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“O CORTIÇO” E “LUZIA-HOMEM”
Orientadores:
FACULDADE DE LETRAS
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Pretende-se, para um melhor entendimento da relação
capital/trabalho, a partir de sua representação literária, relacionar
os personagens centrais dos romances O cortiço e Luzia-Homem,
proprietário e trabalhadora, respectivamente, ambos vivendo sob
o capitalismo e reagindo a ele. Através dessa relação, busca-se
entender como o capitalismo influencia os personagens e como,
através de duas obras significativas da literatura brasileira, é
possível compreender o seu processo de ascensão.
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[a burguesia] afogou nas águas gélidas do cálculo egoísta os sagrados
frêmitos da exatidão religiosa do entusiasmo cavalheiresco, do
sentimentalismo pequeno burguês. Fez da dignidade pessoal um simples valor
de troca e no lugar das inúmeras liberdades já reconhecidas e duramente
conquistadas colocou unicamente a liberdade do comércio sem escrúpulos.
Numa palavra, no lugar da exploração mascarada a exploração aberta,
despudorada direta e árida. A burguesia despojou de sua aureola todas as
atividades até então consideradas dignas de veneração e respeito.
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1 – Considerações iniciais
Separadas por apenas treze anos em suas publicações – O cortiço, 1890; Luzia-
Homem, 1903 –, podemos dizer que ambas se localizam no período de transição, no
Brasil, do modo de produção escravista para o modo de produção capitalista.
Por outro lado, ressaltamos a existência de uma burguesia que busca status de
nobreza, como processo de ascensão, ponto onde nos deparamos com novas e
acentuadas contradições que se estabelecem dentro da própria classe dominante, que
procura ser uma coisa que já não deveria mais ser ao mesmo tempo em que a nobreza
tenta se sustentar para impedir o avanço burguês, o que significaria a sua destruição.
Aquele taverneiro, na aparência tão humilde e tão miserável; aquele sovina que
nunca saíra dos seus tamancos e da sua camisa de riscadinho de Angola; aquele
animal que se alimentava pior que os cães, para por de parte tudo, tudo, que
ganhava ou extorquia; aquele ente atrofiado pela cobiça e que parecia ter
abdicado dos seus privilégios e sentimentos de homem; aquele desgraçado que
nunca jamais amara senão o dinheiro. (O cortiço: p. 81-82)
João Romão não tem como fugir: o capitalismo exige, ele se adapta. Vai aos
poucos conseguindo modificar sua aparência e seu jeito bruto – refina-se. Aproxima-se
de Miranda, consegue a mão da filha do antes desafeto que se tornou amigo e futuro
sogro. O cortiço, depois do incêndio, também se “aristocratiza”, e cresce, assim como o
seu dono.
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3 – Luzia-homem: masculinização e exploração da mulher
O capitalismo não desviou a mulher do lar para a produção social com o intuito
de a emancipar, mas sim com o de a explorar ainda mais ferozmente do que
explora o homem. A mulher, espoliada pelo capital, suporta as misérias do
trabalhador livre e carrega ainda por cima as cicatrizes do passado.
(LAFARGUE, 1904: 43)
Luzia, além de ter que enfrentar um trabalho que biologicamente não lhe é
adequado, enfrenta também a reação de mulheres de sua idade, que fazem questão de
acentuar a sua masculinidade e sua pretensa arrogância, na verdade produto de seu
gênio calado e retraído e enfrenta também as mais velhas e os homens que não
conseguiam se aproximar dela para obter seus favores amorosos:
- A modos que despreza de falar com a gente, como se fosse uma senhora dona -
murmuravam os rapazes remordidos pelo despeito da invencível recusa,
impassível às suas insinuações galantes.
- Aquilo nem parece mulher fêmea - observava uma velha alcoveta e curandeira
de profissão. Reparem que ela tem cabelos nos braços e um buço que parece
bigode de homem. (Luzia-Homem: p. 16)
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- Não diga isso que é uma blasfêmia. (...) Por ela eu puno, meto a mão no fogo.
(...) você não pode negar que ela vive no seu canto sossegada sem se importar
com a vida dos outros e fazendo pela sua, como uma moura de trabalho. Vocês,
suas invejosas, não a poupam; não tendo para dizer dela um tico assim, vivem a
maldar, a inventar intrigas e suspeitas. Nem que ela fosse uma despencada no
mundo... (Luzia-Homem: p. 16-17)
Luzia nega o que a sociedade impõe como regra. Faz o que muitos homens não
conseguem. Não deixa de ser mulher de “formas esbeltas e graciosas”, mas é obrigada a
enfrentar serviços masculinos para garantir seu sustento. Migra, juntamente com a mãe
para um centro urbano, para se engajar numa “frente de trabalho” do governo.
Qual, o que!... – retorquiu Crapiúna, com afetado desdém. – Eu até nem gosto
dela... Não lhe acho graça... Depois... com semelhante força... nem parece
mulher... (Luzia-Homem: p. 20-21)
Ela [a mulher] é explorada até pelo explorado, batida pelo homem rasgado pela
palmatória, humilhada pelo homem esmagado pela bota do patrão. (MACHEL,
1973:18)
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O romance, então, traça um novo percurso, que nos lembra um pouco O
corcunda de Notre Dame, de Victor Hugo, na perseguição obsessiva da heroína pelo
estróina. Percebemos aí o social convivendo com o patológico e criando curvas de
interesse com objetivo de nos manter atentos até o desfecho. Mesmo cedendo parte
considerável do seu enfoque à relação amoroso-patológica de Crapiúna em relação a
Luzia, o caráter social se mantém presente o tempo todo, seja pelo próprio espaço de
convivência dos personagens – espaço de miséria e penúria –, quanto pela relação
opressora homem/mulher que ganha força a cada ameaça sofrida por Luzia, nos
denunciando a secular condição de inferioridade a que é submetida a mulher.
Luzia, hirta e lívida, jazia seminua. Nos formosos olhos, muito abertos, parecia
fulgir ainda o derradeiro alento. Os cabelos, numa desordem, escorriam pela
rocha, forrada de lodo, e caiam no regato, cuja água, correndo em murmúrio
lámure, brincava com as pontas crespas da intonsas madeixas flutuantes. Na
destra crispada, encastoado entre os dedos, encravado nas unhas, extirpado no
esforço extremo da defesa, estava um dos olhos de Crapiúna, como enorme
opala esmaltada de sangue, entre filamentos coralinos dos músculos orbitais e
os farrapos da pálpebras dilaceradas. Sobre o seio, atravessado pelo golpe
assassino, demoravam, tintos de sangue, como se reflorissem cheios de seiva,
cheios de fragrância, os cravos murchos que lhe dera Alexandre. (Luzia-
Homem: p. 238)
Crapiúna, sem um dos olhos, “ganindo de dor (...) rolando de pedra em pedra, se
sumiu no precipício...” (Luzia-Homem: p. 238).
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4 – O capitalismo e a deformação humana como categoria no discurso literário
realista/naturalista de Luzia-Homem e O Cortiço
A pressão é tão grande que Luzia começa duvidar até de si mesma, aceitando a
pecha de mulher-homem com que lhe cobrem. Aceita sua condição de mulher
deformada em seu feminino:
Sim, como não hei de ser má, de ter más entranhas, se uma cobra venenosa me
morde o coração! E sou culpada de tudo por ser desconfiada... soberba...
maldita... Luzia-Homem é o que sou... uma bruta desalmada... (Luzia-Homem:
p. 198-199)
A mãe, inválida, porém consciente, mostra à filha o seu contraditório, que Luzia,
tomada pela emoção, não conseguia perceber:
Luzia, mulher e bem mulher, fraca como as outras, é o que tu és. (Luzia-homem:
p. 201)
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5 – Conclusão
Quando o português que explora o cortiço apela para a polícia para por ordem
naquele pequeno mundo de sofrimento e de discórdia, a população, retalhada
por divergências e identificando talvez o proprietário explorador com os agentes
da lei, com a ordem legal, tem momentos de solidariedade. (LUCAS, 1976: 60)
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GORENDER, Jacob. A burguesia brasileira. São Paulo: Brasiliense, 2ª. Edição, 1982.
LUCAS, Fábio. O caráter social da literatura brasileira. São Paulo: Edições Quíron,
1976.
MARX, Karl. Uma contribuição para a crítica da economia política. In: MARX, Karl,
ENGELS, Friedrich. Sobre literatura e arte. São Paulo: Global, 1979.
RIBEIRO, Darcy. Aos trancos e barrancos - como o Brasil deu no que deu. Rio de
Janeiro: Guanabara Koogan, 1985, 2a. edição.
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