco valorizadas no contexto cultural regional.5
Durante os anos 1990 as Paneleiras consolidaram a entidade através
de enfrentamentos e alianças com a Prefeitura Municipal de Vitória e o
A produção de si | 197

Governo do Estado pela garantia do acesso à matéria-prima. As mulheres


conquistaram um lugar político que as posicionou no campo de disputas
institucionais, envolvendo uma nova categoria de agenciamento no con-
texto regional, a cultura e o patrimônio cultural.6 Com o Decreto nº 3.551,
de agosto de 2000, que instituiu o registro de Bens Culturais de Natureza
Imaterial, a sub-regional do Iphan no Espírito Santo, em parceria com
a Associação das Paneleiras, preparou a candidatura e encaminhou uma
solicitação formal ao Ministro da Cultura requisitando o registro do fa-
zer como Patrimônio Nacional.7 Assim, em 2002, o parecer apresentado
na reunião do Conselho Consultivo do Iphan foi favorável à inscrição do
saber-fazer panela de barro das Paneleiras de Goiabeiras no Livro dos Sabe-
res do Iphan.

Figura 2. Carta entregue por Berenícia.


No canto superior esquerdo pode se
observar a primeira marca, que era usada
também como selo de autenticidade.

Temos aí as principais características que se poderiam esperar de saberes


práticos tradicionais com qualidades de um patrimônio nacional. Por
um lado, os traços básicos da tradição: longo enraizamento nas práticas
das populações locais, dependência e interação com os ecossistemas lo-
cais, forma de reprodução não letrada ou não erudita, reconhecimento
coletivo como tradição.8
198 | Reflexões sobre arte e cultura material

A discussão em torno da ideia de tradição permeia os estudos da


cultura material, sobretudo dos fazeres artesanais. Ela ixa sua atenção em
um aspecto da cultura, os valores tradicionais, cujo resgate e conservação
considera fundamentais frente à aceleração crescente da industrializa-
ção e ao desenvolvimento dos meios de comunicação. Assim, o artesa-
nato, produto do artesão, vem acompanhado pelo termo tradicional, em
contraponto ao moderno, marcando a existência de tempos distintos. O
progresso mecânico impõe o domínio de técnicas e materiais falsiicados,
substituindo a arte do artesão, que passa a ser ponto de exclusão do movi-
mento moderno no âmbito dos universos artísticos. A permanência é um
dos aspectos fundamentais da qualiicação do que se costuma designar
artesanato tradicional, mas a permanência pode estar ixada em um aspecto
pouco perceptível, mesmo no que diz respeito à materialidade no objeto.

Figuras 3a e 3b. Selo de autenticidade criado pela Associação e a Prefeitura de Vitória


para diferenciar a autêntica panela (das Paneleiras) das demais. Foto da autora.

Depois…

Considerações relativas à produção e ao consumo de um objeto são fun-


damentais para que se possa compreender as relações que fundam sua
permanência no cotidiano de um grupo social. Portanto, acompanhar o
processo de fabricação engendrado por meio do valor simbólico adquirido,
em diferentes esferas legitimadoras, nos possibilita compreender a cons-
trução de sentidos que a materialidade produz.
A produção de si | 199

O fazer já era conhecido e divulgado pelos folcloristas locais, como


Renato José Costa Pacheco, em 1953, que apresentou no II Congresso
de Folclore um artigo tratando da “Cerâmica Popular em Vitória”. Neste,
o autor sugere que o processo das mulheres de Goiabeiras tem origem
africana, pois os tapuias aimorés que habitavam outrora a região desco-
nheciam a cerâmica. Também nega a possibilidade de herança portuguesa,
pois “a técnica é muito primitiva, sem esculturas nem prenúncio de arte”.
Guilherme Santos Neves, também folclorista, promoveu, “sob os auspícios
da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro”, um Curso de Folclore em
1966, incluindo a visita a Goiabeiras em sua programação. No relatório
inal do curso, ele também comenta a rusticidade da técnica.

“(…) um grupo de cursistas, acompanhados do prof. Hermógenes


Lima Fonseca, teve ensejo de conhecer e ver de perto em Goiabeiras,
arrabalde de Vitória, os processos de fabricação rústica e primária de
utensílios de barro.” 9

A fabricação rústica a que os autores se referem foi o objeto do re-


gistro de 2002, que, embora mantenha alguns procedimentos técnicos e
corporais, sofreu transformações signiicativas devido a diversos fatores,
como o aumento da demanda, o espaço de produção, a presença de aju-
dantes em diferentes etapas da produção, entre outros. Assim, a postura
corporal e social mudou, como também algumas formas. Nos últimos
anos temos observado o aparecimento de um desejo de diferenciação,
uma mudança em relação à produção das formas tradicionais como ex-
pressão da identidade do grupo. Ao repertório tradicional, constituído
por panela, frigideira, caldeirão e assadeira, outras formas passaram a ser
fabricadas com distinção.
As formas tradicionais compõem um sistema no qual cada forma ser-
ve a um alimento “típico”, sendo a moqueca o principal prato desse sistema
culinário. A moqueca capixaba é preparada e servida na panela, que, por
suas características (dadas pelo material), mantém o cozimento e a tem-
peratura quando à mesa.10 Algumas mudanças nas formas que atualmente
são produzidas podem ser atribuídas ao aumento da presença masculina no
grupo. O desemprego e a diiculdade de se colocar no mercado de trabalho
200 | Reflexões sobre arte e cultura material

levou muitos homens para o galpão. Todos possuem laços de parentesco


com as Paneleiras tradicionais; são ilhos, maridos, irmãos ou genros. Antes
se ocupando basicamente do apoio a determinadas etapas, como a coleta
do barro e a queima das panelas, os homens agora investem na produção
e criam novas formas. Além de um signiicativo aumento na dimensão
das formas tradicionais (igura 4a), introduzem elementos zoomorfos no
repertório formal (igura 4b).

Figuras 4a e 4b. Irmãos e filhos de Paneleiras que ingressaram no trabalho com


as panelas no galpão, em 2007. Foto da autora.

Como já dito, além das mudanças apontadas acima, pudemos ob-


servar um movimento de diferenciação entre as mulheres. Às formas
tradicionais foram acrescidos ornamentos com diferentes acabamentos.
Flores e outros temas modelados com a mesma matéria-prima, a argi-
la, e portanto colados antes da secagem e da queima, de maneira que o
acabamento é semelhante em todo o conjunto formado pela panela e
sua tampa (igura 5b). Diferentemente desses, foram observados alguns
ornamentos confeccionados a partir de formas modeladas em uma massa
com características totalmente distintas da argila das panelas, uma massa
tipo durepoxi. Elementos zoomorfos como peixes, caranguejos e cama-
rões, pintados com tinta plástica em cores vivas e brilhantes, são colados
depois que a panela está pronta e queimada (igura 5a). Um terceiro tipo
de acabamento observado foi o realizado também na superfície da tampa
já queimada, com tinta plástica, uma pintura em cores brilhantes, como
o verde e o vermelho (igura 6a). Cabe dizer que sempre se produziram
A produção de si | 201

Figuras 5a e 5b. Mudanças no acabamento. Galpão 2006 e 2007. Foto da autora.

peças com características formais distintas das formas tradicionais, aque-


las que identiicam o grupo das Paneleiras, como cofres, fogareiros, jarros,
cinzeiros e miniaturas diversas. Essas outras formas eram e ainda são pro-
duzidas, eventualmente, principalmente a partir de encomendas.
Essas novas panelas perdem sua função de cozimento, de preparo
do alimento. Transformam-se em potes, adornos, objetos decorativos. As
inovações formais agora são um modo de se diferenciar e abrir novos mer-
cados. Em processo inverso ao que propunha uma homogeneidade for-
mal, para que os objetos fossem representações da unidade do grupo, no
momento ocorre uma busca de distinção, uma competição por recursos.
Graburn airma que “como estranhos podemos não gostar de tais fenôme-
nos ou lamentar a perda da tradição. Mas isto também é tradição”.11

Figuras 6a e 6b. Panelas expostas no galpão, 2007. Foto da autora.


202 | Reflexões sobre arte e cultura material

Assim, inovações são permitidas desde que não se deixe de fazer as


formas tradicionais, aquelas que legitimam sua permanência, sua existência
coletiva. O consumo cultural atua de maneira a garantir a manutenção
dessas mesmas formas tradicionais. Como um atributo desejado, a perma-
nência fortalece a identidade do grupo e se manifesta na expressão mate-
rial. Ao mesmo tempo, ela é relativa, na medida em que forma e conteúdo,
embora pareçam os mesmos, estão estruturados em um sistema diverso.
Hoje percebe-se uma multiplicidade de relações entre os objetos
tradicionais e seus produtores, que diicilmente se encontram isolados e
restritos ao ambiente doméstico. Portanto, é fundamental considerá-los
objetos de consumo, pertencentes a um sistema de circulação e passíveis
de intervenções externas.
O trabalho de Paneleira é sinônimo de posição social, o que abran-
ge a produção de uma esfera política.12 Ocupam lugar de prestígio so-
cial conquistado e legitimado pelos títulos que conquistaram por meio
de parcerias e alianças políticas. Bourdieu,13 ao tratar da construção do
sistema das relações de produção e circulação dos bens simbólicos, con-
sidera fundamental identiicar o que denomina de propriedades de posição.
As propriedades de posição dizem respeito aos atributos que possui cer-
ta categoria de agentes, ou certo agente de produção ou difusão cultural
como resultado do lugar que ocupa na estrutura desse campo. A partir de
tal categoria, torna-se possível compreender o signiicado e a função que
as práticas e as obras adquirem devido à posição de seus produtores no
terreno das relações sociais de produção e circulação.

Figuras 7a e 7b. Espaços preparados e arrumados de forma diferenciada no


galpão em 2007. Foto da autora.
A produção de si | 203

E ainda depois…

O registro como patrimônio nacional as posicionou num lugar de disputas


simbólicas. Por um lado os patrimonialistas, acadêmicos e artistas desta-
cando a permanência das formas e dos modos de sua fabricação, por ou-
tro, os turistas e moradores locais demandando mudanças nas formas e
facilidades na sua produção, como podemos ver neste trecho retirado de
um sítio de turismo. O autor, ao sugerir algumas formas, solicita, ainda, a
intervenção do Sebrae.

Só acho que uma pequena diversiicação nos produtos oferecidos pe-


las Paneleiras cairia bem. Faltam opções de pequenos souvenirs ins-
pirados nas panelas de barro para o turista levar de lembrança. Algo
como os tradicionais ímãs de geladeira ou, mesmo, aqueles kits que se
encontram no aeroporto de panelas recheadas de bombons Garoto
para dar de presente. Um esforço de capacitação das Paneleiras nesse
sentido viria muito a calhar (alô, Sebrae!).14

Graburn15 considera o turismo e as viagens substitutos do colonia-


lismo como principal fonte de contato intercultural. Como sucede com
outros objetos de artesanato, as panelas foram apropriadas como parte
de uma constelação de símbolos de identidade nacional, o que, para este
autor, traduz um processo de apropriação da identidade dos povos mino-
ritários pelos dominantes. O artesanato das panelas de barro é um meio
de vida para muitas famílias, pertence à economia informal e se integra
ao complexo econômico do Estado por meio do turismo. É a principal
atividade proissional da maioria desses núcleos familiares. A panela deu
acesso a bens de consumo que antes não existiam em suas vidas cotidianas.
Esta é uma das possibilidades ou funções dos artesanatos em contextos
sociais de mudança: a preservação das formas e o aumento na produção e
venda para o mercado teriam por objetivo a aquisição de bens materiais e
a permanência no território. Graburn16 airma que os objetos expressam a
identidade de quem os produz, carregam a mensagem, mesmo estereotipa-
da, de uma forma de existência. Para o autor, por meio dos objetos pode-se
dizer: “Nós existimos, nós somos diferentes, nós podemos fazer algo de que
nos orgulhamos, nós temos algo que é unicamente nosso.”
204 | Reflexões sobre arte e cultura material

James Cliford17 denomina sistema de arte-cultura o processo pelo


qual o Ocidente contextualizou e valorou os objetos dos outros. Para
o autor é fundamental compreender a maneira como os grupos sociais
que inventaram a antropologia e a arte moderna apropriam-se das coisas
exóticas, dos fatos e dos signiicados. Cliford reairma o poder dos sis-
temas dos objetos e ressalta a mutabilidade desse sistema de valoração e
classiicação.
Diferentemente do relatado em 1979 quando se dizia que das cem
paneleiras que existiam em 1953, restavam cerca de dez, pois as ilhas não
queriam aprender para não sujar as unhas,18 temos observado um número
crescente de Paneleiras, mulheres e homens, e a presença constante das
novas gerações. O galpão partilhado e dividido em territórios familiares
se amplia como campo de disputas. O número crescente de Paneleiras
provoca um acirramento dos conlitos. Algumas mulheres estão voltan-
do a trabalhar em casa, em pequenos espaços arranjados, para escapar
da competição do galpão, mas mantêm o espaço conquistado no galpão
como local de comercialização e espaço político, disputado por diferentes
esferas públicas pela visibilidade alcançada.19
O registro como Patrimônio Cultural de Natureza Imaterial prevê a
Revalidação do Título de Patrimônio Cultural do Brasil a partir de uma
avaliação realizada a cada dez anos, a contar da data de registro do bem.
Portanto, faz parte do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial a ela-
boração do Plano de Salvaguarda. O referente ao Ofício das Paneleiras de
Goiabeiras foi realizado com intuito de garantir a preservação dos “utensí-
lios de barro que constituem o maior símbolo da cultura popular do Espí-
rito Santo”.20 O Plano de Salvaguarda envolve o apoio a ações e iniciativas
das Paneleiras no que diz respeito à forma de organização do grupo, à ga-
rantia da matéria-prima, enim, à manutenção do fazer registrado consi-
derando diversos aspectos do processo.21 As questões apontadas no Plano
foram identiicadas junto à Associação através de algumas tentativas de
discussão e aprofundamento com o grupo.22 A relação com o Iphan e com
as demais instâncias políticas governamentais foi marcada por tensões que,
de certo modo, contribuíram para que o grupo reforçasse sua autonomia e
independência em relação aos mesmos. Isso representou, inclusive, a pro-
dução de novas formas, novos objetos, que são produzidos para pronunciar
um discurso possível de existência.
A produção de si | 205

Portanto, perceber o objeto integrado em seu contexto signiica per-


ceber a sistemática das condutas e das relações humanas que resultam das
relações dos homens com os objetos que constroem e que compartilham
em sua experiência histórica. Relações que constroem redes de signiicação
nas quais a função dos objetos é determinada pelo seu pertencimento em
um conjunto, em um sistema, não existindo em si. Sistemas de relações
produzem signiicados.23 Esses objetos são essencialmente localizados, seu
sentido continua sendo coletivo e o modo de fazer, a arte do fazer, é a
expressão de sua permanência, ou não. Portanto, no estudo dos objetos é
fundamental que se pense em quem faz; o que implica em pensar em como
se faz; ou para quem se faz; ou mesmo para que se faz; onde se faz; quando
e por que se faz; e, principalmente, como essas questões se modiicam no
tempo. Os bens devem ser envolvidos em trocas, que são produtoras das
relações sociais. Conhecer o contexto, o ambiente, o espaço, o território
ocupado também pelo objeto, possibilita conhecer o contexto sociocultural
no qual a fabricação se dá para entender o lugar da experiência estética.

Figura 8. Galpão 2007: espaço de Rejeane, filha de Marinete, sobrinha de Berenícia.


Sua imagem foi usada para confecção de material de divulgação e como selo de
autenticidade.
206 | Reflexões sobre arte e cultura material

As pessoas, os grupos, operam mudanças nas suas relações, permitin-


do aos objetos materialmente constituídos, articulados nas várias dimen-
sões que envolvem seu fazer, serem perpassados pela morfologia social
desenhada nas formas. Ao reconhecermos a genealogia das formas, suas
transformações estéticas e as práticas e narrativas a elas associadas, pode-
mos investigar e registrar seu luxo: os que estão em retração, quais estão
em expansão e aqueles estabelecidos, datando e percebendo como esses
elementos da cultura material estão sendo apropriados na construção de
uma identidade coletiva.
Os objetos materiais carregam uma mensagem: sua fabricação, em
certo espaço, produz uma forma de existência. Os objetos participam
de relações e, ao estarem relacionados, têm a capacidade de agir sobre
o mundo. A vida social é permeada por objetos materiais que circulam
produzindo, em muitos contextos, identidades. A panela de barro preta é a
representação material de processos sociais empreendidos pelas Panelei-
ras de Goiabeiras por meio de seu fazer, de seu trabalho: elas produzem
assim sua forma de estar no mundo, identiicando-se e diferenciando-se
de outros grupos. As panelas são representações a um tempo concretas e
simbólicas da identidade desse grupo. É por meio dos objetos que pro-
duzem e de sua ação sobre a matéria que as mulheres produzem a sua
identidade de Paneleiras, produção que se legitima na tradição por elas
conquistada.24 Para Canclini25 as coleções especializadas em arte erudita
e folclore são um dispositivo para organizar os bens simbólicos ao hie-
rarquizar, classiicar e delimitar a ordem e a forma do sistema ao qual
estão vinculados. Os patrimônios registrados começam a constituir uma
coleção. As Paneleiras, ao inaugurarem o Livro dos Saberes, pouco imagi-
navam o que representaria essa inscrição, mas conheciam seu poder de
representar. O mundo se transformou por meio do trabalho, em que o
corpo físico que manipula a matéria é representação do corpo social. Os
objetos – as panelas – expressam a identidade de quem os produz, carre-
gam mensagens, falam sobre uma forma de existência. Assim, no proces-
so de fabricação das panelas pode ser visto como as mulheres fabricam
seu lugar no mundo.
A produção de si | 207

Notas
1
Ligia Dabul (2000) chama a atenção para os trabalhos de antropologia da arte que uti-
lizam como eixo os objetos materiais, considerando-os como realidades ixas e acabadas:
“Talvez não seja exagero airmar que boa parte das perguntas seja dirigida aos objetos:
o que signiicam? O que simbolizam? O que representam? Por que e por quem foram
produzidos? Em que contexto são utilizados?”.
2
Dias, 2006.
3
Em 4 de agosto de 2000, o Decreto nº 3.551 deine um programa voltado especialmente
para os Bens Culturais de Natureza Imaterial. O decreto institui o registro e, com ele, o
compromisso do Estado em inventariar, documentar, produzir conhecimento e apoiar a
dinâmica dessas práticas socioculturais. O registro é, antes de tudo, uma forma de reco-
nhecimento e busca a valorização desses bens, sendo visto mesmo como um instrumento
legal. Registram-se Saberes e Celebrações, Rituais e Formas de expressão e os espaços
onde essas práticas se desenvolvem (Iphan, 2006, p. 22).
4
Dias, 2006.
5
A Festa das Paneleiras foi uma iniciativa da Secretaria de Ação Social e da Secretaria de
Cultura do Município que tinha como objetivo fortalecer a entidade e promover a panela
como um bem cultural da cidade. O evento oferece shows musicais com artistas nacionais
e capixabas, apresentações de bandas de congo, barracas com comidas típicas e venda de
panelas de barro. Além disso, as pessoas podem conhecer a rotina e as etapas de produção
dos utensílios. Atualmente a festa ocorre por meio de uma parceria entre a Secretaria
Municipal de Cultura (SEMC) e a Associação das Paneleiras de Goiabeiras (APG).
6
Em 1999 minha dissertação de mestrado foi defendida e inscrita no concurso Silvio
Romero de Monograias sobre Cultura Popular, onde recebeu uma Menção Honrosa. A
pesquisadora Guacira Waldeck, do CNFCP encaminhou uma cópia desse trabalho para
a Superintendência do Iphan do Espírito Santo.
7
Berenícia conta que foi sugerido que ela, como presidente da APG na época (e atual),
preparasse um documento para entregar ao ministro da Cultura, Francisco Wefort, quan-
do este fosse visitá-las. Foi preparada uma recepção no galpão para receber o ministro e
sua equipe, com a presença de representantes da 21ª Regional do Iphan (ES), quando o
documento foi entregue. O ministro prometeu às mulheres se empenhar para que o Ofício
das Paneleiras fosse inscrito no Livro dos Saberes.
8
Iphan, 2006. O parecer do processo de registro de Patrimônio Imaterial das Paneleiras
de Goiabeiras foi realizado por Luiz Fernando Dias Duarte.
9
Neves, 1966.
10
Cada argila possui composição e características diferentes que possibilitam o emprego
de técnicas distintas, tanto de confecção quanto de queima.
11
Graburn, 1976.
12
O Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) deferiu, em 26/07/2011, a
Indicação Geográica (IG) para a Associação das Paneleiras de Goiabeiras (APG). O
reconhecimento é na categoria Indicação de Procedência (IP). A certiicação protege
208 | Reflexões sobre arte e cultura material

os produtos de eventuais falsiicações, garantindo sua procedência e aumentando sua


competitividade. Ver http://g1.globo.com/espirito-santo/noticia/2011/07/paneleiras-de-
-vitoriarecebem-2-indicacao-geograica-para-artesanato.html.
13
Bourdieu, 1974.
14
http://www.rotascapixabas.com/2012/09/09/o-novo-galpao-das-paneleiras-de-goiabeiras/.
15
Graburn, 1976.
16
Ibid.
17
Cliford, 1999.
18
Pacheco, 1979.
19
“Para manter viva a tradição da cultura capixaba, as Paneleiras de Goiabeiras receberam
um novo galpão em novembro de 2011, construído pela Prefeitura Municipal de Vitória
com repasse de verba federal do Ministério do Turismo. O galpão tem 32 cabines, todas
com bancada, armário e prateleiras individuais. O espaço é arejado e bem-iluminado
naturalmente. No segundo piso, existe uma lanchonete e uma área que permite aos visi-
tantes visualizarem todo o trabalho nas cabines e ainda proporciona uma visão incrível
para o mangue.” http://www.vitoria.es.gov.br/turismo.php?pagina=galpaodaspaneleiras.
20
Iphan, 2006.
21
Foram recomendações do Plano de Salvaguarda as seguintes ações: 1. Facilitar o acesso
e promover a preservação das fontes de matérias-primas, privilegiando o manguezal, fonte
do tanino, e o barreiro, no Vale do Mulembá; 2. Melhorar as condições de infraestrutura e
de organização das atividades de produção e comercialização realizadas diretamente pelos
ceramistas, na própria localidade de Goiabeiras Velha; 3. Promover o reconhecimento da
participação dos artesãos e de seus auxiliares, tanto na economia regional como na cons-
trução da identidade cultural brasileira, tendo em vista a busca de seus direitos previden-
ciários; 4. Melhorar o processo de trabalho, com a participação de um maior número de
auxiliares e a crescente especialização de tarefas; 5. Facilitar as condições de acesso à jazida
e de permissão para a extração do barro, com as implicações derivadas do cumprimento da
legislação ambiental e mineral; 6. Analisar o impacto da instalação e do projeto de amplia-
ção da Estação de Tratamento de Esgoto Sanitário no meio ambiente e a sua associação
à imagem da panela de barro; 7. Analisar a previsão do impacto da possível mudança do
local de extração do barro, dada a perspectiva do esgotamento da jazida, uma vez que o
Vale do Mulembá é a única fonte historicamente conhecida da matéria-prima; 8. Tratar o
processo de urbanização de Goiabeiras Velha e a permanência das famílias de paneleiras
no bairro; 9. Viabilizar a ampliação do galpão e a manutenção da área de queima; 10. Possi-
bilitar o acesso às políticas públicas de saúde e de aposentadoria, uma vez que as paneleiras
precisam se manter em atividade até idade muito avançada; 11. Promover a capacitação
e o fortalecimento da organização da categoria e tratar as questões relativas às relações
interpessoais, à liderança e à representatividade política, no âmbito da comunidade e da
Associação das Paneleiras – considera-se que a convivência entre as paneleiras, antes esta-
belecida nos territórios da família e da vizinhança, passou a ser também mediada pela hie-
rarquia formalizada no estatuto da Associação; 12. Avaliar o valor cultural agregado pelo
Registro e a airmação da identidade do produto; 13. Avaliar o valor cultural agregado pelo
Registro e a formação de preços dos produtos; 14. Considerar a importância da certiicação
A produção de si | 209

de origem do produto visando à sua proteção contra imitações; 15. Tratar os problemas
relativos à embalagem e ao transporte das panelas de barro.
22
O Iphan, através de sua regional, tentou interceder nas negociações estabelecidas com o
Governo do Estado para a implantação de uma usina de tratamento de esgoto na região
do barreiro. O assédio do governo foi intenso e as Paneleiras acabaram se afastando do
grupo do Iphan que tentava orientá-las sobre os riscos de ceder o terreno. O Governo do
Estado, na época, acenou com benfeitorias e bens de consumo, inclusive com a montagem
do Restaurante das Paneleiras.
23
Baudrillard, 1993.
24
A Associação de Paneleiras de Goiabeiras (APG) ganhou reconhecimento internacio-
nal. Agora, o grupo possui o certiicado 2010 Best Practices – Dubai International Award
for Best Practices to Improve the Living Environment (2010 Melhores Práticas – Prêmio
Internacional de Dubai para Melhores Práticas para Melhoria das Condições de Vida),
distribuído pelo Município de Dubai, dos Emirados Árabes Unidos, e a Organização das
Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (UN-HABITAT).
25
Canclini, 1997.

Referências bibliográficas

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cultural. Niterói: EdUFF, 2008.

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SILVER, H. Ethnoart. Annual Review of Anthropology, 1979.


Gerando formas: conceituações kaiowa sobre
a relação entre substâncias, forças e ações
no universo

Fábio Mura (UFPB)

Introdução

Atualmente entre os Kaiowa há uma grande variação de modos na pro-


dução e na organização dos elementos que compõem o universo. Existem,
porém, alguns objetos que esses indígenas constroem e usam seguindo pa-
drões bastante rígidos: estes são os chiru (certos bastões e cruzes de uso
ritual) e as ogapysy (“casa mãe das origens”). Assim, utilizando esses casos
como exemplo, o objetivo deste trabalho é explorar as modalidades in-
dígenas de conceituar a relação entre elementos, forças e ações, gerando
formas no cosmo. Para tal propósito, o artigo será organizado da maneira
descrita a seguir.
Um primeiro item destina-se a apresentar o processo histórico pelo
qual vêm passando os Kaiowa, bem como elementos de organização so-
cial. Com isso busca-se contextualizar fatos fundamentais para a elabo-
ração cultural de uma visão cósmica que pode ser deinida como pro-
priamente cosmo-histórica. A seguir, serão apresentados sinteticamente
os princípios e aspectos cosmológicos que redundam justamente dessas
elaborações culturais. Num terceiro item nos dedicaremos a descrever e
analisar como os Kaiowa conceituam os chiru e as ogapysy, e qual o lugar
destes nas relações cosmológicas. Finalmente, na conclusão do trabalho e
a partir das descrições e análises do material apresentado empreendere-
mos algumas relexões teóricas intentando promover uma superação – não
apenas conceitual mas também metodológica – da contraposição ontoló-
gica entre natureza e cultura, bem como dos binarismos dela decorrentes
(material/imaterial, físico/metaisico, concreto/abstrato etc.).
211
212 | Reflexões sobre arte e cultura material

Algumas informações históricas e de organização social


sobre os Kaiowa

Os Kaiowa conformam um povo indígena de fala guarani localizado no


cone sul do estado de Mato Grosso do Sul e no Paraguai Oriental. Histo-
ricamente são descendentes dos Itatim, cuja população foi em parte mis-
sionada pelos jesuítas no começo do século XVII.1
Esses indígenas viviam em grandes malocas, cada uma delas assentada
nas cabeceiras de rios e córregos, formando uma rede de residências rela-
cionadas entre si a partir de parentesco. Cada casa comunal podia abrigar
até uma centena de pessoas, organizadas em famílias extensas e em fogos
domésticos, ao redor dos quais as famílias conjugais desenvolviam as ativi-
dades culinárias. As atividades técnicas e econômicas, por sua vez, constitu-
íam-se principalmente da agricultura de coivara, subsidiada por coletas de
frutos e mel, bem como de caça e pesca, desenvolvidas em um raio de algu-
mas dezenas de quilômetros de distância dos assentamentos.2 Nas casas – e
nos pátios onde estas se erguiam – desenvolviam-se também as atividades
rituais, como as frequentes danças rituais (jeroky) e as periódicas cerimô-
nias de iniciação masculina (kunumi pepy) e de batismo do milho branco
e das plantas novas (avatikyry). A residência era portanto um importante
espaço de socialização e de administração das relações cosmológicas. As
parentelas eram organizadas principalmente nesses lugares, seguindo-se a
divisão social do trabalho segundo sexo e idade, mas também por meio de
hierarquias nas competências rituais. Havia, por outro lado, certa autono-
mia das famílias conjugais para organizar as atividades relacionadas ao fogo
doméstico e, inclusive, para a administração das roças, da coleta, da caça
e da pesca. Apenas em casos especíicos os mutirões (puchirõ) deiniam
colaborações mais amplas, voltadas à realização de tarefas que requeriam
muitos braços – como a derrubada do mato e certas atividades venatórias,
assim como nas cerimônias e no exercício da guerra.3
O impacto colonial provocou uma importante mudança na demo-
graia dos guarani em geral, devido às baixas ocorridas nos conlitos com
bandeirantes e com grupos indígena inimigos (como os Mbaya-Guaicuru),
bem como por efeito das doenças introduzidas pelos europeus.4 As con-
sequências mais signiicativas desse processo foram as transformações na
Gerando formas | 213

organização das atividades bélicas e no tamanho dos assentamentos locais,


com as malocas passando progressivamente a abrigar números menores de
famílias conjugais.5 Após a expulsão da ordem inaciana da América Latina,
em meados do século XVIII, e a consequente decadência e esvaziamen-
to das antigas reduções, parte dos indígenas foi integrada nas populações
rurais paraguaia e brasileira, enquanto outra signiicativa juntou-se àque-
la que permanecia relativamente autônoma nas densas matas da região,
dando continuidade a uma especíica tradição de conhecimento e formas
peculiares de organização social e territorial.6
Por aproximadamente um século esses últimos indígenas consegui-
ram manter certa autonomia de organização territorial. Com o im da
Guerra da Tríplice Aliança ou Guerra do Paraguai (1864-70) redeiniu-se
a fronteira entre Brasil e Paraguai e se desenvolveram empreendimentos
de extração da erva-mate em grande escala, algo que voltou a impactar
signiicativamente sobre a vida técnica e econômica dos Kaiowa.7 Os in-
dígenas passaram a realizar trabalhos periódicos nos ervais, redeinindo-se
a mobilidade pelo território e a própria organização doméstica. As famí-
lias extensas que antes viviam exclusivamente em grande malocas, passa-
ram paulatinamente a distribuir as famílias conjugais que as compunham
numa pluralidade de construções de vários portes, tornando-se, assim,
unidades domésticas agregadas.8 Este tipo de organização permitia maior
capilaridade na ocupação territorial de seus membros, além de maior di-
versiicação das atividades por eles desenvolvidas. Tem-se também uma
signiicativa e progressiva integração de materiais procedentes do contato,
principalmente tecidos e instrumentos metálicos. Dessa forma, as técnicas
de aquisição tenderam a aumentar de importância, tornando-se prepon-
derantes com relação àquelas de produção dos itens necessários para a
vida cotidiana, e tendo como um dos seus efeitos principais a geração de
uma multiplicidade de formas e uma grande variação de estilos dos con-
juntos de objetos que compõem a bagagem material dos grupos domés-
ticos kaiowa. Até mesmo as malocas – cujos materiais, técnicas e formas
de construção antes eram bastante padronizados – passam a ser constru-
ídas seguindo diferentes formas e dimensões. Com o passar das décadas,
as casas comunais que hospedavam famílias extensas se tornaram menos
numerosas, deixando de ser construídas na década de 1970. Por ocasião
214 | Reflexões sobre arte e cultura material

de grandes atividades rituais, que exigem a presença de espaços fechados


onde pôr o altar, em alternativa às oygusu, os índios decidiram construir
coberturas provisórias, realizadas ad hoc nos pátios (oka) das habitações
dos anitriões dos eventos.9
Por outro lado, os anos de 1970 também representam uma marca im-
portante na história dos Kaiowa, iniciando-se um processo de luta para re-
cuperar a posse das terras que lhes haviam sido subtraídas para a formação
de fazendas, processo este que teve início no Paraguai, mas que nas décadas
a seguir ganhou vulto, principalmente no lado brasileiro da fronteira.10 A
luta representou e representa ainda um momento importante para impul-
sionar as relexões indígenas sobre o contato interétnico, particularmente
em relação às violências sofridas (físicas e simbólicas), com destaque para
a atuação de missões protestantes, que chegaram a queimar instrumentos
rituais kaiowa com o intuito de afastá-los de um presumido envolvimento
com o demônio.11 No processo de luta no lado brasileiro, os Kaiowa, jun-
tamente com os Guarani-Ñandéva, passaram a se reunir periodicamente
em grandes assembleias (aty guasu), subsidiadas por grandes rituais (jeroky
guasu) voltados a acompanhar e a intervir no desenvolvimento do cosmo.12
No bojo desse processo, a partir de inal dos anos de 1980 as oygusu vol-
taram a ser construídas, dessa vez denominadas de ogapysy (“casa mãe das
origens”), sendo, porém, mudada sua função originária, deixando de ser a
residência do grupo doméstico para se tornar uma espécie de templo e de
símbolo da identidade étnica desses indígenas.13
Adentramos aqui no aspecto em que nos deteremos logo a seguir. É
importante, contudo, destacar antes que é a partir desses fatos históricos
que os índios constroem continuadamente uma complexa cosmologia, que
distribui competências e concepções de como gerenciar as experiências e as
percepções dos indivíduos, dando vida a um entendimento sobre como os
elementos circulam pelas diferentes dimensões do universo. São, com efeito,
fatos cosmo-históricos, que permitem também aos Kaiowa atribuir valor
a determinadas substâncias e formas, deinindo variabilidade e ixidez das
mesmas no tempo e no espaço. Sabemos, assim, que em sua grande maioria
os elementos com que os indígenas se deparam são bastante variáveis em sua
distribuição, forma e substância, podendo ser alterados, trocados e substituí-
dos com certa frequência. Há, contudo, alguns poucos desses elementos que
Gerando formas | 215

ganham destaque por sua ixidez. Entre estes levaremos em consideração


aqui os chiru (varas e cruzes construindo com uma madeira especíica) e as já
referidas ogapysy.14 A razão dessa escolha deve-se ao fato de que os motivos
da ixidez desses dois elementos remetem a diferentes critérios de percep-
ção de formas e substâncias. Em contraste com esses critérios pretendemos
mostrar as distintas modalidades de atuação dos índios em um contexto
onde o cotejamento interétnico é extremamente relevante na deinição das
categorias nativas. Mas antes de entrar na descrição das especiicidades de
cada um desses objetos é oportuno oferecer algumas informações sobre a
cosmologia dos Kaiowa, algo fundamental para compreender variações e
ixidez dos elementos no interior do universo.

Aspectos e princípios cosmológicos

Segundo os Kaiowa o cosmo é algo dinâmico, organizado a partir de três


etapas fundamentais na distribuição e hierarquização dos elementos que
o compõem.15 A primeira etapa, denominada de Áry Ypy (Tempo-Espaço
das Origens), era caracterizada pela não diferenciação na distribuição das
qualidades que distinguiam os seres primordiais: todos eram imortais,
possuíam a capacidade de falar e tinham poderes xamanísticos. Assim,
embora existissem hierarquias deinidas entre as divindades principais, o
restante dos seres apresentava-se como essencialmente indiferenciado. O
próprio universo nas origens possuía apenas uma dimensão, com os seres
podendo se comunicar e se relacionarem uns com os outros por meio de
seus sentidos, principalmente a visão e a audição. Nesses termos, os atos
de ver (hecha) e ouvir (hendu) representavam importantes ações que norte-
avam as experiências dos sujeitos, permitindo inclusive o desenvolvimento
das formas que aos poucos o cosmo ia adquirindo. A própria terra, nele
contida, foi criada por Ñane Ramõi (Nosso Grande Avô) e ampliada pro-
gressivamente por seu ilho, Ñande Ru (Nosso Grande Pai), por meio de
outro importante ato, o andar (guata), que produzia como efeito a forma-
ção de trilhas nas matas, deinindo assim os espaços experienciais.
Ver, ouvir e andar eram atos que no Áry Ypy ocorriam portanto numa
única dimensão perceptiva e a partir de uma substantiva simetria relacional
216 | Reflexões sobre arte e cultura material

entre os seres originários, cuja interação recíproca centrava-se no exercício


generalizado dos já referidos poderes xamanísticos. Também sentimentos
importantes como amor, paixão, ira e vingança eram características difusas
de todos os sujeitos, não excluídas as divindades máximas. Por im, outro
fator importante que caracterizava o Tempo-Espaço das Origens era a co-
municação existente entre as centenas de yváy (patamares) que compõem
o universo e que se projetam de forma espiralada e ascendente da superfície
da Terra até o mais elevado irmamento. Dessa forma, todos seres podiam
transitar por esses níveis.
Importantes fatos, porém, mudaram signiicativamente o Tempo-Es-
paço das Origens, tornando-o em Áry Ypyrã 16 (o Tempo-Espaço Atual).
Alguns comportamentos manifestados por vários seres (como desobediên-
cia, deboche, violência, enganação etc.) produziram a ira das divindades,
tendo como efeito principal a transformação do próprio universo. Em pri-
meiro lugar, esses seres foram punidos, sendo mudadas suas condições de
vida, tornando-se mortais e adquirindo as formas atuais, como aquelas que
nós ocidentais consideraríamos como espécies animais e vegetais. Em se-
gundo lugar, Ñande Ru, juntamente com os principais deuses, retirou-se da
superfície da Terra, sigilando o “umbigo” desta com jesuka, a substância que
deu vida ao universo, separando assim o cosmo em duas partes: para além de
Yvy Rendy (a áurea luminosa da Terra) e para aquém desta. Assim, na pri-
meira parte repartiram-se os yváy onde passaram a residir as divindades e os
seres puros, incluindo-se as almas dos Kaiowa. Na segunda parte foram des-
tinados a residir os seres impuros, punidos durante o Áry Ypy. Outra trans-
formação do universo foi a sua divisão em duas dimensões: uma acessível a
todos os seres (mortais e imortais) e outra apenas às divindades, aos espíritos
e a poucos sujeitos que hoje possuem poderes xamanísticos. Esta última di-
mensão, portanto, vai além do mundo sensível por meio dos cinco sentidos
que caracterizam os seres mortais. Seu acesso, porém, ocorre igualmente
por meio dos sentidos, podendo-se em certa medida falar de hipersentidos.
Com efeito, os xamãs ouvem, veem e andam pelos diversos patamares do
universo, com os mais poderosos podendo alcançar o irmamento, por suas
capacidades de ir além das fronteiras dimensionais e espaciais.
Finalmente, além da divisão em espaços e dimensões diferentes, os
Kaiowa apresentam informações que nos levam a pensar no que pode-
Gerando formas | 217

ríamos deinir como duas esferas cosmológicas: uma que diz respeito à
atuação dos próprios indígenas e outra especíica dos brancos. Essas esfe-
ras parecem regular a distribuição de elementos no cosmo. Assim, certos
materiais (como vidro, metais e plásticos) foram atribuídos aos brancos
durante o Tempo-Espaço das Origens e apenas esses seres podem hoje
produzi-los, com os Kaiowa podendo tão somente adquiri-los.
Uma terceira e última etapa espaço-temporal é o Ararapyre: o im do
mundo. Essa etapa, na verdade, está já em formação, constituindo um pro-
cesso, concomitantemente ao Áry Ypyrã. Existem indicadores da decadên-
cia do mundo devido a comportamentos e ações manifestadas pelos seres
imperfeitos, algo que, dependendo da situação, pode levar as divindades a
acelerar ou desacelerar a chegada do im do mundo. A atuação dos Kaiowa
é, nesse caso, decisiva, com os xamãs tentando persuadir os deuses a pos-
tergar esse evento nefasto ou, por outro lado, de acelerar sua chegada, no
caso em que se pretenda ascender de modo coletivo aos patamares (yváy)
de além Yvy Rendy.
Essas três etapas na história do universo permitem a construção de
um quadro moral que serve como ponto de referência para as ações dos
indivíduos e para o julgamento de suas experiências. Serve também para
orientar e distribuir hierarquicamente competências para executar ativida-
des e manifestar percepções do mundo. Nesses termos, se o Áry Ypy era
caracterizado pelas contínuas variações de comportamentos, substâncias e
formas, no Áry Ypyrã apenas os espaços onde vivem os seres imperfeitos
continuam manifestando o que os indígenas consideram uma instabilidade
desses três fatores. Os xamãs kaiowa airmam que os patamares onde vivem
os deuses e as almas dos próprios indígenas (antes do nascimento ou depois
da morte do corpo) são caracterizados pela ixidez e a constância, resultado
de um amadurecimento com relação ao Tempo-Espaço das Origens. Nes-
ses patamares, os comportamentos, as substâncias e as formas são perfeitos,
ou, melhor, plenos ou maduros (aguyje), como airmam os indígenas, algo
que os torna fonte de admiração e de imitação. São entendidos como belos
e benéicos, o que em guarani se expressa com a mesma palavra: porã, cujo
antônimo é vai, que signiica simultaneamente feio e maléico.
Outro fator importante nesse quadro é a relação entre o corpo e as
substâncias-sujeitos que o agenciam. Essas podem ser entendidas como
218 | Reflexões sobre arte e cultura material

procedentes de outra dimensão, diversa daquela sensível, podendo também


ser originárias de patamares pertencentes a distintas partes do universo.
Nesses termos, por exemplo, o corpo (tetê) de um kaiowa nasce na dimen-
são sensível e na superfície da Terra, enquanto sua alma espiritual (ayvu)
– entendida como sendo a própria pessoa kaiowa, cuja forma é a de uma
ave ou uma pluralidade dessas – é originária de um dos yváy de além Yvy
Rendy. O próprio corpo – após a mudança da voz, nos homens, e da pri-
meira menstruação, nas mulheres – desenvolve uma alma carnal (ã), a qual,
uma vez o indivíduo falecido, se desprende e se torna um espírito perigoso:
o ãnguê. Por sua vez, pousado no ombro há o tupichúa, que determina es-
peciicamente o temperamento do indivíduo. No corpo podem também
se instalar ãnguê de outros falecidos, além de outros espíritos maléicos de
aquém Yvy Rendy, denominados de ma’etirõ, bem como outras substân-
cias colocadas por atos de feitiçaria. Dessa forma, podemos perceber que
um corpo, no entendimento dos Kaiowa, pode ser agido e disputado por
vários sujeitos dessa ação, entendidos como tendo diversos graus de peri-
culosidade e de impureza, assim como outros bons e puros. Fator também
importante de ser levado em conta é que esses agentes do corpo são con-
dicionados ainda por outros sujeitos: seus espíritos donos (járy), cujas ações
ocorrem à distância, a partir de seus patamares de origem.
Como exemplo desse complexo jogo de ações, substâncias e formas,
utilizamos aqui o corpo dos Kaiowa, mas as essas considerações podem ser
estendidas àqueles corpos que costumamos chamar de objetos, perceptíveis
por meio dos sentidos na dimensão acessível a todos os seres do universo.
O cosmo aqui descrito se apresenta aos olhos dos indígenas como
constituindo uma grande arena multidimensional, onde os sujeitos hu-
manos e não humanos disputam entre si, estabelecem estratégias, buscam
persuadir os outros e procuram vantagens individuais e coletivas. O jogo
político e as relações de poder passam a ser signiicativas nas transforma-
ções e na busca de equilíbrios cósmicos, e as diferenças de competências
entre os distintos atores revela-se fundamental. Assim, o xamanismo se
apresenta como uma técnica que busca interpretar e dar formas a sons e
imagens que são produzidas em dimensões não alcançáveis isicamente e
que são percebidas em sonho (kéra) ou por meio das experiências cotidia-
nas dos que não são xamãs de modo não sistemático – como por exemplo,
Gerando formas | 219

o som de um trovão, um tipo de barulho ou grito no mato, a imagem


de um relâmpago, o surgimento do arco-íris etc. Essas imagens e sons
devem ser interpretadas, sistematizadas e (principalmente por meio de
performances) sintetizadas pelo xamã. Por outro lado, há que se observar
que na dimensão sensível do universo também existem imagens e sons
que devem ser sistematizados, onde o poder xamanístico torna-se menos
determinante, existindo maior democracia nessas intenções. Porém, as di-
mensões do universo não são disjuntas; ao contrário, existe uma correlação
importante entre elas, embora cada uma manifeste suas especiicidades.
As relações mantidas pelos Kaiowa respectivamente com os chiru e com
as ogapysy nos permitem colocar em evidência justamente essas peculiari-
dades, que descreveremos a seguir.

Os chiru e as ogapysy

Os chiru são objetos de uma madeira especíica (Myroxylon peruiferum),


que no mundo sensível geralmente assumem as formas de varas e cruzes,
de dimensões variáveis, com as medidas podendo ir de alguns centíme-
tros a pouco mais de um metro de comprimento. Aos nossos olhos as
varas podem parecer tacos de jogo de sinuca, e as cruzes podem remeter
ao cruciixo, devido ao esteio vertical ser de dimensão maior que aquele
horizontal (ver Figura 1).
Ambas formas evocam os objetos de poder utilizados nas reduções
jesuíticas no período colonial, como as varas insígnias em posse dos mem-
bros do cabildo indígena (a estrutura administrativa no interior das mis-
sões) e as cruzes ostentadas pelos padres inacianos, manifestando o poder
do deus cristão.17 Há que se observar, contudo, que como já argumentado
em outro trabalho dedicado especiicamente à trajetória dos chiru,

[…] a conotação simbólica atribuída pelos Kaiowa contemporâneos


a esses objetos não corresponde minimamente àquela introduzida
pelos jesuítas no interior das reduções. Por um lado, os índios não
associam a cruz ao sacrifício de Jesus. Na realidade, este símbolo re-
presenta o suporte principal da Terra, indicando também os pontos
220 | Reflexões sobre arte e cultura material

Figura 1. Chiru no altar em ogapysy da reserva de Dourados (MS). Abril de 2006.


Foto: Alexandra Barbosa da Silva.

cardeais e outros suportes subsidiários, localizados em torno da linha


do horizonte. Já as varas não podem ser consideradas símbolos de
mando, uma vez que os Kaiowa as destinam a um uso terapêutico e
propiciatório; suas propriedades derivam de sua substância e não de
sua forma.

A relação entre substância e forma é um fator relevante para se com-


preender o processo de integração de objetos simbólicos à vida ritual
dos Kaiowa. Com efeito, até mesmo para o período reducional pode-
mos lançar dúvidas sobre uma convergência interpretativa desses ob-
jetos, de modo a se constituir um conjunto de signiicados em comum
entre os índios e os jesuítas. A complexa e rica visão cosmológica que
os indígenas construíram em torno dos chiru, assim como o uso xa-
manístico que é feito desses objetos, coloca em evidência a enorme
distância da ideologia desses índios em relação ao cristianismo e à
organização política ocidental […]. 18
Gerando formas | 221

Os Kaiowa fazem clara distinção, por exemplo, entre as cruzes de


chiru e aquelas feitas de yvyra paje (Myrocarpus frondosus). Embora for-
malmente pareçam idênticas, esta última é considerada menos poderosa
e utilizada principalmente no processo de formação ritualística, antes de
os neóitos se tornarem xamãs.19 Manipular os chiru é algo muito delicado
e relacionado a capacidades de sujeitos especíicos, que devem possuir as
orações (ñembo’e) apropriadas para que estes (que para todos os efeitos
são considerados sujeitos) não se irritem, algo que pode provocar pragas e
mesmo a morte.
O conceituado xamã Atanásio Teixeira airma que no Áry Ypy (o
Tempo-Espaço das Origens) Ñande Ru construiu muitos desse chiru, dis-
tribuindo parte para os deuses e que, quando subiu para sua morada atual,
deixou uma certa quantidade para os Kaiowa, para serem repartidos pelas
famílias indígenas. Luís Velário Borvão, outro xamã, fala que Ñande Ru
teria rachado uma árvore em mais de 500 pedaços para realizar tal distri-
buição. Após esse evento originário, ao longo do tempo outros chiru fo-
ram construídos pelos xamãs e hoje também, em casos extraordinários, se
procede com muita cautela em sua confecção. Para construí-los devem-se
esfriar (omboroy) as mãos, as ferramentas e a própria madeira, por meio de
orações (ñembo’e) especíicas, fazendo assim surgir (ojehu) o poder do chiru
sem desequilibrar o universo.20
Existe um dever de conservar e transmitir adequadamente esses
sujeitos-objetos ao longo das gerações, e quem os possui deve com eles
conversar cotidianamente, assim como impedir que toquem o chão, depo-
sitando-os em altares especíicos.
O diálogo com os chiru ocorre, portanto, por meio de orações (as já
referidas ñembo’e) e, no caso de serem manipulados pelos xamãs, por meio
já de ñengary (orações de posse exclusivamente desses homens especiais,
permitindo-lhes deslocar-se no universo, através de seus diferentes espa-
ços e dimensões). Certa vez, em frente a um altar onde estavam assentados
muitos chiru (que haviam sidos recuperados após décadas de descuidos
impingidos pela ação missionária), o xamã Luís Borvão começou a cantar,
com diversas entonações, explicando que embora esses sujeitos-objetos
sejam feitos da mesma substância, possuem na verdade diferentes pes-
soalidades, consoante a procedência da árvore de onde foi retirada a sua
madeira. De fato, dependendo do solo de origem da árvore, esse objeto ad-
222 | Reflexões sobre arte e cultura material

quirirá denominação especíica. Teremos, assim, entre outros: chiru itakui


(sua origem é um solo de pedras minúsculas), chiru itavera (originário de
onde há pedras brilhantes), chiru itahu (provém de pedras escuras) e chiru
pirary (sua árvore teve origem nas águas). Cada um desses chiru terá um
canto especíico e manifestará comportamentos peculiares. Os itakui, por
exemplo, são os mais bravos e exigem maior cuidado, enquanto outros ne-
cessitam de cantos mais longos – caso dos itahu.21 Luís detalhou também
que esses comportamentos estão, por sua vez, relacionados com as especi-
icidades de seus respectivos espíritos donos (járy), descrevendo então para
cada um deles as formas, as cores e a luminosidade dos ornamentos que
possuem, bem como da musicalidade de suas vozes.
Ocupemo-nos agora das ogapysy. Como vimos, essas construções
são idênticas às casas comunais utilizadas no passado (ver Figura 2). Do
ponto de vista de seus detalhes arquitetônicos, forma e, em muitos casos,
materiais, divergem bastante das habitações atuais. Como colocado em
evidência em outros trabalhos,22 hoje as unidades domésticas kaiowa es-
tão formadas por famílias extensas de três gerações – raramente quatro –,
ocupando um espaço territorial variável, dependendo das condições eco-
lógicas e demográicas de um determinado lugar.23

Figura 2. Ogapysy na reserva de Dourados (MS). Abril de 2006.


Foto: Alexandra Barbosa da Silva.
Gerando formas | 223

Nesses espaços de jurisdição exclusiva, as famílias conjugais dessas


unidades distribuem-se em pátios, onde se desenvolve o que denominei
ciclo construtivo da unidade habitacional 24. Após se formar um casal, ainda
sem ilhos, constrói-se uma habitação de pequeno porte, geralmente com
uma divisão interna, separando o espaço dormitório de outro dedicado às
atividades culinárias e ao depósito de ferramentas e objetos domésticos.
Com o nascimento dos ilhos e tendo-se as condições materiais apropria-
das, constrói-se, sempre no mesmo pátio, outra ediicação, destinando-a
a uso dormitório. Aquela anterior é então redeinida em sua função, com
cada espaço interno passando a ser respectivamente destinado a uso como
cozinha e como depósito. Seguindo sucessivamente a mesma lógica, cons-
trói-se uma terceira ediicação, destinada a uso dormitório, com a segunda
tornando-se cozinha e a primeira para uso como depósito. Fecha-se assim
um ciclo, uma vez que quando se constrói uma quarta ediicação, a pri-
meira já se deteriorou, sendo desmanchada e seus materiais, quando de
madeira, destinados a alimentar o fogo doméstico, como lenha, ou como
partes de novas construções.25
Nesse processo, que pode durar vários anos, dependendo da disponi-
bilidade e das possibilidades de acesso, os membros da unidade habitacio-
nal podem optar por diferentes tipos de materiais e formas de construção.
Se se escolhe um teto a três ou quatro águas, obrigatoriamente a cobertura
deverá ser feita de sapé ou telhas de madeira ou terracota (raras, por seu
custo elevado). Já se for de duas águas, há a possibilidade também de se-
rem utilizadas folhas de palmeiras, assim como as sempre mais frequentes
telhas de ibra-cimento.26 Para impermeabilizar ou quando se tem poucos
recursos, podem também ser usadas lonas plásticas. As paredes podem ser
de ibras vegetais (como casca de palmeira e ou bambu). Nos últimos anos,
principalmente aquelas pessoas com mais recursos passaram a encomen-
dar casas de alvenaria, sendo ainda poucos os índios que dominam essas
técnicas de construção.
É importante notar que cada tipo de construção – e até os detalhes das
ediicações – não são alternativos uns com relação aos outros, sendo que em
um único pátio podemos encontrar todos os materiais listados e as formas
descritas. Ainda mais importante, como também já colocado em evidên-
cia em outros trabalhos,27 os Kaiowa não atribuem grande importância às
224 | Reflexões sobre arte e cultura material

construções em si; seu valor é muito reduzido relativamente àquele que é


atribuído ao lugar onde se vive. De fato, o eixo do ciclo construtivo é o pátio
onde ao ar livre se desenvolvem quase todas as atividades domésticas e a
vida social do grupo familiar.28 Mas também o pátio pode ser trocado de
lugar no interior do espaço do grupo doméstico ou mesmo de localidade
se a família extensa decidir se mudar à procura de espaços considerados
melhores para desenvolver seu teko (modo de ser e de viver). A procura do
“bom viver” (tekovê porã) está, por sua vez, relacionado à busca dos lugares
de origem dessas famílias, lugares este que segundo os Kaiowa teriam sido
atribuídos pelos deuses às famílias indígenas, para que deles seja feito um
bom uso. As contínuas e crescentes demandas fundiárias entre os Kaiowa de
Mato Grosso do Sul estão norteadas justamente por essas motivações.
Fica assim evidente que para melhorar suas condições de vida em
diferentes contextos materiais e sociopolíticos esses indígenas progressi-
vamente abandonaram as grandes construções do passado, não se preocu-
pando muito com as formas e os materiais das novas habitações – pouco
valorizadas enquanto objetos. Até mesmo a maioria das atividades rituais
foi adaptada a critérios mais lexíveis, construindo-se e desmontando-se
coberturas ad hoc com o escopo de abrigar o mba’e marangatu koty pegua
(altar do espaço fechado), reproduzindo assim, de modo provisório, as
condições oferecidas pelas antigas oygusu.
Frente a todas essas variações de formas, materiais e técnicas nas mo-
dalidades atuais de construção das unidades habitacionais, como explicar
então o fato de que as oygusu voltaram a ser ediicadas? Para compreender
essa escolha temos que abandonar a ideia comumente aceita de que essa
seja uma habitação, simplesmente pelo fato de que os Kaiowa a conside-
rem como “casa mãe das origens” (justamente, em sua tradução, ogapysy).29
Como coloca em evidência Rapoport,30 uma construção arquitetônica
deve ser deinida não apenas pela sua forma, mas a partir de um “sistema
de settings”. Como argumenta o autor

…a dwelling itself can be shown to be a particular system of settings


within which given sets of activities take place. hus one cannot, as is
so often done, compare buildings as dwellings merely because – in form
and structure – they appear to us as such. In the study of dwellings the
Gerando formas | 225

proper units of comparison are the system of settings, which have irst to be
discovered before they can be compared. his discovery helps to avoid the
problems that can arise from the discrepancy between our own analytic
concepts and those of the peoples whom we study, that is between ‘etic’ and
‘emic’ models.

he cues that communicate the appropriate situation and behaviour, and


the elements deining settings, are not only architectural, or what can be
called ‘ixed feature elements’. More important are semi-ixed feature ele-
ments – the furnishings of environments, whether outdoor or indoor: signs,
plants, elements of personalization, furniture, bric-à-brac, and so forth.31

Assim, podemos observar que atualmente os indígenas não vivem


nas ogapysy, caracterizando-as como uma casa, e tampouco as constroem
autonomamente, como ocorre com as habitações. O valor atribuído a es-
tas ediicações está relacionado às reivindicações que os indígenas mani-
festam perante aos brancos. Tais reivindicações centram-se na percepção
de que as condições de vida do presente seriam negativas com relação
ao passado e que os Kaiowa não teriam a possibilidade de desenvolver
atividades rituais importantes como o kunumi pepy – o ritual de iniciação
masculina, que demanda espaços fechados para a reclusão dos neóitos.
Assim, no inal da década de 1980, o Conselho Indigenista Missionário
(CIMI) passou a inanciar a construção de uma ogapysy na Terra Indígena
Panambizinho, único lugar no Brasil onde ainda era celebrado tal ritual,
hoje em desuso. Nessa ediicação passaram a ser alocados os instrumen-
tos e adornos rituais e o altar interno (onde são também assentados os
chiru), tornando-se uma espécie de templo que, fora dos contextos rituais,
passa a ser usado para se fazer reuniões, principalmente em presença de
autoridades não indígenas – como membros de ONGs, missionários, an-
tropólogos, MPF, representantes governamentais (municipais, estaduais e
federais) e mesmo de agências estrangeiras.
Por ocasião dos rituais realizados aos olhos desses agentes não indí-
genas, os índios buscavam padronizar e homogeneizar os próprios ador-
nos e vestimentas, tornando-os mais apetecíveis às exigências estéticas
dos olhares externos, em contraste com a realidade das cerimônias mais
226 | Reflexões sobre arte e cultura material

íntimas. Para dar vida a esse peculiar processo de relacionamento interét-


nico, mediado pela manifestação de certas formas e materiais especíicos,
os indígenas avançavam pedidos de recursos inanceiros que aos poucos se
tornaram estruturais. Assim, cada vez que se fala em ogapysy pressupõe-se
a apresentação de um projeto por parte dos índios, com listagens de ma-
teriais e ferramentas necessárias para tal, bem como de alimentação para
quem irá trabalhar na sua construção. A ogapysy tornou-se um símbolo
importante no processo de reivindicação fundiária, sendo um dos pedidos
mais frequentes quando se formam acampamentos em terras reocupa-
das. Mas a maior proliferação de ogapysy ocorreu na populosa reserva de
Dourados, durante o governo municipal presidido pelo PT. Esse gover-
no estimulou também o turismo na reserva e a produção de artesana-
to, inanciando inclusive oicinas para a confecção de cerâmica, técnica
abandonada pelos Kaiowa há mais de um século. As ogapysy de Dourados
tornaram-se, assim, também lugares de visitação e de comércio de objetos
étnicos. Nessas ediicações é possível observar tanto instrumentos e ador-
nos rituais assentados no altar quanto, nas proximidades, arcos e lechas,
colares, pulseiras e até mesmo mbaraka (chocalhos), todos enfeitados com
plumas coloridas e pintados com cores vivazes, algo que justamente cativa
os olhos do potencial comprador karai (branco).
Cotejando os chiru e as ogapysy podemos identiicar uma série de
contrastes e convergências. Os primeiros apresentam-se aos nossos olhos
ocidentais como objetos bastante inexpressivos, algo que pode passar des-
percebido, fora no caso daqueles em forma de cruz, levando-nos, porém,
para bem longe do entendimento indígena. As segundas, ao contrário
apresentam-se como claramente distintas das habitações kaiowa atuais,
imediatamente despertando o nosso imaginário sobre a autenticidade in-
dígena. Do ponto de vista kaiowa, porém, a percepção e a interpretação
sobre o percebido são bem diversas. Os chiru não são deinidos apenas
pela sua forma exterior (ou, em outras palavras, pelo seu corpo), percebida
na dimensão sensível a todos os sujeitos do universo. Existe, como vimos,
uma pluralidade de seres a eles associados, procedentes de outra dimen-
são, cada um com suas formas, substâncias e poderes, sendo suas diferen-
ças estabelecidas também pelos lugares onde nascem as árvores de onde
surgiram. Nesse sentido, na interpretação xamanística, ao serem muito
Gerando formas | 227

poderosos, os chiru manifestam certas forças do cosmo (no sentido físico


da palavra) que tornam sua manipulação perigosa e, portanto delicada.
Com efeito, sua forma exterior é imposta pelo jogo dessas forças, exer-
cidas a partir de sujeitos procedentes de outra dimensão,32 que limitam
enormemente as possibilidades de operar variações construtivas. Daí o
motivo de sua ixidez na forma. Por outro lado, podemos observar que essa
ixidez diz respeito unicamente à dimensão sensível a todos, pois, como
vimos, o que existe de fato é uma variedade signiicativa de chiru. Assim, o
relevante é o fato de que quando os indígenas se relacionam com estes, os
conceituam através de conexões multidimensionais.
Tomando em consideração agora as ogapysy, podemos constatar que
as razões da ixidez nesse caso encontram-se principalmente nas relações
de forças exercidas na dimensão sensível do universo. A forma da edi-
icação e os detalhes construtivos são ostentados aos olhos dos brancos,
tornando-se símbolo de luta e marca de etnicidade. Isso é ainda mais re-
marcado quando em seu interior se desenvolvem atividades voltadas ao
relacionamento interétnico. Contudo, há que se observar que o relacio-
namento interétnico não se conigura apenas numa dimensão, adquirindo
sentido no cotejamento entre aquelas que deinimos como esferas cosmo-
lógicas, também nesse caso envolvendo relações multidimensionais.

Reflexões finais

Em recentes e instigantes trabalhos,33 Ingold propõe reformular a ideia de


coisa, deinindo-a como um parlamento de ios. O autor pretende mostrar
que ios vitais se entrecruzam, conigurando entidades não fechadas para
o exterior. Assim, “as coisas vazam, sempre transbordando das superfícies
que se formam temporariamente em torno delas”.34 Seu intuito é o de se
opor a uma imagem de objeto, asséptico e de contornos bem-deinidos.
Desse modo, assumindo uma ótica processual, Ingold tenta promover uma
abordagem que valorize o movimento e a ação, em detrimento de visões
estáticas, que não permitiriam compreender a natureza viva do universo –
algo sobre o que ambos estamos plenamente de acordo.
228 | Reflexões sobre arte e cultura material

Contudo, o autor inglês parece atribuir ao entrecruzarem-se de for-


ças vitais certa liberdade e espontaneidade, não levando devidamente em
conta as relações de poder e seus consequentes efeitos. Ocorre que ge-
ralmente tendemos a atribuir o exercício de poder e a intencionalidade
humana – e suas consequências –, a uma dimensão ontológica diversa
daquela que regulamenta as forças do universo, entendidas como naturais.
Desse modo, os esforços recentes que buscam rediscutir a dicotomia Na-
tureza/Cultura revelam-se estratégicos. Autores como o próprio Ingold,
Descola e Latour35 resultam centrais neste debate. Por outro lado, a im-
pressão que temos na leitura desses trabalhos é de que não se chega ainda
a uma efetiva superação daquilo que podemos deinir como um etnocen-
trismo ontológico. Descola e Pálsson,36 por exemplo, colocam em desta-
que o fato que os ameríndios não operam a distinção Natureza/Cultura,
mas no momento em que buscam compreender suas cosmologias, prefe-
rem manter esse dualismo, airmando que seria para deinir “an anaytical
device in order to make sense of myths, rituals, systems of classiication, food and
body symbolism, and many other aspects of social ”.37
Como já argumentado em outro trabalho,38 consideramos de suma
relevância superar os limites impostos pelo dualismo ontológico – fruto da
tradição ocidental –, através de uma plena extinção da dicotomia Natu-
reza/Cultura, não apenas como posicionamento relativista, mas também
em termos heurísticos e analíticos. Procedendo assim podemos reunir
em um mesmo horizonte ontológico, o cultural, o social, o químico, o
físico etc., buscando entender suas propriedades e como estas intervêm
no universo. Uma vez realizado esse passo, pareceu-nos então pertinente
recuperar as abordagens que consideram a cultura algo concreto, cujos
atributos são a distribuição, transportabilidade de conceitos, ideias, prin-
cípios etc. veiculados pelos indivíduos.39 Barth40 especiicamente deine
a cultura como uma correnteza, como um luxo de informações. A pro-
priedade desse luxo é tender a ser contínuo e a ir em todas as direções,
vazando, transbordando. Nesses termos, poderíamos compará-lo com as
propriedades das coisas, conforme entendidas por Ingold. Porém, como
diz o autor norueguês,41 ocorre que esse luxo passa a ser organizado pelas
propriedades do social, que tendem a produzir fronteiras e interrupções,
fazendo com que os traços culturais sejam distribuídos de forma desigual
Gerando formas | 229

pelos indivíduos, gerando-se, assim, formas e modelos culturais especíi-


cos. Serão tradições de conhecimentos peculiares, com suas cosmologias
elaboradas e implementadas por indivíduos especializados, que deinirão
as modalidades de sua propagação.42
As argumentações de Barth unidas à superação da dicotomia Natu-
reza/Cultura, nos permitem entender os traços culturais como elementos,
com suas particularidades, mas pertencentes a uma mesma ordem ontoló-
gica, que reúne todos os outros que compõem o universo. Conforme posto
antes,43 todos esses elementos não deveriam ser entendidos e classiicados
como aqueles que seriam objetos e outros como sujeitos, algo que recalcaria
as dicotomias material/imaterial, físico/metaisico, concreto/abstrato etc.
a serem analiticamente superadas. Em alternativa, a deinição dos ele-
mentos do universo deveria ser dada pela posição que estes ocupam em
um jogo de relações e interações, isto é, dependendo da situação, cada um
pode ser objeto da ação ou sujeito da ação. Por exemplo, “um ser humano
pode ser considerado, dessa forma, como sujeito em certas circunstâncias,
e objeto em outras – e o mesmo se pode dizer sobre o vento, a água, os
espíritos etc.” 44
Há que se constatar, porém, que as ações movidas por um elemen-
to sobre outro não são necessariamente simétricas, podendo implicar em
diferenciais de forças, deinindo hierarquias de ação. É nesse caso que as
propriedades do social tornam-se determinantes. Nesses termos, poderes
simbólicos podem concatenar-se com dispositivos perceptivos e com outros
elementos (como visto acima), a partir da ação de elementos que mani-
festam maior opulência. Assim, o processo resultante desse jogo de ações
permite, por exemplo, que o encontro entre humanos e não humanos, per-
cebido por meio de uma elaboração cultural especíica, como ato de co-
nhecimento, administre e adapte os dispositivos sensoriais a circunstâncias
e contextos especíicos, dando vida a formas e composições de formas, em
uma, em várias ou por meio de múltiplas dimensões do universo. Essas for-
mas e jogos de formas podem ser extremamente variáveis em suas compo-
sições e percepções, como também bastante ixas e constantes, dependendo
das particularidades das interações entre os elementos considerados.
O caso especíico apresentado ao longo deste artigo, relativo aos
Kaiowa e seus modos de perceber e de agir no universo, deinindo suas
230 | Reflexões sobre arte e cultura material

formas, representa justamente um exemplo signiicativo, que nos parece


valorizar a proposta analítica aqui defendida, e que pode contribuir para
uma progressiva superação do referido etnocentrismo ontológico.

Notas
1
Meliá, Grünberg & Grünberg, 1976; Susnik, 1979-80; Gadelha, 1980.
2
Susnik, 1979-80; Mura, 2006.
3
homaz de Almeida, 1991; Mura, 2006.
4
homaz de Almeida, 1991.
5
Mura, 2006.
6
Meliá, Grünberg & Grünberg, 1976; Susnik, 1979-80; Mura, 2006.
7
homaz de Almeida, 1991; Brand, 1997.
8
Mura, 2006. Wilk (1984) deine as unidades domésticas não a partir da corresidência,
mas pelas lógicas de cooperação entre seus membros. Assim, observa que na maioria dos
casos, uma unidade doméstica agrega mais de uma habitação, conigurando uma household
cluster.
9
Mura, 2000 e 2006.
10
Brand, 1997; homaz de Almeida, 2001; Mura, 2006; Barbosa da Silva, 2007.
11
homaz de Almeida, 2001.
12
Mura, 2006.
13
Ibid.
14
Mura, 2006 e 2010.
15
As informações contidas neste item procedem de Melià, Grünberg & Grünberg, 1976; e
Mura, 2006; bem como de entrevistas e conversas mantidas pelo autor com xamãs kaiowa.
16
O suixo rã indica futuro. Portanto, deve-se entender o tempo-espaço atual como o
futuro com relação àquele das origens.
17
Wilde, 2009.
18
Mura, 2010, p. 131.
19
Mura, 2006 e 2010.
20
Mura, 2006.
21
Mura, 2010.
22
Mura, 2000 e 2006.
23
Mura, 2006; Barbosa da Silva, 2007.
24
Mura, 2000.
Gerando formas | 231

25
Ibid.
26
Esta variação deve-se ao fato de que os índios não possuem técnicas e ferramentas
apropriadas para cortar as pranchas de ibra-cimento e, assim, fechar os ângulos exigidos
por tetos com mais de duas águas.
27
Mura, 2000 e 2006.
28
Ibid.
29
Palavra derivada de óga (casa) ypy (origem) sy (mãe).
30
Rapoport, 1994.
31
Ibid., p. 463.
32
Se nos é permitida uma metáfora, poderíamos dizer que o corpo visível do chiru é
como a ponta de um iceberg, em que a superfície do mar representaria a linha de divisão
interdimensional.
33
Ingold, 2007 e 2012.
34
Ingold, 2012, p. 29.
35
Ingold, 1995; Descola, 1992; Latour, 1994.
36
Descola & Pálsson, 1996.
37
Ibid., p. 2.
38
Mura, 2011.
39
Schwartz, 1978; Barth, 1987, 2000a, 2000b e 2005; Hannerz, 1992.
40
Barth, 2000a.
41
Barth, 2005.
42
Barth, 2000b.
43
Barth, 2000b.
44
Ibid., p. 109.

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Reflexões sobre a imagem sagrada
a partir do “Cristo de Borja” 1

Renata de Castro Menezes*

Deus não é severo mais.


Suas rugas, sua boca vincada
são marcas de expressão
de tanto sorrir pra mim.
(Adélia Prado)

Nas últimas décadas, as ciências sociais têm se envolvido em uma série


de debates intra e interdisciplinares em torno de objetos de cunho ar-
tístico, seja a partir de um interesse renovado pela temática da cultura
material, seja pelas discussões em torno das relações entre arte, cultura e
sociedade.2 Os objetos, ou as coisas, têm sido valorizados por seu potencial
heurístico na interpretação das relações entre o corpo, os sentidos e as
materialidades; na reformulação das concepções sobre a relação sujeito/
objeto; por seus processos de transformação (que envolvem formas de
produção, modalidades de troca e práticas de uso e consumo); e ainda
quanto à análise de políticas e práticas de conservação, exposição e patri-
monialização.3
No bojo desses debates, encontram-se questões que mobilizam cien-
tistas sociais, historiadores, historiadores da arte, especialistas em estudos
culturais, arquitetos, arqueólogos, museólogos etc., em discussões epistemo-
lógicas e metodológicas, como por exemplo, sobre a especiicidade da arte
diante de outras práticas humanas, sua função social; como ela pode ou não

* Doutora em antropologia, professora adjunta IV do Departamento de Antropologia do


Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

235
236 | Reflexões sobre arte e cultura material

ser universalmente deinida; ou de que forma os critérios estéticos podem


ou não ser estabelecidos transculturalmente ou através da história. Essas
questões muitas vezes extrapolam o campo acadêmico e envolvem também
os próprios artistas, curadores e críticos de arte,4 e se não são propriamente
novas – ainal, num certo sentido, elas perpassaram todo o século XX –, ga-
nham outras conotações a partir dos alertas pós-modernos e pós-coloniais.
Pois subjaz aos debates atuais a crítica às pretensões universalistas das Hu-
manidades, tal como constituídas desde a Idade Moderna europeia, cujo
etnocentrismo tem sido revelado e revisto nos últimos anos.5
Neste artigo, pretendo aproximar-me dessa literatura, ou melhor, de
parte dela, propondo uma discussão na interface entre as áreas de arte e
religião, a partir das metamorfoses de uma imagem e de suas repercus-
sões. Trata-se do chamado Cristo de Borja, um episódio que se iniciou em
agosto de 2012, quando Cecília Giménez, uma senhora octogenária da
cidade de Borja, em Saragoça, na Espanha, promoveu uma restauração
espontânea de uma imagem de Jesus pintada por Elias García Martínez,
no século XIX, numa das paredes do Santuário da Misericórdia, uma
pequena igreja local.

Figura 1. O Cristo de Borja antes e depois da “restauração”.


Fonte: https://www.facebook.com/ElCristoDeBorja
.
Reflexões sobre a imagem sagrada | 237

A Figura 1 traz a imagem de Ecce Homo (que representa o Cristo la-


gelado durante o processo de martírio que culminou em sua cruciicação),
antes e depois da intervenção de dona Cecília, a qual resultou em algo
bastante diferente da original. A ação da senhora foi divulgada em início
de agosto pelo Centro de Estudos Borjanos, sendo noticiada no dia 21 do
mesmo mês em um jornal de alcance regional, o Heraldo de Aragón e em
El País, de Madri, jornal de circulação mais ampla, numa matéria intitula-
da “La restauración que se convirtió en destrozo”:

Lo que comenzó siendo un arreglillo espontáneo de una obra de arte en


mal estado […] ha terminado en un auténtico destrozo que ha provocado
el estupor del Ayuntamiento y de sus vecinos. La artíice del estropicio
es, según Juan María de Ojeda, concejal de Cultura del consistorio, una
vecina octogenaria que actuó de forma espontánea y “sin pedir permiso a
nadie”, aunque “con buena intención”. Cuando se dio cuenta de que “se le
había ido de las manos” avisó al responsable del patrimonio cultural del
municipio para confesar los daños que había causado […]. A pesar de ser
una obra sin gran importancia, y que tampoco forma parte de ningún
conjunto pictórico ni retablo, el pueblo lamenta el destrozo de la pieza,
que sí tenía cierto valor sentimental. “La familia solía venir aquí a pasar
las vacaciones. Durante un verano el artista realizó el retrato y lo legó al
pueblo”, explica el concejal.6

Ou seja, a matéria ressalta o estrago causado pela restauração espon-


tânea, que teria destruído a obra de García Martinez, mesmo que com as
melhores intenções. Dona Cecília é apresentada como uma ingênua de
boa vontade, que teria atuado sem autorização de ninguém. Entretanto,
em cerca de 48 horas, a leitura do episódio se alterou. No dia 23 de agosto,
o mesmo jornal noticia que “La restauración de un eccehomo se convierte en
un sainete mundial”:

La intervención por parte de una octogenaria de una obra de escaso valor en


la localidad de Borja agita las redes sociales y se convierte en noticia inter-
nacional. El culebrón artístico más surrealista del verano está protagoni-
238 | Reflexões sobre arte e cultura material

zado por un eccehomo de un siglo de antigüedad y escaso valor artístico, que


hace unas semanas sufrió una peculiar restauración por parte de una vecina
de la localidad zaragozana de Borja. El resultado de la intervención no solo
es catastróico, borroso e irreconocible, sino que también se ha convertido en
objeto de parodia, carne de fotomontaje. Hasta han aparecido falsos periles
en las redes sociales en las últimas 48 horas. Tamaña está siendo la repercu-
sión de la noticia que ya encabeza las listas de lo más leído y más reenviado
en las webs de diarios como Le Monde, el Telegraph o la BBC.7

De um destrozo a um sainete mundial: a passagem meteórica de ruína


a farsa deveu-se à recepção do resultado surreal da restauração com humor
e curiosidade, potencializados pelas características singulares dos canais
midiáticos atuais. A notícia e a imagem se espalharam rapidamente pelas
redes sociais e outros meios de comunicação e o Cristo de Borja se trans-
formou num sucesso, um meme, isto é, um item que se autopropaga rapida-
mente pela internet, sendo copiado e compartilhado várias e várias vezes.8
Sua difusão foi acompanhada de debates e de sátiras sobre os efeitos da
restauração, sendo considerada um desastre e uma destruição, por uns, e
um ato criativo e revitalizador, por outros. Na sequência de comentários,
uma série de imagens foi sendo gerada, a partir do desdobramento do
novo rosto então criado por sobre outras obras de arte de prestígio, outros
monumentos, outras faces, ou mesmo sobre objetos cotidianos, como bo-
los de aniversário, camisetas, canecas de cerâmica etc., como será exempli-
icado mais adiante.
Diante do caso, minha primeira reação foi a de hilaridade. Porém,
mais tarde consegui perceber que ele permitia uma discussão de limites
e continuidades entre objeto religioso e objeto de arte, ou, mais especii-
camente, entre concepções religiosas e concepções artísticas da imagem
em um caso empírico concreto. Assim, a partir de material recolhido na
imprensa, na internet e em redes sociais (e já explicitando que não se trata
de uma etnograia densa, à la Geertz, em Borja), pretendo esboçar uma
interpretação do episódio numa modalidade de ensaio, deixando abertas
algumas pistas para futuros aprofundamentos, seja por mim, seja por ou-
tros pesquisadores.
Reflexões sobre a imagem sagrada | 239

Jogos de percurso a partir da Antropologia da Devoção

A preocupação em tematizar encontros e desencontros entre arte e reli-


gião justiica-se a partir do percurso de pesquisas que desenvolvi até che-
gar às discussões sobre imagem, o qual, a meu ver, traz especiicidades à
discussão que vou propor. Desde os anos 2000, isto é, desde a pesquisa de
doutoramento, tenho me preocupado com o culto aos santos e as relações
de devoção que lhe caracterizam. Inicialmente como um achado etnográ-
ico – ao desenvolver uma análise sobre as formas de sociabilidade em um
santuário católico, o convento de Santo Antônio do Largo da Carioca, no
centro do Rio de Janeiro, dei-me conta de que grande parte da energia
social despendida no local dizia respeito às relações de pessoas com os
santos e santas que, de alguma forma, ali se faziam presentes. Mais tarde,
diante da descoberta do potencial analítico do tema, o achado etnográico
transformou-se em foco preferencial de pesquisas sucessivas.9
Não se tratava de um tema propriamente novo nas ciências sociais
ou na Antropologia da Religião, embora tenha interessado mais a histo-
riadores e cientistas da religião do que a antropólogos e sociólogos. Mas
ao estudar o culto aos santos, encontrei uma forma de interpretação con-
solidada que, por tomar como ponto de partida a promessa e os ex-votos
que a retribuem, tratava as relações entre santos e devotos como relações
de troca, materializadas em três etapas: a promessa (o pedido), a concessão
do que se quer (a graça ou o milagre, concedida pelo santo, ou por Deus,
através da mediação do santo), e o pagamento da promessa (os ex-votos,
as festas, as peregrinações). A concepção linear, de fronteiras claramente
demarcadas, possibilitava classiicar essas trocas como equivalentes à troca
mercantil – e isso não apenas em textos das ciências sociais, mas muitas
vezes em textos teológicos e pastorais, que justamente por identiicarem
na relação com os santos essa dimensão “troquista” de toma lá, dá cá, a
condenaram como manipulação mágica, resquícios de sacrifícios pagãos
e/ou como comercialização ou exploração da fé. Além disso, muitas vezes
essas relações foram lidas como exemplos de patronagem, já que envolvem
favores assimétricos, em que o santo dá o que o devoto pede, e este depois
agradece, mas permaneceriam vinculados pela dependência e obrigação
instauradas entre o devoto-cliente e o santo patrono, padroeiro. Por outro
240 | Reflexões sobre arte e cultura material

lado, havia uma tendência a pensar essa relação como diádica, isto é, en-
volvendo um santo e um devoto, sem atentar para possíveis enredamentos
desse par de destaque em outros conjuntos de relações.
Ao recuperar as relações com os santos a partir das formulações en-
contradas em campo, pude perceber que a situação era mais complexa do
que o modelo promessa-graça-agradecimento deixava transparecer. Se a
troca é um momento dessas relações, o momento em que ela se torna mais
visível a um observador externo, ela não a esgota, nem representa a relação
sua totalidade. Os pedidos e os agradecimentos seriam, na verdade, menos
o objetivo inal da relação com os santos, e mais formas de sua manuten-
ção: “a gente está sempre pedindo e agradecendo alguma coisa”.10
Primeiro, a relação entre pedidos, agradecimentos, graças e devoção
era menos automática e linear. Nem todos os pedidos são promessas: a
promessa se paga, o pedido se agradece. Nem todos os que pedem a um
santo se consideram seus devotos: pode-se pedir a ele por sua especia-
lidade, ou por outra razão, sem que a pessoa se torne devota, bastando
pagar a promessa para se considerar quites. Por outro lado, os devotos de
um santo nem sempre precisam pedir as graças, mas podem recebê-las
mesmo assim. Nem tudo o que se pede é concedido, o que também pode
ser considerado uma graça, pois “o santo sabe o que é melhor para mim”.
E muitas vezes, não há nenhum pedido em jogo. Mas tudo aquilo que é
considerado graça – e que pode variar de coisas aparentemente pequenas,
como achar uma chave, a coisas espetaculares, como sair do coma sem se-
quelas – é agradecido, mesmo o que não for pedido. Além disso, a relação
não se dá necessariamente apenas entre o santo e o devoto: ela envolve
outras pessoas, pois se pode pedir por outros; pode-se pedir a mesma coisa
a vários santos; e muitas pessoas e diversos pedidos podem estar mobili-
zados diante de um mesmo problema. Há, portanto, redes de relações que
se articulam em torno do culto aos santos, e não apenas díades.
As nuances permitiram-me localizar as especiicidades da relação de
devoção.11 Há muitas maneiras de se relacionar com os santos, até mesmo
simpatias. Mas a devoção assume uma série de características distintivas
quanto às demais. Ela implica num vínculo duradouro e permanente de
uma pessoa com um santo, que envolve a idelidade, mas não a exclusi-
vidade, pois é possível se combinar devoções. Este vínculo é permanente
Reflexões sobre a imagem sagrada | 241

enquanto dura, porque novas devoções podem se incorporar ao panteão


de cada um, assumindo o papel de principal em relação às devoções ante-
riores. A devoção é ainda marcada pela amizade, a fé, a coniança, a gra-
tidão e reconhecimento. Ela não envolve apenas a eicácia do santo, mas
um processo de identiicação em que um devoto considera determinados
aspectos de sua vida como relacionados ao santo – e vice-versa: determi-
nados aspectos da vida do santo como relacionados à sua própria vida…
Quanto mais fervorosa se torna uma devoção, já não se sabe onde começa
e onde termina a ação do santo na própria vida, que passa a ser lida como
uma sucessão de graças. Assim, um devoto fervoroso parece viver num
permanente estado de graça, marcado por uma gratidão constante por seu
santo protetor.
A devoção é, portanto, um registro de classiicação que atua como
ordenador da própria vida, atribuindo-lhe signiicado. E ela se expressa
materialmente, tanto na linguagem do devoto, na forma de falar ao santo
ou sobre o santo, em atos de louvor que se realiza para ele: cantos, orações,
ladainhas etc. E assim, chega-se às imagens, ou à interação dos devotos
com as imagens, seja pelo interesse metodológico de visualizar a relação
de devoção em operação, fazendo-se, construindo-se; seja num sentido
mais analítico, de tentar recompor uma gramática corporal, uma lingua-
gem, uma sintaxe da devoção.
A recuperação dessa trajetória de pesquisa, mais do que um alerta
para a condição da autora de neóita no estudo da arte, visa a trazer um
primeiro tema à discussão. Jacques Revel, na introdução do livro Jogos
de escala,12 enfatiza que a opção por escalas de análise mais ou menos
amplas produz resultados diferentes. Não apenas níveis distintos de res-
trição, mas bastante diferentes:

A escolha de uma escala particular de observação produz efeitos de


conhecimento, e pode ser posta a serviço de estratégias de conheci-
mentos. Variar a objetiva não signiica apenas aumentar (ou diminuir)
o tamanho do objeto, signiica modiicar sua forma e sua trama.13

Diante dessa proposta de jogos de escala que reconstroem um objeto


de estudo, um primeiro tópico para a discussão é a ideia da existência de
242 | Reflexões sobre arte e cultura material

efeitos de conhecimento por jogos de percurso. Isto é, a ideia de que um per-


curso de pesquisa geralmente produz uma sequência de questões, que, pela
incorporação das problemáticas contidas na literatura de um determinado
campo de discussões, vai se desenvolvendo num sentido especíico. Se esse
encadeamento de problemas por um lado facilita a discussão, por outro ten-
de a condicioná-la. Mas ao colocarmos em diálogo pessoas com trajetórias
de pesquisa diferentes, em espécies de jogos de percurso, pessoas efetivamente
dispostas a se deixar interpelar pelo outro, numa experiência de alteridade
acadêmica, seria possível, a meu ver, obter um rendimento próprio, num
processo que contribuiria para desmontar doxas, para encontrar novas ma-
neiras de perguntar, para estabelecer ângulos inéditos de abordagem. Uma
experiência de estranhamento, tão cara à Antropologia, dessa vez gerada
entre os próprios pares. Assim, por conta dos encadeamentos de percurso,
haveria uma diferença em chegar à temática da imagem pelas discussões da
arte e chegar à imagem pelas discussões da religião e do culto aos santos,
e é justamente uma tentativa de tomar essas diferenças como um efeito de
conhecimento produtivo que gostaria de explorar neste artigo.14

Apresentando o episódio

Voltemos então ao gesto restaurador de dona Cecília, às ambiguidades em


sua avaliação e a seus desdobramentos. Como foi dito, não apenas a imagem
da igreja de Borja, antes e depois da restauração, circulou, mas novas ima-
gens foram sendo produzidas a partir da aplicação da face do “Jesus restau-
rado” por sobre várias superfícies: obras de arte clássicas e contemporâneas
de renome, ícones da pop-art, objetos do cotidiano etc. As variadas formas
em que essa aplicação se deu pareciam apontar para avaliações ora positivas,
ora negativas, embora sempre jocosas, do gesto de dona Cecília.
Por exemplo, em muitas delas, como demonstrado na Figura 2, na
página seguinte, o Cristo de Borja aparece substituindo a face de Cristo
em outras pinturas, como se o “Jesus restaurado” então produzido fosse
uma nova versão (um mais entre tantas outras…) da face do Salvador.
Assim, a imagem de Borja foi aplicada como rosto de Cristo n’A Última
Ceia, de Juan Jueves, na Madonna Litta, de Leonardo da Vinci, no Ecce
Reflexões sobre a imagem sagrada | 243

Figura 2. O Cristo de Borja na Madonna


Litta, de Leonardo da Vinci.
Fonte: http://www.naosalvo.com.br/
compilado-do-meme-jesus-restaurado/

Homo, de Albrecht Dürer e até mesmo no monumento ao Cristo Reden-


tor, no Rio de Janeiro, dentre outros usos.
Outras transformações utilizando o Cristo de Borja no mundo das ar-
tes iam mais longe, usando-o como substituto não apenas de Cristo, mas
de outras faces em obras de arte famosas, como na Monalisa, de Leonardo
Da Vinci, n’O Grito, de Edvard Munch, ou no Beijo, de Gustav Klimt. Em
alguns casos, o Cristo de Borja não substituiu apenas um dos personagens
retratados, mas todos eles, como nas transformações da Criação de Adão, de
Michelangelo, ou da Última Ceia, de Leonardo da Vinci. Ou mesmo em
naturezas-mortas, como ao ocupar o lugar das lores em Os girassóis, de Vin-
cent Van Gogh (Figura 3). A partir dessas imagens, dona Cecília poderia ser
considerada menos como a produtora de uma nova versão da face de Cristo
e mais como uma desiguradora em potencial: qualquer obra que passasse
por sua mão restauradora se tornaria semelhante ao Cristo de Borja.
Uma variante que circulou bastante pelo Facebook trazia Cecília Gi-
ménez junto a pintores contemporâneos de destaque, que teriam revisi-
tado trabalhos famosos mais antigos, lhes dando uma nova interpretação.
Assim como Edouard Manet revisitou Rafael Sanzio; Pablo Picasso, Ve-
lasquez; David Hockney, Van Gogh e Fernando Botero, da Vinci; a sra.
Cecília teria revisitado García Martínez (Figura 4).
244 | Reflexões sobre arte e cultura material

Figura 3. O Cristo de Borja n’Os Girassóis,


de Van Gogh.
Fonte: http://www.revistadehistoria.com.br/
secao/artigos/a-arte-e-o-legado-de-cecilia-
de-borja

Figura 4. Sra. Cecília, seus “colegas” pintores e as reinterpretações que promoveram.


Fonte: https://www.facebook.com/FasDaDonaCeciliaRestauradoraDoCristoDeBorja

Esse tipo de blague produz um conjunto de homologias em que a


pintora de Borja se torna comparável a grandes criadores de Arte Moder-
na e Contemporânea, e seu trabalho, não mais um erro de restauro, mas
uma releitura intencional da obra de García Martínez. Simultaneamente,
atribui-se premeditação e intencionalidade à ação da senhora espanhola e
evidencia-se o alto grau de socialização em arte do(s) autor(es) da monta-
gem, capaz(es) de estabelecer essas conexões e de construir a série de refe-
Reflexões sobre a imagem sagrada | 245

rências. As homologias (a:b::c:d) são interessantes, porque, ao estabelecer


relações, mantêm uma sutil possibilidade de decalagem quanto à avaliação
dos resultados dos trabalhos: se o de dona Cecília for considerado menor
diante do demais, talvez a razão possa estar na própria qualidade da obra
original, de García Martínez, também inferior aos clássicos revisitados.
Note-se, entretanto, que as obras dos outros pintores não se deram por
sobre os quadros originais e, portanto, não os alteraram.15
Quanto ao tratamento das transformações do Cristo de Borja não
apenas como formas de humor, mas como intervenções artísticas, em se-
tembro de 2012 duas centenas de pessoas atenderam à convocatória do
Colectivo Wallpeople16 e colocaram suas fotomontagens impressas com o
Ecce Homo de Borja em exposição, em Barcelona, num muro próximo ao
Centro de Cultura Contemporânea. Segundo um dos organizadores, o
objetivo do evento era fomentar a arte e a criatividade, e apoiar Cecília
Giménez, numa “eccehomenaje”. As criações do universo virtual ganharam
aí concretude e foram exibidas como obras de arte.17 “We free art”, diz um
cartaz aixado junto às imagens: o gesto restaurador e seus desdobramen-
tos são lidos como uma libertação de cânones artísticos, como ousadia,
espontaneidade e democratização da arte, e não como equívoco.
As montagens, na exposição e na internet, não envolveram apenas as
artes plásticas, mas assumiram conotações mais populares, ou mais ligadas
ao universo pop. O Cristo de Borja apareceu sobrepondo-se a faces icô-
nicas, como as de Marylin Monroe, Che Guevara, Mickey Mouse e Jim
Morrison. Ecce Homo restaurado foi considerado semelhante a um símio,
e passou a ser chamado, principalmente nos EUA, de Ecce Mono, título
sob o qual foi associado a outros personagens: o ET do ilme de Steven
Spielberg; Homer Simpson, o patriarca do seriado de TV Os Simpsons,
Chewbacca, o alienígena da série cinematográica Guerra nas Estrelas, de
George Lucas, ou Mr. Bean, o personagem desastrado interpretado na
televisão e no cinema pelo ator inglês Rowan Atkinson.18 Note-se que em
alguns desses casos já não se trata de trocar a face de obras de arte conhe-
cidas pela do Cristo de Borja, mas de fazer o movimento inverso, de trocar
a imagem da parede da Espanha por outros personagens conhecidos, do
cinema e da televisão, evidenciando o caráter de “coisa estranha” ou de
“trapalhada” do resultado da restauração.
246 | Reflexões sobre arte e cultura material

Figura 5. O Cristo de Borja como fantasia de Halloween.


Fonte: https://www.facebook.com/ElCristoDeBorja

E uma das maiores evidências do sucesso do Cristo de Borja nos mais


diversos registros, uma espécie de culminância em sua carreira de meme,
foi sua transformação em fantasia tridimensional de Halloween nos EUA,
quando, segundo a agência de notícias EFE, foi uma das opções de maior
repercussão em 2012.19
Os impactos midiáticos e internáuticos do Cristo de Borja, verdadeiro
fenômeno de massa, se izeram sentir na vida cotidiana da cidade e na de
dona Cecília. Tanto as críticas à restauração como seu sucesso provocaram
o assédio maciço da imprensa à senhora, que, acossada, passou a não sair
à rua, teve a casa protegida por dois carros da Guarda Civil e precisou
recorrer à ajuda médica para acalmar os nervos. A cidade também foi
rapidamente impactada, pois passou a receber milhares de turistas, dis-
postos a visitar o “Jesus restaurado” de Borja em sua parede, tão dispostos
que aceitaram pagar a entrada de um euro, que a Fundação Hospital Sancti
Spiritus, proprietária do santuário, passou a cobrar pelo acesso à Igreja.
Reflexões sobre a imagem sagrada | 247

Nesse sentido, pode-se considerar que a intervenção de dona Cecília


tenha feito renascer a imagem e mesmo a cidade, recolocando-a no mapa
turístico, pois esta rapidamente passa a ser deinida na Wikipedia como “a
cidade do Cristo restaurado de Borja”. Posição que é defendida pelo jor-
nalista Roberto Kaz em crônica de O Globo (a qual escreveu como sendo
a própria imagem):

Hoje o Santuário da Misericórdia virou ponto de romaria. A cidade


de Borja recebe mais turistas por minha causa. As pessoas, quando
me veem, gargalham na minha frente. Não é fácil; sou um deboche
público. Ainda assim, sou público. Faço, pois, um apelo. Na semana
passada, uma equipe de restauradores me visitou, me avaliou, concluiu
que posso ser restaurado. Mas ninguém se lembrou de perguntar: eu
quero ser restaurado? 20.

A crônica de Kaz demonstra sintonia com o episódio pois, de fato,


apesar da avaliação de restauradores de que a imagem poderia ser recupe-
rada, a cidade optou por mantê-la em seu estado atual. No mesmo sentido,
e em apoio a dona Cecília, mais de vinte mil pessoas assinaram petições
na internet para que o trabalho não fosse restaurado. As últimas notícias
sobre o episódio, que parece longe de se encerrar, são que, diante da co-
brança de ingressos para ver sua restauração, a senhora espanhola passara
a demandar participação nos lucros21 e, posteriormente, noticiou-se sua
intenção de promover uma exposição de seus próprios trabalhos, visto
que “desde menina sempre se interessara por pintura”. Por outro lado, a
fundação que é proprietária do santuário registrou a nova face, que agora
é utilizada em rótulos de vinho da região e em outros produtos.

A “restauração espontânea” como um iconoclash

As avaliações sobre o Cristo de Borja comprendiam diferentes posições


sobre a imagem ter sido destruída ou reconstruída. O resultado da inter-
venção desdobrou-se, imagem sobre imagens, num processo de realimen-
tação frenética de referências marcado pela jocosidade. A ambiguidade na
248 | Reflexões sobre arte e cultura material

avaliação do gesto de D. Cecília permite-nos classiicar o caso como um


iconoclash, nos termos propostos por Bruno Latour na abertura do catálo-
go da exposição de mesmo nome:

Iconoclasmo é quando sabemos o que está acontecendo no ato de


quebrar [uma obra de arte] e quais são as motivações para o que se
apresenta como um claro projeto de destruição; iconoclash, por outro
lado, é quando não se sabe, quando se hesita, quando se é perturbado
por uma ação para a qual não há maneira de saber, sem uma investi-
gação maior, se é destrutiva ou construtiva.22

Com o objetivo de problematizar a ânsia de destruição de imagens,


mas também a paixão por elas, bem como de compreender a condenação
de sua mediação no acesso ao real, a exposição Iconoclash. Beyond the Image
Wars in Science, Religion and Art, realizada em 2002, no Center for New
Art and Media, em Karlsruhe, Alemanha, reuniu imagens oriundas de três
fontes contemporâneas de produção: ciência, religião e arte contemporâ-
nea. Imagens que, colocadas em situação de interferência mútua, permi-
tiriam, segundo os curadores, desbloquear determinados entendimentos
nas relações ambíguas que os homens e mulheres mantêm com elas (o
quê, seguindo argumentos deste artigo, poderíamos qualiicar de um jogo
de percurso entre imagens, por meio de seu encontro numa exposição).
Em seu texto, Latour propõe uma classiicação rudimentar dos gestos
iconoclásticos,23 da qual podemos nos valer no entendimento de nosso
caso. O autor elenca, grosso modo, cinco tipos de pessoas que praticam esses
gestos: as pessoas A, que odeiam todo o tipo de imagem, numa forma pura
do iconoclasmo clássico;24 as pessoas B, que são contra a imagem congela-
da, mas não contra as imagens em geral;25 as pessoas C, que não são contra
as imagens, exceto as de seus oponentes, as quais atacam;26 as pessoas D,
que são aquelas que quebram imagens inadvertidamente; e, por im, as
pessoas E, que ridicularizam os iconoclastas e os iconóilos, pois duvidam
dos quebradores de ídolos tanto quanto dos cultuadores de ícones.27
Dos cinco tipos de pessoa elencados por Latour, três seriam identiicá-
veis no episódio do Cristo de Borja. Na classiicação proposta, dona Cecília
seria uma pessoa tipo D, isto é, aquela que destrói imagens inadvertidamente,
Reflexões sobre a imagem sagrada | 249

uma vândala inocente. Diferente dos vândalos normais por não terem a míni-
ma ideia de que estavam destruindo alguma coisa, os vândalos inocentes

estavam adorando imagens e protegendo-as da destruição, e mesmo


assim são acusados de tê-las profanado e destruído! Eles são, por as-
sim dizer, iconoclastas em retrospecto. O exemplo típico é o dos restau-
radores, acusados por alguns de “matar com ternura” […]: Ao restaurar
as obras de arte, embelezar cidades, reconstruir sítios arqueológicos,
eles os destruíram – dizem seus oponentes – a ponto de parecerem os
piores iconoclastas, ou ao menos os mais perversos.28

“Matar com ternura… o exemplo típico é o dos restauradores”: La-


tour nos lembra que a ambiguidade restauração – destruição não estaria
apenas no gesto de dona Cecília, mas seria inerente a toda e qualquer
restauração, que é sempre, mesmo que um pouco, destruição e recons-
trução. A tensão intrínseca destruição/reconstrução constitutiva do gesto
restaurador é reconhecida até mesmo pelas diferentes escolas de restauro,
que inclusive relacionam-se aos diversos estilos nacionais de estabelecer
políticas de preservação de patrimônios.29 Mais do que com ambiguida-
des, portanto, parece-me que estamos lidando com ambivalências, coisas
que são uma e outra ao mesmo tempo, e então se trata menos de deinir o
que o gesto realmente é, e mais de lidar com ele nessa dupla dimensão.
Os demais gestos iconoclásticos associáveis a nosso caso relacionam-
-se ao desdobramento do Cristo de Borja em novas imagens. A produção
de uma cascata de imagens envolveria pessoas tipo B e pessoas tipo E. Pes-
soas tipo B são aquelas que são contra as imagens congeladas, mas não são
contra as imagens, ou seja, pessoas que apontam para a transitoridade das
imagens:

[Elas] não acreditam ser possível nem necessário se livrar das imagens.
O que eles combatem é o congelamento das imagens, ou seja, extrair
uma imagem do luxo, e se tornar fascinado por ela, como se isso fosse
suiciente, como se todo movimento tivesse parado.

O que eles buscam não é um mundo livre de imagens, puriicado de


todos os obstáculos, livre de todos os mediadores, mas, ao contrário,
250 | Reflexões sobre arte e cultura material

um mundo cheio de imagens ativas, mediadores em movimento. Eles


não querem que a produção de imagens pare para sempre […] eles
querem que ela continue tão rápida e fresca quanto possível.

Eles sabem que “a verdade é imagem, mas não há uma imagem da


verdade.” Para eles, a única maneira de se ter acesso à verdade, à obje-
tividade e à santidade é passando rapidamente de uma imagem para
a outra, e não sonhando o sonho impossível de se saltar para um ori-
ginal não existente.30

Assim, as pessoas B seriam como:

Jesus expulsando os mercadores do Templo; Bach chocando os ouvi-


dos da congregação de Leipzig e expulsando a música obtusa; […] ou
o sábio tibetano apagando um toco de cigarro numa cabeça de Buda
para mostrar seu caráter ilusório, [produzindo danos nos ícones como]
uma injunção caridosa para redirecionar a atenção para outras imagens
sagradas, mais novas, mais frescas – não para icar sem imagens.31

E na cascata de imagens, marcada por uma hilaridade geral, nota-se


a ação das pessoas tipo E, que:

[…] adoram manifestar irreverência e falta de respeito, eles querem


gozação e zombaria, eles exigem direito absoluto à blasfêmia e o fazem
de um modo feroz, rabelaisiano […], eles mostram a necessidade da
insolência, a importância do que os romanos chamavam pasquinadas –
tão necessárias para um senso saudável de liberdade civil.32

O recurso ao humor pelos tipo E funciona como um artifício para


demarcar seu distanciamento crítico com relação ao peso que determina-
das pessoas atribuem às imagens:

Existe um direito de não acreditar e outro, ainda mais importante, de


não ser acusado de acreditar ingenuamente em algo. Talvez não exista
isso a que chamamos um crédulo. Com exceção do raro destruidor de
Reflexões sobre a imagem sagrada | 251

ícones que acredita na crença – e que, estranhamente, acredita em si


próprio como o único não crédulo. Esse agnosticismo saudável, amplo,
popular e indestrutível pode ser a fonte de muita confusão porque, aqui
também, as reações que os E desencadeiam são indistinguíveis daque-
las criadas pelos atos de destruição-regeneração dos As, Bs, Cs e Ds.33

Ou seja, no episódio do Cristo de Borja encontram-se gestos que pa-


recem dar concretude a muitas das questões que perpassam os debates
acadêmicos contemporâneos sobre as imagens, na tentativa de entendi-
mento da complexidade das relações em jogo.

Desfigurações não blasfemas e imagens devocionais

Mas para entender as repercussões do Cristo de Borja, seria importante


considerar também algumas formas de tratamento dadas a episódios se-
melhantes ou assemelháveis a ele que não foram acionadas. Diferente-
mente dos casos que Jeanne Favret-Saada tem analisado, de condenação
religiosa a obras de arte, o ato de dona Cecília e a cascata de imagens
gerada a partir dele não foram tratados como blasfêmias.34 Isso signiica,
se seguirmos as deinições propostas pela autora, que eles não foram so-
cialmente avaliados como atentados à divindade.35
Por que a categoria blasfêmia não foi atribuída ao Cristo de Borja?
Certamente a falta de intenção destruidora no gesto de dona Cecília, sua
vontade manifesta de fazer um reparo na pintura, apesar do resultado
inesperado, pesaram para que ela não fosse tachada de blasfemadora. Mas
há outra pista a seguir: vemos que nos comentários e artigos que circula-
ram sobre o caso não havia referências a usos religiosos da imagem. Há
obviamente sua naturalização como arte sacra, enquanto uma imagem do
Cristo; o tratamento dado à obra como o de um patrimônio, de valor afe-
tivo, mais do que artístico, da cidade de Borja, e o fato dela estar pintada
na parede de um santuário. Mas não há referências a práticas religiosas em
seu entorno que tenham sido frustradas com a metamorfose. A situação
de abandono em que se encontrava – malconservada e pouco visitada, em
uma pequena igreja local – nos remete a um certo “desuso”, ou a uma certa
252 | Reflexões sobre arte e cultura material

“des-animação” de Ecce Homo, que justamente a transformação em Ecce


Mono veio reavivar. Só que a reanimação não se deu enquanto uma ima-
gem religiosa: não são romeiros ou pagadores de promessas que passam a
visitá-la, não são interesses religiosos que motivam os visitantes, mas é o
humor e o inusitado da situação que atraem os turistas para serem foto-
grafados a seu lado. Nesse sentido, é sintomático que a imagem, apesar ter
atraído o triplo de visitantes em relação a anos anteriores, tenha permane-
cido coberta nas festas de São Bartolomeu, celebradas em Borja no inal
de agosto, pois o pároco queria evitar “a zombaria (la mofa) dos curiosos
que desejavam ver o resultado da restauração”.36
O silêncio quanto a possíveis funções religiosas do Cristo de Borja nos
remete às discussões sobre a secularização da Europa contemporânea. Se
as análises de Favret-Saada sobre os casos de blasfêmia partem de uma
indagação – o que permitiria o julgamento religioso de produções artísti-
cas –,37 em nosso caso, poderíamos inverter sua pergunta e indagar o que
permitiria o tratamento exclusivamente artístico de obras de cunho reli-
gioso, desvestidas de suas potências sagradas, ou preservando-as apenas
residualmente.
Nesse sentido, podemos retomar as formulações de alguns críticos do
processo de secularização da imagem por meio de seu enquadramento sob
o prisma de obra de arte. O historiador da arte Hans Belting, ao questio-
nar os fundamentos e o processo de constituição de sua própria discipli-
na, vai produzir uma instigante interpretação desse processo. Segundo o
autor, a história da arte teria surgido na Alemanha do século XIX como
uma disciplina de cunho cientíico de pretensões universalistas, mas na
verdade teria produzido um conhecimento datado e etnocêntrico.38 Pois
suas análises estariam baseadas em parâmetros estabelecidos no horizonte
da Europa Renascentista, a época da arte, que teria se iniciado na Florença
do século XV, com a invenção do quadro, e teria vigido até as múltiplas
manifestações artísticas do século XX, que explodem com os cânones em
vigor. Antes disso, até a Idade Média, haveria o tempo das imagens de culto,
em que as funções religiosas da imagem deiniriam modalidades de uso
e critérios estéticos de avaliação.39 Para Belting, a história da arte teria se
constituído “secularizando” as teorias da imagem, legitimando o discurso
de especialistas em estética por oposição ao de teólogos e construindo
Reflexões sobre a imagem sagrada | 253

uma espécie de monopólio das teorias da arte na interpretação das ima-


gens. Porém, o estudo dos usos e formas de interpretação do objeto reli-
gioso medieval em seus próprios termos, como demonstra em Semelhança
e presença,40 é capaz de provocar tensionamentos nas classiicações e dei-
nições artísticas, evidenciando suas limitações, como, por exemplo, quanto
às noções de representação e de belo, quanto às teorias da percepção etc.
Fica evidente para Belting que a história da arte com pretensões univer-
sais revela-se incapaz de lidar com estéticas e teorias dos objetos que não
partam da lógica ocidental moderna.41 Diante disso, o autor vai defender
o im da história da arte e sua substituição por uma história das imagens,
de abrangência mais ampla, com uma maior abertura para capturar teorias
e estéticas de outras sociedades ou de outros períodos da história.42
Preocupado, como Belting, em ampliar as possibilidades de análise
da imagem, em repensar sua dimensão social e em reletir sobre múltiplos
critérios de valor, o medievalista Jean-Claude Schmitt, no entanto, irá se
demarcar da periodização dura proposta por esse autor. Para Schmitt, mais
do que um processo de substituição de uma função cultual medieval por
uma função artística moderna, haveria, quanto à imagem, entrelaçamen-
tos e hierarquizações, coexistências e superposições entre essas funções:

Hans Belting tem boas razões para caracterizar, senão a totalidade,


ao menos uma grande parte das imagens medievais por sua função
“cultual”. Esse traço seguramente as distingue da pintura de cavale-
te da época moderna, em que as funções estéticas e profanas se de-
senvolveram cada vez mais. Mas é preciso nuançar ainda mais: nem
todas as imagens medievais eram objeto de um culto. […] Convém
distinguir também toda uma gama de formas cultuais diferentes […].
Inversamente, as imagens modernas não são alheias a todas as formas
de culto, religioso ou profano; a visita a um museu ou a uma grande
exposição de arte assume por vezes em nosso tempo o aspecto de um
ato ritual ao qual a pressão social confere um caráter de obrigação.
[…]Não convém, desse modo, opor o culto à arte, mas, por outro lado,
ver como um assume o outro e se realiza plenamente graças a ele. […]
Em toda época há de fato diversos tipos de imagem tendo todos eles
uma pluralidade de funções possíveis.43
254 | Reflexões sobre arte e cultura material

É a partir dessa possibilidade de coexistência de diferentes funções


ou lógicas de interpretação das imagens, mesmo que por vezes obscureci-
das, que gostaria de tratar o Ecce Homo/Cristo de Borja não apenas como
uma obra da arte, mas como uma imagem de culto, apresentando uma
leitura alternativa da intervenção dedona Cecília ausente das notícias so-
bre o caso. Em diálogo com a literatura que ressalta as singularidades da
imagem sagrada, com usos e sentidos distintos da imagem artística, pro-
ponho que sua ação talvez possa ser melhor entendida se for vista menos
como uma tentativa ingênua de restauro de uma senhora que sempre se
interessou por pintura (um restauro amador de uma pintora amadora), e
mais como uma prática de cuidado de uma devota zelosa.
A antropóloga Maria Lúcia Montes, no catálogo de uma exposição
que organizou sobre a estatutária de São Cosme e São Damião, fornece-
-nos uma pista importante para entender a singularidade da imagem reli-
giosa em seus usos:

Impossível […] guiar-se por critérios formais e estilísticos canônicos


da História da Arte. […] Daniicada sua policromia ou mutiladas em
suas partes mais frágeis, essa pequenas esculturas, evidentemente já
apropriadas por santeiros populares, mostram sinais de visíveis inter-
ferências em suas camadas acumuladas de tinta. Seria fácil acusar a
descaraterização dessa imaginária erudita ou mesmo ceder à tentação
de decapar as peças. […] Então, tornou-se bem claro que era bem dis-
so que se tratava [a exposição]! Eram tais “interferências” que acaba-
vam por revelar o verdadeiro e profundo signiicado daquelas peças…
Tratava-se de mostrar na exposição pequenas obras de arte, mas de
uma arte de devoção, formas de representação de iguras sagradas que
se abriam para insuspeitados veios do imaginário do povo brasileiro. E
as camadas de tinta deixavam então de ser interferência que descaracteriza
para evidenciar o gesto devoto de quem, ao dar uma nova demão de pin-
tura a uma peça, por assim dizer, renovasse as vestimentas de uma velha
imagem da capela de um engenho antigo ou de um oratório familiar […].44

Ou seja, a autora nos lembra que as concepções em torno dos usos,


das formas e da estética da imagem de devoção não são subsumíveis ou
Reflexões sobre a imagem sagrada | 255

coincidentes com o seu tratamento enquanto uma obra de arte. Os usos


religiosos de uma imagem muitas vezes entram em choque com sua clas-
siicação como arte – e com as implicações que acompanham essa catego-
ria e suas subdivisões, como arte sacra e patrimônio; implicações tais como
exposição em museus, circulação em mercados de bens simbólicos, afasta-
mento de usos rituais etc. Escalas de valores e lógicas de uso diferentes en-
tram em jogo, e muitas vezes, em choque. Devotos mantêm relações com
as imagens que envolvem proximidade, manuseio, deslocamento, exposi-
ção às intempéries, em atos como pegá-las, beijá-las, molhá-las, movê-las.
De novo, a ambivalência restauração/destruição: do ponto de vista de um
devoto, a imagem perfeitamente restaurada pode ser considerada danii-
cada, porque estaria neutralizada em suas potências sagradas, que muitas
vezes se manifestam em suas marcas.
Por outro lado, o fato de D. Cecília ser uma octogenária pode não
ser casual. Se nas matérias de jornal esse dado aparece como indício de
uma possível inconsciência na ação da senhora, ele pode estar associado
a certas dimensões da vida cotidiana de uma pequena cidade espanhola
no século XXI, como um sinal de quais segmentos sociais se preocupam
com as imagens das igrejas, ou têm tempo e interesse de se ocupar de-
las: senhoras de idade provecta, viúvas na terceira idade. Nesse sentido,
a intenção de dona Cecília seria menos a de realizar uma restauração da
imagem de Ecce Homo, e mais como a de exercitar seus cuidados com o
Cristo de sua igreja, uma limpeza daquele jesuizinho abandonado na pa-
rede, coitado, tão largado e tão sujinho, desbotado, tornado indigno (e o
uso dos diminutivos aqui é intencional, pois tenta provocar uma sensação
de proximidade e intimidade que se encontram descritas nas etnograias
sobre devoção). Sua irmã, Esperanza Giménez, que em alguns momentos
do episódio operou como sua porta-voz diante da imprensa, nos aproxi-
ma dessa possibilidade:

Lo hizo con toda la buena fe del mundo. Solo quiso darle un poco de color,
ya que la iglesia está en muy malas condiciones, hay goteras y salitres y
el Cristo se estaba deteriorando. […] Siempre ha tenido la pasión de la
pintura. Y lo hizo para que la iglesia quedara más bonita, para ayudar.45
256 | Reflexões sobre arte e cultura material

Há uma certa singeleza no gesto da senhora espanhola que a aproxi-


ma de outras senhoras e senhores de outros lugares: pessoas que bordam
roupas, que confeccionam perucas em cabelo natural, que doam seus ca-
belos para isso, que vestem as imagens de procissão para suas saídas, que as
enfeitam como itas e lores de seus quintais, que conversam com elas etc.
Dona Cecília então seria menos uma restauradora espontânea e mais uma
devota zelosa, hipótese que uma etnograia detalhada em Borja poderia
nos ajudar a explorar.

Notas
1
Agradeço a Patrícia Reinheimer e às demais colegas do CULTIS/UFRRJ o convite e
os estímulos para apresentar este trabalho. E a Daniel Bitter, pela enorme gentileza de
me ajudar com a edição das imagens. Este texto é fruto do projeto “Devoção e Formas
de sociabilidade nas festas e no cotidiano”, inanciado pelo programa Jovens Cientistas do
Nosso Estado, da Fundação de Amparo à Pesquisa Carlos Chagas Fo/FAPERJ.
2
Para que os leitores possam eventualmente localizar esses debates, eles têm sido ali-
mentados por livros como os de Strathern, 1990 e 1999; homas, 1991; Weiner, 1992;
Gell, 1998; Severi, 2007, ou em coletâneas tais como as de Appadurai, 1990; Marcus &
Myers, 1995; Miller, 1998 e 2005; Myers, 2001; Westermann, 2005; Tilley, 2006; Henare,
Holbraad, & Wastell, 2007; entre outros. Encontram-se ainda em números especiais de
periódicos clássicos da área, como o de Sciences Humaines, da primavera de 2002; o n. 165
de L’Homme, de 2003; o n. 2 do v. 54 de Social Analysis; o n. 13 de Gradhiva, de 2011; ou
o v. 14, de 2007, de Archeologial Dialogues; além, obviamente, de artigos em vários perió-
dicos de destaque na área. Ou ainda se torna visível no lorescimento de periódicos mais
especializados na temática, como Res – Anthropology and Aestethics, Journal of Material
Culture e Material Religion.
3
Para uma síntese dessas distintas abordagens, ver Tilley et al., 2006.
4
Como, por exemplo, no diálogo que o sociólogo Pierre Bourdieu e o artista plástico
Hans Haacke travaram em Livre-troca (Bourdieu & Haacke, 1995).
5
Westermann, 2005, p. vii.
6
El País, 21/08/2012.
7
El País, 23/08/2012.
8
Segundo a Wikipedia e o Dictionary.com, o termo meme vem de memético (imitativo)
e tem sua origem no livro do biólogo britânico Richard Dawkins, o Gene Egoísta, de
1976. Usado para unidades de evolução cultural que podem se autopropagar, meme se
refere a uma ideia ou elemento de comportamento social transmitido entre gerações em
Reflexões sobre a imagem sagrada | 257

uma cultura, especialmente por imitação. Ou a um item cultural que é transmitido por
repetição, em maneira análoga à transmissão biológica de genes. As imagens, os vídeos
e as músicas que se propagam rápida e maciçamente pela internet, muitas vezes com
alterações cômicas, têm sido chamados de meme (http://dictionary.reference.com/brow-
se/meme; http://en.wikipedia.org/wiki/Meme, capturado em 17/01/2013). Agradeço a
minha orientanda, Izabella Bosisio, o apoio na busca dessas deinições.
9
O interesse pelo culto aos santos levou à criação do GPAD – Grupo de Pesquisa em
Antropologia da Devoção. Para maiores informações, consultar: http://dgp.cnpq.br/
buscaoperacional/detalhegrupo.jsp?grupo=0202703R0U4BLX.
10
Joaquim: – “Toda vez que venho aqui, toco no quadro de Santo Antônio, que é um
quadro muito antigo, que tem uma grande energia, que é energizado. Passo e toco, agrade-
cendo por ter podido vir mais uma vez.” Renata: – “Mas então você não pede?” Joaquim:
– “Peço também. A gente está sempre pedindo, porque estamos sempre carentes. Hoje,
por exemplo, pedi pela pessoa que me trouxe até o convento, porque ela está muito mal,
teve um derrame e tem quarenta anos… E está sendo cuidada por uma ilha de 17 anos
que teve que parar de estudar para tomar conta da mãe, então é uma pessoa que precisa
muito, então eu pedi por ela”. ( Joaquim, entrevista realizada em 7/6/2001 no Convento
de Santo Antônio, Largo da Carioca, centro do Rio de Janeiro). É preciso reconhecer que
trabalhos dos anos 1980 dedicados às religiões populares, como os de Carlos Rodrigues
Brandão e os de Rubem César Fernandes, apontavam na direção dessa complexidade,
embora não tenham ampliado suas relexões.
11
As formulações sobre devoção aqui apresentadas sumariam os capítulos 9 e 10 de meu
livro A dinâmica do sagrado (Menezes, 2004).
12
Revel, 1996.
13
Ibid., p. 20.
14
Um tipo de jogo como esse não implica apenas em vantagens. Ele também pode trazer
problemas: há o risco da ingenuidade na “descoberta permanente da pólvora”, isto é, de,
por desconhecimento das especiicidades de um campo de discussões, refazer questões
que há muito já foram tratadas, não conhecendo o acúmulo de conhecimento diante de
determinado tema ou conceito. Para um jogo de percurso, há um esforço de tradução
e socialização que precisa ser feito, sob pena de pensarmos estar tratando das mesmas
coisas quando estamos tratando de coisas diferentes, e vice-versa. Mesmo assim, acredito
que este livro, bem como o seminário que lhe deu origem, sejam ocasiões propícias para
ensaiar jogos de percurso e apostar em seus resultados.
15
Agradeço a Marina Menezes Leite ter-me apontado essa nuance.
16
O coletivo se apresenta assim em sua página na internet: “Wallpeople es un proyecto de
arte colaborativo con base en Barcelona que invita a las personas a crear y a formar parte de un
momento único en un espacio urbano determinado. Nuestras acciones tienen como objetivo la
creación de obras callejeras irrepetibles gracias a las aportaciones de todos los participantes. Una
de las razones de ser de Wallpeople es devolver el arte a las calles y reivindicar el espacio público
como medio de expresión y de interacción ciudadana. Creemos que la creatividad es libre y no
debe quedarse encerrada en los museos” http://wallpeople.org/index.php/homenaje-a-ecce-
homo/, capturado em 28/01/2013.
258 | Reflexões sobre arte e cultura material

17
El País, 07/09/2012.
18
A representação como Mr. Bean pode estar associada a um ilme deste personagem, Mr.
Bean, o ilme, de 1997, em que ele, como funcionário de um museu londrino, vai aos Es-
tados Unidos para buscar um quadro para uma exposição e, no processo suja uma obra de
arte, ao espirrar sobre ela, e a deforma, ao tentar limpá-la. Depois tenta resolver o estrago
com um desenho seu, de caneta esferográica, por sobre a face do quadro. Essa associação
entre “trapalhadas” está presente de forma explícita em muitos comentários sobre o Cristo
de Borja em redes sociais, mas foi Ilana Goldenstein, a quem agradeço, que primeiro me
indicou a referência.
19
Blogue Vírgula, 31/10/2012.
20
Kaz, Roberto. Revista O Globo, 09/09/2012, p. 17.
21
La decisión [de cobrar ingresso para visitar a imagem] no ha gustado ni a la octogenaria
artista ni a su familia, que han decidido tomar acciones legales por entender que Cecilia, que
apenas sale a la calle por culpa de la repercusión mundial del eccehomo, debería cobrar derechos
de autor por la obra, puesto que la fundación recibe ingresos por un trabajo que ella ha realizado.
(El País, 19/09/2012).
22
Latour, 2008, pp. 112-113.
23
Latour, 2008, p. 128.
24
Os As são: “aqueles que querem libertar os crédulos – os que eles julgam ser crédulos –
do falso vínculo com ídolos de todos os tipos e forma […] [Eles] acreditam que não só é
necessário, mas também possível, prescindir inteiramente de intermediários e ter acesso
à verdade, à objetividade e à santidade. Eles pensam que sem estes obstáculos ter-se-á
inalmente acesso mais suave, mais rápido, mais direto à coisa real.” (Latour, 2008, p. 129).
25
“Os Bs [...] causam devastação nas imagens, rompem costumes e hábitos, escandalizam
os devotos […]. Mas a enorme diferença entre os As e os Bs [...] é que estes não acreditam
ser possível nem necessário se livrar das imagens. O que eles combatem é o congelamento
das imagens, ou seja, extrair uma imagem do luxo, e se tornar fascinado por ela, como
se isso fosse suiciente, como se todo movimento tivesse parado.” (Latour, 2008, p. 130).
26
“Os Cs também querem desacreditar, desencantar, destruir ídolos. [...] [Mas ao con-
trário dos As e dos Bs, eles não têm nada contra as imagens em geral: eles só se opõem à
imagem à qual seus oponentes aderem com mais força. É o bem conhecido mecanismo de
provocação: para destruir alguém com rapidez e eiciência máximas, basta atacar o que é
mais adorado, o que se tornou o repositório de todos os tesouros simbólicos de um povo.”
(Latour, 2008, p. 132).
27
“Eles desconiam de quaisquer distinções marcadas entre os dois polos; eles exercem
sua ironia devastadora contra todos os mediadores; não que queiram livrar-se destes, mas
porque estão muito conscientes de sua fragilidade.” (Latour, 2008, p. 135).
28
Latour, 2008, p. 134. Grifos da autora.
29
Gonçalves, 1988. No caso da Espanha, lembro-me de uma visita guiada à restauração
do pórtico da catedral de Santiago de Compostela, que iz em julho de 2009, em que a
guia nos explicou como a dimensão policromada das imagens era identiicada, e passava a
ser mencionada em registros, mas não era reproduzida pois, conforme foi dito, a política
Reflexões sobre a imagem sagrada | 259

de restauração espanhola não permitia a repintura, mesmo que para o retorno a cores
originais. Pobre dona Cecília! Justo num país com essa concepção de patrimônio foi exer-
citar seus cuidados!
30
Latour, 2008, p. 130.
31
Latour, 2008, p. 131.
32
Latour, 2008, p. 135.
33
Ibid., pp. 135-136.
34
Favret-Saada, 1994 e 2007. A única referência a blasfêmia que encontrei no material
levantado foi feita por María Giménez, irmã de dona Cecília, referindo-se, contrariada,
à falta de respeito das variantes cômicas lançadas na internet, mas não à restauração de
Borja (El País, 25/08/2012). A Igreja não usou a categoria para se referir ao fato.
35
Favret-Saada, 1994, p. 29.
36
El País, 23/08/2012.
37
Favret-Saada, 1994, p. 27.
38
Belting, 2012, p. 32.
39
Belting, 1988.
40
Ibid.
41
Belting, 2005.
42
Belting, 1988 e 2012.
43
Schmitt, 2007, pp. 44-45.
44
Montes, 2010, pp. 18-20. Grifos da autora.
45
El País, 23/08/2012.

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Figuras extras

https://www.facebook.com/photo.php?fbid=282816175161841&set=a.2698304
29793749.54119.269828149793977&type=1&theater [Halloween]

https://www.facebook.com/photo.php?fbid=270167173093408&set=a.2698304
29793749.54119.269828149793977&type=1&theater [Cristo Redentor]
Reflexões sobre a imagem sagrada | 263

https://www.facebook.com/photo.php?fbid=270962589680533&set=a.2700826
79768524.54191.269828149793977&type=1&theater [O Grito, de Munch]

https://www.facebook.com/FasDaDonaCeciliaRestauradoraDoCristoDeBorja

https://www.facebook.com/photo.php?fbid=280743902038968&set=a.2805991
58720109.62055.280597732053585&type=1&theater [Figura 4, hi art]

https://www.facebook.com/photo.php?fbid=280985135348178&set=a.2805993
32053425.62056.280597732053585&type=1&theater a criação de adão.

http://www.naosalvo.com.br/compilado-do-meme-jesus-restaurado/ Munch &


Durher

https://lh6.googleusercontent.com/-SaB968u6u7o/UD3YZKlgV4I/AAAAA
AABZU/GwgdjAveSVY/s662/restoration_he_Kiss_Gustav_Klimt.jpg [Klimt]

http://fantasticocenario.com.br/2012/08/22/idosa-restaura-cristo-de-borja-a
sua-propria-versao/ [Chewbacca]

http://arte-factoheregesperversoes.blogspot.com.br/2012_08_01_archive.html
[Mr. Bean]
Este livro foi impresso em papel ofset 90g,
com tipos Adobe Caslon e Trade Gothic,
pela psi7, em São Paulo.

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