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Das sombras à omnivisão – a

poética do sagrado em Jorge de


Lima e Murilo Mendes
From shadows to omnivision – the poetics of the sacred in
Jorge de Lima and Murilo Mendes

Sergio Carvalho de ASSUNÇÃO1

RESUMO: O presente artigo visa abordar as poéticas de Jorge de Lima e Murilo Mendes sob a perspectiva da
crise e esvaziamento espiritual do sujeito na modernidade industrial do século XX e sua reconciliação com o
sagrado, ao considerar a poesia como um lugar crítico e uma experiência ética, vivencial e transformadora do
sujeito.

PALAVRAS-CHAVE: Murilo Mendes. Jorge de Lima. Poesia. Crise do sujeito. Sagrado.


116

ABSTRACT: The presente article aims to examine the poetics of Jorge de Lima and Murilo Mendes from the
perspective of the crisis and the spiritual emptying of the subject in the twentieth century industrial modernity
and his reconciliation with the sacred, considering poetry as a critical place and as na ethical, experiential and
transforming experience of the subject.

KEYWORDS: Murilo Mendes. Jorge de Lima. Poetry. Crisis of the subject. Sacred.

É preciso reunir o dia e a noite,


Sentar-se à mesa da terra com o homem divino e o criminoso,
É preciso desdobrar a poesia em planos múltiplos
E casar a branca flauta da ternura aos vermelhos clarins do sangue.

Murilo Mendes (1994, p. 408).

No início do século XX, enquanto a modernidade industrial atingia o seu ápice,


propiciado pelos avanços científicos e tecnológicos, além do desenvolvimento dos meios de
comunicação, o ocidente vivenciava a eclosão das guerras, o colapso socioeconômico e o
crescimento do nazi fascismo. Diante da iminência de um desastre, e da velocidade com que
os valores culturais eram transformados em bens de consumo pela poderosa macroestrutura
1
Universidade Estácio de Sá – Unesa – Departamento de Letras. Nova Iguaçu – Rio de Janeiro – RJ – Brasil.
CEP: 26220-099. Email: scassuncao@uol.com.br.

Guavira Letras (ISSN: 1980-1858), Três Lagoas/MS, n. 26, p. 116-128, jan./abr. 2018.
econômica industrial, o sujeito vivenciou uma crise sem precedentes que o esvaziou psíquica
e espiritualmente, além de ter seu papel social subjugado a uma função meramente maquínica,
ao mesmo tempo em que seu futuro era penhorado pela moratória ilimitada dos juros.
Se por um lado o materialismo industrial impeliu o sujeito a lidar com os novos meios
de produção, obrigando-o a retornar sua consciência sobre si e a reinventar outros modos de
resistir ao servilismo massivo, por outro lado, o avanço tecnológico proporcionou a ele
múltiplas experimentações e expansões no campo da linguagem e da arte, desde o advento do
rádio, da fotografia e do cinema, por exemplo.
Ainda assim, em meio a esse conturbado cenário, é inegável que nossa experiência
cultural tenha sido sensivelmente empobrecida em meio à nova realidade, como salientou
Walter Benjamin em um ensaio de 1933:

Podemos agora tomar distância para avaliar o conjunto. Ficamos pobres.


Abandonamos uma depois da outra todas as peças do patrimônio humano, tivemos
que empenhá-las muitas vezes a um centésimo do seu valor para recebermos em
troca a moeda miúda do “atual”. A crise econômica está diante da porta, atrás dela
está uma sombra, a próxima guerra. A tenacidade é hoje privilégio de um pequeno
grupo dos poderosos, que sabe Deus não são mais humanos que os outros; na
maioria bárbaros, mas não no bom sentido. Porém os outros precisam instalar-se, de
novo e com poucos meios. São solidários dos homens que fizeram do novo uma
coisa essencialmente sua, com lucidez e capacidade de renúncia. Em seus edifícios,
quadros e narrativas a humanidade se prepara, se necessário, para sobreviver à
cultura. E o que é mais importante: ela o faz rindo. Talvez esse riso tenha aqui e ali
um som bárbaro. Perfeito. No meio tempo, possa o indivíduo dar um pouco de
humanidade àquela massa, que um dia talvez retribua com juros e com os juros dos 117
juros. (BENJAMIN, 1994, p. 119).

Em face do predomínio da técnica, da crise econômica, e na medida em que as


tendências progressistas se estabeleciam, esse mesmo sujeito que teve a sua experiência
cultural empobrecida desde a segunda metade do século XIX, consequentemente, também
teve sua sensibilidade e psiquismo afetados pelo tédio e pelo desencanto, como nos revelou
Baudelaire. Com a eclosão da Primeira Guerra mundial em 1914, esse estado de crise foi
acentuado deixando irreparáveis consequências - sobretudo a neurose em viver sob a
iminência da destruição atômica -, e o sujeito se viu mergulhado em uma angústia e profundo
mal-estar, tamanho era o sentimento de impotência diante da degradação moral ampliada pela
corrida armamentista e a desumanização provocada pela lógica industrial.
Apesar do empobrecimento cultural e da degradação humana, considera-se que foi
nesse momento de crise que a poesia moderna se afirmou como um lugar privilegiadamente
crítico, proporcionando ao sujeito vivenciar a linguagem como uma experiência substancial,
propriamente. Assim, ao ressignificar seu espaço e reinventar sua perspectiva para além da
experiência estética, o cultivo da poesia assumiu-se, efetivamente, como uma experiência
ética de resistência contra a lógica utilitarista e contra a alienação moral do capital, haja vista
as manifestações vanguardistas desde o Expressionismo alemão ao Dadaismo de Tristan
Tzara.
Nesse sentido, ao considerar que a reinserção da poesia como um espaço de
intervenção crítica foi diretamente potencializada por sua latente e irredutível
substancialidade, ultrapassando a esfera da própria linguagem, pergunta-se, então, de que

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maneira é possível pensar essa crise do sujeito através da própria poesia, tomando-a, desde já,
em sua magnitude substancial e como experiência transformadora desse mesmo sujeito?
Assim sendo, a presente abordagem da poesia de Jorge de Lima e Murilo Mendes visa
examinar o modo pelo qual suas respectivas experiências poéticas foram movidas por essa
crise e mal-estar do sujeito em meio ao sucateamento cultural, a iminência do desastre, e o
esvaziamento moral.
Todavia, a partir dessa perspectiva, torna-se imprescindível verificar como ambas as
poïèsis foram forjadas através da tensão entre a negatividade profana e a espiritualidade cristã,
sendo vivenciadas tanto ao nível do corpo e substanciadas no plano da poesia, utilizando o
diálogo de Sören Kierkegaard e Georges Battaille como um substrato conceitual e teológico
sobre a dimensão da poesia moderna em consonância com a poética do sagrado em Jorge de
Lima e Murilo Mendes.
Em trecho retirado de uma entrevista a Paulo Mendes Campos 2, percebe-se que Jorge
de Lima demonstrava uma consciência muito clara sobre essa inquietude, com relação ao
papel do poeta e o poder de intervenção social da poesia, em meio ao advento da eletricidade
e da velocidade - espinhas dorsais da modernidade industrial – e as transformações
decorrentes que impactaram o mundo nas décadas de 20 e 30, sobretudo:

Mas o que está apodrecendo? – a poesia ou a nossa época? A poesia é incorruptível.


O tempo é que se degradou. Depois das grandes agitações e reviravoltas sociais
desse século, a alma humana está verdadeiramente entorpecida; dir-se-ia que esta
aparente febre de movimento, esta agitação desordenada, apenas muscular é um
desbragamento das energias impacientes por se desperdiçarem que caracterizam o 118
homem entediado de hoje, porquanto a ação não exige sempre a intervenção de todo
o organismo; basta-lhe muitas vezes uma movimentação mais ativa dos gestos,
quase sempre uma pequena mímica mais ou menos automática ou sonambúlica. A
vida e o pensamento se desenvolvem em níveis diferentes. A poesia está andando
com a sua velocidade habitual, levando o mundo obscuro ou iluminado em sua
órbita; revelou-se sob aspectos naturalmente tão velozes, que não nos devemos
espantar de que ela dê aos lerdos seres humanos a impressão de coisa hermética, de
mistério mesmo. Concluamos que a arte e as ideias que o homem à sombra da vida
elabora andaram sempre por caminhos diferentes. O homem perdeu sua velocidade
para cima: exaure-se numa agitação de movimentos que se medem em vôos curtos.
(LIMA, 1997, p. 76).

Muito embora Jorge e Murilo tenham declarado sua fé e conversão ao catolicismo,


ambos jamais assumiram qualquer ligação institucional ou ideológica que sublinhassem suas
produções poéticas, seja com a própria igreja católica ou até mesmo com os ideais socialistas
que tanto simpatizavam. O que ambos sempre fizeram questão de afirmar foi o compromisso
com a liberdade ao vivenciar a poesia para além de uma expressão formalizada, mas,
sobretudo, como um ofício e uma ética.
No entanto, ainda que tenham se aproximado da Aliança Nacional Católica por meio
de convite do amigo em comum Alceu Amoroso Lima3, logo manifestaram o desligamento.
Primeiramente por não desejarem assumir qualquer posicionamento ideológico que os

2
“A crise é de vida espiritual”, entrevista de Jorge de Lima ao Diário Carioca, Rio de Janeiro, 29/02/1948,
conforme LIMA (1997, p. 76).
3
Ver mais sobre o assunto em LIMA (1973, p. 109-113).

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atrelasse a um movimento ou instituição, ou comprometesse a liberdade individual de suas
posições. Em segundo por acreditarem que o cristianismo deveria estar, essencialmente,
voltado para uma consciência ou ética individual que se funda na relação com o outro (o
próximo) dentro da própria esfera social da vida comum.4
De modo semelhante à consciência do papel de poeta defendida por Jorge de Lima, em
carta à Laís Ribeiro datada de 9/4/1969, Murilo diz:

Entretanto, como sabe, eu tenho sido toda a vida um franco-atirador. Procuro


obedecer a uma espécie de lógica interna, de unidade apesar dos contrastes,
dilacerações e mudanças; e sempre evitei os programas e manifestos. Mas os meus
livros, espero, devem dizer, ao menos em parte, o que acho necessário dizer.
(ARAÚJO, 2000, p. 191).

Ao considerar que as experiências poéticas de Murilo Mendes e Jorge de Lima foram


deflagradas por esse estado de crise e inquietude vivenciadas pelo sujeito, seja sob a esfera
existencial, moral e espiritual, pode-se dizer que o livro Tempo e Eternidade – escrito a quatro
mãos em 1934, e logo após a conversão ao cristianismo pelos dois poetas –, além de
simbolizar esse momento emblemático da vida pessoal de ambos, foi também determinante
para o rumo de suas respectivas poéticas.
Este livro tornou-se o ponto divisório na obra de cada um, ao consolidar a busca de
ambos pelo sagrado e sobrenatural, sendo motivado não apenas pelo estado agônico da crise,
mas, sobretudo, pelo desejo de compreensão desse mal-estar sob a perspectiva espiritual
cristã, como um saber cultivado e adquirido por meio da experiência poética que se entretecia 119
à experiência vivencial. Ainda que Murilo ou Jorge assumissem claramente a conversão
religiosa - o que implicou, consequentemente em uma profunda metanoia, isto é, em uma
transformação ética e espiritual -, em nenhum momento este fato comprometeu o caráter
moderno, crítico e experimental de suas poesias, e tampouco assinalou uma expressão
ascética ou proselitista. Ao contrário, tal experiência poética tornou-se evidente na medida em
que a perspectiva espiritual se amalgamava à visão crítica diante da degradação humana da
era industrial, sobretudo a partir das guerras mundiais.
Além da tonalidade crítica, deve-se ressaltar a maneira pela qual prevaleceu a
consciência artesanal de ambos, ao fundir o tom profético da tradição cristã com a dimensão
mítica pagã sob a plasticidade surrealista, o que deu às respectivas poéticas a radicalidade
projetiva e expressional que os destacou no cenário da poesia brasileira.
Muito embora ambas as poíesis fossem nitidamente marcadas por um estado de
permanente tensão do sujeito em confronto com a cultura e com o outro, ao mesmo tempo,
havia nelas o desejo de transcender essa mesma cultura, visando consolidar um sentido à
existência sob a perspectiva do homem em relação ao seu semelhante e, ao mesmo tempo, em
relação a Deus.

4
Para maior conhecimento, indico a leitura do livro Recordações de Ismael Nery, onde Murilo escreve uma
espécie de biografia do artista e amigo que, além de influenciá-lo na convergência entre as perspectivas
filosófica, existencial, estética e espiritual. Nesse livro, Murilo Mendes (1996, p. 65-84) explica como tomou
conhecimento da teoria essencialista de Ismael que, certamente, influenciou a concepção poética do poeta
mineiro, ao fundir a arte e o Evangelho.

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Parece, Senhor, que me desdobrei,
que me multipliquei,
que a chuva dos céus cai dentro de minhas mãos,
que os ruídos do mundo gemem nos meus ouvidos,
que batem trigo, chorando, sobre o meu tronco nu,
que cidades se incendeiam dentro de minhas órbitas.
Parece, Senhor, que as noites escurecem dentro de meu ser múltiplo,
que eu falo sem querer por todos os meus irmãos,
que eu ando cada vez mais em procura de Ti. (LIMA, 1997, p. 429).

Note-se aqui que o poeta revela a consciência do seu ofício diante do desastre ao
assumir a condição de estrangeiro e visionário - como aquele que habita a fronteira entre o
visível e o invisível, ao transcender da matéria ao espírito -, e o que incorpora a dor e o pranto
dos homens, ao clamar pelos exilados e excluídos, pelos condenados e oprimidos das cidades
em chamas. Ao mesmo tempo em que o seu corpo é a poesia que transfunde as chagas de um
mundo em queda, o poeta traz em sua palavra a escuridão internalizada do próximo, elevando
seu canto profético à procura de Deus, vislumbrando a poesia como a religião primordial da
humanidade. 5
É como se o corpo do poeta catalisasse o disforme e a contradição, superpondo os
planos e imagens a cada verso, assinalando o estilhaçamento e a angústia da condição humana
que deseja reconciliar-se com Deus. Assim, o corpo do poeta torna-se um receptáculo do
mundo e dos céus, ao expressar os dramas do homem moderno em sua busca pelo sagrado,
alinhando a ordem de intimidade com Deus à vida comum, quando a poesia passa a
compreender que tal alinhamento se dá pela fusão da imanência (pagã) à transcendência
(cristã), ao expandir a vida comum a uma perspectiva sobrenatural e supra real. 120
Em ambas as poéticas de Jorge e Murilo, ao mesmo tempo em que a relação entre o
sujeito e o sagrado é elevada a uma perspectiva transcendente, beatífica e sobrenatural, essa
dimensão é confrontada, ora pela violência, ora pela sensualidade, inscritas ao nível do corpo
e dos afetos. Tais manifestações não apenas configuram a condição humana em face da
finitude terrena, mas, sobretudo, traduzem as tribulações pelas quais o sujeito vivencia em seu
processo de reconciliação com Deus pela fé, desde a queda adâmica.

Eu me sinto um fragmento de Deus


Como sou um resto de raiz
Um pouco de água dos mares
O braço desgarrado de uma constelação.

A matéria pensa por ordem de Deus,


Transforma-se e evolui por ordem de Deus.
A matéria variada e bela
É uma das formas visíveis do invisível.
Cristo, dos filhos do homem és o perfeito.

Na Igreja há pernas, seios, ventres e cabelos


Em toda parte, até nos altares.
Há grandes forças de matéria na terra, no mar e no ar
Que se entrelaçam e se casam reproduzindo
Mil versões dos pensamentos divinos.

5
Ver mais sobre esse tema no livro Todas as religiões são uma só, em BLAKE (2007).

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A matéria é forte e absoluta
Sem ela não há poesia. (MENDES, 1994, p. 296-297).

Na primeira estrofe, o poeta reafirma sua conexão com o sagrado, sentindo-se como
fragmento do Absoluto. Como se o princípio divino da criação emanasse de Deus através da
sua poesia, o poeta sente-se parte integrante do enraizamento terreno, da volubilidade dos
mares e da abstração etérea dos astros. Em seguida, sob a perspectiva material, ele é a alma
vivente que se corporifica, se transforma e evolui, inteligível, refletindo os sonhos e desígnios
de Deus, que têm seu início em Adão, até culminar na plenitude e perfeição de Cristo.
Na última parte do poema, o poeta compreende que a vida humana, mesmo regida pelo
poder absoluto e sagrado de Deus, é o acirramento permanente entre o corpo e a alma, ao
sentir-se atraído pela beleza e sensualidade da carne dentro mesmo do templo de Deus.
Movido pela chama elementar do sexo, o poeta consubstancia toda a mecânica divina da
ordem do espiritual até a espessura visível e material da natureza humana, na ordem da vida
hodierna e comum, como sendo a essência da sua poièsis.
Sob a perspectiva da poesia moderna, houve um momento em que a crise moral e
espiritual do sujeito foi potencializada pela polarização entre a negatividade pagã e a
espiritualidade cristã, gerando uma cisão irreversível no ocidente. Acentuada pela
disseminação do gnosticismo, o qual tomou grande proporção, a poesia moderna reafirmou a
negatividade profana em detrimento do cristianismo, considerando, sobretudo, que este se via,
historicamente, enfraquecido como instituição. Evidentemente, é possível rastrear as marcas
dessa cisão desde a poesia romântica de William Blake e Novalis, passando por Baudelaire e 121
Nerval, até o surrealismo de Lautréamont e Bréton, já no século XX, quando estes quatro
últimos se aproximaram, declaradamente, da gnose, do ocultismo, e do agnosticismo. 6
Historicamente, esse processo assumiu proporções substanciais desde o Iluminismo à
era industrial, sendo, mais tarde, determinantemente corroborado pela crítica direta de
Nietzsche, Marx, Freud e Durkheim às instituições religiosas, principalmente ao catolicismo
apostólico romano. Some-se a isso o surgimento de uma mentalidade progressista forjada pela
lógica materialista e tecnocrata, o que acentuou ainda mais o esboroamento e a
descontinuidade do tempo e do espaço, visando desmontar a concepção da existência fundada
na totalidade metafísica do homem, do mundo e do cosmos em unidade com o Deus.
Assim, eis que o sujeito se viu, nesse momento, deslocado da concepção cosmogônica
e transcendente do sagrado, ao perceber a existência sob a perspectiva do corpo, pela força
instintiva do desejo em imanência com o mundo. Pois, ao passo em que esta totalidade
metafísica é rompida, o indivíduo se redescobre a partir de uma dupla acepção de ser ao
mesmo tempo sujeito e objeto, quando é separado da natureza e devolvido à imanência das
coisas finitas, de maneira que essa percepção o angustia, deixando-o terrificado. Assim,
acuado em sua finitude e desespero, o sujeito passa a criar sentido para sua existência
integrando-se ao mundo das coisas por meio do trabalho, em tensão com a ordem íntima da
matéria, que é por onde se passa sua relação com o sagrado.

6
Como demonstrou Raul Antelo, a partir de um ensaio sobre Murilo Mendes, ao trazer um trecho de uma
entrevista em que o poeta alinha as bases históricas e filosóficas da negatividade profana desde o século XVIII
até sua influência no surrealismo francês. Verificar em ANTELO, Raul. “Murilo, o Surrealismo e a Religião”
disponível em:http://www.cce.ufsc.br/ñelic/boletim8-9/raulantelo.htm.

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Por outro lado, ainda que o processo de industrialização tenha provocado efeitos
irreversíveis na concepção do homem ao acelerar o tempo e desdobrar os espaços, mantendo-
os simultaneamente interconectados, é o seu medo da morte que o angustia, na medida em que
a fragmentação do real o impede de apreender o sentido de totalidade de sua existência,
retirando a „ordem íntima‟ e sagrada que o reconciliava com o mundo.
Sobre a relação entre a negatividade e a poesia, Georges Bataille, em A literatura e
mal, afirma que a poesia moderna é marcada por um paradoxo que corresponde à natureza
humana mais profunda, ao expressar a essência dualista e dinâmica de nossa condição,
configurada pela tensão entre o bem e o mal, como ele exemplificou em vários poetas, com
destaque para William Blake e Charles Baudelaire. Segundo Bataille:

O Mal, nessa coincidência de contrários não é mais o princípio oposto de uma


maneira irremediável à ordem natural que ele é nos limites da razão. A morte sendo
a condição da vida, o Mal, que está ligado em sua essência à morte, é também, de
uma maneira ambígua, um fundamento do ser. O ser não está destinado ao Mal, mas
deve, se assim pode, não se deixar encerrar nos limites da razão. (BATAILLE,
2015a, p. 26).

Bataille defende que a significação do Mal se proclama a partir de uma auto


condenação da própria condição humana, seja na inclinação para a morte, para a guerra ou
para o erotismo, o que poderia forjá-lo para um estado de angústia, de raiva e repugnância. O
Mal é tomado como um impulso, uma paixão ou uma atração irrefletida, diferentemente de
uma intencionalidade calculista, crapulosa e egoísta, como diz Bataille, ao deslocar o Mal de
122
um lugar moral, sujeito à lei, mas sob a espessura humana e passional, já que, segundo ele, “A
literatura mais humana é o alto lugar da paixão”, isto é, como se esse embate apaixonado
fosse absolutamente necessário ao homem para se reconhecer como sujeito.
Na medida que este estado de crise era trazido à tona pela consciência do mal na
natureza individual do sujeito, a experiência poética deixava de ser apenas um modo de
resistência e intervenção à esta lógica industrial massiva, maquínica e desumana, tornando-se,
sobretudo, o meio pelo qual ambos os poetas passaram a cultivar a aproximação e busca da
unidade com o sagrado como uma experiência ética e substancial.
Ainda segundo Bataille:

O sagrado é essa efervescência pródiga da vida que, para durar, a ordem das coisas
encadeia e que o encadeamento transforma em desencadeamento, ou, em outros
termos, em violência. Sem trégua, ele ameaça romper os diques, opor à atividade
produtiva o movimento precipitado e contagioso de um consumo de pura glória. O
sagrado é precisamente comparável à chama que destrói a madeira ao consumi-la. É
o contrário de uma coisa, um incêndio ilimitado que se propaga, irradia calor e luz,
queima e cega. (BATAILLE, 2015b, p. 44).

Para o pensador e teólogo cristão Sören Kierkegaard, é justamente um estado de


permanente inquietação existencial e espiritual que distingue e move o sujeito. Para ele,
somos motivados de tal modo por um intenso acirramento entre três esferas que se
confrontam permanentemente e ao longo de nossa existência, como se fôssemos o devir de
uma conflituosa dinâmica entre a esfera estética, a ética e a espiritual.

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Segundo ele, seja a melancolia ou a angústia, a depressão ou o desespero que histórica
e atavicamente atormentam o ser humano, todos esses males são apenas fluxos de um
processo existencial do sujeito em sua relação com o mundo, de modo que este mal-estar deve
ser visto como um processo de edificação da sua consciência ética, que só alcançará a
libertação por meio da fé e da elevação espiritual.

Todo conhecimento cristão, por estrita que seja de resto a sua forma, é inquietação e
deve sê-lo; mas essa mesma inquietação edifica. A inquietação é o verdadeiro
comportamento para com a vida, para com a nossa realidade pessoal e,
consequentemente, ela representa, para o cristão, a seriedade por excelência; a
elevação das ciências imparciais, muito longe de representar uma seriedade superior
ainda, não é, para ele, senão farsa e vaidade. Mas sério é, eu vo-lo afirmo, aquilo que
edifica. (KIERKEGAARD, 1979, p. 189).

Segundo Kierkegaard, embora o pecado original e hereditário tenha sido condicionado


ao sujeito a partir de uma conjectura moral e secular, ele deveria ser visto sob a dimensão
existencial e espiritual, quando, no momento em que escolheu a si mesmo, o homem perdeu
sua ligação com o sagrado e, consequentemente, a dimensão do infinito e da eternidade,
quedando ao abismo de sua condição terrena e finita.
Logo, se a angústia é o medo de errar que condena o sujeito diante da possibilidade de
libertar-se, esvaziando o sujeito de sua confiança pelo medo de pecar - que é o medo de
afastar-se de Deus -, esse medo gerará nele uma angústia, justamente pela ausência da fé, e a
sensação será tal e qual uma vertigem, por quedar-se no vazio abismal.
123
Kierkegaard acredita que a angústia e o desespero são parte da natureza e da condição
humana, conforme a herança adâmica após a queda do paraíso. Em face disso, para que o
homem não se desespere é preciso aniquilar em si a cada instante essa possibilidade virtual e
frequente da queda, evitando que essa sombra recaia sobre a realidade psíquica e física do
sujeito.
Segundo ele, após o pecado original, o homem está condicionado à sua natureza
animal, determinada pela queda do paraíso, e assim ele luta intensamente para reconciliar-se
com Deus. Não obstante, para que isso aconteça, é necessário elevar-se espiritualmente e
renunciar ao instinto, sendo que, dessa luta, resulta o seu desespero.
Para ele, o homem não tenta livrar-se da carne, mas deseja ser tocado espiritualmente
pelo sagrado. Deste modo, ao ser tocado pelo eterno e imortal de Deus, o espírito prevalecerá
sobre o instinto naturalmente devorador e vazio – pois na medida em que o desejo é suprido,
revela-se a ausência de sentido que o preencha, além do próprio desejar e devorar. Em linhas
gerais, seu desejo não está voltado para a satisfação dos instintos, mas sim para a busca de um
sentido primordial que ordene sua existência e que preencha o vazio abismal de sua queda,
através de Deus.
Evidentemente que isto implica em um paradoxo, já que a consciência espiritual é
movida pelo desejo de uma existência com Deus, sendo que o desejo de uma existência junto
a Deus depende de uma consciência transformada que só pode ser alcançada por meio de um
“salto qualitativo” (ético espiritual) em direção ao abismo e ao vazio, pela fé. Nesse sentido,
esse salto exige a convicção e a consciência em desejar ser transformado pelo poder
sobrenatural de Deus, de modo que aquele vazio angustiante acentuado por um desejo e
desespero, só pode ser preenchido pela unidade com o sagrado.

Guavira Letras (ISSN: 1980-1858), Três Lagoas/MS, n. 26, p. 116-128, jan./abr. 2018.
Junto de ti, homem, ser processional que só vês tua sombra,
pousa a mão no teu ombro o Anjo que te protege.
Mas, ora esvoaça à direita, ora esvoaça à esquerda
o grande e belo Anjo exilado da Luz.
Adiante de ti - perfurada e sangrando,
a mão do Redentor te aponta o caminho certo;
dentro de ti - seres anteriores a ti - luminosos ou negros
vão contigo e tua sombra.
Quando adormeces e ficas durante o sono - invisível e inocente,
e o livre arbítrio voa de teu cadáver,
a estranha procissão espera que tu te acordes
para prosseguir a marcha.
Por isso é que te cansas sem motivo nenhum.
Por isso é que andas de costas para o caminho certo.
Por isso é que tropeças e tateias como um ser sem leme.
Por isso quando pensas estar sobre o abismo do Inferno,
a mão perfurada e sangrenta te conduz para cima. (LIMA, 1997, p. 429).

No poema, a cisão diabólica do anjo exilado e a parte celestial do Redentor


estabelecem-se sobre a condição humana, enquanto a poesia é forjada como um saber que
expressa não somente a consciência espiritual desse salto sobre o abismo da negatividade,
quando o sujeito é movido por impulsos instintivos e desejantes. Mas, sobretudo, o poeta sabe
que ele é também o sujeito do desejo e livre arbítrio, consciente de que desejar é a essência da
vida.
Porém, seu desejo não está voltado para si próprio e visando a mera satisfação dos 124
instintos, mas sim para o sentido primordial da existência, visando preencher o vazio através
de Deus. Portanto, ao romper a sombra diabólica que obscurece a visão do infinito e paira
sobre o homem na forma da razão, como mera ilusão de autossuficiência, ele atinge a
omnivisão de Deus através da fé, quando, ao saltar sobre a escuridão do abismo infernal, „a
mão perfurada e sangrenta de Jesus Cristo o conduz‟ para o alto.
Seja sob o tom agônico e escatológico, seja sob angústia ou desespero humano diante
do flagelo da fome ou da guerra, ambas as poesias de Jorge e Murilo expressam a experiência
conflituosa do sujeito entre a negatividade da queda e o desejo de elevação, como se essa
tensão consubstanciasse sua experiência sacrificial e, ao mesmo tempo, como algo que só
pudesse ser compreendido na ordem íntima em que se passa a relação de intensidade vivencial
com o sagrado.
Em outras palavras, antes que a relação entre o sujeito e o sagrado possa ser vista
apenas pelo ângulo analógico ou beatífico da poesia, considera-se, primordialmente, que as
poesias de Jorge de Lima e Murilo Mendes expressam a transformação espiritual (metanóia)
no próprio fazer poético (poièsis), tomando-a como uma intervenção real que visa tocar a
verdade que se passa na intimidade com Deus pela ordem das coisas.
Diante da evidência de uma existência em crise, a poesia expõe a impotência do
sujeito em meio às macroestruturas econômicas e sociais que propiciam seu esvaziamento
espiritual e a desvalorização humana em face das macroestruturas econômicas. Ao mesmo
tempo e dentro dessa ótica, é preciso que o sujeito vá ao encontro dessa paixão que o move, e
que é também sua expiação, aceitando-a como a „parte maldita‟ que proporcionará sair do
lugar comum, ou seja, desse vazio que o imobiliza e o definha.

Guavira Letras (ISSN: 1980-1858), Três Lagoas/MS, n. 26, p. 116-128, jan./abr. 2018.
Minha história se desdobrará em poemas:
Assim outros homens compreenderão
Que sou apenas um elo da universal corrente
Começada em Adão e a terminar no último homem. (MENDES, 1994, p. 255).

Efetivamente, na poesia de ambos, essa negatividade humana não deve ser vista
apenas sob a perspectiva da tradição pagã, ao passo que ela está inserida dentro do contexto
adâmico do cristianismo, isto é, da queda e expulsão do Éden. Deste modo, na medida em que
a poesia naturaliza a irracionalidade dessa paixão e negatividade trágicas para o nível da vida
comum do sujeito, ela visa, dessa maneira, libertar o imaginário do racionalismo materialista
e ordinário, lançando-o ao maravilhoso e transcendente, isto é, consagrando esta tensão e
anseio pela promessa da vida eterna, sob a égide da natureza infinita de Deus, como se esse
conflito fosse parte do processo beatífico de reconciliação com o sagrado.
Sob a perspectiva teológica de Jorge e Murilo o cristianismo se passa, antes de mais
nada, na individualidade do sujeito e sua prática cotidiana com o outro. Mais do que um
substrato literário, o sentido da leitura do Evangelho requer sua aplicação vivencial, como
uma ética colocada em prática no convívio diário e social com o outro, em detrimento de
qualquer institucionalização dogmática e restritiva de seu conteúdo.

Sim, creio numa única, imensa, geral e verdadeira revolução: que é a Revolução de
Cristo, que apenas começa e em que as outras revoluções sociais sejam elas quais
forem, francesa ou russa, serão unicamente minutos dentro dessa eterna revolução, 125
que só terminará no dia do Juízo Final. [...] Trazendo à Humanidade, muitas vezes
distante da verdade, atrações momentâneas da vida, a realidade da Dor, a realidade
da Morte, que jamais será afastada da realidade de Cristo, que a todo o instante nos
espera, no final de todos os momentos. (LIMA, 1997, p. 96).

Como disse Jorge de Lima, ao contrário de uma mobilização massiva, a revolução


cristã se passa, primordialmente, ao nível da consciência individual do sujeito, como uma
transformação (metanóia) pela fé, e ao nível do próprio corpo, isto é, da própria experiência,
ao ampliar sua ação da esfera existencial e pessoal para a esfera social e impessoal com o
próximo, com o outro, sendo ao mesmo tempo transcendente e imanente.
Verifica-se, deste modo, que, muito embora a religião cristã tenha sido determinante
nas poéticas de Jorge e Murilo, suas poesias jamais adotaram uma expressão puramente
panfletária, prosélita ou ascética. Ao contrário, ambas as poéticas se valeram essencialmente
do caráter transcendente e da tonalidade metafísica e espiritual, sempre colocados sob
permanente tensão com a imanência da desordem material da vida cotidiana dos afetos e
paixões, vivenciando este acirramento através da experiência poética inscrita ao nível do
corpo e da queda.
Assim, reitera-se que a poesia de tonalidade espiritual cristã de Jorge e Murilo forjou-
se a partir desse prisma dramático e paradoxal entre a negatividade demoníaca e a
transcendência divina. Pois, sob essa perspectiva, se a queda adâmica pode ser vista sob o
signo de um mal-estar e esvaziamento, por outro lado, esse mal inoculado em nossa condição
humana pode, ao mesmo tempo, servir como uma força propulsora ao sujeito, movendo-o em

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direção a Deus pela fé. Todavia, trata-se da fé como uma decisão espiritual consciente, que
cultiva sua transformação ética ao nível das práticas comuns e cotidianas com o outro, e não
como um mero fideísmo.
Como disse o poeta Jorge de Lima, a consciência cristã está em saber que este
movimento será posto à prova todos os dias, como modo de fortalecimento da fé pelas
tribulações e compreensão de que esta luta engendrada no corpo e na consciência corresponde
à luta entre as potestades e as hostes celestiais, como na carta de Paulo aos Efésios (6:11-12,
Cf. BÍBLIA SAGRADA, 2011).7

O mundo atual, como sempre, é um grande campo de batalha, onde se digladiam


constantemente as forças do Mal e do Bem. Muitas vezes pensamos, devido a
circunstâncias fortuitas e à curta visão do homem, pensamos que o Mal está
ganhando terreno, como atualmente é a impressão que nos dá a imensa tragédia
universal dos tempos presentes. Mas não! O Bem está à frente, o Bem conquista,
mesmo sem nós percebermos, terreno para o Reino de Deus, dia a dia, hora à hora,
minuto a minuto. (LIMA, 1997, p. 96).

Ainda em face dessa perspectiva, pode-se dizer que, além de serem movidas pela crise
e mal-estar do sujeito, as poéticas de Jorge e Murilo expressam essa visão cristã da existência
que compreende a vida terrena como um dilaceramento entre as forças do bem e do mal, ao
nível do corpo e da consciência. Guardadas as respectivas singularidades, ambas as poéticas
assinalam, sob a ótica teológica e beatífica, que a compreensão dessa luta e acirramento
corresponde à nossa própria transformação espiritual, isto é, à nossa metanoia, na medida em
que vivemos para superar a consciência secular, espiritualizando-a através da inquietude das 126
tribulações.
Pode-se dizer que na concepção poética de ambos a poesia deixou de ser um lugar
estético para ser cultivada como uma experiência onde o corpo e a linguagem se fundem
numa inscrição vivencial que já não delimita fronteiras entre a práxis e poièsis. Ou seja,
ambas as poéticas fundem a esfera ética e a dimensão estética, abrindo-se ao cultivo de uma
experiência cotidiana que transcende a esfera existencial e social, lançando-as a uma
dimensão universal, e reconectando o sujeito com o sagrado através dessa mesma experiência.
Em ambos é possível identificar uma radicalidade expressional marcada pelo
acirramento e pelos excessos que transformam o sujeito, de modo que o cultivo da experiência
poética seja visto sob a perspectiva desta crise e contradição que delineiam o sujeito moderno
e a poesia, como este fazer-se a si mesmo através de suas respectivas poièsis, e não por uma
busca ascensional do sagrado através da poesia.
Em síntese, a teologia cristã de ambos não está voltada para um ascetismo e
transcendência, em detrimento da carne reduzida ao signo do pecaminoso, mas a um
cristianismo que compreende a experiência humana a partir da tensão permanente entre a
queda, o instinto e o sentimento órfico, acirrados pelo desejo de reconciliação, transcendência

7
“Revesti-vos de toda a armadura de Deus, para que possais estar firmes contra as astutas ciladas do diabo.
Porque não temos que lutar contra a carne e o sangue, mas, sim, contra os principados, contra as potestades,
contra os príncipes das trevas deste século, contra as hostes espirituais da maldade, nos lugares celestiais.”
(BÍBLIA SAGRADA, 2011, p. 1548).

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e libertação em Cristo, de modo que esse acirramento esteja dialeticamente consubstanciado
no plano da poesia.

Quero suprimir o tempo e o espaço


A fim de me encontrar sem limites unido ao teu ser,
Quero que Deus aniquile minha forma atual e me faça voltar a ti,
Quero circular no teu corpo com a velocidade da hóstia,
Quero penetrar nas tuas entranhas
A fim de ter um conhecimento de ti que nem tu mesma possuis,
Quero navegar nas tuas artérias e confabular com teu sangue,
Quero levantar tua pálpebra e espiar tua pupila quando acordares,
Quero abaixar a nuvem para que teu sono seja calmo,
Quero ser expelido pela tua saliva,
Quero me estorcer nos teus braços
Quando os fundamentos da terra se abalarem nos teus pesadelos,
Quero escrever a biografia de todos os átomos do teu corpo,
Quero combinar os sons
Para que a música da maior ternura embale teus ouvidos,
Quero mandar teu nome nas flechas do vento
Para que outros povos te conheçam do outro lado do mar,
Quero forçar teu pensamento a pensar em mim,
Quero desenhar diante de teus olhos
O Alfa e o Ômega nos teus instantes de dúvida,
Quero subir em ramagem pelas tuas pernas,
Quero me enrolar em serpente no teu pescoço,
Quero ser acariciado em pedra pelas tuas mãos,
Quero me dissolver em perfume nas tuas narinas,
Quero me transformar em ti. (MENDES, 1994, p. 304).
127

REFERÊNCIAS

ANTELO, Raul. Murilo, o Surrealismo e a Religião disponível em:


<http://www.cce.ufsc.br/ñelic/boletim8-9/raulantelo.htm>.

ARAÚJO, Laís Corrêa de. Murilo Mendes: ensaio crítico, antologia e correspondência. São
Paulo: Perspectiva, 2000.

BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. Tradução de Fernando Scheibe. Belo Horizonte:


Autêntica, 2015a.

______. Teoria da religião. Tradução de Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica,


2015b.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São
Paulo: Brasiliense, 1994.

BÍBLIA SAGRADA. Traduzida em Português por João Ferreira de Almeida. Revista e


Atualizada no Brasil. 2. ed. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2011.

Guavira Letras (ISSN: 1980-1858), Três Lagoas/MS, n. 26, p. 116-128, jan./abr. 2018.
BLAKE, William. Sete livros iluminados. Tradução de Manuel Portela. Lisboa: Antígona,
2007.

KIERKEGAARD, Sören Aabye. Diário de um sedutor; Temor e tremor; O desespero


humano. Tradução de Carlos Grifo, Maria José Marinho, Adolfo Casais Monteiro. São Paulo:
Abril Cultural, 1979.

LIMA, Alceu Amoroso. Memórias improvisadas: diálogos com Medeiros Lima. Petrópolis:
Vozes, 1973.

LIMA, Jorge de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997.

MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa - volume único. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
1994.

______. Recordações de Ismael Nery. São Paulo: EdUsp, 1996.

Recebido em 09/01/2018
Aprovado em 29/04/2018

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