Você está na página 1de 13

1

HENRIQUE V: UMA POÉTICA EM PRÓLOGOS

HENRY V: A POETIC IN PROLOGUE

Luiz Paixão Lima Borges1

Resumo:
A reflexão sobre os procedimentos dramatúrgicos promovidos por Shakespeare, no
interior de várias de suas peças, ganha estatura de Poética Implícita em duas obras escritas
na maturidade de sua dramaturgia: Henrique V (1599) e Hamlet (1601). O presente artigo,
sustentado por uma análise sobre a participação do Coro, na peça Henrique V, apresenta
os argumentos de que, mesmo não tendo se dedicado à elaboração de uma teoria sobre o
drama, Shakespeare, por meio dos procedimentos da autorreferencialidade, inscreve na
peça os fundamentos teóricos do modelo dramatúrgico elisabetano. Discutindo a
precariedade dos recursos técnicos do palco de sua época, Shakespeare escreve uma “obra
aberta” em que o apelo ao exercício de imaginação do público possa suprir as deficiências
da cena; ao mesmo tempo, promove um claro rompimento com a regra das três unidades,
e assume a metateatralidade como estrutura narrativa de uma peça que se constrói a partir
de seu caráter nitidamente épico.
Palavras-chave: Shakespeare. Henrique V, Metateatro. Poética Teatral.

Abstract:
The reflection on the dramaturgical procedures promoted by Shakespeare, within several
of his plays, gains stature of Implicit Poetics in two works written in the maturity of his
dramaturgy: Henry V (1599) and Hamlet (1601). This article, supported by an analysis of
the Choir's participation, in the play Henry V, presents the arguments that, even though
he did not dedicate himself to the elaboration of a theory about the drama, Shakespeare,
through the procedures of self-referentiality, inscribes in the ask for the theoretical
foundations of the elizabethan dramaturgical model. Discussing the precariousness of the
technical resources of the stage of his time, Shakespeare writes an “open work” in which
the appeal to the exercise of the public's imagination can supply the deficiencies of the
scene; at the same time, it promotes a clear break with the rule of the three units, and
assumes metateatrality as the narrative structure of a play that is built from its clearly epic
character.
Key-words: Shakespeare. Henry V. Metatheatre. Theatrical Poetics.

1
Doutor em Literatura Brasileira pelo Programa de Pós Graduação da Faculdade de Letras da UFMG.
E-mail: luizpaixaoteatro@gmail.com
2

A estrutura dramatúrgica elisabetana é marcada por uma forte inspiração do teatro


medieval: seus procedimentos rompem com o modelo clássico, e instaura uma forma
condicionada pelas profundas transformações promovidas pelo Renascimento. Para um
teatro que em muito se ampara em fatos históricos, era necessária uma forma que pudesse
acolher tantos anos e tantos acontecimentos numa “pequena rinha” (CAN, p. 17)2, e, nesse
sentido, seria impensável a aplicação e o rigor da regra das três unidades3, que segundo
os conceitos clássicos a ação de uma tragédia deve ser única, com início, meio e fim,
transcorrer num mesmo lugar, num período não superior a vinte e quatro horas, o que
implicaria uma limitação e substancial imobilidade da ação dramática. Contrariar alguns
dos preceitos estéticos do modelo clássico foi fundamental para definir uma dramaturgia
que se organizou a partir do seu rompimento com a estratificação do sublime para a
tragédia e do grotesco para a comédia; a utilização simultânea do verso e prosa como
estrutura dialógica; bem como se tornou necessário romper com a concepção do herói
trágico. As relações sociais, configuradas pelo jogo de poder, ocupam o espaço cênico-
dramatúrgico e nos revelam as lutas que, de fato, estão por trás das chamadas “grandes
paixões”; substitui o herói caído em decorrência de sua falha trágica4, para dar lugar a
um homem produto das forças sociais que condicionam as suas decisões.
Todas essas transformações encontraram em Shakespeare não apenas um
excepcional autor de teatro, cuja obra sobreviveu aos limites do tempo e do espaço e,
ainda hoje, se impõe por sua qualidade literária, por seus procedimentos dramatúrgicos,
e pela grandeza humana de seus personagens. Shakespeare foi sobretudo um dramaturgo
arrojado para quem a forma, seja ela trágica ou cômica, permitiu um grau de
experimentação que não se esgota de uma peça para outra; cada nova experiência guarda

2
Duas traduções de Henrique V serão utilizadas neste trabalho: Barbara Heliodora e Carlos Alberto Nunes,
ambas constantes nas Referências. De acordo com o interesse, será utilizada aquela que melhor
exemplifique o que se pretende naquele momento. Cada citação será referenciada pelas iniciais do tradutor
– BH ou CAN –, seguida pelo número de página. Todas as citações de diálogos da peça serão colocadas
em recuo, mesmo aquelas inferiores a três linhas, e que não se enquadrem nas orientações da ABNT, bem
como as normas da revista, que recomenda que toda citação com menos de três linhas seja integrada ao
corpo do texto. Tal opção se justifica no intuito de se manter as suas características dramatúrgicas, por
julgar que a distribuição de “falas” dos personagens interfere substancialmente na forma de apreensão das
mesmas.
3
Aristóteles não se dedicou à unidade de lugar; o classicismo francês o incorpora, inspirado por uma lógica
própria, com intuito de se estabelecer a verossimilhança, pois, num período de 24 horas (unidade de tempo)
não seria verossímil que a cena ocorresse em mais de um lugar.
4
“A falta, hamártema, aparece aí ao mesmo tempo sob a forma de um “erro” de espírito, de uma polução
religiosa, de uma fraqueza moral. Hamartánein é enganar-se, no sentido mais forte de desvario de
inteligência, de uma cegueira que leva à ruina. A hamartia é uma doença mental, o criminoso é a presa de
um delírio, é um homem que perdeu o senso, um demens, hamartínoos. Essa loucura do erro [...] assedia o
indivíduo a partir de seu interior; penetra-o como uma força religiosa maléfica”. (VERNANT; VIDAL-
NAQUET, 2008, p., 35-36)
3

o acúmulo das peças anteriores, e avança na incorporação de novos elementos que as


superam dialeticamente. Em suas tragédias, Shakespeare aprofunda a forma
dramatúrgica, conferindo-lhes contornos que as especificam em relação ao que se
produziu no seu tempo, revelando aspectos que comprovam sua grande experiência
teatral5.
Henrique V, escrita em 1599, marca um momento bastante singular em sua vida
teatral, “cujas peças nesse ano atingiram um novo e extraordinário patamar” (SHAPIRO,
2012, p. 11). Uma nova e arrojada estética dramatúrgica nos permite, por meio de um
conjunto de reflexões teóricas inseridas em seu interior, compreender os procedimentos
utilizados na carpintaria de suas tragédias. Uma obra cujo caráter “aberto” proporciona
ao leitor/espectador uma nova fruição estética em sua recepção e no efeito produzido pelo
drama vivido por seus personagens, considerando-se que “a fruição implica uma relação
interatuante entre o sujeito que “vê” e a obra enquanto dado objetivo” (ECO, 2007, p. 42).
Embora Shakespeare não tenha “urdido uma concepção trágica [ou] tivesse uma
teoria acerca do gênero de poesia chamado tragédia” (BRADLEY, 2009, p. 3), observa-
se em Henrique V a construção de uma Poética Implícita, que tem como tema central a
organização cênica do espetáculo teatral frente às limitações impostas pelo palco
elisabetano. Tudo aquilo já observado em suas peças anteriores, recebe agora uma
reflexão estética que nos permite compreender de maneira objetiva, não apenas os
procedimentos dramatúrgicos e cênicos, mas, sobretudo, a consciência estética da forma
utilizada, bem como o valor de Poética impressa em cada um de seus Coros. Reflexões
apresentadas em seus Prólogos e Epílogo, de nítidos contornos épicos, que além de
antecipar a ação a ser dramatizada, e convidar o público a uma participação ativa, forma
um conjunto teórico a nos reservar uma discussão sobre o caráter técnico do teatro
elisabetano, mas, especialmente sobre a experiência estética vivenciada por meio de
estímulos à imaginação do espectador, ampliando, assim, os limites físicos do palco. Não
se trata, portanto, de um recurso meramente formal, mas de um processo de composição
que se adequa a uma necessidade histórica e, também, de uma estrutura dramatúrgica que
se organiza segundo os conceitos mais modernos do que se entende como obra aberta.

5
Defendo que toda discussão em torno da “existência” de Shakespeare está muito amparada por um
profundo preconceito de classe, que não pode aceitar que um homem de teatro, um ator, torne-se o maior
dramaturgo de todos os tempos. Acredito que a obra shakespeariana revela estruturas dramatúrgicas que
me parecem exigir um profundo conhecimento do teatro enquanto práxis, e não apenas um conhecimento
diletante. Quem escreveu essas obras era um homem que estava diretamente vinculado ao exercício cênico.
Conferir artigo de minha autoria: “Hamlet duplo de Hamlet: ator, diretor e dramaturgo”, constante nas
Referências, em que analiso outros aspectos da poética implícita de Shakespeare.
4

O modelo de uma obra aberta não reproduz uma suposta estrutura objetiva das
obras, mas a estrutura de uma relação fruitiva; uma forma só é descritível
enquanto gera a ordem de suas próprias interpretações, e é bastante claro que,
assim fazendo, nosso proceder se afasta do aparente rigor objetivista de certo
estruturalismo ortodoxo que pretende analisar formas significantes abstraindo do
jogo mutável dos significados que a história faz para elas convergir. (ECO, 2007,
p. 29)

A condição de existência do Coro define dramaticamente a metateatralidade de


uma peça. Seus comentários, de caráter histórico e moral, imprimem uma forma narrativa
que não é própria do autêntico drama, uma vez que sua participação, como categoria que
se coloca na condição de comentador do conflito, desnaturaliza a ação dramática,
promove o seu silêncio e interrompe o seu desenvolvimento presentificado para tecer
comentários que a completam ou a explicam, construindo assim uma situação de
narratividade que, “em oposição aos caracteres individuais e seu conflito interior e
exterior, expressa os modos de pensar e os sentimentos universais em um modo que ora
se volta para a substancialidade de enunciados épicos, ora para o movimento da lírica”
(HEGEL, 2004, p. 214).
Em Henrique V, o Coro, como categoria dramatúrgica que tem “consciência de
sua própria teatralidade” (ABEL, 1968, p. 88), organiza a apresentação e o
desenvolvimento da fábula, e estabelece os princípios estéticos e formais, nos âmbitos
dramatúrgico e cênico, considerando sempre as condições objetivas do teatro de sua
época, e, sobre elas refletindo. Ao mesmo tempo, transfere para o público a
responsabilidade de construção daquilo que a arquitetura cênica não permite em termos
de sua cenografia, que deve ser considerada como a organização estética e formal do
palco e do espaço cênico em sua tridimensionalidade, que, como síntese artística, permite
as diversas leituras necessárias para a compreensão intelectual, emocional e sensorial do
espetáculo teatral, através de seus diversos componentes visuais e sonoros, como, por
exemplo, cenário, figurino, iluminação, movimento cênico dos atores, e, eventualmente,
até mesmo a trilha sonora como definidora de tempo e espaço.
CORO – [...] Mas meus amáveis
espectadores, perdoai o espírito
pouco altanado que a ousadia teve
de evocar tal assunto em tão ridícula
armação. Poderá esta pequena
rinha de galos abranger os vastos
campos da França? Ou nos será possível
pôr neste O de madeira os capacetes
que os ares de Azincourt aterroraram? (CAN, p. 17-18, grifo meu)
5

Ao comparar o palco com o “O” de Whitehall6, de que nos fala Shapiro,


Shakespeare considera o palco como um lugar em que a realidade artística pode ser
apreendida sob diversas perspectivas, a depender do ponto de vista adotado, e sujeita à
imaginação do público em sua definição, o que demonstra de maneira bastante
significativa o caráter aberto da tragédia.
[...] a pintura que mais chamava atenção era um retrato do jovem Eduardo VI
num dos corredores [de Whitehall]. Todos que dele se aproximavam pela
primeira vez achavam que “a cabeça, o rosto, e o nariz são tão longos e
malformados que não parecem representar um ser humano”. Ao lado direito do
quadro havia uma barra de ferro com uma placa. Os visitantes encorajados a olhar
o quadro por um pequeno buraco, ou um O, cortado na placa: para surpresa deles,
“o rosto feio se transformava em outro bem formoso”. Uns poucos anos antes,
esse quadro famoso inspirara algumas linhas de Shakespeare sobre o significado
de um ponto de vista em Ricardo II: “Como as perspectivas, as quais encaramos
de frente/ mostram nada além de confusão, olhadas de esguelha/ distinguem a
forma.” (2.2.18-20) O quadro pode ter também inspirado uma reflexão similar
em Henrique V, sobre olhar “em perspectiva”. (5.2.321) O que o coro chama
nessa peça de “Rijo O” [“O de madeira”], o próprio teatro, funciona como esse
quadro de Whitehall: sua lente é capaz de dar forma e significado ao mundo, mas
somente se os frequentadores do teatro fizerem o esforço imaginativo necessário.
(SHAPIRO, 2011, p. 49-50)

A significação do objeto no âmbito da realidade concreta não é a mesma em sua


realidade artística, e não pode ser considerada mero reflexo da realidade, já que o que se
tem como resultado da mímesis é uma deformação do objeto natural, visando sua
transfiguração em novo objeto, agora pertencente à realidade imaginária, cuja
correspondência com o referente muitas vezes se limita ao impulso inicial de criação. A
mimese não é considerada em si mesma como produto finalizado, mas processo: a
transformação do objeto natural em objeto artístico não é imediata e precisa, uma vez que
o referente sofre deformações para configurar-se mimeticamente. A aceitação do objeto
artístico como possibilidade exige do leitor/espectador a disposição de participar de um
jogo, sem o qual não se completa o percurso de transfiguração e decodificação desse novo
signo, que se materializa nos parâmetros ficcionais da obra literária e cênica.
A metáfora do “O”, como representação do palco, esclarece bastante esse
processo, pois, a cena elisabetana se apresenta, com suas convenções próprias,
insuficiente e “fragmentada”. O processo somente se completa em sua configuração
artística com a participação do leitor/espectador, que rompe com sua posição passiva

6
Bárbara Heliodora, em sua tradução, suprime os versos que falam do “O de madeira”. O entendimento da
metáfora só me foi possível depois da leitura do livro de Shapiro.
6

diante da obra e participa ativamente na conversão daqueles signos apresentados em uma


totalidade cênica sugerida pelo Coro: as “deformações” artístico-miméticas somente
serão organizadas no imaginário de cada um, que é, evidentemente, livre para compor a
imagem que melhor lhe convém. “A neutralidade do palco elisabetano” (HELIODORA,
2004, p. 180), demarcada pela ausência de cenários e figurinos, o caracteriza como um
teatro calcado no ator e suas possibilidades expressivas, e funciona como uma abertura
para o estímulo da efetiva participação do público na construção imaginária dos
elementos ausentes na cena.
[...] o imaginário [...] apesar de ser dado como experiência evidente, escapa em
grande parte à determinação. [...] A presença inconteste de um potencial humano
se manifesta evidentemente de diferentes modos: ora é um transbordar (fantasia),
ora um modo de imagens, ora a capacidade de concretizar o que é ausente
mediante um panorama de ideias. (ISER, 2013, p. 239)

Em cada participação do Coro, Shakespeare se dedica a um aspecto de sua Poética,


abordando, assim, os diversos movimentos internos da estrutura7 dramática elisabetana.
Dedicados a uma reflexão sobre a dramaturgia e a encenação, os Prólogos além de
conferirem a autorreferencialidade como estrutura fundamental de sua construção,
oferece algumas observações que aproxima a obra shakespeariana das formulações da
estética da recepção e do efeito. Em sua primeira participação, ainda nos versos iniciais,
o Coro lamenta não dispor de uma musa inspiradora para ornar sua história, aos moldes
de um poeta das grandes epopeias. Diante disso, o que já revela uma crítica ao próprio
autor (o que será confirmado no epílogo), o Coro assume sua posição de narrador da obra,
ao mesmo tempo em que denuncia a teatralidade do texto/espetáculo e a quebra da ilusão
dramática. Sua evocação revela os heróis da peça que se vai apresentar:
Se de musa de fogo eu dispusesse
para escalar o céu mais rutilante
da invenção! Por teatro, um grande reino,
príncipes como atores, e monarcas
para a cena admirável contemplarem! (CAN, p. 17)

A utilização dos Prólogos de caráter narrativo, permite um deslocamento temporal


e espacial da ação dramática para o passado, imprimindo-lhe uma perspectiva
historicizada. Tal operação cria uma nova configuração estética, em que o
leitor/espectador será confrontado com uma ação contada por meio de atores em cena,

7
“[...] uma estrutura é uma forma, não enquanto objeto concreto e sim enquanto sistema de relações,
relações entre seus diversos níveis (semântico, sintático, físico, emotivo; nível dos temas e nível dos
conteúdos ideológicos; nível as relações estruturais e da resposta estruturada do receptor; etc.)” (ECO,
2007, p. 28).
7

que, portanto, não será presentificada, pois já conhecida antecipadamente pela quebra da
ilusão teatral.
Há, sem dúvida, fortes traços épicos, particularmente nas suas peças históricas,
ao todo dez, sobretudo em torno dos reis Richard e Henry, cujo conjunto, em
forma de crônica, é uma verdadeira “Ilíada do povo inglês”. Algumas dessas
peças, além de apresentarem introduções e comentários narrativos, levam ao
parcelamento de cenas [...] Os traços frequentemente épicos da obra
shakespeariana são, em geral, contrabalançadas pela unidade da ação que se
impõe aos elementos episódicos. [...] Suas peças são “abertas”, em certa medida
antiaristotélicas. Mas nem toda a dramaturgia aberta é acentuadamente épica.
(ROSENFELD, 2004, p. 71-72, grifo meu)

Shakespeare sempre se utilizou do “cenário verbal” para localizar a ação de suas


peças. Incorporados ao diálogo dramático, as referências espaço-temporais orientam o
público sem romper com a ação, pois essas faziam parte estrutural da cena. Tal
procedimento pode ser observado em várias peças de Shakespeare, tanto em suas
tragédias quanto nas comédias.
MONTANO – Que se avista no mar, do alto do promontório?
1º GENTIL-HOMEM – Nada de nada. As ondas que arrebentam
na praia são tão altas, que atrás delas,
entre água e céu, não se vislumbra ao menos
uma vela no mar...
MONTANO – Creio que o vento rugiu forte em terra.
Nunca tão feio temporal, batendo
de chapa contra a escarpa, abalou tanto assim
as muralhas e ameias! (SHAKESPEARE, 1968, p. 71)

O dramaturgo explora de maneira bastante acentuada o seu uso na peça Henrique


V, pois incorpora à ação reflexões que nos esclarecem sobre as necessidades estéticas e
formais de sua época, bem como estabelecem uma estrutura em que teoria e escrita
dramatúrgica se confundem nos possibilitando compreensões que somente seriam
perceptíveis em doses homeopáticas em cada uma de suas peças. O desnudamento, tanto
do texto quanto da cena presumida, é fundamental num jogo de autorreferencialidade, do
qual faz parte a tragédia Hamlet, com suas reflexões sobre o trabalho do ator e a recepção
e o efeito do drama sobre o público, para compreender suas posições inovadoras e
antecipadoras de alguns dos conceitos fundamentais da arte dramatúrgica.
Com o experimento inovador (e para Shakespeare, excepcional) de introduzir
cada ato com um prólogo alentado, proferido pelo coro, um sentido de
contraponto define agudamente a estrutura e o ritmo da peça, enquanto o coro e
a ação subsequente do palco oferecem versões contraditórias sobre o que está
acontecendo. [...] O coro fica revelando a peça com antecedência. Mas o que
Shakespeare perde em surpresa dramática, ele compensa com a tensão entre o que
é dito às plateias e o que elas veem por si mesmas – que se torna, muito mais que
8

o antagonismo entre os franceses e os ingleses, o principal conflito na peça.


(SHAPIRO, 2011, p. 120)

Os procedimentos estéticos e formais da dramaturgia e do teatro elisabetanos não


eram, de forma alguma, estranhos ao público inglês que já estava familiarizado às suas
convenções, que por meio do rompimento com o modelo clássico assume uma
teatralidade própria. Henrique V, “uma obra épica, panorâmica, na qual a imaginação do
espectador e as limitações do palco são repetidamente desafiadas” (HELIODORA, 2004,
p. 118), aprofunda esses procedimentos, concedendo ao Coro uma destacada função
dramática na configuração dessa Poética inovadora, que propõe a sugestão como
substituta da utilização de cenários, iluminação, figurinos e elenco de apoio.
A dramaturgia do teatro elisabetano, intimamente ligada à estrutura de seu palco,
é aberta, panorâmica, e permite ao poeta toda uma série de recursos técnicos
amplamente explorados pela maioria de seus autores. [...] A flexibilidade do
espaço cênico e a ausência de uma poética disciplinadora também permitiam que
a ação fosse elaborada em torno de cenas independentes, passadas nos mais
diversos locais, nenhum deles caracterizados por cenografia, emprestando
notável ímpeto ao desenvolvimento da trama. (HELIODORA, 2004, p. 198)

O fenômeno teatral somente se realiza ao estabelecer uma relação estética entre o


ator e o público, seja em seu caráter emocional, intelectual ou ideológico. Tal relação está
diretamente subordinada ao caráter arquitetônico do palco, que determina as condições
mais favoráveis para a realização do espetáculo. A cenografia, como organização estética
e formal do palco e do espaço cênico em sua tridimensionalidade, se apresenta como
síntese mesma do espetáculo, e permite as diversas leituras necessárias para a
compreensão do fenômeno teatral. As múltiplas possibilidades de utilização do espaço
cênico, em conjunto com os diversos componentes da cena, visando a sua totalidade,
imprimem uma particularidade criativa na realização do espetáculo, articulando
esteticamente as formas que definem comportamentos, ações e a própria materialização
cênica do texto dramatúrgico.
Cada espaço promove uma experiência estética particular e uma fruição própria
por parte do público. Assim, o palco elisabetano, que “avança para dentro” do público,
pois é apreciado por três pontos de vista, ao contrário da relação de frontalidade do palco
italiano que de todos é o mais concentrador de atenção, exige um comportamento que
está sujeito ao caráter dispersivo produzido por sua arquitetura. Por outro lado, a ausência
objetiva de cenários, iluminação e figurinos, e quantitativa no que se refere à limitação
do número de atores em cena, exigia soluções diferenciadas que definiram as
especificidades da dramaturgia e da cena elisabetanas, e que na peça em questão não é
9

apenas motivo de uma configuração literária, mas estimuladora de uma reflexão sobre a
estética de um teatro que se caracteriza pela carência de elementos fundamentais para
uma completa encenação, e também sobre as propostas de superação dessa condição
objetiva.
A insuficiência técnica do palco produziu uma obra dramatúrgica aberta, que
apenas se constrói com a efetiva participação do leitor, que deve atuar como um segundo
autor na sua configuração, e de um espectador afeito a compreender, aceitar e
disponibilizar a sua imaginação a um processo artístico que depende fundamentalmente
dessa disposição para sua completa realização cênica.
CORO – Por isso, permiti que nós, os zeros
desta importância imensa, trabalhemos
por excitar a vossa fantasia.
Imaginai, portanto, que, reunidos,
contemplais no interior deste recinto
dois possantes impérios, cujas frontes
confinantes e altivas, separadas
se encontram pelo oceano estreito e inçado
de perigos. Supri com o pensamento
nossas imperfeições. Cortai cada homem
em mil partes e, assim, formai exércitos
imaginários. Quando vos falarmos
em cavalos, pensai que à vista os tendes
e que eles as altivas ferraduras
na terra branda imprimem, pois são vossos
pensamentos que a nossos reis, agora,
hão de vestir, levando-os para todos
os lados, dando saltos pelo tempo,
concentrando numa hora de relógio
fatos que demandaram muitos anos. (CAN, p. 18)

O apelo à imaginação instaura uma cumplicidade diferenciada e substancialmente


mais profunda na relação palco/plateia, pois produzida por uma experiência estética que
tem na sugestão objetiva, e não apenas no encontro com a cena dramatizada, o seu modo
de prazer. O Coro procede, então, como mediador entre a história que se vai representar
e o público enquanto um receptor, que é por ele qualificado a construir parte significativa
do drama. Obviamente, o Coro é parte substancial dessa obra de arte; é, ele mesmo,
produto artístico, embora se coloque na condição de comentador da fábula, um narrador
privilegiado que, de certa forma, manipula e encaminha as ações da cena, bem como
conduz a participação concreta do público na realização do espetáculo.
CORO – Com asa imaginária a cena voa
E nunca menos célere
Que o pensamento. [...]
Usem a fantasia, e nela vejam
10

Os grumetes subindo no velam;


Ouçam o agudo apito que traz ordem
À confusão. Observem como as velas
Enfunadas por ventos invisíveis
Puxam os grandes cascos pelos mares,
Espantando o refluxo. [...]
Pacientes,
Completem nossa cena em suas mentes. (BH, p. 70-71)

No Prólogo do Ato II, Shakespeare assume de maneira definitiva o rompimento


com a regra das três unidades, transferindo a cena de Londres para Southampton e de lá
para a França, para depois voltar novamente a Londres. No mesmo instante, sua proposta
de Poética Implícita amplia sua reflexão estética, pois não permite que o público perca a
referência de que está em um teatro, portanto, rompe com a possibilidade do ilusionismo
teatral epicizando e antecipando a ação.
CORO – Tenham paciência e nós resolveremos
A questão da distância. [...]
O rei já deixou Londres. Nossa cena
Transporta-se, senhores, pra Southampton.
É num teatro lá que estão sentados
E, de lá, para a França os levaremos
E traremos de volta em segurança,
Encantando o canal para que tenham
Boa viagem. Não quero, ora essa,
Ver ninguém mareado nesta peça.
Mas quando o rei chegar, e só então,
É em Southampton que estará a ação. (BH, p. 40)

O Prólogo do Ato IV, com nítidas características cinematográficas, como uma


“câmera” que passeia pela noite, é certamente o que mais aprofunda sua função narrativo-
épica, pois penetra no interior dos acampamentos dos soldados franceses e dos ingleses,
para revelar o comportamento e o estado emocional e psicológico das tropas. Ao ressaltar
o espírito confiante dos franceses em contraponto ao derrotismo que impera sobre os
ingleses, o Coro prepara o grande discurso patriótico de São Crispim, que levanta o ânimo
da tropa inglesa.
CORO – Imaginem agora aquele instante
Em que o sussurro e o escuro penetrante
Enxerguem a vasta taça do universo.
De tenda em tenda, pela noite imunda,
Soa o quieto zumbir dos dois exércitos. [...]
Por demais confiantes os franceses
Jogam nos dados a ralé inglesa
E reclamam da noite que se arrasta
Qual bruxa feia e manca, por passar
Com tanto tédio. Os pobres dos ingleses,
11

Quais condenados de algum sacrifício,


Sentados junto ao fogo se concentram
No perigo iminente; e gestos tristes,
Rostos esquálidos e fardas rotas
Os apresentam ao olhar da lua
Quais fantasmas terríveis. (BH, p. 112)

Seguindo o modelo de um procedimento bastante característico da comédia antiga


aristofanesca, no Prólogo do Ato V o Coro se utiliza da parábase8, momento em que a
ação dramática é abandonada em favor de uma análise crítica da realidade concreta,
dirigida diretamente para o público.
Abandonando temporariamente o mundo de faz de conta do teatro, Shakespeare
convida seus concidadãos londrinos a pensar, não sobre Henrique V, mas, sim,
sobre o futuro próximo, o dia em que eles encherão as ruas de Londres para dar
as boas-vindas a Essex, “General of our gracious Emnpress”. É um momento
extraordinário, e a única vez numa peça em que Shakespeare quebra a alusão
teatral e dirige a atenção da plateia para longe do mundo do espetáculo, para o
mundo real, fora do teatro. (SHAPIRO, 2011, p. 116).

O recurso, como ressalta Shapiro, não é uma prática corrente no teatro


shakespeariano, no entanto, a estrutura dramatúrgica da peça, e o seu tema em particular,
permitem esse momento parabático sem provocar tanta estranheza. O Coro, como
categoria dramática, a quem é dado o direito de manter certa distância e posicionamento
crítico sobre a ação, possui, no caso específico, determinadas liberdades e posturas
concedidas pela convenção da própria peça.
CORO – Porém agora observem,
Na oficina de seus pensamentos,
Como Londres foi toda para as ruas:
Com grande pompa o prefeito e seus pares,
Quais senadores da antiga Roma,
Com os plebeus pululando em torno deles,
Foram buscar seu César em triunfo,
Assim como, em escala mais modesta,
Se o general de nossa imperatriz,
Como é provável, nos chegar da Irlanda
Com a revolta enfiada em sua espada,
Quantos não deixariam a cidade
Para recebê-lo! Muito mais que isso
Mereceu Harry. (BH, p. 167)

8
“Na parábase o coro, despindo as vestimentas cênicas e arrancando as máscaras, recobrava sua verdadeira
personalidade e, virando-se para os espectadores, interpelava-os em seu nome ou em nome do poeta. Em si
a parábase divide-se em duas partes: na primeira que é a parábase propriamente dita, o poeta fala
diretamente com o público, apresenta-lhe suas queixas e reclamações e pede-lhe que não o considere
inferior a seus rivais dizendo-se, ao mesmo tempo, o mais cordial e afável dos conselheiros; na segunda, o
coro fala ainda em nome do poeta, não mais como autor e sim como cidadão: à crítica literária substitui-se
a sátira política” (BRANDÃO, 1984, p. 79).
12

A última participação do Coro, carregada de uma autorreferencialidade acentuada,


mais uma vez não preserva o autor da peça, agora de maneira mais rigorosa lamenta sua
inabilidade e grosseria ao tratar de um tema tão importante. Ressalta que sua escrita não
está à altura da grandiosidade da História do rei Henrique V, que se dispôs a dramatizar.
CORO – Assim, com pena inábil e grosseira,
O autor aflito arrematou a história,
Seguindo, humilde, dos heróis na esteira
Para cópia deixar de tanta gloria.
Passou depressa a estrela do Inglaterra,
Mas não se apagará nunca o seu brilho;
Com a espada conquista a bela terra
Que deixou como herança ao real filho.
Henrique sexto, em cueiros ainda envolto,
Subiu ao trono da Inglaterra e França;
Mas tocou-lhe reinado tão revolto
Que a pátria esgotou toda a pujança.
Tudo isso já tem sido em cena posto;
Espero, pois, que nisto achareis gosto. (CAN, p. 146)

Ao contrário de Hamlet, em que a Poética se compõe por meio de reflexões e


lições do príncipe, nas quais formula uma teoria sobre o ator e a recepção, em Henrique
V não há uma formulação teórica tão característica, mas, por meio sugestões dirigidas ao
público é possível compreender um conjunto de ações que compõem a estética
elisabetana. Ainda que parte dessas ações sejam observadas em suas tragédias e comédias,
anteriores e posteriores, é aqui que o dramaturgo as organiza de maneira a contemplar
uma totalidade que permite uma reflexão mais profunda sobre o fazer dramatúrgico e a
estrutura cênica característica, e bastante original do teatro naquele momento histórico.
A organização teórica da peça se distingue, no entanto, de outras peças do autor que têm
no teatro parte do seu enredo, como por exemplo, Sonho de uma noite de verão, pois,
nesta, não há propriamente uma discussão sobre o teatro, mas ações de um grupo teatral
amador que se arrisca na montagem de uma peça, e da qual não é possível extrair uma
reflexão poética.
Se Shakespeare não se dedicou explicitamente a pensar uma teoria para o teatro,
já que não se tem notícia de nenhum escrito seu sobre o tema, registrou em Henrique V e
Hamlet, um conjunto de reflexões que demonstram suas preocupações com uma estrutura
altamente revolucionária e inovadora, cujos temas não se restringem ao teatro de sua
época, mas ainda hoje encontram eco, e resistem ao tempo produzindo inquietações
estéticas e formais.
13

Referências
ABEL, Lionel. Metateatro: uma visão nova da forma dramática. Trad. Bárbara Heliodora.
Rio de Janeiro: Zahar, 1968.
ARISTOTE. La poétique. Trad. Roselyne Dupont-Roc et Jean Lallot. Paris: Éditions du
Seuil, 1980.
BORGES, Luiz Paixão Lima. Hamlet duplo de Hamlet: ator, diretor e dramaturgo. Artigo
inédito. Disponível a pedidos.
BRADLEY, A. C. A tragédia shakespeariana: Hamlet, Otelo., Rei Lear, Macbeth. Trad.
Alexandre Feitosa Rosas. São Paulo: WMF, 2009.
BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro grego: tragédia e comédia. Petrópolis: vozes, 1984.
ECO, Umberto. Obra aberta: forma e indeterminações nas poéticas contemporâneas.
Trad. Giovanni Cutolo. São Paulo: Perspectiva, 2007.
HEGEL, G. W. F. Cursos de estética: vol. IV. Trad. Marco Aurélio Werle, Oliver Tolle.
São Paulo: EDUSP, 2004.
HELIODORA, Bárbara. Reflexões shakespearianas. Org. Célia Arns de Miranda, Liana
de Camargo Leão. Rio de Janeiro: Lacerda, 2004.
ISER, Wolfgang. O fictício e o imaginário: perspectivas de uma antropologia literária. 2.
ed. rev. Trad. Johannes Kreschmer. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2013.
ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. 4. ed. 2. reimp. São Paulo: Perspectiva, 2004.
SHAKESPEARE, William. Otelo, o mouro de Veneza. 3. ed. revista. Trad. Onestaldo de
Pennafort. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
SHAKESPEARE, William. Henrique V. Trad. Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro:
Lacerda, 2006.
SHAKESPEARE. A vida do Rei Henrique V; Henrique VI (1ª. parte): dramas históricos.
Trad. Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Melhoramentos, nd.
SHAPIRO, James. 1599: um ano na vida de William Shakespeare. Trad. Cordelia
Magalhães e Marcelo Muso Cavallari. São Paulo: Planeta do Brasil, 2010.
VERNANT, Jean-Pierre; VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e tragédia na Grécia antiga.
3. reimp. Trad. Anna Lia A. de Almeida Prado et al. São Paulo: Perspectiva, 2008.

Você também pode gostar