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Resumo:
A reflexão sobre os procedimentos dramatúrgicos promovidos por Shakespeare, no
interior de várias de suas peças, ganha estatura de Poética Implícita em duas obras escritas
na maturidade de sua dramaturgia: Henrique V (1599) e Hamlet (1601). O presente artigo,
sustentado por uma análise sobre a participação do Coro, na peça Henrique V, apresenta
os argumentos de que, mesmo não tendo se dedicado à elaboração de uma teoria sobre o
drama, Shakespeare, por meio dos procedimentos da autorreferencialidade, inscreve na
peça os fundamentos teóricos do modelo dramatúrgico elisabetano. Discutindo a
precariedade dos recursos técnicos do palco de sua época, Shakespeare escreve uma “obra
aberta” em que o apelo ao exercício de imaginação do público possa suprir as deficiências
da cena; ao mesmo tempo, promove um claro rompimento com a regra das três unidades,
e assume a metateatralidade como estrutura narrativa de uma peça que se constrói a partir
de seu caráter nitidamente épico.
Palavras-chave: Shakespeare. Henrique V, Metateatro. Poética Teatral.
Abstract:
The reflection on the dramaturgical procedures promoted by Shakespeare, within several
of his plays, gains stature of Implicit Poetics in two works written in the maturity of his
dramaturgy: Henry V (1599) and Hamlet (1601). This article, supported by an analysis of
the Choir's participation, in the play Henry V, presents the arguments that, even though
he did not dedicate himself to the elaboration of a theory about the drama, Shakespeare,
through the procedures of self-referentiality, inscribes in the ask for the theoretical
foundations of the elizabethan dramaturgical model. Discussing the precariousness of the
technical resources of the stage of his time, Shakespeare writes an “open work” in which
the appeal to the exercise of the public's imagination can supply the deficiencies of the
scene; at the same time, it promotes a clear break with the rule of the three units, and
assumes metateatrality as the narrative structure of a play that is built from its clearly epic
character.
Key-words: Shakespeare. Henry V. Metatheatre. Theatrical Poetics.
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Doutor em Literatura Brasileira pelo Programa de Pós Graduação da Faculdade de Letras da UFMG.
E-mail: luizpaixaoteatro@gmail.com
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Duas traduções de Henrique V serão utilizadas neste trabalho: Barbara Heliodora e Carlos Alberto Nunes,
ambas constantes nas Referências. De acordo com o interesse, será utilizada aquela que melhor
exemplifique o que se pretende naquele momento. Cada citação será referenciada pelas iniciais do tradutor
– BH ou CAN –, seguida pelo número de página. Todas as citações de diálogos da peça serão colocadas
em recuo, mesmo aquelas inferiores a três linhas, e que não se enquadrem nas orientações da ABNT, bem
como as normas da revista, que recomenda que toda citação com menos de três linhas seja integrada ao
corpo do texto. Tal opção se justifica no intuito de se manter as suas características dramatúrgicas, por
julgar que a distribuição de “falas” dos personagens interfere substancialmente na forma de apreensão das
mesmas.
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Aristóteles não se dedicou à unidade de lugar; o classicismo francês o incorpora, inspirado por uma lógica
própria, com intuito de se estabelecer a verossimilhança, pois, num período de 24 horas (unidade de tempo)
não seria verossímil que a cena ocorresse em mais de um lugar.
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“A falta, hamártema, aparece aí ao mesmo tempo sob a forma de um “erro” de espírito, de uma polução
religiosa, de uma fraqueza moral. Hamartánein é enganar-se, no sentido mais forte de desvario de
inteligência, de uma cegueira que leva à ruina. A hamartia é uma doença mental, o criminoso é a presa de
um delírio, é um homem que perdeu o senso, um demens, hamartínoos. Essa loucura do erro [...] assedia o
indivíduo a partir de seu interior; penetra-o como uma força religiosa maléfica”. (VERNANT; VIDAL-
NAQUET, 2008, p., 35-36)
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Defendo que toda discussão em torno da “existência” de Shakespeare está muito amparada por um
profundo preconceito de classe, que não pode aceitar que um homem de teatro, um ator, torne-se o maior
dramaturgo de todos os tempos. Acredito que a obra shakespeariana revela estruturas dramatúrgicas que
me parecem exigir um profundo conhecimento do teatro enquanto práxis, e não apenas um conhecimento
diletante. Quem escreveu essas obras era um homem que estava diretamente vinculado ao exercício cênico.
Conferir artigo de minha autoria: “Hamlet duplo de Hamlet: ator, diretor e dramaturgo”, constante nas
Referências, em que analiso outros aspectos da poética implícita de Shakespeare.
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O modelo de uma obra aberta não reproduz uma suposta estrutura objetiva das
obras, mas a estrutura de uma relação fruitiva; uma forma só é descritível
enquanto gera a ordem de suas próprias interpretações, e é bastante claro que,
assim fazendo, nosso proceder se afasta do aparente rigor objetivista de certo
estruturalismo ortodoxo que pretende analisar formas significantes abstraindo do
jogo mutável dos significados que a história faz para elas convergir. (ECO, 2007,
p. 29)
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Bárbara Heliodora, em sua tradução, suprime os versos que falam do “O de madeira”. O entendimento da
metáfora só me foi possível depois da leitura do livro de Shapiro.
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“[...] uma estrutura é uma forma, não enquanto objeto concreto e sim enquanto sistema de relações,
relações entre seus diversos níveis (semântico, sintático, físico, emotivo; nível dos temas e nível dos
conteúdos ideológicos; nível as relações estruturais e da resposta estruturada do receptor; etc.)” (ECO,
2007, p. 28).
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que, portanto, não será presentificada, pois já conhecida antecipadamente pela quebra da
ilusão teatral.
Há, sem dúvida, fortes traços épicos, particularmente nas suas peças históricas,
ao todo dez, sobretudo em torno dos reis Richard e Henry, cujo conjunto, em
forma de crônica, é uma verdadeira “Ilíada do povo inglês”. Algumas dessas
peças, além de apresentarem introduções e comentários narrativos, levam ao
parcelamento de cenas [...] Os traços frequentemente épicos da obra
shakespeariana são, em geral, contrabalançadas pela unidade da ação que se
impõe aos elementos episódicos. [...] Suas peças são “abertas”, em certa medida
antiaristotélicas. Mas nem toda a dramaturgia aberta é acentuadamente épica.
(ROSENFELD, 2004, p. 71-72, grifo meu)
apenas motivo de uma configuração literária, mas estimuladora de uma reflexão sobre a
estética de um teatro que se caracteriza pela carência de elementos fundamentais para
uma completa encenação, e também sobre as propostas de superação dessa condição
objetiva.
A insuficiência técnica do palco produziu uma obra dramatúrgica aberta, que
apenas se constrói com a efetiva participação do leitor, que deve atuar como um segundo
autor na sua configuração, e de um espectador afeito a compreender, aceitar e
disponibilizar a sua imaginação a um processo artístico que depende fundamentalmente
dessa disposição para sua completa realização cênica.
CORO – Por isso, permiti que nós, os zeros
desta importância imensa, trabalhemos
por excitar a vossa fantasia.
Imaginai, portanto, que, reunidos,
contemplais no interior deste recinto
dois possantes impérios, cujas frontes
confinantes e altivas, separadas
se encontram pelo oceano estreito e inçado
de perigos. Supri com o pensamento
nossas imperfeições. Cortai cada homem
em mil partes e, assim, formai exércitos
imaginários. Quando vos falarmos
em cavalos, pensai que à vista os tendes
e que eles as altivas ferraduras
na terra branda imprimem, pois são vossos
pensamentos que a nossos reis, agora,
hão de vestir, levando-os para todos
os lados, dando saltos pelo tempo,
concentrando numa hora de relógio
fatos que demandaram muitos anos. (CAN, p. 18)
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“Na parábase o coro, despindo as vestimentas cênicas e arrancando as máscaras, recobrava sua verdadeira
personalidade e, virando-se para os espectadores, interpelava-os em seu nome ou em nome do poeta. Em si
a parábase divide-se em duas partes: na primeira que é a parábase propriamente dita, o poeta fala
diretamente com o público, apresenta-lhe suas queixas e reclamações e pede-lhe que não o considere
inferior a seus rivais dizendo-se, ao mesmo tempo, o mais cordial e afável dos conselheiros; na segunda, o
coro fala ainda em nome do poeta, não mais como autor e sim como cidadão: à crítica literária substitui-se
a sátira política” (BRANDÃO, 1984, p. 79).
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Referências
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Rio de Janeiro: Zahar, 1968.
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VERNANT, Jean-Pierre; VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e tragédia na Grécia antiga.
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