Você está na página 1de 57

HISTÓRIA DO TEATRO II

Introdução

Neste curso vamos entrar em contato com algumas propostas que,


no século XX, modificaram as concepções sobre o fazer teatral e que
contribuíram para muitas das discussões ainda relevantes nas Artes
Cênicas.
Antes de tudo, é bom ter em mente que os autores e propostas
aqui selecionados representam parte da imensa variedade de estéticas que
no século passado acarretaram uma maior autonomia e especificidade do
fazer teatral. Como tem sido demonstrado em semestres anteriores, as
artes da cena são multidisciplinares e se apresentam em relação com
outras modalidades expressivas, como música, literatura, dança, cinema.
Ou seja, a abordagem seletiva deste curso leva em consideração
que há outros autores e propostas, os quais não foram contemplados em
virtude das conexões efetivadas na elaboração dos conteúdos e dos
exercícios, assim como em razão do tempo disponível. A idéia que nos
motivou na seleção do que agora é exposto foi a seguinte: o que se pode
aprender em oito semanas a partir de um repertório de textos e questões
fundamentais do teatro no século XX?
Em todo caso, o que importa é que cada semana temos um autor
selecionado, ao qual se remetem diversas questões importantes para o
pensar e fazer teatro. Assim, cada semana, ao mesmo tempo em que
possui sua demarcada área de referencias, pode servir como ponto de
partida para posteriores desdobramentos.
Dessa forma, não só é imprescindível aplicar-se ao que cada
semana coloca como material para estudo, como também ter em mente
que tal material não se resume ao que é lido e assimilado - cumprimento
do dever. Antes, é preciso observar que as propostas aqui examinadas tem
uma aplicabilidade bem definida: respondem a demandas concretas, a
soluções de situações efetivas, a necessidade que processos criativos mais
conscientes reivindicam, assim como podem ser reutilizadas, recicladas
em discursos e processos criativos novos, outros.
É por isso que entramos em contato com a História: o que
Stanislaviski ou Brecht registram em seus textos pode ainda ser integrado
das mais variadas formas nos mais diversos momentos de preparação e
realização de obras teatrais.
Para tanto, é preciso mais que identificar e reproduzir o conteúdo
das falas dos autores que vamos apresentar nesse curso: é necessário
aprender a aprender, saber como essas propostas são feitas, como se
produz conhecimento em artes cênicas.
Por isso, a ênfase desse curso reside no estímulo à percepção
estética, no desenvolvimento de estratégias e habilidades que dizem
respeito a uma compreensão mais global das questões que os autores
selecionados propõem.
MÓDULO I

ADOLPHE APPIA(1862-1928): ENCENANDO COM A LUZ

(FOTO DE A.APPIA. GOOGLE IMAGES)

E o começo foi a luz elétrica.


Pare para pensar nas condições materiais das formas espetaculares
que você aprendeu até aqui. Por exemplo: teatro grego, espaço de
representação semicular cercado pela audiência. Tudo ao céu aberto, de
dia. A cegueira terrível de Édipo em pleno meio-dia, a selvageria
assassina de Medéia sob um sol sem nuvens. Teatro Elisabetano,
Shakespeare, The Globe: entra Hamlet no quarto de seu tio, a vontade de
matar o assassino de seu pai. O teto do teatro aberto, luzes naturais
combinadas com luzes de vela.
Parece estranho pensar que houve alguma peça sem luz elétrica.
Fomos acostumados a pensar em ambientes fechados e controlados como
sinônimos do fazer teatral. A caixa mágica, com seus mundos de luz e
sombras, porém adquiriu inúmeras possibilidades a partir da tecnologia
disponível a partir de fins do século XIX.
E coube a Adolphe Appia a primazia no uso artístico da luz na
cena e na reflexão sobre as implicações desta conquista expressiva. Ao
escolher um encenador para começar nosso curso sobre a modernidade
teatral, evidenciamos a recusa de uma origem única para as complexas e
heterogêneas manifestações cênicas no Século XX. Há mutações na
dramaturgia, na encenação, na preparação dos atores, na técnica teatral.
Há uma revisão e redefinição do evento cênico em suas diferentes
perspectivas: composição, realização, recepção e produção. E nada mais
estimulante que acompanhar essas mutações por meio das novas lentes da
iluminação. A mudança está no modo como as coisas são mostradas. O
que se mostra é uma diversa maneira de organizar a experiência teatral.
A. Appia ficou sendo mais conhecido pelas aplicações técnicas de
sua obra, relacionadas com a iluminação (luz móvel, focos precisos e
variáveis) e a tridimensionalidade da cena (espaço de atuação em relações
concretas entre o corpo do ator e os objetos de cena ), padrões mínimos de
encenação hoje largamente adotados. Mas seus escritos revelam um
horizonte de questões que se tornaram fundamentais para pensar a
realização teatral.
Ele  partiu  de  uma  situação  bem  determinada  para,  a  partir 
disso,  construir  suas  programáticas  reflexões.  Repensando  as 
limitações  da  revolução  estética  produzida  pela  obra  de  Richard 
Wagner (1813‐1883), Appia soube caracterizar o contexto de ruptura 
que estava se formando, fundamentando teoricamente o que o futuro 
iria reivindicar para ser efetivdo como inovação. 
A proposta de Wagner, que ia além da ópera, preconizava uma 
concepção integrada de efeitos para a construção do drama musical. 
Ele  via  nas  complexidades  inerentes  à  realização  multimídia  da 
tragédia  grega  (canto,  dança,  palavra)  o  impulso  de  reeducação 
estética  do  povo  alemão.  A  obra  de  arte  do  futuro  deveria  ser  uma 
obra  de  arte  total,  sendo  a  dramaturgia  uma  consciência  dos  meios 
para se atingir essa integração. Wagner polemiza contra o sucesso das 
óperas de G.Meyerbeer(1791‐1864) e dos libretos de E. Scribe(1791‐
1861),  mais  preocupados  em  manter  a  platéia  atenta  através  de 
isolados  e  pontuais  truques  musicais  e  narrativos,  que  não 
aprofundam  a  tensão  dramática  e  a  estruturação  da  obra.  Wagner 
quer  expandir  o  efeito  do  drama  e  suas  potencialidades 
representacionais  através  da  extensão  dos  parâmetros 
composicionais.  
O convencionalismo dramático da ópera do tempo de Wagner 
então  é  atacado  como  forma  de  se  diversificar  as  possibilidades  da 
expressão  musical.  A  música,  antes  dependente  de  um  enredo 
esquemático, previsível e limitado, agora se oferece como condutora 
do  espetáculo.  A  estrutura  musical  e  seus  efeitos  afetivos  poderiam 
romper com o ilusionismo da cena convencionalizada. Ações musicais 
tornadas  visíveis  –  eis  um  emblema  para  a  dramaturgia  musical  de 
Wagner. 
Mas aí onde a música se torna visível, em sua exteriorização, é que
reside a contradição de Wagner. As soluções pictóricas extremamente
suntuosas sonegam ao espectador uma participação maior nessas ações
musicais. O extremo realismo da encenação traduzia o caráter espetacular
da encenação, sem efetivar o espaço para uma dramatização maior. A
intensidade da música era vazada em uma cena inerte e reprodutiva.
Como um quadro com legenda, a exuberância visual torna-se uma
explicação e um direcionamento do que se pretende representar.
Um  novo  espaço  cênico  é  preciso,  pois.  Para  as  obras  de 
performance  não  basta  mudar  os  temas,  as  imagens  ou  a 
estruturação. Não basta mudar o texto sem alterar aparato cênico. A 
obra  nova  de  Wagner  necessita  de  um  novo  espaço.  O  alargamento 
das  dimensões  imaginativas  proporcionados  pela  dramaturgia 
musical  de  Wagner  reivindica  uma  correlata  extensão 
representacional. 
Foi  o  que  Appia  viu.  A  emergência  do  encenador  está 
diretamente  relacionada  com  a  mudança  de  nossas  concepções  de 
obra de arte, sempre associadas com a literatura, com a escrita.  
Podemos  acompanhar  melhor  a  argumentação  de  Appia 
seguindo  seu  livro  La  musique  et  la  mise  en  scène1,  de  1898.  O  livro 
divide‐se  em  três  partes  interligadas  como  tarefas  e  reflexões  que 
devem  ser  executadas  para  a  renovação  das  artes  de  cena. 
Respectivamente  Appia  critica  a  concepção  realista  do  teatro  de  seu 
tempo (século XIX), revê a encenação de Wagner e propõe uma teoria 
da encenação. 
A  orientação  musical  da  dramaturgia,  uma  dramaturgia 
poético‐musical,  como  Wagner  tentou  realizar,  produz  a 
reconsideração  do  espectador  e  do  espetáculo  de  um  drama  falado‐ 
veículo predominante de idéias e comportamentos no século XIX ‐ ao 

                                                        
1
APPIA 1981.
mesmo tempo que, pela partitura musical, rompe com a centralidade 
do texto e dos atos verbais. 
O  uso  da  música  como  operador  dramático  determinante 
refuta  os  hábitos  do  chamado  teatro  literário  o  qual,  desde  o 
Classicismo  francês  (sec.  XVIII)  até  os  rescaldos  do  Realismo‐
Naturalismo,  propunha  que  o  mundo  representado  viesse  a  ser  um 
aperfeiçoamento do mundo vivido. 
Rompendo com a subordinação da cena a um tipo de texto que 
organizava os modos de percepção do mundo, o drama musical exige 
a coordenação de esforços da platéia para uma experiência singular a 
ser representada. O foco passa a ser a ficção partilhada. 
Em  uma  obra  dramático‐  musical  essa  partilha  só  ocorre 
através  da  cena  em  suas  variações  temporais  e  afetivas.  Todos  os 
heterogêneos elementos do espetáculo (canto, dança, fala, luz, música, 
pintura) devem se submeter à duração singularizada de seus efeitos. 
Para ficar mais claro, Appia toma o uso dos cenários pintados
como contra-exemplo ao que almeja. Este problema plástico faculta o
desenvolvimento de uma nova arte. Por meio destes objetos
bidimensionais enfatizava-se uma ilusão abstrata de realidade,
pressupondo no que se mostra uma generalizada visão-suporte como
subsídio ao que se representa. Não levando em conta a própria realidade
de cena e sua configuração para o espectador, ficava-se convencionado
que ali existiria algo sem que efetivametne houvesse. Limitava-se o que
devia ser visto ao que é mostrado, o que diminui o real representado. O
controle do campo perceptivo da platéia está estipulado neste acordo
tácito. As grandezas são constantes e absolutas: o grande e o pequeno só
podem ocorrer alternadamente. A simulação de terceira dimensão nas
estáticas pinturas de cenários é facilmente destruída pela realidade
material dos corpos, pelo movimento da luz e do corpo humano.
Dessa maneira, melhor que o cenário pintado é a atividade da luz.
Luz e superfície pintada se anulam ao invés de se reforçarem mutuamente.
O dramaturgo musical pinta com a luz. A flexibilidade e a extensão
imaginativa do espetáculo reverberam na plasticidade da iluminação. Em
cena objetos físicos reais e presentes desnudam o ilusionismo
convencional dos cenários pintados. Objetos não podem ser fictícios
porque a luz não tem existência fictícia. O corpo vivo e rítmico do ator
contradiz a massa imóvel e distante que se equilibra atrás dele. Os
contextos emocionais e suas seqüências e as proporções de sua
visualização entrechocam-se com uma bidimensionalidade isolada. A um
corpo vivo, a uma música dramatizada, corresponde um espaço
temporalizado. A luz, com sua capacidade de revelar nuances
multivariadas, proporciona o reconhecimento de profundidades,
modificações e fusões que a representação sugere. A luz é matéria e
intérprete do espetáculo.
A flexibilidade da luz e as cores a ela associadas possibilitam a 
pluralidade  coerente  do  novo  princípio  cênico  que  Appia  teoriza.  A 
intensificação  dramática  é  proporcional  à  uma  economia  visual. 
Distribuem‐se as funções entre os elementos que contracenam entre 
si.  Os  atores  contracenam  com  a  luz  a  qual,  por  sua  vez,  contracena 
com a música. A desubstancialização das formas libera a dramaturgia 
musical  para  as  particularidades  do  espaço  cênico.  A  visualidade 
deixa de ser uma evidência para se postar como problematização de 
qualquer roteiro representacional. A controlada luz no palco unifica e 
realiza as intenções expressivas 
Dali em diante, o espaço cênico é o espaço de experimentação 
e  de  concretude  estética  do  artista  cênico.  Não  é  anterior  ao  que 
realiza,  mas  é  indissociável  à  representação.  Em  torno  do  espaço 
cênico a visibilidade do que se objetiva não será apenas um meio, mas 
sua própria possibilidade.  
Em L’Ouvre d’Art Vivant2, de 1921, considerado seu testamento 
estético,  Appia,  agora  mais  livre  do  ideal  wagneriano,  consolida  sua 
teoria  do  teatro.  O  contato  e  a  colaboração  com  os  experimentos  da 
Euritimia  de  Emile  Jaques  Dalcroze  fizeram  com  que  Appia 
coordenasse a centralidade do espaço cênico com o corpo humano. O 
ritmo  do  espaço  é  interpretado  pelo  corpo  e  este  modifica  seus 
                                                        
2
APPIA 1997.
movimentos e suas formas. Pois, como o corpo humano torna formas 
pintadas  irrelevantes,  é  a  sua  performance  que  cria  o  espetáculo.  O 
ator e seu treinamento e desenvolvimento físico‐expressivo são agora 
o foco da reforma da encenação de Appia. A música cede sua imagem 
para  a  defesa  de  um  espaço  rítmico  a  ser  individualizado  pelo 
intérprete. 
Para  chegar  ao  ator,  Appia  pergunta‐se  se  tempo  e  espaço 
possuem algum denominador comum: uma forma no espaço pode se 
manifestar  em  sucessivas  durações  de  tempo  e  essas  sucessivas 
durações de tempo podem ser expressas em termos de espaço. Vendo 
que,  no  espaço,  unidades  de  tempo  são  expressas  por  sucessão  de 
formas  em  movimento  e  que,  no  tempo,  espaço  é  expresso  por 
sucessão  de  palavras  e  sons,  Appia  promove  o  corpo  vivo  do  ator, 
sujeito às suas determinações físicas reais, a intérprete do tempo em 
forma  de  espaço.  Diferente  de  formas  inanimadas,  o  corpo  reage  e 
realça  um  paradoxo  fundamental  da  cena:  se  a  música  prescreve  os 
movimentos  do  corpo,  o  corpo  transforma  o  espaço  em  tempo.  A 
visualidade  do  espaço  cênico  demanda  que  o  corpo  torne  factível  a 
experiência  de  uma  temporalidade.  Há  a  cena  somente  quando  o 
corpo  materializa  essa  interação.  O  corpo  do  ator  contracena  com 
durações  e  extensões.  Existe  um  momento  pré‐representacional  que 
atravessa  a  construção  do  espetáculo  e  sobredetermina  o  horizonte 
de tudo que vai ser encenado: a fisicidade do corpo.  
O  espaço  cênico  é  o  espaço  rítmico  no  qual  o  corpo  vivo  do 
ator  confronta‐o,  provoca,  transformando  constrições  em 
possibilidades  criativas.  Segundo  Appia  então,  em  razão  de  o  corpo 
ser o ponto de partida e sustentação da realização dramática, como o 
corpo expressa espaço e, para proporcionar espaço, precisa de tempo, 
sua  atividade  é  expressão  de  espaço  durante  o  tempo  e  tempo  no 
espaço.  O  corpo  é  o  autor  dramático,    pois  “Nós  somos  a  peça  e  a 
cena”,  de  acordo  com  Appia.  A  produção  de  tempo  e  espaço  pelo 
corpo é que torna realizável o evento cênico. 
Desse modo entramos no palco moderno. A voz de Appia não 
só ecoou nos trabalhos e teorias dos encenadores como Gordon Craig 
(1872‐1966),  Max  Reinhardt  ,  Erviw  Piscator(1893‐1966)  como 
também  em  outras  direções  que  o  teatro  foi  promovendo  (teoria  e 
treinamento  do  ator).  A  abertura  de  perspectivas  promovida  pela 
abordagem  de  Appia,  impulsionou  a  chamada  autonomia  da 
teatralidade,  autonomia  esta  baseada  no  conhecimento  de  suas 
especificidades.  A  materialidade  da  cena  não  é  uma  ilustração  da 
expressão dramática, mas um pressuposto de sua realização. A partir 
da  modernidade,  é  preciso  corrigir  as  idéias  por  meio  do  concreto 
contexto  da  expressão  em  cena.  O  processo  criativo  agora  é  um 
complexo estético‐físico.  

ATIVIDADE
Apos a leitura do comentário acima e do material disponível nos
links de textos e imagens abaixo relacionados, considere as seguintes
questões:
1- Como o espaço de atuação determina o modo como
pensamos o teatro?
2- Quais as implicações de se pensar o ator como um corpo
no espaço?
3- Quando o espetáculo se aproxima mais de uma dinâmica
visual, e iluminação se aproxima da fluidez da musica, quais as
conseqüências disso para a construção da cena, para a atuação, para as
expectativas da audiência?
A partir dessas questões elabore um texto no qual você apresenta
suas respostas e inquietações relacionadas ao autor e ao tema da semana.
Pense nisso: por que começar o curso com uma reflexão mais detida sobre
a iluminação teatral, com os aspectos considerados mais técnicos da cena?

IMAGENS
Diversas imagens de projetos de encenação podem ser encontrados
em no Google Imagens(www.images.google.com.br). Digite A.Appia. No
youtube,(www.youtube.com) há um trecho de um ensaio fílmico sobre
A.Appia(Appia The Visionnary of Invisible).

LINKS
1- Artigo sobre A. Appia: “O DRAMA WAGNERIANO E O
PAPEL DE ADOLPHE APPIA EM SUAS TRANSFORMAÇÕES
CÊNICAS” de N. Dudeque, disponível em
www.fap.pr.gov.br/arquivos/File/Arquivos2009/Pesquisa/Rev_cientifica4/
artigo_Norton_Dudeque.pdf.
2- Site com simulações em 3D baseadas em conceitos de A.
Appia www.pinocappellano.it/studio_picap/graf3d.htm.
3- Sobre diversos teóricos do teatro:
/www.nexoteatro.com/Teoria.htm.
4- O site Theatron disponibiliza reconstruções em 3D de diversos
teatros da história européia. Sobre Appia, v.
www.kvl.cch.kcl.ac.uk/THEATRON/. Algumas da imagens dessas
reconstruções ainda podem ser vistas em
www.kvl.cch.kcl.ac.uk/appia.html.

TEXTOS COMPLEMENTARES

Por meio do Google livros (www.books.google.com), há a


possibilidade de consultar com visualização parcial alguns livros sobre
A.Appia. Digite A. Appia e tenha acesso a Adolphe Appia:texts on
Theatre, organizado por R. Beacham, e Adolphe Appia: Artist and
Visionary of Modern Theatre, também de R. Beacham. E ainda uma
discussão mais atualizada das propostas de A.Appia no capítulo “One
Hundred Years of Stage Lightining . Why we can not light as Appia did”
do livro Looking Into the Abyss. Essays on Scenography, de A. Aronson.
MÓDULO  II 
 
STANISLAVSKI E A ARTE DA ATUAÇÃO: INTRODUÇÃO 
 
 
 

“é a extrema sensibilidade que faz os atores medíocres: é a


sensibilidade medíocre que faz a multidão dos maus atores; e é a falta
absoluta de sensibilidade que prepara os atores sublimes”
D. Diderot 
 
A  citação  em  epígrafe  enuncia  uma  sentença  de  morte  contra 
algo que no senso comum parece óbvio e desejável: que a qualidade 
de uma atuação é diretamente proporcional à intensidade emocional 
de  sua  performance.    O  chamado  “paradoxo  do  comediante”, 
formulado  por  Diderot  no  século  XVIII,  contraria  o  senso  comum:  a 
identidade entre atuação e efetividade não se dá em termos absolutos.  
A  proposição  de  soluções  técnicas  para  este  paradoxo  determinou 
grande  parte  da  carreira  do  ator  e  diretor  Constantin  Stanislavski 
(1863‐1938).  
Para tanto, é preciso compreender contra o quê Stanislavski se 
dirige, com o objetivo de propor os seus estudos sobre a atuação.  No 
contexto  da  antiga  Rússia,  no  fins  do  século  XIX  e  começo  do  século 
XX,  a  necessidade  de  uma  escola  profissionalizante  de  atores  se  fez 
necessária.  A  formação  de  intérpretes,  em  grande  medida,  era 
baseada  na  transmissão  oral  de  conhecimentos:  de  um  ator  mais 
famoso  e  consagrado  para  um  iniciante.  O  repertório  dominante 
privilegiava  a  conjunção  entre  estereótipos  físicos  e  caracterização: 
homens jovens altos e belos eram mocinhos; homens velhos, baixos e 
gordos,  os  maridos  traídos.    E  assim  por  diante.  Assim,  havia  uma 
limitação  de  papéis  para  um  ator,  o  que  tornava  limitado  também  o 
repertório,  imobilizando  a  trama  dos  espetáculos  nas  figuras  típicas 
disponíveis.    O  impacto  de  grandes  companhias  teatrais  que 
atravessavam  a  Europa  levando  espetáculo  organizados  e 
profissionais trouxe um ideal de correção e beleza para Stanislavski.  
A  atuação,  mais  que  um  dom  ou  algo  inato,  poderia  ser  aprendida  e 
ensinada. 
Dessa  forma,  a  primeira  motivação  para  a  instituição  dessa 
escola  modelo  de  atuação  que  foi  o  Teatro  de  Arte  de  Moscou  foi  a 
tentativa  de  encontrar  uma  abordagem  mais  racional  e  completa  da 
interpretação teatral. Para tanto, era preciso tornar o ator consciente 
do  que  ele  estava  fazendo  ao  se  preparar  para  seu  papel,  para  que 
recusasse o chamado histrionismo cênico,. 
No histrionismo, o ator centrava sua atividade do domínio de 
alguns  artifício,  conjunto  de  clichês  de  atuação(gestos,  movimentos, 
poses)  para  causar  impacto  imediato  sobre  a  platéia.  O  clichê 
eliminava  a  preocupação  com  a  amplitude  de  tarefas  para  a 
encenação  de  um  espetáculo.  O  espetáculo  mesmo  se  reduzia  ao 
histrionismo  do  ator.  Os  momentos  isolados  de  sua  aparição  eram  a 
atração,  o  foco  de  interesse.  O  convencionalismo  de  seus  artifícios 
impossibilitava  a  versatilidade  de  sua  performance  e,  disto,  de  seu 
entendimento  do  processo  de  atuação.  Sem  tais  artifícios,  o  artista 
estaria  apto  a  concentrar  suas  energias  na  atividade  imaginante 
criativa e liberadora.  
Stanislavski  denomina  os  atores  que  se  valem  desses 
expedientes  de  atores  de  personalidade3,  que  confiam  inteiramente 
na  inspiração,  produzindo  uma  sobreataução,  ou  performance 
exagerada,  amadora  e  ingênua:  eles  substituem  os  sentimentos 
relacionados com a representação por emoções pontuais genéricas.  

                                                        
3
Como neste tópico vamos nos concentrar mais nas obras de Stanislavki, uso as seguintes siglas: PA(
A preparação do ator, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1984; CP( A criação do papel, idem,
idem, 1999) e CG( A criação da personagem, Idem Idem, 1987). No caso aqui citamos PA 50-51.
Daí  o  apego  à  exterioridade  da  interpretação.  O  espaço  de 
representação  coincide  com  o  cardiograma  do  ator.  O  tempo  de  sua 
atuação  é  o  mesmo  tempo  de  sua  excessiva  conformação  emocional. 
Quando surge e atua, marca sua presença pela sonora visualidade de 
sua personalidade.  
Contrariamente  ao  fechamento  da  representação  à 
subjetividade ditatorial do intérprete, Stanislavski faz‐nos perceber a 
diferença  entre  o  ator  e  o  papel.  Conhecendo  e  experimentando  as 
implicações  dessa  descontinuidade,  o  ator  se  exercitará  na 
compreensão de sua atividade. 
Por  isso  para  Stanislavski  ”o  essencial  da  arte  não  está  nas 
suas  formas  exteriores,  mas  no  seu  conteúdo  espiritual.”4  .  Essa 
afirmativa  poderia  patentear  o  que  chamamos  de  paradoxo  de 
performance, pois reagindo contra a exteriorização, a realidade como 
nos  chega  a  representação,  acaba  por  anular  a  própria  realidade  da 
representação.  A  dicotomia    exterior  ‐  interior,  contrapartida  cênica 
do  dualismo  psicofísico  (oposição  mente‐corpo),  desmaterializaria  o 
espaço  de  representação  tornando  desnecessária  a  fisicidade  e  o 
preparo para a cena.  
Contudo,  o  paradoxo  é  aparente.  O  recurso  ao  interior  é  a 
compreensão da dupla pertença do ator, sua dupla natureza. "Uma é a 
perspectiva  do  papel,  outra  é  a  do  ator”5.  O  aprofundamento  da 
perspectiva do ator é complementar ao conhecimento da diferença de 
perspectivas dentro de sua atuação.  
A cena então toda é exteriorizável em função de seus explícitos 
fundamentos estudados e testados durante o processo de exploração 
do  papel  por  parte  do  ator.  O  interior  é  a  intimidade  cada  vez  mais 
intensificada  com  o  papel.  Desdobra‐se  o  ator  em  observador  e 
agente, sujeito e objeto de sua atividade de representação, corrigindo‐
se, modificando‐se para interpretar. 

                                                        
4
PA 65
5
CG 198
Por  isso  Stanislavski  recomenda:  ‘nunca  se  permita 
representar  exteriormente  algo  que  você  não  tenha  experimentado 
intimamente”6.  Estrategicamente,  o  elogio  do  interior  é  o  elogio  da 
diferença  entre  ficção  e  realidade  e  a  reivindicação  do  trabalho  do 
ator  diretamente  conectado  com  o  conhecimento  dos  meios  pelos 
quais ele se expressa.  
Desmistifica‐se  a  aura  de  pseudo‐espontaneidade  e 
irracionalidade  que  cerca  o  fazer  artístico.  Stanislavski  demonstra 
que  a  formação  do  ator  alinha‐se  ao  aprimoramento  de  sua 
sensibilidade e conhecimento do que faz.. De forma que “todo invento 
da  imaginação  do  ator  deve  ser  minuciosamente  elaborado  e 
solidamente erguido sobre uma base de fatos”7.  
Dessa  maneira,  quando  Stanislavski  afirma  que”  o  objetivo 
fundamental da nossa psicotécnica é colocar‐nos em um estado criado 
no  qual  o  nosso  subconsciente  funcione  naturalmente”8,  de  modo 
algum está prescrevendo uma terapia ou uma psicologização do ator 
nem muito menos a canonização de um estilo interpretativo.  
Na  medida  em  que  internaliza  e  naturaliza  seus  atos,  o  ator 
”desenvolve  uma  espécie  de  controle,  como  se  fosse  um  observador. 
Esse  processo  de  auto  –observação  e  remoção  da  tensão 
desnecessária deve ser desenvolvido ao ponto de se transforma num 
hábito  subconsciente,  automático”  inserindo  dentro  de  si  um 
“controlador  dos  músculos  que  deve  tornar‐se  parte  da  nossa 
conformação  física,  uma  segunda  natureza”9  .  A  internalização,  pois, 
de uma escuta sensível à composição de performances reflexivamente 
atinge o ator. Ele não absorve o que entende apenas por contemplar. 
Ele  é  colocado  em  situação  de  compreender  a  realização  de 
representações. Seus atos fisicizam esta compreensão do que realiza. 
O corpo é o que movimenta essa compreensão. O ator corporifica seu 
saber,  e  sua  performance  é  a  exibição  de  um  corpo  vivo,  espetáculo 
                                                        
6
PA 56-57
7
PA 96
8
PA 295
9
PA 124-125
integral  de  sua  aprendizagem.  O  corpo,  como  o  ator  em  relação  ao 
papel, precisa explorar essa situação de representação.  
Assim como ele propugnou a predominância da compreensão 
da  composição  na  internalização,  também  agora  na  fisicidade  do 
papel  ele  atualiza  a  mesma  determinação  basilar:  “Os  músculos 
devem estar plena e diretamente subordinados aos sentimentos10”  
Assim  sendo,  “representando,  nenhum  gesto  deve  ser  feito 
apenas  em  função  do  próprio  gesto.  Seus  movimentos  devem  ter 
sempre um propósito e estar sempre relacionados com o conteúdo de 
seu  papel.  A  ação  significativa  e  produtiva  exclui  automaticamente  a 
afetação,  as  poses”11.  Em  situação  de  representação  o  corpo  torna 
visível  o  espetáculo  e  sua  composição.  Os  atos  são  atos 
representacionais  que  apontam  para  o  contexto  de  sua  produção.  A 
cena  mobiliza  o  corpo  para  a  interpretação  do  que  se  representa.  A 
ação  significativa,  ao  mesmo  tempo  que  adquire  outras  funções  que 
aquelas  coordenadas  à  fisicidade,  também  concentra‐se  no  papel.  O 
corpo  ampliado  e  posicionado  corrige  e  situa  o  sujeito  ator  em  sua 
atividade  em  cena.  O  que  se  perde  em  generalidade  de  posturas  se 
ganha na especificidade dos movimentos.  
Stanislavski  esclarece  bem  isso  ao  comentar  a  descontração 
dos  músculos  para  a  o  treinamento  do  ator.  A  tensão  física  que 
impede  o  movimento  corporal,  ou  a  atuação  entulhada  de  múltiplos 
de  gestos  supérfluos,  ambas  advém  do  desconhecimento  das 
circunstâncias  da  representação.  Temos  três  momentos:  “tensão 
supérflua, que vem, inevitavelmente, a cada nova pose adotada com a 
excitação  de  executá‐las  em  público;  relaxamento  automático  dessa 
tensão  supérflua,  sob  a  ação  do  controlador;  e  justificação  da  pose, 
quando por si mesma ela não convence o ator.12”  
O  alvo  aqui  são  os  apoios  convencionais  e  os  clichês  da 
interpretação do ator histriônico. Preso ao tempo de sua aparição tal 

                                                        
10
CP 125
11
CG 68
12
PA 124
ator  esforça‐se  por  garantir  esse  momento  através  da  direta 
negociação com seu público, reduzindo a representação aos artifícios 
de extensão de seu espaço central e nivelado de atuação.  
De  outro  lado,  o  ator  que  pesquisa  seus  movimentos,  que 
conhece  o  contexto  de  seus  atos,  ele  pode  guiar‐se  ”não  por  uma 
infinidade  de  detalhes  mas  por  aquelas  unidades  importantes  que 
assinalam  a  trilha  criadora  certa”13.  Eis  o  momento  através  do  qual 
temos a formação de intérpretes criadores. 
Entre  as  atividade  do  ator  stanislaviskiano,  estava  a  leitura  e 
compreensão  de  textos.    Um  dos  procedimentos  utilizados  por 
Stanislavski foi o do subtexto. O subtexto “é uma teia de incontáveis, 
variados  padrões  interiores  dentro  de  uma  peça  e  de  um  papel.  É  o 
subtexto que nos faz dizer as palavras que dizemos em uma peça. (...) 
A palavra falada não vale por si mesmo. Quando faladas, as palavras 
vêm  do  autor  ,  o  subtexto  do  ator.  Cabe  ao  ator  compor  música  dos 
seus sentimentos para o texto do seu papel e apreender como cantar 
em  palavras  esses  sentimentos.”14.  O  subtexto  está  no  texto,  mas  o 
desempenho dele é feito pelo ator. O subtexto é o contexto expressivo 
do texto, as orientações estético‐operatórias do espetáculo, marcas da 
arquitetônica  da  representação.  Não  se  trata  de  ler  entrelinhas,  mas 
de  fazer  com  o  texto  o  que  realizou  com  as  emoções  e  com  o  corpo: 
justificar  cada  ato  como  um  conhecimento  conquistado  e  ativado  na 
expressão. 
 
ATIVIDADE 
Após assistir ao documentário O Século de Stanislavski e ler o 
texto  de  informações  básicas  sobre  Stanislavski,  redija  um  texto  no 
qual  você  apresente  e  comente  algumas  das  idéias  que  definem  a 
abordagem  stanislavskiana  para  a  formação  de  um  ator  criativo. 
Durante seu comentário procure explicar a razão dos procedimentos 

                                                        
13
PA 140
14
CG 137-139
utilizados  por  Stanislavski  serem  estímulos  para  a  atividade  criativa 
do intérprete. 
 
 
 
 
 
TEXTOS COMPLEMENTARES 
1‐Consulte  o  artigo    “O  método  Stanislavski:  A  edição  de  A 
construção  da  Personagem  em  português  e  Espanhol.  Um  estudo 
comparativo”de  M.  MAUCH  e  R.  CAMARGO,  disponível  em 
http://ufg.academia.edu/RobsonCamargo/Papers/76696/O‐
MÉTODO‐STANISLAVSKI‐‐A‐EDIÇÃO‐DE‐A‐CONSTRUÇÃO‐DA‐
PERSONAGEM‐EM‐PORTUGUÊS‐E‐ESPANHOL‐‐UM‐ESTUDO‐
COMPARATIVO‐‐‐Michel‐MAUCH‐e‐Robson‐Corrêa‐de‐CAMARGO‐‐. 
2‐ para saber mais sobre a vida e obra de Stanislavski,  leia sua 
bibliografia  Minha vida na arte  (Civilização  Brasileira,  1989).  Este 
livro é comentado em pesquisa de doutorado de C. Takeda, disponível 
no  site  www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27156/tde‐
30042009‐095757. 
 
LINKS 
Para o Teatro de Arte de Moscou, www.art.theatre.ru/english. 
Para o Actors Studio, que popularizou uma versão de parte das 
idéias  de  Stanislavski,  www.actors‐studio.com.    Neste  site,  na  seção 
‘História’, podem ser encontrados textos e imagens que comentam as 
idéias de Stanislavski. 
MÓDULO O3

STANISLAVSKI: O ENCONTRO COM TCHECOV

Nesta semana vamos estudar um caso específico que determinou


uma revolução no modo o teatro foi pensado e realizado no século XX.
Na semana passada nos aproximamos das idéias e processos de
Stanislavski, procurando identificar contextos e conceitos fundamentais
de sua contribuição para as Artes Cênicas. Como uma gramática, várias
das técnicas stanislavskianas são usadas nos mais variados cursos
introdutórios e/ou superiores de teatro. Muitas vezes temos apenas a
aplicação mecânicas dessas técnicas. Para evitar que se confunda
informação com conhecimento, vamos nessa semana, a partir da leitura,
análise e discussão da peça A gaivota, de Tchecov e do comentário que
Stanislavski fez sobre a montagem da peça, examinar como teorias e
propostas em artes cênicas são desenvolvidas no enfrentamento de
dificuldades concretas encontradas em processos criativos.
A histórica montagem de A gaivota redirecionou não só os
caminhos do Teatro de Arte de Moscou, recém fundando em 1897, como
determinou novos caminhos para o teatro ocidental. A peça, em sua
estréia em 1896,havia sido um fracasso retumbante. Tchecov pensar até
em desistir de escrever para o teatro. Em dezembro de 1897, agora sob a
orientação de Stanislavski, A Gaivota obteve um sucesso sem medida,
entrando para o repertório das grandes obras e montagens do século XX.
O que determinou, em dois anos, tamanha mudança? Entre
diversos fatores, temos o desenvolvimento de uma série de estratégias de
preparação e condução do espetáculo.
Primeiro, Stanislavski elaborou um plano de direção, registrando a
distribuição espacial das personagens e dos objetos de cena e cenários em
todos os atos da peça. Nesse estudo prévio da montagem, também foram
explicitados uma série de atos e movimentos específicos que traduzissem
visual e auditivamente determinados aspectos das personagens. Não
deveria haver lacunas. Storyboards complementavam essa busca pelo
controle total da audiovisualidade do espetáculo.15
Todo este empenho no estudo do texto de A Gaivota estava
diretamente relacionado com a dramaturgia da peça: diferentemente dos
dramalhões convencionais que lotavam os teatro da época, com suas
tramas e personagens bem definidas, na obra de Tchecov temos uma série
de procedimentos que buscam novas possibilidades de expressão e
dificultam o acesso do leitor/espectador médio. Em primeiro lugar, não há
a ênfase em um enredo central que unifica todos os eventos representados.
Ao contrario: temos uma diversidade de tramas sobrepostas, uma série de
relacionamentos abertos tipo fulano gosta de cicrano que gosta de
beltrano... e assim por diante. Ainda, grande parte das conversações não
se reduzem a um tema: elas se dispersam e se confundem em diversas
tópicas, sem nenhuma conclusão. A cena emblemática dessa dramaturgia
de sobreposições é a do primeiro ato, quando cenas isoladas convergem
para um espetáculo que é interrompido. O espetáculo interrompido torna-
se, junto com a metáfora da gaivota morta, o horizonte da peça: nos
movemos da expectativa de acabamento, de conclusão de algo, para um
senso de suspensão, de irresolução.
Corroborando essa densidade de níveis superpostos, temos a
intertextualidade de A gaivota: há claras referências a Hamlet, de
Shakespeare, desde citações textuais até o modelo da relação mãe-filho,
ali presente. É como se Tchecov escrevesse uma resposta a Shakespeare,
um novo Hamlet, invertendo as situações: a tensão familiar não é mais
política, e sim econômica. Todos em A gaivota gravitam em torno da
falência da aristocracia e seu sistema de castas. A decadência econômica
e a corrosão dos laços familiares e afetivos caminham juntas.
Diante de uma obra como é preciso um novo ator, um novo modo
de se conceber e produzir todas as etapas da realização Cênica. É o que

                                                        
15
Informações presentes em Stanislavski: An Introduction(Methuen,1989), de J. Benedetti.
podemos observar no encontro em Tchecov e Stanislavski. A partir das
dificuldades em se montar A gaivota foi que Stanislavski elaborou várias
de suas estratégias mais conhecidas.

ATIVIDADE
Leia e estudo a peça A gaivota, de Tchecov. Faço no mínimo duas
leituras. Na primeira, se familiarize com as personagens, com os vínculos
que elas possuem entre si. Na segunda, tente fazer uma macro-estrutura,
ou descrição das partes da obra. Veja que ela é dividida em atos. Estes
atos se dividem em outras seções. Note como a entrada e saída de
personagens marca muitas dessas divisões do texto. Note como cada ato
e/ou cena também se relaciona a um espaço, que pode ser diferente em
cada nova situação. Alem da macro-estrutura, faça suas anotações:
registre as recorrências, as imagens e referencias que retornam.
Depois desse estudo de A Gaivota, leia o Comentário que
Stanislaviski fez sobre a peça. Procure observar a relação entre as
dificuldades na compreensão da obra e as soluções propostas. Compare os
comentários de Stanislaviski com as anotações que você fez da peça.
Agora, redija um comentário baseado nos dados que você levantou
em suas leituras e anotações. Tente expressar suas reflexões a partir dessa
situação bem definida: como abordar um texto que estimula múltiplas
leituras? Quais as estratégias para se trabalhar com textos complexos?
Em que sentido as estratégias utilizadas para melhor compreender o texto
funcionam como estímulos para o processo criativo do ator?
MÓDULO IV
MEYERHOLD: A MATERIALIDADE DO TEATRO
 
 
“  Precisamos  de  formas  novas.  Formas  novas  são 
indispensáveis e, se não existirem, então é melhor que não haja nada” 
A Gaivota, Tchecov16 

Durante a preparação do espetáculo A gaivota, V. Meyerhold,


aluno do Teatro de Arte de Moscou, começou a discordar das soluções e
propostas de Stanislavski. Desse importante debate sobre como
abordagem o processo criativo em artes cênicas irrompeu outra grande
revolução no pensar e fazer teatro. Nessa semana vamos acompanhar
parte dessa revolução.
 
 
A multifacetada carreira de V.Meyerhold (1874‐1940) é muitas 
vezes reduzida a algumas rubricas (ruptura com Stanislaviski (1863‐
1938),  biomecânica,  teatralização  do  teatro,  martirização)  que, 
veiculadas  pelos  manuais  e  apressadas  historiografias  do  teatro, 
contribuem  para  formar  estereótipos  intelectuais17.  No  lugar  de 
romancear  Meyerhold,  nos  propomos  a  examinar  sua  decisiva 
participação no teatro moderno18. 
 

                                                        
16
Fala da personagem Trepliov, que Meyehold interpretou na montagem do Teatro de Arte de Moscou,
em 1898, dirigida por C. Stanislavski.
17
Muitos desses estereótipos estão relacionados com as dificuldades de acesso a documentos da antiga
União Soviética. Após a queda do muro de Berlim, novos documentos favorecem uma compreensão
mais ampla da situação cultural soviética. Sobre a mitificação de sua morte, v SENELIC 2003. Sobre
reaplicações da biomecânica, NORMINGTON 2005.
18
Como o faz muitas vezes RIPELINO 1996.
Um  dos  aspectos  recorrentes  em  seus  escritos  é  sua  reação  a 
uma concepção do teatro como reprodução da realidade, ou o teatro 
naturalista  do  estilo  dos  Meninger19.  Essa  concepção,  acatada  em 
parte pelo Teatro de Arte de Moscou, dirigida por C. Stanislaviski20 , 
baseia‐se  em  uma  tradição  de  ‘grande  espetáculo’,  que  oferecia  ao 
público  pagante  um  desfile  de  excessos  –  multidões,  canhões, 
maquinário  cênico,  épocas  passadas  com  todos  apetrechos  e 
quinquilharias21. 
O paradoxo entre o verismo da reconstrução histórica e o seu 
hipnotismo  ilusionista  fora  denunciado  por  Appia.  No  caso  de 
Meyerhold, além de Appia, temos o contato com a obra de Tchecov, e, 
posteriormente, com a dos simbolistas. 
A dramaturgia de atmosferas de Tchecov era um desafio para 
o  naturalismo  e  para  Stanislavski.  A  encenação  dessa  dramaturgia 
exigia  mais  que  um  amontoado  de  objetos  e  sons  para  a 
materialização a vida banal, cômico‐séria e cheia de lapsos e silêncios 
das  personagens22.  É  na  discordância  sobre  o  modo  de  encenar 

                                                        
19
Companhia teatral liderada pelo duque germânico Georg II Saxe de Meiningen (1826-1914) que
excursionou pela Europa entre 1874 e 1890 – em 1885 e 1890 passou pela Rússia -, destacando-se por
um tratamento pomposo do passado histórico. Para tanto, desenvolveu a presença e o movimento de
multidões no palco, como em cenas de batalha e coroação, aprimorou os detalhes de objetos de cena,
cenários e figurinos, além de trabalhar com plataformas e efeitos sonoros, o que coloca o Duque de
Meinigen como um modelo da figura moderna no encenador, além de contemporâneo da idéia
wagneriana de arte total . V.KOLLER 1984, WILLEMS 1970, GRUBE 1963. Para desdobramentos do
método e do teatro de Meinigen, v. HANSON 1983.
20
Em carta para sua esposa Olga. M.Munt (22-06-1898), Meyerhold informa que “O mercador de
Veneza será realizado à la Meiningen, com a atenção que se deve à exatidão histórica e etnográfica. A
antiga Veneza emergirá como algo vivo diante do público. De um lado , o velho quarteirão judeu,
escuro e sujo; do outro, a pra;a diante do palácio de Pórcia, lindo, poético, com uma vista para o mar
que encanta os olhos. Escuridão aqui, claridade lá; aqui, tristeza e opressão;lá, brilho e alegria. O
cenário sozinho expressa a idéia por trás da peça.! (TAKEDA 2003 64-65) ”. Noutra carta para sua
esposa, DE 8-7-1898, Meyerhold comenta entusiasticamente os cenários da peça Tsar Fiódor: “Não se
poderia ir além em termos de beleza, originalidade e verdade. É possível olhar os cenários durantes
horas a fio e não s cansar. E mais, gosta-se deles como algo real. O cenário para a segunda cena do
Primeiro Ato, um cômodo no palácio do tsar’, é especialmente bom. Faz a gente se sentir em casa. É
bom devido à sensação confortável que transmite e ao estilo.(TAKEDA 2003:69)”. Vemos aqui um
Meyerhold bem longe de Meyerhold...
21
ROUBINE 1998:121 “Essa foi a época dos grandes quadros, sem os quais nenhuma ópera, de
Meyerbeer a Verdi, seria considerada completa. (exemplo disso: o triunfo de Aída, 1971). Foi também
a época dos grandes balés com enredo, nos quais as cenas feéricas alternavam-se coma s cenas de corte
(exemplos: A bela adormecida,1889; O lago dos cisnes; ambos de Tchaikovski).Note-se como
espetáculos dramático-musicais encabeçam essa dramaturgia de ostentação.
22
Tchecov, aconselhando seu irmão sobre como escrever uma obra de arte, defende: “1- ausência de
palavrório prolongado de natureza político-sócio-econômica; 2-objetividade total; veracidade nas
Tchecov que encontramos não só o afastamento de Meyerhold quanto 
a  Stanislavski  como  também  a  individualidade  das  concepções  do 
próprio  Meherhold23.  Ou  seja,  não  só  divergências  estéticas  quanto 
como também da pedagogia e condução do espetáculo, impulsionadas 
pela busca de uma participação mais ativa no processo criativo que se 
efetiva no Teatro de Arte.24  
Esse  desejo  se  concretiza  em  etapas.  Após  deixar  o  Teatro  de 
Arte  em  1902  e  se  engajar  em  uma  cooperativa  de  jovens  atores, 
Meyerhold  é  convidado  por  Stanislaviski,  em  1905,  a  coordenar  as 
atividades do Teatro Estúdio, um espaço experimental que objetivava 
desenvolver  metodologia  de  encenação  e  atuação  para  peças 
simbolistas25. A aventura foi interrompida. Mas a partir dela temos o 
início uma série de escritos e realizações cuja interpenetração coloca 
em  evidência  um  pensar  sobre  a  cena  a  partir  de  sua  materialidade. 
Acompanhar  esses  escritos  é  observar  a  busca  pela  expressão  para 
algo para o qual não havia todas as palavras e conceitos. O esforço de 
traduzir  textualmente  ações  não  circunscritas  à  verbalidade 
                                                        
descrições das personagens e dos objetos; 3-brevidade extrema; 4-ousadia e originalidade – fuja dos
chavões; 5-sinceridade.(ANGELIDES:1995:52)”.
23
Diante disso, não é de surpreender uma aproximação entre Tchecov e Meyerhold. Meyerhold solicita
ajuda de Tchecov na preparação de papéis. Em 1899, Tchecov responde a uma dessas solicitações: “É
uma irritação crônica {a do personagem que Meyerhold está ensaiando}, de modo algum patética, sem
explosões, nem convulsões. (...) Não se demore sobre isso, mas mostre como se fosse uma das
características típicas del, não exagere, caso contrário o que emergirá será um jovem irritação em vez
de um jovem solitário. Konstantin Serguiêievitch {Stanislaviski}insistirá sobre esse nervorsimo
excessivo, mas não ceda; não sacrifique a beleza, a força da voz e da palavra por causa de um efeito
momentâneo. Não os sacrifique , pois, na realidade, a irritação não passa de uma futilidade, um detalhe
(TAKEDA 2003:110)”. O papel era Johanes, da peça Os solitários do dramaturgo G.Hauptmann
(1862-1946), considerado o introdutor do Naturalismo na Alemanha. V. ROSENFELD 1977:93-108.
24
Em carta para Nemiróvitch-Dânthenko (17-01-1899), Meyerhold desabafa: “Esperei
assumir uma parte ativa na discussão sobre Hedda Gabler que estava agendada para hoje. Só que não
houve nenhuma discussão. Discutir o significado geral de uma peça, discutir sobre a natureza das
personagens, entrar no espírito de uma peça de climas por meio de um debate desafiador – isso não faz
parte dos princípio do nosso diretor geral {Stanislavski}. O que ele prefere, como foi verificado, é ler a
peça do princípio ao fim, parando conforme vai descrendo o cenário, explicando posições, movimentos
e marcando as pausas. Em uma palavra, para o drama social, para o drama psicológico, o diretor usa o
mesmo método de direção que ele trabalhou anos atrás e que o tem guiado, quer seja uma peça de
atmosfera e idéias, quer seja algo espetacular. Tenho que provar que isso está errado? (...) Queremos
também pensar enquanto atuamos. Queremos saber por que estamos atuando, o que estamos atuando
(TAKEDA 2003:98).” Meyehold fora aluno de Nemiróvitch-Dânthenko no
25
Meyerhold envia para Stanislavski o projeto da nova companhia teatral, filial do Teatro de Arte, em
1904, enfatizando o enfoque no treinamento de atores mais experientes, com vistas a formar um novo
ator, mais criativo e menos reprodutivo. Conf. MEYERHOLD 1973:70-73. Daí várias imagens
religiosas no projeto, preconizando o individualismo ascético criador - imagens comuns no
simbolismo, e, depois em projetos como o de J.Grotowski.
desencadeou  uma  retórica  da  recusa,  um  contexto  reativo  que 
tornava  o  ‘novo’  uma  meta,  importando  apenas  que  esse  ‘novo’  não 
fosse a repetição do que existia.  
No  ‘Ensaio  História  e  Técnica  no  Teatro’,  publicado  em  1913, 
Meyerhold  discorre  sobre  pressupostos  e  procedimentos  que 
envolviam  o  Teatro  Estúdio26.  Questões  de  dramaturgia,  recepção, 
encenação  e  atuação  são  discutidas,  a  partir  do  exame  e  crítica  das 
atitudes  e  métodos  então  dominantes.  Novos  textos,  novas 
dramaturgias  exigiam  novos  métodos  de  representação  e  realização. 
Não havia como enfrentar tais obras sem rever o modo como o espaço 
de  representação,  o  treinamento  dos  atores  e  a  construção  da 
audiência eram tratados.  
Nisso vemos como Meyerhold situa a complexidade do evento 
teatral  a  partir  da  mútua  implicação  de  vários  atos  e  efeitos.  As 
alterações  são  sistêmicas,  no  sentido  de  cada  modificação  de  um 
aspecto  do  espetáculo  necessariamente  acarretar  a  modificação  de 
outro.  Assim,  as  obras  se  colocam  como  um  problema  a  ser 
solucionado,  como  questões  representacionais  que  demandam 
específica  resposta  em  função  da  perspectiva  adotada.  Ou  seja,  o 
conceito  de  espetáculo  implicado  na  obra  é  materialmente 
reconfigurado  a  partir  de  cada  tarefa  para  a  sua  concretização.  Se 
obra  simbolista  para  sua  concretização  prescindia  do  detalhe 
absoluto,  da  exposição  definitiva  de  todos  os  referentes  aludidos  no 
texto,  então  sua  montagem  deveria  assumir  tal  faticidade  e  tentar 
traduzir  com  os  recursos  de  cada  aspecto  cênico  essa  plasticidade 
específica.  
Por exemplo, a produção da cenografia: durante a preparação 
de  A  morte  de  Tingalis  houve  um  entrechoque  entre  os  técnicos  e  a 
direção  artística:  os  esboços  dos  planos  das  cenas  elaborados  pela 
direção  confrontavam‐se  com  as  maquetes  que  reproduziam 
interiores e exteriores das cenas. A ruptura com hábitos e técnicas da 
cenografia naturalistas passava pela simplificação do maquinário. Ao 
                                                        
26
Nos parágrafos seguintes atenho-me a uma leitura atenta deste texto.
invés  do  pesado  e  complicado  materialização  de  um  espaço  em 
tamanho  natural  com  todas  os  seus  volumes  e  detalhes,  como  o 
estúdio  de  um  pintor,  na  peça  Colega  Crampton,de  Hauptmann, 
manchas  grandes  e  vivas,  a  própria  pintura  como  cenário,  coisa  e 
quadro. Essa imagem não acabada, mas suficiente, retrabalhada com a 
iluminação  e  alguns  objetos  de  cena,  essa  tela  imenso  limitada  por 
uma  grande  janela  ao  alto  assentava  as  bases  do  convencionalismo 
cênico de Meyerhold.  
Substituindo a continuidade normalizadora de uma cenografia 
totalizante por pinceladas, Meyerhold deslocava o eixo de atenção do 
mundo  fora  da  cena  para  aquilo  que  se  colocava  em  cena.  Mais 
propriamente:  o  que  se  exibia,  o  que  se  mostrava  a  platéia  eram  as 
operação de seleção e reconfiguração de materiais, eram os materiais 
redefinidos  –  o  processo  criativo  mesmo  de  apropriação  e 
transformação dos materiais.  
Em  um  primeiro  momento,  tal  operação  fundamental  da 
dramaturgia  da  encenação  ‐  remoção  das  trucagens  e  maquetes  – 
parecia  assinalar  um  esvaziamento  do  palco,  sua  desmaterialização. 
Porém,  com  menos  coisas,  materializavam‐se  melhor  aquilo  que  é  a 
realidade  do  evento  teatral  –  atos  e  objetos  que  se  apresentação  a 
partir  da  percepção  de  sua  distinta  elaboração.  Movimentos,  gestos, 
palavras, cores sucedem no ritmo de suas especificidades e relações. 
A homologia entre música e teatro começa a ganhar relevância 
em Meyerhold quando ele tenta explicar sua abordagem. Primeiro, ele 
vale‐se de termos das Artes Plásticas – estilização, convencionalismo. 
Contudo,  para  expressar  o  questionamento  do  estatuto  visual‐
representacional  do  teatro,  tão  presente  no  Naturalismo,  Meyerhold 
aproxima‐se do desafiante ‘realismo do som’. A cena segue o ritmo da 
música,  o  espetáculo  se  organiza  musicalmente  porque  se  efetiva  a 
partir dos parâmetros da performance, de sua materialidade em cena, 
da  encenação  de  sua  materialidade.  Ao  se  circunscrever  o  visto, 
incrementou‐se  uma  percepção  global  do  que  está  sendo  exibido. 
Quando se mostram partes, incompletudes, exorbitâncias e alogismos 
rompe‐se  com  a  ilusão  da  seqüência,  com  o  acabamento  e 
autosuficiência dos atos e objetos disponibilizados. Por outro lado, há 
o  impulso  para  ver  em  cada  coisa  mostrada  o  movimento  de  sua 
duração,  a  interferência  dela  nas  outras  coisas,  sua  assimilação  e 
recomposição no curso do tempo. 
Um  segundo  obstáculo  para  a  experiência  de  teatralidade 
desenvolvida por Meyerhold no Teatro Estúdio residida na formação 
dos atores. Daí se compreende por que Meyerhold afirma que uso do 
naturalismo e do repertório de Tchecov eram duas faces do Teatro de 
Arte  de  Stanilávski.  Em  ambos  os  casos  as  bases  estavam  em 
determinar  a  presença  de  uma  personagem  não  como  uma  figura  e 
sim  como  uma  versão  mais  perfeita,  minuciosa  de  algo  que  não  é  a 
personagem.  Em  outras  palavras,  os  complexos  agentes  da 
dramaturgia  de  atmosfera  seriam  casos  especiais,  desafios  ao 
naturalismo,  tido  como  pressuposto  da  arte  de  interpretação  e 
encenação. Ao se enfrentar o repertório de Tchecov, o diretor e o ator 
estariam em um comum e perigoso empreendimento cujo sucesso ou 
fracasso  interpretam‐se  em  relação  a  confirmar  ou  não  essa  pré‐
estrutura. É como se as artes de espetáculo atingissem sua gramática 
na  ratificação  ou  não  de  sua  acatada  moldura  explicativa.  Enfim,  o 
recurso  ao  ‘naturalismo’  não  questão  de  adequação  da  cena  à 
realidade  e  sim  a  justificativa  dos  atos  criativos  a  uma  instância 
desvinculada desses atos, instância prévia e sobre‐determinante para 
qual rumam e da qual partes as validações daquilo que se efetiva no 
corpo,  na  cena  e  na  vida.  Tudo  o  que  vem  depois  é  secundário, 
dependente e derivado dessa instância ante‐predicativa.  
Logo,  com  atores  formados  dentro  desse  modelo,  toda 
novidade é desviante, é uma versão inferior de uma expressão clara, 
completa  e  determinada,  promovida  pela  excelência  do  Teatro  de 
Arte,  já  que  até  mesmo  Tchecov,  com  sua  dramaturgia  de  esboços  e 
traços  interrompidos,  havia  sido  domesticado.  O  enfrentamento  do 
repertório de Tchecov é ambivalente: de um lado aponta para o limite 
de uma concepção que busca a plenitude do espetáculo na plenitude 
da  caracterização;  de  outro,  parece  coroar  a  expansão  totalizante  de 
uma  concepção  que  se  torna  pressuposto  trans‐histórico  e  multi‐
aplicável  no  emergente  campo  das  artes  cênicas.  Que  uma  idéia 
parece  se  confirmar  recorrentemente  em  processos  criativos  para  a 
cena  isso  não  significa  que  haja  um  fundamento  dos  fundamentos 
para esses processos. 
A  inquietação  de  Meyerhold  diante  das  práticas  do  Teatro  de 
Arte pode‐se ser compreendida como ‘a angústia diante do ponto de 
partida’.  Se  cada  vez  mais  o  porto  de  partida  é  conhecido,  saturado 
com rotinas e protocolos o que ao fim se representa são essas rotinas 
e  protocolos.  A  provocação  de  se  buscar  outros  pontos  de  partida, 
mesmo que sob aos olhos do manto do naturalismo não passassem de 
variações  do  mesmo,  impõe  que  se  desautomatizem  as  práticas  e  as 
interpretações. 
“A  arte  de  qualquer  ator  se  apassiva  quando  se  converte  em 
essencial”‐  este  lema  esclarece  o  reposicionamente  de  Meyerhold 
diante do trabalho com os atores. É solicitado ao ator não a execução 
de atos previamente marcados, mas sim que se insira na atividade de 
construção  do  espetáculo,  que  ele  mesmo,  com  seu  corpo,  seja  mais 
uma das coisas dispostas em cena. Espacializando‐se, sendo a própria 
coisa  observada,  o  ator  materializa‐se  e  materializa  o  espetáculo. 
Disponibilizando‐se  como  algo  a  ser  percebido  a  partir  da 
configuração de seus atos, o ator não se está preocupado em ajustar o 
que faz com uma pretensa universalidade verossímil. O que explica o 
que ele realiza são os atos que efetiva. O domínio de gestos, atitudes, 
olhares,  silêncio  escolhidos,  conectados  e  experimentados  durante  o 
processo criativo agora é durante as apresentações. A descoberta do 
modo  como  manipular  sua  presença  é  performada.  Cada  montagem 
vai exigir do ator essas descobertas, essa atividade criadora. Quando 
mais  o  ator  se  defrontar  com  repertórios  e  tradições  diversificadas 
mais  vai  flexibilizar  e  aprimorar  sua  atividade  interpretativa.  Da 
impossibilidade  de  representar  de  uma  só  vez  a  realidade  em  sua 
plenitude  fica  a  necessidade  de  cumulativamente  desenvolver 
habilidades a partir de processos criativos específicos.  
Enfrentando sempre esses dois obstáculos, Meyerhold propõe, 
no lugar da plenitude do naturalismo, a amplitude da teatralidade. È o 
que se pode melhor compreender quando, discutindo sobre métodos 
de  direção,  Meyerhold  analisa  como  podem  se  dar  as  relações  entre 
ator, diretor, ator e espectador. 
Esquematicamente,  Meyerhold  distingue  dois  métodos: 
triangular  e  o  linear.  No  primeiro,  nos  vértices  do  triângulo  estão  o 
autor,  o  ator  e  o  diretor  (e,  deste,  o  espectador).Sendo  um  triângulo 
isósceles,  com  os  ângulos  das  bases  congruentes,  há  a  imagem  de 
convergência  para  vértice,  o  do  diretor.No  segundo,  no  lugar  do 
triângulo  temos  uma  linha  com  quatro  pontos  em  sucessão:  autor‐
diretor‐ator‐espectador.  
As  geometrias  diversas  enfatizam  modos  de  orientação  das 
participações  de  um  espetáculo.  O  método  triangular  reforça  um 
centro  unificador,  um  filtro  dos  trabalhos  do  autor  e  do  ator  para  a 
recepção. Como se poder ver, ironicamente, os diferentes ângulos da 
figura não intensificam os variados e mútuos agentes.  
Já  pelo  método  linear  todos  estão  no  mesmo  nível,  na 
superfície. O diretor recria o autor e oferece para o ator tal recriação. 
O ator se apropria dessa recriação e a reconfigura. O diretor procura 
integrar o que foi criado ‘pelos artífices dessa criação coletiva’ 
No  confronto  entre  esses  dois  paradigmas  revela‐se  que 
ambos  reconhecem  que  processos  criativos  para  a  cena  são 
heterogêneos.  A  diferença  se  dá  em  como  essa  heterogeneidade  é 
enfrentada. A tensão entre coerência e abertura é resolvida segundo 
pressupostos diversos. A resolução acarreta posicionamentos sobre a 
condução  dos  atores,  construção  da  audiência  e  montagem. 
Composição, realização e recepção estão intimamente associadas. É a 
orientação  do  modo  como  se  esses  vínculos  são  exercidos  que 
determina processos criativos e espetáculos diversos.  
Tudo isso mostra como a cena não simplesmente a extensão de 
uma idéia ou a projeção de um pensamento prévio. O antídoto contra 
a  intelectualização  do  teatro  está  no  trabalho  cotidiano  com  as 
questões  e  problemas  específicos  da  montagem.  Note‐se  que  é  a 
partir  dessa  vivência  que  os  conceitos  e  as  demandas  de  Meyerhold 
são produzidas.  
Assim,  não  é  a  defesa  de  um  irracionalismo  no  teatro,  mas  a 
possibilidade de transformar fatos e situações da atividade de dispor 
materiais  para  um  público  em  um  evento  compreensível,  em  uma 
teoria de sua realização, teoria está estritamente relacionado com as 
escolhas tornadas possíveis durante o processo criativo. 
Ou  seja,  Meyerhold  rompe  com  o  sistema  ilusionista  que  o 
precedia  e  que  ele  utilizara  em  sua  carreira  como  ator  e  diretor 
iniciante.  Esta  ruptura  pode  ser  bem  compreendida  no  ato  de  trazer 
para  o  primeiro  plano,  para  a  frente  do  palco  atividades  que  se 
encontram nos bastidores, ocultas no maquinário do teatro. O sistema 
ilusionista, com seu ideal de propor para a audiência a contemplação 
de  um  mundo  aparentemente  fechado  em  si  mesmo,  sustentava  em 
uma  estranha  dialética  entre  aquilo  que  se  mostra  e  aquilo  que  se 
oculta.  Meyerhold,  a  partir  do  estudo  das  limitações  desse  sistema, 
demonstra  como  este  dualismo  é  redutor  e  artificial,  pois  se 
fundamenta em exclusões, em restrição das possibilidades de todas as 
cadeias do processo de composição, realização e recepção de eventos 
multidimensionais. 
O  paradoxo  da  operação  meyerholdiana  reside  no  fato  de  se 
evidenciar  que  o  evento  teatral  como  algo  construído,  de  se 
aproximar  o  processo  criativo  da  performance,  de  se  valer  das 
referências  à  própria  organização  do  espetáculo  como  material  para 
as interações recepcionais. No sistema ilusionista havia o espetáculo 
estava condicionado a uma trama clara, a uma narrativa que organiza 
a sucessão dos acontecimentos representados. Essa subordinação dos 
atos  interpretativos  a  uma  instância  prévia  desencadeava  uma 
hierarquia,  uma  tendência  à  homogeneização  da  diversidade  de 
atividades e referências. Daí o dualismo, o jogo do que se mostra e do 
que se esconde.  
Quando as máquinas são os homens, como na biomecânica, as 
posições se alteram, os significados estáveis entram em ruína. O palco 
se  vê  tomado  por  figuras  que  se  revelam  em  sua  totalidade.  Elas  se 
sobrecarregam  de  funções  e  habilidades  (a  cenografia  é  o  corpo 
também), o que colabora para que a audiência não simplesmente siga 
o  acabamento  dos  eventos  exibidos  no  cumprimento  da  lógica 
verossímil proposta.  O chamado teatro teatral de Meyerhold postula 
o  não  apagamento  ou  ocultação  dos  atos  e  dos  suportes  do 
acontecimento cênico. Aquilo que mostra exibe referências para a sua 
compreensão e fruição, e não apenas a atualização do esquema de sua 
legibilidade. E para este momento, e para o espaço de emergência da 
performance  e  dos  vínculos  entre  performers  e  audiência  que  a 
ruptura  Meyerhold  se  dirige.  De  volta  às  coisas  mesmas,  ao  fazer,  à 
impossibilidade  de  não  se  perceber  que  em  um  dado  espaço‐tempo 
contextualizam  interações  a  partir  da  configuração  daquilo  que  se 
exibe.  A  partir  de  Meyerhold,  a  materialidade  da  cena  não  é  um  ato 
subsidiário,  uma  encarnação  das  idéias,  um  detalhamento  de  alguns 
aspectos pontuais da narrativa. A materialidade da cena é espetáculo 
mesmo.  Nessa  tautologia  refuta‐se  o  autocentramento  do  sistema 
ilusionista  do  naturalismo  teatral  e  abre‐se  o  caminho  para  a 
autonomização das artes do espetáculo, explorada no século XIX por 
programas estéticos os mais diversos.  
 
 
ATIVIDADE 
Após  ler  o  texto  acima,  e  os  textos  extras  de  Meyerhold, 
escreva  um  comentário  no  qual  você  discuta  a  diferença  entre  as 
propostas  de  Meyerhold  e  Stanislavski.  Observe  seus  pontos  de 
partida,  o  que  eles  mais  enfatizam  em  termo  de  processo  criativo  e 
preparação de atores.  
 
 
LINKS 
Para acesso a imagens e vídeos, veja /www.meyerhold.org. É o 
site do Museu Meyerhold. Ali você pode, alem de informações sobre a 
vida e carreira do teatrólogo, fazer uma visita virtual ao quarto onde 
ele morava. 
No  youtube,(www.youtube.com),  estão  disponíveis  alguns 
vídeos  sobre  a  biomecânica,  como  “Shadow  Biomechanics”,  e 
“Meyehold’s Theater and Biomechanics”.  
 
TEXTOS EXTRAS 
Além do material aqui discutido, há os textos 1‐ “Meyerhold na 
contemporaneidade:algumas  reflexões  e  estudo  de  caso”,  de  Yeda 
Chaves,  disponível  em 
www.eca.usp.br/salapreta/PDF05/SP05_03.pdf;  2‐“Enunciados  da 
biomecânica”,  de  V.  Meyerhold,  disponível  em 
www.grupotempo.com.br/tex_teatro.html. 
 
 
 
BIBLIOGRAFIA 
Infelizmente acesso a textos de Meyerhold em português não é 
fácil.  Temos  disponíveis  O  Inspetor  Geral,  de  Gogol.(Perspectiva, 
1996),  que  comenta  e  apresenta  texto  de  Meyerhold  sobre  sua 
histórica montagem da peça de Gogol, com traduções e análises de A. 
Cavaliere.  A  estudiosa  francesa  Béatrice  Picon‐Vallin  traduziu  do 
russo  as  obras  de  Meyerhold,  formando  uma  coleção  de  4 
volumes(L’Âge  d’Homme,1973‐2001).  Ainda  da  mesma  autora  duas 
coletâneas  de  ensaios:    A  arte  do  teatro:  Entre  Tradição  e 
Vanguarda.Meyerhold  e  a  cena  contemporânea(Teatro  do  Pequeno 
Gesto/Letra&Imagem, 2006), e A cena em ensaios(Perspectiva, 2008). 
  
Se  você  quiser  saber  mais  sobre  Meyerhold,  veja  a  seguinte 
bibliografia: 
 
BONFITTO, V.  O ator compositor. Perspectiva, 2002 
DEÁK,F.  “Meyerhold’s  Staging  of  ‘Sister  Beatrice’”.  TDR 
26,1982,41‐50. 
GOLUB,  S.  “Clockwise‐Counterclockwise  (THe  Vowelless 
Revolution)”Theater Journal 56 , 2004,  183‐203. 
GORDON,  M.  e  LAW,  A.    Meyerhold,  Eisenstein  and 
Biomechanics. McFarland &Company, 1996. 
GRUBE,  M.  The  Story  of  eht  Meininger.  University  of  Florida, 
1963.(Edição alemã de 1926). 
GUINSBURG,  J.    Stanislávski  e  o  Teatro  de  Arte  de  Moscou. 
Perspectiva, 2006.  
GUINSBURG,  J.  Stanislávski,  Meierhold  &  Cia.  Perspectiva, 
2001. 
HANSON,K.T.  Georg  II,  The  Duke  of  Saxe‐Meiningen:Re‐
examination.  Tese  de  doutorado  apresentada  aa  Brigham  Young 
University, 1983. 
HEDGBETH, L.  “ Meyerhold’s ‘D.E’”  TDR 19, 1975,23‐56. 
HOOVER,M.L    Meyerhold.  The  Art  of  Conscious  Theater. 
University of Massachusetts Pres,1974. 
HORMIGON,  J.  A  .    Meyerhold:textos  teóricos.  Madrid, 
Publicaciones  de  la  asociación  de  Directores  de  Escena  de  Espana, 
1998. 
KOLLER,A.M.    The  Theater  Duke.  Georg  II  of  Saxe‐Meiningen 
and  the  German  Stage.  Stanford  University  Press,  1984.(A  tese  de 
doutorado é de  
LADOUCEUR,J.R.    Constructing  the  ‘Revolutionary’ 
Performer:Democracy  and  Dictatorship  in  the  Theater  of  V.  E. 
Meyerhold, 1898‐1922.  Tese de DOutorado Yale University , 2004. 
LAW,A.    “Meyerhold  Speaks”.  Performing  Arts  Journal  3, 
1979,63‐84. 
LEACH,  R.  Vsevold  Meyerhold.  Cambridge  University 
Press,1989. 
MEYERHOLD,  V.    “The  225th  Studio”  in  THe  Tulane  Drama 
Review. 9,, 1964,22‐23. Trad. Do russo para o inglês de E. R. Hapgood. 
MEYERHOLD,V. Écrits sur le Théâtre. La Cité‐L’Age d’Homme. 
1973,t I; 1975 t.II; 1983 t.III. Trad. Pref. notas B.Picon‐Vallin. 
NORMINGTON,K.  “Meyerhold and the New Millennium.”  NTQ 
21,2005:118‐126. 
PICON‐VALLIN,  B.    A  Arte  do  teatro  entre  tradição  e 
vanguarda.  Marai de F.Saadi, 2006. 
PITHCES,J. “’Is It All Going Soft’” The Turning Point in Russian 
Actor Training” NTQ 21,2005,108‐117. 
RIPELINO, A.M.  O truque e a alma. Perspectiva, 1996. 
ROSENFELD, A. Teatro Moderno. Editora Perspectiva,1977. 
ROUBINE,J‐J. A linguagem da encenação teatral. Zahar, 1998. 
SENELICK,  L.  “The  Making  of  a  Martyr:  The  Legend  of 
Meyerhold’s Last Public Appearance” Theatre Research International 
28,2003, 157‐168. 
TAKEDA,  C.L.    O  cotidiano  de  uma  lenda.  Cartas  do  Teatro  de 
Arte de Moscou. Perspectiva, 2003. 
WILLEMS,V.  A.  W      Henry  Irving  and  The  Meininger.  Tese  de 
doutorado. The University of Wisconsin, 1970. 
 
 
 
 
 
 
 
 
MÓDULO 5 
BRECHT E A TEORIA DO ESTRANHAMENTO 
 
Nesta semana vamos trabalhar com um outro perfil de artista 
ligado  ao  teatro:  é  o  caso  do  dramaturgo,  teórico  e  diretor  teatral 
Bertold Brecht(1898‐1956). O impacto da obra de Brecht no Brasil se 
faz  sentir  por  pensadores  e  diretores  como  Augusto  Boal,  José  Celso 
Martinez Correa e Oduvaldo Vianna Filho, entre outros.27 
Inicialmente muitas das idéias de B. Brecht se desenvolveram 
em  torno  da  proposição  de  um  novo  espetáculo  dramático‐musical, 
em uma clara recusa à visão sintética da obra total de Wagner, como 
vimos  na  primeira  semana  sobre  Wagner.  Brecht,  no  lugar  de 
esconder a orquestra no fosso, de induzir o espectador a uma ilusão 
de  que  o  mundo  do  palco  é  autônomo,  fechado  sobre  si  mesmo, 
procura  dinamizar  as  relações  entre  atores  e  público,  explicitando 
que tudo que ali é mostrado é construído.  
Ao  retomar  criticamente  essa  herança  da  obra  de  arte  total. 
Brecht  observa  que  a  renovação  tecnológica  nas  artes  cênicas  é 
apenas  meia  verdade.  De  nada  adianta  modificar  as  formas  de 
expressão  sem  alterar  o  que  é  representado.  Não  há  representação 
sem  uma  realidade  prévia,  que  se  coloca  para  o  artista  como 
obstáculo  e  impulso.  A  materialidade  dos  meios  reivindica  um 
materialismo das referências. 
Podemos  mapear  a  elaboração  do  teatro  dialético  de  Brecht 
distinguindo dois momentos complementares: no primeiro momento, 
até meados dos anos trinta(1930), há uma forte retórica bélica contra 
os  hábitos  estéticos  dito  burgueses  e  suas  implicações  artísticas  e 
políticas.  Em  um  segundo  momento,  que  se  desenvolve  a  partir  de 
fins  dos  anos  trinta,  há  o  arrefecimento  do  artifício  da  denúncia  em 
prol  de  uma  coerência  reflexiva  que  melhor  contextualize  tanto 
formal  quanto  conceptualmente  uma  dramaturgia  mais  integral.  Do 
                                                        
27
Veja o artigo “Os momentos de B. Brecht no Brasil, de Eduardo Luiz Viveiros de Freitas, disponível
em www.pucsp.br/neamp/artigos/artigo_11.htm.
didatismo estrito do primeiro momento, temos a posterior correlação 
de  procedimentos  compositivos  cuja  interdependência  nos  expõe 
uma teoria de alcance histórico maior. O que culmina em “O Pequeno 
organon para o teatro(1948)”. 
 Como o título assinala e parodia, abordagens intelectualistas, 
como  aquelas  calcadas  em  A    poética  de  Aristóteles,  ao  não  levarem 
em conta a produtividade entre representação e representado, devem 
ser  ultrapassadas  por  poéticas  que  alicercem  suas  investigações  na 
concretude histórica das ficções. 
Vamos acompanhar mais de primeiro momento de Brecht.
Podemos ver um programa de ações objetivando uma reforma. Daí o
contexto reativo bem marcado no qual Brecht posiciona-se contra a baixa
qualidade estética das produções teatrais e óperísticas, contra o misticismo
abstrato dos vanguardistas e contra à ênfase no espetáculo, na
representação pela representação, que os grandes mestres encenadores que
sucederam Appia praticaram. O ponto crítico situa-se no modo como eram
concebidas as relações entre ficção e realidade.
Para Brecht, a reforma se baseia no acatamento da diferença entre
ficção e realidade. A prática comum era de apagar as marcas de ficção do
espetáculo. Pretende-se manter a platéia atenta através de suas respostas
emocionais, promovendo a identificação como acesso ao que se
representa. Desrealizando o mundo de cena, tornando-o mais receptivo e
palatável, cria-se uma ilusão contínua de o que está diante dos olhos tem
seu tempo e seu espaço em uma distinta esfera da experiência humana.
Brecht  denomina  teatro  culinário  tal  proposta  cênico‐
mercadológica que fornece produtos de entretenimento que reduzem 
o campo de ação do espectador a uma fruição gustativa. Prolonga‐se a 
concepção de ficção como fantasia e prazer do sujeito, o qual não se 
vê submetido a nenhum obstáculo para seu gozo.  
Para  tanto,  Brecht  vai  pouco  a  pouco  problematizar  esta 
estética  contemplativa  baseada  na  identificação.  Ele  bem  percebeu 
que  as  opções  desenvolvidas  em  cena  têm  seus  pressupostos 
composicionais.  Representar  é  articular  inteligibilidade  e 
operatividade.  Há,  pois,  a  interpenetração  de  procedimentos 
artísticos, pressupostos representacionais e formas de recepção. Uma 
obra de arte não é a extensão imediata de uma idéia. Mas seu tipo de 
racionalidade construtiva nos expõe seu horizonte de pensamento. 
A  primeira  tarefa  da  teoria  e  da  prática  de  Brecht  é  refutar  o 
ilusionismo  representacional  e  o  conseqüente  apassivamento  do 
auditório. Pois os espectadores identificam‐se com o que estão vendo 
em  virtude  do  excedente  emocional  que  assimilam  de  uma  trama 
preparada  para  ser  o  encaminhamento  dos  atos  da  platéia.  Um 
circuito  unidirecional  do  palco  para  o  auditório  ilude  porque  elide  o 
caráter  ficcional  de  sua  exibição.  A  ficção  não  quer  se  mostrar  como 
ficção.  Sonega  ao  espectador  a  educação  de  seus  sentidos  ao  se 
demonstrar  como  natural,  evidente  e  atemporal.  Por  isso  restringe 
seu  estoque  de  mercadorias  à  depuração  de  ‘necessidades  humana 
eternas’ não muito contextualizáveis. 
Em contrapartida, para Brecht é preciso remover tudo o que é 
mágico,  deixar  claro  o  que  está  sendo  mostrado  como  algo  que  se 
mostra. Eis o efeito D, ou distanciamento. 
Alargando  as  possibilidades  criativas  da  arte  para  o  palco,  a 
dramaturgia  de  Brecht  ganha  um  impulso  de  configuração  com  o 
conceito operatório de distanciamento. A negatividade deste conceito, 
que se encontra nas experiências vanguardistas de estranhamento, no 
decorrer  do  trajeto  da  obra  de  Brecht  vai  ao  poucos  encontrar  sua 
positividade. Mais que o inverso da espontaneidade da identificação, 
o  efeito  D  não  é  pontual,  mas  estrutural.  Temos  um  distanciamento 
estrutural que rejeita concepções de processos artísticos baseados em 
empatia e obras vinculadas às exigências meramente embelezadoras. 
Pois  o  que  ainda  pouco  se  notou  é  o  fato  que  para  Brecht  é  preciso 
retirar  as  discussões  sobre  arte  das  polêmicas  estetizantes  e  ver  a 
obra  de  arte  como  obra  de  conhecimento.  O  distanciamento  é  a 
experiência  de  compreensão  de  uma  obra  de  arte,  experiência  essa 
proporcionada  pelo  entendimento  da  representação  e  seus  suportes 
de interpretação dramatizados.  
A renovação tecnológica das artes de cena havia deixado bem 
mais  perceptível  a  produção  de  efeitos  concretos  que  uma 
representação  pode  desenvolver.  O  desempenho  de  uma  ficção 
encontrava‐se  agora  exposto  em  virtude  da  materialidade  dos 
procedimentos  empregados.  Antes  de  tudo,  a  cena  era  a  exibição  de 
seu  processo  de  realização.  Um  racionalismo  da  produção  poderia 
oferecer  as  bases  para  as  razões  do  fazer  artístico.  O  fazer  estético 
não  era  mais  um  dom  ou  privilégio  encarcerado  em  mentes 
escolhidas e sobrenaturais. 
Contudo,  a  otimização  dos  meios  tem  seus  limites:  uma 
tradição de práticas que possibilitam sua utilização. Pois desenhava‐
se  (  como  todos  hoje  bem  sabemos)  o  consórcio  entre  novas 
tecnologias  e  a  continuidade  dos  hábitos  ilusionistas.  Presente  e 
passado  conjugam‐se.  A  dimensão  histórica  dos  feitos  estéticos 
evidencia‐se aqui com toda sua força.  
Em  razão  disso  o  efeito  D  torna‐se  estratégico  para  oferecer 
uma  solução  para  a  contradição  entre  divertir  e  apreender  que  a 
sintomatologia dos produtos tecno‐ilusionistas efetivam.  
O  famoso  e  sempre  citado  quadro  de  oposições28  (de  1931) 
procura  esclarecer  a  oposição  entre  o  novo‐velho  modo  de  se  fazer 
ilusão  e  a  moderna  maneira  de  se  integrar  ficção  em  uma 
representação. 
 
Forma  dramática  Forma  épica  de 
de teatro  teatro 
   
A  cena  Narra‐o 
“personifica”  um   
acontecimento   

                                                        
28
A necessidade de uma nova forma de apresentação do drama musical de seu tempo determinou este
diagrama contrastrante. São notas para o drama musical épico Mahagonny. Note-se como o quadro se
articula em três grupos básicos de questões: forma da obra, recepção da obra e aplicabilidade da obra a
contextos não estéticos, explicitando o amplo escopo da discussão sobre as relações entre drama e
conhecimento a partir de um paradigma que integra diversas interações que ultrapassam dualismos.
   
Envolve  o  Faz  dele 
espectador na ação e  testemunha,  mas 
Consome‐lhe  a  desperta‐lhe  a 
atividade;  atividade; 
Proporciona‐lhe  força‐o  a  tomar 
sentimentos;  decisões; 
Leva‐o  a  viver  proporciona‐lhe 
uma experiência;   visão do mundo; 
o espectador é é colocado diante 
transferido para dentro da da ação; 
ação;  
é  trabalho  com  é  trabalho  com 
sugestões;  argumentos;  
os  sentimentos  são  impelidos 
permanecem  os  para  uma 
mesmos;  conscientização; 
parte‐se  do   
principio que o homem é  o  homem  é 
conhecido;  objeto de análise; 
o  homem  é   
imutável;   o  homem  é 
  susceptível de ser; 
tensão  no  modificado  e  de 
desenlace da ação;  modificar; 
uma  cena  em  tensão  no 
função da outra;  decurso da ação; 
  cada  cena  em 
os  função de si mesma; 
acontecimentos  decorrem  em 
decorrem linearmente;  curva; 
   
natura  non  facit   
saltus  facit saltus 
(tudo na natureza   
é gradativo)  (nem  tudo  é 
o mundo, como é;  gradativo); 
o  homem  é   
obrigado;   o  mundo,  como 
suas inclinações;  será ; 
o  pensamento  o homem deve; 
determina o ser.  seus motivos; 
o  ser  social 
determina  o 
pensamento 
 
 
O  que  se  pode  notar  desse  quadro  é  que  o  teatro  épico  e  seu 
distanciamento  estrutural  é  composto  por  uma  série  de 
procedimentos  ao  invés  de  se  fundamentar  em  uma  centralidade 
projetiva. Não há um conceito que unifique a experiência de recepção 
ou  a  prática  compositiva.  A  variação  de  procedimentos  desnuda  o 
palco,  desmistifica  a  ilusão  encenada  ao  marcar  a  delimitada  e 
circunscrita  forma  que  dá  suporte  para  uma  determinada 
representação.  Os  suportes  dramáticos  expostos  clarificam  a 
singularidade da obra. 
Em  conseqüência  disso,  há  uma  correlação  enriquecedora 
entre  palco  e  platéia  através  do  qual  o  espetáculo  é  a  unidade  entre 
cena  e  público  em  uma  realidade  de  observação  e  afetividade. 
Espetáculo  é  toda  a  interatividade  entre  cena  e  audiência.  O 
espetáculo  não  é  mais  que  a  representação  dessa  situação 
interpretativa entre cena e platéia. Não está acima ou além de quem o 
possa assistir. Ele é finito e visível em seus nexos. 
Dessa  forma,  desloca‐se  a  perspectiva  de  cena  da  psicologia 
das  personagens  para  a  contextualização  do  que  se  representa.  Há 
uma unidade entre personagem e acontecimento, acontecimento que 
não  é  primordialmente  mental.  Com  isso  não  temos  um  tônus 
emocional  dominante,  um  plexo  de  pulsões  básico  e  invariável. 
Flutuações  emocionais  relacionadas  a  atos  específicos  alternam‐se 
com  debate  sobre  os  próprios  eventos  que  possibilitaram  tais 
emoções  e  reflexões.  Tal  clarificação  das  emoções  articula‐se  com  a 
exigência da produção de uma audiência mais compreensiva. 
Finalmente,  o  aperfeiçoamento  da  representação,  em  virtude 
de seu desnudamento para a platéia, acarreta a exibição de situações 
do  mundo  da  vida  integradas  às  suas  possibilidades  e  alternativas. 
Assim como a representação não é a cópia de uma realidade imposta 
e comunicada, da mesma forma o mundo representado não se reduz a 
fatos imutáveis. A inteligibilidade da representação, adquirida através 
de  marcações  propositadamente  visíveis,  conecta  acontecimentos  e 
transformações.  A  descontinuidade  do  que  se  encena  promove  a 
continuidade  de  se  pensar  a  respeito  do  que  se  vê.  O  mundo 
representado  aproxima‐se  das  formas  de  compreensão  cotidianas, 
corrigindo  estratégias  ilusionistas  que  apelam  diretamente  à 
emocionalidade do espectador. O que aproxima palco e platéia não é a 
intensidade  de  uma  experiência  afetiva  isolada  pontual,  mas  a 
construção de uma postura frente ao que se defronta. 
No  fundo  vemos  que,  por  detrás  das  proposições  do  teatro 
épico de Brecht, está uma desconfiança do caráter gratuito e isolado 
da  intensificação  emocional.  Brecht  bem  demonstra  que  esta 
afetividade  absoluta  tem  sua  racionalidade  específica,  é  também 
constituída.  Ao  contrário  de  uma  oposição  entre  sentir  e  pensar, 
Brecht  revela  o  alcance  cognitivo  de  um  pathos  extremo,  como  a 
experiência  do  fascismo  bem  exemplificou.  Toda  emocionalidade  é 
calculável. 
É,  pois,  em  relação  aos  pressupostos  e  implicações  da 
centralidade  emocional  do  espetáculo  que  Brecht  se  dirige.  A  forma 
do  espetáculo,  a  experiência  de  recepção  produzida  e  o  mundo 
representado interagem e enunciam os pressupostos de realização do 
espetáculo.  A  opção  representacional  centrada  na  emocionalidade  é 
uma estratégia de arrefecer a compreensão de seu alcance cognitivo 
limitado. Muita mágica, muita emoção não significa sensibilidade mais 
desenvolvida,  como  Diderot  mostrara  em  seu  Paradoxo  do 
Comediante.. 
Por isso a novidade da teoria de Brecht se compreende melhor 
em  relação  à  sua  defesa  de  uma  dramaturgia  não  aristotélica.  O 
recurso  a  Aristóteles,  pelo  menos  o  Aristóteles  assimilado  pelas 
estéticas normativas, sempre se fez para legitimar a separação entre 
os  conteúdos  emocionais  e  a  sua  expressão.  Ora  pendendo  para  um 
ou  outro  lado,  a  utilização  mesmo  que  indireta  da  Poética  de 
Aristóteles,  seja  na  teoria  da  mímesis,  seja  na  teoria  da  catarse, 
privilegiou  ou  a  organização  estética  dos  materiais  ou  a  experiência 
direta da platéia. A recusa da herança aristotélica por parte de Brecht 
procura, a partir da própria experiência teatral global, acompanhar a 
efetividade realizacional da ficção dramática. 
Ou seja, o ponto de partida não reside pura e simplesmente em 
um aspecto isolado da representação para a cena, mas prolonga‐se na 
investigação da heterogeneidade de diferenciações que possibilitam a 
experiência  dramática,  dentro  da  qual  uma  continuidade  de 
compreensão  é  constituída  através  da  descontinuidade  da 
representação.  O  efeito  D  é  a  manutenção  de  um  espaço  de 
inteligibilidade das formas dentro das formas mesmas. 
Não  é  tanto  uma  revolução  formal  que  Brecht  preconiza. 
Contra um formalismo autocontido da expressão, no qual o mundo é 
orientado  a  quase  coincidir  com  a  materialidade  da  linguagem,  com 
os  meios  de  expressão,  temos  uma  prática  representacional,  que,  ao 
exigir  um  alcance  cognitivo  mais  desenvolvido,  retira  a  Estética  de 
sua periférica discussão genérica sem referência a obras concretas em 
sua especificidade construtiva. Ora o fazer teatro, provocativamente, 
se converte no fornecimento de mais um objeto  entre os objetos que 
o mundo possui. 
Mas  entre  os  grandes  resultados  da  estética  de  Brecht  está  a 
“reabilitação” do texto. A textualidade para o espetáculo renova‐se ao 
transformar‐se  não  mais  em  um  recurso  discursivo,  mas  em  roteiro 
de  representação.  Sem  o  texto,  a  teoria  e  prática  de  Brecht  não 
poderiam ser completadas.  
Esta  é  uma  questão  sempre  mal  compreendida,  fruto  da 
herança  e  reação  descontextualizada  ao  legado  aristotélico.  A 
separação  entre  texto  e  espetáculo,  que  pode  ser  depreendida  da 
Poética de Aristóteles, vai no fluxo das oposições entre sentir e pensar 
já comentadas acima. Foi um tipo de concepção de texto ( a do teatro 
literário)  e  não  o  texto  em  si  que  desencadeou  a  recusa  moderna  do 
texto29. Mas sempre é possível um texto. Mesmo não sendo escrita, a 
representação  tem  uma  virtualidade  textual,  que  não  se  confunde 
com  simples  comentário.  Um  espetáculo  de  mímica  é  atualizado  em 
sua textualidade. Texto e espetáculo não são opostos e excludentes. O 
que  o  ator  faz  em  cena  sempre  é  textualizável,  é  passível  de 
referência, mesmo que ele não diga nada. 
É  inegável  que  há  uma  distinção  entre  o  efeito  D  e  sua 
execução.  Muito  se  criticou  o  caráter  frio,  cerebral  e  impessoal  das 
realizações  de  Brecht  (ou  de  seus  epígonos...).  A  artificialidade 
obrigatória  da  manutenção  das  diferenças  entre  ficção  e  realidade, 
através da exposição constante e repetitiva dos suportes ficcionais da 
representação, adquiriu soluções insatisfatórias30. 
Contudo, os pressupostos do efeito D, os quais não preconizam 
a descontinuidade absoluta entre ficção e realidade, mesmo não tendo 
uma  solução  visual  eficiente  não  se  anulam.  A  teorização  da 
representação  é  um  work  in  progress.  A  adoção  de  uma  forma  de 
                                                        
29
MOTA 1998.
30
Tal frieza vinha principalmente de recursos de interpretação do ator tais como recorrer à terceira
pessoa para reforçar o ato que ele é um mostrador de realidades no palco, fazer uso de expressões no
passado, para marcar a diferença entre a ficção como relato e seu acabamento e a situação atual de
audiência, e o comentário das indicações de encenação e sobre os acontecimentos visualizados, para
registrar a função do ator como observador.
exibição é a interpretação e não a totalidade dessa teorização. Quando 
se refuta uma performance não necessariamente se julga a totalidade 
da sua composição. Uma proposta em um processo criativo pode ser 
aproveitada ou refutada em outros processos criativos. É preciso uma 
crítica  integrativa  que  dê  conta  do  projeto  de  realização  que  é 
esboçado ou desenvolvido em performances. 
Ultrapassando  o  contexto  reativo  que  o  motivava,  após  a 
maturidade  artística  em  obras  como  Mãe  coragem  e  Vida  de  Galileu, 
temos  a  segundo  momento  teórico  de  Brecht,  no  texto  “O  pequeno 
organon de teatro “(1948). 
A  “reviravolta”  conceptual  de  Brecht  aqui  delineada  se  dá  no 
abrandamento  de  uma  retórica  belicosa  contra  o  teatro  culinário. 
Trata‐se  de  entender  este  tipo  de  teatro,  ver  suas  limitações  para,  a 
seguir, proporcionar soluções para o encanto da emocionalidade. Ao 
invés  de  opor  diversão  e  espetáculo,  Brecht  defende  que  a  função 
mais nobre do teatro é a diversão.  
Como toda afetividade tem seu horizonte cognitivo, o que está 
em jogo não é a diversão, mas o predomínio de um modo de produção 
representacional. Há uma diversidade de prazeres, e engana‐se quem 
se acomoda pensando que o prazer dado pela representação dependa 
quase que exclusivamente do grau de semelhança entre a imagem e seu 
objeto,  a  chamada  identificação.  O  que  diverte  e  mantém  um  prazer 
possível  de  ser  representado  e  tornar‐se  espetáculo  é  um  processo 
marcado  de  diferenciação  por  meio  do  qual  a  referência  é  cada  vez 
mais  situada  e  individualizada  para  enfim  ser  relacionada  aos 
diversos  momentos  da  representação.  O  auditório  participa 
vivamente  distinguindo  a  inserção  das  referências  nos  momentos 
construtivos  do  espetáculo.  O  que  vê  e  sente  e  ouve  é  seu,  lhe 
pertence  como  algo  que  tomou  para  si  como  co‐intérprete,  co‐
realizador da cena. 
Transformando  referências  sucessivas  em  paradigmas  de 
orientação,  em  virtude  de  seu  diferencial  de  realização,  o  auditório 
ganha  ao  compreender  situações  díspares  que  proporcionam  uma 
convergência significativa. Pelo mundo representado, mundo intenso 
e  sujeito  ao  tempo  de  sua  possibilidade,  a  audiência  apodera‐se  da 
compreensão  do  espetáculo  e  não  das  figuras  sem  contexto  da 
realização. 
Daí é gerado um prazer outro, uma diversão mais complexa e 
integral,  presente  na  fruição  da  ética  particular  de  sua  época.  Vamos 
pensando  com  Brecht:  se  é  preciso  divertir,  que  se  divirta  também 
pelo saber, um saber que pertence a quem compreende o espetáculo 
como ficção, ficção tão singular como o mundo representado em cena. 
A  particularidade  histórica  representada,  ao  tornar  singulares  as 
circunstâncias em que agem atores com seus personagens, não só dá 
a  perspectiva  histórica  dos  acontecimentos  representados  como 
determina  a  aplicabilidade  da  representação.  A  historicidade  não  é 
tema  nem  cenário  mas  a  exigência  de  uma  refinamento  dos 
procedimentos  estéticos  frente  a  exigências  de  conhecimento  que 
impedem  qualquer  vôo  mágico  fácil.  O  diferencial  cognitivo  que 
desenvolve  uma  platéia  mais  livre  das  representações,  posto  que  as 
compreende  como  objetos  feitos  e  finitos,  ratifica  que    sem 
conhecimento  nada  se  pode  representar.  O  prazer  não  é  uma  catarse, 
mas  ato  de  uma  compreensão.  Você  só  chora  ou  clama  porque 
entendeu. A singularidade compreendida é prazeirosa como um jogo 
que se entende para ser jogado melhor. 
Note‐se como os antigos temas de Brecht são revisados. O que 
Brecht entendeu é que é preciso um tratamento mais teórico de seus 
problemas  de  conjuntura.  Continuando,  a  uma  teoria  do  espetáculo 
que  ultrapassa  oposição  entre  ficção  e  realidade,  corresponde  uma 
poética  do  espectador.  Sendo  a  peça  um  acontecimento  restrito,  do 
qual resulta um sentido específico, o auditório será defrontado com a 
natureza dos nexos que permite tal especificação. A peça apresentada 
com lucidez será recebida com igual lucidez. Há uma correlação entre 
a  produtividade  de  sentido  da  representação  e  a  construção  da 
platéia. O mundo representado figura a poética do espectador, sendo 
a interface entre a representação e a audiência. O convívio humano e 
a  objetividade  reinterpretada  esteticamente  em  cena  dramatizam  a 
compreensão dos acontecimentos dramatizados. A singularidade dos 
eventos  encenados  possibilita  a  ficção  e  sua  construtividade.  O 
dramaturgo,  ao  invés  de  substituir  “um  mundo  contraditório, 
imperfeito  e  mortal  por  um  mundo  harmonioso‐  um  mundo  que  o 
espectador  mal  conhece  por  outro  qual  se  pode  sonhar  somente”  – 
utiliza‐se  do  mundo  plausível  representado  para  fazer  a  poética  do 
espectador. 
É o que o conceito de Gestus procura evidenciar. Para Brecht é 
preciso  atualizar  em  palco  comportamentos  significativos  e 
relevantes  que  os  homens  adotam  diante  uns  dos  outros.  Cada 
acontecimento  comporta  um  Gestus  básico.  A  fisicidade  em  cena 
aponta  para  atos  como  fatos  extramentais  que  mostram 
posicionamentos  e  conceitos  frente  à  realidade  que  se  representa.  A 
fisicidade  do  Gestus  (toda  a  corporeidade  do  ator  relacionada  com  a 
representação singular dos acontecimentos ‐ características, atitudes, 
ações, palavras) rompe com a imitação psicológica que sobrecarregou 
o  teatro  literário,  motivando‐o  a  postular  a  unidade  de  ação  e  de 
caráter  das  personagens.  Daí  os  tipos  e  as  tramas.  Ao  invés  de  uma 
mímesis  psicológica,  o  princípio  do  Gestus  efetiva  não  só  a 
visualização  do  que  é  permitido  dentro  de  um  contexto  histórico 
como possibilita a ação que transforma esses contextos. A ação é uma 
concepção  e  não  um  impulso  frente  ao  senso  de  catástrofe.  Homens 
de carne e ossos investem seu agir nos processos pelos quais se vive. 
A marcação do Gestus só distingue e específica a ficção encenada. 
Dessa  forma  o  que  Brecht  objetiva  em  sua  teoria  histórica  da 
dramaturgia  é  revelar  o  horizonte  compreensivo  dos  atos  humanos 
na  representação.  Sendo  a  própria  representação  não  uma  mística 
transcendental, nem um aparato meramente técnico, ela mesma é um 
desses  atos  finitos  e  mundanos  impregnados  de  referências.  A  cena 
não é um não lugar. A extrema referencialidade dos atos humanos é 
interpretada pela composição e performance cênicas. Não é o mundo 
que  se  reduz  para  ser  contido  em  uma  figura,  mas  é  a  figura  que  se 
individualiza  ao  integrar  uma  estrutura  interpretativa  desse  mundo. 
Ao se valer das capacidades cotidianas de compreensão (observação, 
fisicidade,  memória,  debate)  a  cena  faculta  ao  espectador  uma 
experiência que torna mais inserida a representação e o contexto de 
sua realização.  
A provocativa afirmação de Brecht que nossas representações 
são  secundárias  em  relação  ao  que  está  sendo  representado  cifra  as 
implicações  de  sua  reorientação  em  direção  à  experiência  prévia  da 
audiência.  
 
ATIVIDADE 
Após ler e estudar o texto acima, ler “O pequeno Organon”e a 
peça  “Mãe  coragem”.  Em  seguida,  escreva  um  comentário  no  qual 
você venha a destacar como o estranhamento é produzido a partir da 
relação entre o texto “O pequeno Órganon”e “Mãe Coragem.”  
 
TEXTOS EXTRAS 
 Para  ler  mais  sobre  Brecht,  recomendamos:    “Brecht e o
Estranhamento no Teatro Chinês”, de Huang Zoulin, com tradução de
Robson Camargo31.
LINKS”
No youtube, há vídeos bem interessantes: 1- Brecht on Stage -
1/3, em três partes. Trata-se de documentário feito para a Open
University, e apresentado por Richard Bessel. Podemos ver algumas
imagens e sons de montagens de peças de Brecht, como Mãe Coragem.
Digitando “Mother Courage”, você tem acesso a vários vídeos, entre eles
uma montagem com Meryl Streep.
 
BIBLIOGRAFIA 
Há  uma  imensa  bibliografia  sobre  B.Brecht.32  Mas,  antes  de 
tudo, é preciso ler Brecht. Em português, temos uma coletânea básica 
                                                        
31
O texto está disponível em http://ufg.academia.edu/RobsonCamargo/Papers/76694/Brecht-e-o-
Estranhamento-no-Teatro-Chines---tradução-de-texto-de-Huang-Zuolin.
de  seus  ensaios:  Estudos sobre Teatro(Nova  Fronteira,  2005).    Uma 
boa  e  mais  completa  discussão  dos  conceitos  de  Brecht  pode  ser 
encontrada em Brecht:A estética do teatro(Graal,   1992),  de  Gerd 
Borheim.  Os  textos  teatrais  traduzidos  de  Brecht  foram  publicados 
pela editora Civilização Brasileira,  
 
 
 
 
 
 
MÓDULO 06 
GROTOWSKI: PESQUISA E TEATRO 
O  nome  de  J.  Grotowski(1933‐1999)  se  associa  a  grandes 
transformações  nas  artes  cênica  pós  segunda  guerra  mundial.  Para 
estudá‐lo, vamos iniciar nessa semana uma diferente metodologia. De 
trabalho  Ao  invés  de  termos  um  texto  introdutório  que  comenta 
diversos  aspectos  do  autor  que  vamos  estudar,  vamos  montar  essa 
aula a partir de vários materiais que aqui serão disponibilizados.  
Para  leitura,temos:1‐  os  seguintes  textos  de  Grotowski:  “Em 
busca  de  um  teatro  pobre”;”Da  companhia  Teatral  `a  arte  como 
veículo”; e “Sobre o método das ações físicas”; nestes textos o próprio 
Grotowski  analise  com  bastante  lucidez  o  seu  percurso  artístico 
intelectual. Em “Em busca de um teatro pobre”ele revê suas primeiras 
propostas,  o  contexto  quando  elas  foram  formuladas.  No  texto  “Da 
companhia  teatral  à  arte  como  veículo”podemos  acompanhar  a 
proposta  de  uma  diferente  maneira  de  se  conceber  a  atividade  do 
ator,  agora  não  mais  relacionada  a  espetáculos,  e  sim  como  um 
treinamento,  uma  auto‐compreensão.      No  terceiro  texto,  podemos 
acompanhar as diferenças de Grotowski em relação a Stanislaviski. 

                                                        
32
Um pequeno exemplo disso: www.volobuef.tripod.com/biblio_al_brecht.htm
2‐    a  dissertação    de  Melissa  da  Silva  Ferreira,  “Mitologia  e 
Ascese:J.Grotowski ‘Além do Teatro’, cujos primeiros capítulos(p. 15‐
45),  são  uma  introdução  ao  contexto  intelectual  e  artístico  de  J. 
Grotowski33.  
ATIVIDADE 
A  atividade  dessa  semana  será:  após  as  leituras  e  discussões 
dos  textos  disponibilizados,  com  o  objetivo  de  escrever  uma 
apresentação  comentada  das  idéias  de  Grotowski.  Não  se  trata  de 
fazer a biografia dele. Usem os textos disponibilizados. Leia os textos, 
faça  suas  anotações.  Veja  contra  que  tipo  de  teatro  Grotowski  se 
posiciona.  Perceba  o  que  ele  propõe.  Identifique  os  principais 
aspectos dessa proposta. E escreva um texto que expresse o que você 
entendeu a partir do estudo dos textos de Grotowski.  
 
LINKS 
Em  www.halifaxfarm.com/jeff/grotdir.htm  estão  disponíveis 
diversos textos e imagens de e sobre Grotowski. 
No youtube(www.youtube.com) há trechos de peças dirigidas 
por Grotowski, as quais são citadas nos textos lidos. Procure ver estes 
vídeos, como, por exemplo, “Training at Grotowski's "Laboratorium" in
Wrozlaw in 1972”, “Akropolis de Grotowski”, “El Principe Constante de
Jerzy Grotowski”.
BIBLIOGRAFIA
Para as fontes sobre Grotowski em português, temos: O Teatro
Laboratório de J. Grotowski(Perspectiva,2007) e Em busca de um teatro
pobre (Civilização Brasileira, 1987). Para a relação entre Jerzy Grotowski
e Eugenio Barba, há as cartas publicadas entre eles no livro A terra de
cinza e diamantes (Perspectiva, 2006). Um relato e reflexão sobre o
contato com o treinamento de Grotowski pode ser encontrado em A Ostra
e a Pérola, de Adriana Mariz (Perspectiva,2007).

                                                        
33
Defendida na UDESC, em 2009. Disponível em
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=135507
 
MÓDULO 07 
BECKETT:A HORA E A VEZ DA DRAMATURGIA 
 
O  dramaturgo  Samuel  Beckett  (1906‐1989)  mudou  o  modo 
como  pensamos  as  relações  entre  texto  teatral  e  cena.    Desde 
Esperando  Godot,  que  estreou  em  Paris  em  1953,  podemos 
acompanhar  uma  incessante  busca  renovação  tanto  daquilo  que  se 
mostra em palco como da própria teatralidade.Ações, formas, objetos 
e  comportamentos  antes  não  considerados  ‘teatrais’agora  são  a 
própria matéria da arte de  Beckett. Nessa semana, vamos retomar o 
método  desenvolvido  no  estudo  de  Grotowski:  alguns  textos  vão  ser 
aqui disponibilizados e, a partir desses textos, desse roteiro, você vai 
construir a sua compreensão do tópico da semana. 
 
Inicialmente,  vamos  ler  e  comentar  uma  peça  de  Beckett:  Ato
sem palavras I, em uma versão anotada, que comenta alguns aspectos 
da obra. 
 
 
 
ACT WITHOUT WORDS (1956)34 
 
Pantomima para um ator35. 
                                                        
34
Escrito em francês, 1956, com música de John Beckett, primo do autor. O
texto foi publicado pela primeira vez em Paris,em 1957. Foi traduzido pelo autor para o
inglês, tradução esta publicada pela Grove Press, Nova York, em 1958. A primeira
performance do texto se deu no Royal Court Theatre, em Londres, em 3 de abril de
1957.NT. Todas as notas seguintes são notas do tradutor. Vali-me do texto de Collected
Shorter Plays. Samuel Beckett. Grove Press, 1984. Esta é uma tradução provisória,
sujeita a revisões, realizada como material de estudo para o curso de Drama Tecnique,
por mim ministrado na Flórida University State, em 2008. Material integrante do site
www.marcusmota.com.br. Agradecimentos ao professor Stanley Gontarski pela
resolução de algumas dúvidas. Para uma visualização do texto, v.
www.english.ilstu.edu/351/hypertext98/pugliese/repurposing/kpbio.html. Tradução feita
em 2008, na Flórida University State.
35
O texto original está repleto de referências e terminologia teatrais. Desde o
título, onde temos ‘Act Without Words’, passando pelo subtítulo, “A Mime For One
Samuel Beckett 
 
 
Deserto. Luz ofuscante36. 
Um homem é lançado para o palco, vindo da direita ao fundo37. 
Ele cai, levanta‐se de imediato, tira o pó de si, coloca‐se em paralelo e 
põe‐se a pensar38. 
Ele assobia, a partir do canto direito da cena39. 
Ele se põe a pensar e depois vai saindo de onde havia entrado. 
De imediato ele é lançado de volta para o palco, levanta‐se de 
imediato, tira o pó de si, coloca‐se em paralelo e põe‐se a pensar. 
Ele assobia, a partir do canto direito da cena. 
Ele  põe‐se  a  pensar,  vai  em  direção  do  canto  esquerdo  da 
cena,hesita, avalia mais,pára, coloca‐se em paralelo e põe‐se a pensar.  
Uma  árvore  pequena  desce  de  cima,  suspensa,  para  a 
superfície  do  palco40.  A  árvore  possui  um  galho  simples  que  fica  a 
                                                        
Player”. Assim, desde já se enuncia a dimensão metateatral do espetáculo, o espetáculo
expondo-se como espetáculo. O subtítulo, além de ampliar a informação sobre o modo
de composição do espetáculo, explicita o estilo de sua interpretação. ‘Act’ tanto refere-
se a uma das divisões de um espetáculo, segundo a dramaturgia clássica,(lembre-se que
há peças de um ato só), quanto atualiza o campo de atividades,ações, atos, atuações
desempenhos que corresponde exercício do ator. O projeto existente no título encontra-se
presente em obras como as Lieder ohne Worte (Canções sem palavras), F. Mendelssohn,
escritas entre 1830 e 1845, agrupadas em oito volumes com seis canções cada,
perfazendo um total de 48 canções.
36
A primeira linha do texto marca o espaço de atuação e de encenação. A
referência direta à iluminação indica não só à cenotécnica, mas um elemento de cena que
será utilizado posteriormente.
37
NT. No original ‘The man’. Em razão do jogo entre determinação e
indeterminação da personagem (ele não tem um nome, mas tem um nome –homem), ele
é este e todos, em alguns momentos, para evitar ambigüidades pronominais
improdutivas, reatualizei ‘homem’ no lugar de ‘ele’.
38
NT. Com a entrada do ‘anônimo ator’, enunciada no subtítulo, temos a
ativação da materialidade de cena. O texto da peça é uma rubrica dos atos exibidos e dos
lugares da cena. Daí seu detalhamento. Os atos da figura em cena muitas vezes se
fundem com a exposição da materialidade do espaço da cena. Isso fica bem patente na
recorrente da expressão “He turns aside”. A expressão poderia ser traduzida como ‘Ele se
vira de lado’. Mas que lado? Para reduzir a ambigüidade,optei por traduzir por uma
imagem vinda de A poética do Espaço, de Gaston Bachelard, que correlaciona o homem
com a porta entre aberta. A posição do agente em cena é uma figura essa entre-abertura,
pois ele nem está defronte do público, nem ao mesmo tempo completamente exposto
para audiência. Ele atua e não atua, ele funde a tensão entre o ator e a personagem. Daí
ele se encontrar em situação de ‘suspensão’, de ‘ponto morto’.
39
NT. No original ‘left wing’. É bem marcada no texto a materialidade do
teatro.
quase três metros de altura do chão41 e na parte de cima uma moita 
de  poucos  galhos  e  folhas,  que  projeta  para  sua  base  um  círculo  de 
sombra. 
O homem continua a pensar. 
Um assobio vindo de cima. 
Ele se vira, vê a árvore, anda na direção dela, senta‐se sobre a 
sua sombra, olha para as suas mãos. 
Uma tesoura de alfaiate desce de cima, suspensa, vindo a ficar 
na frente da árvore, a quase um metro do chão. 
Ele continua a olhar para suas mãos. 
Um assobio vindo de cima. 
Ele busca com os olhos, vê a tesoura, pega o objeto, e começa a 
aparar suas unhas. 
Os  galhos  se  fecham  como  uma  sombrinha,  a  sombra 
desaparece. 
Um  pequeno  jarro  d’água,  no  qual  está  afixado  um  grande 
rótulo  com  os  dizeres  “Água”,  desce  de  cima,  suspenso,  até  ficar  a 
quase três metros do chão, onde permanece em atrativo balanço. 
Ele continua a pensar. 
Um assobio vindo de cima. 
Ele  busca  com  os  olhos,  vê  o  pequeno  jarro  d’água,ergue‐
se,anda  e  pára  debaixo  dele,  tenta  em  vão  pegar  o  objeto,  desiste, 
coloca‐se em paralelo e põe‐ se a pensar. 
Um cubo grande desce de cima, suspenso, para a superfície do 
palco. 
Ele continua a pensar. 
Um assobio vindo de cima. 
                                                        
40
Nt. Novamente a materialidade do palco. No original temos ‘from flies’.
Trata-se de vocabulário cenotécnico que designa o espaço acima do proscênio onde fica
o sistema de cordas que eleva e abaixa estruturas ou objetos. Aqui traduzimos por ‘para
cima’, apagando um pouco o senso técnico, mas inserindo a questão do infinito, do céu,
como contra-espaço do homem, diante da potência anônima que se manifesta em seus
jogos e torturas.
41
NT. A materialidade da cena é acompanhada pelo detalhamento. No original
temos ‘some three yards’. Yard vale 3 feets. Cada feet, 30,5 centímetros. Yard = 0,914
m. Quase um metro
O  homem  se  vira,  vê  o  cubo,  olha  para  ele,  para  o  pequeno 
jarro  d’água,  pensa,  anda  em  direção  ao  cubo,ergue‐o,  carrega‐o, 
coloca‐o  sob  o  jarro  d’água,  testa  a  estabilidade  do  cubo,  sobe  nele, 
tenta em vão pegar o jarro, desiste, desce do cubo, carrega o cubo de 
volta  de  onde  o  havia  retirado,  coloca‐se  em  paralelo  e  põe‐se  a 
pensar.  
Um  segundo  cubo,  menor,  desce  de  cima,  suspenso,  para  a 
superfície do palco. 
Ele continua a pensar. 
Um assobio vindo de cima. 
Ele  se  vira,  vê  o  segundo  cubo,olha  para  ele,para  o  jarro,anda 
em direção ao segundo cubo, ergue‐o, carrega‐o, coloca‐o sob o jarro, 
testa  a  estabilidade  do  cubo,sobe  nele,  tenta  em  vão  pegar  o 
jarro,desiste,  desce  do  cubo,  carrega  o  segundo  cubo  de  volta, 
hesita,avalia melhor,coloca no chão o cubo, anda na direção do cubo 
grande,ergue‐o,carrega‐o,  coloca‐o  sobre  o  menor,  testa  a 
estabilidade,sobe neles, o arranjo dos cubos desmorona, o homem cai, 
levanta‐se de imediato, afasta‐se e põe‐se a pensar. 
Ele  ergue  o  cubo  pequeno,coloca‐o  sobre  o  maior,  testa  a 
estabilidade,  sobe  neles  e  quando  está  prestes  a  alcançar  o  jarro,  o 
jarro  é  puxado  para  cima  um  pouco,ficando  assim  além  de  seu 
alcance. 
Ele desce, põe‐se a pensar, carrega os cubos para o lugar onde 
estavam, um de cada vez, fica em paralelo e põe‐se a pensar. 
Um terceiro e ainda menor cubo desce de cima, suspenso, em 
direção à superfície do palco. 
Ele continua a pensar. 
Um assobio de cima. 
Ele  se  vira,  vê  o  terceiro  cubo,olha  para  ele,  põe‐se  a  pensar, 
fica em paralelo, põe‐se a pensar. 
O terceiro cubo é puxado pra cima e desaparece. 
Junto  do  jarro,  desce  uma  corda,  suspensa,  com  nós  para 
auxiliar a escalada. 
Ele continua a pensar. 
Assobio de cima. 
Ele  se  vira,vê  a  corda,põe‐se  a  pensar,anda  na  direção  dela, 
sobe na corda e quando está prestes a alcançar o jarro, a corda é solta, 
e ele cai de costas no chão. 
Ele põe‐se a pensar,procura em volta pela tesoura, encontra a 
tesoura, anda em direção dela, recolhe‐a, vai para a corda e começa a 
cortar a corda com a tesoura. 
A  corda  é  puxada  para  cima,erguendo  o  homem,ele 
dependurado  na  corda,  cortando‐a,até  romper  a  corda,  e  cair  de 
costas  no  chão,largar  a  tesoura,  levantar‐se  de  imediato,  afasta‐se  e 
põe‐se a pensar. 
A corda é puxada pra cima bem rápido e desaparece. 
Do pedaço de corda que sobrou o homem faz um laço e tenta 
laçar o jarro. 
O jarro é puxado para cima e desaparece. 
O homem fica em paralelo e põe‐se a pensar. 
Ele  vai  com  o  laço  em  sua  mão  para  a  árvore,  olha  para  o 
galho,vira‐se e olha para os cubos, olha novamente para o galho,larga 
o laço, anda em direção aos cubos,ergue o menor, carrega o cubo e o 
deixa sob o galho, anda de volta na direção do cubo maior,ergue‐o e o 
carrega, deixando‐o sob o galho,tenta colocar o cubo grande sobre o 
maior,  hesita,  avalia  melhor,  coloca  o  maior  embaixo,  o  menor  em 
cima,  testa  a  estabilidade  disso,  coloca‐se  em  paralelo  e  pára  para 
pegar  o  laço  do  chão.  O  galho  envolve‐se  no  tronco.  O  homem 
endireita‐se, o galho em suas mãos, vira‐se e vê o que aconteceu. 
Ele deixa cair o laço, coloca‐se em paralelo e põe‐se a pensar. 
Ele carrega de volta os cubos para o lugar onde estavam, um de 
cada  vez,  anda  em  direção  ao  laço,  coloca‐o  sobre  os  cubos, 
enrodilhando‐o em cima do cubo menor. 
Ele se coloca em paralelo e põe‐se a pensar. 
Assovio vindo da direita ao fundo. 
Ele pensa, e vai pra sua saída à direita. 
De  imediato  ele  é  arremessado  para  o  palco,  então  levanta‐se 
de imediato, afasta‐se, coloca‐se em paralelo, e põe‐se a pensar. 
Assobio vindo da esquerda ao fundo. 
Ele não se move nada. 
Ele olha para suas mãos, procura com os olhos a tesoura, vê a 
tesoura, anda e pega a tesoura, começa a aparar suas unhas,pára, põe‐
se a pensa, passa o dedo na lâmina da tesoura, anda e deixa a tesoura 
sobre  o  cubo  pequeno,  coloca‐se  em  paralelo,  abre  a  gola  de  sua 
camisa,  movimenta  seu  pescoço  com  liberdade,  e  toca  nele  com  um 
dedo seu. 
O  cubo  pequeno  é  puxado  para  cima  e  desaparece,  levando 
com ele o laço e a tesoura. Ele se vira para pegar a tesoura e percebe o 
que aconteceu. 
Ele fica em paralelo, e põe‐se a pensar. 
Ele vai e se senta sobre o cubo grande. 
O cubo é puxado pra cima do homem. O homem cai. O cubo é 
puxado pra cima e desaparece. 
O  homem  permanece  onde  está,  seu  rosto  voltado  para  a 
audiência, frente a frente com ele. 
O jarro desce de cima e repousa a quase um metro do corpo do 
homem42. 
O homem não se move nada. 
Assovio vindo de cima. 
Em seguida o jarro desce, balança‐se atrativamente brincando 
bem em frente do rosto do homem. 
 O homem não se move nada. 
O jarro é puxado pra cima e desaparece. 

                                                        
42
NT. “a few feet from his body.”
O  galho  fica  na  horizontal  novamente,  os  ramos  se  abrem,  a 
sombra retorna. 
Assovio vindo de cima. 
O homem não se move nada. 
A árvore é puxada pra cima e desaparece. 
Ele olha para suas mãos. 
 
 
Cortina. 
 
 
COMENTÁRIOS 
Em  um  primeiro  momento,  o  nosso  conceito  de  texto  teatral 
mais  conhecido  entra  em  choque  o  conceito  que  Ato  sem  palavras  I 
exibe.  De  início,  não  há  diálogos.  Ninguém  fala  ou  conversa  nessa 
peça.  O  que  temos  é  somente  rubrica,  ou  informações  sobre  ações  e 
objetos  apresentados  em  cena.  Aquilo  que  antes  seria  considerado 
‘texto  secundário’  agora  é  o  texto  principal.  A  audiovisualidade  da 
obra,  marcada  pelas  rubricas,  é  mais  importante  que  alguns 
conteúdos profundos e impactantes.  
Em seguida, parece que nada acontece além de repetições. Há 
uma série de rotinas, de atos que descritos. Parece até que qualquer 
pode  escrever  um  texto  assim.  É,  mais  antes  de  Beckett,  ninguém 
tinha  levado  ao  extremo  essa  redução  do  universo  apresentado  em 
cena a algumas ações básicas e repetidas.  
Continuando,  há  uma  série  de  referências  que  projetam 
algumas  expectativas  que  não  são  completadas  ou  definidas:  temos 
um  espaço  onde  as  coisas  acontecem,  marcado  como  um  deserto 
causticante na rubrica, mas não há mais informações. Como agente e 
paciente dos eventos em cena temo alguém apenas apresentado como 
“homem”.  O  espaço  de  cena  é  revelado  como  um  palco,  e  não  como 
suporte para um cenário.  O “Homem”luta com uma inominada força 
ou  figura  que  se  deixa  perceber  apenas  nos  efeitos,  nas  reações  de 
“Homem”no  palco.  Ou  seja,  tudo  é  indicado  em  alguns  detalhes 
suficientes apenas para direcionar nossos sentidos para algo reduzido 
ao  que  se  mostra.  O  que  lemos  parece  e  não  parece  com  um  texto 
teatral. Aproxima‐se mais de um roteiro de filme mudo, de uma lista 
de compras.   
ATIVIDADE 
Seguindo  este  estranhamento,  leia  o  texto  de  S.Gontarski  “O 
corpo  no  corpo  de  Beckett”,  para  ampliar  sua  compreensão  da 
proposta de S. Beckett.  Você vai perceber a coerência do que Beckett 
busca. Há a possibilidade de se fazer teatro a partir do conceito, das 
expectativas que as pessoas têm do que venha a ser um evento cênico. 
A maioria das pessoas espera uma trama, atores materializando essa 
trama  do  começo  ao  fim  do  espetáculo,  atores  dentro  de  um  espaço 
que  contextualize  essa  trama,  atores  agindo  e  se  comportando  em 
função    de  diversas  personagens  que  essa  trama  exige.    Beckett 
trabalha  no  sentido  de  negar  essas  expectativas.  É  um  tipo  de 
proposta.  
Entendo  isso,  escreva  um  comentário  sobre  o  conceito  ou  as 
expectativas  de  espetáculo  que  são  negadas  a  partir  de  Ato  sem 
palavras I.  
 
LINKS 
No  youtube(www.youtube.com),  temos  vários  vídeos  de 
montagem  de  obras  de  Beckett,  como  Esperando  Godot(Waiting 
Godot),  Play,  Endgame,  Breath,  Act  Without  Words  I  e  II,  Ohio 
Impromptu, Not I, What Where, Catastrophe. 
 
BIBLIOGRAFIA 
Entre  livros,  temos:  Samuel  Beckett  (Perspectiva,  2004),  de 
Célia  Berretine;  O  Parto  de  Godot  e  outras  encenações 
imagináraas(Hucitec,  1999).  Traduções  de  textos  teatrais  de 
S.Beckett:  Esperando  Godot(Cosaic&Naif,  2005),  Fim  de 
Partida(Cosaic&Naif, 2002).  
 
 
LINKS 
Em  www.samuel‐beckett.net/Act_Without_Words.html, 
podemos  encontrar  o  texto  original  de  Ato  Sem  Palavras  I  ilustrado 
com imagens. Ainda, clicando no ícone no topo da página, você pode 
ouvir a música composta para essa peça. 
 
 
MÓDULO 08 
MOMENTOS FINAIS: REVISÃO E PROJEÇÕES

Nesta última semana, você vai se preparar para a avaliação escrita


prova. Para tanto revise os textos produzidos previamente. Observe os
comentários dos tutores, reveja seu percurso durante o curso. Faça
anotações a partir dessa releitura de sua produção no curso. Procure
registrar o que você aprendeu, os autores, conceitos e contextos de
momentos fundamentais do teatro no século XX. Fazendo isso você vai
estar se preparando bem para a avaliação final. Boa sorte.

Você também pode gostar