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Luiz Paixão Lima Borges

O URBANO E O RURAL SOB O DOMÍNIO DO CAPITALISMO NAS OBRAS

“O CORTIÇO” E “LUZIA-HOMEM”

Orientadores:

* Prof. Dr. Antônio Augusto Moreira de Faria

* Prof. Dr. Rosalvo Gonçalves Pinto

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

FACULDADE DE LETRAS

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Pretende-se, para um melhor entendimento da relação
capital/trabalho, a partir de sua representação literária, relacionar
os personagens centrais dos romances O cortiço e Luzia-Homem,
proprietário e trabalhadora, respectivamente, ambos vivendo sob
o capitalismo e reagindo a ele. Através dessa relação, busca-se
entender como o capitalismo influencia os personagens e como,
através de duas obras significativas da literatura brasileira, é
possível compreender o seu processo de ascensão.

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[a burguesia] afogou nas águas gélidas do cálculo egoísta os sagrados
frêmitos da exatidão religiosa do entusiasmo cavalheiresco, do
sentimentalismo pequeno burguês. Fez da dignidade pessoal um simples valor
de troca e no lugar das inúmeras liberdades já reconhecidas e duramente
conquistadas colocou unicamente a liberdade do comércio sem escrúpulos.
Numa palavra, no lugar da exploração mascarada a exploração aberta,
despudorada direta e árida. A burguesia despojou de sua aureola todas as
atividades até então consideradas dignas de veneração e respeito.

Karl Marx / Friedrich Engels

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1 – Considerações iniciais

Na tentativa de traçar um perfil que, minimamente, aproxime a trabalhadora


rural nordestina Luzia, do romance Luzia-Homem e o proprietário urbano João Romão,
de O cortiço, não temos alternativa senão partir de uma análise dialética e marxista
sobre os efeitos do capitalismo na formação e deformação do caráter do homem e,
mostrar como isso nos é apresentado e discutido, ainda que implicitamente, nas obras
em questão.

Separadas por apenas treze anos em suas publicações – O cortiço, 1890; Luzia-
Homem, 1903 –, podemos dizer que ambas se localizam no período de transição, no
Brasil, do modo de produção escravista para o modo de produção capitalista.

Com o declínio do modo de produção escravista colonial e ainda nos quadros da


formação social escravista, houve, portanto, um desenvolvimento de forças
produtivas sob a direção da burguesia industrial emergente. Com ela e o jovem
proletariado, nascia o modo de produção capitalista no Brasil. (GORENDER,
1982: 14)

A formação da burguesia brasileira se dá nesse período e aí podemos perceber a


força nefanda do capitalismo e como ele embrutece o homem, não lhe deixando
alternativas senão de se submeter a ele cegamente ou, compreendendo os seus
mecanismos reagir, enfrentando-o com consciência e firmeza, não permitindo que ele
nos devore e nos destrua, garantindo que não nos tornaremos objetos dele. Ao
capitalismo não interessa a integridade humana e sim, única e exclusivamente, o que
resulta da exploração da sua força de trabalho: o lucro.

No modo de produção capitalista os homens realmente são transformados em


coisas e as coisas são realmente transformadas em “gente”. Com efeito, o
trabalhador passa a ser uma coisa denominada força de trabalho que recebe
outra coisa chamada salário. O produto trabalho passa a ser uma coisa chamada
mercadoria que possui uma outra coisa, isto é, um preço. O proprietário das
condições de trabalho e dos produtos do trabalho passa a ser uma coisa chamada
capital, que possui uma outra coisa, a capacidade de ter lucros. Desaparecem os
seres humanos, ou melhor, eles existem sob a forma de coisas. (CHAUÍ, 1985:
57-58)

Para que exista capitalismo é preciso que exista burguesia; a existência da


burguesia pressupõe a existência do proletário; a existência do proletário só se efetiva se
houver mão de obra livre e assalariada, que vende sua força de trabalho para o
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proprietário dos meios de produção que é o burguês.

Burguês quer dizer proprietário. Burguesia quer dizer o conjunto de


proprietários. Um grande burguês é um grande proprietário. Um pequeno
burguês é um pequeno proprietário. Os termos burguesia e proletariado
significam o mesmo que proprietários e operários, ricos e pobres, gente que vive
do trabalho e gente que trabalha para os outros em troca de um salário. (LÊNIN,
1961: 107)

2 – O cortiço: escravos e assalariados – um percurso político e literário

O mais venturoso livro do naturalismo brasileiro (...)


análise da miséria econômica e social do negro e do mestiço,
explorado pelo branco português, locador de cubículos.
Fábio Lucas

O Brasil vive, na transição dos séculos XIX e XX, um período em que a


sociedade escravocrata ainda tenta resistir ao avanço do capitalismo que se apresenta e
irá se impor. O confronto se estabelece no seio mesmo da classe dominante. O velho
tenta resistir ao novo, pois essa é a sua função na dialética da luta entre os contrários.

O novo nunca destrói o velho totalmente. A negação dialética conserva o que o


velho tem de positivo, isto é, o novo enriquece-se com o melhor que o
desenvolvimento anterior tinha. A negação do que é caduco é inevitável para
conservar os elementos sãos e progressistas e criar condições favoráveis ao seu
desenvolvimento. (...) O processo de negação não se dá de forma absolutamente
pura. É certo que o novo assimila o que há de positivo no velho; contudo,
alguns vestígios negativos velhos podem macular o elemento novo.
(KRAPÍVINE, 1985: 177 - grifo nosso)

Nesse momento de transformação a mão de obra escrava convive com a mão de


obra assalariada. Escravo e proletário caminham juntos, bebem da mesma água e se
alimentam da mesma comida. Água e comida pertencentes agora à burguesia, assim
como a terra, as máquinas e o comércio. A burguesia detém os meios de produção.

Existe burguesia onde a propriedade dos meios de produção social se


concentrou nas mãos de uma classe, isto é, depois que essa propriedade foi
arrancada dos elementos de outras classes e camadas sociais, depois que se
gerou o capital, por via dessa concentração da propriedade dos meios de
produção social, depois que se gerou o trabalho assalariado, que possibilita o
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aparecimento do capital. (SODRÉ, 1983: 12-13)

Em O cortiço verificamos a existência dessa realidade contraditória e em


processo de transformação dialética, através da convivência dos empregados da venda e
da pedreira de João Romão e da escrava, falsamente alforriada, Bertoleza que, sendo
também amante do seu patrão, não sabe que continua escrava. Gorender (1982)
confirma nosso raciocínio ao comprovar que no processo de formação da burguesia
brasileira houve esse momento em que as forças contrárias coexistiam em harmonia
aparente até a transformação total: “a princípio, algumas (...) fábricas empregaram
escravos ao lado de operários livres” (p. 13)

Por outro lado, ressaltamos a existência de uma burguesia que busca status de
nobreza, como processo de ascensão, ponto onde nos deparamos com novas e
acentuadas contradições que se estabelecem dentro da própria classe dominante, que
procura ser uma coisa que já não deveria mais ser ao mesmo tempo em que a nobreza
tenta se sustentar para impedir o avanço burguês, o que significaria a sua destruição.

João Romão é um capitalista, vive do seu comércio e nele se enriquece. Vive


também da produção da pedreira, da qual é proprietário. Um pequeno burguês que
cresce através do esforço, do roubo, da extorsão e da ladinagem.

Aquele taverneiro, na aparência tão humilde e tão miserável; aquele sovina que
nunca saíra dos seus tamancos e da sua camisa de riscadinho de Angola; aquele
animal que se alimentava pior que os cães, para por de parte tudo, tudo, que
ganhava ou extorquia; aquele ente atrofiado pela cobiça e que parecia ter
abdicado dos seus privilégios e sentimentos de homem; aquele desgraçado que
nunca jamais amara senão o dinheiro. (O cortiço: p. 81-82)

João Romão experimenta uma profunda contradição ao ser “chamado” para


viver “aristocraticamente”. A inveja o movera a isso e agora não sabe como agir e reagir
ao chamado, pois em toda a sua vida não pensou senão em acumular. O que mais o
atormenta é como gastar o dinheiro que acumulou apenas por acumular, sem nenhuma
serventia pessoal; o dinheiro gerando mais dinheiro e transformando-se em capital e o
capital aplicado na ampliação da propriedade. O cortiço se ampliava e ele encolhia.
Encolhia como ser humano que não se preocupava com as garantias mais simples de
conforto e bem-estar; encolhia em seus sentimentos, pois era um avaro e a avareza não o
permitia dar-se ao outro; encolhia mentalmente, pois não conseguia raciocinar senão em
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termos de ganhos e perdas; encolhia, enfim, porque o capitalismo o tornara um seu
escravo. Um burguês-escravo. Tinha apenas uma consciência clara: “Fora uma besta!...
Uma grande besta!...” (O cortiço: p. 84) O dinheiro apenas o deformara, reificando-o a
cada dia. Em seu próprio corpo fora deformado, em suas roupas, em sua higiene, em seu
prazer. E todo esse processo o tornara um homem solitário: não podia se aproximar de
ninguém, pois não confiava em ninguém. E, sozinho, fora se amargurando.

Ao mesmo tempo, um outro sentimento promovia uma luta interna: a inveja o


impulsionava e o obrigava a querer também o que era do outro, de Miranda, o baronato.
E essa contradição se transformou em conflito que ele não conseguia administrar.

E um desgosto negro e profundo assoberbou-lhe o coração, um desejo forte de


querer saltar e um medo invencível de cair e quebrar as pernas. Afinal, a
dolorosa desconfiança de si mesmo e a terrível convicção da sua impotência
para pretender outra coisa que não fosse ajuntar dinheiro, e mais dinheiro, e
mais ainda, sem saber para que e com que fim, acabaram azedando-lhe de todo
a alma e tingindo de fel a sua ambição e despolindo o seu ouro. (O cortiço: p.
84)

João Romão não tem como fugir: o capitalismo exige, ele se adapta. Vai aos
poucos conseguindo modificar sua aparência e seu jeito bruto – refina-se. Aproxima-se
de Miranda, consegue a mão da filha do antes desafeto que se tornou amigo e futuro
sogro. O cortiço, depois do incêndio, também se “aristocratiza”, e cresce, assim como o
seu dono.

E, como a casa comercial de João Romão, prosperava igualmente a sua


avenida [cortiço]. Já lá se não admitia assim qualquer pé-rapado: para
entrar era preciso carta de fiança e uma recomendação especial. Os
preços dos cômodos subiam, e muitos dos antigos hóspedes, italianos
principalmente, iam por economia, desertando para o “Cabeça-de-Gato” e
sendo substituídos por gente mais limpa. Decrescia também o número de
lavadeiras, e a maior parte das casinhas eram ocupadas agora por
pequenas famílias de operários, artistas e praticantes de secretaria. O
cortiço aristocratizava-se. (O cortiço: p. 158)

João Romão é outro homem. Mas não deixou de ser um monstro.

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3 – Luzia-homem: masculinização e exploração da mulher

Luzia-Homem antecede a saga nordestina (...).


Explica o problema coletivo do retirante,
numa visão dinâmica da migração interna.
Fábio Lucas

O antropólogo Darcy Ribeiro, em seu livro Aos trancos e barrancos, tece um


comentário a respeito da personagem-título do romance Luzia-Homem, que não
podemos, em absoluto, apesar de toda admiração e respeito que lhe conferimos,
concordar com suas palavras e a visão distorcida que manifesta em relação à
personagem Luzia: “Domingos Olimpio tem a audácia de publicar Luzia-Homem,
romance de uma lésbica.” (1985: 78).

E não concordamos porque entendemos que o antropólogo se equivocou em não


perceber que a masculinização da personagem é resultado não de uma orientação
sexual, mas sim da exploração capitalista da força de trabalho da mulher e da
deformação imposta pela necessidade de sobrevivência em condições adversas.

O capitalismo não desviou a mulher do lar para a produção social com o intuito
de a emancipar, mas sim com o de a explorar ainda mais ferozmente do que
explora o homem. A mulher, espoliada pelo capital, suporta as misérias do
trabalhador livre e carrega ainda por cima as cicatrizes do passado.
(LAFARGUE, 1904: 43)

Luzia nos é apresentada em sua primeira participação no romance, a partir de um


discurso masculino. O personagem Paul, um francês a serviço no Brasil, se refere a ela
como um verdadeiro burro-de-carga: “Passou por mim uma mulher extraordinária,
carregando uma parede na cabeça” (Luzia-Homem: p. 15).

Por “mulher extraordinária” devemos entender apenas uma mulher com


uma força física acima do normal. “Extraordinária” não quer dizer mulher com atrativos
significativos em sua condição de mulher. O narrador nos adverte, porém, um pouco
mais à frente, depois de narrar algumas façanhas de Luzia, que “a extraordinária mulher,
que tanto impressionara o francês Paul, encobria os músculos de aço sob as formas
esbeltas e graciosas das morenas moças do sertão” (Luzia-Homem: p. 15), não era
apenas um brutamontes travestido na pele de mulher. Luzia, além de forte, era mulher, e
como mulher explorada em sua força de trabalho era obrigada a esconder seus dotes
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para cumprir suas obrigações de cuidar da casa e da mãe doente. E, somente aí, a
mulher se “iguala” ao homem, enfrentando uma sociedade que sempre a colocou em
condição de inferioridade, como nos aponta Lafargue:

Provaram à sua inteira vontade que a mulher é um ser inferior, incapaz de


receber uma cultura intelectual superior e de fornecer a soma de atenção, de
energia e de agilidade que reclamam as profissões em que ela deseja entrar em
concorrência com o homem. O seu cérebro, menos volumoso, menos pesado e
menos complexo que o do homem, é um “cérebro de criança”; os seus músculos
menos desenvolvidos não têm força de ataque e de resistência, os seus sistemas
ósseo, muscular e nervoso não lhe permitem outra espécie de trabalho que não
seja o doméstico. (LAFARGUE, 1904: 41)

Um aspecto importante e que merece ser destacado no processo de


masculinização da personagem-título é o fato de se estar construindo uma penitenciária,
espaço reservado na época em que transcorre a história, quase exclusivamente ao
homem, já que a mulher permanece nos afazeres domésticos não tendo praticamente
nenhum contato com o crime. Luzia rompe o espaço domestico, invade o reduto
masculino e trabalha na construção de um símbolo masculino por excelência. E o seu
trabalho se destaca perante o de todos, “cumprindo, com inalterável calma, a sua tarefa
diária, que excedia à vulgar, para fazer jus a dobrada ração” (Luzia-Homem: p. 16).

Luzia, além de ter que enfrentar um trabalho que biologicamente não lhe é
adequado, enfrenta também a reação de mulheres de sua idade, que fazem questão de
acentuar a sua masculinidade e sua pretensa arrogância, na verdade produto de seu
gênio calado e retraído e enfrenta também as mais velhas e os homens que não
conseguiam se aproximar dela para obter seus favores amorosos:

- É de uma soberbia desmarcada - diziam as moças da mesma idade, na grande


maioria desenvoltas ou deprimidas e infamadas pela miséria.

- A modos que despreza de falar com a gente, como se fosse uma senhora dona -
murmuravam os rapazes remordidos pelo despeito da invencível recusa,
impassível às suas insinuações galantes.

- Aquilo nem parece mulher fêmea - observava uma velha alcoveta e curandeira
de profissão. Reparem que ela tem cabelos nos braços e um buço que parece
bigode de homem. (Luzia-Homem: p. 16)

Terezinha, amiga incondicional de Luzia, é sua única defensora:

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- Não diga isso que é uma blasfêmia. (...) Por ela eu puno, meto a mão no fogo.
(...) você não pode negar que ela vive no seu canto sossegada sem se importar
com a vida dos outros e fazendo pela sua, como uma moura de trabalho. Vocês,
suas invejosas, não a poupam; não tendo para dizer dela um tico assim, vivem a
maldar, a inventar intrigas e suspeitas. Nem que ela fosse uma despencada no
mundo... (Luzia-Homem: p. 16-17)

Luzia nega o que a sociedade impõe como regra. Faz o que muitos homens não
conseguem. Não deixa de ser mulher de “formas esbeltas e graciosas”, mas é obrigada a
enfrentar serviços masculinos para garantir seu sustento. Migra, juntamente com a mãe
para um centro urbano, para se engajar numa “frente de trabalho” do governo.

Vinham de longe aqueles magotes heróicos, atravessando montanhas e


planícies, por estradas ásperas, quase nus, nutridos de cardos, raízes
intoxicantes e palmitos amargos, devoradas as entranhas pela sede, a pele
curtida pelo implacável sol incandescente. Na construção da cadeia havia
trabalho para todos. (Luzia-Homem: p. 12)

Neste universo masculino Luzia mantém-se incorruptível ao assédio dos homens


e maledicências femininas. Ela traça seus objetivos e deles não se desvia. Engole as
humilhações e passa por cima do escárnio, sem perder a firmeza de caráter e sem abrir
mão da dignidade. Porém, não poderá fugir das pressões exercidas por um certo
Crapiúna. A “mulher-homem” atinge o coração do soldado e ele não tem como fugir,
ainda que tente negar o amor doentio:

Qual, o que!... – retorquiu Crapiúna, com afetado desdém. – Eu até nem gosto
dela... Não lhe acho graça... Depois... com semelhante força... nem parece
mulher... (Luzia-Homem: p. 20-21)

A estratificação social estabelece níveis de poder. Crapiúna, homem, soldado,


defensor e guardião da ordem, aproveita-se justamente do poder que a farda lhe confere
e rompe com os limites de sua obrigação e autoridade. Um explorado detentor de um
poder tentando se sobrepor a uma explorada sem poder. A obsessão de Crapiúna se
estabelece em dois níveis distintos: ele de fato é acometido por uma paixão doentia e
tenta impor sua paixão a Luzia através do poder do mando. Além de ser homem, é
soldado; além de ser soldado, não tem escrúpulos. E dessa condição uma nova relação
explorador/explorado se estabelece.

Ela [a mulher] é explorada até pelo explorado, batida pelo homem rasgado pela
palmatória, humilhada pelo homem esmagado pela bota do patrão. (MACHEL,
1973:18)
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O romance, então, traça um novo percurso, que nos lembra um pouco O
corcunda de Notre Dame, de Victor Hugo, na perseguição obsessiva da heroína pelo
estróina. Percebemos aí o social convivendo com o patológico e criando curvas de
interesse com objetivo de nos manter atentos até o desfecho. Mesmo cedendo parte
considerável do seu enfoque à relação amoroso-patológica de Crapiúna em relação a
Luzia, o caráter social se mantém presente o tempo todo, seja pelo próprio espaço de
convivência dos personagens – espaço de miséria e penúria –, quanto pela relação
opressora homem/mulher que ganha força a cada ameaça sofrida por Luzia, nos
denunciando a secular condição de inferioridade a que é submetida a mulher.

A igualdade entre a mulher e o homem é uma necessidade da História, não uma


conveniência econômica. São seres humanos. A divisão existente entre homem e
mulher é um problema de natureza, mas os outros problemas são colocados pela
sociedade. E na sociedade, a divisão entre homem e mulher, já não é mais um
problema de sexos, mas sim de quem manda e de quem obedece. (POSADAS,
1974: 127)

Luzia só se liberta com a morte. Liberta-se da opressão da miséria a que foi


submetida desde que nasceu e se liberta de Crapiúna. Simbolicamente arranca um dos
olhos do seu algoz e morre agarrada a ele enquanto os seus próprios, ainda que já
mortos, mantêm-se como vivos.

Luzia, hirta e lívida, jazia seminua. Nos formosos olhos, muito abertos, parecia
fulgir ainda o derradeiro alento. Os cabelos, numa desordem, escorriam pela
rocha, forrada de lodo, e caiam no regato, cuja água, correndo em murmúrio
lámure, brincava com as pontas crespas da intonsas madeixas flutuantes. Na
destra crispada, encastoado entre os dedos, encravado nas unhas, extirpado no
esforço extremo da defesa, estava um dos olhos de Crapiúna, como enorme
opala esmaltada de sangue, entre filamentos coralinos dos músculos orbitais e
os farrapos da pálpebras dilaceradas. Sobre o seio, atravessado pelo golpe
assassino, demoravam, tintos de sangue, como se reflorissem cheios de seiva,
cheios de fragrância, os cravos murchos que lhe dera Alexandre. (Luzia-
Homem: p. 238)

Crapiúna, sem um dos olhos, “ganindo de dor (...) rolando de pedra em pedra, se
sumiu no precipício...” (Luzia-Homem: p. 238).

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4 – O capitalismo e a deformação humana como categoria no discurso literário
realista/naturalista de Luzia-Homem e O Cortiço

O meio de produção na vida material determina


os processos da vida social, política e intelectual em geral.
Não é a consciência moral dos homens que determina o seu ser, mas,
pelo contrario, o seu ser social que lhes determina a consciência moral.
Karl Marx

4.1 - Homem ou mulher. Patrão ou empregado. O capitalismo é implacável com


o ser humano, pois essa é sua lógica mais perversa. Para acumular e lucrar é preciso
desumanizar. O homem, de sujeito da história é transformado em objeto do sistema.

Alienação, reificação, fetichismo: é esse processo fantástico no qual as


atividades humanas começam a se realizar como se fossem autônomas ou
independentes dos homens e passam a dirigir e comandar a vida dos homens,
sem que estes possam controlá-las. São ameaçados e perseguidos por elas.
Tornam-se objetos delas. (CHAUÍ, 1985: 58-59)

4.2 - Em O cortiço, João Romão, patrão, burguês, através do qual podemos


observar o processo de acumulação primitiva do capital, é um ser totalmente aleijado e
o seu aleijão tem origem, se desenvolve e certamente vai se deformar cada vez mais,
sob o manto do capitalismo. Ele sofreu um desvio de personalidade quando ainda era
empregado. Ali, percebeu a possibilidade de se transformar em patrão. A partir desse
instante, adquiriu o direito de passar por cima de qualquer escrúpulo e de qualquer
pessoa, pois o mais importante era acumular, ainda que se sacrificando para atingir esse
objetivo. Ainda que roubando. Mentindo. Enganando. Escrúpulos às favas!

Proprietário e estabelecido por sua conta, o rapaz atirou-se à labutação ainda


com maior ardor, possuindo-se de tal delírio de enriquecer, que afrontava
resignado as mais duras privações. Dormia sobre o balcão da própria venda, em
cima de uma esteira, fazendo travesseiro de um saco de estopa cheio de palha. A
comida arranjava-lhe, mediante quatrocentos réis por dia, uma quitandeira sua
vizinha, a Bertoleza, crioula trintona, escrava de um velho cego residente em
Juiz de Fora e amigada com um português que tinha uma carroça de mão e fazia
fretes na cidade. (O cortiço: p. 13)

Através da acumulação João Romão atingiu seus objetivos e tornou-se um


burguês. Sua mente foi dominada pelo desejo do ganho, pelo lucro a qualquer preço.
Tornou-se um homem amoral, não só em relação ao dinheiro, mas para com a vida, sua
e dos outros.
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4.3 - Em Luzia-Homem não há propriamente um patrão. Há, sim, o Estado que
promove as “frentes de trabalho” e contrata pessoas, mas estamos vivendo sob a égide
do capitalismo: a mão de obra é livre e assalariada. O Estado, aqui representado pela
Comissão de Socorros, não efetua o pagamento em dinheiro, mas em alimento.

Acertara a Comissão de Socorros em substituir a esmola depressora pelo salário


emulativo, pago em rações de farinha de mandioca, arroz, carne de charque,
feijão e bacalhau, verdadeiras gulodices para infelizes criaturas, açoitadas pelo
flagelo da seca, a calamidade estupenda e horrível que devastava o sertão
combusto. (Luzia-Homem: p. 12)

Há uma percepção clara de que quem alimenta o capitalismo é a miséria que


impõe ao homem a venda de sua força de trabalho a qualquer preço, pois a
sobrevivência o exige. Luzia, migrante interna da miséria, não é exceção e se deforma
na sua condição de mulher para conquistar sua minguada ração diária. Masculiniza-se
para conseguir trabalho e, com a força dos seus músculos, superior a muitos homens,
consegue aumentar sua cota de ração e alimentar a si mesma e à mãe inválida.

A pressão é tão grande que Luzia começa duvidar até de si mesma, aceitando a
pecha de mulher-homem com que lhe cobrem. Aceita sua condição de mulher
deformada em seu feminino:

Sim, como não hei de ser má, de ter más entranhas, se uma cobra venenosa me
morde o coração! E sou culpada de tudo por ser desconfiada... soberba...
maldita... Luzia-Homem é o que sou... uma bruta desalmada... (Luzia-Homem:
p. 198-199)

A mãe, inválida, porém consciente, mostra à filha o seu contraditório, que Luzia,
tomada pela emoção, não conseguia perceber:

Luzia, mulher e bem mulher, fraca como as outras, é o que tu és. (Luzia-homem:
p. 201)

Luzia, mesmo sendo um objeto do sistema, ao contrário de João Romão, não


permite que sua personalidade se desvie. Sua honra e sua moral não estão à venda:
apenas sua força de trabalho. Digna se apresenta e digna se mantém até sua morte.
Neste ponto confirmamos um abismo enorme que separa o burguês do operário. Não
apenas o operário idealizado, mas consciente de suas ações.

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5 – Conclusão

A obrigação do romancista não é condenar nem perdoar a malvadez;


é analisá-la, explicá-la. Sem ódios, sem ideias
preconcebidas, que não somos moralistas.
Graciliano Ramos

Tanto em O cortiço quanto em Luzia-Homem, a determinação do espaço de ação


é fundamental para melhor caracterização dos personagens e definição do
comportamento de cada um, reagindo ou aceitando aquela realidade determinada, com
maior ou menor realismo. O caráter dos personagens não entra em choque com a
realidade e a completa e com ela estabelece um vínculo através de suas relações e
convivências.

O realismo, para mim, implica, para além da verdade do pormenor, a reprodução


verdadeira de personagens típicos em circunstâncias típicas. (ENGELS,1979:
70)

Se por um lado temos os moradores de O cortiço sendo determinados pelo meio,


característica fundamental do naturalismo, percebemos também que neste meio os
personagens, mesmo sendo animalizados, movimentam-se e reagem a ele e atingem um
nível de organização que os une contra ameaças externas, contra o “Cabeça-de-Gato”,
contra a repressão policial, que tenta invadir o seu espaço.

Quando o português que explora o cortiço apela para a polícia para por ordem
naquele pequeno mundo de sofrimento e de discórdia, a população, retalhada
por divergências e identificando talvez o proprietário explorador com os agentes
da lei, com a ordem legal, tem momentos de solidariedade. (LUCAS, 1976: 60)

Em Luzia-Homem, ainda que contaminado pelo romantismo, o espaço da seca,


miséria e exploração formam o caldo de cultura perfeito para surgimento de relações de
poder que se estabelecem, particularmente envolvendo Luzia e Crapiúna. A mulher,
sempre objeto, deve satisfazer ao homem com servidão absoluta. Quando Luzia
confronta-se com Crapiúna e nega seus favores, está subvertendo uma ordem que
deveria ser seguida sem nenhuma oposição. A mulher se impõe e luta para conquistar
seu espaço, ainda que para isso tenha que se masculinizar.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CHAUI, Marilena. O que é ideologia. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.

ENGELS, Friedrich. Realismo e romance - Carta a Margaret Harkness, Abril de 1888.


In: MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. Sobre literatura e arte. São Paulo: Global, 1979.

GORENDER, Jacob. A burguesia brasileira. São Paulo: Brasiliense, 2ª. Edição, 1982.

KRAPÍVINE, V. Que é materialismo dialético. Moscou. Edições Progresso, 1986.

LAFARGUE, Paul. A questão da mulher, 1904. In: MACHEL, Samora et alii. A


libertação da mulher. São Paulo: Global, 1980.

LÊNIN, Vladimir. A aliança operário-camponesa. In: SODRÉ, Nelson Werneck. -


História da burguesia brasileira. Petrópolis: Vozes, 1983.

LUCAS, Fábio. O caráter social da literatura brasileira. São Paulo: Edições Quíron,
1976.

MACHEL, Samora. A libertação da mulher é uma necessidade da revolução, garantia da


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MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Rio de Janeiro:


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MARX, Karl. Uma contribuição para a crítica da economia política. In: MARX, Karl,
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OLÍMPIO, Domingos. Luzia-Homem. São Paulo: Gráfica Editora Brasileira, 1949.

POSADAS, J. A libertação da mulher, a luta de classes e a revolução socialista, 1974.


In: MACHEL, Samora et alii. A libertação da mulher. São Paulo: Global, 1980.

RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. São Paulo: Martins, 1971.

RIBEIRO, Darcy. Aos trancos e barrancos - como o Brasil deu no que deu. Rio de
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SODRÉ, Nelson Werneck. - História da burguesia brasileira. Petrópolis: Vozes, 1983.

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