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LITERATURA - Profª.

ISABEL VEGA - AULA 13

MODERNISMO – 2ª FASE – PROSA – GRACILIANO RAMOS

TEXTO I: Neorrealismo – O regionalismo de 30

“Há uma miséria maior do que morrer de fome no deserto: é não ter o que comer na terra de Canaã.”
José Américo de Almeida, em A bagaceira.

A publicação, em 1928, do romance A bagaceira, de José Américo de Almeida, dá início a uma nova
tendência na literatura brasileira. Essa obra retrata os contrastes humanos e sociais existentes entre aqueles
que moram no sertão e aqueles que trabalham nos engenhos. Apresenta personagens condicionadas pelo
espaço em que se encontram, aprisionadas pela dura realidade da seca nordestina
Essa nova tendência da narrativa ficcional pode ser vista, na verdade, como uma retomada de dois
diferentes momentos do romance brasileiro: o regionalismo romântico e o realismo do século XIX. A população
nordestina passa a ser apresentada de modo fiel à realidade em que se encontra e não mais idealizada, como
ocorria nos romances românticos. Por essa razão, o romance regionalista, segunda fase do Modernismo,
também passa a ser designado neorrealista.
Os escritores pretendiam, com essa nova maneira de abordar a criação narrativa, retratar uma
realidade social ainda desconhecida nacionalmente. Era preciso denunciar a vida sacrificada e desumana do
sertanejo, e identificar o tipo de estrutura socioeconômica viciada que tinha como sustentáculo a política do
coronelismo nordestino.
O Brasil vê surgir, entre 1930 e 1945, uma geração de escritores comprometidos com um novo realismo
que mostra o ser humano não só integrado ao espaço em que vive, mas muitas vezes por ele aprisionado. Seu
comportamento também é analisado, em uma tentativa de traçar de modo fiel o perfil social e psicológico dos
habitantes de determinadas regiões brasileiras.
(Abaurre, Maria Luiza et alli. Português – Língua e Literatura. p.478)

TEXTO II: Graciliano Ramos e a construção dos seus personagens

Para sermos completamente humanos, necessitamos estudar as coisas nacionais, estudá-las de baixo
para cima. Não podemos tratar convenientemente das relações sociais e políticas, se esquecemos a estrutura
econômica da região que desejamos apresentar em livro.
Quando um negociante toca fogo na casa, devemos procurar o motivo deste lamentável acontecimento,
não contá-lo como se ele fosse apenas um arranjo indispensável ao desenvolvimento da história que narramos.
Se um cavalheiro mata os filhos e se suicida é bom não afirmarmos precipitadamente que ele endoideceu:
vamos tomar informações, tentar saber em que se ocupava o homem, que ordenado tinha, quanto devia à dona
da pensão. Geralmente ninguém queima o negócio nem se suicida à toa.
Dizer que um ato reprovável foi praticado porque o seu autor obedeceu a impulso irresistível é pouco:
isto satisfaz o leitor de notas policiais. Seria razoável que tentassem descobrir a causa do impulso, não se
limitassem a apresentar-nos o comerciante incendiário como desonesto, o assassino como um sujeito perverso
ou louco.
Admitimos sem esforço a desonestidade e a loucura, mas precisamos saber por que elas existem, não
queremos que sejam presentes do escritor às personagens. O romancista não é nenhum deus para tirar
criaturas vivas da cabeça.
Romanceando por exemplo o crime e a loucura, está visto que ele deve visitar os seus heróis na cadeia
e no hospício, mas, se quiser realizar obra completa, precisa conhecê-los antes de chegar aí, acompanhá-los
na fábrica ou na loja, no escritório ou no campo de plantação. Necessariamente o ofício dos seus homens deve
ter contribuído para que as coisas se passassem desta ou daquela forma.
É intuitivo que o negociante deitou fogo ao estabelecimento porque os seus lucros se reduziam. Digam-
nos como se operou a redução.
E o indivíduo que matou os filhos e deu um tiro na cabeça? De que se alimentava esse malvado, a que
gênero de trabalho se dedicava? Certamente ele é um malvado. Mas a obrigação do romancista não é condenar
nem perdoar a malvadez: é analisá-la, explicá-la. Sem ódios, sem ideias preconcebidas, que não somos
moralistas.
Estamos diante de um fato. Vamos estudá-lo friamente.
Parece que este advérbio não será bem recebido. A frieza convém aos homens de ciência. O artista
deve ser quente, exaltado. E mentiroso.
Não sei por quê. Acho que o artista deve procurar dizer a verdade. Não a grande verdade, naturalmente.
Pequenas verdades, essas que são nossas conhecidas.
(RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. 8 ed. São Paulo: Record,1980. p. 258-9)

TEXTO III: “O mundo à revelia”, de João Luiz Lafetá. (fragmento) – Sobre São Bernardo.

Da leitura destes oito primeiros capítulos (e o fato de o narrador sentir necessidade de dizer o contrário só
vem corroborar a existência do efeito) aparece um personagem esmagador, que ruma direito e firme para seus fins,
um Paulo Honório que governa o mundo e imprime-lhe seu ritmo.
A história de Seu Ribeiro, contada no capítulo sete, interpolada às ações vitoriosas do herói, funciona
visivelmente como contraponto. Seu Ribeiro é um homem derrotado. Já mandou no seu mundo, já governou seu
povo. Mas agora, afastado pelo progresso, pela urbanização e crescimento do lugarejo onde vivera, está reduzido
à miséria e à fraqueza. Paulo Honório comenta, ao ouvir sua história: “Tenho a impressão de que o senhor deixou
as pernas debaixo de um automóvel, Seu Ribeiro. Por que não andou mais depressa? É o diabo”.
De fato, é o diabo. Compreendemos então o que Paulo Honório representa e compreendemos a velocidade
da narrativa. Seu Ribeiro, que se prendera ao ritmo lento da vida patriarcal, é afastado do governo do mundo. O
elemento novo, que chega trazendo estradas, máquinas, eletricidade, apuradas técnicas de pecuária e agricultura,
impõe-se e domina. Paulo Honório traz a força de tempos novos que surgem, vencendo a inércia e quebrando os
obstáculos. Pernas contra automóveis. Daí o torvelinho em que, desde o começo, fomos apanhados. Daí a coesão
da narrativa, que une indissoluvelmente personagem e ação. Pois Paulo Honório, representante da modernidade
que entra no sertão brasileiro, é o emblema complexo e contraditório do capitalismo nascente, empreendedor, cruel,
que não vacila diante dos meios e se apossa do que tem pela frente, dinâmico e transformador. “A construção de
um burguês: eis o conteúdo da primeira parte de S. Bernardo”, observou com acerto Carlos Nelson Coutinho.
Ação transformadora, velocidade enérgica, posse total: aí estão três características e três ideais da
burguesia. O herói de S. Bernardo os possui em alto grau e os imprime a fundo na tessitura da narrativa. A
objetividade do romance nasce da postura do narrador face ao mundo: ele nada problematiza, de nada duvida, em
ponto algum vacila. Tudo que importa é possuir e dirigir o mundo. Para tanto, ele conhece os meios. E não pensa
sobre eles: aplica-os.
(...)
Se alinharmos todas as características examinadas — ação, energia, objetividade, dinamismo, capacidade
transformadora e sentimento de propriedade — torna-se inevitável o surgimento de uma analogia entre o herói e a
burguesia como classe. Já vimos, também de passagem, que Paulo Honório parece ser o emblema contraditório do
capitalismo nascente em nosso país. O contraste que ele mesmo estabelece entre o ritmo veloz de sua apropriação
e o passo lento do patriarcalismo de Seu Ribeiro é demasiado evidente para que o deixemos passar despercebido.
Sem entrarmos aqui nas complexidades implicadas pelo estudo da implantação do capitalismo no Brasil
(existência de relações pré-capitalistas, relações de compadrio, persistência ou não de restos do modo de produção
feudal) o que podemos afirmar, sem sombra de dúvida, é que Paulo Honório simboliza, no interior do romance, a
força modernizadora que atualiza de forma devastante o universo de S. Bernardo. A roça de Seu Ribeiro foi calma
e sem problemas, no tempo do Imperador; Luís Padilha tem uma vida estagnada e preguiçosa; Paulo Honório é, ali,
o dínamo que gera energia e arrebata tudo, provocando uma completa e incessante modificação nas relações
globais daquele mundo. Ação, transformação, sentimento de propriedade — a analogia é forte.
Mas o dínamo não pode existir indefinidamente. Mais do que uma esperança, sua destruição é uma
possibilidade concreta e próxima. Seu mecanismo sujeita-se ao desgaste e ao esgotamento, suas possibilidades de
gerar transformação têm um limite. As peças que o compõem não são totalmente harmônicas, no seu corpo acham-
se instaladas contradições que podem a qualquer instante emperrá-lo e tirar-lhe o governo do mundo.
Uma das mais sérias consequências da produção para o mercado (característica do capitalismo) é o
afastamento e a abstração de toda qualidade sensível das coisas, que é substituída na mente humana pela noção
de quantidade. O valor-de-uso que toda mercadoria possui é distanciado e tornado implícito pela produção de
valores-de-troca. Este fenômeno, classicamente designado pelo nome de “fetichismo da mercadoria”, dá origem a
uma reificação global das relações entre os homens. Mediada sempre pelo mercado, a consciência humana tende
progressivamente a fechar-se à compreensão dos elementos qualitativos e sensíveis da realidade. Todo valor se
transforma — ilusoriamente — em valor-de-troca. E toda relação humana se transforma — destruidoramente —
numa relação entre coisas, entre possuído e possuidor.
(...)
A reificação é um fenômeno primeiramente econômico: os bens deixam de ser encarados como valores-de-
uso e passam a ser vistos como valores-de-troca e, portanto, como mercadorias. Mas sabemos que a consciência
humana se forma no contato com a realidade, na atividade transformadora do mundo, que é a produção de bens.
Assim, as características do modo de produção infiltram-se na consciência que o homem tem do mundo,
condicionando seu modo de ver e compondo-lhe, portanto, a personalidade. A reificação abrange então toda a
existência, deixa de ser apenas uma componente das forças econômicas e penetra na vida privada dos indivíduos.
“Creia que nem sempre fui egoísta e brutal”, afirma Paulo Honório. “A profissão é que me deu qualidades tão ruins.
/ E a desconfiança terrível que me aponta inimigos em toda parte. / A desconfiança é também consequência da
profissão. / Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no
cérebro, nervos diferentes dos outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes.”
O homem reificado é este aleijão que ele nos descreve e vemos por toda parte: o coração miúdo e uma
boca enorme, dedos enormes. O sentimento de propriedade, que unifica todo o romance do qual o ciúme é apenas
uma modalidade, distorce o homem desta maneira radical. A vida agreste, que o fez agreste, é a culpada por Paulo
Honório não ser capaz de enxergar Madalena. A vida agreste são as lutas pela propriedade, pelo rebanho, pelas
plantações de algodão e mamona, pelo poder e pelo capital. O homem agreste é aquele ser no qual se transformou
Paulo Honório: egoísta e brutal, não consegue compreender a mulher, pois é incapaz de senti-la em sua integridade
humana e em sua liberdade, e a considera apenas como mais uma coisa a ser possuída.
Como Madalena se recusa a alienar-se, entrando no jogo da reificação, os choques são inevitáveis. A ação
da narrativa se concentrará, agora, em torno desse novo obstáculo que Paulo Honório terá de enfrentar. Um novo
núcleo se abre, e os novos motivos que surgem se organizam em torno deste motivo central: a tentativa de Paulo
Honório de reduzir Madalena a objeto possuído. Na medida em que a mulher escapa a seu controle, na medida em
que ela é capaz de apiedar-se dos trabalhadores miseráveis que vivem na fazenda, na medida em que Madalena
se afasta de seu universo de proprietária e escapa, portanto, à sua compreensão, Paulo Honório sente ciúmes.
(...)
Cada uma dessas brutalidades horroriza Madalena, que não pode aceitá-las. Por seu turno, Paulo Honório
espanta-se de que ela não compreenda seu comportamento. Afinal, construir uma propriedade como S. Bernardo
implica certos atos necessários. Por exemplo, espancar Marciano, que “não é propriamente um homem”. E, se D.
Glória não troca Madalena por S. Bernardo, isto são puras vaidades: “Professorinhas de primeiras letras a escola
normal fabricava às dúzias. Uma propriedade como S. Bernardo era diferente.”.
Madalena se recusa à reificação e Paulo Honório se espanta. Já não compreende a mulher, sente que ela
não joga de acordo com as regras de seu jogo. Sua irritação vai num crescendo constante: “Além de tudo vestido
de seda para a Rosa, sapatos e lençóis para Margarida. Sem me consultar. Já viram descaramento assim? Um
abuso, um roubo, positivamente um roubo.”
(...)
Os capítulos seguintes são terríveis. Agora em linha reta o dínamo enlouquecido degrada-se e degrada
Madalena até a destruição de ambos.
(...)
O desfecho, se elimina fisicamente Madalena, destrói por completo a vida de Paulo Honório. Agir, mandar,
cultivar S. Bernardo, nada disso terá mais sentido para ele. O mundo desgovernou-se, só lhe resta sentar e buscar,
compondo a narrativa de sua vida, o significado de tudo que lhe escapa.
(...)
Com a revolução, o mundo de Paulo Honório descaminha de forma definitiva: “O mundo que me cercava
ia-se tornando um horrível estrupício. E o outro, grande, era uma balbúrdia, uma confusão dos demônios, estrupício
muito maior.” A vitória da revolução traz-lhe problemas com a propriedade. Reacendem-se antigas questões de
limites, seu crédito é cortado, os preços dos produtos caem, S. Bernardo transforma-se numa fazenda abandonada.
Os amigos, que o frequentavam regularmente, são obrigados a afastar-se, e ele fica sozinho, com seus intermináveis
passeios.
É, enfim, o mundo à revelia, fora de seu controle. “E os meus passos me levavam para os quartos, como
se procurassem alguém.” Nesta última frase do capítulo trinta e cinco o estilo revela a impotência do herói. A
sinédoque se engasta na estrutura ação/personagem, mostrando que o comando dos atos foi perdido por Paulo
Honório: não é ele quem anda de quarto em quarto, mas são suas pernas que o levam. O desnorteamento é paralelo
à perda do mando.
(...)
Por outro lado, o caráter ativo de Paulo Honório está emperrado, paralisado pela derrota definitiva que foi a
morte de Madalena. É forçoso que os procedimentos técnicos se modifiquem e a narrativa ganhe uma textura
diferente. A linguagem seca do tempo do enunciado cede lugar à lamentação elegíaca do tempo da enunciação, e
o ritmo rápido da narrativa é substituído pelos compassos mais lentos de uma reflexão problematizada, difícil e
tortuosa.
(...)
A verdadeira busca começa onde termina a vida de Paulo Honório. A busca verdadeira, entenda-se, a
procura dos verdadeiros e autênticos valores que deveriam reger as relações entre os homens. A vida terminou, o
romance começa. O romance, segundo Lukács, é a história da busca de valores autênticos por um personagem
problemático, dentro de um universo vazio e degradado, no qual desapareceu a imanência do sentido à vida. Ora,
só neste instante o herói se torna problemático, o universo surge como vazio e degradado, o sentido da vida
desaparece. Antes, Paulo Honório fora um personagem coeso e forte, movendo-se em um mundo de objetivos claros
e (ainda que ilusório) repleto de significado: a propriedade. O suicídio de Madalena desmascara a falsidade do
sentido e problematiza tudo. Agir para quê? — pergunta-se ele.
Paulo Honório abandona a ação e volta-se sobre si mesmo, buscando na memória de sua vida o ponto em
que se desnorteou, “numa errada”. Nesse debruçar-se, o estilo se tinge de lirismo e a objetividade épica fica abalada.
A objetividade da representação é atingida pela subjetividade do narrador, mas ambas acabam
interpenetrando-se, compondo uma unidade dialética. (...) O recurso ao monólogo interior, portanto, ajuda a compor
a busca de Paulo Honório. E é através dela que surge o mundo de S. Bernardo, S. Bernardo romance, tentativa de
encontrar o sentido perdido e encontro final e trágico consigo mesmo e com a solidão.
(...) O romance se fecha, mostrando a vitória da reificação e a derrota total do herói, que é incapaz de
mexer-se, modificar-se. Penso em outro personagem de outro romance: “Ah, o que eu não entendo, isso é que é
capaz de me matar...”¹

¹Guimarães Rosa. In: Grande Sertão: Veredas.

(In: RAMOS, Graciliano. São Bernardo. Rio de Janeiro: Record,1980. p.189-213)

TEXTO IV: Sobre Graciliano Ramos e Vidas Secas.

De Graciliano Ramos já se deixou entrever, páginas atrás, que representa, em termos de romance
moderno brasileiro, o ponto mais alto da tensão entre o eu do escritor e a sociedade que o formou. É instrutivo,
nesta altura, o contraste com José Lins do Rego. Este se entregava, complacente, ao desfilar das aparências
e das recordações; Graciliano via em cada personagem a face angulosa da opressão e da dor. Naquele, há
conaturalidade entre o homem e o meio; neste, a matriz de cada obra é uma ruptura.
O roteiro do autor de Vidas Secas norteou-se por um coerente sentimento de rejeição que adviria do
contato do homem com a natureza ou com o próximo. Escrevendo sob o signo dialético por excelência do
conflito, Graciliano não compôs um ciclo, um todo fechado sobre um ou outro polo da existência (eu/ mundo),
mas uma série de romances cuja descontinuidade é sintoma de um espírito pronto à indagação, à fratura, ao
problema. O que explica a linguagem díspar de Caetés, Angústia, Vidas Secas, momentos diversos que só
terão em comum o dissídio entre a consciência do homem e o labirinto de coisas e fatos em que se perdeu. E
explica, em outro plano, o trânsito da ficção ao nítido corte biográfico de Infância e Memórias do Cárcere. (...)
A rejeição assume dimensões naturais, cósmicas, em Vidas Secas, a história de uma família de
retirantes que vive em pleno agreste os sofrimentos da estiagem. É supérfluo repetir aqui o quanto o esforço
de objetivação foi bem logrado nessa pequena obra-prima de sobriedade formal. Vidas Secas abre ao leitor o
universo mental esgarçado e pobre de um homem, uma mulher, seus filhos e uma cachorra tangidos pela seca
e pela opressão dos que podem mandar: o “dono”, o “soldado amarelo”... O narrador que, na aparência
gramatical do romance de 3ª pessoa, sumiu por trás das criaturas, na verdade apenas deslocou o “fatum” do
eu para a natureza e para o latifúndio, segunda natureza do Agreste. E o que havia de unitário nas obras
anteriores, apoiadas no eixo de um protagonista, dispersa-se nesta em farrapos de ideias, no titubear das
frases, nos “casulos de vida isolada que são os diversos capítulos”*, enfim, na desagregação a que o meio
arrasta os destinos inúteis de Fabiano, Sinhá Vitória, Baleia... (...)
Hoje a pesquisa estrutural tem confirmado com a precisão das suas análises o que a crítica mais atenta
sempre vira na linguagem de Graciliano: a poupança verbal; a preferência dada aos nomes de coisas e, em
consequência, o parco uso do adjetivo; a sintaxe clássica, em oposição ao à-vontade gramatical dos
modernistas e, mesmo, dos outros prosadores do Nordeste.
Parece evidente que a modernidade de Graciliano Ramos tem pouco a ver com o Modernismo e nada
a ver com as modas literárias para as quais o escritor pode apresentar um quê de inatual. Ela vem da sua opção
pelo maior grau possível de despojamento, pela sua recusa sistemática de intrusões pitorescas, chulas ou
piegas, situando-se no polo oposto do “populismo” tanto o vulgar quanto o sofisticado — que tem manchado
tantas vezes a atitude dos fruidores da “vitalidade” do homem simples.

* A expressão está em Rui Mourão, Estruturas, cit., p.151.

(BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1989. p.452-457)

TEXTO V: CACD 2015 – Questão 6


Nestes quatrocentos anos de colonização literária, recebemos a influência de muitos países. Sempre
tentamos reproduzir, com todas as minudências, a língua, as ideias, a vida de outras terras. Não sei donde vem
esse medo que temos de sermos nós mesmos. Queremos que nos tomem por outros. (...)
Na literatura de ficção é que a falta de caráter dos brasileiros se revelou escandalosamente. Em geral,
os nossos escritores mostraram uma admirável ignorância das coisas que estavam perto deles. Tivemos
caboclos brutos semelhantes aos heróis cristãos e bem-falantes em excesso. Os patriotas do século passado,
em vez de estudar os índios, estudaram tupi nos livros e leram Walter Scott. Tivemos damas das camélias em
segunda mão. Tivemos paisagens inúteis em linguagem campanuda, pores do sol difíceis, queimadas enormes,
secas cheias de adjetivos. José Veríssimo construiu um candeeiro em não sei quantas páginas.
Muito pouco — rios, poentes cor de sangue, incêndios, candeeiros.
Os ficcionistas indígenas engancharam-se regularmente na pintura dos caracteres. Não mostraram os
personagens por dentro: apresentaram o exterior deles, os olhos, os cabelos, os sapatos, o número de botões.
Insistiram em pormenores desnecessários, e as figuras ficaram paradas.
Os diálogos antigos eram uma lástima. Em certos romances, os indivíduos emudeciam, em outros,
falavam bonito demais, empregavam linguagem de discurso. Dois estrangeiros, perdidos nas brenhas,
discutiam política, sociologia, trapalhadas com pedantismo horrível, que se estiravam por muitas dezenas de
folhas. Via-se perfeitamente que o autor nunca tinha ouvido nada semelhante ao palavrório dos seus homens.
Felizmente, vamo-nos afastando dessa absurda contrafação de literaturas estranhas. Os romancistas
atuais compreenderam que, para a execução de obra razoável, não bastam retalhos de coisas velhas e novas
importadas da França, da Inglaterra e da Rússia. (...)
O que é certo é que o romance do Nordeste existe e vai para diante. As livrarias estão cheias de nomes
novos. Não é razoável pensarmos que toda essa gente escreva porque um dia o Sr. José Américo publicou um
livro que foi notado com espanto no Rio:
— Um romance do Nordeste! Que coisa extraordinária!

Graciliano Ramos. In: Thiago Mio Salla (Org.). Garranchos/Graciliano Ramos.

TEXTO VI: CACD 2013 – Questão 10


No romance Vidas Secas, é crucial o enfezamento do narrador com palavras que não remetem a coisas
e atos verazes. A palavra escrita, por exemplo, sob cujo limiar se exprimem Fabiano e os seus, é, para o
sertanejo, causa de angústia e de opressão. É a cifra misteriosa rabiscada na caderneta do patrão, são aquelas
letras taxativas que se impõem na hora do acerto de contas com o cabra.
Lembro o que diz Paulo Honório, em São Bernardo, e Luís da Silva, em Angústia, sobre o caráter
safado das palavras pedantes e das estreias literárias que se exibem nas vitrinas como as prostitutas de rua.
A palavra escrita sofre um processo que lhe movem a economia e a moral da pobreza.
Volto ao narrador. Este olha de cima, da História brasileira já conhecida, o destino do seu vaqueiro: sair
de um ciclo, que ao retirante parece apenas natural, e rumar para alguma cidade grande do Sul, onde, faça
chuva ou faça sol, precisa-se de mão de obra barata.
O historiador, que está, de algum modo, à frente dos acontecimentos, vê as etapas do processo. O
sonho do vaqueiro e as fantasias que ele projeta no seu Eldorado do Sul se dizem, primeiro, no discurso mental
de Fabiano e, depois, na interpretação que lhes dá o narrador.
O sonho, decifrado como ilusão, acorda na história meridiana do novo proletariado e revela a sua
essência de cativeiro: chegariam a uma terra civilizada, mas ficariam presos nela.

Alfredo Bosi. Céu, inferno: ensaios de crítica literária e ideologia.

TEXTO VII: CACD 2013 – Questão 1


A Constituição da República tem um buraco.
É possível que tenha muitos, mas sou pouco exigente e satisfaço-me com referir-me a um só.
Possuímos, segundo dizem os entendidos, três poderes — o Executivo, que é o dono da casa, o
Legislativo e o Judiciário, domésticos, moços de recados, gente assalariada para o patrão fazer figura e deitar
empáfia diante das visitas. Resta ainda um quarto poder, coisa vaga, imponderável, mas que é tacitamente
considerado o sumário dos outros três.
É aí que o carro topa. Há no Brasil um funcionário de atribuições indeterminadas, mas ilimitadas.
Aí está o rombo na Constituição, rombo a ser preenchido quando ela for revista, metendo-se nele a
figura interessante do chefe político, que é a única força de verdade. O resto é lorota.
Em escala descendente, a começar no Catete, onde pontifica o chefe açu, e a terminar no último
lugarejo do sertão, com um caudilho, mirim, isto é um país a regurgitar de mandões de todos os matizes e
feitios.
Está aqui um deputado que é um poço de manha, papagueador quando parola com o eleitorado, mudo
na Câmara, gênero peru; ali está um presidente de estado que outra coisa não tem feito senão apregoar pelas
trombetas oficiais as maravilhas que ninguém vê, mas que ele teve o notável intuito de realizar; temos acolá
um advogado ventoinha, equilibrista emérito, camaleão legítimo; vem depois o comerciante voraz, enriquecido
com os favores clandestinos, negociatas escusas e contrabandos; mais distante, avulta a majestade rotunda
do industrial insatisfeito, empanturrado pelas propinas que a guerra lhe meteu no bucho.
Todos eles são mais ou menos chefes. Não se sabe bem de quê, mas certo é que o são. Graúdos,
risonhos, nutridos, polidos, escovados, envernizados, lá estão inchando, inchando. São os grossos batráquios
da lagoa republicana. (...)
Parece-me claro que uma pergunta aqui se impõe: para que tanta gente de palha a ocupar cargos em
penca, a roer sinecuras nesta confederação cinematográfica, em que o poder e a coisa mais centralizada deste
mundo, se, desde o tempo dos capitães-mores, um homem só pode administrar, legislar e julgar a contento das
populações sertanejas? (...)
Peguemos o chefe político, agitemo-lo no ar e berremos o estribilho com que a imprensa, há tempos,
nos anda a amolar — A Constituição da República precisa de uma revisão.
Graciliano Ramos. Linhas Tortas [artigo de março de 1915]. In: Linhas Tortas.

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