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A palavra “dramaturgia” tem uma série de significados e, cada vez mais, eles se
ampliam e se superpõem, apontando para a história do teatro e também para as
questões que animam a discussão estética contemporânea.
Ao abordar a dramaturgia será sempre de produção de sentido que vamos falar. Seja
ao evocar Lessing, historicamente o primeiro Dramaturg, seja ao descrever as
diferentes tarefas que um dramaturgista pode desempenhar, ou ainda ao refletir
sobre a operação de pensamento inerente à criação artística.
Para que se disseminasse a noção de dramaturgia que aqui nos interessa foi
necessário que o texto dramático deixasse de ser a origem exclusiva do espetáculo e
que outros elementos e materiais entrassem em tensão com a palavra para, juntos,
em pé de igualdade e em configurações inéditas, comporem o sentido cênico. Esse
processo de contestação da hegemonia do texto sobre os demais elementos do
espetáculo começa em meados do século XVIII, na obra crítica de pensadores que
procuraram ver como funcionava a engrenagem do “protocolo cênico”, na feliz
expressão de Diderot. Seu corolário é o surgimento do conceito de encenação, ao fim
do século XIX. Nesse momento, o jogo variável de relações entre os elementos cênicos
é claramente percebido e enunciado como a estrutura sobre a qual se articula a
criação do espetáculo teatral.
De início, a ideia era que Lessing fosse o poeta da casa, fornecendo peças inéditas
para montagem. Ele não aceitou. Mas os integrantes do grupo queriam agregá-lo a
todo custo à iniciativa, para dar a ela certo verniz, e lhe propuseram, então, que ele
funcionasse como uma espécie de “conselheiro literário e artístico” do
empreendimento. Ele ajudaria na escolha do repertório, faria traduções e adaptações
de textos e cederia suas peças para representação, além de participar do júri dos
concursos de dramaturgia que estavam planejados como estímulo aos dramaturgos
alemães. Creio que partiu do próprio Lessing, que já havia trabalhado como editor e
jornalista, a proposta de fazer um registro do dia a dia do Teatro Nacional,
comentando o que lhe parecesse relevante, fazendo reparos e sugestões ao que
poderia ser melhorado e investindo na formação estética do público.
O único cumprimento que sei fazer a um artista, homem ou mulher, é dizer que o
considero distante de qualquer vã susceptibilidade; que, para ele, sua arte está acima de
tudo e que, por isso, ele ouve de bom grado os juízos livres, expressos em alto e bom som a
seu respeito. Acredito que ele prefere saber-se julgado erroneamente de vez em quando a
não ser praticamente nunca avaliado. Em relação a quem não compreende esse elogio, eu
reconheço que me enganei: não vale a pena ocupar-me dele neste estudo. O verdadeiro
virtuose não acredita que sejamos capazes de reconhecer e sentir sua perfeição, por muito
que o alardeemos, se não considerar que somos também capazes de ver e sentir suas
fraquezas. Ele faz pouco de todo aquele que lhe dedica uma admiração sem limites; só o
lisonjeia o elogio daquele que ele sabe que também tem a coragem de criticá-lo.(3)
Antes de mais nada, o fato de Lessing ter claramente delineado um projeto estético-
político para a área teatral. Para ele, o teatro deveria ser:
Pouco mais de cem anos depois, a preocupação de Lessing com a coerência artística
das montagens em relação aos textos dramáticos continuava na ordem do dia. Ela foi
o mote dos primeiros encenadores, que, em linhas gerais, consideravam que sua
tarefa era transpor cenicamente os textos dramáticos da forma mais fiel possível, a
partir, em geral, de um profundo trabalho de mesa. A questão é que a própria
fidelidade ao texto começava, na época, a ser problematizada.
Isso pode ser percebido de forma mais evidente em relação à encenação dos textos
do passado: manter-se fiel a eles significava também reproduzir o ordenamento
cênico segundo o qual eles haviam sido compostos e que transparece em filigrana em
sua estrutura? A decisão a esse respeito é de ordem dramatúrgica, no sentido de que
estamos tratando aqui. A coisa se complicou ainda mais com o simbolismo, que veio
romper com esse protocolo, buscando novos materiais como base para o espetáculo
e, efetivamente, convocando todas as artes para, em pé de igualdade, colaborar com a
palavra.
Essa mudança escalonada da relação entre texto e cena – e seus reflexos no trabalho
do dramaturgista – é bem exemplificada por dois ensaios de Bernard Dort, o primeiro
de 1986 e o segundo da década seguinte. No primeiro, ele declara que “o
dramaturgista moderno está em busca de uma ordem que possa se estabelecer entre
textos e práticas cênicas.”(4) No segundo, de 1995, ele não destaca o texto nem fala
de ordem, mas de uma “relativização generalizada dos fatores da representação teatral
uns em relação aos outros. Renuncia-se [na contemporaneidade] à ideia de […] uma
essência do fato teatral (a misteriosa teatralidade) e passa-se a conceber o teatro
como uma polifonia significante, voltada para o espectador.”(5) É sobre o modo de
articulação entre eles e sobre a consideração do todo do espetáculo que o trabalho do
dramaturgista incidirá.
***
O diretor francês Antoine Vitez acreditava que, após a segunda guerra, nos teatros
estatais dos países do Leste Europeu, o Dramaturg, profissional que já integrava há
muito tempo a estrutura desses conjuntos, tornou-se o “polícia do sentido”. E que a
função se disseminou na Europa ocidental a partir da excursão do Berliner Ensemble à
França, em 1954.(10)
Vitez joga fora a criança com a água do banho. Se, em algumas ditaduras, o
dramaturgista acabou por funcionar como censor, isso não significa que o cerne de
sua função seja esse. Mas Vitez tem razão em apontar a turnê do Berliner como o
momento em que, de forma superlativa, se toma consciência, na França, do jogo de
criação do sentido na cena teatral. O depoimento de Roland Barthes a respeito é
bastante expressivo: a Mãe Coragem criava um “código” extremamente “claro”, em que
“a contradição entre o sentido político e a forma difícil” se resolvia num equilíbrio
superior. Barthes chega a dizer que a diferença em relação ao teatro francês não era
“de grau, mas de natureza” e que, a partir daquele momento, apesar de amar o teatro,
deixou de frequentá-lo, por não encontrar nos espetáculos de seu país a mesma
clareza de ideias e o mesmo refinamento de meios. (11)
Notas :
(2) Alguns desses textos foram traduzidos para o português por J. Guinsburg e figuram
em De teatro e literatura (introdução e notas de Anatol Rosenfeld), São Paulo, EPU,
1992. A Dramaturgia de Hamburgo foi publicada em espanhol, em tradução de Feliu
Formosa (Madrid, Associación de Directores de Escena de España, 1993) e, mais
recentemente, em francês, em tradução de Jean-Marie Valentin (Dramaturgie de
Hambourg, op. cit.). Em alemão, ver Hamburgische Dramaturgie, in Lessing. Werke –
Dramaturgische Schriften, München, Carl Hansen Verlag, 1973, v. 4, p. 229-707.
(5) Bernard Dort. Le texte et la scène: pour une nouvelle alliance. In: ______. Le
spectateur en dialogue. Paris: POL, 1995, p. 270. Ver também o belo texto de Jean-Pierre
Sarrazac, Bernard Dort. À la frontière du théâtre, In: Critique du théâtre. De l’utopie au
désenchantement, Belfort: Circé, 2000, p. 128-139.
(6) Joseph Danan. Qu’est-ce la dramaturgie? [s. l.]: Actes Sud-Papiers, 2010.
(7) A experiência está relatada em entrevista a Ângela Leite Lopes e Fátima Saadi,
publicada como apêndice ao livro de ensaios de Philippe Lacoue-Labarthe A imitação
dos modernos. (Org. de Virginia de Araújo Figueiredo e João Camillo Pena. São Paulo:
Paz e Terra, 2000, p. 301-310). A montagem seguinte da dupla Deutsch-Lacoue-
Labarthe, As fenícias, já não gozou da mesma liberdade, devido à excessiva
interferência do Teatro Nacional de Estrasburgo no processo criativo, e o espetáculo
foi um fracasso artístico, segundo Lacoue-Labarthe (p. 306).
(8) A história foi contada por Carl Zuckmayer e referida por Joel Schechter em seu
artigo In the Beginning There Was Lessing… Then Brecht, Müller, and Other
Dramaturgs. In: Dramaturgy in American Theatre. A source book (Org. Susan Jonas,
Geoff Proehl e Michael Lupu). Fort Worth: Harcourt Brace & Company, 1997, p. 21.
(10) Apud François Regnault. Qu’est-ce qu’un dramaturge? In: Du dramaturge. Org.
Philippe Coutant et alii. Nantes: Le grand T; Éditions joca seria, 2008, p. 62-64 (Les
carnets du Grand T).
(11) Roland Barthes. Écrits sur le théâtre. Org. Jean-Loup Rivière. Paris: Seuil, 2002, p.19-
22 (Essais).
(12) Roland Barthes. Littérature et signification. In: Essais critiques. Paris: Seuil, 1964.
Disponível em: http://www.ae-lib.org.ua/texts/barthes__essais_critiques__fr.htm
(acesso em 20/03/2013)
Sugestões bibliográficas:
BRANDÃO, Carlos Antônio Leite. Grupo Galpão Diário de Montagem. Belo Horizonte:
UFMG, 2003.
_______ . Grupo Galpão: 15 anos de risco e rito. Belo Horizonte: Grupo Galpão, 1999.
CARVALHO, Sérgio. “Beti Rabetti disserta sobre o ofício do dramaturg”. Estado de São
Paulo, São Paulo, 31 de julho de 1997, Caderno 2, Teatro, D4.
FERNANDES, Silvia; AUDIO, Roberto (org.). BR3. São Paulo: Perspectiva, Edusp, 2006.
JONAS, Susan; PROEHL, Geoff; LUPU, Michael. Dramaturgy in American Theater. A source
book. Fort Worth: Harcourt Brace College Publishers, 1997.
LOPES, Angela Leite. O trabalho de “assessoria teórica”. Apostila organizada por Beti
Rabetti. Dramaturg: mais uma função? Rio de Janeiro, mimeo, junho de 1988.
______ . Dramaturgia / Dramaturgista. In: NORA, Sigrid (org.). Temas para a dança
brasileira. São Paulo: Edições SESC SP, 2010, p. 101-127.
______ . Afinidades eletivas. A[l]berto n. 2. São Paulo: SP Escola de Teatro, outono 2012,
p. 17-27.