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Wagner: a ópera como «arte da transição»

ou a busca pelo realismo no sec. XIX


Ricardo Rocha Pereira
Nº 54918

História da Música — de 1815 a 1890


Prof. ª Dr. ª Luisa Cymbron

Maio, 2020
I. A ópera e o realismo: uma questão problemática.
A arte sempre teve uma relação complexa com a realidade, motivo de fecundas
discussões filosóficas e estéticas, desde a Grécia antiga até aos nossos dias. No século
XIX célebres discussões deste tipo influenciaram as práticas artísticas — especialmente
importantes na época, e em particular no caso da música, foram, entre outras, as obras de
Hegel, Schopenhauer e Hanslick. De diferentes formas estes autores contribuíram para a
valorização da música instrumental e a construção de um ideal artístico romântico. Não
obstante, a ópera manteve-se como género central na vida musical e artística ocidental,
sofrendo transformações significativas.
Uma das grandes transformações da ópera durante o século XIX diz respeito à
busca por um maior realismo do género. Em parte, um diferente nível de verosimilhança
tinha já sido posto em cena com a ópera buffa do sec. XVIII — como refere Taruskin —
isto é, existia já um maior equilíbrio entre a acção dramática e o lirismo musical próprio
de um espetáculo operático. Assim, o que sucede durante o início do séc. XIX é uma
apropriação por parte da ópera séria de alguns códigos da ópera cómica — a título de
exemplo, os números de conjunto. A busca de um maior realismo do género fica também
evidente no interesse por temas históricos mais próximos da época — medievais ou até
modernos —, numa tentativa de representação da «cor local», no abandono dos papeis
travestidos, etc. Estas alterações não são, contudo, suficientes para se constituir uma
corrente estética ancorada no realismo, mas ela chegaria ainda durante o século XIX —
ou pelos menos assim se anunciaria.
É graças a La traviata e a Carmen — indica Caroline Abbate —, em especial à
opera de Bizet, que «o realismo [se] tornou uma palavra da moda na ópera no final do
século XIX — e em diversos países quase ao mesmo tempo.» (Abbate, 2015, 528). O que
é exatamente o realismo e a que corresponde em termos operáticos é uma questão
complexa. Num artigo sobre o realismo russo e a ópera Taruskin apresenta esta corrente
como:

A direct reaction against a dominant Western aesthetic theory of the time. The Hegelian
philosophy of art, whose greatest exponent in the field of music was Hanslick, was an idealist, neo-
Platonist aesthetic which held that […] true beauty does not exist in objectivity reality, only in the
imagination which transcends it. It is an absolute, an abstract principle, the instrument of whose
realization is the artist. (Taruskin, 1970, 432)
Trata-se, portanto, de uma nova concepção filosófica — nascida na literatura —
que se insurge contra os ideais românticos. Defendendo a realidade sobre a imaginação,
como sintetiza Nikolay Chernyshevsky: «Beauty is life ... Beautiful is that being in which
we see life as it should be according to our conceptions; beautiful is the object which
expresses life, or reminds us of life». (Chernyshesky in Taruskin, 1970, 433). Esta
premissa tem, segundo Taruskin, duas consequências diretas: a primeira é que a função
da arte se torna mimética, a segunda é que ao reproduzir a realidade a arte dá a conhecê-
la ao Homem, assumindo assim um papel análogo ao das ciências naturais, e que coloca
no significado social o valor maior de uma obra. O que por sua vez eleva o artista ao
estatuto de um pensador ou filósofo.
O desenvolvimento do realismo, enquanto movimento artístico, a partir de meados
do séc. XIX está longe de ser um processo claro — como aliás qualquer movimento
estético/artístico —, em especial pelo seu «ambíguo relacionamento com os
problemáticos conceitos de realidade», (Nochilin in Abbate, 2015, 529) como refere
Linda Nochlin. Este relacionamento torna-se ainda mais problemático quando aplicado à
música, e em particular à ópera. A música é uma arte abstrata e a ópera — enquanto um
meio de representação — é artificial e cheia de convenções, nela os personagens cantam
no lugar de falar, o que faz de si uma arte muito pouco realista. Caroline Abbate aconselha
por isso cautela ao «adotar esse termo [realismo operático] com demasiada literalidade»
(Ibid., 528). Taruskin termina o seu artigo concluindo que a ópera realista russa foi «a
flash in the pan» apoiando-se numa citação de Chaikosky que defende como desprezível
e falsa «this attempt to introduce truth into a branch of art where everything is based on
pseudo and where truth in the usual sense of the word is not demand at all» (Chaikosky
in Taruskin, 1970, 454). Contudo, no final do século XIX «o realismo foi intimado como
fator mais do que jamais fora antes.» (Abbate, 2015, 528) Um dos motivos que justifica
essa atitude tem que ver com a necessidade sentida pelos compositores emergentes de se
destacarem das figuras e ideias que imediatamente lhe precedem, e que no caso da ópera
do final do século XIX significava distanciarem-se de Verdi, Wagner e Mayerbeer. Desta
forma, o termo realismo operático tem a sua importância, mas deve ser entendido com
uma certa relatividade, podendo significar várias coisas.
Nesta monografia tentaremos expor de que forma algumas reformas de Wagner
contribuíram para a discussão do realismo operático no final do séc XIX, com especial
atenção à temporalidade e ao papel da orquestra na construção de um ambiente cénico
verosímil.
II. Wagner e o realismo.
Richard Wagner é uma das figuras mais controversas e incontornáveis do século
XIX no plano artístico europeu. Controverso nas suas ideias revolucionárias e de
regeneração profundamente antissemitas, incontornável na sua produção artística — seja
musical ou literária —, bem como no seu pensamento estético e filosófico, que haveriam
de transformar não só a forma de fazer, mas também de ouvir ópera.
Parte da transformação que Wagner tenta imprimir no género operático corre lado
a lado com a busca pelo realismo discutido nos parágrafos anteriores. Prova disso é a
comparação feita por Hugo Riemann em 1882, na sua Musik-Lexicon, onde se refere a
Dargomyzhsky — a prepósito da sua ópera O convidado de pedra, na qual o compositor
tenta por em prática os ideais do Realismo — como um «unsuccessful imitator of Richard
Wagner, who, unfortunately, went even further than he.» (Riemann in Taruskin, 1970,
448). Embora Taruskin se esforce por mostrar que a crítica de Rieman é injusta e que as
semelhanças entre Dargomyzhsky e Wagner eram fruto de uma coincidência, a verdade
é que elas existiam. Naturalmente Wagner é muito mais um idealista romântico do que
um realista — os deuses, heróis, ninfas, lutas épicas, etc. presente nos enredos de Wagner
tornam impossível defender o contrário — não obstante, em alguns aspetos as suas
inovações são fundamentais para a existência de um realismo operático. A ideia, por
exemplo, de que os cantores devem «transformar-se nas figuras que personificam,
permitindo que a plateia absorva a ilusão de que o mundo encenado no palco existe e tem
importância.» (Abbate, 2015, 529) é uma delas. Mas existem mais.

II.I. A unidade de tempo.


Um dos maiores entraves ao realismo na ópera é — mais do que a sua natureza
cantável — a temporalidade no espetáculo operático. Até ao século XIX a ópera organiza-
se, grosso modo, entre recitativos e árias. Correspondendo as árias, normalmente, a uma
parte do espetáculo onde o tempo fica suspenso — a ação é interrompida, para que nos
possamos concentrar na música. A representação continua, mas o tempo cénico fica,
simplesmente, em suspenso, por vezes durante vários minutos, numa artificial concepção
temporal. Wagner seria avesso a essa concepção, na óptica do compositor era possível
explorar os diversos estados emocionais — antes reservados às árias — sem
necessariamente parar a acção cénica.
Isso fica evidente na ópera Tristão e Isolda, Wagner explora aí diferentes estados
afetivos naquilo a que chama — numa carta a Mathilde Wesendonck — a sua «most
profound and delicate art, the art of transition». Este conceito da ópera como «arte de
transição» seria de maior importância como explica John Daverio «Intended as a means
of mediating between sharply contrasting affective states or moods, this “art of transition”
constituted, in Wagner’s opinion, the “secret” of his musical form. And since for Wagner
“form” was synonymous with the total fabric of a composition, this particular “art” bore
on every domain of his musical language.» (Daverio, 2008, 126)
Nas suas quatro óperas do Anel de Nibelungo Wagner também «deixa o tempo
encenado fluir quase sem interrupções a cada cena.» transformando «profundamente o
formato musical da ópera, mudando a relação entre o tempo musical e o tempo ficcional,
trazendo-os a um alinhamento mais contínuo». Intrínseco a esta concepção temporal está
ainda implícita a substituição dos tradicionais solos de árias por duetos e peças de
conjunto, além de um progressivo abandono do liberto em verso pelo liberto em prosa e
de que Wagner foi uma vez mais «empreendedor». (Abbate, 2015, 530 e 531).

II.II. O som natural.


Para além da questão do tempo, o papel da orquestra é outro dos grandes
contributos de Wagner para um maior realismo operático. De certa forma, a tradição
operática alemã procurava desde Der Freischütz introduzir um certo colorido local —
que aliás é também audível noutros compositores e obras, como é o caso de Guilheme
Tell de Rossini. Ou seja, introduzir na partitura algumas convenções que fossem
imediatamente apreendidas pelos espectadores e que lhes permitisse identificar a
realidade representada. Em Götterdämmerung, entre a primeira e a segunda cena do
primeiro ato o interlúdio «Jornada do Reno de Siegfried» é ouvido como uma viagem
geográfica. Essa viagem musical funciona graças aos leitmotiv que Wagner usa e que
estavam próximos das representações tradicionais já usadas — caça, fogo, etc.
Mas Wagner procurar explorar este recurso ao expressar não só tópicos já
conhecidos — como é o caso das cenas pastorais — mas a própria natureza. Em Der
fliegende Holländer, por exemplo, as tempestades adquirem um papel simbólico «elas
contêm não somente os convencionais trémulos em modo menor, mas o puro assobio do
vento nas enxárcias (flautas e flautins) ou as pancadas do trovão (tímpanos percutidos
com baquetas duras)» (Abbate 2015, 533).
Não se trata, portanto, de um papel exclusivamente mimético da orquestra, mas
de uma maior confluência entre música e acção dramática — como parte de um todo
orgânico que é o drama e que inevitavelmente confere um maior realismo à cena.
III. Considerações finais.
No final do século XIX o termo realismo chegara à ópera, desde as experiências
realistas russas ao verismo italiano «as várias tentativas de realismo na ópera (…) foram
realmente radicais e fora de lugar, ao desafiar, como desafiaram, ideias há muito vigentes
sobre o lugar próprio da música no espetáculo operístico». (Abbate, 2015, 563). O termo
realismo é no entanto problemático e abrangente, na arte em geral e na ópera em
particular. Até que ponto pode a ópera ser realmente um espetáculo realista é uma dúvida
que subsiste.
Não obstante, e por motivos distintos, a preocupação pelo realismo era comum a
vários compositores do grande século XIX. Wagner embora se encontre afastado do
movimento realista partilha com ele alguns pontos de contacto — a ideia de que o artista
é também um filósofo, por exemplo. Na sua tentativa de reforma do género operático
Wagner rompe com algumas concepções e introduz outras que serão importantes para
uma linguagem mais verosímil no género. A noção do tempo e o papel da orquestra, além
das questões formais nos libretos e da exigência aos intérpretes cantores de uma entrega
total, são demonstrativos disso. Assim, fica evidente como a ópera de Wagner enquanto
«arte de transição» contribuiu, entre outras coisas, na busca pelo realismo no século XIX.
Referências

Abbate, Carolyn e Roger Parker. 2015. A history of opera. New York: W. W. Norton.
Bareis, J Alexander, e Lene Nordrum. 2015. «How to Make Believe. The Fictional Truths
of the Representational Arts.» In Narratologia: Contributions to Narrative Theory. De
Gruyter.
Daverio, Jonh. 2008. «Tristan und Isolde: essence and appearance». Chapter in Grey,
Thomas S. (arg.). The Cambridge Companion to Wagner, 115 – 133. Cambridge
Companions to Music. Cambridge: Cambridge University Press.
Grey, Thomas. 2002. «Opera and Drama». In The Cambridge History of Nineteenth-
Century Music. Editado por Samson, J. pp. 371 – 423. Cambridge: Cambridge University
Press.
Lindenberger, Herbert. 2010. Situating opera: period, genre, reception. Cambridge,
Cambridge University Press.
Taruskin, R. (2005). Music in the Nineteenth Century. The Oxford History of Western
Music, vol. 3. New York: Oxford University Press
Taruskin, Richard. 1970. «Realism as Preached and Practiced: The Russian Opera
Dialogue». In The Musical Quarterly, Vol. 56, No. 3 (Jul., 1970), pp. 431-454. Oxford:
Oxford University Press.
Till, Nicholas. 2012. The Cambridge companion to opera studies. Cambridge:
Cambridge.

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