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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

UFPR SETOR LITORAL

De altas rodas e crepúsculos militantes: o tardo fardo do tempo


histórico na literatura brasileira a partir de Antônio Cândido de Mello e
Souza (1918 - 2017)

Resenha crítica apresentada ao módulos Estudos Literários III


Guillaüme Hatschebach GRR 2021 1098
Professora Dra. Cristina Cardoso

A arquitetura do baixo medievo é marcada por traços de janelas finas sem


vidraças, ambientes úmidos e frios, se bem marcados pelo imperativo de defesa
militar e organização aristocrática, e, logo, ambiente propício a afecções do sistema
respiratório, dada a alta densidade para propagação de patógenos.
As vidraças eram, então, um item de luxo, notadamente as de colorações
distintas. O letramento literário pode ser tido, analogamente, como o arco que faz
atravessar as paredes molhadas e transitar luz nova e, neste sentido, o vitral
colorido é uma forma literária adequada à luminação deste interior.
Ora, de que janelas falamos? Da cosmopercepção proporcionada pela obra
de arte, haja vista que na América Latina a literatura atue como aos países
desenvolvidos pela importância da Filosofia. Tese polêmica não restar aqui
Filósofos e Filósofas, mas antes comentadores, argumento que pode ser reiterado a
partir do texto do professor Antônio Candido (1):

A idéia de pátria se vinculava estreitamente à de natureza e em


parte extraía dela a sua justificativa. Ambas conduziam a uma
literatura que compensava o atraso material e a debilidade das
instituições por meio da supervalorização dos aspectos regionais,
fazendo do exotismo razão de otimismo social.

Cabe à especulação filosófica a substância de pátria, sociedade, natureza,


ser social, etc. mas que ao Trópico de Capricórnio é realizada pela Literatura. Esta
não é uma asserção de caráter moral, é antes uma qualidade da literatura nacional,
por vezes literatura universal em seu sentido categorial.
Se ao Romantismo nosso céu era azul, em O País do Carnaval a lua e outros
elementos naturais atuam também como marcadores dos sentimentos do
protagonista, seus valores, anseios e perspectivas 1, obra publicada já no período
destacado pelo professor Antônio Candido por pré-consciência do
subdesenvolvimento.
A segunda quadra do século XX traz importantes contribuições para a
urbanização brasileira de seus principais centros, século que traz a metalurgia ao
acordo tácito pelo alto e a construção da capital Brasília. Seus efeitos na literatura
não são imediatos, mas antes determinação social da obra de arte, fundamento e
protoforma que não reduz ou identifica imediatamente, mas antes dá base social e,
portanto, tem seus impactos na cosmopercepção prático-cotidiana e na estética, se
bem Paulo Rigger, protagonista do romance citado, sofra ao padecer pela frustração
amorosa perpetrada por seu próprio ego (HATSCHEBACH, 2020, p. 47). Deixa ao
país, metáfora para o abandono de um projeto de nação da sociedade civil brasileira
ao recuo político vindouro trazido pela modernização urbana e industrial.
A consciência crítico-reflexiva do subdesenvolvimento é apontada pelo
professor Antônio Candido ao passo que esta

[...] abandona, então, a amenidade e curiosidade, pressentindo ou


percebendo o que havia de mascaramento no encanto pitoresco, ou
no cavalheirismo ornamental, com que antes se abordava o homem
rústico. Não é falso dizer que, sob este aspecto, o romance adquiriu
uma força desmistificadora que precede a tomada de consciência
dos economistas e políticos.

Distingue Candido nesta consciência dois períodos, sabidos i. de consciência


amena; e ii. consciência catastrófica de atraso; caracterização que reside a
remontar do presente os traços do passado, como o paleontólogo a remontar de
jazigos anteriores à escrita os traços culturais, remontando os aspectos culturais
pela restituição de seus sentidos.
Para a arqueologia da literatura, considera Candido (2-3) jungir ao
analfabetismo a:

1 Amado (1961, p. 17): "Entre o azul do céu e o verde do mar, o navio ruma o verde-amarelo pátrio.
Três horas da tarde. Ar parado. Calor. No tombadilho, entre franceses, inglêses, argentinos e ianques
está todo o Brasil"
falta de meios de comunicação e difusão (editoras, bibliotecas,
revistas, jornais); inexistência, dispersão e fraqueza dos públicos
disponíveis para a literatura, devido ao pequeno número de leitores
reais (muito menor que o número já reduzido de alfabetizados);
impossibilidade de especialização dos escritores em suas tarefas
literárias, geralmente realizadas como tarefas marginais ou mesmo
amadorísticas; falta de resistência ou discriminação em face de
influências e pressões externas. O quadro dessa debilidade se
completa por fatores de ordem econômica e política, como os níveis
insuficientes de remuneração e a anarquia financeira dos governos,
articulados com políticas educacionais ineptas ou criminosamente
desinteressadas.

É a inexistência de aquedutos para o Império Romano. Muito embora os


aquedutos não proporcionem o efetivo translado das águas, isto é, a alfabetização é
uma pré-condição, mas não aflui águas per se. Em nossa época, algo posterior ao
escrito do professor Antônio Candido, a alfabetização se tornou tão somente pré-
condição para a messe da catequese digital, com suas naves de 00:17 segundos e
genuflexões exaustivamente repetidas.
Muito embora possibilitem tais plataformas o diálogo de temas transversais
como identidade de gênero e etnias, os conteúdos massificados em tecnologias de
mídias digitais apagam as especificidades culturais, tais como as linguísticas, em
detrimento a um padrão standard.
A propósito, aponta Candido (4)

Porém, numa civilização massificada, onde predominem os meios


não-literários, paraliterários ou subliterários, como os citados, tais
públicos restritos e diferenciados tendem a se uniformizar até o
ponto de se confundirem com a massa que recebe a influência em
escala imensa. E, o que é mais, por meio de veículos onde o
elemento estético se reduz ao mínimo, podendo confundir-se de
maneira indiscernível com desígnios éticos ou políticos, que, no
limite, penetram na totalidade das populações.

O impacto da dinâmica das tecnologias de mídias sociais amplia o escopo de


influência ao público e sua relação com os conteúdos, algo verificado na psicanálise
quando da emergência do cinema, a saber, que a linguagem dos sonhos tenha sido
afetada pela forma fílmica.
Analogamente, as mídias digitais provocam alterações neuroquímicas,
nociceptivas e de relação com os conteúdos. A tecnologia das mídias digitais não
cria nada substancialmente, mas acresce e faz aprofundar os impactos da cultura
de massa (mass media).
A dissociação suscitada pela desconexão entre público e escritor advém do
estranhamento entre público inculto na linguagem literária erudita e a escrita a
idealizar um público de verve europeia, processo que admoesta a obra em
detrimento da forma, tendência que começa a se dissolver no período pós-Semana
de 22.
A recepção da vanguarda modernista, sobremaneira, é decalcada pela
posição aristocrática pretérita, se esquivando da pretensão de universalização do
ensino, educação e formação literária (CANDIDO, 6).
Em O País do Carnaval (1931) há dependência cultural europeia, motivo que
é deslocado para a influência cultural imperialista estadounidense em meados da
década de 1950 com o american way of life. Naquele, Paulo Rigger é modelo da
civilização a urbanização e inclusive os elementos naturais contornam e sublinham
o espírito das luzes a ascender ao atraso, com reflexos até em suas relações
afetivo-sexuais, é esta a “influência” algo inevitável que aponta Candido pela
imaturidade de uma literatura independente.
A incorporação crítico-reflexiva do estado de coisas no mundo, da
dependência econômica e de seu concomitante projeto de subdesenvolvimento, isto
é, de um projeto de inação social, cultural, política e, sabida, econômica, tem efeitos
não somente na apreciação de valores dos commodities, mas também na produção
e circulação dos valores estéticos.
Incorporação qual, não há, senão um aparente paradoxo a desanuviar sua
situação de contradição in adjecto, posto que não há (CANDIDO, 10). A
incorporação crítica da objetividade é ressaltada no traço de interdependência da
cultura material e espiritual de uma nação.
Quando o humanismo transcende os particularismos do típico regional, como
nas obras tardias de Jorge Amado, no teatro de García Lorca, ou em Grande sertão:
veredas, há realização do universalismo humano por mediação do regionalismo,
inscrevendo a particularidade no todo social (CANDIDO, 12).
Essa janela de coloração matizada, aos termos de nossa analogia, possibilita
um horizonte novo, como instantânea em Jorge Amado, fotografia documental em
Lorca ou etnografia em Guimarães Rosa.
Literatura empenhada2, aqui, aparece como literatura engajada, quais
podemos citar Mar Morto (1936), Gabriela, cravo e canela (1958), Tereza Batista
cansada de guerra (1972), em oposição à literatura partidarizada do período anterior
e subsequente a O País do Carnaval, nas quais houve não somente o cotejar de
questões sociais, mas também soluções a seus termos em programa político.

CANDIDO, Antonio. A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Ática,
1989. p. 140-162: Literatura e subdesenvolvimento. Comentário e hipertextos:
Célia Pedrosa (UFF).
HATSCHEBACH, B. Guilherme. Da subserviência às transgressões I: classe e
gênero. Novas Edições Acadêmica, 2019.

2 A respeito do engajamento na obra de arte, aponta Hatschebach (2020, p. 47-48): engajamento


revela-se na obra como um espelho, o qual revela a subjetividade e a posição ética do autor diante
dos dilemas no interior do contexto histórico. Partidarização pode ser definida como compromisso
com uma forma literária pré-determinada, conceito mais estrito, qual definição caracterizamos o
período amadiano de 1933 a 1954. Portanto, muito embora em Gabriela o autor não forneça uma
saída no quadro do etapismo histórico comum na leitura pecebista, não houve preterimento à
qualidade estética ou abandono do engajamento.

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