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DO RIO DE JANEIRO
PRIMEIRA AVALIAÇÃO
Rio de Janeiro - RJ
19/04/2021
As máquinas de Wagner:
visão e ilusão
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sentido, Wagner vê o drama como a obra de arte coletiva superior, entendendo que é somente
na arte do drama que pode surgir o encontro total das artes e, abolindo os impulsos egoístas dos
artistas isolados em suas categorias, alcançarem a totalidade enquanto arte. “Não haverá uma
capacidade ricamente desenvolvida das artes singulares que fique não utilizada a obra de arte
total do futuro; antes será precisamente nesta que tais capacidade obterão a sua integral
vigoração.” (WAGNER, 2003. p.186) Promovendo “a unificação de formas artísticas múltiplas
(teatro, música, canto, dança, poesia dramática, cenografia, iluminação e artes visuais)” (SÁ,
2017, p. 97), na obra de arte total de Wagner, desaparecem então as artes individuais, e “as
diferentes modalidades artísticas devem proceder ao próprio rejuvenescimento na
colectividade, passível apenas através da realização de uma única obra de arte – o drama
musical” (CASTANHEIRA, 2013, p. 40).
A tentativa mais concreta de alcançar seu ideal de obra de arte total veio apenas com a
construção de seu edifício teatral, o Bayreuth Festspielhaus. Concebido originalmente, em
1862, como uma estrutura temporária, em “ocasião da estreia do conjunto operário de Wagner,
Der Ring des Nibelungen” (CASTANHEIRA, 2013, p. 61), sua materialização acontece 14
anos depois, tendo sido desacreditada até pelo Kaiser Guilherme que teria afirmado a Wagner
na inauguração de seu teatro em 13 de agosto de 1876, “achei que você não conseguiria”, como
comenta o historiador Leonardo Gomes (2013, p. 153).
Richard Wagner teve sua vida conduzida, muitas vezes, em direção ao desastre
financeiro. Seja por uma “compulsão pelo luxo” (GOMES, 2013, p. 140) ou por um otimismo
ansioso, o compositor alemão parecia ter uma “total incapacidade de viver e de se manter dentro
dos limites de seus rendimentos” (GOMES, 2013, p. 140), que o levou mais de uma vez a ser
condenado a prisão por dívidas. Entretanto, lutando contra dívidas - muitas supridas pelo rei
Ludwig II da Baviera, grande admirador da arte de Wagner, após convidá-lo para viver sob sua
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guarda com uma renda vitalícia da coroa (GOMES, 2013, p. 152) - e contra sua própria
compulsão, conseguiu levantar fundos com diversas viagens pela Europa e terminar o projeto
do Bayreuth Festspielhaus.
Figura 1 - Bayreuth Festspielhaus - planta. Otto Figura 2 - Teatro de Epidauro - planta. POLICLETO.
Brückwald (1876). Fonte: < http://de.wikipedia.org >. séc. IV a.C. Fonte: < http://shelton.berkeley.edu/ >.
Imagem retirada de (CASTANHEIRA, 2003, p. 64). Imagem retirada de (CASTANHEIRA, 2003, p. 64).
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Em tradução livre: “os 1500 lugares não são separados por barreira alguma, não há diferença nos preços, não
há vantagens, exceto a da maior ou menos proximidade ao palco. As poucas cabines, para o Rei e milionários,
ficam ao fundo e são os piores lugares do teatro.”
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balcões, indo em direção ao ideal democrático da obra de arte total, onde todos os assentos se
organizam dentro da concepção de um anfiteatro grego (como pode-se notar pela comparação
entre as figuras 1 e 2) e, de forma igualitária, todo “o olhar converge num único ponto, epicentro
da acção dramática” (CASTANHEIRA, 2013, p. 65).
No seu ideal de uma obra de arte total, Wagner não só pensa a unificação as artes na
arte pura do drama, mas “atribui aos espectadores um papel determinante em todo o processo”
(CASTANHEIRA, 2013, p. 63), por isso há uma atenção extrema às condições de recepção do
espetáculo dramático pela plateia. Deseja-se que a apreensão possa ser plena e completa, total,
por parte dos espectadores e, assim, a arquitetura “desempenha um papel fundamental na
receptividade do drama musical” (CASTANHEIRAS, 2013, p. 61), uma vez que é pela arte
arquitetônica que se manipulará o espaço interior do auditório teatral. Quer-se eliminar as
distrações e intensificar a atenção do espectador durante todo o drama, bem como aumentar a
visibilidade da cena teatral. Nesse sentido, a concepção de Wagner do drama “postulava uma
plateia capaz de sustentar a atenção de modo contínuo durante a apresentação inteira.”
(CRARY, 2013, p. 253)
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“máquina de visão”, como definido por Luiz Henrique Sá: “um corpo unificado sobre o qual
promoveria alucinações coletivas de manipulações externas de controle de atenção em um
ambiente perfeitamente adequado para a exibição e consequente visualização de imagens”
(2017, p. 96 – 97). Envolvendo a entidade do público, a “máquina de visão”, há toda a estrutura
teatral de Wagner, pensada para alcançar os mais plenos efeitos ilusórios sobre a plateia e privá-
la de quaisquer distrações possíveis, essa é a “máquina de ilusão” de Wagner.
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Pensando fantasmagoria, como definido por Luiz Henrique Sá: “um conceito relacionado à possibilidade
técnica de dar visão a algo, fazendo que, na breve fração temporal entre o ato de perceber e o entendimento
daquilo que é percebido, haja uma consciência técnica, por parte do espectador, sem que, contudo, tal técnica
seja vista. Seu interesse reside, justamente, na conjunção entre a percepção imagética e a percepção das formas
de produção que, embora ocultas, fazem-se notar pelo caráter artificial da situação vivenciada.” (2017, p.93)
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o invento de Morel e a orquestra, que faz parte das engrenagens dessa “máquina de ilusão”, se
encontra escondida das vistas da plateia em um fosso de um complexo projeto acústico, em seu
abismo místico. A beleza silenciosa da imagem de Faustine, pela qual o herói de A Invenção de
Morel se apaixona perdidamente é prova da capacidade de atrair e prender a atenção alcançada
por Morel (ainda que não fosse esse seu objetivo). Da mesma forma, a escuridão acolhedora da
sala teatral de Wagner, em contraste com o palco brilhante, chama toda a atenção do espectador
para a cena teatral; a “máquina de ilusão” escurece a sala teatral e ilumina o palco, eliminando
distrações periféricas, direcionando o olhar e fazendo girar harmonicamente as engrenagens da
“máquina de visão”. Tal qual o ouro do Reno ao ser atingido pelos raios de Sol, o palco chama
para si todos os olhares e a escuridão, como as filhas do Reno, fazem coro ao chamado: “Veja
como ele sorri/ na luz brilhante” (WAGNER, 2019, p. 24).
Além disso, Appia rejeita a unificação harmoniosa da obra de arte total wagneriana: “se
a arte dramática deve ser a reunião harmoniosa, a síntese suprema de todas as artes, já não
compreendemos nada, então, de cada uma dessas artes e, muito menos ainda, da arte dramática:
o caos é completo” (APPIA, 2005, p. 9). Em contrapartida, propõe uma hierarquização dos
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elementos que compõe o drama, vendo o ator como o principal e, logo em seguida, o espaço
cênico e a iluminação. Appia vê o ator como fator essencial da ação dramática, uma vez que é
por intermédio dele que toda a emoção é expressa no drama. Procura “oferecer ao corpo humano
uma complexa resistência onde sua expressão é forçada ao máximo” (DUDEQUE, 2009, p. 11)
e, para isso, abandona a construção bidimensional do espaço no teatro tradicional e busca uma
composição tridimensional e geométrica do espaço, “onde são empregados um número de
linhas retas, verticais, horizontais, oblíquas, praticáveis e escadas” (DUDEQUE, 2009, p. 11).
Partindo da ideia de iluminação em Wagner, onde essa determinava a atmosfera do drama e, de
forma semelhante ao seu leitmotiv, podia identificar algum personagem com um certo tipo de
iluminação (DUDEQUE, 2009, p. 6), Appia entende que a luz não apenas contribui para a
criação de um ambiente cenográfico ou atmosfera cênica, mas é capaz de aumentar o valor
plástico do drama, tornando-o mais expressivo e até mesmo “substituir os signos fornecidos
pela pintura, e pode criar a cenografia de si mesma ou através de sombras sugestivas”
(DUDEQUE, 2009, p. 12). Tendo, então, em sua base, as ideias de Richard Wagner, Adolphe
Appia pode questioná-las e desenvolver seu próprio projeto artístico, sua própria busca pela
(re)sacralização do teatro, que, por sua vez, veio a inspirar tantos outros encenadores ao longo
do século XX.
Sendo visto ora como possuidor das “principais característica daquilo que chamamos
gênio” (BAUDELAIRE, 2013, p. 73), ora como “um belo crepúsculo que tínhamos confundido
com uma aurora” (como disse Claude Debussy, apud GOMES, 2013, p. 132), Richard Wagner
e sua obra de arte total (tão democratizante quanto controladora) instigaram a revisão das
estruturas teatrais em vigor no século XIX, em especial com a construção de seu edifício teatral,
Bayreuth Festspielhaus (que, apesar de concebido como temporário inicialmente, mantêm-se ativo há
145 anos). Suas ideias e concepções, os mitos feitos vivos em seu drama, sua “máquina de visão”
e sua “máquina de ilusão”, bem como a Gesamtskunstwerk, forma motriz dessas máquinas,
marcaram de tal modo as artes que fizeram de Richard Wagner um imortal – como as imagens
da invenção de Morel.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
APPIA, Adolphe. A obra de arte viva. Edição: Eugénia Vasques. 3. ed. Amadora,
Portugal: Escola Superior de Teatro e Cinema, 2005. E-book. Disponível em: <
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disposition=inline%3B+filename%3DAPPIA_A_Obra_de_Arte_Viva.pdf&Expires=1618717
388&Signature=BS2c32TmaoLMJssm94yoceWm4kuOc93jAKgdWq1QEPOzQrwWLYksnP
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GJvQ6I-XMcy~aeu-HSA__&Key-Pair-Id=APKAJLOHF5GGSLRBV4ZA >. Acesso em: 19
abr. 2021.
BIOY CASARES, Adolfo. A invenção de Morel. [1940] Tradução: Sérgio Molina. In.:
_____. Obras completas de Adolfo Bioy Casares: volume 1. Organização: Daniel Martino. São
Paulo: Globo, 2014. p. 9 – 85.
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DUDEQUE, Norton. O drama wagneriano e o papel de Adolphe Appia em suas
transformações cênicas. Revista Científica/FAP, Curitiba, v. 4, n. 1, jan./jun. 2009. Disponível
em: < http://periodicos.unespar.edu.br/index.php/revistacientifica/article/view/1597 >. Acesso
em: 19 abr. 2021.
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