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RESUMO

O teatro e sua realidade

Bernard Dort
Ao longo de dois capítulos, intitulados A encenação, uma nova arte? e
Condição sociológica da encenação teatral, Bernard Dort discute os caminhos e
bifurcações condicionantes que formularam a encenação tal qual conhecida
contemporaneamente. Através de um traçado sócio-histórico, o autor investiga as
casualidades e fatos responsáveis pelo surgimento do encenador enquanto um
mediador de relações, tanto do intervalo texto-espetáculo, quanto do hiato palco-
público.
Em A encenação, uma nova arte?, o papel de centralidade absoluta conferida
ao encenador e “a encenação como o setor mais privilegiado e mais vivo da
atividade teatral” são apontados como sintomas da conformação hierárquica
estabelecida nas companhias, por consequência dos encenadores,
costumeiramente, deterem o status de seus fundadores. Ademais, no século XIX, as
divisões setoriais cênicas, ainda, não eram definidas. Fato este que, possivelmente,
contribuiu com a fertilização do solo para a compreensão do encenador como uma
função específica do processo teatral.
Em um dos trechos, Dort destaca que o encenador significou a consolidação
do teatro contemporâneo, bem como complexificou as atividades atribuídas à
encenação. Ao citar Brecht e sua companhia Berliner Ensemble, denota a sua
influência na concepção do encenador como aquele que domina a criação artística,
e interliga a encenação à composição dramática. O autor-encenador, portanto, “não
se limita a traduzir: explica”.
Contudo, segundo Roger Planchon, residiria neste fato uma sobrepujança da
escrita cênica em detrimento da escrita dramatúrgica, o que ele definirá como a crise
do teatro contemporâneo: a necessidade do encenador adaptar textos clássicos às
convenções teatrais da sua contemporaneidade, em virtude da defasagem
dramatúrgica. Retoricamente a este argumento de Planchon, Dort ressalta as
contribuições teóricas e acadêmicas dos encenadores, enfatizando que, ao
documentar seus métodos, não apenas dispuseram da posição de autor, mas,
também, de encenador, aquele que coaduna e discute a relação entre o texto e a
encenação.
Mas, afinal, “o que significa a encenação nos dias de hoje”? Para elucidar
esta problemática, Bernard Dort apresenta definições, distintas e consonantes entre
si, de pensadores como Littré, André Veinstein e Jacques Copeau para mostrar não
haver um consenso acerca do que representa o encenador. E ele continua,
afirmando não ser possível entender o porquê de sua função, sem a compreensão
do desenvolvimento histórico da encenação, cuja acepção atual data do século XIX,
e as transformações do teatro.
A despeito do assunto no plano histórico, o autor cita os mestres de cerimônia
do teatro elisabetano como pré-encenadores, tendo em vista uma certa proximidade
na função desempenhada ao assegurar a unidade do espetáculo. Entretanto, Dort
sinaliza que esses pré-encenadores agiam mediante normas e costumes burgueses,
voltados mais para os aspectos ornamentais do que à uma ideia de encenação
propriamente dita. E é neste campo que reside a diferenciação funcional do mestre
de cerimônia e do encenador, pois, este último, “antes de coordenar, [...] escolhe,
decide”. Bernard Dort, completa afirmando que “o advento do encenador provoca [...]
a reflexão sobre a obra. Entre a obra e o público que se modifica, submetido às
condições históricas e sociais determinadas, existe agora uma mediação”.
Assim, o autor denota ser papel do encenador comunicar a obra,
intermediando seu olhar artístico, em atravessamento coletivo, com o olhar do
público. E conclui, afirmando que a distinção, na França, dos conceitos de teatro do
povo e de teatro popular, cujo último se revela como um mantenedor da herança
cultural de uma sociedade, o encenador assume a função de educador social.
A partir de A condição sociológica da encenação teatral, Dort adentra nos
fatores sócio-históricos responsáveis pela mutação dos termos encenação e
encenador, ainda no século XIX. O primeiro consolidando-se como distinta forma de
arte e, o segundo, como “único realizador do espetáculo”. Contudo, explica o autor,
o termo encenador só passa a ser utilizado, de fato, nos anos oitenta daquele
século, a exemplo de nomes como André Antoine e seu Théatre-Libre, Richard
Wagner e a companhia teatral dos Meininger.
Antes do surgimento do encenador, os espetáculos eram regidos por uma
certa ordem, a qual preexistente à representação teatral e ao próprio texto. Sendo,
portanto, “cada representação [...] uma manifestação, uma encarnação, a mais
perfeita possível, desta forma que constitui em si mesma todo o sentido do
espetáculo”. Este fenômeno, Dort definirá como teatro-ritual, dissertando que,
embora perdidas algumas características do aspecto ritual na concepção do teatro
ocidental, seus resquícios perduraram por um período; a exemplo disso, os mestres
de cerimônia elisabetanos que coordenavam o espetáculo mediante “modelos mais
ou menos consagrados, mais ou menos variáveis”.
Durante o século XVII, com a personalização e a diferenciação crescente no
trabalho teatral, o autor, o ator principal e o diretor da companhia puderam introduzir
variantes ao processo representativo com retificações e adaptações, que
possibilitaram “ajustar” textos clássicos às exigências circunstanciais ao Século das
Luzes. Ainda à época, alguns teóricos irão reclamar o surgimento do encenador.
Jules de La Mesnardiàre, por exemplo, o irá reivindicar recordando o papel do diretor
do coro na República Grega.
Todavia, apenas no século XIX, a palavra encenação viria a aparecer,
diferenciando-a da direção. Segundo Marie-Antoinette Allévy, caberia ao encenador,
portanto, ser aquele que dá “uma interpretação pessoal sugerida pela obra
dramática e que coordena todos os elementos de uma espetáculo” a partir de
conceitos estéticos particulares. Por sua vez, o diretor seria aquele que confere a
“simples organização objetiva [...] da animação teatral e dos acessórios”.
As transformações históricas, que marcaram os séculos XVIII e XIX, se
consolidaram com o advento da problemática da verdade histórica. Esta se
materializa na “noção de uma moldura particular, própria a cada obra”, que
posteriormente será entendida por meio/ambiente cênico, “onde se enraíza a obra
escrita e do qual ela extrai todas as partes de suas significações”. Assim, essas
mudanças acabaram por delegar a autoridade cênica a um único indivíduo: o
cenógrafo; senão, o diretor ou o autor, quando este último assume o papel de
cenógrafo ou diretor.
Segundo Bernard Dort, na França, Antoine é o maior responsável pela
distinção da função do encenador ao de outros participantes do espetáculo. “Torna-
se elemento fundamental da representação teatral: a mediação necessária entre um
texto e o espetáculo”. Assim, o encenador revela-se como “uma tomada de
consciência do significado estético desta nova atividade”.
Por conseguinte, para debater sobre as novas técnicas e suas implicações, o
autor ressalta a Revolução Industrial como um dos fatores preponderantes para
suscitar o papel do encenador. Ele exemplifica como o teatro prontamente
incorporou tal modernização ao seu espaço físico, destacando a substituição de
telões e bambolinas por construções praticáveis, bem como a adoção, a priori, da luz
a gás e, a posteriori, da luz elétrica de Edison em detrimento da iluminação a velas.
Entretanto, Dort não se abstém de uma crítica incisiva à utilização deste ponto-vista
como absoluto e resolutivo quanto à questão do surgimento do encenador. Para ele,
a este fato, seria mais correto atribuir a ampliação das possibilidades de se elaborar
o polimorfismo do espaço cênico moderno por intermédio do encenador.
Para endossar sua crítica, o autor cita a contribuição que a variedade de
repertório deu à ampliação do entendimento da necessidade de um encenador. Se,
outrora, pautavam-se apenas na adaptação de textos clássicos, agora, as
companhias se viam diante das peças estrangeiras e do instigante desafio das
novas personagens. Por consequência, houve uma “ruptura definitiva com a regra
das três unidades e com a clássica moldura do palco”, ao passo que os ambientes
cênicos tornaram-se cada vez mais particularizados. “O número de papéis aumenta
à medida que se diferenciam uns dos outros”, deste modo, as companhias foram
influenciadas a ampliar quantitativamente seu núcleo de atores.
Segundo Dort, tal fato é determinante para “o desaparecimento das
companhias de província, [...] a fusão em uma só de todas as companhias existentes
em Paris [...] e a exploração dos teatros de província pelas companhias de Paris”.
Durante o Segundo Reinado, a vida teatral parisiense do século XIX passou por
diversas modificações em sua infra-estrutura; dentre elas, o desaparecimento das
salas populares especializadas em folhetins de gênero.
Em meio à essa ebulição, o teatro observava um aumento considerável no
número de espectadores ao passo que as antigas cidades ião sendo re-urbanizadas,
os pequenos-burgueses locais migravam e os avanços ferroviários intensificavam o
fluxo de pessoas. Becq de Fouquières, em 1884, irá dizer que “a Revolução rompeu
as barreiras que separam umas classes das outras”. Portanto, prenunciava-se,
quase de maneira explícita, que a heterogeneização do público implicaria numa
“modificação de atitude frente ao teatro”, uma mediação.
Ademais, afirma Becq, a ampliação do público provocou um processo incisivo
de modificação do meio cênico. “O novo público, virgem de emoções estéticas [...],
só possui como escala de valores a realidade”, em palavras do autor supracitado.
Assim, ele teoriza a ocorrência de uma sobreposição da ideia do “homem geral” pela
do “homem fisiológico” como paradigma para o rompimento com as questões do
âmbito genérico, para o encontro com as subjetividades. Se antes o ambiente cênico
era voltado para três categorias: senhoril, burguês e popular; com a encenação nas
peças modernas, através das transformações na estética dramática e na sociedade
à sua respectiva época, concretizou-se o desenvolvimento das inúmeras
possibilidades representativas. O imaginário particular do encenador, em comunhão
com o contexto histórico, se revelaria elemento primaz na concepção da montagem
a ser realizada.
Ainda acompanhando a discussão proposta por Becq, Bernard Dort explica
que, antes do surgimento do encenador, a relação palco-plateia sucedia-se
mediante uma espécie de acordo tácito ou, ainda, efeito espelhado, no qual o
público, socialmente, homogêneo era quem determinava a uniformidade do
espetáculo. A isso, acrescenta que “tanto mais verdadeira quanto menos real” seria
a interpretação do ator. E, em contraposição a esse pensamento reducionista e
ornamental da representação cênica, o autor afirma que “o transporte do relativo ao
teatro” é o “que faz a riqueza da arte moderna”. A variabilidade dos públicos
conduziu o teatro, organicamente, a perceber a necessidade de um intermediador
entre palco-plateia, alguém capaz de comunicar, ao público, a interpretação
desejada sobre aquela obra: o encenador.
Como fatores para a encenação moderna estão a concepção da
representação teatral não-dissociada do contexto histórico sobre o qual uma obra
emerge, assim como as transformações decorrentes da heterogeneidade do público.
Ao citar Becq, Dort informa que “o espectador é chamado a desfrutar menos a
semelhança da peça com ‘esta imagem que ele mesmo possui’ do que a distância
que o separa desta obra e da singularidade da mesma”. Ou seja, os processos que
permitiram as transformações no espectro da encenação, culminaram na
configuração de uma proposta de representação não-ilusionista da realidade, que
geolocalizava a obra em um dado contexto histórico, social e cultural.
Em face a todas as questões já levantadas sobre o surgimento e a acepção
dos termos encenação e encenador, Bernard Dort encaminha sua conclusão para o
que ele denomina uma contradição essencial. O autor reitera o poder do encenador
na mediação entre palco e plateia, caracterizando-o como um agente que atua para
conscientizar a sociedade de sua historicidade, abrindo a obra, outrora hermética, à
um diálogo franco e incisivo. Contudo, problematiza Dort, este caráter decisivo
conferiu ao encenador, um aspecto absolutista. Essa contradição, todavia, segundo
o autor, resguardaria a essência da encenação moderna, tanto por sua ampla
riqueza poética e dialética, quanto por possibilitar entender a encenação, não
apenas como um conjunto de técnicas, mas como a arte da representação teatral.

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