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Conceito de teatro

A palavra teatro abrange ao menos duas acepções fundamentais: o imóvel


em que se realizam espetáculos e uma arte específica, transmitida ao público por
intermédio do ator.
O significado primeiro, na linguagem corrente, liga-se à idéia de edifício, um
edifício de características especiais, dotado basicamente de platéia e palco. Quando
se diz: “Vamos ao teatro” - pensa-se de imediato na saída de casa para assistir, num
recinto próprio, a uma representação, feita por atores, bailarinos ou mimos. Teatro
implica a presença física de um artista, que se exibe para uma audiência. O cinema
já subentende a imagem, substituindo a figura humana real. No teatro, público e ator
estão um em face do outro, durante o desenrolar do espetáculo.

Origem Etimológica

A etimologia grega de teatro dá ao vocábulo o sentido de miradouro, lugar de


onde se vê. O edifício autônomo, de fins idênticos àquele que se chama hoje teatro,
se denominava odeion, auditório. Na terminologia dos logradouros cênicos da
Grécia, teatron correspondia à platéia, anteposta à orquestra e envolvendo-a como
três lados de um trapézio ou um semicírculo. Não se dissocia da palavra teatro a
idéia de visão. Ler teatro, ou melhor, literatura dramática, não abarca todo o
fenômeno compreendido por essa arte. É nele indispensável que o público veja algo,
no caso o ator, que define a especificidade do teatro. A contemplação do bailarino
caracteriza o espetáculo do bailado e a do cantor ou músicos, aspectos da arte
musical. A lembrança da etimologia de teatro tem por fim não apenas a busca de
seu conceito, mas também o esclarecimento de um dado inicial, cuja omissão vem
originando diversos equívocos, entre os quais, sobretudo, o da precedência da
arte literária, com prejuízo do conjunto do espetáculo.
A tríade essencial

No teatro dramático ou declamado, objeto deste ensaio (há os gêneros da


comédia musical e da revista, por exemplo), são essenciais três elementos: o ator, o
texto e o público. O fenômeno teatral não se processa, sem a conjugação dessa
tríade. É preciso que um ator interprete um texto para o público, ou, se se quiser
alterar a ordem, em função da raiz etimológica, o teatro existe quando o público vê e
ouve o ator interpretar um texto. Reduzindo-se o teatro à sua elementaridade, não
são necessários mais que esses fatores. As reformas dos puristas, preocupados em
suprimir o gigantismo espetacular ou as contrafações de qualquer natureza, visam
sempre a devolver o teatro aos seus dados essenciais. Sem a interpretação de um
texto, o ator se encaminhará para a mímica. A ausência do ator costuma ser suprida,
na leitura, pela imaginação, que visualiza as rubricas e inscreve os movimentos num
cenário ideal. Esse pluralismo na composição do teatro acarreta mesmo as
idiossincrasias particulares. Muitas pessoas preferem ler as peças, para que o
prazer estético não fique sujeito à deformação de um mau desempenho ou ao
condicionamento inartístico dos intervalos. Acham esses cultores do solipsismo que
nenhuma realização material corresponde à liberdade criadora da própria mente. Os
espectadores natos, porém, atrapalham-se com as indicações do diálogo escrito, e
não são capazes de armar a contento uma montagem imaginária. Eles estão mais
próximos do teatro, definem-se em verdade como parte dele. Sem dúvida, os
amantes de teatro não podem prescindir da leitura: as representações, até nos
centros artísticos mais desenvolvidos, cobrem apenas uma parcela da dramaturgia,
e aqueles que se contentarem com elas deixarão de usufruir um imenso acervo
literário. A leitura traz um enriquecimento artístico e cultural, mas não chega a
constituir o fenômeno do teatro. Muitas vezes se é obrigado a permanecer nela
porque a curta duração da vida exige que se substituam experiências completas por
resumos ou simulacros.
Conceber um quadro abstrato em que o ator represente para a sala vazia,
realizando-se no prazer solitário, talvez seja a maior contrafação da idéia de teatro.
Síntese

A presença física do ator, além de definir a especificidade do teatro, importa


na colaboração de várias outras artes. Antes de mais nada, cabe observar que ela
supõe um espaço concreto, no qual se processam os deslocamentos do intérprete.
Sobre o palco, a arena ou um simples estrado ergue-se o cenário, que sugere o
ambiente propício à ação. O cenário vale-se de elementos oriundos de duas outras
artes: a arquitetura e a pintura. A criação de espaço para os movimentos do ator
requer o concurso de dispositivos arquitetônicos, distribuídos segundo uma unidade
estética própria e os requisitos funcionais. A pintura, que, antes da corrente
construtivista, continha o princípio da decoração do palco, fornece também
elementos importantes à cenografia. A descoberta da luz elétrica, aplicada ao
teatro a partir de fins do século passado, alterou fundamentalmente o conceito de
cenário. Pode-se afirmar hoje em dia que existe uma arte da iluminação, apoio
valioso para o melhor rendimento do espetáculo. O palco recorre à arte do
mobiliário, eventualmente à escultura, etc. E a necessidade de que as personagens
se completem com figurinos adequados, modernos ou históricos, impõe o concurso
da arte da indumentária.
O ator comunica-se com o público por meio da palavra, instrumento da arte
literária. Embora alguns teóricos desejem menosprezar a importância da palavra na
realização do fenômeno teatral autêntico, sua presença não se separa do conceito
do gênero declamado. Para o ator, entretanto, a palavra é um veículo que lhe
permite atingir o público, mas não se reduz a ela a interpretação. Sabe-se que o
silêncio, às vezes, é muito mais eloquente do que frases inteiras. A mímica ou um
gesto substitui com vantagem determinada palavra, de acordo com a situação.
Postura, olhar, movimentos - tudo compõe a expressão corporal, que participa da
eficácia do desempenho. Por isso se convencionou chamar de interpretação à arte
do ator, que reclama tantos recursos expressivos.
O teatro não sente pejo de recorrer a elementos musicais, para que uma cena
alcance plenitude. Num exemplo corriqueiro, pode o ator, sozinho no palco, ligar
uma vitrola, para que a música povoe a solidão. Ou um diálogo tem a sublinhá-lo um
fundo sonoro, que filtra o derramamento amoroso. A música, se bem aproveitada,
não se reduz ao papel de acompanhamento, mas pode integrar-se na expressão
dramática.
O cinema e a TV, desde a sua invenção rotulados como concorrentes e
inimigos do teatro, prestam-se também a figurar entre os elementos do espetáculo.
Não se põe em dúvida a adaptabilidade da arte dramática para a tela e para o vídeo.
Exige-se apenas que a transposição observe as regras da nova linguagem. Peças
inteiras são também filmadas ou televisionadas, sem o abandono dos métodos
teatrais, não obstante o veículo diferente estivesse a reclamar uma recriação
completa nos seus meios. Quanto ao teatro, discute-se a legitimidade da projeção
de cenas e do funcionamento de um aparelho de IV no quadro do espetáculo.
Piscator (1893-1966) não hesitou em aproveitar películas nas montagens do teatro
político, sobretudo na década de vinte, para trazer maior soma de argumentos
panfletários à convicção do espectador. Jean-Louis Barrault (1910- ) visualizou,
através da câmara, o sonho do protagonista de Le livre de Christophe Colomb, de
Paul Claudel (1868-1955). Seria essa uma incorporação espúria de outra arte ao
terreno do teatro?
Desde que justificada e propiciando efeito estético, inatingível de outra forma
com a mesma economia, a projeção cinematográfica ou a TV não têm por que
serem banidas do teatro. Ambas, como tantas outras artes, estão capacitadas a
fornecer elementos ao espetáculo. Cumpre ao teatro absorver o que lhe seja útil.
A multiplicidade de fatores artísticos conduz à síntese teatral. Arte impura, por
certo, captando aqui e ali todos os instrumentos capazes de produzir o maior impacto
no espectador. A riqueza em sua composição torna o teatro uma das artes mais
sedutoras, que alcança o público pela síntese ou pelo agrado superior de um ou
outro elemento. Certos espetáculos obtêm êxito pela harmonia total da realização.
Outros, apenas pelo interesse do texto, ou ainda pelo mérito do desempenho.
Cenários ou figurinos excepcionais constituem, às vezes, o principal atrativo. Há
muitas maneiras, assim, para que o teatro cumpra o seu papel. Ele será tanto mais
válido, artisticamente, quanto da melhor categoria for cada um dos elementos que o
compõem e mais feliz a unidade final.

Coordenação
Como coordenar, porém, elementos dispersos, tomados de diferentes artes?
O autor, escrita a peça, pode considerar encerrada a sua tarefa, desobrigando-se de
acompanhar o seu destino cênico. E os mortos estão impedidos mesmo de zelar
pelo respeito à sua palavra original. O ator cuida, eventualmente, de reunir os vários
aspectos da montagem, mas não é estranhável se essa preocupação entra em
conflito com o trabalho interpretativo que lhe cabe. Afinal, ele não se vê representar
e, para ver os colegas, precisa omitir as próprias marcações no palco.
Será natural ponderar também que, deixado o espetáculo ao arbítrio de cada
ator e dos responsáveis pela cenografia e pela indumentária, a desconexão pode
comprometer o equilíbrio artístico. Em abono dessa tese, lembre-se a disparidade
das exegeses de um texto e dos resultados a perseguir. Como a obra de Molière
(1622-1673) se classificava, tradicionalmente, no gênero cômico, todas as suas
montagens procuravam o riso. Os estudos modernos passaram a ressaltar o vigor
dramático subjacente aos diálogos de aparência ligeira, e as novas encenações
refletiram essa maneira de ver. Muitos espectadores provavelmente se recordam da
austeridade dramática de Le misanthrope, na versão de Jean-Louis Barrault,
apresentada no Brasil em 1954. Outros intérpretes assinalarão no texto,
futuramente, aspectos nos quais não se demoram hoje os estudiosos.
Para fundamentar-se a exigência de um espírito coordenador dos vários
elementos do espetáculo, não é necessário abandonar o território do teatro.
Recorra-se à análise pirandelliana, segundo a qual há uma verdade para cada
criatura. Os objetos são passíveis desse ou daquele entendimento, segundo a visão
particular do contemplador. Os indivíduos prestam-se aos mais contraditórios juízos,
de acordo com a formação e o ângulo de quem os examina. No campo da exegese
de textos, que, apesar dos esforços de objetividade, conserva inapelavelmente
tantos resíduos subjetivos, os analistas podem chegar, por caminhos lógicos, a
conclusões opostas. Dai o reclamo de uma visão unificadora, que amolde todos os
ingredientes para o mesmo fim.
O reconhecimento dessa necessidade legitimou, no teatro, a figura do
encenador. A ele incumbe pôr em cena uma peça, isto é, realizar o espetáculo. Sua
importância cresce, se se considerar que, assim como o dramaturgo é o autor do
texto, o encenador é o autor do espetáculo. Não se lhe pode recusar tal eminência,
no fenômeno cênico. Uma peça resultará nesse ou naquele espetáculo, muitas
vezes de remoto parentesco entre si, em função da arte do encenador.
Principalmente agora, com a complexidade dos recursos aliciados pelo teatro,
compete ao encenador construir a harmonia artística do espetáculo.

Soma de elementos?

Aceitando-se que o teatro tome de empréstimo a outras artes os elementos


que o compõem, a fim de proceder à síntese, cabe perguntar se ele não se
caracteriza pela simples soma das conquistas realizadas fora de seu âmbito. A
resposta afirmativa situaria o teatro como arte secundária, dependente das
experiências levadas a cabo em outros campos.
Num primeiro exame, parece razoável que a literatura faça as suas pesquisas
na poesia ou no romance, comunicando os resultados estéticos ao dramaturgo. O
arquiteto e o pintor trabalhariam no seu terreno especifico, para oferecer ao
cenógrafo as soluções a que chegaram. Arranjo a posteriori das parcelas fornecidas
por outras artes, o teatro se consideraria mera vulgarização delas, permanecendo
em atraso e nunca almejando uma arrancada vanguardista.
É certo que as artes puras se prestam com maior facilidade à
experimentação. Arte coletiva, o teatro tende a evoluir com mais cautela, e não se
deve esquecer que fala a numeroso público, evidentemente alheio aos requintes do
apreciador individual. As implicações coletivas da arte dramática fazem-na mais
tímida que a poesia ou as artes plásticas. Ela não se limita, contudo, a aproveitar as
formas que lhe são transmitidas nos vários setores.
Por isso se afirma que o teatro é uma síntese de elementos artísticos e não
de artes. O cenário utilizada arquitetura e da pintura alguns dados, mas não se
contém numa ou noutra arte: forja a sua própria especificidade, e dentro dela se
movimenta livremente, chegando a soluções inéditas. Nada impede que a cenografia
seja mais avançada que as outras artes plásticas.
A literatura dramática, atuando em território próprio, trai a sua mensagem, que
pode não ter sido cogitada ainda nas outras artes literárias. Eurípides (484-407/6
a.C.), Molière ou Ibsen (1828- 1906) estão na vanguarda de seu tempo, em relação
a quaisquer sondagens artísticas. Um grande dramaturgo é patrimônio tanto do
teatro quanto da literatura.
Daí não se justificar um certo complexo de inferioridade do teatro, em face de
outras artes, aparentemente mais desenvolvidas neste século. Qualquer forma de
expressão estagna, em certo momento, até receber um impulso inaudito, por meio
do gênio. A simples circunstancia de que a dramaturgia moderna conta com a figura
de um Brecht (1898-1956) prova que o teatro está muito vivo, atento às mais
sensíveis preocupações do tempo.

Espetáculo

A síntese de elementos artísticos faz o espetáculo, e é em função dele que


se deve pensar o teatro.
Espetáculo teatral e teatro podem ser considerados sinônimos, e se
confundem como expressão artística especifica.
Se a literatura dramática fica documentada em livro e os cenários e figurinos
subsistem em fotografias e desenhos, o espetáculo é uma arte efêmera, que se
realiza integralmente na sua duração. O preconceito da eternidade da arte, tão
difundido, relega por isso o espetáculo a plano inferior, valorizando em contrapartida
o texto, perenizado na história literária. Mas a situação especial do teatro já leva
Aristóteles (384-322 a.C.) a considerar a duplicidade de peça e espetáculo. Apenas,
o teórico da Poética não considera a primeira elemento do segundo, mas o
espetáculo parte da tragédia. Para ele, como a tragédia é imitação de ações e a
imitação se executa por atores, “o espetáculo cênico há de ser necessariamente
uma das partes da tragédia, e depois a música e a elocução, pois estes são os
meios pelos quais os atores efetuam a imitação” (ver ARISTÓTELES, Poética, trad.
Eudoro de Sousa, Lisboa, Guimarães, p. 76). A querela reduz-se a problema de
terminologia, porque, ao definir a tragédia, o filósofo grego conceitua
insensivelmente o teatro ou o espetáculo trágico. Fosse o espetáculo parte da
tragédia e não ela elemento dele, não se justificaria que a mesma tragédia
resultasse, de acordo com as encenações, em espetáculos tão diferentes.
O efêmero confere ao espetáculo categoria estética especial, que pode ser
uma razão a mais para o seu fascínio. Imaginar que, em poucas horas, se frustra
urna comunicação artística ou se cumpre o destino do teatro, cria para esse tempo
um privilégio.
A repetição ao longo da vida está na base dos prazeres essenciais. Termina
um espetáculo, e o sortilégio só ocorrerá, para o seu criador, em novo espetáculo.
Finda uma temporada, restará dele apenas a memória. A concentração de esforços
artísticos, em torno do efêmero, atribui ao teatro miséria e grandeza inconfundíveis.

O texto

Costuma-se conceder prioridade ao texto, na análise do fenômeno teatral.


Até os encenadores e intérpretes mais bem-sucedidos, como Baty (1885-1952)
e Jouvet (1887-1951), reverenciam o dramaturgo, fonte de sua atividade. Baty
encontrou uma bela fórmula para exprimir a precedência do elemento literário: “O
texto é a parte essencial do drama. Ele é para o drama o que o caroço é para o fruto,
o centro sólido em torno do qual vêm ordenar-se os outros elementos. E do mesmo
modo que, saboreado o fruto, o caroço fica para assegurar o crescimento de outros
frutos semelhantes, o texto, quando desapareceram os prestígios da representação,
espera numa biblioteca ressuscitá-los algum dia” (ver Gaston BATY, Le metteur en
scène, in Rideau baissé, Paris, Bordas, 1949, p. 218). Citando que “no começo
era o verbo”, Jouvet reconheceu que “o escritor é o elemento principal e ativo e
o verdadeiro diretor” (ver Louis JOUVER, Réflexions du comédien, Rio de Janeiro,
Americ, 1941, p. 218). Sem obra dramática, não há teatro. A existência de uma peça
marca o início da preparação do espetáculo.
A arqueologia, porém, não autoriza a exegese do ator francês. No começo
não era o verbo, como não era o bailarino ou outro elemento da representação.
Desde o princípio, as partes do teatro teriam aparecido indissociadas. De nada
adianta afirmar que não se faz espetáculo sem peça. O texto, alinhado na biblioteca,
sem alguém que o encene, também não é teatro. Será sempre mais fecundo pensar
a arte dramática na totalidade dos seus elementos.
Ao escrever a peça, o dramaturgo autêntico já supõe a encenação, da qual
participa obrigatoriamente o público. Se ele quisesse prescindir da representação,
preferiria outro gênero literário. Pode o autor não se importar com a acolhida do
público, mas nunca deve esquecer que as suas palavras precisam ser encontradas
em função de uma audiência.

Teatro Literário

Aqueles que não têm a vocação legítima do teatro hipertrofiam o significado


do texto como literatura. O espetáculo seria a boa ou a má execução de uma obra
completa em si mesma, determinante único da categoria artística do teatro-
Romancistas e poetas que não dominam o diálogo cênico escudam-se na crença de
que, embora não tenham escrito uma peça teatral (e há no qualificativo uma velada
ironia), fizeram boa literatura. Essa posição opõe-se à dos fabricantes de peças,
artesãos hábeis, que normalmente estão fora da literatura, e se distinguem pelo que
se convencionou chamar carpintaria teatral.
Os dois pontos de vista acham-se eqüidistantes do teatro autêntico. e talvez o
primeiro tenha menos contato com ele do que o segundo. Não se recordam
exemplos de peças que sejam boa literatura e mau teatro. Embora o juízo possa
parecer. demasiado severo, os textos de teatro que não se definem como teatrais
acabam também por enriquecer o rol da má literatura.

Matéria

Lide o poeta com o verso ou a palavra e o romancista com a narrativa, o


veículo do dramaturgo é o diálogo. O romance pode também valer-se do diálogo,
mas subsidiariamente, sem que abarque toda a narração. Grande parte da
dramaturgia clássica foi vazada em verso, não cabendo, apenas por isso, taxá-la de
poética. Aliás, a simples existência do verso, como se sabe, não significa poesia. No
teatro, alega-se que muitos diálogos de Ibsen, feitos em prosa, encerram mais
poesia do que peças inteiras escritas em versos.
O diálogo teatral requer um encadeamento próprio, porque deve ser
transmitido pelo ator. Sua matéria, na boca de um ser humano que o pronuncia, visa
à criação da personagem. No transcurso do espetáculo, instaura-se o universo
teatral por intermédio da ação de personagens em cena.
Drama, etimologicamente, significa ação. A simples conversa, entabolada
como diálogo, não constitui ação, e por isso carece de teatralidade. Para se
facilitarem a tarefa de fixar personagens agindo, os autores antepõem-lhes
obstáculos, cuja transposição conduz ao desfecho. Os obstáculos colocam-se no
íntimo ou no exterior das personagens, e caracterizam o conflito, que a maioria dos
teóricos julga essencial ao conceito de drama.
Ação confunde-se na linguagem leiga com enredo ou intriga. Henri Gouhier
(1898) distingue-os com objetividade, propondo uma definição técnica, de proveito
para dramaturgos e estudiosos. Muitas vezes, por inadvertência, se escreve ação,
quando a palavra adequada seria enredo. Pierre-Aimé Touchard (1903- ) já havia
denominado o enredo o esqueleto da ação (ver Pierre-Aimé TOUCHARD Díonysox,
apologíe pour le théâtre, Paris, Seuil, 1949, p. 119). Estabelecendo paralelo com o
esquema dinâmico de Bergson, Gouhier ensina: “A ação é, pois um esquema
dinâmico com personagens que pedem vida e situações que tendem a ser
encenadas, vida e representação estando dirigidas num certo sentido” (ver Henri
GOUHIER, L’oeuvre théâtrale, Paris, Flammarion, 1958, p. 73). O enredo,
igualmente essencial à obra, opera a encarnação, “para oferecer à ação a
possibilidade de desenrolar-se num tempo datado, de exteriorizar-se num espaço
habitável” (p. 80). Exemplifica o ensaísta a distinção com Bérénice e L’étourdi. A
tragédia de Racine (1639-1699) é “o tipo da peça em que a ação atualiza sua força
dramática ao máximo com um mínimo de intriga” (p. 80-1). Já a comédia de Molière
se mostra “o tipo da peça em que tudo é intriga, e até intrigas: a ação, se nos
atemos mais a palavra que ao objeto, é reduzida a uma indicação” (p. 85). Acaba o
esteta por referir-se à função fabuladora do enredo e à emoção criadora da ação. O
enredo cumpre o objetivo de divertir e a ação faz as personagens existirem como
pessoas.
Apresentação, desenvolvimento e solução de um conflito - eis o esquema
habitual da chamada peça bem feita, alimento rotineiro dos espetáculos. Esse
processo construtivo sugere a idéia de unidades de ação, tempo e lugar. As
personagens, dado o tempo mínimo em que se desnudam para o público, surgem no
palco já à beira da crise aguda que lhes definirá o destino. Para que não se disperse
a atenção do espectador e não se prejudique a organicidade do texto, concentram-
se os conflitos num tempo e num lugar. Os conceitos mais ou menos restritivos
dessas unidades fazem que a peça se passe num dia ou em meses e num só
recinto ou na mesma cidade. Tudo são convenções e o texto, obra de ficção,
observa-as ou se liberta delas, impondo-se pela própria capacidade de convencer.

Gêneros

Não se pode tratar do texto sem uma referência aos gêneros aos quais ele se
filia. Louvando-se em Aristóteles, tratadistas apresentam como gêneros básicos, na
tradição ocidental iniciada na Grécia, a tragédia e a comédia. Ambas ligam-se ao
culto dionisíaco, portador no seu bojo do elemento sombrio da primeira e da
expansão alegre da segunda. Desconhecem-se, porém, as fases intermediárias
dessa passagem, e o próprio Aristóteles desmente a “pureza” dos gêneros, ao
afirmar que a epopéia traz em germe a tragédia e Homero (séc. IX a.C.?) foi “o
primeiro que traçou as linhas fundamentais da comédia” (ver ARISTÓTELES,
Poética, p. 73). Na estrutura da comédia aristofanesca, a única subsistente do
século V a.C. e a sua mais genuína expressão, encontram-se o cornos ático
(sobrevivência do culto ao deus Dionísio, no cortejo de camponeses ébrios e
indisciplinados entoando os cantos fálicos), a farsa do Peloponeso e a comédia
siciliana (contribuindo com a idéia de entrecho) e a própria tragédia (que lhe levou as
suas conquistas formais, pela técnica do verso e ordenação das partes). Cada
gênero, no seu apogeu, aparece, assim, contaminado e impuro, e a pluralidade de
elementos que o compõem recusa o rigor em sua caracterização. A última peça da
tetralogia trágica é chamada drama satírico, gênero híbrido, que toma o próprio
Dionísio e seu séquito como personagens e se destina provavelmente a engastar o
espetáculo no culto religioso.
O teatro erudito de Roma nacionalizou o legado grego, e a dramaturgia
medieval, despontando nas novas línguas em formação, estabeleceu seus próprios
gêneros. As peças religiosas da Idade Média francesa dividem-se em dramas
litúrgicos, dramas semilitúrgicos, milagres e mistérios, correspondendo em parte às
laudas dramáticas da Itália ou aos miracles e moratities ingleses. O Século de Ouro
espanhol valoriza na plenitude o auto sacramental. As várias denominações
referem-se à terminologia cristã que lhes deu origem, e seriam abandonadas
pelos teatros que, no Renascimento, voltaram ao modelo greco-latino. A
revivescência clássica atingiu sobretudo a Itália e a França, ao passo que a Espanha
e a Inglaterra mostraram-se mais sensíveis ao espírito medieval. Procuram-se aqui,
naturalmente, os amplos painéis didáticos, porque não será difícil discernir na
tragédia de Corneille (1606-1684) a continuidade dos gêneros medievais em lugar
da estrita observância dos padrões aristotélicos.
As tragédias puras do autor de Hamlet são assim designadas não porque
estejam isentas de cenas cômicas, mas porque a catástrofe do desfecho acarreta a
morte dos protagonistas. Shakespeare foi o grande mestre do romantismo e Victor
Hugo (1802-1885), no prefácio de Cromwell, manifesto estético do movimento,
preceitua a adoção de um texto que passa naturalmente da comédia à tragédia, do
sublime ao grotesco. Preferiu-se denominar drama esse novo gênero compósito, e
dai por diante o teatro desrespeitou sem pejo as classificações tradicionais. A
chamada dramaturgia de vanguarda, sobretudo, fez questão de abolir os gêneros
rotineiros, e para citar um só exemplo, veja- se a obra de Ionesco (1909). A cantora
careca, antipeça; A lição, drama cômico; Jacques ou a submissão, comédia
naturalista; As cadeiras, farsa trágica; e Vítimas do dever, pseudodrama. O teatro de
hoje procurou refletir, até nos gêneros, a dissociação do homem contemporâneo.
O predomínio da ação ou da intriga enquadra uma peça. A fronteira entre os
gêneros não pode ser determinada com precisão, vendo-se, a cada instante,
comédia com elementos dramáticos e drama com elementos cômicos. A tragédia
estaria codificada com maior rigor, por causa do exemplo de Ésquilo (525-456 a.C.),
Sófocles (496-406 a.C.) e Eurípides, e dos preceitos da Poética aristotélica, da qual
se perderam os capítulos relativos à comédia. A mimese trágica fixaria os homens
melhores do que eles ordinariamente são, e a cômica, piores. Ao definir a tragédia,
Aristóteles refere-se à imitação de ações de caráter elevado. Todos esses conceitos
são demasiado vagos, e não correspondem à obra dos três trágicos. Que
significarão homens melhores? Entraria aí ponto de vista ético ou classe social, já
que a tragédia se nutre da saga heróica, a cargo de reis e aristocratas? Sob o
aspecto moral, discutem-se ações de vários heróis trágicos, como Xerxes,
Clitemnestra ou Creonte. O que provoca a tragédia de muitos protagonistas é a
transgressão de leis religiosas ou de suposto direito natural, acarretando a sua
perda. E paira sobre a tragédia a presença da fatalidade, a dependência humana do
arbítrio divino, a noção fundamental da vida corno efêmero e sofrimento —
circunstâncias ausentes da teorização aristotélica. Interessado mais em explorar o
efeito patético, Eurípides timbrou em trazer para a cena reis aleijados ou com
andrajos.
Há quem negue a possibilidade da tragédia, no mundo moderno, porque a
partir do cristianismo se desenvolveu a idéia do livre-arbítrio, incompatível com os
postulados da religião grega. Como acreditar hoje em vontade superior dos deuses,
regendo o destino humano? Os dramaturgos atraídos pelo gênero trágico
procuraram deslocar a fatalidade para o conflito com o meio sufocante ou a própria
falha interior. Dentro dessa acepção ampla é que se podem considerar tragédias,
por exemplo. Mourning becomes Electra (Electra e os fantasmas), de O’Neill (1888-
1953), e Death of a salesman (A morte de um caixeiro-viajante) de Arthur Miller
(1915).
O drama, liberto da fatalidade e mais condizente com os conflitos do cristão,
que podem ser resolvidos sempre pelo arrependimento e pela penitência, medrou na
literatura teatral e compreende as peças normalmente denominadas sérias. Se nele
predomina a intriga, sendo mínima a ação, assenta-lhe a palavra melodrama, tão em
voga no teatro de efeitos fáceis e lacrimejantes.
A comédia, nas incursões mais ambiciosas, recusou sempre confronto
desfavorável com a tragédia, embora o preconceito contra ela já se manifestasse no
atraso com que foi admitida nos concursos atenienses. Uma das grandes lutas de
Aristófanes (446?-385? a.C.) foi para limpar a comédia da pornografia e da lascívia
de sua dança (o córdax), conferindo-lhe dignidade semelhante à da tragédia. Na
parábase de Os cavaleiros, chega o autor a proclamar que a arte de fazer comédias
é a mais difícil de todas. Nessa senda, acompanhou-o Molière, reivindicando para o
gênero uma inequívoca superioridade. Afirma o comediógrafo, na Critique de l’école
des femmes (Crítica da escola de mulheres) “se, pela dificuldade, se colocasse o
mais no caso da comédia, talvez não fosse engano. Porque, enfim, acho que é
bem mais fácil guindar-se aos grandes sentimentos, desafiar em versos a Fortuna,
acusar os Destinos e dizer injúrias aos Deuses, do que penetrar devidamente no
ridículo dos homens, e exprimir agradavelmente no teatro os defeitos de todo
mundo. Quando se pintam heróis, faz-se o que apraz; são retratos de pura invenção,
nos quais não se procura de modo algum a semelhança, e onde se tem a seguir a
trilha de uma imaginação que se dá livre curso, e que frequentemente deixa o
verdadeiro para agarrar o fantástico. Mas quando se pintam os homens, é preciso
pintar ao vivo; deseja-se que esses retratos sejam fiéis, e nada se obteve se
neles não se conseguiu fazer reconhecer as pessoas do seu tempo. Numa palavra,
nas peças sérias, basta, para não ser censurado, dizer coisas que sejam de bom
senso e bem escritas; mas isso não é suficiente nas outras, é preciso brincar; e é
uma estranha empresa a que consiste em fazer rir as pessoas de bem”.
Essa reivindicação, fundada na qualidade das peças, não deixa dúvida
quanto à mesma hierarquia da comédia e da tragédia. Analisando o problema,
Gouhier não chega a outra conclusão e afirma: “não há maus gêneros: há somente
más peças” (obra citada, p. 203). A ação define também a comédia e, quando ela dá
lugar à intriga, surge o vaudeville, que está para a comédia como o melodrama para
o drama. Gouhier admite uma hierarquia, porém, em termos exclusivamente teatrais,
que não apelam para conceitos éticos, filosóficos ou religiosos. Cada gênero
fornece as suas obras-primas. Mas será justo distinguir entre Tartuffe, de Molière, e
Occupe-toi d’Amélle, de Feydeau (1862-1921). A peça de ação alcança um grau
mais elevado do que a peça cuja intriga se basta. Com a primeira, o teatro atinge
seu duplo fim: divertir criando personagens que existem como pessoas” (p. 212).
Numa dramaturgia maior, o poeta insufla “a vida a personagens dotadas de uma
existência histérica e misteriosa como a das criaturas” (p. 216). O simples enredo
não basta para que as personagens apareçam em sua completa dimensão humana.

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