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Origem Etimológica
Coordenação
Como coordenar, porém, elementos dispersos, tomados de diferentes artes?
O autor, escrita a peça, pode considerar encerrada a sua tarefa, desobrigando-se de
acompanhar o seu destino cênico. E os mortos estão impedidos mesmo de zelar
pelo respeito à sua palavra original. O ator cuida, eventualmente, de reunir os vários
aspectos da montagem, mas não é estranhável se essa preocupação entra em
conflito com o trabalho interpretativo que lhe cabe. Afinal, ele não se vê representar
e, para ver os colegas, precisa omitir as próprias marcações no palco.
Será natural ponderar também que, deixado o espetáculo ao arbítrio de cada
ator e dos responsáveis pela cenografia e pela indumentária, a desconexão pode
comprometer o equilíbrio artístico. Em abono dessa tese, lembre-se a disparidade
das exegeses de um texto e dos resultados a perseguir. Como a obra de Molière
(1622-1673) se classificava, tradicionalmente, no gênero cômico, todas as suas
montagens procuravam o riso. Os estudos modernos passaram a ressaltar o vigor
dramático subjacente aos diálogos de aparência ligeira, e as novas encenações
refletiram essa maneira de ver. Muitos espectadores provavelmente se recordam da
austeridade dramática de Le misanthrope, na versão de Jean-Louis Barrault,
apresentada no Brasil em 1954. Outros intérpretes assinalarão no texto,
futuramente, aspectos nos quais não se demoram hoje os estudiosos.
Para fundamentar-se a exigência de um espírito coordenador dos vários
elementos do espetáculo, não é necessário abandonar o território do teatro.
Recorra-se à análise pirandelliana, segundo a qual há uma verdade para cada
criatura. Os objetos são passíveis desse ou daquele entendimento, segundo a visão
particular do contemplador. Os indivíduos prestam-se aos mais contraditórios juízos,
de acordo com a formação e o ângulo de quem os examina. No campo da exegese
de textos, que, apesar dos esforços de objetividade, conserva inapelavelmente
tantos resíduos subjetivos, os analistas podem chegar, por caminhos lógicos, a
conclusões opostas. Dai o reclamo de uma visão unificadora, que amolde todos os
ingredientes para o mesmo fim.
O reconhecimento dessa necessidade legitimou, no teatro, a figura do
encenador. A ele incumbe pôr em cena uma peça, isto é, realizar o espetáculo. Sua
importância cresce, se se considerar que, assim como o dramaturgo é o autor do
texto, o encenador é o autor do espetáculo. Não se lhe pode recusar tal eminência,
no fenômeno cênico. Uma peça resultará nesse ou naquele espetáculo, muitas
vezes de remoto parentesco entre si, em função da arte do encenador.
Principalmente agora, com a complexidade dos recursos aliciados pelo teatro,
compete ao encenador construir a harmonia artística do espetáculo.
Soma de elementos?
Espetáculo
O texto
Teatro Literário
Matéria
Gêneros
Não se pode tratar do texto sem uma referência aos gêneros aos quais ele se
filia. Louvando-se em Aristóteles, tratadistas apresentam como gêneros básicos, na
tradição ocidental iniciada na Grécia, a tragédia e a comédia. Ambas ligam-se ao
culto dionisíaco, portador no seu bojo do elemento sombrio da primeira e da
expansão alegre da segunda. Desconhecem-se, porém, as fases intermediárias
dessa passagem, e o próprio Aristóteles desmente a “pureza” dos gêneros, ao
afirmar que a epopéia traz em germe a tragédia e Homero (séc. IX a.C.?) foi “o
primeiro que traçou as linhas fundamentais da comédia” (ver ARISTÓTELES,
Poética, p. 73). Na estrutura da comédia aristofanesca, a única subsistente do
século V a.C. e a sua mais genuína expressão, encontram-se o cornos ático
(sobrevivência do culto ao deus Dionísio, no cortejo de camponeses ébrios e
indisciplinados entoando os cantos fálicos), a farsa do Peloponeso e a comédia
siciliana (contribuindo com a idéia de entrecho) e a própria tragédia (que lhe levou as
suas conquistas formais, pela técnica do verso e ordenação das partes). Cada
gênero, no seu apogeu, aparece, assim, contaminado e impuro, e a pluralidade de
elementos que o compõem recusa o rigor em sua caracterização. A última peça da
tetralogia trágica é chamada drama satírico, gênero híbrido, que toma o próprio
Dionísio e seu séquito como personagens e se destina provavelmente a engastar o
espetáculo no culto religioso.
O teatro erudito de Roma nacionalizou o legado grego, e a dramaturgia
medieval, despontando nas novas línguas em formação, estabeleceu seus próprios
gêneros. As peças religiosas da Idade Média francesa dividem-se em dramas
litúrgicos, dramas semilitúrgicos, milagres e mistérios, correspondendo em parte às
laudas dramáticas da Itália ou aos miracles e moratities ingleses. O Século de Ouro
espanhol valoriza na plenitude o auto sacramental. As várias denominações
referem-se à terminologia cristã que lhes deu origem, e seriam abandonadas
pelos teatros que, no Renascimento, voltaram ao modelo greco-latino. A
revivescência clássica atingiu sobretudo a Itália e a França, ao passo que a Espanha
e a Inglaterra mostraram-se mais sensíveis ao espírito medieval. Procuram-se aqui,
naturalmente, os amplos painéis didáticos, porque não será difícil discernir na
tragédia de Corneille (1606-1684) a continuidade dos gêneros medievais em lugar
da estrita observância dos padrões aristotélicos.
As tragédias puras do autor de Hamlet são assim designadas não porque
estejam isentas de cenas cômicas, mas porque a catástrofe do desfecho acarreta a
morte dos protagonistas. Shakespeare foi o grande mestre do romantismo e Victor
Hugo (1802-1885), no prefácio de Cromwell, manifesto estético do movimento,
preceitua a adoção de um texto que passa naturalmente da comédia à tragédia, do
sublime ao grotesco. Preferiu-se denominar drama esse novo gênero compósito, e
dai por diante o teatro desrespeitou sem pejo as classificações tradicionais. A
chamada dramaturgia de vanguarda, sobretudo, fez questão de abolir os gêneros
rotineiros, e para citar um só exemplo, veja- se a obra de Ionesco (1909). A cantora
careca, antipeça; A lição, drama cômico; Jacques ou a submissão, comédia
naturalista; As cadeiras, farsa trágica; e Vítimas do dever, pseudodrama. O teatro de
hoje procurou refletir, até nos gêneros, a dissociação do homem contemporâneo.
O predomínio da ação ou da intriga enquadra uma peça. A fronteira entre os
gêneros não pode ser determinada com precisão, vendo-se, a cada instante,
comédia com elementos dramáticos e drama com elementos cômicos. A tragédia
estaria codificada com maior rigor, por causa do exemplo de Ésquilo (525-456 a.C.),
Sófocles (496-406 a.C.) e Eurípides, e dos preceitos da Poética aristotélica, da qual
se perderam os capítulos relativos à comédia. A mimese trágica fixaria os homens
melhores do que eles ordinariamente são, e a cômica, piores. Ao definir a tragédia,
Aristóteles refere-se à imitação de ações de caráter elevado. Todos esses conceitos
são demasiado vagos, e não correspondem à obra dos três trágicos. Que
significarão homens melhores? Entraria aí ponto de vista ético ou classe social, já
que a tragédia se nutre da saga heróica, a cargo de reis e aristocratas? Sob o
aspecto moral, discutem-se ações de vários heróis trágicos, como Xerxes,
Clitemnestra ou Creonte. O que provoca a tragédia de muitos protagonistas é a
transgressão de leis religiosas ou de suposto direito natural, acarretando a sua
perda. E paira sobre a tragédia a presença da fatalidade, a dependência humana do
arbítrio divino, a noção fundamental da vida corno efêmero e sofrimento —
circunstâncias ausentes da teorização aristotélica. Interessado mais em explorar o
efeito patético, Eurípides timbrou em trazer para a cena reis aleijados ou com
andrajos.
Há quem negue a possibilidade da tragédia, no mundo moderno, porque a
partir do cristianismo se desenvolveu a idéia do livre-arbítrio, incompatível com os
postulados da religião grega. Como acreditar hoje em vontade superior dos deuses,
regendo o destino humano? Os dramaturgos atraídos pelo gênero trágico
procuraram deslocar a fatalidade para o conflito com o meio sufocante ou a própria
falha interior. Dentro dessa acepção ampla é que se podem considerar tragédias,
por exemplo. Mourning becomes Electra (Electra e os fantasmas), de O’Neill (1888-
1953), e Death of a salesman (A morte de um caixeiro-viajante) de Arthur Miller
(1915).
O drama, liberto da fatalidade e mais condizente com os conflitos do cristão,
que podem ser resolvidos sempre pelo arrependimento e pela penitência, medrou na
literatura teatral e compreende as peças normalmente denominadas sérias. Se nele
predomina a intriga, sendo mínima a ação, assenta-lhe a palavra melodrama, tão em
voga no teatro de efeitos fáceis e lacrimejantes.
A comédia, nas incursões mais ambiciosas, recusou sempre confronto
desfavorável com a tragédia, embora o preconceito contra ela já se manifestasse no
atraso com que foi admitida nos concursos atenienses. Uma das grandes lutas de
Aristófanes (446?-385? a.C.) foi para limpar a comédia da pornografia e da lascívia
de sua dança (o córdax), conferindo-lhe dignidade semelhante à da tragédia. Na
parábase de Os cavaleiros, chega o autor a proclamar que a arte de fazer comédias
é a mais difícil de todas. Nessa senda, acompanhou-o Molière, reivindicando para o
gênero uma inequívoca superioridade. Afirma o comediógrafo, na Critique de l’école
des femmes (Crítica da escola de mulheres) “se, pela dificuldade, se colocasse o
mais no caso da comédia, talvez não fosse engano. Porque, enfim, acho que é
bem mais fácil guindar-se aos grandes sentimentos, desafiar em versos a Fortuna,
acusar os Destinos e dizer injúrias aos Deuses, do que penetrar devidamente no
ridículo dos homens, e exprimir agradavelmente no teatro os defeitos de todo
mundo. Quando se pintam heróis, faz-se o que apraz; são retratos de pura invenção,
nos quais não se procura de modo algum a semelhança, e onde se tem a seguir a
trilha de uma imaginação que se dá livre curso, e que frequentemente deixa o
verdadeiro para agarrar o fantástico. Mas quando se pintam os homens, é preciso
pintar ao vivo; deseja-se que esses retratos sejam fiéis, e nada se obteve se
neles não se conseguiu fazer reconhecer as pessoas do seu tempo. Numa palavra,
nas peças sérias, basta, para não ser censurado, dizer coisas que sejam de bom
senso e bem escritas; mas isso não é suficiente nas outras, é preciso brincar; e é
uma estranha empresa a que consiste em fazer rir as pessoas de bem”.
Essa reivindicação, fundada na qualidade das peças, não deixa dúvida
quanto à mesma hierarquia da comédia e da tragédia. Analisando o problema,
Gouhier não chega a outra conclusão e afirma: “não há maus gêneros: há somente
más peças” (obra citada, p. 203). A ação define também a comédia e, quando ela dá
lugar à intriga, surge o vaudeville, que está para a comédia como o melodrama para
o drama. Gouhier admite uma hierarquia, porém, em termos exclusivamente teatrais,
que não apelam para conceitos éticos, filosóficos ou religiosos. Cada gênero
fornece as suas obras-primas. Mas será justo distinguir entre Tartuffe, de Molière, e
Occupe-toi d’Amélle, de Feydeau (1862-1921). A peça de ação alcança um grau
mais elevado do que a peça cuja intriga se basta. Com a primeira, o teatro atinge
seu duplo fim: divertir criando personagens que existem como pessoas” (p. 212).
Numa dramaturgia maior, o poeta insufla “a vida a personagens dotadas de uma
existência histérica e misteriosa como a das criaturas” (p. 216). O simples enredo
não basta para que as personagens apareçam em sua completa dimensão humana.