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Tradução da conferência

“L’artiste et son temps”,


de Albert Camus

Lídia ROGATTO*

L’artiste et son temps é uma conferência de Albert Camus pronunciada em


1957 na Universidade de Uppsala, Suécia. A ocasião era célebre: o encerramento
das cerimônias do prêmio Nobel de Literatura. O texto que segue, apesar de
não muito conhecido do público brasileiro, é de uma fremente atualidade.
Camus convida para uma reflexão sobre o trabalho, a vocação e o necessário
engajamento do artista com as demandas políticas da sua geração – uma geração
tanto de miséria quanto de esperança.
Embora o tom das primeiras páginas passe a impressão de que o autor
imagina o artista em uma posição nada promissora, o leitor não deve se enganar.
É com uma nota esperançosa que Camus, nascido há 100 anos na Argélia,
termina sua conferência: “Regozijemo-nos...” Tal convite reflete mais do que
uma conclusão otimista sobre as provações que o artista deve vencer, um artista
desenhado com a memória e o sangue seco das Grandes Guerras. Reflete, como
a própria filosofia de Camus, o poder avassalador que o artista  – sobretudo o
escritor – pode despertar quando, não obstante a miséria da história, promove
a vida: a trégua no meio da batalha, a grandeza por trás do risco, a liberdade
despertada pela palavra.
Esta tradução é um pequeno gesto de homenagem a Camus, um homem
cuja biografia e trabalho refletem a longa tragédia do século XX. Na ocasião do
centenário de seu aniversário, as palavras que seguem podem ser lidas como um
apelo para que se lute abertamente contra o instinto de morte na história. Para
que o artista, enfim, lembre-se da beleza, do prazer de ser e se comprometa a
buscar (e defender) a liberdade.
* UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem – Programa de
Divulgação Científica e Cultural. Campinas – SP – Brasil. 13083-859 – lidiarogatto@gmail.com.

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Lídia Rogatto

O artista e seu tempo


Em suas preces, um sábio oriental sempre pedia que a divindade o poupasse
de viver em uma época interessante. Como nós não somos sábios, a divindade
não nos poupou e nós vivemos em uma época interessante. Desse modo, ela não
admite que nós nos desinteressemos dela. Os escritores de hoje sabem disso. Se
eles se manifestam, recebem críticas e ataques. E se, modestos, eles se calam, eles
são culpados violentamente por seu silêncio.
No meio dessa algazarra, o escritor não pode mais esperar o isolamento
para buscar as reflexões e imagens que admira. Até os dias de hoje,
permanecer distante sempre foi possível. Quando alguém não aprovava, podia
frequentemente se calar, ou escolher falar de outra coisa. Mas hoje tudo mudou,
e mesmo o silêncio passou a ter implicações perigosas. A partir do momento
em que a própria abstenção é considerada uma escolha, punida ou admitida
como tal, o artista, querendo ou não, é chamado à embarcação. Esta ideia me
parece mais justa do que a de compromissado. De fato, não se trata, para o
artista, de um compromisso voluntário, mas de um serviço militar obrigatório.
Todo artista hoje é embarcado na galera de seu tempo. Ele deve nela se
resignar, mesmo se julgar que tal galera fede a arenque, que os vigias brutais
são realmente muito numerosos e que, além disso, o navio está tomando uma
direção equivocada. Nós estamos em mar aberto. O artista, como os outros,
deve remar por si mesmo, sem morrer, se isso for possível. Em outras palavras,
ele deve continuar a viver e a acreditar.
Para ser sincero, não é fácil, e eu entendo que os artistas sintam falta dos
confortos do passado. A mudança é um tanto brutal. Certamente, o mártir
e o leão sempre existiram no circo da história. O primeiro se sustentava com
consolações eternas; o segundo, com um alimento histórico bem ensanguentado.
Mas até aqui o artista ficava nas arquibancadas. Ele cantava por nada, para si
mesmo ou, no melhor dos casos, para encorajar o mártir e distrair um pouco o
leão do seu apetite. Hoje, pelo contrário, o artista se encontra no circo. Sua voz,
por necessidade, não é a mesma; ela é bem menos segura.
É fácil perceber tudo o que a arte tem a perder com esta constante
obrigação. Em primeiro lugar, a facilidade, e a divina liberdade tão aparente
nas obras de Mozart. É mais simples entender o aspecto selvagem e teimoso
das nossas obras de arte, sua preocupação e colapsos súbitos. Com isso, é óbvio
que nós temos mais jornalistas do que escritores, mais escoteiros da pintura do
que Cézannes e que, enfim, a bibliothèque rose ou o romance noir tomaram o

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lugar de Guerra e Paz ou de A Cartuxa de Parma. É claro que é sempre possível


opor a este estado de coisas a lamentação humanista e se tornar o que Stephan
Trophimovitch em Les Possedés queria ser com todas as forças: a encarnação
da censura. Como este personagem, também se pode ter acessos de tristeza
patriótica. Mas esta tristeza não muda nenhum ponto da realidade. Seria
melhor, na minha opinião, fazer a sua parte à época – uma demanda urgente –
e reconhecer tranquilamente que o tempo dos queridos mestres, dos artistas
das camélias e dos gênios sentados no sofá chegou ao fim. Hoje em dia, criar
é criar perigosamente. Toda publicação é um ato, e este ato expõe as paixões
de um século que nada perdoa. A questão, dessa forma, não é saber se isto é
ou não nocivo à arte. A questão, para todos aqueles que não podem viver sem
a arte e sem aquilo que ela significa, é simplesmente a de saber como, entre as
polícias de tantas ideologias (quantas igrejas, que solidão!), a estranha liberdade
de criação ainda é possível.
Não é suficiente dizer, a este respeito, que a arte está ameaçada pelos
poderes do Estado. Se isto fosse verdade, o problema seria simples: o artista
lutaria ou cederia. A partir do momento em que se percebe que o combate
reside dentro do próprio artista, o problema se torna mais complexo, e também
mais mortal. O atual ódio pela arte, do qual nossa sociedade oferece tão belos
exemplos, é eficaz pois é mantido pelos próprios artistas. A dúvida dos artistas
que nos precederam estava ligada a seu talento pessoal. A dos artistas de hoje
está ligada à necessidade da sua arte, portanto, da sua própria existência. Em
1957, Racine pediria perdão por escrever Bérénice ao invés de lutar pela defesa
do Edito de Nantes.
O questionamento que o artista faz sobre a arte tem diversas razões, das
quais não é preciso reter senão as mais altas. Entre as melhores explicações
está a impressão que o artista contemporâneo pode ter de mentir ou de falar
por nada, se ele não leva em conta as misérias da história. De fato, o que
caracteriza nosso tempo é a irrupção das massas e de sua condição miserável
diante da sensibilidade contemporânea. Nós sabemos que elas existem, mesmo
que tenhamos a tendência de esquecê-las. E se nós sabemos, não é porque
as elites (artísticas e outras) tenham se tornado melhores. Não  – e é preciso
que nos tranquilizemos  –, é porque as massas se tornaram mais fortes e nos
impedem de esquecê-las.
Há ainda outras razões, e algumas menos nobres, para tal demissão
do artista. Mas sejam quais forem essas razões, elas dividem um objetivo:

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desencorajar a criação livre ao combater o seu princípio essencial, isto é, a fé


do criador em si mesmo. “A obediência de um homem ao seu próprio gênio”,
disse Emerson de forma magnífica, “é a fé por excelência”. E um outro escritor
americano do século XIX acrescentou: “Enquanto um homem se mantém fiel a
si mesmo, tudo trabalha a seu favor – governo, sociedade, o próprio sol, a lua e
as estrelas”. Este otimismo prodigioso parece morto nos dias de hoje. Na maior
parte dos casos, o artista tem vergonha de si mesmo e de seus privilégios, se é
que ele os possui. Antes de qualquer coisa, deve responder à questão dirigida a si
mesmo: a arte é um luxo enganoso?

I.

A primeira resposta honesta é a seguinte: de fato, a arte é um luxo


enganoso. Como se sabe, no convés das galeras é possível, sempre e por toda a
parte, admirar as constelações enquanto os condenados remam e se extenuam
no porão; pode-se sempre gravar a conversação mundana que ocorre nas
arquibancadas do circo enquanto o leão esmigalha a vítima. E é muito difícil
questionar qualquer coisa sobre esta arte que obteve tantos êxitos no passado.
Mas as coisas mudaram um pouco e o número de condenados e de mártires
aumentou prodigiosamente na superfície do globo. Perante tanto mistério,
se esta arte deseja continuar sendo um luxo, ela deve aceitar ser também uma
mentira.
De fato, do que a arte falaria? Se ela se conforma com o que a maior parte
da nossa sociedade pede, ela será uma recreação sem alcance. Se ela recusa
cegamente essa sociedade, se o artista decide se isolar no seu sonho, ela não
exprimirá nada além de uma recusa. Assim, nós teremos uma produção de
animadores ou de gramáticos formais que, em ambos os casos, obtiveram sucesso
com uma arte afastada da realidade viva. Há cerca de um século, nós vivemos em
uma sociedade que não é nem mesmo a sociedade do dinheiro (o dinheiro e o
ouro podem suscitar paixões carnais), mas a dos símbolos abstratos do dinheiro.
A sociedade dos comerciantes pode ser definida como uma sociedade na qual
as coisas desaparecem em proveito dos signos. Quando uma classe dirigente
deixa de calcular suas fortunas de acordo com a medida da terra e a barra de
ouro e começa a contar o número de cifras que corresponde idealmente a um
certo número de operações de troca, ela está se dedicando, ao mesmo tempo,
a colocar um certo tipo de mistificação no centro de sua experiência e de seu
universo. Uma sociedade fundada em torno de signos é, na sua essência, uma

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sociedade artificial na qual a verdade carnal humana se encontra mistificada.


Assim, não surpreende que essa sociedade tenha escolhido, como religião,
uma moral de princípios formais, e que ela escreva palavras de liberdade e
de igualdade tanto nas suas prisões quanto nos seus templos financeiros. No
entanto, as palavras não podem ser prostituídas impunemente. O valor mais
caluniado hoje em dia é, sem dúvida, o valor da liberdade. Os bons espíritos
(eu sempre pensei que havia dois tipos de inteligência, a inteligência inteligente
e a inteligência louca) ensinam que ela nada mais é do que um obstáculo no
caminho do verdadeiro progresso. Mas disparates solenes como esses puderam
ser proferidos porque por cem anos a sociedade mercantil fez um uso exclusivo e
unilateral da liberdade, considerando-a mais como um direito do que como um
dever, e não temeu usar uma liberdade ideal, sempre que possível, para justificar
uma opressão muito real. Desde então, não é surpresa que essa sociedade não
tenha solicitado que a arte fosse um instrumento de liberação, mas um exercício
de simples divertimento. Assim, por dezenas de anos foi satisfeito todo um belo
mundo no qual as dores são principalmente as dores relacionadas ao dinheiro e
as preocupações são unicamente as do coração. A prova disso está nos romances
mundanos e na arte mais fútil possível, da qual Oscar Wilde, pensando nele
mesmo antes de conhecer a prisão, dizia que o maior de todos os vícios era o de
ser superficial.
Assim, os fabricantes da arte (eu ainda não disse “os artistas”) da
Europa burguesa pré e pós 1900 aceitaram a irresponsabilidade, já que a
responsabilidade pressuporia uma ruptura extenuante com a sociedade
(aqueles que realmente romperam com ela se chamam Rimbaud, Nietzsche,
Strindberg, e nós sabemos o preço que eles pagaram por isso). É dessa
época a teoria da arte pela arte, que não é nada além da reivindicação dessa
irresponsabilidade. A arte pela arte, um divertimento do artista solitário,
é justamente a arte artificial de uma sociedade fictícia e abstrata. Sua
consequência lógica é a arte dos salões ou a arte puramente formal que se
nutre de preciosidades e abstrações, levando à destruição de toda realidade.
Deste modo, algumas obras encantam alguns homens, enquanto muitas
invenções grosseiras corrompem muitos outros. Finalmente, a arte se constitui
fora da sociedade e se desfaz de suas raízes vivas. Pouco a pouco, o artista,
ainda que ele seja celebrado, fica sozinho – ou, ao menos, é apenas conhecido
da nação por intermédio da imprensa ou do rádio, que lhe atribuem uma
ideia cômoda e simplificada. De fato, quanto mais a arte se especializa,
mais necessária se torna a vulgarização. Milhões de homens terão, assim, o

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sentimento de conhecer este ou aquele grande artista da atualidade porque


saiu no jornal que ele cria canários ou que seu casamento durou apenas seis
meses. A maior celebridade de hoje é admirada ou detestada sem ter sido lida.
Todo artista com vontade de ser famoso deve saber que não é ele quem será,
mas algum outro sob seu nome, que acabará por escapar-lhe,e, talvez, um dia,
mate nele o verdadeiro artista.
Assim, não há nada surpreendente no fato de que quase tudo que se
criou de válido na Europa mercantil dos séculos XIX e XX  – em literatura,
por exemplo  – tenha sido arquitetado contra a sociedade de seu tempo.
Pode-se dizer que até a Revolução Francesa a literatura corrente foi, em geral,
uma literatura de consentimento. A partir do momento em que a sociedade
burguesa, fruto da revolução, foi estabilizada, uma literatura de revolta passou
a se desenvolver. Os valores oficiais foram então negados, seja pelos portadores
de valores revolucionários (dos românticos a Rimbaud), seja pelos defensores
de valores aristocráticos, como Vigny e Balzac. Nos dois casos, as duas fontes
de toda civilização  – povo e aristocracia  – empenharam-se contra a sociedade
fictícia de seu tempo.
Mas esta recusa, mantida há tanto tempo que está rígida, tornou-se
igualmente artificial e conduz a outro tipo de esterilidade. O tema do poeta
maldito nascido em uma sociedade mercantil (Chatterton é a melhor ilustração)
se endureceu com o preconceito de que só é possível ser um grande artista se se
estiver contra a sociedade do seu tempo, seja ela qual for. Embora tenha sido
legítimo, no início, quando afirmava que um artista verdadeiro não poderia
compor com o mundo do dinheiro, o princípio se tornou falso a partir do
ponto em que se entendeu que um artista não poderia vencer se não estivesse
contra todo tipo de coisa. É assim que muitos dos nossos artistas desejam ser
malditos, têm má consciência por não o ser, e desejam simultaneamente o
aplauso e o assobio. Naturalmente, a sociedade – hoje cansada ou indiferente –
não aplaude e nem assobia, a não ser por acaso. O intelectual do nosso tempo,
pois, não deixa de se endurecer para crescer. Porém, uma vez que recusa tudo,
até mesmo sua tradição artística, o artista contemporâneo se dá a ilusão de
criar sua própria regra e acaba acreditando que é Deus. Da mesma forma, ele
acredita poder criar sua própria realidade. No entanto, longe de sua sociedade,
ele não criará nada além de obras formais ou abstratas, emocionantes como
experiências, porém privadas da fecundidade própria da arte verdadeira, da qual
a vocação é a de agrupar. Por fim, haverá tanta diferença entre as sutilezas ou as
abstrações contemporâneas e a obra de um Tolstói ou de um Molière quanto

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que entre a letra de câmbio por um trigo invisível e a terra grossa do próprio
campo cultivado.

II.

A arte, assim, pode ser um luxo enganoso. Não provocará espanto que
os homens ou os artistas tenham querido dar ré e chegar à verdade. Nesse
momento, eles negaram que o artista tivesse direito à solidão e ofereceram-lhe
como tema não os seus sonhos, mas a realidade tal como ela é vivida e sofrida
por todos. Certos de que a arte pela arte  – tanto pelos seus assuntos como
pelo seu estilo – escapa à compreensão das massas, ou de que ela não exprime
nada de sua verdade, esses homens desejaram que o artista se propusesse, ao
contrário, falar da e para a maioria. Ele teria apenas que traduzir os sofrimentos
e a felicidade de todos em uma linguagem de todos para ser compreendido
universalmente. Como recompensa por ser absolutamente leal à realidade, ele
alcançaria uma comunicação completa entre homens.
Este ideal de comunicação universal é, de fato, o ideal de todo grande
artista. Contrariamente ao preconceito vigente, se há alguém que não possui
direito à solidão, este alguém é o artista. A arte não pode ser um monólogo.
Quando apela para a posteridade, o artista solitário e desconhecido não faz
nada além de reafirmar sua vocação profunda. Ao crer que o diálogo com
contemporâneos surdos ou distraídos é impossível, ele clama por um diálogo
mais numeroso, feito com as gerações futuras.
No entanto, para falar de todos e para todos, é preciso falar do que todos
conhecem e da realidade compartilhada. O mar, as chuvas, a necessidade, o
desejo, a luta contra a morte – eis o que nos reúne. Nós nos parecemos naquilo
que vemos juntos, naquilo que sofremos juntos. Os sonhos mudam com os
homens, mas a realidade do mundo é a nossa pátria comum. A ambição do
realismo é, portanto, legítima, pois ela está profundamente ligada à aventura
artística.
Sejamos, pois, realistas. Ou ao menos tentemos sê-lo, se for possível. Pois
não é certo que a palavra tenha um sentido, não é certo que o realismo, mesmo
se é desejável, seja possível. Perguntemo-nos, a princípio, se o realismo puro é
algo possível em arte. Segundo as declarações dos naturalistas do século passado,
o realismo é a reprodução exata da realidade. Ele seria para a arte, então, o que
a fotografia é para a pintura: a primeira reproduz enquanto a segunda escolhe.
Mas o que ela reproduz e o que é esta realidade? Até mesmo a melhor das

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fotografias, afinal, não é uma reprodução muito fiel e nem ainda tão realista.
O que há de mais real, por exemplo, no nosso universo, do que a vida de um
homem, e como esperar que esta vida seja melhor revivida do que em um
filme realista? Mas em quais condições tal filme seria possível? Em condições
puramente imaginárias. De fato, seria preciso supor uma câmera ideal fixa
sobre esse homem, registrando noite e dia, ininterruptamente, os seus menores
movimentos. O resultado seria um filme do qual a projeção duraria uma vida
humana e que só poderia ser visto por espectadores resignados a perder suas
próprias vidas para se interessar exclusivamente pelos detalhes da existência
de um outro. Porém, mesmo sob essas condições, este filme inimaginável não
seria realista, pela simples razão de que a realidade de uma vida humana não se
encontra apenas no lugar em que ela está.
Ela se encontra em outras vidas que dão forma à sua própria, vidas de
seres amados que, por sua vez, também deveriam ser filmados. Vidas também
de homens desconhecidos, poderosos e miseráveis, conterrâneos, policiais,
professores, companheiros invisíveis de minas e canteiros de obras, diplomatas
e ditadores, reformadores religiosos; artistas que criam mitos decisivos para
nossa conduta, representantes humildes, enfim, do acaso soberano que reina nas
existências mais ordenadas. Portanto, há apenas um filme realista possível, um
filme que é projetado sem parar na nossa frente por um aparelho invisível na
tela do mundo. O único artista realista seria Deus, se ele existe. Todos os outros
artistas são, necessariamente, desleais ao real.
Desde então, os artistas que recusam a sociedade burguesa e sua arte
formal, que querem falar da realidade e apenas dela, encontram-se em um
doloroso impasse. Eles precisam ser realistas e, ao mesmo tempo, não podem
sê-lo. Eles desejam submeter sua arte à realidade e não podem descrever a
realidade sem nela operar uma escolha que a submete à originalidade de uma
arte. A bela e trágica produção dos primeiros anos da Revolução Russa nos
ilustra bem tal tormento. O que a Rússia nos deu nesse momento com Blok e o
grande Pasternak, Maiakovski e Essenino, Eisenstein e os primeiros romancistas
do cimento e do aço foi um laboratório esplêndido de formas e temas, uma
inquietude fecunda, um entusiasmo selvagem pela pesquisa. No entanto, era
necessário concluir e dizer como era possível ser realista embora o realismo fosse
impossível. A ditadura, nesse e em outros casos, foi diretamente ao ponto: o
realismo era, segundo ela, a princípio, necessário, e depois possível com a
condição de que fosse deliberadamente socialista. Qual é o significado deste
decreto?

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De fato, ele reconhece francamente que não se pode reproduzir a


realidade sem para isso realizar uma escolha, e recusa a teoria do realismo que
foi formulada no século XIX. Resta-lhe encontrar um princípio de escolha ao
redor do qual o mundo se organizará. E ele o encontra, não na realidade que
conhecemos, mas na realidade que virá, ou seja, no amanhã. Para reproduzir
apropriadamente o que é, é também preciso representar aquilo que será. Em
outras palavras, o verdadeiro objeto do realismo socialista é justamente aquilo
que ainda não possui realidade.
A contradição é esplêndida. Porém, apesar de tudo, a própria expressão
do realismo socialista era contraditória. De fato, como é possível um realismo
socialista quando a realidade não é inteiramente socialista? Ela não é socialista,
por exemplo, nem no passado, nem totalmente no presente. A resposta é
simples: nós devemos escolher da realidade de hoje ou de ontem aquilo que
prepara e serve a cidade perfeita do futuro. Assim, por um lado, dedicamo-nos a
negar e condenar o que, na realidade, não é socialista, e por outro, exaltar aquilo
que é ou que pode se tornar socialista. Nós obtemos inevitavelmente a arte da
propaganda – com tudo o que ela tem de bom e de ruim – uma biblioteca rosa,
em outras palavras, tão remota quanto a arte formalista da realidade complexa
e viva. Finalmente, esta arte será socialista na medida exata em que não for
realista.
Esta estética que se pretendia realista torna-se um novo idealismo tão
estéril para um artista verdadeiro quanto o idealismo burguês. É garantida
à realidade uma posição soberana apenas para que ela seja melhor liquidada.
A arte se encontra reduzida a nada. Ela serve e, servindo, e torna-se escrava.
Apenas aqueles que evitam descrever a realidade podem ser louvados como
realistas. Os outros serão censurados com os aplausos dos primeiros. Se ser uma
celebridade numa sociedade burguesa equivale a não ser lido ou ser mal lido, em
uma sociedade totalitária equivalerá a impedir outros de serem lidos. Mais uma
vez a arte verdadeira será desfigurada, ou censurada, e a comunicação universal
tornar-se-á impossível pelas mesmas pessoas que a desejavam com ardor.
Diante de tal fracasso, seria mais simples reconhecer que o realismo
chamado socialista tem pouco a ver com a grande arte e que os revolucionários,
seguindo o próprio interesse da revolução, deveriam buscar outra estética.
Sabe-se, ao contrário, que esses defensores gritam que não há arte possível fora
dela mesma. Eles realmente gastam tempo gritando isso. Mas sustento uma
convicção profunda de que eles não acreditam nisso e que eles decidiram, nos

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seus corações, que os valores artísticos deveriam ser submissos aos valores da
ação revolucionária. Se isso fosse dito mais claramente, a discussão seria mais
fácil. Pode-se respeitar esta grande renúncia que marca os homens que sofrem
intensamente o contraste entre a desgraça de todos e os privilégios ligados
por vezes ao destino de um artista, que recusam a distância insuportável entre
aqueles que a miséria amordaça e aqueles cuja a vocação é, pelo contrário, a
de se exprimir sempre. Assim, seria possível compreender estes homens, tentar
dialogar com eles, buscar dizer-lhes que a supressão da liberdade criadora talvez
não seja o melhor caminho para triunfar a servidão e que, ao esperar falar para
todos, é estúpido se privar do poder de falar ao menos para alguns. Sim, o
realismo socialista deveria confessar seu parentesco e se reconhecer como
irmão gêmeo do realismo político. Ele sacrifica a arte para um fim alheio à
arte, mas que em uma escala de valores, pode lhe parecer superior. Em resumo,
ele suprime provisoriamente a arte para edificar, em primeiro lugar, a justiça.
Quando se fizer justiça, em um futuro ainda impreciso, a arte ressuscitará.
Nas matérias da arte é assim aplicada esta regra de ouro da inteligência
contemporânea, a regra que insiste na impossibilidade de se fazer uma omelete
sem que se quebrem os ovos. Mas este poderoso bom senso não deve nos
enganar. Não basta quebrar milhares de ovos para se fazer uma boa omelete e,
ao que me parece, a qualidade do cozinheiro não está ligada à quantidade de
cascas quebradas. Se os cozinheiros artísticos do nosso tempo derrubam mais
caixas de ovo do que eles pretendiam, a omelete da civilização pode nunca mais
dar certo e a arte pode nunca mais ressuscitar. A barbárie nunca é provisória.
Nunca é feita uma compensação suficiente para ela e é normal que, a partir
da arte, a barbárie se estenda aos costumes. Assim, da desgraça e do sangue
dos homens nascem as literaturas insignificantes, as boas imprensas, os retratos
fotográficos e as peças patrocinadas nas quais o ódio substitui a religião. A arte
culmina aqui em um otimismo forçado, que é justamente o pior dos vícios,
uma das mentiras mais ridículas.
Como poderíamos nos surpreender? O sofrimento dos homens é um tema
tão vasto que parece que ninguém saberia tocar nele, a menos que fosse tão
sensível quanto Keats, que poderia tocar a dor com suas próprias mãos. Isto
é claramente percebido quando uma literatura controlada tenta aliviar tal
sofrimento com consolações oficiais. A mentira da arte pela arte desejava ignorar
o mal e, consequentemente, assumiu responsabilidade por isso. Mas a mentira
realista, ainda que consiga admitir a infelicidade presente da humanidade,
trai tal infelicidade com semelhante gravidade ao usá-la para glorificar uma

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felicidade futura, sobre a qual ninguém sabe nada e que, portanto, autoriza todo
tipo de mistificações.
As duas estéticas que por muito tempo se afrontaram  – aquela que
recomenda uma total rejeição da atualidade e aquela que pretende rejeitar tudo
o que não é atualidade – terminam, entretanto, juntando-se num contexto longe
da realidade, em uma mesma mentira e na supressão da arte. O academicismo
da direita ignora uma miséria que o academicismo da esquerda utiliza. Mas em
ambos os casos a miséria é enfatizada ao mesmo tempo em que a arte é negada.

III.

Será preciso concluir que essa mentira é a própria essência da arte? No seu
lugar, eu diria que as atitudes que venho descrevendo são mentiras apenas na
medida em que elas possuem pouca relação com a arte. O que é, então, a arte?
Nada simples, isso é certo. E se torna ainda mais difícil de se descobrir em
meio aos gritos de tantas pessoas obstinadas a simplificar tudo. Por um lado, é
esperado que o gênio seja esplêndido e solitário; do outro lado, lhe é solicitado
se parecer com todos. Ora, a realidade é mais complexa. E Balzac o sugeriu
em uma frase: “O gênio se parece com todo mundo e ninguém se parece com
ele”. O mesmo acontece com a arte, que não é nada sem a realidade e sem
a qual a realidade é insignificante. Como, afinal, a arte dispensaria o real e
como poderia ser subordinada a ele? O artista escolhe seu objeto tanto quanto
é escolhido por ele. A arte, de certa forma, é uma revolta contra tudo que é
transitório e inacabado no mundo. Consequentemente, seu único objetivo é
o de dar outra forma a uma realidade que é coagida, no entanto, a preservar
por ser a própria fonte de sua emoção. Desse ponto de vista, somos todos
realistas e ninguém o é. A arte não é nem rejeição nem aceitação completa
do que existe. É, simultaneamente, rejeição e aceitação, e é por isso que deve
ser um corte em renovação perpétua. O artista se encontra sempre nessa
ambiguidade, incapaz de negar o real e, no entanto, eternamente dedicado
a contestar aquilo que ele possui de eternamente inacabado. Para pintar uma
natureza morta, é preciso que uma maçã e um pintor se confrontem e se
ajustem reciprocamente. E se as formas não são nada sem a luz do mundo,
elas, por sua vez, somam-se a essa luz. O universo real que, por seu esplendor,
convoca corpos e estátuas, recebe deles uma segunda luz que fixa aquela do
céu. O grande estilo encontra-se, assim, no meio do caminho entre o artista e
o seu objeto.

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Não se trata, pois, de determinar se a arte deve fugir do real ou se submeter


a ele, mas somente com qual dose exata do real a obra deve se fartar a fim de
não desaparecer nas nuvens, ou se arrastar, ao contrário, com solas de chumbo.
Cada artista resolve esse problema da maneira como ele sente e pode. Quanto
mais forte a revolta do artista contra a realidade do mundo, ainda maior, talvez,
o peso do real que ele equilibrará. Mas este peso não pode, jamais, sufocar
a exigência solitária do artista. A obra mais elevada sempre será  – como nos
trágicos gregos, Melville, Tolstói ou Molière – a obra que mantém um equilíbrio
entre a realidade e a rejeição dessa realidade, cada uma fazendo saltar a outra
incessantemente, como se percebe nos momentos mais felizes e aflitos da vida.
Assim, de vez em quando, um novo mundo aparece, diferente daquele do dia-
a-dia e, no entanto, o mesmo, particular, mas universal, repleto de insegurança
inocente – convocado por algumas horas pelo poder e o anseio do gênio. Assim
o é e, entretanto, não o é. O mundo não é nada e o mundo é tudo  – esse é
o grito contraditório e incansável de todo verdadeiro artista, o grito que o
mantém de pé com os olhos sempre abertos e que, de vez em quando, desperta
para todos que estão nesse mundo adormecido a imagem transitória e insistente
de uma realidade que nós reconhecemos sem jamais ter conhecido.
Da mesma maneira, o artista não pode se desviar do seu tempo nem se
perder nele. Se ele se desvia, fala no vazio. Por outro lado, se ele o toma como
objeto, o artista afirma sua própria existência como sujeito e não pode se
submeter inteiramente. Em outras palavras, é no momento em que o artista
decide compartilhar a sorte de todos que ele afirma o indivíduo que é. E ele
não poderá escapar dessa ambiguidade. O artista pega da história aquilo que ele
pode ver por si mesmo ou sofrer por si mesmo, direta ou indiretamente – isto
é, a atualidade no sentido estrito e os homens que vivem hoje, e não a relação
desta atualidade com um futuro que é imprevisível para o artista vivo hoje.
Julgar homens contemporâneos com base em um homem que ainda não existe
é papel da profecia. Mas o artista pode apreciar os mitos que são propostos a
ele apenas em função de sua repercussão entre os homens vivos. O profeta, seja
ele religioso ou político, pode julgar absolutamente e, aliás, como sabemos,
não se priva disso. Mas o artista não pode. Se ele julgar absolutamente, dividirá
arbitrariamente a realidade entre o bem e o mal, num tipo de melodrama. O
objetivo da arte, pelo contrário, não é legislar ou reinar, mas o de, em primeiro
lugar, compreender. Às vezes ela reina, como um resultado da compreensão.
Mas a genialidade de uma obra nunca foi baseada em ódio ou desprezo. É por
isso que o artista, no final de seu lento avanço, absolve em vez de condenar. Ao

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Tradução da conferência “L’artiste et son temps”, de Albert Camus

invés de julgar, ele justifica. Ele é o perpétuo defensor da criatura viva, por ela
estar viva. Ele realmente defende o amor pelo próximo, e não por aquele amor
distante que degrada o humanismo contemporâneo até ele se tornar o catecismo
da corte de justiça. Ao contrário, a grande obra acaba por confundir todos os
juízes. Com ela, o artista simultaneamente presta homenagem à figura mais
elevada da humanidade e faz reverência ao pior dos criminosos. “Nesse lugar
miserável”, escreveu Wilde na prisão, “não há um único homem desgraçado
comigo que não mantenha uma relação simbólica com o segredo da vida”. Sim,
e esse segredo da vida coincide com o segredo da arte.
Por cento e cinquenta anos, os escritores pertencentes à sociedade
mercantil, com poucas exceções, pensaram que podiam viver em um estado de
feliz irresponsabilidade. Eles de fato viveram, e depois morreram tão sozinhos
quanto eles haviam vivido. Mas nós, escritores do século XX, nunca mais
estaremos sozinhos. Em vez disso, temos de saber que nós nunca poderemos
escapar da miséria comum e que nossa única justificativa  – se há, realmente,
uma justificativa – é a de falar, o máximo que conseguirmos, por aqueles que
não podem fazê-lo. Mas nós devemos fazê-lo, de fato, por todos aqueles que
sofrem neste momento, sejam quais forem as glórias, passadas ou futuras, dos
Estados e partidos que os oprimem. Para o artista não há carrascos privilegiados.
É por isso que a beleza, ainda hoje, especialmente hoje, não pode servir a
nenhum partido; ela não pode servir, a longo e a curto prazo, a nada que não
seja o sofrimento dos homens ou sua liberdade. O único artista verdadeiramente
comprometido é aquele que, sem recusar entrar no combate, ao menos recusa
se juntar aos exércitos regulares e permanece, assim, independente. A lição
que ele então encontra na beleza, se ele a traça honestamente, não é uma lição
de egoísmo, mas de uma dura fraternidade. Assim concebida, a beleza nunca
escravizou nenhum homem. Pelo contrário, por milhares de anos  – todos os
dias, a todo segundo – ela aliviou a servidão de milhões de homens e, por vezes,
até mesmo liberou alguns de uma vez por todas. Afinal, talvez a grandiosidade
da arte esteja na sua perpétua tensão entre a beleza e a dor, o amor pelos homens
e a loucura da criação, a solidão insuportável e a multidão exaustiva, a rejeição
e a aceitação. A arte avança entre dois abismos: a frivolidade e a propaganda.
Nessa linha do pico da montanha em que o grande artista trafega, cada passo
é uma aventura, um risco extremo. É neste risco, entretanto, e apenas nele,
que está a liberdade da arte. Liberdade difícil e que se parece mais com uma
disciplina ascética. Qual artista poderia negar isso? Qual artista ousaria se dizer
à altura de tal tarefa incessante? Esta liberdade supõe uma saúde de coração e

Lettres Françaises 351


Lídia Rogatto

de corpo, um estilo semelhante à força da alma e um confronto paciente. Ela é,


como toda liberdade, um risco eterno, uma aventura extenuante e eis o motivo
pelo qual se foge, hoje, desse risco como se foge da liberdade exigente para se
precipitar em todos os tipos de servidão e obter, ao menos, o conforto da alma.
Mas se a arte não é uma aventura, o que é ela e qual sua justificativa? Não, o
artista livre, não mais do que o homem livre, não é o homem do conforto. O
artista livre é aquele que, com grande esforço, cria sua própria ordem. Quanto
mais indisciplinado for aquilo que ele deve pôr em ordem, mais rígida será sua
regra e mais ele afirmará sua liberdade. Há uma frase de Gide que eu sempre
aprovei por mais que ela possa ser facilmente incompreendida: “A arte vive
de coação e morre de liberdade”. Isso é verdade, mas não se pode tirar disso
que a arte possa ser controlada. A arte vive apenas da coação que ela impõe a
si mesma; ela morre de todas as outras. Por outro lado, se a arte não faz um
exercício de auto-coação, eis que ela delira e se escraviza a meras sombras. A
arte mais livre e mais revoltada será, assim, a mais clássica; e isso recompensará
o mais duro esforço. Enquanto uma sociedade e seus artistas não consentirem
neste longo e livre esforço, enquanto se entregarem ao conforto de diversões ou
do conformismo, aos jogos da arte pela arte ou às pregações da arte realista, seus
artistas permanecerão no niilismo e na esterilidade. Dizer isso é afirmar que o
renascimento depende, hoje, de nossa coragem e da nosso anseio pela lucidez.
Sim, este renascimento está nas mãos de todos nós. É da nossa
responsabilidade que o Ocidente produza anti-Alexandres que deveriam
renovar o nó górdio da civilização, cortado pela força da espada. Para isso, nós
devemos assumir todos os riscos e as tarefas da liberdade. Não se trata de saber
se, perseguindo a justiça, nós conseguiremos preservar a liberdade. É essencial
saber que, sem a liberdade, nós não conseguiremos realizar coisa alguma, e que
perderemos tanto a justiça do futuro quanto a beleza do passado. A liberdade
por si só retira os homens de seu isolamento; a servidão domina uma multidão
de solidões. E a arte, por virtude dessa essência livre que vim tentando definir,
une o que quer que a tirania separe. Não é de se surpreender, então, que a arte
seja o inimigo marcado de toda forma de opressão. Não é de se surpreender que
artistas e intelectuais tenham sido as primeiras vítimas das tiranias modernas
da esquerda e da direita. Os tiranos sabem que na obra de arte há uma força
emancipatória, uma força misteriosa apenas para aqueles que não a reverenciam.
Cada grande obra torna a face humana mais admirável e rica, e esse é todo o
seu segredo. Milhares de campos de concentração e celas não são suficientes
o bastante para esconder esse assombroso testemunho de dignidade. É por

352 Lettres Françaises


Tradução da conferência “L’artiste et son temps”, de Albert Camus

isso que não é verdade que a cultura possa ser, mesmo que temporariamente,
interrompida a fim de dar lugar a uma nova cultura. O testemunho incessante
do homem sobre sua miséria e sua grandeza não pode ser interrompido; uma
respiração não pode ser interrompida. Não há cultura sem legado, e nós não
podemos  – nem devemos  – recusar a nossa, a herança do Ocidente. Sejam
quais forem as obras de amanhã, elas todas dividirão o mesmo segredo, feito
de coragem e liberdade, nutrido pela audácia de milhares de artistas de todos
os tempos e de todas as nações. Sim, a tirania moderna tem razão quando
nos mostra que, até mesmo quando confinado no seu trabalho, o artista é um
inimigo público. Mas dessa forma a tirania presta homenagem  – a partir do
artista – à imagem de um homem que, até hoje, nada foi capaz de destruir.

***

Minha conclusão será simples. Ela consistirá em dizer, em meio ao som


e à fúria da nossa história: “Regozijemo-nos”. Regozijemo-nos, de fato, de
ver morrer uma Europa mentirosa e confortável, e de encarar verdades cruéis.
Regozijemo-nos como homens pelo colapso de uma longa mistificação e por ver
claramente aquilo que nos ameaça. E regozijemo-nos como artistas, arrancados
do nosso sono e de nossa surdez, mantidos à força diante da miséria, das prisões,
do sangue. Se pudermos, com tal visão, preservar a memória dos dias e dos
rostos, e se, por outro lado, face à beleza do mundo, nós conseguiremos não nos
esquecer dos humilhados, então a arte ocidental irá gradualmente reencontrar
sua força e sua soberania. Certamente, a história possui poucos exemplos de
artistas que tiveram de lidar com problemas tão graves. Mas quando palavras e
frases – até mesmo as mais simples – são pagas com liberdade e sangue, o artista
aprende a manejá-las com cuidado. O perigo torna os homens clássicos, e toda
grandeza, afinal, está enraizada no risco.
O tempo dos artistas irresponsáveis passou, e isso nos fará lamentar apenas
nossos pequenos momentos de felicidade. Mas nós saberemos reconhecer que
tal experiência contribui, ao mesmo tempo, para aumentar nossas chances de
autenticidade, e nós aceitaremos o desafio. A liberdade da arte não vale muito
quando o único propósito é assegurar o conforto do artista. Para um valor
ou uma virtude se enraizar na sociedade é preciso que não haja mentiras a
seu propósito; em outras palavras, é preciso que paguemos por ele sempre
que possível. Se a liberdade se tornou perigosa, ela então deve cessar de ser
prostituída. E eu não posso concordar, por exemplo, com aqueles que reclamam

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Lídia Rogatto

pelo declínio da sabedoria. Aparentemente, eles têm razão. No entanto, para


falar a verdade, a sabedoria nunca declinou tanto quanto no tempo em que era
o prazer sem riscos de alguns humanistas de biblioteca. Mas hoje, quando ela
enfim se encontra frente a perigos reais, há uma chance de que possa novamente
se posicionar e ser respeitada.
Diz-se que Nietzsche, após seu rompimento com Lou Salomé, entrou em
um momento de solidão definitiva, esmagado e exaltado ao mesmo tempo pela
perspectiva da obra imensa que ele tinha de continuar sem ninguém para ajudar.
Ele costumava andar à noite nas montanhas que dominam o golfo de Gênova e
acendia grandes fogueiras de folhas e galhos que ele via queimar. Sempre pensei
nesses fogos como uma forma de testar os homens e certas obras. Bem, nossa
era é um desses fogos cujo insuportável ardor certamente reduzirá muitas obras
a cinzas. Mas aquelas que restarem, terão seu metal intacto e, olhando para elas,
nós seremos capazes de nos entregar inteiramente a esta alegria suprema da
inteligência que denominamos “admiração”.
Sem dúvida, nós podemos ansiar – e eu também o faço – por uma chama
mais suave, uma trégua, uma pausa para a contemplação. Mas talvez não haja
outra paz para o artista do que aquela que se encontra no calor do combate.
“Toda parede é uma porta”, disse Emerson corretamente. Não procuremos pela
porta, e a saída, em nenhum lugar que não seja a parede na qual vivemos. Em
vez disso, procuremos a trégua no lugar em que ela se encontra – ou seja, no
meio da batalha. Pois na minha opinião, e é aqui que devo concluir, ela existe.
As grandes ideias, como já disseram, vêm ao mundo nas patas de pombas.
Talvez, então, se escutássemos com cautela, nós ouviríamos – entre o tumulto
dos impérios e nações, como um barulho frágil de asas  – o doce movimento
da vida e da esperança. Alguns dirão que esta esperança é carregada por um
povo, outros dirão que é por um homem. Eu penso, ao contrário, que ela é
suscitada, revivida e nutrida por milhões de indivíduos solitários cujas ações e
obras negam, a cada dia, as fronteiras e as mais grosseiras aparências da história,
para deixar brilhar transitoriamente a sempre ameaçada verdade de que cada
homem, com seus sofrimentos e suas alegrias, constrói para todos.

REFERÊNCIA
CAMUS, A.  Discours de Suède. 26.ed. Paris: Gallimard, 1958. (Collection NRF).

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