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Ficha Técnica

Título original: The Diviners


Título: Os Adivinhos
Autor: Martha E. Bray
Editora: Cristina Lourenço
Tradução: Carmo Vasconcelos Romão
Revisão: Fernando Milheiro
Capa: Margarida Rolo
ISBN: 9789892324708

Edições ASA II, S.A.


uma editora do Grupo LeYa
R. Cidade de Córdova, n.º 2
2160-038 Alfragide – Portugal
Tel.: (+351) 214 272 200
Fax: (+351) 214 272 201

© Martha E. Bray, 2013


Publicado pela primeira vez por Little, Brown & C.ª.
uma marca da Hachette Book Group, Inc.
Direitos de tradução por acordo de Barry Goldbartt Literary LLC.
e Sandra Bruna Agencia Literaria S. L.
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Para a minha mãe, Nancy Bray que, com o seu exemplo,
me ensinou a gostar de ler.
E que monstruosa besta, tendo chegado a sua hora,
se arrasta até Belém para nascer?
– A Segunda Vinda, William Butler Yeats
UMA TARDE NO FINAL DO VERÃO

As luzes estão todas acesas numa casa de uma rua elegante do Upper East
Side de Manhattan. Está a decorrer uma festa – a última do verão. No
terraço sobranceiro à incandescente linha do horizonte, a orquestra faz um
intervalo há muito ansiado. São dez e meia. A festa dura desde as oito horas
e os convidados sentem-se já aborrecidos. Debutantes envergando elegantes
vestidos de chiffon em tons pastel murchavam nas cadeiras de couro como
petits fours sob o sol de julho. Um atrevido estudante da Universidade de
Princeton quer que os amigos o acompanhem a Greenwich Village a um
speakeasy1 de que ouviu falar a um amigo de um amigo.
A anfitriã, uma jovem bonita e mimada, repara na inquietação dos
convidados com uma sensação de pânico. É o seu décimo oitavo aniversário
e se não fizer alguma coisa para erguer a festa dos mortos, nos próximos
dias toda a gente dirá que esta foi mais aborrecida que uma reunião
paroquial.
Erguer dos mortos.
No fim de semana anterior fora obrigada a ir com a mãe ao Norte à
procura de antiguidades – uma coisa terrivelmente enfadonha, até terem
encontrado um velho tabuleiro de Ouija. As tábuas de Ouija são o último
grito da moda. Os videntes afirmam receber mensagens e avisos do além
usando a «tábua falante» do Dr. Fuld. O antiquário convencera a mãe de
que recebera o tabuleiro em circunstâncias misteriosas.
– Dizem que ainda está assombrado por espíritos inquietos. Mas talvez a
senhora e a sua irmã consigam acalmá-los – dissera com exagerada lisonja;
naturalmente que resultara com a mãe, que pagara afinal um preço
excessivo pela coisa. Pois bem, pagaria agora pelo erro que cometera.
A anfitriã corre para o roupeiro do corredor e faz sinal à criada.
– Faz-me um favor e vai buscar aquilo.
A criada entrega-lhe a tábua abanando a cabeça.
– A menina não devia brincar com esse tabuleiro.
– Não sejas parva. És uma antiquada.
Com uma volta rápida própria de Clara Bow2, a anfitriã irrompe pela sala
com o tabuleiro de Ouija.
– Quem quer comunicar com os espíritos? – pergunta com uma
gargalhadinha, para mostrar que não levava o assunto a sério. Afinal era,
sem dúvida alguma, uma menina moderna dos anos vinte.
As jovens murchas saltam dos cadeirões.
– Mas o que tens aí? Um tabuleiro de Ouija? – pergunta uma delas.
– É verdade, querida! A minha mãe comprou-o para mim. Parece que está
assombrado – declara a anfitriã a rir. – Mas claro que não acredito. –
Coloca o indicador em forma de coração no meio do tabuleiro. – Vamos
então conjurar qualquer coisa para nos divertirmos.
Todos a rodeiam. George coloca-se ao lado dela. Estuda em Yale. Está no
terceiro ano. E ela passou já muitas noites acordada no quarto a imaginar o
futuro com ele.
– Quem quer começar? – pergunta encostando os dedos aos dele.
– Eu – anuncia um rapaz com um fez ridículo. Não se lembra de como ele
se chama, mas ouviu dizer que tem o hábito de convidar raparigas para a
marmelada no seu descapotável. Fecha os olhos e pousa os dedos no vidro
do indicador. – Uma pergunta eterna: a menina do meu lado direito estará
loucamente apaixonada por mim?
As raparigas soltam gritinhos histéricos e os rapazes riem enquanto o
indicador indica lentamente as letras S-I-M.
– Mentira! – exclama zangada a menina em questão, olhando o indicador
em forma de coração com a sua lente de vidro.
– Não desminta, minha querida, eu seria seu sem pedir nada em troca –
declara o rapaz.
Cresce o entusiasmo; as perguntas tornam-se mais ousadas.
Embriagaram-se com gim, com o divertimento e com a tola distração de
adivinhar o futuro. Every mornin’, every evenin’, ain’t we got fun?3
– Olhem, vamos chamar um espírito verdadeiro – desafia George.
Um nó de emoção e desassossego aperta o estômago da anfitriã. O
antiquário acautelara-a para não o fazer. Avisara-a de que os espíritos
chamados deveriam ser devolvidos ao seu descanso cortando a ligação,
dizendo-lhes adeus. Mas tentava ganhar dinheiro e além do mais, está-se em
1926 – quem acredita em assombrações e duendes quando há automóveis,
aviões, o Cotton Club e homens como Jake Marlowe a fazer avançar a
América através da indústria?
– Não me digas que estás com medo! – George ri, trocista. Tem uma boca
cruel, o que o faz ainda mais desejável.
– Medo de quê?
– De que o gim se acabe! – brinca o rapaz do fez e toda a gente ri.
George murmura-lhe ao ouvido «Eu olho por ti», com a mão nas costas
dela.
Oh, com certeza, esta é a noite mais fantástica!
– Conjuramos agora o espírito deste tabuleiro para que nos escute e fale
do nosso futuro! – exclama a anfitriã com grande entoação, entrecortada por
risadas. – Tens de obedecer, espírito!
Há uma pausa e logo a seguir o indicador começa uma lenta migração
pelas letras góticas do alfabeto, formando uma palavra.
O-L-Á
– É o espírito – afirma alguém em tom de troça.
– Como te chamas, ó grande espírito? – insiste a anfitriã.
O indicador movimenta-se rapidamente.
J-O-H-N-P-E-R-V-E-R-S-O
George ergue uma sobrancelha com ar atrevido.
– Pois olhem que estou a gostar. Porque és perverso, rapaz?
V-Ã-O-V-E-R
– Ver o quê? Que vais fazer, ó perverso?
Nada.
– Quero ir dançar! Vamos para o Moonglow – pede em voz arrastada uma
jovem embriagada, já a fazer beicinho. – Afinal, quando volta a banda?
– Daqui a pouco, não te preocupes – diz a anfitriã com um sorriso e uma
gargalhada, porém, com alguma cautela. – Vamos tentar outra pergunta.
Tens alguma profecia para nós, John Perverso? Alguma previsão para o
futuro? – Olha de soslaio para George.
O indicador mantém-se imóvel.
– Diz-nos qualquer coisa, vá lá.
Por fim, há movimento no tabuleiro.
– Eu… ensino-vos… medo – lê a anfitriã em voz alta.
– Parece o diretor de Choate – troça o rapaz do fez. – Como vais fazer
isso, amigo?
E-S-T-O-U-À-P-O-R-T-A-E-B-A-T-O
S-O-U-A-B-E-S-T-A
O-D-R-A-G-O-N-O
– O que quer isso dizer? – pergunta a jovem embriagada, recuando
ligeiramente.
– Não quer dizer nada. São tolices – diz a anfitriã repreendendo a
convidada, mas sentindo algum receio. Volta-se para o rapaz que tem a
reputação de arranjar sarilhos. – Estás a fazer com que diga isto!
– Não. Juro! – afirma, fazendo uma cruz sobre o coração com o indicador.
– Porque estás aqui, amigo? – pergunta George ao tabuleiro.
O indicador movimenta-se tão depressa que mal o podem acompanhar.
G-U-A-R-D-O-A-S-C-H-A-V-E-S-D-O-I-N-F-E-R-N-O-E-D-A-M-O-R-
T-E
C-H-E-G-O-U-A-I-R-A-A-R-M-A-G-E-D-Ã-O-P-R-O-S-T-I-T-U-T-A-D-
A-B-A-B-I-L-Ó-N-I-A
– Para imediatamente! – grita a anfitriã.
P-R-O-S-T-I-T-U-T-A-P-R-O-S-T-I-T-U-T-A-P-R-O-S-T-I-T-U-T-A
repete o indicador. Os jovens inteligentes retiram os dedos, mas o indicador
continua a mover-se.
– Faz com que pare, faz com que pare! – guincha uma rapariga e até os
rapazes enfadados empalidecem e se afastam.
– Para espírito! Para, já te disse! – grita a anfitriã.
O indicador imobiliza-se. Os convidados da festa olham uns para os
outros com olhos assustados. Na outra sala, os membros da banda pegam de
novo nos instrumentos e atacam uma dança animada.
– Oh, aleluia! Venha meu querido, vou ensiná-lo a dançar o black bottom.
– A rapariga embriagada põe-se de pé com alguma dificuldade e leva o
rapaz de fez atrás de si.
– Esperem! Temos de escrever «adeus» no tabuleiro. É esse o ritual! –
implora a anfitriã, mas os convidados começam a debandar.
George passa-lhe o braço em redor da cintura.
– Não me digas que tens medo do John Perverso.
– Bom, eu…
– Sabes perfeitamente que foi ali o nosso amigo – diz acariciando-lhe
suavemente a orelha com o hálito. – Tem os seus truques. Sabes como são
as pessoas como ele.
Ela sabe como são as pessoas como ele. Foi provavelmente esse rapaz
horroroso que quis troçar deles. Mas dela ninguém faz troça. Já tem dezoito
anos. A vida será um turbilhão infinito de festas e bailes. Night or daytime,
it’s all playtime. Ain’t we got fun? Sentiu acalmarem-se os seus primeiros
receios. A festa parecia animar-se e continuar noite dentro. As carpetes
foram enroladas e os convidados dançavam entusiasmados. As longas
fiadas de pérolas batiam de encontro aos vestidos de cintura descaída. As
polainas atacam desafiadoras o chão de madeira. Os braços agitavam-se no
ar – tudo isto como se uma febril pintura dadaísta tivesse acordado para a
vida.
A anfitriã esconde o tabuleiro no armário, onde em breve será esquecido e
corre para a sala com as suas brilhantes lâmpadas elétricas – a moderna
maravilha do Sr. Edison – e junta-se descuidada à última festa do verão.
Lá fora, o vento detém-se por momentos nessas janelas iluminadas;
depois, com uma rajada enérgica, parte a toda a pressa pelos passeios.
Entrelaça-se brevemente nas cloches4 de duas jovens que tagarelam acerca
da trágica morte de Rodolfo Valentino enquanto passeiam um caniche junto
ao rio East. Avança pelos desfiladeiros ensopados em néon, pelo comboio
aéreo, passando ruidosamente pela Segunda Avenida, abanando as janelas
das pobres almas que tentam dormir antes que chegue a manhã – a manhã
com as buzinas dos táxis, os tróleis e os comboios; os engraxadores polindo
os sapatos de atacadores dos empresários de Union Square; os ardinas
apregoando os títulos em Times Square; as telefonistas lançando olhares
cobiçosos aos novos casacos de gola tipo xaile que as tentavam das
montras, os majestosos arranha-céus erguendo-se acima de tudo como
deuses de aço, tijolo e vidro.
O vento passeia-se brevemente diante de um clube de jazz, escutando este
novo estilo musical que exalta a noite. Vibra com o som dos metais, a
percussão enérgica dos acordes do piano, nascidos dos blues e do ragtime,
os ritmos sincopados que refletem a emoção recortada do horizonte da
cidade.
Em Bowery, na carcaça ornamentada de um teatro de vaudeville, tem
lugar uma sonolenta maratona de dança. Os concorrentes, raparigas novas e
respetivos acompanhantes, apoiam-se uns nos outros, decididos a que
reparem neles para poderem chegar aos sonhos que lhes foram vendidos
pelos anúncios dos jornais e da rádio. Têm bolhas nos pés, mas estrelas nos
olhos. Já na parte alta da cidade, o Great White Way, assim chamado pela
ofuscante incandescência das luzes dos teatros, esvazia-se de clientes.
Alguns habitués das portas dos artistas esperam nos becos, na esperança de
avistarem as glamorosas coristas ou de terem a sorte de conseguir o
autógrafo de uma das muitas estrelas da Broadway. Estamos em época de
celebridades, de fama, de fortuna e ganância e os jovens ardem em
ambições secretas.
O vento de tudo se apercebe com indiferença. É apenas o vento. Não se
transformará numa estrela da rádio ou num capitão de indústria. Não se
apresentará como candidato a um cargo público nem se apaixonará por
Douglas Fairbanks, também não cantará as canções de Tin Pan Alley,
canções de saudade e arrependimento, a recordar os bons tempos (ain’t we
got fun?). E assim segue viagem, passando pelos matadouros da Rua 14,
pelas infelizes que se vendem nas ruelas escuras. Ali perto, a Estátua da
Liberdade ergue a sua tocha sobre o porto, um farol para todos os que
chegam a estas costas fugidos de perseguições, fome ou desespero.
O vento rodopia pelos edifícios da Rua Orchard, onde morrem tantos
sonhos de gente com estrelas nos olhos e onde nascem outros sonhos dentro
da miséria e da pobreza numa subida monte acima. Açoita a roupa
estendida nas cordas entre os prédios, passa sobre ruas sujas e esburacadas
onde, a esta mesma hora, crianças famintas procuram comida nos caixotes
do lixo. O vento existe para sempre. Já viu muito neste país de sonhos e
anúncios de sabão, antigos horrores e sangue derramado. Fez de testemunha
muda às suas bruxas queimadas nas fogueiras e percorreu o Caminho das
Lágrimas5; viu os navios de escravos despejarem nos portos a sua carga
humana, assustada e pestanejando, tendo por únicas posses um desgosto
que nunca a abandonaria. O vento estava presente quando o presidente
Lincoln caiu sob a bala de um assassino. Cheirava a pólvora e a Antietam6.
Correu com os búfalos e experimentou poisar os dedos nos chapéus negros
dos puritanos. Transportou gritos de amor e transformou em trilhos de sal as
lágrimas que corriam em incontáveis rostos.
O vento saltita pela Bowery e investe pelo West Side, domicílio dos
gangues irlandeses como os Dummy Boys, que andam a cavalo pela Nona
Avenida avisando os contrabandistas de bebidas alcoólicas. Rodopia ao
longo do poderoso rio Hudson, passa pela vibrante vida noturna do Harlem
com os seus grandes pensadores, escritores e músicos, para ir descansar
junto às ruínas de uma velha mansão. Tábuas bolorentas cobrem as janelas
partidas. O lixo entope a sarjeta da frente. Antigamente a casa era a
residência de um mal indescritível. Agora é uma relíquia de uma época
passada, esquecida na sombra da prosperidade e crescimento da cidade.
A porta range nos gonzos. O vento entra cauteloso. Rasteja por estreitos
corredores em voltas estonteantes. Quartos defuntos, podres de incúria,
ramificam-se à esquerda e à direita. As portas abrem-se em paredes de
tijolo. Um alçapão dá para uma rampa que termina numa vasta câmara de
horrores subterrânea e num quarto ainda mais assustador. Ainda fede: a
sangue, a urina, a mal e a um medo tão negro que se tornou parte da casa,
tal como a madeira, os pregos e a decomposição.
Alguma coisa se agita nas sombras profundas, uma coisa terrível, e o
vento que conhece o mal recua e abandona este lugar. Foge para a
segurança dos magníficos prédios altos que prometem os céus azuis,
nothing but blue skies, do futuro, da indústria e da prosperidade; o futuro
que não acredita no mal do passado. Se o vento fosse uma sentinela, daria o
alarme. Soltaria um grito de aviso para os terrores futuros. Mas é apenas o
vento, ciente de que ninguém ouve os seus gritos.
Nas profundezas da cave da casa em ruínas, uma fornalha acorda para a
vida com o estertor da morte semelhante à tosse amarga de um moribundo,
que ri desdenhoso do seu destino. Um leve brilho emana desse túmulo de
terra, escuro e fétido. Sim, algo se mexe de novo nas sombras. O prenúncio
de um mal futuro, muito maior. John Perverso chegou a casa. E tem
trabalho a fazer.
1 Local de venda e consumo ilegal de bebidas alcoólicas durante a Lei Seca dos Estados Unidos da
América. (N. da T.)

2 Atriz do cinema mudo e dos princípios do cinema sonoro (1905-1965). (N. da T.)
3 Letra de um foxtrot dos anos 1920. (N. da T.)

4 Chapéu feminino, geralmente de feltro, de copa hemisférica e aba muito estreita, usado nos anos
1920. (N. da T.)

5 Nome dado pelos índios às migrações forçadas, impostas pelo governo dos EUA às diversas
tribos que seriam reunidas no chamado «Território Indígena» (atual estado de Oklahoma). (N. da
T.)

6 A Batalha de Antietam ou de Sharpsburg foi a primeira grande batalha da Guerra Civil


Americana. Nela perderam a vida 23 000 americanos. (N. da T.)
EVIE O’NEILL, ZENITH, OHIO

Evie colocou um saco mole de gelo na testa latejante e amaldiçoou as horas.


Era meio-dia, mas bem poderiam ser seis da manhã pelo latejar da sua
cabeça. Nos vinte minutos anteriores o pai sarrazinara-a acerca da festa da
noite anterior no Hotel Zenith. Mencionara várias vezes o facto de ela ter
bebido, bem como a brincadeira na fonte da cidade. E os problemas que
houvera entre as duas coisas, claro. Ia ser um dia terrível e de que maneira.
A cabeça apenas lhe fazia estes pedidos: Água. Aspirina. Por favor, não
fales.
– Eu e a tua mãe não concordamos que bebas. Não ouviste falar da
Décima Oitava Emenda?
– A Lei Seca? Bebo à saúde dela sempre que posso.
– Evangeline Mary O’Neill! – exclamou a mãe.
– A tua mãe é secretária da Sociedade Feminina de Temperança de
Zenith. Já pensaste nisso? Já pensaste como ficaria mal se a filha fosse
encontrada a divertir-se na rua, completamente embriagada?
Evie voltou os olhos doridos na direção da mãe. Esta estava sentada,
muito direita, com os lábios apertados, o cabelo comprido recolhido na
nuca. Um par de óculos na ponta do nariz. As mulheres Fitzgerald eram
todas de pequena estatura, louras, de olhos azuis e desesperadamente
míopes.
– Então? – vociferou o pai. – Não tens nada a dizer?
– Pois, espero não precisar nunca de usar óculos – resmungou Evie.
A mãe respondeu com um suspiro cansado. Parecia mais pequena e mais
gasta desde a morte de James, como se aquele longínquo telegrama do
Ministério da Guerra lhe tivesse roubado a alma no momento em que o
abrira.
– Vocês os jovens parecem tratar tudo como uma piada, não é verdade?
Lá começava o pai: responsabilidade, dever cívico, portares-te de acordo
com a tua idade, pensar para além do dia de amanhã. Já conhecia o refrão.
Evie precisava de beber qualquer coisa alcoólica para curar a ressaca, mas
os pais já lhe haviam surripiado o frasco de bolso. Era um frasco estupendo
– de prata, com as iniciais de Charles Warren gravadas. Querido Charlie,
era amoroso. Ela prometera ser namorada dele. Durara uma semana. Charlie
era um querido, mas também incrivelmente chato. A ideia de marmelada
era poisar rigidamente a mão no peito da rapariga, como um naperão com
goma sobre a mesa de uma tia solteirona, enquanto lhe dava beijinhos na
boca, semelhantes a bicadas. Quelle tragédie.
– Evie, estás a ouvir-me? – O pai tinha uma expressão zangada.
Evie conseguiu sorrir.
– Sempre, paizinho.
– Porque disseste aquelas coisas terríveis acerca do Harold Brodie?
Pela primeira vez Evie franziu a testa.
– Ele mereceu.
– Acusaste-o de… de… – O pai gaguejava com o rosto corado.
– De engravidar aquela pobre rapariga?
– Evangeline! – exclamou a mãe, sufocada.
– Perdão. «De se aproveitar dela e de a deixar de esperanças.»
– Porque não podes ser mais...... – A mãe hesitava, mas Evie conseguiu
terminar a frase. Porque não podes ser mais parecida com o James?
– Morta, quer a mãe dizer? – respondeu bruscamente.
O rosto da mãe pareceu amarfanhar-se e Evie detestou-se um pouco por
isso.
– Basta Evangeline – avisou-a o pai.
Evie baixou a cabeça latejante.
– Desculpe.
– Penso que deves saber que, a menos que apresentes desculpas públicas,
os Brodie ameaçaram processar-te por difamação.
– O quê? Não vou pedir desculpas! – Ergueu-se tão rapidamente que a
sua cabeça latejou ainda mais e teve de se sentar de novo. – Disse a
verdade.
– Estavas a brincar…
– Não era uma brincadeira!
– Uma brincadeira que te arranjou um sarilho…
– O Harold Brodie é um miserável e um devasso. Faz batota às cartas e
todas as semanas mete uma rapariga diferente no carro. Aquele
descapotável é, positivamente, um palácio para a marmelada. E, ainda por
cima, beija horrorosamente.
Os pais de Evie olhavam-na num silêncio atónito.
– Pelo menos foi o que ouvi dizer.
– Podes provar as tuas acusações? – insistiu o pai.
Não podia. Não podia, sem lhes revelar o seu segredo, e não podia
arriscar-se a fazê-lo.
– Não vou pedir desculpas.
A mãe de Evie aclarou a garganta.
– Há outra opção.
Evie olhou primeiro para a mãe, depois para o pai e novamente para a
mãe.
– Também não me vou meter numa escola militar.
– Nenhuma escola militar te aceitaria – resmungou o pai. – Que tal ires
para Nova Iorque durante uns tempos, para casa do teu tio Will?
– Eu...... hã... para Manhattan?
– Calculámos que te recusasses a pedir desculpas – disse a mãe
apresentando a última solução. – Falei com o meu irmão esta manhã. Ele
aceita-te.
Ele aceita-te. Menos um peso. Um ato de caridade. O tio Will não devia
ter podido defender-se da irmã em relação à atribuição das culpas.
– Só por uns meses – continuou o pai. – Até que toda esta situação se
resolva.
Nova Iorque. Bares clandestinos e compras. Teatro na Broadway e
cinemas enormes. À noite podia ir dançar ao Cotton Club. Passaria os dias
com Mabel Rose, a sua querida Mabesie, que vivia no prédio do tio Will.
Tinham-se conhecido com nove anos aquando da visita de Evie e da mãe a
Nova Iorque. Desde aí, as duas jovens escreviam-se. No último ano, a
correspondência de Evie limitara-se a um bilhete aqui, outro ali, embora
Mabel continuasse consistentemente a escrever cartas, principalmente
acerca de Jericho, o bem-parecido secretário do tio Will que alternadamente
descrevia como «pintado por pinceladas de anjos» e «uma terra distante
onde espero chegar». Sim, Mabel precisava dela. E Evie precisava de Nova
Iorque para se poder reinventar. Para ser alguém.
Sentiu-se tentada a soltar um sim apressado, mas conhecia bem a mãe. Se
Evie não aparentasse estar a sofrer um insuportável castigo, para «aprender
bem a lição», ficaria para sempre em Zenith e ver-se-ia, afinal, obrigada a
pedir desculpas a Harold Brodie.
Suspirou e deixou correr a quantidade necessária de lágrimas... se fossem
de mais, poderiam arrepender-se.
– Suponho que seja uma solução sensata. Embora não saiba o que possa
fazer em Manhattan com um tio solteirão como pau de cabeleira, depois de
deixar todos os meus amigos aqui em Zenith.
– Devias ter pensado nisso antes – disse a mãe com um maldoso sorriso
de triunfo moral desenhado nos lábios.
Evie ocultou um sorriso. Foi canja, pensou.
O pai olhou para o relógio.
– Há um comboio às cinco horas. Será melhor começares a fazer as
malas.

***

Evie e o pai dirigiram-se para a estação em silêncio. Normalmente andar no


Lincoln Boattail Roadster do pai era um motivo de orgulho. Era o único
descapotável em Zenith, o melhor de todos do negócio de venda de
automóveis do pai. Mas naquele dia não desejava ser vista. Queria ser tão
inconsequente como os fantasmas que lhe povoavam os sonhos. Por vezes,
depois de beber, sentia-se assim – a vergonha pela sua última façanha
entrelaçava-se na raiva contida pelo modo como a gente insignificante da
pequena cidade a fazia sentir. «Oh, Evie, tu és de mais», diziam com um
sorriso delicado. Não era um elogio.
Era de mais – para Zenith, Ohio. Várias vezes tentara fazer-se mais
pequena, para quase caber nos contornos ordenados daquilo que dela
esperavam. Mas, fosse como fosse, conseguia sempre dizer ou fazer
qualquer coisa ofensiva – aceitava o desafio para subir a um poste, dizia
uma piada um pouco inconveniente, ou andava de carro com rapazes – e, de
repente, era de novo «aquela horrível miúda dos O’Neill».
Levou instintivamente os dedos à moeda que trazia em redor do pescoço.
Era meio dólar que o irmão lhe enviara «de lá», durante a guerra, um
presente pelo seu nono aniversário, no dia em que morrera. Recordava-se
do telegrama do Ministério da Guerra, entregue pelo pobre Sr. Smith dos
telegramas, que murmurou uma desculpa quando o trouxera. Recordava-se
de ver a mãe soltar um pequeno grito estrangulado, ainda a amarfanhar o
papel amarelado com as impiedosas letras negras. Recordava-se do pai
sentado às escuras no escritório, muito tempo depois da hora em que
costumava deitar-se, com uma garrafa de uísque ilegal sobre a secretária.
Mais tarde, Evie lera o telegrama: LAMENTAMOS INFORMAR... SOLDADO JAMES
XAVIER O’NEILL... MORTO EM COMBATE ALEMANHA... SÚBITO ATAQUE
MADRUGADA... DEU VIDA AO SERVIÇO DA PÁTRIA... SECRETÁRIO DA GUERRA
APRESENTA SUAS MAIS PROFUNDAS CONDOLÊNCIAS PELA PERDA VOSSO FILHO...
Passaram por uma charrete que ia a caminho de uma das quintas à saída
da cidade. Parecia estranha e deslocada. Ou talvez fosse ela que estava
deslocada.
– Evie – disse o pai na sua voz suave. – O que aconteceu na festa,
querida?
A festa. A princípio fora estupenda. Ela, Louise e Dottie estavam lindas.
Dottie emprestara a Evie uma tiara de cristal, que ficava tão elegante nos
seus caracóis macios. Tinham desfrutado de um debate acalorado, mas
pouco significativo, acerca do julgamento do Sr. Scopes no Tennessee no
ano anterior e a ideia geral de que a humanidade descendia dos macacos.
«Não me custa nada acreditar», dissera Evie, atiradiça, lançando olhares aos
universitários que tinham acabado de cantar pela décima segunda vez «The
Sweetheart of Sigma Chi». Depois Harold viera cantar-lhe cheio de lisonja.
– Hello, ma baby; hello ma honey; hello ma Evie gal – cantara, e fizera-
lhe uma vénia.
Harry era lindo e encantador e, apesar do que Evie dissera anteriormente,
beijava muito bem. Quando Harry gostava de uma rapariga, essa rapariga
era notada. Evie gostava de ser notada, principalmente quando bebia. Harry
estava prestes a ficar noivo de Norma Wallingford. Não estava apaixonado
por Norma – Evie sabia-o – mas sim pela conta bancária da jovem, e todos
sabiam que se casariam logo que ele acabasse o curso. Porém, ainda estava
solteiro.
– Já te disse que tinha poderes especiais? – perguntara-lhe Evie depois da
terceira bebida.
Harry sorriu.
– Estou a ver que sim.
– Falo muito a sério – disse ela em voz arrastada, demasiado tonta para
recusar o desafio. – Posso contar-te os teus segredos segurando um objeto
que te seja querido e concentrando-me nele. – Ouviram-se gargalhadinhas
educadas entre os convidados. Evie lançou-lhes um olhar de desafio, com
os olhos brilhando sob as pestanas pesadamente pintadas. – Estou, po-si-ti-
va-men-te, a falar a sério.
– Estás, po-si-ti-va-men-te, muito alegre, Evie O’Neill! – gritou Dottie.
– Vou provar. Norma, dá-me uma coisa qualquer... um lenço, um alfinete
de chapéu, uma luva.
– Não te dou coisa alguma. Podes não ma devolver – disse Norma a rir.
Evie semicerrou os olhos.
– Sim, sei como tu és esperta, Norma. Vou começar uma coleção de luvas
da mão direita. É tão burguês usar duas.
– Certamente não quererás fazer uma coisa vulgar, pois não, Evie? –
perguntou Norma, mostrando os dentes. Todos riram e Evie sentiu as faces
a arder.
– Não. Deixo isso para ti, Norma. – Evie afastou o cabelo do rosto, mas
ele voltou a cair-lhe para os olhos. – Pensando bem, provavelmente os teus
segredos poriam toda a gente a dormir.
– Pronto – dissera Harold, antes que as coisas aquecessem. – Aqui está o
meu anel de curso. Diga-me os meus mais profundos e obscuros segredos,
Madame O’Neill.
– Homem de coragem que entrega a uma rapariga como a Evie o seu
anel! – exclamou alguém.
– Silêncio, s’il vou plaît! – ordenou Evie dando à voz um tom dramático.
Concentrou-se, aguardando que o objeto aquecesse nas suas mãos. Umas
vezes acontecia, outras não. Pela alma de Rodolfo Valentino esperava que
fosse uma das vezes em que acontecesse. Mais tarde teria uma dor de
cabeça do esforço – era o contraponto deste seu pequeno dom – mas era
para isso que servia o gim. De qualquer forma já se anestesiara um pouco.
Abriu levemente um olho. Todos a observavam. Todos a observavam e nada
acontecia.
A rir, Harry estendeu a mão para o anel.
– Pronto, miúda. Já te divertiste. Agora trata de te pôr sóbria.
Evie retirou as mãos.
– Vou revelar os teus segredos… espera e verás! – Na opinião de Evie,
havia poucas coisas piores do que ser vulgar. A vulgaridade era para os
vigaristas. Evie queria ser especial. Uma estrela brilhante. Para ela não
tinha qualquer importância ficar com a maior dor de cabeça da história das
ressacas. Fechou os olhos e apertou com força o anel entre as mãos, o que o
fez aquecer e revelar-lhe os segredos. Esboçou um largo sorriso e abriu os
olhos.
– Harry, seu atrevido…
Todos se aproximaram, interessados.
Harold riu pouco à vontade.
– Que queres dizer com isso?
– Quarto vinte e dois no hotel. Aquela empregada bonitinha… L… El…
Ella! Ella! Deste-lhe uma boa maquia e disseste-lhe que tratasse do assunto.
Norma aproximou-se.
– Que história é esta, Harry?
Harry apertou os lábios.
– Com certeza que não sei do que estás a falar, Evangeline. Acabou o
espetáculo. Devolve-me o anel.
Se Evie estivesse sóbria, teria parado por ali. Mas o gim tornara-a
estupidamente corajosa. Afastou-o com a ponta dos dedos.
– Engravidaste-a, meu velhaco.
– Harold, isto é verdade?
O rosto de Harold Brodie ficou vermelho.
– Basta, Evie! Não tem graça nenhuma.
– Harold? – insistiu Norma Wallingford.
– Ela está a mentir, amor – garantiu Harold.
Evie levantou-se e tamborilou um charleston sobre a mesa.
– Não é o que diz o teu anel, amigo.
Harold tentou agarrar Evie, mas esta deu um grito e afastou-se,
arrancando um copo da mão de outra pessoa.
– Valha-nos Deus! Um ataque! Um ataque do Harry Brodie! Fujam ou
morrem!
Dottie pegara no anel e devolvera-o a Harry. Depois ela e Louise tinham
praticamente arrastado Evie para o exterior.
– Miúda, estás bêbeda. Vamos embora.
– Mantenho-me imperturbável diante de problemas advur... advars...
adversos. Oh, estamos a andar. Viva! Para onde vamos?
– Pôr-te sóbria – disse Dottie, atirando Evie para dentro da fonte.
Mais tarde, depois de várias chávenas de café, Evie tremia no seu
encharcado vestido de festa, enrolada num cobertor num canto escuro da
casa de banho. Dottie e Louise tinham ido buscar aspirina e, sozinha e
escondida, conseguiu ouvir duas jovens que bisbilhotavam diante dos
espelhos de molduras douradas, acerca da discussão em que Harold e
Norma se tinham envolvido.
– A culpa é toda dessa horrorosa Evie O’Neill. Sabes como ela é.
– Nunca sabe quando deve parar.
– Bem, agora está acabada nesta cidade. A Norma vai tratar do assunto.
Evie esperou que saíssem e dirigiu-se ao espelho. O rímel tinha-lhe
deixado enormes manchas negras debaixo dos olhos e os caracóis húmidos
estavam escorridos. A dor de cabeça era enorme. Estava um farrapo e o seu
aspeto não enganava. Apetecia-lhe chorar, mas chorar não adiantaria.
Harold entrou de rompante fechando a porta atrás de si e segurando-a.
– Como descobriste? – vociferou, agarrando-a por um braço.
– Já t...te disse. F...foi pelo teu...
Harold apertou-lhe mais o braço.
– Deixa-te de brincadeiras e diz-me como sabes! A Norma ameaçou
deixar-me, graças ao teu truquezinho. Exijo desculpas públicas para limpar
o meu nome.
Evie sentia-se tonta e enjoada, os efeitos secundários da sua leitura
através de um objeto. Parecia uma bebedeira má, seguida da pior ressaca
que se pudesse imaginar. Apercebia-se de que Harold Brodie não era um
playboy encantador. Era um canalha e um cobarde. A última coisa que faria
era pedir desculpas a uma pessoa como ele.
– Vai b…bugiar, Harry.
Dottie e Louise bateram à porta com toda a força.
– Evie? Evie! Abre a porta!
Harold soltou-lhe o braço. Evie percebeu que lhe deixara uma nódoa
negra.
– Isto não acabou, Evangeline. O teu pai deve o seu negócio ao meu pai.
Talvez queiras reconsiderar esse pedido de desculpas.
Evie vomitou para cima de Harold Brodie.

– Evie? – insistiu o pai, trazendo-a de volta ao presente.


Evie esfregou a cabeça dorida.
– Não foi nada, paizinho. Lamento que esta bosta o tenha atingido.
O pai não se zangou por ela ter dito bosta.
Na estação, o pai deixou o motor a trabalhar para a levar à gare. Deu uma
gorjeta ao bagageiro para lhe levar as malas e garantir que seriam entregues
no apartamento do tio em Nova Iorque. Evie apenas levava consigo uma
maleta de xadrez e uma carteira de contas.
– Bem – disse o pai, olhando para o descapotável parado. Entregou-lhe
uma nota de dez dólares que Evie meteu na fita da sua cloche cinzenta. –
Para as primeiras despesas.
– Obrigada, paizinho.
– Não sirvo para despedidas, bem sabes.
Evie forçou um sorriso de quero-lá-saber.
– Claro. Tudo bem, paizinho. Tenho dezassete anos. Não tenho sete.
– Bem.
Ficaram pouco à vontade na gare.
– Não deixes que a carripana se vá embora sem ti – disse apontando com
a cabeça para o descapotável.
O pai beijou-a ao de leve na testa e, depois de mais uma advertência ao
bagageiro, afastou-se. Quando o Lincoln se transformou num ponto ao
fundo da estrada, Evie sentiu uma ferroada de tristeza e de mais alguma
coisa. Horror. Era essa a palavra. Um medo desconhecido, inominável.
Havia meses que o sentia, desde que os sonhos começaram.
– Man, I got those heebie jeebie blues… – cantou Evie baixinho e
estremeceu.
Dois puritanos, sentados no banco ao lado, olharam com ar de reprovação
para o comprimento do vestido de Evie, que lhe dava pelo joelho. Evie
resolveu fazer um verdadeiro espetáculo. Subiu a saia e, cantando com
desenvoltura, enrolou as meias e expôs as pernas. Teve o efeito desejado
nos puritanos que decidiram percorrer a gare, queixando-se da «desgraça
dos jovens». Não teria saudades daquela terra.
Um pequeno carro creme guinou perigosamente ao subir a estrada, quase
chocando contra a gare. Dele saíram duas jovens bem-vestidas. Evie sorriu
e acenou com força.
– Dottie! Louise!
– Soubemos que te ias embora e quisemo-nos despedir – disse Louise
passando por cima do corrimão.
– As boas notícias sabem-se logo.
– Nesta cidade? Parece que voam.
– Ótimo. De qualquer forma, sou grande de mais para Zenith, Ohio. Em
Nova Iorque compreendem-me. O meu nome vai aparecer em todos os
jornais e vou ser convidada para os cocktails no apartamento dos Fitzgerald.
Afinal, a minha mãe é uma Fitzgerald. Temos de ser aparentados algures.
– Por falar em cocktails… – A sorrir Dottie retirou da carteira o que
parecia ser um inocente tubo de aspirina. Estava quase cheio de um líquido
límpido. – Tens aqui uma coisinha para te animar. Desculpa não ser mais,
mas o meu pai agora marca as garrafas.
– Oh, e um exemplar da Photoplay do cabeleireiro. A tia Mildred não vai
dar por falta dela – acrescentou Louise.
Os olhos de Evie encheram-se de lágrimas.
– Não se importam de ser vistas com a pária da cidade?
Louise e Dottie conseguiram esboçar fracos sorrisos – confirmação de
que Evie era, de facto a pária da cidade, mas mesmo assim tinham vindo.
– São uns anjos de primeira ordem. Se fosse o Papa, canonizava-as!
– Nova Iorque! – Louise torceu o seu longo colar de pérolas. – A Norma
Wallingford vai roer-se toda de inveja. Está pior que estragada com a tua
façanha.
Dottie soltou uma gargalhada.
– Diz lá, como soubeste da história do Harold e da empregada de quartos?
O sorriso de Evie hesitou por momentos.
– Foi sorte, acho eu.
– Mas…
– Olha! Lá vem o comboio – disse Evie, interrompendo o interrogatório.
Abraçou as amigas com força, grata por aquela última generosidade. – Da
próxima vez que nos encontrarmos, serei famosa! E vou levar-vos a passear
por Zenith no meu novo descapotável com motorista.
– Da próxima vez que nos encontrarmos, estarás a ser julgada por um
crime qualquer! – declarou Dottie a rir.
Evie sorriu.
– Desde que saibam o meu nome.
Um bagageiro fardado de azul apressava as pessoas a entrarem. Evie
instalou-se no seu compartimento. Era abafado e pôs-se de pé sobre o
assento com os seus sapatinhos verdes acetinados de presilha, para poder
abrir a janela.
– Precisa de ajuda, menina? – perguntou um bagageiro mais jovem.
Evie fitou-o através das pestanas que enchera de rímel nessa manhã e
ofereceu-lhe todo o poder do seu sorriso pintado a vermelho.
– Oh, por favor, meu querido, seria estupendo.
– A menina vai para Nova Iorque?
– Hummm, exato. Ganhei um concurso de Miss Fato de Banho e vou
agora para Nova Iorque para ser fotografada para a Vanity Fair.
– Mas que maravilha!
– É verdade, não acha? – Evie bateu as pestanas. – E a janela?
O jovem soltou os fechos e baixou a janela com toda a facilidade.
– Pronto, menina.
– Muito obrigada – sussurrou Evie. Ia a caminho. Em Nova Iorque
poderia ser quem desejasse. Era uma cidade grande, um lugar para grandes
sonhadores que precisassem de brilhar.
Evie meteu a cabeça pela janela do comboio e acenou a Louise e Dottie.
Os caracóis cobriram-lhe o rosto enquanto a cidade sonolenta ficava para
trás. Por instantes, desejou correr de volta para a segurança da casa dos
pais. Mas tratava-se apenas do nevoeiro dos seus sonhos. A casa estava
morta – estava-o havia anos. Não. Não ficaria triste. Seria importante e
deslumbrante. Uma verdadeira estrela. A luz brilhante de Nova Iorque.
– Até breve! – gritou.
– Podes apostar!
As amigas iam-se transformando em pequenos pontos de cor na distância
enevoada. Evie soprou-lhes beijos e tentou não chorar. Acenava lentamente
à passagem dos telhados de Zenith, Ohio, onde as pessoas gostavam de se
sentir seguras e aconchegadas, onde mexiam em objetos das mais variadas
maneiras e nunca se apercebiam dos segredos que não deveriam ser
conhecidos nem tinham pesadelos terríveis com os irmãos mortos.
Invejava-as um pouco.
– Vai ficar aí durante toda a viagem, menina? – perguntou o bagageiro.
– Só quero despedir-me como deve ser – respondeu Evie. Voltou a mão
numa última bênção, acenando às casas como uma rainha.
– Adeus, idiotas! Estão todos enganados!
MEMPHIS CAMPBELL,
HARLEM, NOVA IORQUE

Era manhã no Harlem, e as manhãs pertenciam aos corredores de apostas7.


Desde o lado norte da Rua 130 até à Rua 160, desde a Avenida Amsterdam
no West Side diretamente até à Avenida Park a leste, dezenas de corredores
vigiavam o bairro, prontos para escrever nos seus papelinhos os palpites dos
clientes e correrem com essas esperançosas combinações numéricas até aos
«banqueiros» que operavam nas salas das traseiras das lojas de tabaco e das
barbearias, nos speakeasies e nas caves dos prédios. Tudo isso tinha de
acontecer antes das dez da manhã, quando a câmara de compensação em
Wall Street publicava o número financeiro diário e alguém acertava numa
entre mil probabilidades e ganhava tudo ou, o que era mais provável,
perdia. Raramente acabava por ser a favor do Harlem, mas, mesmo assim,
as pessoas jogavam, na esperança de que um dia a sorte mudasse.
Memphis Campbell, de dezassete anos, estava encarrapitado no seu lugar,
por baixo de um candeeiro de rua, na esquina entre a Avenida Lenox e a
Rua 135, perto da entrada do metro, angariando clientes que seguiam para o
emprego. Mantinha-se alerta por causa da polícia, enquanto escrevinhava os
vários papelinhos:
– Sim, menina Jackson, quinze cêntimos no quarenta e quatro, onze e
vinte e dois. Certo.
«Um dólar no número da morte, embora lamente saber que o primo da
sua tia se finou.»
«Bem, se o senhor viu o número num sonho, seria uma loucura não jogar
nele.»
Os números rodeavam-nos, padrões à espera de serem descobertos e
transformados em riqueza, a sorte surgida do nada – de hinos, cartazes,
casamentos, funerais, nascimentos, caixas de fósforos, corridas de cavalos,
comboios, profissões, irmandades e sonhos. Principalmente sonhos.
Memphis não gostava de pensar nos seus sonhos. Pelo menos
ultimamente.
Quando a multidão que seguia para o trabalho diminuiu, ele recebia as
apostas nos átrios dos prédios, metendo os papelinhos numa bolsa de
cabedal que escondia na meia para o caso de ser revistado. Parou no Salão
de Beleza DeLuxe, que fazia um ótimo negócio em penteados e má-língua.
– Eu disse-lhe que posso ser uma especialista em cabelos, mas não faço
milagres! – A Sr.ª Jordan, proprietária do salão deliciava as clientes que
riam à gargalhada. – Olá, Memphis. Como estás?
As senhoras sentaram-se direitas.
– Meu Deus! O rapaz é belo como um faraó – comentou uma das jovens
abanando-se com uma revista. – Tens namorada, querido?
– Em todos os quarteirões! – respondeu a Sr.ª Jordan a rir.
Memphis sabia que era bonito. Tinha um metro e oitenta, ombros largos,
maçãs do rosto salientes graças a algum sangue taino8. Floyd, da Barbearia
Floyd, cortava-lhe o cabelo curto e macio e o Sr. Levine, alfaiate, garantia
que os fatos lhe ficavam bem. Mas era no sorriso de Memphis que todas
reparavam em primeiro lugar. Quando Memphis Campbell decidia servir-se
de todo o seu encanto, começava sempre por sorrir: tímido a princípio,
depois largo e cintilante, acompanhado por um olhar de cachorrinho a que
até mesmo a sua tia Octavia por vezes não conseguia resistir.
Memphis usava agora o seu sorriso.
– Minhas senhoras, está a fazer-se tarde.
– Pois está. – A Sr.ª Jordan trabalhava com o pente de alisar no cabelo da
mulher sentada na cadeira. – Põe aí os meus números do costume.
Descobri-os num livro de interpretação de sonhos. Vou ser rica, mais tarde
ou mais cedo.
– Vais ficar falida, mais tarde ou mais cedo – declarou em tom de desdém
uma mulher gorda, que lia um exemplar do New Amsterdam News.
A Sr.ª Jordan apontou-lhe o pente de alisar.
– Vais ver que um dia há de compensar. Não é verdade, Memphis?
Memphis acenou afirmativamente.
– Na semana passada soube de um homem que usou a mesma
combinação durante um ano. Ganhou uma pipa de massa – disse. Memphis
pensou mais uma vez no seu sonho inquietante. Talvez afinal significasse
alguma coisa. Talvez fosse um presságio de boa sorte, e não de azar. –
Diga-me uma coisa, senhora Jordan, esse livro fala em encruzilhadas ou em
tempestades?
– Oh! Uma tempestade significa entrada de dinheiro, penso que uma
tempestade é o cinquenta e quatro.
– Nem pouco mais ou menos. Uma tempestade é uma morte próxima. E
deve jogar-se no onze.
As senhoras começaram a discutir as várias interpretações dos sonhos e as
possíveis combinações numéricas. Não conseguiam chegar a acordo acerca
da resposta certa. Em parte era o que tornava o jogo tão emocionante...
todas essas possibilidades.
– E um olho com um raio por baixo? – perguntou Memphis.
A Sr.ª Jordan fez uma pausa, ainda com o pente de alisar no cabelo da
cliente.
– De facto, não sei. Mas talvez alguém possa dizer-te. Porque perguntas,
querido?
Memphis apercebeu-se de que estava a franzir o sobrolho. Descontraiu-se
e esboçou o tal sorriso encantador que todas esperavam dele.
– Ora, foi só uma coisa que vi num sonho.
A cliente irritou-se.
– Au, Fifi! Vai queimar-me o couro cabeludo com esse pente de alisar!
– Nada disso. O problema é que a sua cabeça é demasiado sensível.
– Muito bom dia a todas, minhas senhoras. Espero que saia o vosso
número – disse Memphis, apressando-se a sair.
Por cima do Harlem, as matinais nuvens cinzentas transformavam-se em
farripas, revelando o céu de um azul perfeito, quando Memphis passou pelo
Lenox Drugstore onde ele e o irmão mais novo, Isaiah, gostavam de parar
para comer hambúrgueres e conversar com o dono, o Sr. Reggie.
Atravessou a rua para evitar a Funerária Merrick, mas não conseguiu apagar
a recordação. Vinha-lhe de dentro, com força suficiente para lhe impedir a
respiração.
A mãe deitada no caixão aberto, coberta de lírios do vale, as mãos
cruzadas no peito. Isaiah perguntando: «Quando é que a mãe acorda,
Memphis? Não vai acordar a tempo da festa e estas pessoas vieram para a
ver.» O pai sentado na cadeira de verga, a olhar para as mãos enormes de
tocar trompete, enquanto os acompanhantes do funeral choravam e
gritavam e alguém cantou: «Swing Low, Sweet Chariot.» A sensação da
terra nos dedos de Memphis enquanto lançava os torrões para a sepultura. A
pancada seca na tampa do caixão, o caráter definitivo desse som. Recordou-
se do pai a arrumar tudo no apartamento da Rua 145 e a mandar Memphis e
Isaiah para partilharem o quarto das traseiras da casa da tia Octavia uns
quarteirões mais adiante em direção à parte alta da cidade, enquanto ia para
Chicago em busca de trabalho. Prometera mandá-los buscar assim que
estivesse instalado. Havia já dois anos, dez meses e quinze dias e
continuavam a partilhar o quartinho das traseiras em casa da tia Octavia.
Memphis pegou numa garrafa de leite de uma prateleira e bebeu um gole
enorme como se quisesse afugentar o passado. Sentia a inquietação picar-
lhe a pele, uma sensação de que o mundo ia ser dilacerado. E tinha a certeza
de que teria a ver com o seu sonho.
Durante duas semanas a fio fora o mesmo: uma encruzilhada. Um corvo
voando na sua direção a partir de um campo. O céu a escurecer e nuvens de
poeira erguendo-se na estrada adiante do que estava para vir. E o símbolo –
sempre o símbolo. Chegava a ter medo de adormecer.
Lembrou-se de repente de uma frase. Memphis sabia que, se não a
escrevesse imediatamente desapareceria. Por isso parou e rabiscou aqueles
pequenos versos em dois papelinhos em branco e meteu-os noutro bolso.
Mais tarde, quando conseguiu dirigir-se ao cemitério, onde gostava de
escrever, copiá-los-ia para o caderno de capa de cabedal onde assentava os
seus poemas e histórias.
Memphis dobrou a esquina. O cego Bill Johnson estava sentado num
degrau com a sua viola e o chapéu aos pés, com algumas moedas de pouco
valor espalhadas pelo forro gasto.
– Met a man on a dark road, he had a mark upon his hand – cantava no
sussurro grave que era a sua voz. – Met a man on a dark road, he had a
mark upon his hand. Said the storm’s a-coming, rain down hard upon the
land9. – Quando Memphis passou, o cego Bill chamou:
– Senhor Campbell! Senhor Campbell! É o senhor?
– Sou. Como sabe?
O velho franziu o nariz.
– O Floyd é bom com a tesoura, mas o fixador que usa, acordava um
morto. – Soltou uma gargalhada rouca. Tocou com os dedos nas moedas
que estavam dentro do chapéu até encontrar uma de vinte cêntimos. –
Ponha vinte cêntimos no meu número, senhor Campbell. Um, sete, nove.
Vá já. Faça isso pelo velho cego Bill – disse apressado.
Memphis queria dizer-lhe que deveria guardar o dinheiro para outras
coisas. Todos sabiam que Bill vivia na Missão do Exército de Salvação e
por vezes nas ruas, quando estava bom tempo. Mas não lhe competia dizer
o que quer que fosse, por isso meteu as moedas no bolso e rabiscou o
papelinho.
– Sim, senhor. Vou tratar disso.
– Só preciso que a sorte mude, mais nada.
– E não precisamos todos? – disse Memphis e seguiu adiante.
Atrás dele, o cego pegou de novo na viola para cantar acerca de homens
sombrios em estradas escuras e negócios feitos sob céus sem lua. Embora
estivessem no coração da cidade com os seus comboios ruidosos e passeios
movimentados, Memphis sentiu um estranho aperto no estômago.
– Memphis! – chamou outro corredor do fundo da rua. – Despacha-te!
São quase dez horas!
Memphis esqueceu os seus pesadelos. Atirou a garrafa de leite vazia para
um caixote do lixo, pôs a sacola ao ombro e correu pela rua em direção ao
Hotsy Totsy, à espera que surgisse o número do dia.
Um corvo crocitou sobre um candeeiro de iluminação pública. O cego
Bill calou a sua canção e ficou à escuta, tenso. A ave crocitou mais uma
vez. Depois bateu as asas brilhantes e lançou uma sombra sobre os passos
de Memphis Campbell.
7 Numbers runners: pessoas que levavam as apostas e o dinheiro de uma lotaria ilegal, que tinha
lugar nos bairros mais pobres das cidades americanas. (N. da T.)

8 Indígenas pré-colombianos. (N. da T.)

9 «Encontrei-me com um homem numa estrada escura, tinha um sinal na mão. Disse que se
aproximava uma tempestade e que muita chuva cairia na terra.» (N. da T.)
O MUSEU DOS ARREPIOS

Evie desembarcou do comboio com uma onda de bagageiros e revisores


com quem jogara póquer desde Pittsburgh até Pennsylvania Station. Tinha
na sua posse vinte dólares, três novas direções na sua agenda de cabedal
castanho e um boné de bagageiro, que colocara sobre os caracóis louros
num ângulo atrevido.
– Adeus rapazes! Foi estupendo.
O revisor, um rapaz de vinte e dois anos, inclinou-se na escada da
carruagem.
– Vais escrever-me, não vais meu amor?
– Claro que sim. Assim que praticar a minha caligrafia – mentiu Evie. –
A minha tia está à minha espera. É cega, por isso será melhor ir a correr ter
com ela. Pobre tia Martha.
– Pensei que se chamava Gertrude.
– Gertrude e Martha. São gémeas e cegas, as duas, coitadas, coitadinhas.
Adeus! – com o coração aos saltos, Evie subiu a correr as escadas da gare.
Nova Iorque... finalmente!
O telegrama do tio Will fora bastante específico. Deveria chamar um táxi
à saída da estação na Oitava Avenida e dizer ao motorista que a levasse ao
Museu Americano do Folclore, Superstição e Ocultismo na Rua 68 junto ao
lado oeste do Central Park. Evie tinha a certeza de que não custaria nada.
Agora na agitação de Pennsylvania Station sentia-se um pouco perdida.
Enganou-se duas vezes e, por fim, foi ter a uma sala enorme, com janelas
em arco do chão ao teto e um relógio gigante cujos ponteiros em filigrana
lembravam aos passageiros de que o tempo voava, tal como os comboios.
Perto dela, uma mulher muito elegante com um casaco de zibelina até aos
pés, apesar do calor, levava atrás de si uma multidão cada vez maior de
admiradores e fotógrafos.
– Quem é – perguntou rapidamente Evie a um dos admiradores.
Este encolheu os ombros.
– Não sei. Mas o agente dela pagou-me um dólar para ficar aqui e olhar
para ela de boca aberta como se fosse a Gloria Swanson. Foi o dinheiro
mais fácil que já ganhei.
Evie apressou-se a acompanhar o movimento da multidão e quase
exterminou um ardina que apregoava o Daily News.
– Valentino envenenado? Leiam! Conspiração anarquista desmantelada!
Professor transforma-se em macaco por causa da evolução! Leia tudo aqui!
Só dois cêntimos! O jornal, menina?
– Não. Obrigada.
– Belo chapéu. – Piscou o olho e Evie lembrou-se do boné do revisor.
Havia um espelho pendurado na montra de uma farmácia e Evie deteve-se
aí para arranjar o cabelo e substituir o boné do bagageiro pela sua cloche
cinzenta, voltando a cabeça para a esquerda e para a direita para se
assegurar que estava no seu melhor. Pegou na nota de vinte dólares que
ganhara ao póquer e, depois de um momento para se resolver, meteu-a no
bolso do seu casaco de viagem vermelho.
– Não posso censurá-la por estar a apreciar a vista. Há algum tempo que
também estou a olhar.
A voz era masculina e um pouco grave. Evie viu o reflexo no espelho.
Cabelo escuro, abundante, com uma franja que recusava ficar penteada para
trás. Olhos ambarinos e sobrancelhas escuras. O sorriso apenas poderia ser
descrito como feroz.
Evie voltou-se lentamente.
– Eu conheço-o?
– Ainda não. Mas espero poder remediar isso. – Estendeu a mão. – Sam
Lloyd.
Evie fez uma reverência.
– Menina Evangeline O’Neill, dos O’Neill de Zenith.
– Os O’Neill de Zenith? Sinto-me um malvestido. Deixe-me ir buscar o
smoking. – Sorriu de novo e Evie sentiu-se a perder um pouco o equilíbrio.
Era de estatura média e de constituição compacta. Tinha enrolado as
mangas da camisa até aos cotovelos; as calças estavam gastas nos joelhos.
Tinha leves manchas de tinta na ponta dos dedos, como se tivesse estado a
engraxar sapatos e trazia ao pescoço um par de óculos de aviador. O seu
primeiro admirador em Nova Iorque era um pouco grosseiro.
– Bom, foi um prazer conhecê-lo, senhor Lloyd, mas é melhor que eu......
– Sam. – Pegou na mala tão depressa que ela nem viu a mão dele mexer-
se. – Deixe-me levar-lhe isto.
– Não. Eu posso… – Fez uma tentativa para recuperar a mala, mas ele
segurou-a.
– Insisto. A minha mãe zangar-se-ia comigo se soubesse que não fui
cavalheiro.
– Bem… – Evie olhou nervosamente em seu redor. – Só até à porta.
– Para onde vai?
– Olhe que faz muitas perguntas.
– Deixe-me adivinhar: é uma Ziegfeld girl.
Evie abanou a cabeça.
– Modelo? Atriz? Princesa? É demasiado bonita para não ser ninguém.
– Está a falar verdade?
– Eu? Só falo verdade. Nunca digo uma mentira.
Ele lisonjeava-a, mas Evie estava a gostar. Adorava atenção. Era como
uma taça do melhor champanhe – borbulhante e embriagador – e tal como
com o champanhe, queria sempre mais. Mesmo assim, não gostaria de
parecer uma jovem fácil.
– Já que quer saber, vim para entrar para um convento – declarou Evie
para o experimentar.
Sam Lloyd olhou-a de alto a baixo e abanou a cabeça.
– Parece-me um desperdício. Uma jovem bonita como a menina.
– Servir o Senhor nunca é um desperdício.
– Oh, claro, evidentemente. Agora que temos o Freud e os automóveis,
dizem que Deus está morto.
– Não está morto; está só muito cansado.
Os cantos da boca tremeram-lhe de divertimento e Evie sentiu de novo o
tal borbulhar. Ele considerava-a inteligente, aquele Sam Lloyd com o seu
sorriso entendido.
– Bom, Ele tem um trabalho imenso – respondeu ele. – Castigar e criar.
Mas diga-me, para que convento vai?
– Aquele em que todas as freiras se vestem de preto e branco.
– Qual é o nome? Talvez o conheça. – Sam inclinou a cabeça. – Sou
muito devoto.
Evie conteve uma exclamação.
– É para St. Mary’s.
– Claro. Qual Saint Mary’s?
– A mais absoluta Saint Mary em que possa estar a pensar.
– Escute. Antes de entregar a sua vida a Cristo, talvez deixe que eu lhe
mostre a cidade. Conheço todos os pontos importantes. Sou um guia
turístico estupendo. – Pegou na mão de Evie, que logo se sentiu excitada e,
ao mesmo tempo, enervada. Ainda não havia cinco minutos que estava na
cidade e já um jovem, tinha de admitir que era um jovem muito atraente,
tentava que fosse passear sozinha com ele. Era emocionante, mas um pouco
aterrador.
– Oiça, tenho de lhe contar um segredo – olhou em redor. – Sou um
caçador de talentos para os maiores nomes desta cidade. Ziegfeld, os
Shubert, o senhor White. Conheço-os todos. Enforcavam-me se não lhes
apresentasse um talento como a menina.
– Pensa que tenho talento?
– Sei que tem. Percebo que tem. Tenho um sexto sentido para essas
coisas.
Evie ergueu uma sobrancelha.
– Não sei cantar. Não sei dançar. Não sei representar.
– Está a ver? Uma verdadeira tripla ameaça – sorriu. – Pronto, lá se vai o
espetáculo dos talentos de St. Mary’s.
Evie soltou uma gargalhada mesmo sem querer.
– Então muito bem. Já que faz umas observações tão inteligentes, diga-
me... o que acha de tão especial a meu respeito? – perguntou, afetando
timidez e olhando-o por entre as pestanas, tal como vira Colleen Moore
fazer em Raparigas Modernas.
– Há qualquer coisa em si – disse ele, sem afinal dizer o que quer que
fosse e desapontando-a por isso. Sam poisou a mão na parede por cima da
cabeça dela, inclinando-se mais.
Evie sentiu um aperto no estômago. Não que não soubesse como tratar os
rapazes, mas este era um rapaz de Nova Iorque. Não queria fazer uma cena
e ser considerada uma autêntica campónia. Sabia tomar conta de si. Além
do mais, se os pais soubessem do assunto, mandá-la-iam de volta para o
Ohio.
Assim, Evie passou por baixo do braço do belo Sam Lloyd e arrancou-lhe
a mala.
– Parece-me que tenho de me ir embora. Creio que estou a ver, hum, a
freira principal a entrar na casa de banho das senhoras.
– Freira principal? Quer dizer, a Madre Superiora?
– E de que maneira! Irmã... Irmã... hum...
– Irmã Benito Mussolini Fascisti?
– Exatamente.
Sam Lloyd esboçou um sorriso trocista.
– Benito Mussolini é o primeiro-ministro de Itália. E é fascista.
– Isso sabia eu – disse Evie com as faces coradas.
– Claro que sim.
– Bem… – Evie hesitou uns segundos. Estendeu a mão para que ele lha
apertasse. Com novo sorriso, Sam Lloyd puxou-a para si e beijou-a na boca.
Evie ouviu a gargalhada dos engraxadores enquanto se afastava, afogueada
e desorientada. Deveria esbofeteá-lo? era o que ele merecia. Mas seria o
que as raparigas modernas de Manhattan costumavam fazer? Ou
encolheriam os ombros como se tivessem ouvido uma piada antiga de que
estivessem cansadas de rir?
– Não pode censurar um tipo por ter beijado a miúda mais bonita de Nova
Iorque, pois não, querida? – O sorriso de Sam parecia tudo menos um
pedido de desculpas.
Decidida, Evie levantou rapidamente o joelho e ele caiu no chão como
um saco de batatas.
– Não pode censurar uma rapariga por ter reflexos rápidos, pois não, seu
esperto?
Voltou-se e dirigiu-se apressada para a saída. Numa voz lamentosa, Sam
Lloyd exclamou atrás dela:
– Boa sorte para as freiras. As pobres irmãs de St. Mary’s não sabem
aquilo que as espera!
Evie limpou o beijo com as costas da mão e saiu para a Oitava Avenida,
mas quando viu a majestade da cidade, esqueceu completamente Sam
Lloyd. Um trólei percorria aos solavancos o centro da avenida nos seus
carris de aço. Automóveis contornavam-se uns aos outros e à multidão com
a graciosidade de um corpo de ballet. Esticou o pescoço para conseguir ver
mais. Por cima das ruas movimentadas, havia homens perigosamente
equilibrados sobre vigas de aço, erigindo novos edifícios como aqueles
cujos cimos já tocavam as nuvens, como se o céu não pudesse conter a
ambição das suas espiras. Nele navegava um elegante dirigível, uma
mancha de prata no azul. Tratava-se de uma paisagem de sonho que poderia
ser alterada num abrir e fechar de olhos. Um táxi passou à esquina e Evie
entrou nele.
– Para onde, menina? – perguntou o motorista, baixando o taxímetro.
– Para o Museu Americano do Folclore, Superstição e Ocultismo, por
favor.
– Oh! O Museu dos Arrepios – disse o taxista a rir. – Ainda bem que o vai
ver enquanto pode.
– O que quer dizer com isso?
– Dizem que o local tem o pagamento de impostos atrasado. Há anos que
a cidade o tem debaixo de olho. Querem construir lá um prédio de
apartamentos.
– Valha-me Deus! – Evie examinou a fotografia que a mãe lhe dera. Uma
fotografia do tio Will, alto, magro, de cabelo louro, diante do museu, uma
grandiosa mansão vitoriana, com torreões e vitrais, rodeada por uma
vedação de ferro forjado.
– E já tarda, se quer saber a minha opinião. O lugar põe as pessoas pouco
à vontade... Aqueles objetos são todos muito estranhos.
Objetos. Magia. Evie tamborilou com os dedos na porta.
– Conhece o fulano que trata daquilo?
Os dedos de Evie imobilizaram-se.
– Como assim?
– O velho. Era objetor.
– Era o quê?
– Objetor de consciência – disse o taxista, cujas palavras pareciam
veneno. – Recusou-se a combater durante a guerra. – Abanou a cabeça. –
Ouvi dizer que talvez fosse um bolchevique.
– Bom, se era, nunca o mencionou – disse Evie alisando as rugas das
luvas.
O taxista olhou-a através do espelho.
– Conhece-o? Como é que uma menina tão bonita conhece um tipo
daqueles?
– É meu tio.
E, assim, felizmente, o taxista nada mais disse.
Por fim, o táxi virou numa rua lateral perto de Central Park e estacionou
junto ao museu. Aconchegado entre o cimento e o aço de Manhattan, o
próprio museu parecia uma relíquia, um edifício apartado do tempo e do
lugar, com a sua fachada de calcário há muito suja pela idade, fuligem e
trepadeiras. Evie olhou para a sombra triste e deteriorada e depois para a
bela casa que tinha na fotografia.
– Tem a certeza de que é aqui?
– É aqui. O Museu dos Arrepios. É um dólar e dez cêntimos.
Evie meteu a mão no bolso e apenas tirou de lá o forro. Cada vez mais
alarmada, passou revista a todos os bolsos.
– Que se passa? – O taxista olhou-a com uma expressão suspeita.
– O meu dinheiro! Desapareceu! Tinha vinte dólares neste bolso e...
desapareceram!
Ele abanou a cabeça.
– Já devia saber. Foi provavelmente um bolchevique como o seu tio.
Olhe, menina, tive três caloteiros a semana passada. Desta vez não. Paga-
me um dólar e dez cêntimos ou vai contar a sua história a um polícia. – O
taxista apontou para um polícia a cavalo junto do quarteirão.
Evie fechou os olhos e recordou os seus passos. Os carris. A montra da
farmácia. Sam Lloyd. Sam... Lloyd. Os olhos de Evie abriram-se de repente
quando se recordou do beijo apaixonado. Há qualquer coisa em si... Claro
que havia – vinte dólares. Ainda não estava há uma hora na cidade e já fora
enganada.
– Aquele filho da… – praguejou Evie, assustando o taxista que se
remeteu ao silêncio. Furiosa, retirou a nota de dez dólares da sua cloche,
esperou pelo troco e atirou com a porta do táxi atrás de si.
– Ei! – gritou o taxista. – Que tal uma gorjeta?
– Querias – disse Evie, dirigindo-se à antiga mansão vitoriana, com a
longa echarpe de seda atrás de si. – Nunca mais beijes estranhos na Penn
Station.
Evie bateu na porta com a cabeça de águia de latão e ficou à espera. Uma
placa ao lado dos enormes portões de carvalho do museu dizia: AQUI ESTÃO
AS ESPERANÇAS E SONHOS DE UMA NAÇÃO, CONSTRUÍDA NAS COSTAS DOS
HOMENS E ERGUIDAS PELAS ASAS DOS ANJOS. Mas nem homens nem anjos
reponderam às suas batidas, por isso resolveu entrar. A entrada era
ornamentada: chão de mármore preto e branco, paredes com painéis de
madeira parcamente iluminadas por apliques dourados. Lá em cima o teto
azul-claro exibia um mural de anjos vigiando um campo de soldados da
Revolução. O edifício cheirava a velho e a pó. Os saltos de Evie ecoaram
no mármore enquanto ela percorria o longo corredor.
– Está aqui alguém? – perguntou. – Tio Will?
Uma escadaria larga e elaborada descrevia uma curva em direção ao
patamar superior iluminada por uma janela de vitral e depois perdia-se de
vista. À esquerda de Evie ficava uma sala escura com os reposteiros
corridos. À direita, portas de correr abriam-se para uma sala de jantar
bafienta, cuja mesa comprida e treze cadeiras forradas a damasco pareciam
não ter sido usadas há muitos anos.
– Credo! Quem morreu? – resmungou Evie. Vagueou pela casa até chegar
a uma sala comprida que albergava uma coleção de objetos expostos em
redomas de vidro.
– O Museu dos Arrepios, calculo. – Evie foi de expositor em expositor,
lendo os cartões escritos à máquina colocados por baixo.

BOLSA DE TALISMÃ E BONECA DE VODU,


NOVA ORLEÃES, LUISIANA

FRAGMENTO DE OSSO DO CAMINHO DE FERRO CHINÊS

TRABALHADOR E CONHECIDO CONJURADO,


NORTE DA CALIFÓRNIA, PERÍODO DA CORRIDA AO OURO

BOLA DE CRISTAL USADA NAS SESSÕES DE ESPIRITISMO


DA SR.ª BERNICE FOXWORTHY
DURANTE O PERÍODO DO ESPIRITUALISMO AMERICANO,
C. 1848, TROY, NOVA IORQUE

TALISMÃ DE PROTEÇÃO OJIBWAY,


REGIÃO DOS GRANDES LAGOS
FRAGMENTOS DE VODU,
BATON ROUGE, LUISIANA

INSTRUMENTOS E LIVROS DE PEDREIRO-LIVRE,


C. DE 1776, FILADÉLFIA, PENSILVÂNIA

Havia uma série de fotografias de espíritos povoadas de figuras fugazes,


translúcidas como cortinas de tule ao vento. Bonecas de vodu, um boneco
de ventríloquo. Um grimório encadernado a cabedal. Livros sobre alquimia,
astrologia, numerologia, vodu, médiuns de espiritismo e curandeiros e
vários volumes de relatos de avistamentos de fantasmas nas Américas desde
os princípios do século XVII.
O Diário de Mercy Prowd estava aberto sobre uma mesa. Evie pôs a
cabeça de lado, tentando perceber a caligrafia do século XVII. «Vejo os
espíritos dos mortos. Por isso consideraram-me bruxa...»
– Enforcaram-na. Tinha apenas dezassete anos.
Evie voltou-se, sobressaltada. A pessoa que falara saiu das sombras. Era
um homem alto e de ombros largos, com o cabelo louro-cinza. Por
momentos, com a luz do velho castiçal incidindo sobre ele, parecia um anjo
severo retirado de um quadro renascentista.
– Que crime cometeu ela? – perguntou Evie, conseguindo falar de novo. –
Transformou gim em água?
– Era diferente. Foi esse o seu pecado. – Estendeu-lhe a mão. – Sou
Jericho Jones. Trabalho para o seu tio. Pediu-me se lhe podia fazer
companhia enquanto dá aulas.
Era então aquele o famoso Jericho por quem Mabel estava perdida de
amores.
– Ora, ouvi falar tanto de si! – declarou Evie. Mabel matá-la-ia por ser
indiscreta. – Isto é, ouvi dizer que o tio Will se sentiria perdido sem... sem
aquilo em que o ajuda.
Jericho afastou o olhar.
– Duvido muito. Gostaria de visitar o museu?
– Seria estupendo – mentiu Evie.
Jericho fê-la subir e descer escadas e entrar em salas reservadas e
bafientas com mais coleções de aborrecidas e poeirentas relíquias, enquanto
Evie tentava manter um sorriso bem-educado.
– Por fim, mas não menos importante, eis o local onde passamos grande
parte do tempo: a biblioteca. – Jericho abriu um conjunto de portas de
correr de mogno e Evie soltou um assobio. Nunca vira uma sala assim. Era
como se tivesse sido transportada para um fantasmagórico castelo de contos
de fada. Uma enorme lareira de calcário ocupava toda a parede oposta. Os
móveis não eram muitos: cadeirões de cabedal gastos em determinados
sítios, uma fila de velhas mesas de madeira, candeeiros que lançavam uma
ténue luz verde sobre cada uma delas. No primeiro andar uma galeria cheia
de estantes ocupava as quatro paredes. Evie esticou o pescoço para
conseguir ver melhor. O teto deveria estar a seis metros de altura, e que
teto! Espalhada por toda a sua extensão via-se uma paisagem da história
americana: puritanos de chapéus negros condenavam um grupo de
mulheres. Um índio xamã olhava para uma fogueira. Um curandeiro
agarrava várias serpentes com uma mão, enquanto colocava a outra na testa
de um homem doente. Pais fundadores de cabeleiras cinzentas assinavam a
Declaração de Independência. Uma escrava erguia uma raiz de mandrágora.
Anjos e demónios pintados pairavam, vigilantes, sobre a cena histórica. À
espera.
– Que acha? – perguntou Jericho.
– Acho que ele deveria ter despedido o decorador. – Evie atirou-se para
uma das cadeiras e ajustou a costura das meias. Estava desejando sair dali
para ir ter com Mabel e explorar a cidade.
– O meu tio demora?
Jericho encolheu os ombros. Sentou-se à longa mesa e retirou um livro de
uma pilha enorme.
– Eis uma excelente história do misticismo do século dezoito, se lhe
apetecer passar o tempo com um livro.
– Não, obrigada – disse Evie, escondendo a vontade de revirar os olhos.
Não percebia o que Mabel via naquele tipo. Ia dar-lhe trabalho. Isso era
certo.
– Diga-me. – Evie baixou a voz. – Suponho que não tenha consigo
alguma coisa que se beba.
– Alguma coisa que se beba? – repetiu Jericho.
– Sim, verniz de caixões, suor de pantera, uísque? – tentou Evie. – Gim?
– Não.
– Não sou esquisita. Uísque americano também serve.
– Não bebo.
– Então deve andar cheio de sede. – Evie riu. Jericho não.
– Bom, tenho de voltar para o museu – disse, dirigindo-se
apressadamente para as portas. – Fique à vontade. O seu tio não deve tardar.
Evie voltou-se para o urso empalhado por cima da lareira.
– Então, não creio que tenha por aí nada que se beba. Não? Talvez mais
tarde.
A não ser Jericho, não vira vivalma no museu. Tinha fome e sede e
sentia-se um pouco aborrecida por ter sido deixada sozinha sem que o tio se
tivesse sequer dignado a recebê-la. Se ia viver em Nova Iorque, teria de
fazer por si.
Evie deu umas palmadinhas no pelo do urso.
– Desculpa, amigo, mas vais ficar sozinho – disse e saiu da biblioteca em
busca de alimento. Ouviu vozes masculinas e seguiu o som até uma grande
sala nas traseiras do museu, onde o tio Will, de calças cinzentas, colete e
gravata azul, de mangas arregaçadas até aos cotovelos, estava a dar a aula.
Com o passar dos anos o cabelo louro escurecera um pouco e usava agora
um bigode aparado.
– A presença do mal é um mistério que se impôs aos cérebros dos
filósofos e teólogos... – dizia.
Evie espreitou para conseguir ver toda a sala. Uma turma de
universitários tomava apontamentos da aula do tio Will.
– Vamos a isto – murmurou Evie. – Desculpem chegar atrasada! –
exclamou enquanto fazia a sua entrada na sala. Os universitários voltaram
as cabeças na direção de Evie, que arrastava uma cadeira para se juntar a
eles. O tio Will olhou-a por cima dos aros redondos dos seus óculos de
tartaruga.
– Continue, tio Will. Não se importe comigo. – Evie sentou-se na beira de
uma cadeira ao lado de um dos rapazes e fez os possíveis por parecer
interessada.
– Sim… – Por momentos a expressão admirada do tio Will parecia querer
tornar-se permanente. Mas depois recuperou o ritmo e começou a passear
pela sala com as mãos atrás das costas. – Como ia dizendo, como se explica
a presença do mal?
Os rapazes olharam uns para os outros, à espera de quem pudesse
responder.
– O homem faz o mal através das suas escolhas – disse alguém.
– Deus e o Diabo lutam, um contra o outro. Pelo menos é o que diz a
Bíblia – argumentou outro rapaz.
– Como pode haver um demónio se há um Deus? – perguntou um rapaz
de calças de golfe. – Sempre quis saber a razão.
O tio Will espetou um dedo, para insistir no assunto.
– Ah, a Teodiceia.
– Trata-se de um cruzamento entre a teologia e a idiotice?
Will permitiu-se um leve sorriso.
– Não, exatamente. A Teodiceia é um ramo da teologia que diz respeito à
defesa de Deus diante da existência do mal. Faz surgir um enigma: se Deus
é uma divindade omnisciente e todo-poderosa como pode permitir que o
mal exista? Ou não é o Deus omnipotente que nos disseram que era, ou é
omnipotente e omnisciente, mas também cruel porque permite que o mal
exista sem que nada faça para o deter.
– Pois. Certamente isso explica a Lei Seca – comentou Evie.
Os universitários riram em sinal de apreço. Mais uma vez o tio Will olhou
para Evie como se ela fosse um assunto que teria ainda de classificar.
– Um mundo bom permitir-nos-ia o livre-arbítrio, não é verdade? –
continuou. – Podemos concordar neste ponto? Mas uma vez que os seres
humanos têm livre-arbítrio, têm também capacidade de escolha... e praticam
o mal. Assim esta coisa muito boa que é o livre-arbítrio permite a
possibilidade do mal no nosso belo mundo – a sala estava em silêncio. –
Uma coisa a ponderar. Mas se me permitem prosseguir com a discussão
anterior...
Os rapazes sentaram-se direitos, prontos a tomar apontamentos ao mesmo
tempo que Will caminhava e falava.
– A América tem uma história rica em crenças, uma tapeçaria formada
por fios de diferentes culturas. A nossa história está repleta de sobrenatural,
inexplicável, místico. Os primeiros colonos vieram para aqui em busca de
liberdade religiosa. Os imigrantes que se seguiram introduziram as suas
esperanças e medos, desde a lenda do vampiro da Europa de Leste aos
«fantasmas esfomeados» da China. Os americanos originais acreditavam
em xamãs e espíritos. Os escravos da África Ocidental e os caribenhos,
despojados de tudo o que tinham, mesmo assim trouxeram com eles os seus
costumes e crenças. Não somos apenas um cadinho de culturas, mas
também de espíritos e superstições, não concordam?
Um rapaz de casaco azul-escuro ergueu a mão.
– Acredita no sobrenatural, doutor Fitzgerald?
– Ah, pareceria ilógico, não é verdade? Afinal vivemos na época
moderna. Até é difícil fazer com que as pessoas acreditem no metodismo. –
Will sorriu e os rapazes riram. – Porém, há mistérios. Como explicar as
histórias das pessoas que têm poderes invulgares?
Evie sentiu um arrepio na espinha.
– Poderes? – repetiu um rapaz em tom cético quase de desdém.
– As pessoas que afirmam ser capazes de falar com os mortos, como os
videntes ou médiuns espíritas. Pessoas que afirmam ter sido curadas pela
aposição das mãos. Que conseguem ver laivos do futuro ou saber qual a
carta que vai ser jogada. Os primeiros registos americanos falam de
espíritos índios que caminham. Os puritanos conheciam a magia branca. E,
durante a Revolução Americana, Benjamin Franklin escreveu acerca de
sonhos proféticos que influenciaram o decurso da guerra e formaram a
nação. Que vos parece?
– Essas pessoas precisam dos serviços de um psiquiatra... embora abra
uma exceção para o senhor Franklin.
Seguiu-se novo coro de gargalhadas a que Evie se juntou, embora ainda
desconcertada. O tio Will esperou que se fizesse silêncio.
– Como devem saber, o próprio museu foi criado por Cornelius Rathbone,
que fez fortuna construindo o caminho de ferro. Como sabia que se
aproximava a idade do aço? – Will fez uma pausa junto à estante e
aguardou. Como ninguém respondesse, continuou a caminhar com as mãos
atrás das costas. – Afirmava sabê-lo através de visões proféticas de sua
irmã, Liberty Anne. Quando Cornelius e Liberty eram pequenos, passavam
horas nos bosques praticando todo o tipo de jogos. Um dia, Liberty foi para
a floresta e perdeu-se durante dois dias inteiros. Os homens da cidade
procuraram-na mas não lhe encontraram rasto. Quando por fim apareceu,
tinha o cabelo completamente branco. Contava apenas onze anos. Liberty
Anne afirmou ter encontrado um homem, «um homem desconhecido, alto e
magro como um espantalho, com um chapéu alto e cujo casaco abria para
mostrar as maravilhas e horrores deste mundo». Ficou doente, cheia de
febre. Chamaram o médico, mas este nada pôde fazer. No mês seguinte
ficou de cama em transe, ditando profecias que o seu preocupado irmão
transcrevia no seu diário. Essas profecias tiveram uma precisão espantosa.
Afirmou ver «o grande homem do Illinois que foi levado da nossa
companhia enquanto visitava o nosso primo americano»… Uma referência
ao assassínio do presidente Lincoln no Teatro Ford enquanto assistia à
representação da peça O Nosso Primo Americano. Falou de «um grande
dragão de aço atravessando a Terra, arrotando fumo negro», cujo
significado foi interpretado como o Caminho de Ferro Transcontinental.
Previu a Proclamação da Emancipação, a Grande Guerra, a revolução
bolchevique e a invenção do automóvel e do aeroplano. Falou até da
falência dos nossos bancos e do subsequente colapso da nossa economia.
– É evidente que não conseguia ver tudo – disse o rapaz das calças de
golfe. – Nunca acontecerá tal coisa.
Will bateu com os nós dos dedos na secretária.
– Batam na madeira, dizem eles. – Will sorriu e os universitários soltaram
uma gargalhada ao ouvir a piada supersticiosa. Brincou com o isqueiro de
prata, dando-lhe voltas, passando de vez em quando o polegar pela roda
para o acender. – Liberty Anne morreu um mês depois do dia em que
apareceu vinda dos bosques. Para o fim, as suas profecias tornaram-se
muito obscuras. Falava de uma «tempestade», de um tempo traiçoeiro em
que os Adivinhos seriam necessários.
– Adivinhos? – repetiu Evie.
– Era o nome que dava às pessoas com poderes como o seu.
– E o que fariam esses Adivinhos? – perguntou o rapaz das calças de
golfe.
Will encolheu os ombros.
– Se sabia, não o disse. Morreu pouco depois de ter feito a profecia,
deixando inconsolável o irmão, Cornelius. Este ficou obcecado pelo bem e
pelo mal e pela ideia de que vivia num país assombrado por fantasmas. Que
havia alguma coisa para além daquilo que vemos. Dissipou a vida e a
fortuna, a tentar prová-lo.
Os rapazes iniciaram uma acalorada discussão até que um deles gritou
mais alto que os outros.
– Sim, mas professor, o senhor acredita de facto que existe outro mundo
para além deste e que as entidades desse mundo podem agir para nos ajudar
ou fazer mal? Acredita que as nossas ações, boas ou más, podem criar um
mal externo? Acredita que há demónios e Adivinhos entre nós?
O tio Will retirou um pano do bolso e limpou as lentes dos óculos.
– «Há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio, do que supõe a tua vã
filosofia» – citou Will, prendendo de novo os óculos atrás das orelhas. –
Trata-se de uma citação de William Shakespeare, que parecia saber alguma
coisa acerca da humanidade e do sobrenatural. Mas, para os vossos exames,
precisarão de conhecer as seguintes informações concretas…
Os rapazes gemeram enquanto Will disparava uma estonteante
superabundância de informações, que os seus lápis se esforçavam por
acompanhar.
Evie retirou-se discretamente e foi esperar Will no gabinete deste. O
firme tique-taque do relógio fez-lhe companhia enquanto olhava em redor.
A secretária estava coberta de recortes de jornais e pilhas de livros de
aspeto suspeito. Aborrecida, Evie folheou os recortes. Havia relatos de
cidades de vários pontos do país onde tinham sido avistados fantasmas,
assombrações e estranhos acontecimentos como parentes mortos que
apareciam por instantes nas suas cadeiras preferidas, ou cães «demónio» de
olhos vermelhos que assustaram o guarda de um ferro-velho no Norte do
estado de Nova Iorque. Alguns recortes tinham já dois ou três anos, mas a
maioria era recente – do ano anterior. Evie começou a ler um artigo acerca
de uma jovem que afirmava ser capaz de falar com os mortos e que fora
avisada por «espíritos bondosos» de que se aproximavam problemas.
Chegara à parte do desaparecimento da jovem quando o tio Will anunciou
subitamente a sua presença, aclarando, com delicadeza, a garganta.
Evie empurrou os recortes para o lado.
– Olá, tio.
– A secretária é minha.
– Pois é – disse Evie, alegremente. – E está bem arrumada.
– Sim. Bem. Suponho que, por esta vez, não tenha importância –
murmurou o tio Will. Retirou um cigarro de uma pequena cigarreira de
prata que trazia no bolso do peito. – Estás com bom aspeto. – Will acendeu
o cigarro e inalou profundamente o fumo. – O Jericho mostrou-te o museu?
– Sim. Mostrou. É muito... interessante.
– Fizeste boa viagem?
– Estupenda, embora tenha sido roubada por um carteirista na Penn
Station – disse Evie, para logo se arrepender. E se Will partisse do princípio
que ela não sabia tomar conta de si própria e a mandasse de volta para o
Ohio?
O tio Will ergueu uma sobrancelha.
– A sério?
– Um rapaz horrendo chamado Sam Lloyd. Bem, pelo menos foi o nome
que me deu antes de me beijar e me roubar vinte dólares.
Will estremeceu.
– Ele, o quê?
– Mas não se preocupe. Sei tomar conta de mim. Se voltar a ver o tipo,
vai desejar nunca se ter cruzado comigo – disse Evie.
Will soprou um penacho de fumo que ficou a pairar no ar.
– A tua mãe disse-me que te tinhas metido em sarilhos lá na terra. Uma
partida, não?
– Uma partida – resmungou Evie.
– E vais ficar até outubro?
– Dezembro, se for possível. Até a costa ficar livre lá na terra.
– Hummm. – A expressão de Will era sombria. – A tua mãe fez um
pedido para que frequentasses a Escola Sarah Snidewell para raparigas.
Presentemente está superlotada, por isso parece-me que serei o responsável
pela tua escolaridade. Vou arranjar-te livros e, claro, podes frequentar as
minhas aulas. Sugiro que faças uso dos nossos belos museus e conferências
através da Sociedade para a Cultura Ética, entre outras.
Evie apercebeu-se de que se livrara do tédio da escola. O dia continuava a
melhorar.
O tio Will folheou um livro com ar ausente.
– Tens dezassete anos, não é verdade?
– Segundo o meu último aniversário....
– Bem. Dezassete anos é uma idade em que podes fazer quase tudo o que
te apeteça. Não vou manter-te com uma trela desde que não te metas em
sarilhos. Combinado?
– Combinado – respondeu Evie admirada. – Tem a certeza de que é
parente da minha mãe? Não o trocaram à nascença?
O sorriso de Will surgiu por instantes, mas logo desapareceu.
– A tua mãe nunca recuperou da morte do teu irmão.
– Não é só ela que sente a falta do James.
– Mas para ela é diferente.
– É o que dizem. – Evie engoliu a sua raiva. – Aquilo de que estava a
falar há bocado... as pessoas que conseguem prever o futuro ou... – respirou
fundo. – … ler objetos. Os Adivinhos. Conhece alguém assim?
– Pessoalmente, não. Porque perguntas?
– Oh, por nada – disse Evie rapidamente. – Creio que se existissem
Adivinhos, apareceriam nos jornais e na rádio, não é verdade?
– Ou, se a história serve de indicação, seriam queimados na fogueira. –
Will apontou para as muitas estantes que os rodeavam. – Temos uma
biblioteca inteira dedicada a histórias dessas, se quiseres ler acerca das
crenças sobrenaturais americanas. – Apagou o cigarro num cinzeiro cheio. –
Receio estar um pouco atrasado e com certeza que gostarias de desfazer as
malas e de te arranjar. O Bennington não é longe daqui... dez quarteirões.
Queres que o Jericho te leve lá?
– Não – disse Evie. Até uma caminhada de dez quarteirões com Jericho
seria terrivelmente enfadonha. – Estupendo. Vou sozinha.
– Como?
– Formidável. Estupendo. Tudo bem. Não há problema. Vou ter com a
Mabel. Lembra-se da Mabel Rose? A minha correspondente?
– Hummm – disse Will, distraído com outro livro. – Muito bem, aqui tens
a tua chave. Há uma sala de jantar à saída do átrio do Bennington. Serve-te
do que quiseres e pede que ponham na minha conta. O Jericho e eu
estaremos em casa o mais tardar às seis e meia.
Evie meteu a chave na mala. Em Zenith não tinha chave; todos os seus
movimentos eram controlados pelos pais. As coisas seriam diferentes ali.
Seriam perfeitas. Deu um abraço ao tio Bill que estendera a mão para lha
apertar.
– Bem-vinda a Nova Iorque, Evie.
É APENAS O BENNINGTON,
MINHA QUERIDA

– Mabel! – Evie abraçou a amiga e dançou no átrio do Bennington, atraindo


os olhares dos moradores do prédio. – Oh! Estou tão feliz por voltar a ver-
te!
– Homessa! Mudaste – disse Mabel observando o penteado de Evie, a sua
maneira de vestir tão moderna, o vestido à marinheira de cintura descaída e
o casaco com uma capa bordada nas costas.
– Tu não. És a mesma Mabel. Deixa-me olhar para ti! – Com um gesto
dramático, Evie recuou para observar a amiga, com um vestido que lhe
ficava mal, e uma bainha muito abaixo dos joelhos. Era lá com ela. O
vestido era um horror. – Mabel, ainda não cortaste o cabelo?
Mabel passou a mão pelos longos cabelos castanhos encaracolados,
suavemente apanhados na nuca.
– Estou a exercer o meu individualismo.
– Pois estás. Tal como o velho Bennington. – Evie soltou um assobio,
sobressaltando um homem que retirava as cartas de uma das caixas de
correio de metal embutidas numa parede. O Bennington tinha a beleza triste
de uma morada outrora elegante. O chão de mármore com os cantos
lascados, a mobília gasta e a pintura a cair, mas para Evie essas
excentricidades apenas tornavam tudo mais encantador.
– Não há como a nossa casa – disse Mabel.
– Acreditas? Tu, eu e Manhattan? Seremos as rainhas da cidade!
Enquanto Evie começava a explicar os seus planos, principiando por uma
ida às compras ao Bergsdorf, uma rapariga simplesmente espantosa entrou
no vestíbulo. Trazia vestido um pijama de homem por baixo de um robe
também masculino e o corte de cabelo era semelhante ao de Louise Brooks
com franja. Tinha nos olhos vestígios da pintura e do rímel da noite
anterior. E trazia ao pescoço uma máscara de dormir de seda.
– Quem é? – murmurou Evie.
– É Theta Knight. Uma das Ziegfeld Girls.
– Homessa. É tua amiga?
Mabel abanou a cabeça.
– Assusta-me. Nunca tive coragem de lhe dizer mais do que olá e «está
um dia lindo, não acha?» Vive aqui com o irmão. – Mabel apertou os lábios
numa expressão entendida. – Bom, ela diz que é irmão, mas não são nada
parecidos.
– O amante? – murmurou Evie, emocionada.
Mabel encolheu os ombros.
– Como haveria eu de saber?
– Chegaram estas flores para si, menina Knight. – O porteiro entregou-lhe
uma dúzia de rosas com o pé comprido. Theta ocultou um bocejo enquanto
abria o envelope e retirava o cartão.
– «Uma rosa para uma rosa. Com o mais profundo afeto de Clarence M.
Potts». Valha-me Deus! – Theta devolveu as flores ao porteiro. – Oferece-as
à tua namorada, Eddie, mas primeiro deita fora o cartão ou vais ver-te em
maus lençóis.
– Não pode deitar fora essas rosas. São do melhor que há! – exclamou
Evie.
Theta olhou-a com os olhos semicerrados.
– Estas flores? São do arrepiante senhor Potts. Tem quarenta e oito anos e
já casou quatro vezes. Tenho apenas dezassete e não quero entrar na igreja
como a mulher número cinco. Conheço muitas coristas que são
interesseiras, mas eu não, miúda. Tenho outros planos. – Inclinou a cabeça
para Mabel. – Olá. Madge, não é?
– Mabel. Mabel Rose.
– Prazer em conhecer-te, Mabel. – Theta fixou em Evie os olhos líquidos.
– E tu és?
– Evangeline O’Neill. Mas toda a gente me chama Evie.
– Theta Knight. Podem chamar-me como quiserem… mas não antes do
meio-dia. – Retirou um cigarro do bolso do pijama e esperou que o porteiro
lho acendesse, coisa que o homem fez imediatamente. – Obrigada, Eddie.
– A Evie vem ficar com o tio, o senhor Fitzgerald – explicou Mabel. – É
do Ohio.
– Lamento – declarou Theta com uma expressão impassível.
– A quem o dizes... e de que maneira! És de Nova Iorque?
– Toda a gente em Nova Iorque é de outro sítio qualquer.
Evie decidiu que gostava de Theta. Era difícil não ficar encantada com o
glamour da outra jovem. Nunca conhecera no Ohio uma rapariga que
vivesse sozinha, aparecesse num átrio público de pijama masculino de seda
e pudesse deitar fora uma dúzia de rosas como se se tratasse de uma caneca
de café.
– És mesmo uma Ziegfeld girl?
– Culpada.
– Deve ser incrível!
– É um emprego – disse Theta, soprando o fumo. – Devias ir ver o
espetáculo uma noite destas.
Evie ficou entusiasmada só de pensar. Um espetáculo do Ziegfeld!
– Adorava.
– Estupendo. Digam em que noite querem ir e deixo-vos os bilhetes na
bilheteira. Adorava ficar aqui a dar à língua, mas se quiser aguentar-me nas
canetas mais logo, tenho de fazer o meu sono de beleza. Foi estupendo
conhecer-te, Evil.
– Chamo-me Evie.
– Chamavas – disse Theta por cima do ombro enquanto desaparecia
dentro do elevador.

***

– Nem acredito que estás aqui – disse Mabel. Ela e Evie estavam sentadas
na delapidada sala de jantar do Bennington comendo sanduíches e bebendo
Coca-Cola.
– Que fizeste para te terem posto a andar do Ohio a toda a velocidade?
Evie brincou com o gelo no copo.
– Lembras-te daquele truque de que te falei há uns meses? Bem... – Evie
contou a Mabel a história do anel de Harold Brodie. – E foi terrível porque
eu tinha razão e ele acabou por parecer a parte ofendida da história, o
grande hipócrita!
– Safa! – disse Mabel.
Evie observou cuidadosamente o rosto de Mabel.
– Acreditas em mim, não acreditas, Mabesie?
– Claro que sim.
– Não pensas que eu sou uma aldrabona, pois não?
– Nunca! – Mabel fez girar o gelo no copo enquanto pensava. – Mas
gostaria de saber porque começaste de repente a ser capaz de fazer essas
coisas. Não caíste e bateste com a cabeça, pois não?
Evie ergueu uma sobrancelha.
– Muito obrigada!
– Não é nada disso! Pensei que pudesse haver uma razão médica. Uma
razão científica – disse Mabel apressadamente. – Já falaste nisso ao teu tio?
Evie abanou enfaticamente a cabeça.
– Não vou abanar o barco. Até agora, está tudo fantástico com o meu tio e
é assim que quero que fique.
Mabel mordeu o lábio.
– Já estiveste com o Jericho?
– Sim, já – disse Evie terminando a Coca-Cola.
– E o que achas? – perguntou Mabel, insistindo.
– Muito... sólido.
Mabel soltou um gritinho.
– Não é lindo?
Evie pensou no Jericho que conhecera – calado, sério, sóbrio. Não havia
nele o que quer que fosse de remotamente sedutor.
– Para ti é, e é isso que importa. E o que fizeste já acerca dessa situação?
– Bem... na sexta-feira passada, quando estávamos perto das caixas do
correio?
– Sim? – Evie agitou sugestivamente as sobrancelhas.
– Fiquei muito perto dele…
– Hã, hã.
– E disse-lhe assim: «Está um dia bonito, não acha?»
– E…?
– E mais nada. Bem, ele disse que sim. Por isso concordámos ambos
acerca do tempo.
Evie deixou-se cair de encontro ao assento.
– Credo! É como uma festa sem papelinhos. Precisamos de um plano,
menina. Um assalto romântico de proporções épicas. Vamos abanar as
muralhas de Jericho! Esse rapaz nem vai saber o que lhe aconteceu.
Mabel animou-se.
– Estupendo! Qual é o plano?
Evie encolheu os ombros.
– Não faço ideia. Só sei que precisamos de um.
– Oh!
– Oh, Mabesie, minha querida, não te preocupes. Vou ter uma ideia
qualquer. Entretanto, vamos às compras, vamos ver a Theta No Foolin no
Follies... e aposto que ela conhece todos os lugares... vamos dançar o
charleston até cair. Vamos viver, menina! Tenciono fazer destes os meses
mais emocionantes das nossas vidas. Se jogar bem as minhas cartas, vou cá
ficar. – Evie dançava no assento. – Onde estão os teus pais esta noite?
Mabel corou.
– Oh, há uma manifestação para o recurso de Sacco e Vanzetti na Baixa.
Os meus pais vão representar o Proletariat – disse, recordando a Evie o
nome do jornal socialista que os pais de Mabel geriam e distribuíam. – Vou
lá estar, mas não vou poder acompanhar-te na tua primeira noite na cidade!
– Bem, suponho que os verei amanhã.
O rosto de Mabel ensombrou-se. Abanou a cabeça.
– A minha mãe vai falar no sindicato das costureiras e o meu pai tem de
ficar no jornal. Fazem tanto por tantos.
As cartas de Mabel estavam cheias de histórias acerca dos esforços dos
pais na cidade. Era evidente que tinha muito orgulho neles, mas também
que as suas causas os deixavam com pouco tempo e energia para a filha.
Evie deu uma palmadinha na mão de Mabel.
– Não faz mal. Os pais estorvam. A minha mãe está impossível desde que
apanhou aquela doença.
Mabel pareceu perturbada.
– Oh, o que é que ela tem?
Um sorriso lento surgiu nos lábios de Evie.
– Temperança. Extrema.
O riso de ambas foi interrompido pela aparição de duas senhoras de
idade.
– Não é assim que as jovens se devem comportar na esfera social, menina
Rose. Esta cena é perfeitamente despropositada.
– Sim, menina Proctor – disse Mabel, envergonhada. Evie fez uma careta
que só Mabel pôde ver e teve de morder o lábio para não soltar uma nova
gargalhada. – Menina Lillian, menina Adelaide, dão licença que vos
apresente a menina Evie O’Neill. A menina O’Neill veio ficar uns tempos
com o tio, o senhor Fitzgerald. – Mabel pisou Evie debaixo da mesa, para a
avisar.
A menina Lillian sorriu.
– Oh, que encanto. Que carinha tão delicada, não achas Addie?
– Muito, muito delicada.
As meninas Proctor usavam o longo cabelo grisalho encaracolado como
meninas de escola do final do século XIX. O efeito era estranho e
desconcertante. Pareciam duas bonecas de porcelana envelhecidas e
enrugadas.
– Bem-vinda ao Bennington. É um edifício antigo e imponente. Noutros
tempos foi considerado um dos melhores locais para se viver nesta cidade –
prosseguiu a menina Lillian.
– É estupendo. Humm, adorável. Um local adorável.
– Sim. Por vezes podem ouvir-se sons estranhos durante a noite. Mas não
se assustem. A cidade tem os seus fantasmas, sabem.
– Os melhores sítios têm-nos – disse Evie com seriedade trocista.
Mabel quase se engasgou com a Coca-Cola, mas a menina Lillian não
reparou.
– No final século dezoito este terreno albergou pessoas que sofriam de
febre-amarela. Esses pobres infelizes que gemiam nas suas tendas, cheios
de icterícia, sangrando e com vómitos negros como a noite!
Evie afastou a sanduíche.
– Horrivelmente fascinante. Estava a dizer à Mabel, à menina Rose, que
não falamos o suficiente acerca de vómitos negros. – Debaixo da mesa, o pé
de Mabel ameaçava empurrar Evie pelo chão abaixo.
– Depois do tempo da febre-amarela, enterraram aqui os indigentes e os
loucos – prosseguiu a menina Lillian, como se nada tivesse ouvido. –
Foram exumados antes da construção do Bennington, claro, ou pelo menos
foi o que disseram. Embora eu não esteja a ver como foi possível terem
encontrado todos os cadáveres.
– Os cadáveres são um grande problema – disse Evie com um pequeno
suspiro e Mabel teve de voltar a cabeça para não desatar a rir.
– É verdade – disse a menina Lillian com um pequeno ruído de
aborrecimento. – Quando o Bennington foi construído, em mil oitocentos e
setenta e dois, diz-se que o arquiteto que descendia de uma longa linhagem
de bruxas, criou o edifício segundo antigos princípios do ocultismo, para
que pudesse ser sempre uma espécie de íman para os seres do outro mundo.
Por isso, como lhe disse, não se preocupe com os sons ou suspiros estranhos
que possa ouvir. É apenas o Bennington, minha querida.
A menina Lillian esboçou um sorriso. Um borrão de batom vermelho
marcava-lhe os dentes como uma mancha de sangue. A seu lado, a menina
Addie sorria ao longe e acenava como se cumprimentasse hóspedes
invisíveis.
– Por favor, deem-nos licença, mas temos de nos retirar – disse a menina
Lillian. – Estamos à espera de visitas e temos de nos preparar. Dá-nos a
honra de nos visitar uma noite destas, não é verdade?
– Claro que sim – respondeu Evie.
A menina Addie voltou-se subitamente para Evie, como se a estivesse a
ver pela primeira vez. Tinha uma expressão estranha.
– A menina é um deles, não é verdade, minha querida?
– A menina O’Neill é sobrinha do senhor Fitzgerald – comentou Mabel.
– Não. É um deles – disse a menina Addie num murmúrio urgente que
causou um arrepio na espinha de Evie.
– Pronto, pronto, Addie, deixa estas meninas jantarem descansadas.
Temos muito que fazer. Adeus!
As irmãs Proctor mal tinham saído da sala de jantar quando Mabel teve
um ataque de riso.
– «Depois da febre-amarela, foram os indigentes» – imitou ainda a rir.
– O que pensas que ela quis dizer quando me perguntou «A menina é um
deles»? Diz o mesmo a todas as pessoas que conhece? – perguntou Evie,
esperando não parecer tão inquieta como se sentia.
Mabel encolheu os ombros.
– Por vezes, a menina Addie percorre os andares em camisa de dormir. O
meu pai já teve de a levar algumas vezes de volta para o apartamento. –
Mabel bateu com o indicador na testa. – Não regula. Provavelmente quis
dizer que és uma dessas meninas modernas e que não está de acordo com o
estilo – disse a brincar, agitando o dedo como uma professora antiga. – Oh,
vai mesmo ser o melhor tempo da nossa vida, não achas? – perguntou com
tal entusiasmo que Evie afastou da ideia o perturbador comentário da
menina Addie.
– Po-si-ti-va-men-te! – disse Evie erguendo o copo. – Ao Bennington e
aos seus fantasmas!
– A nós! – acrescentou Mabel e fizeram um brinde ao futuro.
Evie e Mabel passaram a tarde pondo a conversa em dia e, quando Evie
voltou ao apartamento do tio Will eram quase sete horas e este e Jericho já
tinham regressado. O apartamento pareceu-lhe maior do que se lembrava e
surpreendentemente delicado para ser a casa de um homem solteiro. Uma
imponente janela semicircular projetada para a magnífica folhagem do
Central Park. Um sofá e duas cadeiras flanqueavam um aparelho de
telefonia. Evie soltou um suspiro de alívio ao ver uma pequena cozinha,
muito limpa, que parecia raramente ter uso. Na casa de banho havia uma
banheira perfeita para se pôr de molho, mas desprovida dos luxos mais
simples. Em breve trataria desse assunto. Mais três quartos e um pequeno
escritório completavam a suíte. Jericho levou-a a um quarto estreito, com
uma cama, uma secretária e um guarda-fato com gavetas. A cama rangia,
mas era confortável.
– Aquilo dá para o telhado – disse Jericho, apontando para uma saída de
emergência junto à janela. – Lá de cima podes ver quase toda a cidade.
– Oh! – conseguiu Evie replicar. – Estupendo.
Tencionava fazer mais do que ver toda a cidade do terraço. Havia de se
envolver nela. A mala já chegara e começou a desfazê-la enchendo as
gavetas vazias com as suas meias pintadas, chapéus, luvas, vestidos e
casacos. Pendurou os longos colares de pérolas nos postes da cama. O único
objeto que não guardou foi o pendente da moeda que James lhe oferecera.
Depois de terminar, Evie sentou-se com Jericho e o tio Will na sala
enquanto eles terminavam o seu jantar de sanduíches trazidas embrulhadas
em papel encerado da charcutaria da esquina.
– Como começaste a trabalhar para o meu tio? – perguntou Evie a Jericho
com uma gravidade dramática. Jericho olhou para o tio Will cuja boca
estava cheia. Nenhum deles respondeu.
– Bem, calculo que seja um vulgar mistério – prosseguiu Evie. – Onde
está Agatha Christie quando precisamos dela? Terei de inventar histórias a
vosso respeito. Vamos ver se o Jericho é um duque que empenhou o seu
ducado, palavra engraçada essa, e o Tito esconde-o de forças hostis do seu
país natal que lhe cortariam a cabeça.
– O teu tio foi meu tutor até eu ter feito dezoito anos este ano. Agora
trabalho para ele como assistente de curador.
Os dois homens continuaram a comer as suas sanduíches, deixando
insatisfeita a curiosidade de Evie.
– Muito bem. Engulo essa. Como foi que o Tito…
– Tens de me chamar isso?
Evie refletiu.
– Sim, acho que tenho. Como é que o Tito se tornou teu tutor?
– O Jericho era um órfão do Children’s Hospital.
– Oh… lamento. Mas como…
– Creio que a pergunta já foi respondida – disse o tio Will. – Se o Jericho
não deseja contar mais, fá-lo-á quando lhe aprouver e quando achar que é
devido.
Evie tinha vontade de responder de maneira brusca, mas como era
hóspede naquela casa, mudou de assunto.
– O museu está sempre assim, vazio?
– Que queres dizer com isso? – perguntou o tio Will.
– Vazio, privado de seres humanos.
– As coisas andam um pouco lentas.
– Lentas? Parece uma morgue! Precisa de corpos lá dentro, ou vai à
falência. Precisa de publicidade.
Will ficou a olhar para Evie com ar estranho.
– Publicidade?
– Sim. O tio já ouviu falar, não ouviu? É uma invenção moderna
estupenda. Dá a conhecer às pessoas as coisas de que precisam. Sabonete,
batom, rádios... ou o seu museu, por exemplo. Podíamos começar com um
slogan atraente como «Museu Americano de Folclore, Superstição e
Ocultismo... temos o espírito»!
– As coisas estão bem como estão – disse o tio Will como se quisesse
encerrar o assunto.
Evie soltou um assobio baixinho.
– Não pelo que vi. É verdade que a cidade está a tentar tirar-lho por causa
de impostos atrasados?
Will semicerrou o solhos por cima dos óculos que lhe escorregavam no
nariz.
– Quem te disse tal coisa?
– O taxista. Também me disse que o tio era objetor de consciência e,
provavelmente, bolchevique. Não que isso me importe. Só que pensei que
podia incentivar o local. Meter lá gente. Arranjar massa.
Jericho olhou primeiro para Will, depois para Evie e de novo para Will.
Aclarou a garganta.
– Importam-se que ligue a telefonia?
– À vontade – disse Will.
A voz do locutor borbulhou através dos fios.
– E agora a orquestra de Paul Whiteman em «Wang Wang Blues».
A orquestra lançou-se num swing e Evie acompanhou a música a
cantarolar.
CIDADE DOS SONHOS

A jovem estava exausta e zangada. Durante setenta e oito horas a fio ela e o
namorado, Jacek, tinham girado na maratona de dança na esperança de
ganhar o prémio, mas, por fim, Jacek adormecera, quase a fazendo cair. O
árbitro tocara-lhes no ombro, assinalando o final do concurso e também dos
seus sonhos.
– Porque terias de adormecer, meu papa mole? – A rapariga deu-lhe um
soco no braço quando saíram do concurso e ele cambaleou, praticamente
incapaz de se manter acordado.
– Eu? Segurei-te quatro vezes e continuaste a pisar-me com esses barcos
que tens nos pés.
– Barcos! – As lágrimas saltavam-lhe dos olhos. Aproximou-se dele e
tropeçou exausta de tanto esforço.
– Vamos lá, Ruta, não sejas assim. Vamos para casa.
– Não vou para lado nenhum contigo. És um incompetente.
– Não queres dizer isso. Vá lá. Senta-te aqui comigo neste degrau.
Podemos apanhar o comboio de manhã.
A exaustão contra a qual lutara durante tanto tempo acabara por ser
demasiado.
– Não vou voltar assim para que todos riam de nós e digam que eu não
sou nada de especial nem nunca hei de ser! – Sufocou um soluço, mas Jacek
não ouviu. Já adormecera na entrada de uma pensão. – Podes ficar aí que
não me importo! – gritou ela.
Os carris do comboio aéreo da Terceira Avenida formavam uma gaiola
sobre a cabeça de Ruta quando esta se dirigiu para sul, na Bowery, à
procura de uma entrada para o comboio onde não houvesse gandulos à
espera, sentados nas escadas vacilantes. A cada passo exausto, sentia o
amargo desapontamento de regressar de mãos vazias a Greenpoint,
Brooklyn, onde a família vivia num apartamento de dois quartos num
prédio a desfazer-se, numa rua onde quase ninguém falava polaco e os
velhos fumavam diante das montras cobertas com enormes fieiras de
salsichas. Ficava do outro lado do mundo em relação às luzes brilhantes de
Manhattan. Olhou para a parte alta da cidade, em direção ao brilho
enevoado da distante Avenida Park, onde viviam os ricos. Só queria a parte
que lhe competia. Nada de estar todos os dias ao PBX de um escritório de
advogados de segunda categoria, mal ganhando para ir ao cinema. Ruta
tinha apenas dezanove anos e o que mais conhecia era o desejo... a vontade
de conhecer a boa-vida que via em seu redor.
Ruta Badowski. Ruta. Odiava o seu nome. Era tão polaco, trazido pelos
pais, mas nascera aqui, em Brooklyn, Nova Iorque, EUA. Gostaria de
alterar para um nome mais americano como Ruthie ou Ruby. Ruby era bom.
Ruby... Bates. Amanhã, Ruta Badowski deixaria o seu emprego no PBX e
Ruby Bates tomaria o autocarro para o teatro do Sr. Ziegfeld para fazer uma
audição para corista. Um dia o seu nome apareceria rodeado de luz e Jacek
e os outros poderiam vê-la dos lugares mais baratos e ir bugiar.
– Boa noite.
Ruta soltou um suspiro abafado; a voz sobressaltou-a. Semicerrou os
olhos na escuridão.
– Quem está aí? É melhor pôr-se a andar. O meu irmão é polícia.
– Sempre tive grande apreço pela lei. – O desconhecido saiu da sombra.
Os olhos deveriam estar a pregar-lhe partidas, porque o homem parecia
quase um fantasma à luz. As suas roupas eram estranhas – definitivamente
antiquadas: um fato de tweed, embora estivesse calor, colete, casaco e
chapéu de coco. Trazia uma bengala com castão de prata representando uma
cabeça de lobo. O lobo tinha o focinho arrepanhado e olhos vermelhos
como rubis. Ruby... Ah! Aquilo causou-lhe um pequeno arrepio, embora
não soubesse porquê. Ocorreu-lhe de que não se encontrava num local
seguro. As maratonas de dança tinham geralmente lugar em bairros de má
reputação, onde não atraíam grande atenção da cidade,
– É um lugar muito mau para uma jovem sozinha – disse o desconhecido,
como se lhe lesse os pensamentos. Ofereceu-lhe o braço. – Posso ajudá-la?
Ruby Bates podia estar prestes a ser uma estrela glamorosa, mas Ruta
Badowski crescera nas ruas.
– Agradeço mesmo assim, cavalheiro, mas não preciso de ajuda – disse
rapidamente. Quando se voltou para partir, torceu o tornozelo e estremeceu
de dor.
A voz do desconhecido era profunda e calmante.
– Eu e a minha irmã temos um estabelecimento aqui perto, uma grande
pensão com uma cozinha. Talvez queira esperar aí? Temos telefone se
desejar ligar à sua família. A minha irmã, Bryda, deve ter feito paczki e
café.
– Paczki? – repetiu Ruta. – O senhor é polaco?
O desconhecido sorriu.
– Creio que somos todos sonhadores a tentar encontrar um caminho neste
país extraordinário, não é verdade, menina…?
– Ruta… Ruby Bates.
– Muito gosto em conhecê-la, menina Bates. O meu nome é Hobbes. –
Tocou ao de leve no chapéu. – Mas os meus amigos chamam-me John.
– Obrigada, senhor Hobbes – respondeu Ruta, cambaleando levemente do
cansaço.
– Tenho sais de cheiro que a podem ajudar. – O homem molhou o lenço e
estendeu-lho. Ruta cheirou-o. O cheiro pungente causou-lhe ardor no nariz,
mas sentiu-se mais animada. O desconhecido ofereceu-lhe de novo o braço
e, desta vez, ela aceitou-o. Aparentemente parecia um homem grande, mas
tinha um braço fino como um pau de fósforo por baixo do casaco grosso.
Qualquer coisa no braço fez com que Ruta se sentisse gelada por dentro e
retirou rapidamente o seu.
– Já estou bem. Os sais ajudaram. Aceito o café.
Ele fez uma pequena vénia.
– Como queira.
Caminharam juntos e a ponta de prata da bengala do desconhecido batia
no passeio com um ritmo cavo, enquanto ele cantarolava uma canção que
Ruta não conseguiu reconhecer.
– Que canção é essa? Nunca a ouvi na telefonia.
– Não. Creio que nunca a ouviu – respondeu o desconhecido.
Com o braço esquerdo, fez um gesto na direção da Bowery degradada,
com as suas missões cristãs e pensões baratas, hotéis infames, salas de
tatuagem, lojas que forneciam restaurantes e fábricas de bebidas de má
qualidade.
– «A Babilónia caiu, caiu, essa grande cidade.»
Apontou para os degraus de uma pensão barata, onde dormiam alguns
bêbados.
– Terrível. Alguém deveria limpar esta espécie de ralé, e mandá-los para
fora daqui. Não são como a menina e eu, menina Bates. Limpos. Bons
cidadãos. Pessoas com ambições. Contribuintes para esta brilhante cidade
na colina.
Ruta nunca pensara naquilo, mas deu por si a acenar afirmativamente
com a cabeça. Olhou para os homens com novo desagrado. Eram diferentes
da sua família. Estrangeiros.
– Não são da nossa espécie. – O desconhecido abanou a cabeça. –
Noutros tempos, a Bowery albergava os mais fantásticos restaurantes e
teatros. O grande ator J. B. Booth, pai de John Wilkes Booth, pisou-lhes o
soalho. Gosta das artes, menina Bates?
– Pois. Quero dizer, sim. Gosto. Sou atriz. – Sem saber porquê Ruta
sentia-se um pouco tonta. As ruas pareciam ter um pouco de brilho.
– Mas é claro! Uma jovem bonita como a menina. Há qualquer coisa de
especial em si, não é verdade, menina Bates? Posso dizer-lhe que tem um
destino muito importante a cumprir. «E a mulher estava vestida de cor de
púrpura e escarlate e enfeitada com ouro e pedras preciosas.»
O desconhecido sorriu. Apesar da hora tardia, da estranheza das
circunstâncias e da dor que sentia nas pernas, Ruta sorriu. O desconhecido...
não, afinal não era um desconhecido, pois não? Era o Sr. Hobbes. Um
homem tão simpático. Um homem inteligente e também de classe. O Sr.
Hobbes considerava-a especial. Via o que mais ninguém percebia. Era
aquilo a que a avó chamaria um wróżba, um presságio. Apetecia-lhe chorar
de gratidão.
– Muito obrigada – disse em surdina.
– E sobre a sua testa estava escrito um nome misterioso – disse o
desconhecido e o seu rosto iluminou-se com uma luz estranha.
– O senhor é pregador ou assim?
– Tenho a certeza de que deve estar desejosa de ligar à sua família. – Foi
a resposta do Sr. Hobbes. – Sem dúvida estarão preocupados.
Ruta pensou na sua família, amontoada no apartamento em Greenpoint e
tentou não se rir. O pai estaria acordado ao lado da mãe, a tossir a
humidade, o tabaco e o pó da fábrica dos pulmões. Os quatro irmãos e
irmãs estariam atravancados no quarto ao lado, a ressonar. Não sentiriam a
sua falta. E não tinha pressa de regressar.
– Não quero acordá-los – declarou e o Sr. Hobbes sorriu.
Percorreram um número estonteante de ruas laterais, até Ruta sentir que
se havia perdido. A Ponte de Manhattan erguia-se ao longe como um portão
para um submundo. Caía uma chuva miudinha.
– Então... então, senhor Hobbes, ainda estamos muito longe?
– Já chegámos. A sua charrete aguarda-a – disse e Ruta viu uma carroça
antiga, partida, puxada por uma velha pileca.
– Não disse que era mesmo aqui?
– Mas a menina está cansada. Levo-a de carro o resto do caminho.
Rute subiu e o suave balanço e o bater das patas do cavalo embalaram-na
no seu sono. Quando a velha carroça se deteve, viu apenas as enormes
ruínas de uma velha mansão numa colina, rodeada de terrenos vazios,
cobertos de ervas daninhas.
Ruta retraiu-se.
– Pensei que o senhor tinha dito que tinha uma pensão. Aqui só vejo
ruínas.
– Minha querida, os seus olhos pregam-lhe partidas. Olhe mais uma vez –
murmurou o Sr. Hobbes em voz baixa.
Acenou com o braço e ela viu um quarteirão encantador com casas
pegadas umas às outras, confortáveis e acolhedoras e, ao fundo, uma
mansão elegante, igual àquelas em que moravam os milionários, pessoas
com nomes como Carnegie e Rockefeller. Aquele Sr. Hobbes também devia
ser milionário! A chuva miudinha aumentou de intensidade. Os sapatos de
veludo com fivelas de pedrarias – o seu bem mais estimado que lhe custara
uma semana de salário – ficariam estragados, por isso seguiu o homem e
atravessou a rua em direção ao abrigo. Um gato preto cruzou-se-lhe no
caminho, sobressaltando-a. Soltou uma gargalhada nervosa. Estava a ficar
tão supersticiosa como a tia Pela, que via maus augúrios em todo o lado. A
porta rangeu e fechou-se atrás de si, fazendo Ruta dar um salto. O homem
sorria por baixo do grande bigode, mas o sorriso pouco afeto conferia aos
penetrantes olhos azuis. Este pensamento ocorreu-lhe brevemente, mas
afastou-o, achando-se tola. Estava decidida a sentar-se para descansar as
pernas estafadas.
Porém, o local tinha um cheiro estranho. A mofo, a podre e a algo mais
que não conseguia identificar, mas que lhe dava volta ao estômago. Levou a
mão ao nariz.
– Ai, um infeliz gato perdeu-se nos muros. Receio bem que o seu aroma
tenha permanecido – disse o Sr. Hobbes. – Mas está com frio e cansada.
Venha sentar-se. Vou acender o lume.
Ruta seguiu o homem até outra divisão. Semicerrando os olhos para
tentar ver no escuro, apercebeu-se dos contornos de uma lareira. Tropeçou e
estendeu a mão para se amparar. Sentiu a parede húmida e pegajosa.
Retirou imediatamente a mão e limpou-a no vestido estremecendo.
O Sr. Hobbes dirigiu-se à lareira fria e enegrecida e, logo a seguir,
apareceu um lume enorme. Ruta tentou perceber como podiam as chamas
lamber tão de repente o interior da chaminé. Não, disse para consigo, ele
colocara a madeira e acendera um fósforo. Claro que sim. Ela não se
lembrava, mas deveria ter sido o que acontecera. Safa, aquela maratona
dera-lhe cabo da cabeça
– A...acho que, afinal, devia telefonar aos meus pais. Vão ficar muito
irritados se não lhes ligar.
– Claro, minha querida. Vou acordar a minha irmã. Mas, primeiro,
prometi-lhe café.
De repente, tinha uma chávena na mão.
Com uma vénia e um toque no seu estranho chapéu, o homem
desapareceu-lhe da vista. Porém, ouvia-o cantarolar e percebeu que não
gostava daquela canção. Não sabia porquê, mas causava-lhe arrepios na
pele. O café estava forte e quente. Deixava-lhe na boca um gosto amargo,
mas enchia-lhe o estômago vazio e Ruta bebeu-o até ao fim. Mesmo assim
não a fez recuperar do cansaço. As suas pálpebras estremeciam enquanto
olhava para o lume. Cada vez mais pesadas...
Ruta acordou sentindo um estalido na cabeça e um sabor amargo na boca.
O lume apagara-se. Quanto tempo dormira? Ligara para a família? Não, não
ligara. Onde estava o Sr. Hobbes? E a irmã dele? Um rato passou a correr
pelo seu sapato. Ruta gritou e deu um salto, apercebendo-se que se sentia
estranhamente observada, como se o quarto tivesse vida. Juraria que ouvia
as paredes respirar. Mas isso seria impossível!
– Senhor Hobbes! – chamou. – Senhor Hobbes!
Ele não respondeu. Onde estaria? Onde estaria ela? Porque teria ido com
ele? Era demasiado esperta para o ter feito, para acompanhar um homem
totalmente desconhecido. Não, ele não era um desconhecido, disse para
consigo. Era o Sr. Hobbes, o bondoso Sr. Hobbes que a achara bonita e
especial. O Sr. Hobbes que podia estar aparentado com milionários, e podia
ser o seu bilhete de acesso para grandes coisas.
Então porque se sentiria tão aflita?
Em seu redor, a casa parecia viva com uma espécie de mal. Pronto. Já o
dissera. Mal. A palavra ocorrera-lhe exatamente quando passara pelo único
candeeiro a gás. A sua chama trémula lançava a dúvida sobre a verdadeira
natureza das paredes. Umas vezes pareciam de uma bela cor dourada, outras
Ruta via-as cobertas por um papel sujo a separar-se do estuque em tiras
esfarrapadas. Longas riscas manchavam o lugar iluminado pelo candeeiro.
Aproximou-se para analisar melhor e viu tratar-se de marcas sujas de dedos.
Não. Não era sujidade. Sangue. A impressão sangrenta de uma mão.
Quatro. Só com quatro dedos. Faltava um.
Ruta sentiu o coração bater violentamente e faltar-lhe a força nas pernas.
Cometera um erro terrível. Teria de sair dali imediatamente. Voltou-se e viu
horrorizada desfazerem-se as suas ilusões e a casa transformar-se diante dos
seus olhos num buraco infeto com a podridão a trepar pelas paredes em
direção a ela. O cheiro atingiu-a como um soco, fazendo-a vomitar. E havia
ratazanas. Com um pequeno grito, Ruta tropeçou para diante, como se
pudesse ultrapassar a escuridão que vinha apanhá-la. Onde ficava a porta?
Não conseguia encontrá-la! Era quase como se a casa a afastasse dela.
Como se a quisesse manter ali.
– «E na sua testa estava escrito um nome: Mistério, a grande Babilónia, a
Meretriz…»
Não conseguia ver o desconhecido, mas ouvia-o assobiando agora aquela
canção horrível. Tinha de haver outra maneira de sair dali! Uma janela à sua
direita parecia promissora e correu para ela. Através das tábuas pregadas
conseguiu entrever um bêbado que avançava pelo terreno vazio do outro
lado da rua em busca de um local para urinar.
– Ei! Ei, senhor! Socorro! Ajude-me por favor! – gritou. Como ele não a
ouvisse, Ruta bateu com as mãos na madeira. Tentou arrancar as tábuas que
não se moveram até ficar com as unhas em sangue e as palmas das mãos
cheias de lascas. Lá fora, o bêbado tratou do que tinha a fazer sem dar por
nada e partiu para a noite, enquanto Ruta se deixava cair a soluçar no chão
imundo.
Quando Ruta tinha três anos, a mãe fechara-a numa arca para que o
senhorio não descobrisse que tinham mais uma criança e os pusesse na rua.
Ali ficara, sozinha, apertada, em silêncio na escuridão, aterrorizada.
Parecera-lhe que haviam passado horas até que a libertassem e, desde aí,
sempre que se sentia fechada, era como se fosse de novo uma criança
assustada. O pânico esvaziava-lhe o espírito de qualquer tipo de lógica.
Andou desesperada pela casa que parecia crescer. Corredores labirínticos
levavam-na a quartos esquálidos; portas abriam-se para paredes de tijolo.
Ouvia à sua volta o horrível assobio do homem. Por fim foi ter a uma porta
que ainda não tinha experimentado. Pôs a mão no puxador. O chão cedeu
debaixo dos seus pés e caiu pela entrada fedorenta e esquecida de uma cave.
Doía-lhe o tornozelo que tinha torcido e ficara dobrado por baixo de si,
obrigando-a a gritar de dor. Tentou dar um passo, mas foi uma agonia e caiu
de novo no chão duro e sujo.
O soalho estalava debaixo dela e ouvia ao mesmo tempo o assobio
distante do desconhecido. Sentiu o cérebro vazio de tudo, exceto da ideia de
sobrevivência. Pestanejou, obrigando os olhos a ajustarem-se à escuridão.
Caíra de uma altura considerável: a cave era muito funda, provavelmente
cerca de seis metros abaixo do nível da rua. Tinha a certeza de que poderia
gritar todo o dia sem ser ouvida. Precisava de uma arma. Arrastou-se uns
centímetros palpando, tentando encontrar qualquer coisa de que se pudesse
servir. Finalmente, tocou com a mão num pau liso. Era leve, mas aplicado
com força contra um olho ou um pescoço, poderia ferir. Agarrou-o com
força de encontro ao peito e esperou. Ouviu uma porta abrir-se lá em cima,
o que permitiu a entrada de um pequeno raio de luz. Viu uma escada por
trás de uma parede, mas nunca conseguiria subi-la no estado em que se
encontrava. O pau era a sua melhor aposta. Poderia ter de fazer mais do que
apenas ferir.
O Sr. Hobbes fechou a porta e a luz desapareceu. Ruta ficou mergulhada
na escuridão total, como lhe acontecera dentro do baú. Esforçou-se por
manter a respiração calma, embora desejasse gritar com todas as suas
forças. Os passos do desconhecido soavam pesados, mas regulares, na sua
direção e Ruta apercebeu-se de que ele já não utilizava a bengala. A canção
ecoava na cave. Desta vez juntara-lhe a letra. «John Perverso, John
Perverso trabalha com o avental posto. Corta-te o pescoço, leva-te os ossos
e vende-os por uma mão-cheia de pedras.»
A saliva parecia não lhe descer pela garganta. Ruta estava demasiado
assustada para engolir. A antiga fornalha surgiu de novo para a vida,
enchendo o compartimento com uma luz vermelha de sombras macabras.
Ruta escondeu-se atrás dos restos de uma cortina de tule, pendurada de
um varão de roupa e ficou a olhar através do tecido granulado. Não via o Sr.
Hobbes, mas conseguia ouvi-lo.
– «... a Grande Babilónia, a Meretriz Adornada e lançada ao Mar, a
abominação na Terra. E foi a quinta oferta conforme ordenado pelo Senhor
Deus.»
Ruta sentia a língua pesada dentro da boca. Pelo canto dos olhos divisava
coisas inquietantes em movimento, mas quando voltava a cabeça
desapareciam. Tinha a perna esquerda dormente.
– E vi um novo céu e uma nova terra: pois o primeiro céu e a primeira
terra desapareceram e o mar deixou de existir. E eu, John, vi a cidade santa
de Jerusalém descendo de Deus, no céu, preparada como uma noiva
enfeitada para o seu esposo. E ouvi uma grande voz do céu, que dizia: «Eis
aqui o tabernáculo de Deus com os homens, pois com eles habitará, e eles
serão o seu povo, e o mesmo Deus estará com eles, e será o seu Deus.»
Estás a ouvir, Ruby?
Ruta agarrou-se ao pau com toda a força e manteve-se em silêncio.
O homem lançou qualquer coisa no lume para o espevitar.
– Aquele que estava sentado no trono disse: «Agora faço novas todas as
coisas! Sou o Alfa e o Ómega, o princípio e o fim. Àquele que tem sede,
darei de beber da fonte da água da vida. O vencedor herdará todas as coisas;
eu serei o seu Deus, e ele será meu filho.» – Percorria o perímetro do
compartimento enquanto falava. – Mas os incrédulos, os abomináveis, os
fornicadores e os idólatras terão a sua parte no lago que arde com fogo e
enxofre. Porque apenas os escolhidos se erguerão com a Besta. E o mundo
ficará em cinzas.
Pela voz do homem, Ruta sabia que ele se encontrava do lado oposto.
Sentiu a visão turvar-se-lhe e o estômago apertado. Apercebeu-se
horrorizada de que não conseguia mexer as pernas. Que lhe estaria a
acontecer? Recordou-se do lenço que cheirara e do café que bebera e sentiu
o coração disparar. Que conteriam? Olhou de novo para o pau que tinha na
mão e viu que se tratava de um osso. Soltou um grito e deixou-o cair
agoniada. A cortina abriu-se e o Sr. Hobbes surgiu sobre ela como um deus
vingativo.
– Não se aflija com a minha aparência, minha querida. Mal comecei a
manifestar-me.
Tinha os braços e o pescoço marcados com estranhas tatuagens, símbolos
que ela não conhecia. Os símbolos ondulavam e sobressaíam. A sua carne
mexia-se como se algo deslizasse dentro dela. Apenas conseguia dar voz ao
seu medo na sua primeira língua e por isso murmurou uma oração em
polaco.
O homem franziu a testa.
– Orações? Pensei que fosse uma rapariga moderna numa época moderna.
Iluminado pela fornalha, o desconhecido parecia um demónio negro.
Sentia já os braços imóveis. Ruta batia os dentes.
– P...por favor. Por favor. Não conto a ninguém.
– Mas tem de contar. – O desconhecido arrastou Ruta pelo seu braço
inútil. – Bem te disse que tinhas um importante destino a cumprir e é o que
farás: Tu, Ruby Bates, és o princípio do fim.
John Perverso, John Perverso, trabalha com o avental posto…
Quando chegou à parede por detrás da fornalha, tocou-lhe com os seus
dedos cor de osso. Uma porta escondida abriu-se para revelar um quarto
secreto.
– Nie, nie, nie – murmurou Ruta, como se pudesse desejar que a porta não
se abrisse.
– Sou aquele que vive. Estive morto, mas agora estou vivo para todo o
sempre, ámen! E tenho as chaves do Hades e da morte.
Sorriu-lhe e quando Ruta lhe viu nos olhos o fogo e um infinito turbilhão
negro a sua bexiga descontrolou-se.
– O ritual começa de novo – disse o desconhecido. Puxou Ruta para o
quarto escondido e ela apenas pôde gritar.
DESCONHECIDO DE PASSAGEM

– O famoso Clube Hotsy Totsy de Nova Iorque apresenta a orquestra de


Count Carruthers e as belas Hotsy Totsy Girls!
Nos bastidores, Memphis Campbell observava as coristas escassamente
vestidas lançadas num enérgico número de dança. O clube estava fantástico
nessa noite. O trompete de Gabe gemia e os dedos de Count atacavam todas
as oitenta e oito teclas do piano. Gabe tocava um trecho de «America is
Beautiful», transformando a música num cântico e deixando o trompete
deslizar desesperado antes de retomar o ritmo. Os brancos do público não se
aperceberam, mas esboçaram-se sorrisos nos rostos dos negros.
Gabe soltou a sua última nota aguda. O público aplaudiu enquanto as
coristas se curvavam e deslizavam para os bastidores rindo e conversando.
Uma jovem curvilínea chamada Jo, acariciou o rosto de Memphis ao passar
por ele.
– Olá, Memphis.
– Olá, também.
Alma, a amiga de Memphis, revirou os olhos enquanto ajustava a parte da
frente do fato.
– Queres ganhar dinheiro ou passar o tempo, Memphis?
– As duas coisas, espero.
Jo soltou uma gargalhadinha e fez-lhe cócegas no braço. Memphis sorriu
a Jo.
– «Desconhecido que passa!» – declamou ele poisando a mão no coração.
– «Não sabes com que ansiedade ponho os meus olhos em ti/ Deves ser
quem eu procuro (vens até mim como num sonho) /Certamente já vivi
contigo uma vida de alegria...»
– Foste tu que escreveste isso, amor? – ronronou Jo.
Memphis abanou a cabeça.
– É de Walt Whitman. «A Um Desconhecido». Nunca leste os poemas
dele?
– Ela só lê as colunas dos mexericos – disse Alma. Jo lançou-lhe um
olhar assassino.
– Vais atrasar-te – disse Memphis, dirigindo a Jo toda a voltagem do seu
sorriso.
– Este rapaz vive na biblioteca da Rua Cento e Trinta e Cinco. Quer ser o
próximo Langston Hughes10 – informou Alma.
– Ah, sim? – perguntou Jo.
– Podia ler-te uns poemas um destes dias.
– Que tal no domingo? – perguntou Jo, passando a língua pelos lábios.
– Os domingos sempre foram os meus dias de sorte.
Alma revirou de novo os olhos e empurrou Jo para a fila.
– Vamos, meninas. Não temos tempo para parvoíces. Precisamos mudar
de roupa para o número da lua.
– Adeus, queridinho. – Jo soprou um beijo a Memphis e ele fingiu que o
apanhava.
– Memphis! – gritou o contrarregra com o charuto preso entre os dentes.
– Não te pago para ficares de conversa com as miúdas. O Papa Charles quer
falar contigo. Mexe-te.
No corredor estreito, Memphis passou por Gabe e Count que iam a sair.
– Ei, patrão – disse Gabe, agarrando a mão de Memphis. – Vamos àquela
festa no sábado? Vai estar cheia de miúdas e de uísque.
– De quem é o uísque? Não vão arranjar verniz de caixão de pessoas que
não conhecem para depois acabarmos todos na morgue. – Era um facto que
alguns contrabandistas de bebidas mal-afamados misturavam por vezes o
álcool com querosene ou gasolina.
Gabe abriu as mãos e sorriu.
– Deixa isso aqui com o Gabe, mano.
Memphis riu-se. Para além de Isaiah, Gabe fora uma constante na sua
vida. Conheceram-se na quarta classe, quando Gabe se metera em sarilhos
com o diretor por vender cigarros atrás da escola e Memphis fora designado
seu acompanhante para o meter na ordem. Foi o que marcou aquela
amizade: Memphis continuava presente para tirar Gabe de sarilhos e Gabe
estava presente para ajudar Memphis a meter-se neles. A única coisa séria
para Gabe era a música. Era um dos melhores trompetistas da cidade.
Começava já a ouvir-se falar do rapaz magrizela com um som fantástico.
Até Duke Ellington viera ouvir Gabe. Era essa uma das razões para que o
Papa Charles o deixasse ficar. Gabe costumava pregar partidas e arranjar
sarilhos, mas assim que começava a tocar aquele instrumento, tudo valia a
pena.
– Vou dar umas passas. Queres uma ganza? – perguntou Gabe já com os
olhos um pouco vermelhos.
Memphis abanou a cabeça.
– Tenho de manter a cabeça fresca, Gabe.
– Que te faça bom proveito, avozinha.
– Geralmente faz – disse Memphis. Bateu com a mão no candeeiro do
teto, para sentir o calor da lâmpada e depois passou por um túnel para entrar
no prédio ao lado onde estavam os escritórios. Havia várias secretárias,
sentadas a mesas compridas, a contar dinheiro do jogo dos números.
Memphis tocou no boné ao vê-las e meteu-se no gabinete do Papa Charles.
Da sua cadeira por trás de uma secretária de mogno, Papa Charles indicou a
Memphis uma cadeira para que se sentasse enquanto esperava que ele
terminasse um telefonema.
Papa Charles era o indiscutível rei do Harlem. Controlava o jogo dos
números, as corridas de cavalos e os combates de boxe. Tratava do
contrabando de bebidas alcoólicas e dos problemas com a polícia. Quem
precisasse de um empréstimo ia ter com o Papa Charles. Quando uma igreja
precisava de um novo edifício, o Papa Charles dava o dinheiro. Escolas,
irmandades e até a equipa profissional de basquetebol do Harlem, a New
York Renaissance, ou Rens, eram, em parte, financiadas pelo Papa Charles,
o Cavalheiro Elegante. E em vários clubes e bares ilegais como o Hotsy
Totsy era ele que exibia alguns dos melhores músicos e dançarinos da
cidade.
– Pois bem, enquanto for eu a tratar do jogo dos números no Harlem, ele
é dos negros – disse o Papa Charles com firmeza ao telefone. – E podes
dizer ao Dutch Schultz e aos sócios que fui eu que o disse. – Desligou com
força e abriu a tampa de uma caixa de prata para escolher um charuto.
Mordeu a ponta e cuspiu-a para o cesto dos papéis. Memphis acendeu-lho,
esforçando-se por não tossir quando as primeiras fumaças subiram no ar.
– Chatices?
Papa Charles acenou para afastar a ideia e o fumo.
– Os brancos contrabandistas de bebidas agora querem ficar com os
números. Não tenciono deixar. Mas estão a insistir. Ouvi dizer que a polícia
fez uma rusga a uma das chafaricas da Queenie.
– Pensei que ela pagasse à polícia.
– E paga. – Deixou cair o assunto enquanto chupava o charuto, tornando
o ar pesado e picante. – Os brancos perderam o interesse pelos nossos
jogos. Têm o contrabando de bebidas para se entreterem. Mesmo assim é
preciso ter o máximo cuidado com eles. já avisei todos os homens. Como
está a tua tia Octavia?
– Está bem.
– E o Isaiah? Anda bem?
– Sim, senhor.
– Ótimo, ótimo. E nas ruas?
– Impecável.
Papa Charles sorriu.
– A melhor maneira de aprender o negócio é nas ruas. Um dia poderás
trabalhar aqui a meu lado.
Memphis não queria trabalhar para o Papa Charles. Queria ler a sua
poesia num dos salões da menina A’Lelia Walker juntamente com Countee
Cullen, Zora Neale Hurston e Jean Toomer – talvez até ao lado do próprio
Sr. Hughes.
– Estás bem, filho? Passa-se alguma coisa?
Memphis conseguiu sorrir.
– O senhor sabe como sou. Não tenho preocupações.
Papa Charles sorriu em redor do charuto.
– Assim já és o Memphis que eu conheço.
O bom do Memphis. O Memphis em quem se confiava. O Memphis
encantador e de bom feitio. O Memphis protetor. Outrora Memphis fora
uma estrela. Um milagre que acabara em tristeza. Nunca mais arriscaria.
Confinava agora os seus sentimentos às páginas do seu caderno.
– É tempo de cobrarmos as gratificações aos nossos amigos agradecidos –
disse o Papa Charles. Tratava-se do código para o dinheiro da proteção que
todos os comércios pagavam ao Cavalheiro Elegante, se queriam manter o
negócio. A cidade usava tanta corrupção como eletricidade.
– Sim, senhor.
– Memphis, tens a certeza de que te sentes bem?
Memphis esboçou de novo o seu sorriso.
– Nunca estive tão bem.
Ao sair do clube, Memphis acenou ao motorista do Papa Charles, que
montava guarda ao lado do Chrysler Imperial, novinho em folha, antes de
se misturar com a multidão que saía para se divertir na Avenida Lenox.
Percorria os vários clubes noturnos que Papa Charles geria – o Yeah Man, o
Túmulo dos Anjos Caídos e o Whoopee – e também os speakeasies mais
pequenos, escondidos nas caves dos prédios das arborizadas ruas laterais.
Memphis seguia homens enormes a compartimentos das traseiras, cinzentos
de fumo de cigarro, onde as pessoas se sentavam às mesas de pano verde a
jogar às cartas, a dar tacadas de bilhar ou a lançar os dados. As mulheres
afagavam-lhe o queixo, chamavam-lhe «pêssego», convidavam-no para
dançar. Ele recusava, usando o sorriso para suavizar a rejeição. Por vezes os
donos do clube ofereciam-lhe uma bebida ou deixavam-no ouvir o jazz e
ver as raparigas dançar. Outras vezes deixavam-no à espera no andar de
cima num gabinete mal iluminado, onde Memphis nunca tinha a certeza se
iam voltar com o dinheiro ou uma metralhadora. Nas impecáveis colunas do
livro de contas, apontava a quantia paga, furtando-se às perguntas acerca de
se o Papa Charles sabia qual o combate ou o jogo que fora comprado.
– Sou só um agente – dizia, servindo-se do sorriso.
Nas ruas, mantinha-se alerta por causa dos polícias à paisana. Se fosse
preso, o Papa Charles pô-lo-ia cá fora em poucas horas, mas, mesmo assim,
não queria arriscar.
Já passava bastante das onze quando Memphis regressou ao Hotsy Totsy.
Gabe veio a correr ter com ele.
– Onde foste, boss?
– Fui tratar de umas coisas. Porquê?
– Vem depressa! Foi a Jo, caiu e magoou-se.
– Então chama o médico.
– Ela está a chamar por ti, Memphis.
Jo estava sentada ao fundo das escadas, a chorar, rodeada pelas outras
coristas preocupadas. Por uma fenda no pano, Memphis percebeu que o
público estava a ficar inquieto. Era altura de começar o número seguinte e o
tornozelo de Jo estava a inchar.
– Meti o salto no segundo degrau e torci o pé – murmurou por entre
lágrimas. – Oh, por favor meu Deus! Fazei com que não esteja partido.
– É melhor dizer à Francine que entra agora – disse uma das coristas.
Jo abanou a cabeça.
– Tenho de entrar esta noite. Preciso do dinheiro! – Olhou para Memphis
com ar implorante. – Lembrei-me de ti. O que podes fazer? Por favor,
Memphis, ajuda-me.
O queixo de Memphis endureceu.
– Já não consigo fazer isso.
Jo soluçava e Gabe pôs uma mão no braço de Memphis.
– Vá lá, mano. Tenta…
– Já te disse que não posso! – Memphis afastou a mão de Gabe e fugiu
pelas escadas abaixo enquanto o contrarregra tomava Jo nos braços e levava
embora a infeliz rapariga. No palco, o compère anunciava o número
seguinte, o Black Bottom e as outras raparigas, bem como Francine,
entraram a saltitar com os seus sorrisos e pouco mais. Memphis entregou às
secretárias o dinheiro que recolhera nas suas voltas. Saiu de novo para a
noite, perturbado pelas recordações de um tempo em que fora outra pessoa,
um rapaz de oiro com mãos que curavam: Memphis Milagroso, o
Curandeiro do Harlem.
Memphis sentira subitamente o seu poder curativo depois de uma doença,
aos catorze anos. Durante dias ficara num estado de semiconsciência, tendo
estranhas visões, enquanto a febre lhe queimava o corpo. A mãe nunca
abandonara a sua cabeceira. Quando melhorou, foram diretamente à igreja
para agradecer. Nesse domingo de manhã, na igreja sionista da velha Mãe
AME, Memphis curou pela primeira vez. Isaiah, o seu irmão de sete anos,
caíra de uma árvore e partira um braço. O osso saíra debaixo da pele num
ângulo terrível. Memphis queria apenas acalmar o irmão que gritava,
quando pôs as mãos sobre ele. Nunca esperara o intenso calor que se
formou de repente entre a pele de Isaiah e as suas próprias mãos. O transe
atingiu-o rapidamente. Revirou os olhos e sentiu como se tivesse deixado o
corpo e ficasse preso num sonho errante. Viu coisas nesse estranho espaço
vazio que habitou durante uns segundos, coisas que não compreendeu:
rostos na bruma, sombras espectrais e um homem estranho de chapéu alto,
cujo casaco parecia ser feito da própria terra. Viu uma luz brilhante e ouviu
um bater de asas e, quando Memphis voltou a si, a tremer, tinha-se juntado
uma multidão em seu redor no adro. Isaiah saíra debaixo do toque do irmão
e balançava o braço descrevendo círculos perfeitos.
– Curaste-o, Memphis. Como é que fazes isso?
– Eu... eu não sei. – Apesar do calor estival de Nova Iorque lhe ensopar a
gola do seu fato domingueiro, Memphis sentiu-se arrepiado.
– É um milagre – disse alguém. – Louvado seja Jesus!
Memphis viu a mãe diante da congregação assombrada, com uma mão a
cobrir a boca e teve medo que ela lhe batesse pelo que fizera. Mas ela
abraçou-o com força. Quando se afastou tinha lágrimas nos olhos.
– O meu filho tem o poder de curar – murmurou, segurando-lhe o rosto
com as mãos.
– Ouviram? Este rapaz tem o poder de curar – gritou alguém. – Vamos
rezar.
Curvaram as cabeças e estenderam as mãos para ele, e Memphis sentiu
que lhe abençoavam a cabeça e os ombros, os dedos da mãe fechando os
seus e o medo transformou-se em exaltação. Eu fiz aquilo, pensou
maravilhado. Como fiz aquilo?
Apenas a tia Octavia manteve o seu ceticismo.
– Porque daria o bom Deus um tal dom a um rapazinho? – perguntou
mais tarde à mãe dele, na casa da Rua 145.
Estavam na sala da frente, sentadas junto da telefonia a arranjar feijão
para o jantar do dia seguinte. Estava demasiado calor para conseguir dormir,
por isso Memphis levantara-se para beber um copo de água. Quando as
ouviu a conversar, escondeu-se no corredor escuro, à escuta.
– Por vezes um dom é afinal uma maldição disfarçada, Viola. Um teste do
bom Deus. Pode ser o próprio Diabo dentro do rapaz.
– Cala-te, Octavia – dissera a mãe. Raramente se impunha à irmã mais
velha e Memphis sentiu-se orgulhoso dela, mesmo quando as palavras da tia
semeavam dúvidas sob a sua pele. – O meu filho é especial. Vais ver.
– Espero que tenhas razão, Vi – dissera Octavia após uma pausa e depois
nada mais se ouviu, exceto o snip, snip, snip do feijão-verde a ser cortado
ao meio e atirado para uma tigela.
A notícia dos poderes de Memphis rapidamente se espalhou pelas igrejas
do Harlem. Quando o pastor Brown recusou utilizar o dom de Memphis nos
serviços religiosos da igreja sionista Mãe AME – «Não temos esse tipo de
religião, Viola» – a mãe de Memphis levara-o às várias igrejas pentecostais
e espiritualistas apesar das objeções de Octavia:
– São religiões de gente baixa e exagerada... alguns deles falam até com
os mortos, Vi. Nada de bom vai vir daí, escuta o que te digo.
Assim, no quarto domingo de cada mês, durante oito meses a fio,
Memphis colocou-se ao lado do púlpito, observando rostos ao mesmo
tempo esperançosos e céticos. Enquanto o coro cantava «Avança pela
Água» e as pessoas rezavam e por vezes gritavam a Deus, os fiéis
aproximavam-se com os seus males e Memphis apunha as mãos sobre eles,
sentindo o calor crescer sob as palmas, vendo esse outro lugar do seu
espírito, um lugar de rostos vagos na bruma. Memphis, o Milagroso. E,
depois, quando mais importância teria, o milagre abandonara-o. Não, não só
o abandonara, como se voltara contra ele.
De vez em quando, percebia que Octavia o olhava da porta com uma
expressão algures entre o desdém e o medo.
– O Diabo não precisa de muito para entrar, Memphis John, lembra-te
disso.
Memphis geralmente pensava que as ideias obcecadas da tia acerca do
Demónio eram um disparate. Mas, e se tivesse razão? E se houvesse alguma
coisa extremamente errada, uma sombra a seu lado, que aguardava? Esta
ideia era como o seu sonho – inquietante e incompreensível.
O problema com Jo no clube deixara Memphis perturbado e, assim, já
depois de ter tratado de tudo o que tinha a fazer naquela noite, saltou para
um autocarro de dois andares da Fifth Avenue Coach Company, que se
dirigia à parte alta da cidade passando pela Rua 155. Percorreu vários
quarteirões para norte, depois para oeste em direção ao rio, onde as casas
escasseavam e chegou por fim a um pequeno cemitério africano sobre uma
falésia, o lugar de descanso final de escravos libertos e soldados negros.
Ali, na paz e sossego de possíveis antepassados, Memphis gostava de se
sentar e escrever. Encontrou a lanterna que escondia dentro do buraco de
um carvalho acolhedor. Acendeu um fósforo da carteira que metera no
bolso no clube Yeah Man. A chama dentro da lanterna lançou uma luz
reconfortante. Memphis sentou-se na terra fresca e abriu o caderno. A seu
modo, a escrita era como uma cura: uma cura para a solidão que sentia. Por
vezes a cura funcionava, outras vezes não. Mas continuava a tentar.
Inclinou a cabeça sobre o caderno, escrevendo à luz da lanterna,
perseguindo as palavras como se fossem caudas de cometas. Em seu redor o
Harlem estava vivo, com escritores, músicos, poetas e pensadores que
mudavam o mundo. Memphis queria fazer parte dessa mudança.
A sua concentração foi quebrada pelo crocitar de um corvo empoleirado
numa pedra tumular ali perto. A mãe de Memphis dissera-lhe que os
pássaros eram arautos. Avisos. Claro que se tratava de uma tolice – nada
mais que os restos da superstição africana. Os pássaros eram apenas
pássaros. Por momentos recordou-se dos corvos do seu sonho, mas foi um
pensamento fugaz. A hora ia adiantada e os olhos de Memphis ardiam de
cansaço. Apagou a lanterna, guardou tudo na sua mochila e dirigiu-se para a
rua deserta com o seu único candeeiro a gás. A lua ali estava, cheia, por
cima das ruínas de uma velha casa na colina, a antiga mansão dos Knowles,
agora diminuída ao longe pelas fileiras de prédios de apartamentos.
Ninguém ali vivia desde que Memphis começara a ir para o cemitério. A
casa causava-lhe arrepios e, por isso, caminhava no centro da rua, para se
afastar dela.
A luz fria batia nas janelas entaipadas e na relva cheia de lixo. Detinha-se
nos braços de mármore de um anjo quebrado e dava vida às árvores mortas.
Memphis lançou à casa um rápido olhar e deteve-se. Pareceu-lhe ver
movimento pelo canto do olho. Havia qualquer coisa de diferente na casa,
embora não percebesse o quê.
O corvo aborrecido esvoaçou diante dele, obrigando-o a dar um salto.
Memphis apressou-se a seguir o seu caminho. Uma vez chegado às
movimentadas ruas do Harlem, abanou a cabeça e riu baixinho do seu
sobressalto.
Reconfortaram-no os anúncios de néon, os acordes do jazz que saíam dos
clubes na esteira das ondas de multidões que, felizes e bem-vestidas,
empurravam as portas. O cego Bill Johnson arrastava os pés rua acima,
tateando o caminho com a bengala. Memphis não tinha vontade de falar
com o velho, por isso passou para o outro lado e seguiu a correr. Sabia-lhe
bem fazê-lo naquela noite quente de setembro. Tinha o seu caderno de
poemas, os livros e o bolso cheio de dinheiro. Porque haveria de se
aborrecer? Era já tempo de deixar de se preocupar e seguir com a sua vida.
Com o seu mundo às costas, Memphis percorreu o resto do caminho de
volta para o Harlem. Passou pelas casas de Sugar Hill, espreitando de longe
para a luz ambarina das janelas e das vidas que esperava fossem um dia
como a sua, e dirigiu-se a casa.
O irmão Isaiah dormia na cama estreita junto à janela do quarto das
traseiras. Memphis tirou os sapatos, despiu-se e meteu-se na cama o mais
silenciosamente possível. Isaiah sentou-se e Memphis susteve a respiração,
esperando que o irmão desse a volta e adormecesse outra vez. Esperava não
o ter acordado.
Isaiah sentou-se muito quieto, a olhar para o escuro.
– Sou o dragão. A besta antiga – disse.
Memphis soergueu-se nos cotovelos.
– Homem de Gelo, estás bem?
Isaiah não se mexeu.
– Estou à porta e bato.
Segundos depois, caiu sobre a almofada, a dormir profundamente.
Memphis palpou a testa do irmão, mas estava fresca. Um pesadelo,
calculou. Memphis bem os conhecia. Voltou-se para o lado e descontraiu o
corpo. Sentiu as pálpebras pesadas e o sono apoderou-se dele.
No sonho, Memphis encontrava-se numa estrada poeirenta entre campos
de milho. Lá em cima, as nuvens amontoavam-se escuras e zangadas. Havia
uma quinta ao longe, um celeiro vermelho e uma árvore retorcida, despida
de folhas. Um corvo crocitava sobre uma caixa de correio sobre um poste
de madeira. O corvo voou para os campos e empoleirou-se no ombro de um
homem alto com um chapéu estranho. Tinha a pele cinzenta como o céu, os
olhos negros e brilhantes. As meias-luas das suas unhas estavam cheias de
terra e usava um anel em cada dedo.
– Chegou a hora – disse o homem, mas Memphis não viu os lábios
mexerem-se.
O sonho mudou. Memphis estava num longo corredor. Num extremo
havia uma porta de metal e nela via-se um símbolo: um olho rodeado por
raios de sol e um relâmpago por baixo como o longo zigue-zague de uma
lágrima. Ouviu um suave bater de asas e depois perdeu-se no nevoeiro,
enquanto a voz da mãe o chamava:
– Oh, meu filho, meu filho…
Memphis não tinha consciência das lágrimas que lhe humedeciam as
faces. Gemeu baixinho no sono, voltou-se e perdeu-se num sonho diferente,
com coristas bonitas agitando leques de plumas, soprando-lhe beijos e
prometendo-lhe o mundo.
10 John Langston Hughes (1902-1967), poeta, ativista, romancista, dramaturgo e colunista. Mais
conhecido como líder do movimento Harlem Renaissance. (N. da T.)
O SONHO DE EVIE

O sonho de Evie começou, como tantas vezes acontecia, com o nevoeiro, a


neve e a floresta. James estava à entrada da floresta com o seu belo
uniforme de caqui, pálido e triste. Os lábios de Evie formaram o nome dele,
mas dentro do sonho não havia som. James fez-lhe sinal com um braço para
que o seguisse.
As árvores eram cada vez mais escassas até que chegaram a uma pequena
clareira cheia de soldados. Um rapaz com divisas de sargento começou a
gritar ordens e o acampamento ficou desfocado com o súbito movimento –
apagaram-se os cigarros debaixo das botas, abandonaram-se os púcaros de
lata com café, colocaram-se as máscaras de gás e tomaram-se posições,
todos os homens aguardavam, alerta. As nuvens negras rodopiavam lá em
cima. Os relâmpagos rasgavam a escuridão como uma carga – um, dois,
três! Alguém a puxava para uma profunda trincheira e Evie deslizava pelos
muros de terra semelhantes a túmulos, escondendo um inimigo que não
conseguia ver. O silêncio era sepulcral, como se o mundo sustivesse a
respiração; depois Evie viu assombrada uma onda de luz feroz e violenta
espalhar-se pelo céu, seguida, segundos mais tarde, por uma força terrível
que a atirou ao chão como o soco de um gigante invisível.
O ar rodopiava cheio de fumo e cinza. Evie saiu da trincheira e caiu sobre
um soldado cujos ossos se desfizeram em pó. Era como se tivesse sido
completamente escavado. Não tinha olhos, a boca estendia-se no mais
horrível dos sorrisos. Lágrimas sangrentas marcavam as suas faces
enrugadas e fundas. Evie gritou e debateu-se, tentando avançar pela terra
queimada, onde os corpos dos soldados mortos se espalhavam como flores
silvestres pisadas. Agora as belas árvores não passavam de farrapos
enegrecidos. Aqui e ali avistou fantasmagóricos soldados nos húmidos
limites do campo, mas quando voltou a cabeça, tinham desaparecido. Evie
chamou James e ali estava ele num atalho mais adiante, são e salvo! Correu
para ele, mas o irmão tinha no rosto uma expressão de aviso. Dizia qualquer
coisa que ela não conseguia ouvir. Os olhos dele. Qualquer coisa lhe
acontecera aos olhos. James estendeu os braços e lançou a cabeça para trás.
Seguiu-se outra luz ofuscante.
Evie acordou, sufocando o princípio de um grito. A pequena ventoinha
zumbia junto à cama, mas Evie estava encharcada em suor. Com dedos
trémulos, procurou o interruptor da luz e pestanejou para se defender da luz
súbita. Sentia-se nervosa por estranhar o quarto. Precisava de respirar.
Subiu a frágil escada de incêndio até ao terraço, onde o ar era livre e fresco.
Jericho tinha razão – a vista era ótima lá de cima. Manhattan desenrolava-se
diante dela como o veludo de um joalheiro adornado de diamantes. Os
comboios seguiam aos solavancos sobre os carris. A cidade estava tão
inquieta como ela. No parapeito um pombo arrulhava e debicava bocados
de pão.
– Tu e eu, miúdo, vamos conquistar esta cidade – gracejou Evie, enquanto
limpava as lágrimas que transformavam o horizonte em luz fraturada. – Não
sejas piegas, mulher – repreendeu-se. – Anima-te.
Evie deixou que o vento lhe beijasse as faces. Abriu os braços como se
abraçasse Manhattan. A partir de amanhã, disse para consigo, as coisas
serão diferentes. Vou às compras e ao cinema com a Mabel. No sábado
podiam apanhar o metro para Coney Island, molhar os pés no Atlântico e
andar na montanha-russa. À noite, encontraria uma festa onde ir dançar
como se não houvesse irmãos mortos ou sonhos horríveis. Ia tudo ser
fantástico.
Evie baixou os braços e abraçou-se a si própria. Esfregou o nariz na
manga e cantou em voz baixa:
– “The city’s bustle cannot destroy the dreams of a girl and boy. I’ll turn
Manhattan into an isle of joy.”
O comboio passou, ruidoso, assustando o pombo que levantou voo.
A cidade seguia a sua vida nos desfiladeiros luminosos de tijolo e néon. As
pessoas encontravam-se e separavam-se, apressadas e lentas. Os
metropolitanos rugiam. Soavam as buzinas dos carros. Os semáforos
completavam o seu ciclo de verde para amarelo, para vermelho e de novo
para verde.
No Harlem, o cego Bill Johnson estava deitado num catre na comprida
sala com outros catres, dentro da YMCA aguardando o sono. Sentia o calor
da sala, como a pressão do sol na sua nuca nos tempos em que trabalhava
nos campos de algodão do Mississípi. Tinha na memória aquele sol cor de
manteiga, que irrompia pelas nuvens de chuva e cintilava na carroça escura
que transportava os homens sombra.
Mabel Rose lia Tolstoi à luz do candeeiro e tentava bloquear o som dos
pais a discutir no outro quarto. Por fim, deitou-se de costas a olhar para o
teto, imaginando que uns andares acima, Jericho estava também deitado e
acordado, a pensar nela.
No cemitério africano, as folhas varriam as campas há muito silenciosas
até à relva da casa da colina. A estátua quebrada do anjo não sentiu o frio da
longa sombra que passou pelo pátio. Os seus olhos sem vida não avistaram
o desconhecido que limpava o sangue das mãos enquanto olhava para a
majestade do céu estrelado. E os seus ouvidos surdos não ouviram o assobio
arrepiante da antiga melodia que pairou brevemente no vento antes de se
perder no jazz frenético e ansioso da cidade.
A menina Addie estava junto à sua janela semicircular olhando para o
reservatório do Central Park e para o Castelo Belvedere iluminado pela luz
levemente alaranjada da lua. Balançava suavemente o corpo e cantava uma
canção que aprendera na sua infância.
– O chá está quase pronto – disse a menina Lillian, juntando-se a ela perto
da janela. – Ah, olha como a lua ilumina o Belvedere. Que lindo.
– É verdade. – A menina Addie encostou a mão ao vidro, como se
pudesse segurar o castelo. – Sentes a mudança, minha irmã?
A menina Lillian acenou solenemente.
– Sim, minha irmã.
– Estão a chegar. – A menina Addie olhou de novo para o parque,
vigiando a noite até a lua empalidecer no primeiro céu da madrugada e o
chá intacto gelar nas chávenas.
OS QUATRO CAVALEIROS DO
APOCALIPSE

A primeira semana de Evie em Nova Iorque fora tão emocionante quanto


ela esperava. À tarde, ela e Mabel apanhavam o EL para irem ao cinema ver
Douglas Fairbanks, Buster Keaton e Charlie Chaplin e, num dia
especialmente quente, apanharam a linha da Avenida Culver e foram a
Coney Island. Aí molharam os pés na espuma fria do Atlântico e passearam
pelas arcadas e pelos divertimentos fingindo não reparar nos piropos dos
galãs que tentavam chamar-lhes a atenção. Quando Mabel terminava os
trabalhos de casa e Evie a leitura recomendada por Will, iam ver as montras
do Gimbels, provar os casacos de gola de rebuço forrados a pele e as
cloches que as faziam sentir estrelas de cinema. Depois compravam
amendoins acabados de torrar no Chock Full O’Nuts ou paravam para
comer uma sanduíche no Horn & Hardart Automat, onde Evie adorava
retirar a comida do pequeno compartimento de vidro, depois de ter
depositado uma moeda e carregado num botão.
À noite, Evie e Mabel desciam à surrada sala de jantar do Bennington e
sentavam-se debaixo das luzes crepitantes a beber creme de ovos e a
engendrar as suas grandes aventuras em Manhattan.
Quando uma noite Mabel teve de ajudar os pais num comício de
trabalhadores, Evie tomou a liberdade de visitar Theta e Henry. Henry veio
recebê-la à porta vestindo um casaco de quarto, umas calças largas
marroquinas e uma camisa de cerimónia desabotoada. Era evidente, logo à
primeira vista, que ele e Theta não podiam ser parentes – a sua pele branca
e sardenta fazia contraste com as feições morenas da jovem –, mas pela
maneira como se comportavam um com o outro, também era evidente que
não eram amantes, apenas bons amigos. Henry erguera uma sobrancelha ao
ver Evie, enquanto se encostava à ombreira da porta e dissera na sua
pronúncia rolada: «Não creio que tenha vindo por causa do cano roto por
baixo do lava-loiça!» Evie soltara uma gargalhada e prometera mastigar
bastante pastilha elástica de mentol para o poder atrair e Henry abrira a
porta de par em par com um imponente Entrez mademoiselle! Theta estava
deitada no sofá com o seu pijama de seda e um lenço com um padrão de
penas de pavão dramaticamente atado à volta da cabeça.
– Oh, alô Evil. Que tal?
Os três emborcaram shots de gim roubado numa festa do Hotel Waldorf-
Astoria em que Theta estivera e inventaram canções tolas que Henry
acompanhava no uquelele, sem ninguém que se queixasse por Evie ser
completamente desafinada. Depois jogaram às cartas até altas horas e Evie
partiu sorrateiramente para o apartamento de Will, justamente antes do sol
nascer, com a sensação de que tudo era possível em Manhattan e que a
esperava uma grande aventura – assim que ela dormisse aquela noite.
Agora que os primeiros tons de vermelho e dourado enfeitavam as copas
das árvores do Central Park e o sol de um verão de São Martinho brilhava
sobre Manhattan, Evie, Mabel e Theta envergando as suas toilettes mais
elegantes, entravam no trólei cheio para passarem a tarde no cinema. As
três correram para a parte de trás e apertaram-se num banco para duas
pessoas, falando entusiasmadas.
– Evie, como tem passado o Jericho ultimamente? – perguntou Mabel,
para logo se arrepender. Tentara fazer a pergunta de modo natural, mas
como não conseguia disfarçar, Evie percebeu que deveria estar muito aflita
interiormente.
– Quem é o Jericho? – perguntou Theta.
– O assistente do meu tio – explicou Evie. – O rapaz alto e louro.
– É uma perfeição absoluta – disse Mabel e as duas finíssimas
sobrancelhas de Theta ergueram-se imediatamente.
– Estás caída por ele?
– E de que maneira – confirmou Evie. – A minha missão mais solene será
juntar os dois pombinhos. Tem sido um começo lento, mas de certeza que
agora vamos seguir a todo o vapor com a nossa Operação Jericho.
– Sim? – Theta avaliou friamente Mabel. – Precisas de fazer uma visita
ao barbeiro, miúda.
Mabel agarrou com um gesto protetor a sua trança enrolada na nuca.
– Oh! Oh, acho que não conseguia.
– Tudo bem, claro, se estás com medo... – Theta piscou o olho a Evie.
– Sim, claro. Nem todas podemos ser corajosas – declarou Evie, dando
umas pancadinhas na mão de Mabel.
– Posso cortar o cabelo quando quiser – protestou Mabel.
– Não precisas, Bolacha – disse Evie, pestanejando com força.
– Como tens medo… – troçou Theta.
– Digo-vos que já enfrentei multidões furiosas nos comícios políticos da
minha mãe e estive presente nos piquetes. Certamente que não tenho medo
de um barbeiro! – fungou Mabel.
– Ótimo. Vamos apostar alguma massa. Ponho um dólar em como não
cortas o cabelo hoje.
– Dois dólares – ajudou Evie.
Mabel empalideceu. Mas depois inclinou a cabeça tal como a sua
elegante mãe.
– Ótimo – disse, e fez sinal ao condutor do trólei para que parasse.
Mabel olhou nervosamente para a montra do Barbeiro Elegante que
declarava no seu cartaz CORTAMOS-LHE O CABELO! PAREÇA UMA ESTRELA DO
PALCO E DO ECRÃ!, juntamente com o desenho de uma bela jovem com um
toucado de penas.
– Mabesie, aquele corte ficava estupendo em ti – disse Evie. – O Jericho
ia adorar.
– O Jericho é um pensador profundo e um académico. Não liga a cortes
de cabelo – declarou Mabel, mas parecia aterrorizada.
Theta retocou o batom numa montra.
– Até os académicos têm olhos, miúda.
Evie passou a mão por uma tela imaginária.
– Imagina só. Entras no museu como uma Mabel completamente nova…
Mabel, a Feiticeira! Mabel, a Rapariga Moderna! Mabel, a Hot Jazz Baby!
– Mabel a Que Tem de Se Decidir Já ou Perdemos o Filme – acrescentou
Theta.
– Está bem. Vou cortar.
– Assim mesmo é que é! – disse Evie e empurrou Mabel para dentro do
barbeiro. Evie e Theta apressaram-se a colar o nariz ao vidro da montra
para ver o que se ia passar. Mabel falou com o barbeiro que a mandou
sentar numa cadeira. Olhou nervosa para as amigas. Evie acenou e lançou-
lhe um sorriso encorajador.
– Não vai cortar – disse Theta.
– Digo-te que vai.
– Boa. Vamos subir a parada. Dez dólares.
Dez dólares era uma quantia principesca, mas Evie não ia desistir.
– Feito!
Apertaram a mão e aproximaram os rostos da montra. Lá dentro, Mabel
estava sentada numa cadeira e deixou que o barbeiro lhe prendesse uma
toalha em redor do pescoço.
– Vou comprar as meias mais fantásticas com os teus dez dólares, Theta.
Theta esboçou um sorrisinho.
– Ainda não acabou, miúda.
Mabel agarrou-se aos braços almofadados da cadeira do barbeiro
enquanto este a fazia subir carregando no pedal. Aproximou a tesoura do
cabelo da jovem. Mabel abriu muito os olhos e saltou da cadeira, atirou com
a toalha e saiu a correr, obrigando a campainha da porta a tocar como a do
trenó do Pai Natal.
– Bolas! – sussurrou Evie.
Theta estendeu a mão.
– Vou adorar essas meias, Evil.
– Desculpem, n...não fui capaz – gaguejou Mabel enquanto as três se
dirigiam para Times Square. – Quando vi a atesoura pensei que ia desmaiar!
– Tudo bem, Mabesie. Nem todos podem ser uma Zelda11 – disse Evie
dando o braço à amiga.
– Se vou conquistar o Jericho, terei de o conquistar tal como sou.
– E vais conquistar! – garantiu Evie. – Seja lá como for.
Na esquina da Rua 42 com a Quinta Avenida, acenaram a um polícia
empoleirado na sua redoma de vidro por cima da torre do trânsito com as
suas luzes vermelha, verde e amarela. O polícia tocou no capacete e as
raparigas riram enquanto eram empurradas pela multidão que atravessava
por entre os automóveis e autocarros de dois andares. O vapor saía das
tampas de esgoto, como se a cidade e a sua atarefada população fizessem
parte de um grande mecanismo comandado por uma maquinaria invisível.
Enquanto esperavam para atravessar uma rua, um homem esfarrapado na
sua frágil cadeira de rodas agitou a sua lata diante delas. Usava um
uniforme do exército muito sujo e faltavam-lhe as pernas abaixo dos
joelhos.
– Uma esmola para quem esteve na guerra – pediu em voz rouca.
Evie procurou a bolsa, retirou um dólar e meteu-o na lata.
– Aí tem.
– Obrigado – disse. Depois olhou para Evie e murmurou: – Chegou a
altura, chegou a altura, chegou a altura. Cuidado… cuidado…
– Se caíres em cada história de desgraças que encontras na rua, estarás
arruinada na próxima semana, Evil – acautelou-a Theta, enquanto
atravessavam a rua.
– O meu irmão esteve na guerra. E não voltou.
– Oh, desculpa, miúda – disse Theta.
– Já foi há muito tempo – disse Evie. Não queria começar aquela amizade
de forma tão amarga. – Oh! Olhem para o vestido daquela mulher! É o suco
da barbatana!
Quando chegaram ao cinema Strand, as raparigas compraram bilhetes de
vinte e cinco cêntimos e um arrumador de fato vermelho e luvas brancas
mostrou-lhes o lugar no balcão sobranceiro a um enorme palco dourado.
Evie nunca vira nada de tão grandioso. Os assentos eram de peluche
aveludada. Frisos e murais decoravam as paredes. As colunas de mármore
chegavam aos camarotes ornamentados e aos balcões. A um canto, um
homem tocava num órgão Wurlitzer, e mesmo por baixo ficava o fosso da
orquestra.
As luzes do cinema diminuíram. A luz da cabina do projecionista tocava
no pano que se abria lentamente. Evie ouvia os estalidos da película que
começava a ser projetada. Palavras faiscantes enchiam o ecrã: NOTÍCIAS
PATHÉ. GENEBRA, SUÍÇA. REUNIÃO DA SÉTIMA ASSEMBLEIA GERAL DA LIGA DAS
NAÇÕES. Homens de fato e chapéu com ar oficial diante de um belo edifício.
A ASSEMBLEIA DÁ AS BOAS-VINDAS À ALEMANHA NA LIGA DAS NAÇÕES.
– Queremos o Rudy! – gritou Evie para o ecrã. Mabel abriu muito os
olhos assustada, mas Theta sorriu trocista e Evie sentiu um pequeno arrepio
por ter conseguido mostrar a sua rebeldia. Um homem quatro lugares
abaixo mandou-a calar.
– Vá trabalhar, Morte Lenta – resmungou ela e as raparigas tentaram
sufocar as gargalhadas.
No ecrã, um homem com ar de estrela de cinema inspecionava uma
fábrica e apertava a mão aos trabalhadores. Logo a seguir apareceram
palavras brancas num fundo negro: O EMPRESÁRIO E INVENTOR AMERICANO
JAKE MARLOWE ESTABELECE NOVO RECORDE NA PRODUÇÃO INDUSTRIAL.
– Esse Jack Marlowe deve ser podre de rico – murmurou Evie em tom
apreciativo.
– Os meus pais não gostam dele – disse Mabel.
– Os teus pais não gostam de ninguém que seja rico.
– Dizem que ele não deixa os trabalhadores sindicalizarem-se.
– A empresa é dele. Porque não havia de fazer o que lhe apetece? –
perguntou Evie.
O homem descontente mandou chamar o arrumador. As raparigas
calaram-se imediatamente e tentaram pôr um ar inocente. O noticiário
terminou e começou o filme. No ecrã podia ler-se A Metro apresenta a
produção de Rex Ingram da obra-prima literária de Vicente Blasco Ibañez
OS QUATRO CAVALEIROS DO APOCALIPSE, e as jovens calaram-se,
enfeitiçadas pelo brilho do ecrã e pela beleza de Rodolfo Valentino. Evie
imaginou-se num filme, beijando um ator como Valentino e tendo a sua
fotografia na revista Photoplay. Talvez vivesse numa mansão de estilo
mourisco, nas colinas de Hollywood, com tapetes de pele de tigre. Era o
que Evie mais gostava quando ia ao cinema: a possibilidade de sonhar que
tinha uma vida diferente e mais glamorosa. Mas depois o filme chegou às
cenas de guerra. Evie olhava para os soldados nas trincheiras, os jovens
rastejando na terra de ninguém, ensopados, caindo atingidos pelas
explosões. Sentiu-se tonta, pensando em James e nos seus sonhos terríveis.
Porque a perseguiriam? Quando deixariam de a assaltar? Porque seria que
James nunca falava? Daria tudo para lhe ouvir a voz.
No fim do filme, estavam todas com as lágrimas nos olhos – Mabel e
Theta choravam pelo ator morto, Evie pelo irmão.
– Nunca haverá outro como o Rodolfo – disse Mabel, assoando-se.
– Podes crer, coisinha – ronronou Theta, quando saíram para o sol da
tarde. Deteve-se ao ver o rosto zangado de Evie.
– Que se passa, Evil?
– Sam, Sam Lloyd – vociferou Evie. Partiu a toda a pressa na direção de
um grupo de pessoas que estavam a assistir ao jogo do monte das três
cartas.
– Quem é o Sam Lloyd? – perguntou Mabel a Theta.
– Sei lá – respondeu Theta. – Mas tenho a certeza de que está bem
arranjado.
– Vejam a Rainha de Copas, pessoal. É a carta do dinheiro. – Sam
colocou três cartas sobre uma caixa de cartão, movimentando-as tão
rapidamente que não passavam de uma mancha. – Agora o senhor, sim, o
senhor. Quer adivinhar? Não cobro nada pela primeira vez. Só para mostrar
que se trata de um jogo honesto.
Evie voltou a caixa, deixando cair as cartas e o dinheiro.
– Lembra-se de mim, Casanova?
Sam levou um minuto, mas depois sorriu.
– Ora, se não é a minha freira preferida. Como está a Madre Superiora,
irmã?
– Não me trate por irmã. Roubou o meu dinheiro.
– Quem, eu? Tenho ar de ladrão?
– E de que maneira!
A multidão observava a disputa muito interessada e Sam olhava em volta
com ar nervoso. Enfiou até aos olhos o boné de pescador grego.
– Boneca, tenho pena que lhe tenham dado a palmada, mas não fui eu.
– Se não quer que eu chame imediatamente um polícia para lhe dizer que
se aproveitou de mim, vai devolver-me os meus vinte dólares.
– Ora, menina, não se atrevia...
– Po-si-ti-va-men-te que me atrevo! Conhece o Museu Americano do
Folclore, Superstição e Ocultismo?
– Sim, conheço, mas...
– É onde me poderá encontrar. Será melhor levar-me os vinte dólares se
sabe o que é bom para si.
– E se não levar? – provocou.
Evie espreitou o casaco de Sam pendurado numa boca de incêndio.
Apanhou-o e enfiou os braços nas mangas.
– Devolva-me o casaco! – vociferou Sam.
– Vinte dólares e é seu. No museu. Agora, adeusinho! – Evie começou a
correr pelo quarteirão.
– Quem é? – perguntou Mabel assim que Evie as apanhou e conseguiram
entrar numa cafetaria.
– Sam Lloyd. – Evie quase cuspiu o nome. Contou-lhes o encontro na
Penn Station e como ele a beijara e lhe roubara o dinheiro do bolso.
Theta bebia lentamente o café deixando na chávena de loiça branca um
perfeito arco de Cupido vermelho.
– Parece-me que ele se podia pôr a mexer com muito mais do que os teus
vinte dólares, se me estou a fazer entender. É melhor teres esse fulano
debaixo de olho, Evil.
– Não tenho olhos suficientes para isso – resmungou Evie.
– Revista-lhe os bolsos. Vê se encontras algum dinheiro – sugeriu Mabel.
– Ora, Mabel, mas que ideia encantadora! Foi isso que te ensinou a
educação progressista da Little Red Schoolhouse?
Evie vasculhou os bolsos, mas encontrou apenas uma mão-cheia de cotão,
um tubo meio de pastilhas de mentol e um postal pintado a lápis de cor
representando montanhas e árvores altas. Nele havia umas palavras
rascunhadas em russo. Sabia que podia tentar ler qualquer dos objetos para
descobrir mais acerca de Sam Lloyd, mas não valia a pena ficar com uma
dor de cabeça. Tinha esperança que ele iria à procura do casaco. Estavam
em setembro e em breve mudaria o tempo.
Quando Evie regressou ao museu, o tio Will e Jericho estavam sentados à
mesa a conversar com um cavalheiro barrigudo, com aqueles tristes olhos
castanhos próprios dos cãezinhos das lojas de animais que não são
escolhidos para presente de Natal, e um nariz que parecia ter estado do lado
errado de umas quantas lutas. Tinha no casaco um distintivo de detetive.
– Tito! Apanharam-te porquê? Precisas de fiança?
– Terrence, esta é a minha sobrinha Evie O’Neill. Evie, este é o detetive
Malloy.
Apesar dos olhos tristes, o detetive tinha um sorriso caloroso. Estendeu a
mão a Evie.
– Sou um velho amigo dos dias em que o seu tio trabalhava para o
governo.
– Oh, quando foi isso, Tito? – perguntou Evie.
Will ignorou-a.
– Bem sei que te disse que íamos jantar a Chinatown, mas parece-me que
tenho de ir à Baixa com o detetive Malloy.
– Então precisa mesmo de fiança – disse Evie a Will.
– Não, não preciso. A polícia pediu a minha ajuda. Houve um
assassinato.
– Um assassinato! Caramba. Deixe-me só mudar de sapatos – disse Evie
entusiasmada. – Não levo um minuto.
– Tu não vens – disse o tio Will.
Evie saltou num pé só enquanto tirava os sapatos e calçava os novos, de
atacadores.
– Perder um verdadeiro local do crime? Nunca na vida.
– É muito desagradável, menina. Não é próprio para uma senhora – disse
o detetive Malloy.
– Não me assusto com facilidade. Prometo ser tão forte como o Al
Capone. – Evie atou um dos sapatos.
– Vais ficar aqui. – Will voltou as costas, mandando-a embora.
– Tito, prometeu levar-me a mim e a Jericho a Chinatown. Não faz
sentido vir outra vez aqui buscar-me.
– Evangeline…
– Prometo não dar trabalho. Fico no banco de trás do carro e espero até
terem terminado – prometeu Evie.
Will suspirou.
– Não te importas, Terence?
– Por mim, tudo bem. – O detetive segurou a porta para a deixar passar. –
Mas não se queixe se depois tiver pesadelos, menina O’Neill.
Evie disfarçou um sorriso amarelo.
11 Zelda Fitzgerald, mulher do romancista F. Scott Fitzgerald. (N. da T.)
A MERETRIZ ADORNADA NO MAR

A Ponte de Manhattan pareceu maior quando estacionaram na Rua Pike.


Diante dos edifícios, um grupo de miúdos jogava stickball. À medida que o
carro se aproximava, observavam-no semicerrando os olhos com ar
desconfiado.
– São futuros hooligans – disse o detetive Malloy quando estacionou o
carro da polícia no extremo da rua.
– Se algum de vocês, seus mer... – Olhou para Evie. – Seus fedelhos
tocarem neste carro, garanto-vos que vão secar o rio com os dentes.
Os dois homens saíram do carro e Evie seguiu-os.
– Vais ficar dentro do carro – recordou-lhe Will.
Evie tinha conseguido chegar até ali. Não ia agora voltar atrás, sem ver o
local do crime. Um assassinato em Manhattan! Já se imaginava a escrever a
Dottie e a Louise para lhes contar as suas aventuras: «Minhas queridas, nem
acreditam o que vi hoje... De facto, como qualquer rapariga moderna, não
estava assustada...» Seria exatamente como nos romances de Agatha
Christie, que adorava. Mas apenas se pudesse aproximar-se.
– Oh, tio Will, qualquer coisa pode acontecer a uma rapariga sozinha à
espera num carro. – Evie lançou um olhar significativo aos miúdos que
jogavam stickball. – Que diria a minha mãe?
Evie tinha uma expressão de pura inocência.
– Então o Jericho pode ficar contigo.
Evie olhou rapidamente para Jericho.
– Sentir-me-ia muito melhor se ficasse consigo, tio Will. Prometo que não
me intrometo. E não precisa de se preocupar porque não sou uma daquelas
fracalhotas que desmaiam quando veem sangue. Porque, no ano passado
quando a Betty Hornsby quase ficou sem um dedo a fazer malabarismos
com facas numa festa, fui a única que não caí redonda ao ver sangue por
todo o lado. Foi uma confusão, mas mantive-me absolutamente firme como
uma rocha. Juro.
Fez os possíveis para se mostrar impávida, como se estivesse habituada a
ver cadáveres a toda a hora. O tio Will tentou objetar, mas o detetive Malloy
encolheu os ombros.
– Desde que ela prometa não desmaiar, por mim, não há problema. Mas
isto não é um romance policial, menina O’Neill, estou a avisá-la.
Uma multidão de mirones juntara-se no pontão. Foram enxotados pelos
polícias de uniforme azul e botões. Três barcos-casa balançavam no
extremo do pontão presos por cabos.
– O corpo está ali – disse Malloy. – Foram uns pescadores que a
encontraram. Tanto quanto podemos dizer, o cadáver foi atirado para ali
pelo menos há um dia. Estava escondido por um monte de cascas de ostra e,
por isso, ninguém o descobriu mais cedo. Sentes-te bem, Fitz?
O tio Will empalidecera.
– Detesto o cheiro a peixe.
– Alegra-te. O que vais ver far-te-á esquecer o cheiro. O corpo está numa
desgraça. – Malloy olhou para Evie. Esta recusou-se a dar-lhe a satisfação
de se mostrar perturbada. – Há aqui coisas muito estranhas e por isso fui ter
contigo. Só te digo, Fitz, nunca vi coisa assim.
Malloy conduziu-os a um local cheio de cascas de ostra, rosado ao sol da
tarde. Um fotógrafo da polícia tinha instalado o seu tripé. A lâmpada do
flash disparou, cegando Evie com o seu brilho. O pó de magnésio
chamuscou o ar, deixando um sabor acre na língua da jovem. À medida que
se aproximavam a jovem era invadida pelos cheiros de peixe, urina e carne
em putrefação. Sentiu um vómito erguer-se-lhe no estômago, mas
controlou-se. Respirou disfarçadamente pela boca. Uma profusão de
moscas negras cobria o local e ela enxotou-as do rosto.
– Daqui a menina não passa – declarou o detetive Malloy e era evidente
que se tratava de uma ordem. Acenou para Jericho numa espécie de código
masculino a indicar-lhe que devia ficar com Evie, o que só a irritou ainda
mais.
O detetive Malloy conduziu Will em volta do muro de cascas de ostra e
Evie viu o rosto do tio empalidecer, levar a mão à boca para conter um grito
ou um vómito. Voltou-se um instante e inclinou-se para respirar e Evie
arriscou.
– Tito, sente-se bem? – perguntou, correndo para ele.
– Evie… – exclamou, mas era demasiado tarde. Evie já estava junto dele.
A única vez que se recordava de ter ficado assim, sem fôlego, fora no dia
em que chegara o telegrama do Departamento da Guerra. Levou uns
instantes a compreender que o que estava estendido no velho pontão de
madeira era um ser humano. Apercebeu-se aos poucos. Um sapato meio
calçado. As meias nojentas e em tiras em redor dos cornozelos inchados e
escuros. O vestido rasgado e os membros cheios de hematomas. A pele das
pálpebras flácida e sumida em redor das órbitas vazias.
Os olhos dela. O assassino arrancara-lhe os olhos.
Evie sentiu uma tontura percorrê-la, como se alguém tivesse batido
fortemente com um martelo no sino de um parque de diversões. Cravou as
unhas nas palmas das mãos para se manter alerta.
O corpo maltratado da rapariga fora disposto no pontão com os braços e
as pernas estendidos. O cabelo fora cortado, exceto alguns tufos que a
tesoura poupara. Em volta do pescoço havia um colar de pérolas falsas e
anéis baratos rodeavam-lhe os dedos. O rosto exangue estava maquilhado
de forma berrante com muito pó e rouge. Um risco vermelho de batom mal
disfarçava o azul dos lábios mortos. Tinha escrita na testa a palavra
MERETRIZ.
Um polícia ofereceu a Will sais de cheiro e ele ali ficou um pouco
entontecido. Evie não se movera um centímetro. Em casa, parecera-lhe tudo
muito emocionante – um verdadeiro local de crime, uma coisa para contar
às amigas. Mas agora, olhando para o cadáver violado, Evie duvidava
querer alguma vez discutir o assunto. Desejava voltar atrás e não o ter visto.
Uma única lágrima corria-lhe pela face. Limpou-a rapidamente e ficou a
olhar para os sapatos.
– Está morta há cerca de uma semana, mais ou menos – disse o detetive
Malloy. A sua voz parecia chegar a Evie através de um túnel. – A carteira
tem um cartão dentro com o nome e a morada. Ruta Badowski de Brooklyn.
Dezanove anos. A família já foi contactada. Há pouco mais de uma semana,
Ruta foi a uma dessas estúpidas maratonas de dança com o namorado, Jacek
Kowalski. Mandámo-lo chamar para o interrogar, mas nada conseguimos.
Afirmou que dormira num degrau e na manhã seguinte fora trabalhar para a
fábrica de tijolos. O patrão confirmou.
Evie espreitou mais uma vez o rosto desfigurado da jovem. Dezanove
anos. Só dois anos mais velha que ela. Tinha estado a dançar e agora estava
morta.
– Era isto que queria que visses. – Malloy abriu o vestido da rapariga. Por
cima do sutiã havia uma enorme marca de uma estrela de cinco pontas
rodeada por uma cobra que comia a cauda.
– O que é isto, Fitz? Algum feitiço de vodu? – perguntou Maloy.
– Não tem nada a ver com o vodu. E o voudon é simplesmente um
espiritualismo da África Ocidental e das Caraíbas, baseado na natureza –
disse o tio Will impaciente.
Malloy fez um gesto de desculpas.
– Pronto, pronto, Fitz, não te zangues. Então o que é?
Will baixou-se para ver melhor. Evie não percebia como ele conseguia
fazê-lo sem gritar.
– É um pentagrama, um símbolo do universo – explicou Will. – Muitas
religiões e ordens usam-no, pagãos, gnósticos, religiões orientais, cristãos
antigos, pedreiros-livres. O Selo de Salomão é o símbolo mais famoso. É
muitas vezes usado como forma de proteção.
– Nem por isso a ajudou – disse Malloy.
O tio Will deu a volta ao corpo.
– Este está invertido. – Will apontou para as duas pontas voltadas para
cima e uma para baixo. – Ouvi dizer que o pentagrama invertido sugere
falta de equilíbrio, o triunfo do material sobre o espiritual. Há quem diga
que o pentagrama assim pode ser usado com más intenções, na feitiçaria ou
magia proibida... para invocar demónios ou anjos. – Will levantou-se e
voltou a cara por um instante inspirando três vezes profundamente e
expirando com força. – Peixe. Odeio o cheiro a peixe.
– Olhe, Tito – disse Evie, passando-lhe um pequeno compacto de
perfume sólido que retirara da bolsa. Will cheirou-o e devolveu-lho. – Evie
levou-o também ao nariz. Sentia-se de novo fraca, mas obrigou-se a olhar
para o magnífico arco de aço que atravessava o rio até Brooklyn.
– O assassino poderia trabalhar numa fábrica ou com gado? – perguntou
Jericho, quebrando o silêncio a que se remetera. Evie nem reparara que ele
se aproximara.
– Já investigámos pela cidade para ver se a marca é conhecida de alguém.
Até agora nada – disse Malloy. – Mas há outra coisa.
Malloy fez sinal a um dos polícias que trouxe um bocado de papel
amarelado e o entregou a Will. Evie aproximou-se ligeiramente do tio, para
ler mesmo atrás dele.
– «A meretriz, a Prostituta da Babilónia foi adornada com ouro, joias e
tesouros mundanos e olhou para a glória da Besta com todas as suas vestes
e gritou, porque tinha os olhos abertos e sabia que a maldade do mundo
deveria ser redimida através do sangue e do sacrifício. E a Besta retirou-lhe
os olhos e lançou a Meretriz Adornada para o mar eterno dentro da Marca.
Esta foi a quinta oferenda.»
– Isso é da Bíblia?
– Não da Bíblia que eu li. – Will pegou no seu bloco e escreveu umas
notas.
Evie apontou para uma série de símbolos desenhados no fundo da folha
de papel.
– O que representa isto? – A sua própria voz parecia-lhe estranha.
Will virou o papel de lado e depois endireitou-o.
– Ainda não tenho a certeza. Diria que é um determinado tipo de marca.
Terrence, gostaria de te fazer umas perguntas. Em particular, por favor.
Os homens afastaram-se para um local ventoso do pontão, para poderem
conversar. Evie olhou mais uma vez para o corpo da jovem, concentrando-
se nos sapatos dela. A água danificara-os e estavam gastos, mas Evie
percebia que eram especiais, provavelmente o melhor par que ela tinha.
Restava uma fivela de pedrarias que pendia de uma tira. Era uma última
indignidade e Evie queria corrigi-la. Tentou prendê-la, mas não conseguiu.
– Oh, por favor – murmurou quase a chorar.
Com renovada determinação, agarrou-a com força. O objeto revelou tão
depressa os seus segredos que Evie nem teve tempo de reagir. As imagens
eram fugazes como um filme acelerado: uma tira arrancada de papel de
parede amarelado. Uma fornalha. Um avental de carniceiro. Uma fechadura
a girar. O ferro em brasa. Olhos azul-avermelhados. Olhos terríveis, janelas
do inferno. O assobio – uma melodia alegre, horrivelmente deslocada, como
uma canção de embalar num campo de batalha. E depois a cabeça de Evie
ficou cheia de gritos.
Ofegante, deixou cair a fivela. Hesitou à beira do pontão e vomitou o
empadão que comera. Atrás dela, os polícias riram.
– Isto não é lugar para uma menina – disse um. Alguém lhe entregou um
lenço.
– Obrigada – disse agoniada.
– De nada – respondeu Jericho e deixou-a limpar-se em paz.
No rio, um ferry cortou a água cinzenta em picos ondulantes que em
breve se acalmavam. Evie ficou a olhar para o ferry e tentou que o que vira
fizesse sentido. As terríveis imagens que ainda tinha na cabeça eram,
provavelmente, pistas. Mas como poderia contar a alguém como as
descobrira? E se não acreditassem nela? E se acreditassem e a obrigassem a
segurar de novo na fivela e a olhar mais uma vez para aquele pesadelo? Não
poderia enfrentar tal coisa. Ninguém tinha de saber o que acabara de ver. O
tio Will resolveria o assunto. Não havia necessidade de dizer o que quer que
fosse.
– Evie, são horas de irmos – disse o tio Will.
– Já vou – disse Evie, tentando mostrar força na sua voz.
Soprava um vento forte do rio East, que levantou a ponta da echarpe bege
da jovem morta, puxando-a como uma mão em busca de auxílio. Evie
voltou-se e deu a volta, evitando olhá-la mais uma vez.
AFASTANDO OS FANTASMAS

– Bem te disse que não era boa ideia – disse o tio Will. Estavam sentados
no restaurante de Chinatown. A dor de cabeça de Evie incomodava-a
seriamente. Limitava-se a tocar com a colher os bolinhos fritos dentro da
tigela da sopa.
– Quem poderia ter feito uma coisa daquelas? – perguntou Evie por fim.
– Dado o curso da história humana, a pergunta mais precisa será: «Por
que razão não há mais pessoas a fazer coisas dessa natureza?» – disse Will,
ao levar habilmente à boca um bocado de carne usando os pauzinhos.
– Pode ter sido um gangue. Talvez que a família dela devesse dinheiro a
alguém – sugeriu Jericho.
– Mas então porquê darem-se a tanto trabalho? – refletiu Will. – Porquê
fazer parecer que o crime tem a ver com o ocultismo na sua natureza... e já
agora com um ocultismo tão estranho?
Will e Jericho ponderaram várias ideias e rejeitaram-nas na sua maioria.
Evie manteve-se em silêncio. Estava desesperada por uma bebida.
– É tirado do Apocalipse? – perguntou Jericho. – A meretriz. A Prostituta
da Babilónia.
– Sim. Também pensei. O Apocalipse menciona a Prostituta da Babilónia.
Mas a meretriz adornada... é uma expressão muito específica. Tenho a
certeza de já a ter ouvido. – Abanou a cabeça e continuou a comer. – No
entanto, não me ocorre.
Evie olhou para a sua tigela e pensou nas coisas terríveis que vira
enquanto tivera na mão a fivela do sapato de Ruta Badowski. E se fossem
importantes?
– Já alguma vez ouviu esta melodia? – perguntou Evie, assobiando a
canção que escutara no seu transe.
Will apertou os lábios, refletindo.
– O que é? Uma coisa de um programa de rádio? Se se adivinhar recebe-
se um prémio do sabonete Pears, ou coisa que o valha?
Evie abanou a cabeça. Doía-lhe quando o fazia.
– É só uma canção tola que ouvi no outro dia. Fiquei a pensar se quereria
dizer alguma coisa e... – O quê? O que poderia dizer que fizesse sentido? –
Não é nada.
– Como queiras. Não queres experimentar o pato?
Evie lutou contra uma onda de náusea enquanto afastava os pauzinhos e a
comida desagradável. Mas também se sentiu aliviada. Talvez que as
desconcertantes imagens que vira e a canção nada tivessem a ver com o
assassinato da rapariga. Poderiam ser qualquer coisa, afinal. Qualquer outra
coisa.
Uma silenciosa agitação lá à frente chamou a atenção de Evie. A dona do
restaurante, uma rapariga de vestido vermelho, mais ou menos da idade de
Evie, empurrou uma trouxa para as mãos de um jovem, falando com ele em
chinês. No seu tom de voz havia uma ordem que não podia ser contrariada.
Sob o olhar penetrante da jovem, o rapaz retirou-se, deixando bater atrás de
si a porta da cozinha. A jovem do vestido vermelho apareceu à mesa com
um tabuleiro de bolinhos da fortuna. Evie reparou que tinha os olhos verde-
claros.
– Desejam mais alguma coisa? – perguntou delicadamente, mas com leve
enfado.
– Não, muito obrigado. – O tio Bill pagou a conta enquanto Evie extraía o
papelinho do seu bolo.
– O que diz? – perguntou Jericho.
– «A sua vida vai mudar em breve.» – Evie atirou-o para o lado. – Estava
à espera de «Vai encontrar um desconhecido alto e moreno». Que diz o teu
Jericho?
– «Para ganhar confiança tem de arriscar os segredos.»
– Intrigante. Tito?
Will deixou o seu intacto no tabuleiro.
– Não leio a sina se o puder evitar.
Saíram para o passeio estreito e serpenteante da Rua Doyers, conhecido
como «a esquina sangrenta» pela curva e pelo enorme número de
assassinatos aí cometidos por gangues. Porém, nessa noite a rua estava
sossegada. Do outro lado do passeio, uma multidão de homens acendia
velas dentro de pequenas lanternas e ficava a vê-las flutuar no céu do
crepúsculo. O cheiro a incenso pairava na rua.
– O Festival do Outono – explicou o tio Will. – É uma importante
tradição cultural, a celebração das colheitas.
Mais abaixo, lanternas de papel enfeitavam a fachada de uma loja: Mee
Tung Co., Importadores. Flutuavam na brisa da noite. Folhas de papel com
letras chinesas tinham sido coladas num muro de tijolo ao lado da loja. Na
rua, havia homens que, ao passar, lançavam olhares sub-reptícios ao que
estava escrito.
– O que é aquilo? – perguntou Evie.
– Listas dos comerciantes que não estão alinhados com os Tong12.
– Aquelas coisas prateadas que servem para pôr gelo no gim? – Evie
imitou com os dedos. – Adoro!
Os Tong são irmandades ou associações dirigentes e existem duas em
Chinatown: Hip Sing Tong e On Leong Tong. Há décadas que governam
Chinatown e, de vez em quando, estão também envolvidas em lutas
sangrentas. Os comerciantes colocam esses avisos como declaração de
neutralidade, para que possam ser deixados de fora dessas atividades
violentas.
– Que se passa ali? – perguntou Evie. Brilhava uma luz na montra de uma
loja junto da qual se formara uma fila de homens.
– Provavelmente será para mandarem cartas às mulheres que estão na
China.
– As mulheres não vivem aqui com eles?
– O Ato de Exclusão Chinesa de mil oitocentos e oitenta e dois. – O tio
Will ficara a olhar para ela, à espera de uma reação. – O que ensinam nas
escolas hoje em dia? Vamos ter uma geração de criacionistas sem qualquer
perceção da história.
– Então parece que sou uma felizarda porque o tio pode ensinar-me.
– Bem, sim – disse Will hesitante, antes de passar a explicar. – O Ato de
Exclusão Chinesa foi uma lei destinada a impedir que viessem para cá mais
chineses depois de terem terminado a construção do nosso caminho de
ferro. Não podiam trazer para cá as famílias. Não eram protegidos pelas
nossas leis. Estavam sós.
– Não parece lá muito americano.
– Pelo contrário, é muito americano – disse o tio Will em tom amargo.
Passaram pelas traseiras da Casa de Chá e viram o rapaz que fora
repreendido pela dona do restaurante. Estava ajoelhado diante de uma
pequena taça em chamas que alimentava com finas folhas de papel
colorido.
– Que está ele a fazer? – perguntou Evie.
– A afugentar os fantasmas – respondeu o tio Will sem qualquer outra
explicação.
12 Pinça de gelo, em português. (N. da T.)
UM LUGAR NO MUNDO

Na sala das traseiras da casa da irmã Walker, Memphis esperava no


impecável sofá azul enquanto o seu irmão Isaiah estava sentado à mesa da
sala de jantar, concentrado num conjunto de cartas voltadas para baixo. A
irmã Walker segurava uma de modo a que só ela a pudesse ver.
– Que carta tenho na mão, Isaiah?
– O ás de paus – respondeu ele.
A irmã Walker sorriu.
– Muito bem. Adivinhaste dezanove em vinte. Muito bem mesmo, Isaiah.
Podes tirar um doce do prato.
– Da próxima vez vou conseguir todas, irmã. – Isaiah estendeu a mão
para o prato dos doces sobre o naperon de renda, no centro da recentemente
encerada mesa de casa de jantar da irmã Walker, retirou dele dois Bit-O-
Honeys e rasgou o papel encerado vermelho e azul do doce.
– Veremos, mas hoje fizeste um bom trabalho. Sentes-te bem, Isaiah?
– Ssssim, senhora – disse Isaiah chupando o doce.
– Não fales com a boca cheia – repreendeu Memphis.
– Olha, então como hei de responder? Só tenho uma boca – disse Isaiah
com ar zangado. Memphis sabia que não era preciso muito para o irritar.
– Obrigado, irmã – disse Memphis severamente, olhando para Isaiah que
o ignorava.
– De nada. Olha, Isaiah, lembras-te do que tens de dizer à tua tia Octavia,
não é verdade?
– Que me estava a ajudar com a aritmética.
– E foi o que fiz, por isso não é mentira. Lembras-te que é melhor não
contares à tua tia acerca do outro trabalho com as cartas.
– Não se preocupe – disse Memphis. – Vamos, rapazinho?
– Quem me dera poder contar a toda a gente para que saibam que eu sou
importante – resmungou Isaiah.
– Tu és importante, Isaiah – disse a irmã Walker e deu-lhe outro Bit-O-
Honey.
– Importante – troçou Memphis. Poisou a mão na cabeça de Isaiah e fê-lo
dar uma volta. – Tem uma cabeça que parece uma bola de futebol. E com
altos, também.
– São os meus miolos! – Isaiah debatia-se sob a força de torniquete
exercida por Memphis.
– Então é isso? Pensava que andavas a esconder doces aqui há que
tempos.
Isaiah tentou dar um soco a Memphis, mas este aparou-o e Isaiah investiu
de novo quase deitando abaixo um candeeiro.
A irmã Walker enxotou-os os dois em direção à porta.
– Muito bem cavalheiros, por favor vão fazer disparates lá para fora e
deixem a minha casa inteira.
– Desculpe, irmã – disse Memphis. Isaiah já o puxava para o alpendre. –
Até para a semana.
Quando voltaram, a tia Octavia esperava-os na sua sala escura. Tinha o
avental posto e não parecia satisfeita.
– Onde estiveram? Sabem que o jantar é às seis e um quarto e se se
atrasam não comem.
– Desculpe, tia. A irmã Walker queria ter a certeza de que o Isaiah
percebia mesmo a aritmética – afirmou Memphis, lançando a Isaiah um
olhar de aviso.
– Margaret Walker – respingou Octavia. Apontou para a colher para que
se servissem. – Não sei se me apetece que continuem ligados a essa mulher.
Ultimamente tenho ouvido a seu respeito coisas que não me assentam bem.
– Como quê? – insistiu Isaiah.
– Para começar não vai à igreja.
– Vai, pois! É membro da Batista Abissínia.
– Ah! – disse Octavia com desdém. – A Selma Johnson vai à Abissínia e
diz que a Margaret Walker mal passa pela porta. O Senhor não a conheceria
se lhe mostrassem a fotografia dela. É mais provável encontrarem o maluco
do cego Bill Johnson na igreja do que a menina Margaret Walker.
Memphis esperava poder distrair a tia do que parecia ser o princípio de
uma infindável conversa. Levava a cabo longas tiradas acerca de pessoas
por desconsiderações que notava e por ofensas imaginárias... «O Senhor
não conheceria fulana de tal se Lhe mostrassem a fotografia dela.» «Se
querem saber, Barnabas Damson não tem sequer o juízo que o Senhor dá a
uma bolacha.» «Corinne Collins não tem nada que ser catequista. Nem
consegue dar conta dos filhos que andam sempre a correr por aí como
loucos num manicómio.» «Sabem que vi a Swoosie Terell na mercearia e
ela tratou-me com um ar todo importante, depois da torta de ameixa que
lhe fiz quando a mãe esteve doente?» Memphis gostaria de saber que
pecado trivial teria cometido a irmã Walker para ter deixado de estar nas
boas graças de Octavia.
– Dizem que a Margaret Walker se meteu em sarilhos há uns anos –
continuou Octavia. – Esteve presa e veio para aqui para começar vida nova.
Se não fosse uma velha amiga da vossa mãe nem lhe olhava para a cara.
– A irmã Walker esteve engavetada? – perguntou Isaiah com olhos
enormes.
– Não sabes se é verdade, por isso não andes a espalhar essas coisas,
Homem de Gelo – avisou-o Memphis.
– Não penses que sabes tudo, Memphis John – disse-lhe a tia Octavia na
cara. – A Ida Hampton disse-mo e suponho que ela saiba muito mais dessas
coisas do que tu.
Memphis gostaria de saber se Ida Hampton andaria também a bisbilhotar
e a dizer que era viciada no jogo.
– Ouvi dizer que ela se mete em coisas que não é certas.
São certas, corrigiu Memphis em silêncio.
– Até pode estar metida com o vodu.
– A irmã Walker não pratica vodu. Está a ajudar o Isaiah com as contas e
a tabuada.
– Bem, mas não sei se será muito bom para vocês andarem ligados a ela.
– A tia Octavia voltou-se para Isaiah com as mãos nas ancas como se se
fosse zangar.
– Ela faz alguma coisa dessas contigo, Isaiah? Obriga-te a fazer magias
com cartas ou a pores as mãos numa bola de cristal e a falares com os
espíritos? Alguma coisa dessas?
Memphis tentou avisar com os olhos o irmão mais novo: Não digas
nada...
– Não, minha tia.
– Olha-me de frente quando dizes isso. Olha-me bem nos olhos e repete
isso. – Isaiah desviou ligeiramente a cabeça tentando espreitar Octavia e
continuar a ver o irmão, mas a tia apercebeu-se e mudou de posição
bloqueando-lhe a vista. – Não olhes para o teu irmão. Sou eu que te estou a
perguntar. Olha para mim.
Memphis susteve a respiração. Sentia o sangue a latejar-lhe na cabeça.
– Ajuda-me com a aritmética – disse Isaiah.
A tia Octavia ficou a olhar por uns instantes.
– Bem, muito cuidado quando estiveres com ela, ouviste?
Memphis soltou um pequeno suspiro.
– Sim, senhora – disseram ao mesmo tempo ele e Isaiah.
– Memphis, eu sei que não deixarias que o teu irmão se envolvesse na
obra do Diabo – disse Octavia fitando-o gravemente. – Não depois daquilo
por que esta família já passou.
Memphis apertou o maxilar.
– Não, minha tia, nunca.
Octavia olhou-os por mais uns instantes e depois deitou-lhes chá gelado
nos copos.
– Prometi à vossa mãe que tomava conta de vocês. Nunca poderia viver
bem comigo mesma se alguma coisa vos acontecesse. – Octavia segurou as
faces de Isaiah com ambas as mãos e deu-lhe um beijo no alto da cabeça. –
Vão lavar-se para o jantar. Memphis, hoje és tu a dar as graças, podes ir
buscar a Bíblia ao armário da loiça para a lermos. – Como Memphis não
respondesse, Octavia gritou mais alto da cozinha. – Ouviste o que eu disse,
Memphis John Campbell?
– Sim, minha tia – resmungou Memphis. Um dia ainda sairiam os dois de
casa da tia.
Depois de lavados à vontade dela, sentaram-se com as cabeças inclinadas,
em redor da mesa de madeira que o avô carpinteiro fizera para dar de
presente à sua jovem esposa.
– Senhor Deus, agradecemos-te esta recompensa que vamos receber… –
Memphis pronunciou as palavras sem as sentir. Não estava a pensar
agradecer o jantar, mas a recompensa que esperava ele próprio receber.
Rezava pelo seu lugar no mundo: pelas suas próprias palavras num livro e
por poder estar presente num salão de Striver’s Row, ter um lugar à mesa
com Whitman e Cullen e o Sr. Hughes.
– ... rezamos em nome de Jesus. Ámen.
Octavia passou a travessa com batatas-doces assadas.
– Quero que tenham muito cuidado quando saírem. Já sabem o que se
passou além debaixo da ponte?
Os rapazes abanaram a cabeça.
– Já esperava que não. Foi a Bessie Watkins que me disse e tinha sabido
pela Delilah Robinson, cujo marido trabalha nas docas. Ligou-lhe há
bocado. Uma mulher foi esfaqueada por um maluco.
– Essa conversa não é apropriada para o jantar! – comentou Isaiah com a
boca cheia de batatas.
– Tira os cotovelos da mesa e não fales com a boca cheia. Isso é que não é
apropriado. – Octavia abanou a cabeça enquanto barrava uma fatia de pão
com manteiga. – Não sei onde este mundo vai parar. Parece-me que se
aproxima rapidamente o dia do Juízo Final.
Memphis detestava ouvir a tia a falar assim. Nunca perdia a oportunidade
de dizer que o fim estava próximo e nunca perdia a oportunidade de
preocupar os outros com as suas ideias.
– Bem, seja lá como for, quero que tenham cuidado. Não quero que
andem por aí sozinhos depois de escurecer. Memphis trata disso, por favor.
Memphis engoliu uma garfada de batatas.
– Eu? O Marvin encarregou-a disso, não é verdade?
– Não fales comigo nesse tom. E não chames Marvin ao teu pai.
– É esse o nome dele, não é?
– A propósito, recebi hoje uma carta do vosso pai.
– Vai voltar? – perguntou Isaiah.
Octavia esboçou o seu sorriso comprometido. E Memphis soube o que
estava na carta, mesmo sem a ter lido.
– Ainda não, meu querido. Ainda está a instalar-se.
– Há quase três anos que está a instalar-se – disse Memphis deixando cair
uma colherada de feijões no prato.
– O homem trabalha muito e manda-vos dinheiro. Não sabes tudo,
Memphis John.
– O que aconteceu à mulher debaixo da ponte? – perguntou Isaiah e
Memphis lançou à tia um olhar assassino.
– Isso agora não interessa. Come o feijão e bebe o leite senão não cresces.
– E depois temos de te chamar Camarão. O velho Camarão Campbell –
troçou Memphis, tentando distrair o irmão. – Tão pequenininho, que os
amigos têm de o transportar numa fatia de pão torrado. Tão pequeno que
usava um chapéu feito de um dente. Tão incrivelmente raquítico, que até os
girinos têm pena dele.
O leite borbulhou no nariz de Isaiah, que ria à gargalhada. Octavia
começou a repreender os dois, mas não conseguiu evitar rir. Por isso
Memphis continuou a história fazendo-a girar rapidamente, conseguindo
envolvê-los e assim os manter, nesse momento, com o fio das suas palavras.

Na cozinha silenciosa, a irmã Walker ligou o rádio que murmurou e silvou


até ganhar vida com a voz de um homem que prometia os benefícios do
Sistema Dental Parker. Deixou-o ligado. Voltara-lhe aquela tosse incómoda,
por isso tirou uma pastilha de uma lata junto ao açucareiro, depois acendeu
um fósforo debaixo da chaleira para fazer chá. O trabalho com Isaiah era
prometedor, muito prometedor. Havia muito tempo que não via uma pessoa
como ele, mas acautelou-se e não se entusiasmou muito. Sabia bem que tal
promessa podia brilhar, depois esbater-se e desaparecer completamente,
como soubera que acontecera com Memphis.
A irmã Walker entrou na sala e acendeu o candeeiro. A lâmpada afastou
as sombras da noite. Levantou uma gravura de Paris do seu gancho e
encostou-a à parede junto aos seus pés. Por trás do quadro, um pequeno
quadrado disfarçado fora cortado no estuque. Retirou o quadrado e, do
espaço dentro da parede, retirou um grosso dossiê. Sentada no sofá
impecável, folheou as fichas, relendo o material, procurando alguma coisa
que lhe pudesse ter escapado. Na cozinha a chaleira assobiou. A irmã
Walker sobressaltou-se, mas logo se riu da sua inquietação. Guardou as
fichas e fechou o buraco, colocando de novo o quadro. O chá estava quente
e acalmou a pieira no seu peito enquanto folheava os recortes de jornais que
tinha acumulado.
Se tivesse razão acerca de Isaiah Campbell, o poder regressava. O que
significaria? Quantos mais existiriam como ele? De que seriam capazes?
E quanto tempo faltaria para serem descobertos?
OS CORAÇÕES DOS HOMENS

Era tarde quando Evie, Will e Jericho voltaram ao museu. Para chegar às
prateleiras altas da biblioteca o tio Will subira à escada de rodas, passava os
dedos pelas lombadas gastas, e entregava os livros a Jericho.
– Vê se consegues encontrar uma Bíblia – gritou para Evie. – Deve haver
uma na sala das coleções.
Evie não tinha grande vontade de entrar na outra divisão, principalmente
à noite.
– O Jericho não pode ir? Conhece o museu melhor do que eu.
– O Jericho está a ajudar-me e, tanto quanto vejo, tu consegues andar.
Insististe em ir hoje, não é verdade?
– Sim, mas…
– Então torna-te útil.
Evie percorreu rapidamente as salas do museu, acendendo os candeeiros à
medida que avançava. Não queria saber da conta da eletricidade; queria as
salas tão brilhantes como a Great White Way. À entrada da sala das
coleções, Evie fez uma pausa, procurando apenas com o olhar, na esperança
de localizar o que procurava sem ter de andar por aquele espaço cavernoso
cheio de objetos misteriosos. Quando percebeu que teria de entrar, deu à
manivela da velha vitrola para lhe fazer companhia e afastar os arrepios.
Era uma pequena gravação de alguém a tocar ragtime no piano. A melodia
alegre ajudou-a a esquecer o medo enquanto executava a sua busca. No
canto junto à lareira tropeçou em qualquer coisa por baixo do tapete persa.
Erguendo o canto, viu no chão uma argola de ferro para uma pequena porta,
como a de um abrigo de tempestades. Era demasiado pesada para a puxar e
parecia não ter sido mexida havia muitos anos. Voltou a colocar o tapete no
sítio. Numa mesinha, Evie encontrou a Bíblia encostada a um vaso com um
feto.
– E diz a mãe que eu sou pagã.
A música terminara. O disco sibilou uns instantes no silêncio e depois um
homem começou a falar na gravação. «Toda a minha vida fui capaz de ver
os mortos», disse com um sotaque rolado. «Alguns só querem paz e
descanso. Mas nem todos. Nada disso. Há maldade neste mundo, maldade
nos corações dos homens, maldade que vive em...» Evie retirou a agulha de
cima do disco e fugiu da sala sem apagar as luzes.
– Porque demoraste tanto? – perguntou Will quando Evie chegou
ofegante à biblioteca. Ele e Jericho tinham retirado um monte de livros que
metiam na pasta de Will.
– Tive de ir a Jerusalém em busca da Bíblia. Sabia que queriam um
original – disse Evie irritada. – Sabia que há uma porta no chão?
– Sim – respondeu Will.
– Então? Onde vai ter? – perguntou Evie irritada.
– São escadas para uma cave secreta e um túnel. Era uma paragem do
metropolitano. A própria Sojourner Truth escondeu antigos escravos aí em
baixo – explicou Will. Pegou na Bíblia e meteu-a na mala. – Agora só lá
deve haver pó e ratazanas. Vamos?
Evie e Jericho esperaram nos degraus enquanto o tio Will fechava o
museu. As luzes estavam agora acesas, dando ao Central Park uma aura
misteriosa. Pelo canto do olho, Evie apercebeu-se de qualquer coisa que a
fez olhar para trás.
– Que se passa? – perguntou Jericho. Seguiu o olhar de Evie até ao
parque.
– Pensei ver uma pessoa a observar-nos – disse Evie, perscrutando o
parque. Nada viu. – Devo ter-me enganado.
– Foi um longo dia – disse Jericho delicado. – Não me admirava que os
teus olhos te pregassem partidas.
– Creio que tens razão – disse Evie, mas tinha a sensação incómoda de ter
visto Sam Lloyd. Tivera a vaga impressão de o ver encostado a uma árvore
com a sua postura confiante que tanto a irritava. Mas Jericho tinha razão,
não estava ninguém ali. Apenas o candeeiro da rua e o parque.
Sam ficou para trás escondido por uma rampa de pedra até que se foram
embora. Ela vira-o. Fora apenas um segundo, mas bastara. Que se passaria
com aquela jovem que o fazia perder a sua esperteza? Viera até ao museu
para tentar convencê-la com falinhas mansas a devolver-lhe o casaco, mas
depois vira o detetive e decidira regressar quando o museu estivesse vazio
para roubar o casaco – e mais qualquer coisa de que precisasse.
Sam fizera tempo no meio da animação de Times Square. Marcara um
marinheiro que passeava um pouco incerto na esquina da Broadway com a
Rua 45. As ruas estavam cheias de gente que ia para casa depois do
trabalho. A maioria dos carteiristas considerava aquela uma boa hora para
exercer a sua arte, pois as pessoas andavam distraídas. Porém, Sam tinha a
seu favor uma misteriosa habilidade para se movimentar entre as pessoas
sem ser notado. Não que fosse invisível; mas porque conseguia dirigir os
pensamentos alheios para outro lugar de modo que os olhos dos outros não
o notavam. Bastava-lhe pensar, Não me vejas, e a pessoa não o via.
Também era rápido, movendo-se com a rapidez de um gato. Nesses
momentos, ouvia apenas a sua respiração ritmada enquanto extraía uma
carteira de um bolso, arrancava uma mala da mesa de um restaurante, ou
roubava pão da prateleira de uma loja. Não sabia porque resultava, nem
como – apenas que era assim. Era assim que sobrevivia por si só, nos
últimos dois anos.
Tinha uma nítida recordação da primeira vez que acontecera. Era pequeno
– dez ou onze anos, talvez; fora pouco tempo depois de a mãe ter partido. O
pai tinha um relógio que pertencera ao avô e tinha dito a Sam para não lhe
tocar, mas fora precisamente essa ordem que tornara o relógio tão atraente.
Um dia rapinara-o de dentro da gaveta do pai e escondera o tesouro no
casaco para mostrar aos outros rapazes da escola, na esperança de que se
apercebessem do seu valor e deixassem de troçar dele pelo seu sotaque, as
suas roupas, o seu tamanho. Mas, afinal, ridicularizaram-no. «Isso? É
apenas um relógio barato», disse o líder e esmagara-o no chão. Sam ficara
com medo de voltar para casa e ter de enfrentar o pai. Enquanto estava
sentado no sofá à espera, desejou que houvesse um lugar onde se esconder.
Quando o pai chegou a casa, o medo de Sam era tão grande que se sentiu
outra vez pequenino, imaginando que poderia simplesmente fechar os olhos
num jogo de escondidas e a outra pessoa não daria por ele. Ouviu
aproximarem-se os passos do pai, ouviu-o chamá-lo pelo seu nome. Não me
vejas, pensou Sam. «Não me vejas», murmurou várias vezes, como uma
prece. E depois, estranhamente, o pai olhou diretamente para ele e
continuou a andar chamando pelo seu nome como se ele fosse um fantasma.
Sam sentiu-se atrapalhado para explicar. Lembrou-se de uma coisa
estranha que a mãe lhe dissera. Estavam na casa de banho e ela limpava os
arranhões que arranjara porque os colegas violentos o haviam perseguido e
empurrado na rua.
– Não te preocupes lyubimiy. Tens dons que eles não têm.
– O que quer dizer com isso? – perguntara, estremecendo quando ela
encostara um pano húmido ao seu queixo arranhado.
– Verás com o tempo.
E realmente assim fora, mas perguntava-se se seria isso que ela quisera
dizer e como o poderia ter sabido.
Tentando manter-se quente no frio da noite, Sam observara
cuidadosamente o marinheiro e pensou no seu casaco. O que lhe importava
não era o jaquetão de lã, mas sim o postal escondido no bolso. Não
pareceria grande coisa – apernas um desenho gasto de majestosas
montanhas cobertas de neve e árvores altas. Não tinha qualquer carimbo de
correio que o esclarecesse. Nas costas havia três palavras rabiscadas em
russo. Esse postal era a única coisa que Sam trouxera de casa do pai em
Chicago, quando fugira, pedindo abrigo a um circo que viajava para leste.
Nos primeiros seis meses em Nova Iorque mal conseguira sobreviver. Mas
a sorte poderia mudar rapidamente. Os jornais estavam cheios de histórias
de self-made men, como Henry Ford e Jake Marlowe. Também Sam faria
fortuna e depois encontraria o sítio do postal. Encontrá-la-ia.
Evie, o tio e o gigante teutónico tinham certamente partido de vez, por
isso Sam usou o seu canivete suíço e abriu a fechadura da porta do museu
com toda a facilidade. Para uma sumidade, aquele professor era muito
incompetente no que dizia respeito à proteção dos seus tesouros. A luz da
rua encostava-se aos vitrais do museu, conferindo um suave brilho
ambarino à escuridão do seu interior. Sam esperou que os olhos se
ajustassem e deslizou através da antiga mansão em busca do seu casaco.
Tudo isto teria sido evitado se tivesse usado o seu dom quando conhecera
Evie O’Neill na Penn Station. Mas, sem saber porquê, quisera que ela o
visse. Quisera falar com ela. E, na devida altura desejara beijá-la tal como
desejara o seu dinheiro. Fora esse o erro. Agora ali estava, no Museu dos
Arrepios, procurando o seu casaco na penumbra.
Fora muito mais simples com o marinheiro. O homem parara na esquina
sem saber se avançar ou voltar à esquerda e, nesse momento, Sam entendeu
perfeitamente o pobre homem. Quando o marinheiro atravessara por fim a
rua, Sam viera da direção oposta. Não me vejas, pensou e mesmo que
alguém olhasse na sua direção, teria uma visão vaga e desfocada. Sam
movimentara-se ininterruptamente através da multidão e retirara-lhe a
carteira do bolso das calças com facilidade, para logo avançar sem ser visto.
Onde estaria o seu casaco? Arriscou-se a ligar o candeeiro de mesa. A luz
caiu sobre uma pilha de recortes de jornais de quase dez centímetros.
Examinou vagamente as histórias, pondo-as de lado com um sorriso
afetado. Histórias de fantasmas. Histórias assustadoras inventadas por gente
que tinha medo de viver. Ou por quem desejava atenção, conhecia o género.
Depois o sorriso de Sam desvaneceu-se quando um pequeno artigo de um
jornal do Kansas o informou de que uma jovem de quinze anos, que
adoecera com uma doença letárgica antes de morrer, repetira uma expressão
que intrigara a família. Eram sempre as mesmas duas palavras repetidas
vezes sem conta: Projeto Búfalo.
Sam devolveu o artigo ao monte de recortes com as mãos subitamente
trémulas. Se este professor Fitzgerald sabia alguma coisa desse assunto,
Sam precisaria de descobrir maneira de se aproximar dele, talvez chegando-
se mais à sobrinha, o que lhe parecia uma proposta fantástica. A menos que
ela o matasse com um ataque de fúria. Certamente parecia ser o tipo de
miúda capaz de o fazer. Sam sorriu só de pensar; gostava de um desafio e
tratava-se sem dúvida de um desafio. Apenas precisava de um modo de
entrar nele.
Encontrou-o pendurado na parede da sala das coleções: PUNHAL E BAINHA
DO CERIMONIAL MAÇÓNICO DOS CAVALEIROS DO TEMPLO, PROPRIEDADE DE
CORNELIUS T. TATHBORNE, FALECIDO EM 1855.
«Isto deve servir», pensou Sam escondendo os objetos na camisa. Saiu do
museu como entrara. No dia seguinte à mesma hora, teria de volta o seu
casaco e talvez uma pequena recompensa.
COISAS POR DIZER

Evie foi diretamente ao apartamento de Mabel e fugiram ambas do fumo de


cigarro que enchia a sala onde os pais de Mabel realizavam uma reunião
política.
Mesmo fechando a porta do quarto de Mabel, conseguiam ouvir a
discussão dos adultos acerca dos direitos dos trabalhadores, acompanhada
de inúmeras chávenas de café.
– Que se passa? Estás com um ar péssimo – disse Mabel.
– Foi um dia do outro mundo, coisinha. – Evie contou a Mabel o terrível
assassínio de Ruta Badowski, deixando de lado a parte da fivela do sapato.
Conhecia Mabel. Era tão reta como os pais e provavelmente obrigaria Evie
a dirigir-se à esquadra para confessar o que sabia. Mas Evie não queria
reviver o minuto em que vira coisas terríveis.
– Que horror! Pensas que o teu tio Will pode ajudá-los a encontrar o
assassino?
– Se alguém pode é o meu Tito. É um génio.
– Vais ajudá-lo?
Evie estremeceu.
– Nem morta!
Na outra sala as discussões transformaram-se em gritaria. Alguém batia
na mesa e berrava «Temos de fazer mais!», enquanto a Sr.ª Rose pedia
silêncio e tentava acalmar os ânimos.
– Mabel, posso dormir aqui esta noite?
A amiga abriu os olhos espantada.
– Queres dormir com esta confusão?
Evie acenou afirmativamente. Precisava de barulho. Poderia ser suficiente
para afogar os seus pesadelos.
Mabel encolheu os ombros.
– Como queiras. Pronto. Aqui tens uma camisa de dormir.
Com ar zangado, Evie segurou na camisa modesta e de gola subida.
– Se eu morrer durante a noite, despe-me isto, por favor.
– Podes lembrar-me da razão por que somos amigas?
– Porque precisas de mim.
– Parece-me que as coisas são ao contrário, Evie O’Neill.
– Provavelmente. – Evie beijou a face de Mabel. – És um amor de amiga,
coisinha.
– Não te esqueças disso.
Treparam para a cama de Mabel e ficaram a observar os padrões que a luz
desenhava nas paredes e no teto. Falaram da Operação Jericho, do defunto
Rodolfo Valentino e também do futuro, como se pudessem dar forma ao
cintilante curso dos seus destinos com confissões secretas oferecidas como
preces ao silêncio benevolente do quarto. Falaram até o sono lhes rarear as
palavras.
– Já soubeste de alguma coisa que tivesses medo de contar? – perguntou
Evie. Sentia-se mais cansada que nunca.
– O que queres dizer com isso? – perguntou Mabel já com voz arrastada.
– Não sei bem – murmurou Evie. Queria dizer mais, mas não sabia como
começar e, entretanto, Mabel adormecera.

Sob uma trave carunchosa da antiga casa, uma aranha esperava e vigiava
uma infeliz mosca que se aventurava a aproximar-se da sua teia. Quando
percebeu que a mosca estava definitivamente presa, a aranha aproximou-se,
enterrando-a numa mortalha de seda.
Como a aranha, a casa também esperava. Esperava. Esperara durante
muitos anos, assistindo a mortes de presidentes e a guerras. Esperava
quando o primeiro automóvel surgiu ruidoso nas ruas sujas e o aeroplano
desafiou a gravidade. Agora a espera terminara.
Nos confins da velha cave, a chama da fornalha voltava à vida. Por trás
da fornalha havia uma passagem secreta para um quarto escondido cujas
paredes brilhavam levemente com símbolos pintados há muito em
preparação. O desconhecido fez girar uma manivela e lá em cima uma
grade de metal, ferrugenta pela falta de cuidado, rangeu e abriu-se para
revelar o céu da noite não intacto da fosforescência das luzes da cidade. Era
o local perfeito para ver passar as nuvens indolentes. Para olhar para as
estrelas. Ou para observar em toda a glória a passagem ardente de um
cometa profético. O desconhecido estava nu debaixo daquele céu. A sua
pele cintilante era também uma tapeçaria de símbolos. Poisou os olhos no
altar e inclinou a cabeça, à espera, como a aranha, como a casa.
A sala estava cheia de sussurros, primeiro suaves, depois mais ruidosos,
como o som de um milhar de demónios à solta no deserto. A escuridão
moveu-se. As sombras avançaram, encostando-se ao desconhecido e à
oferenda, enquanto as estrelas frias e distantes desviavam o olhar.
PRESSÁGIOS

O matutino Daily News vendia a história da morte de Ruta Badowski com


títulos enormes – ASSASSINATO EM MANHATTAN! – por cima de uma
fotografia granulada dos pais enlutados. Evie leu os relatos em todos os
jornais enquanto esperava que Will voltasse da esquadra da polícia. As
histórias mencionavam que fora um assassinato ritual e que o criminoso
deixara uma nota com uma citação bíblica e símbolos do ocultismo, mas
não divulgavam de que símbolos se tratava. O detetive Malloy tinha
obviamente omitido esses pormenores. Evie desejava não os conhecer.
Acordara a ouvir o assobio da terrível melodia na sua cabeça.
Nenhuma das notícias mencionava que Will fora consultado, mas Evie
desejava que o tivessem feito. Era terrível, bem o sabia, porém, não existia
uma coisa chamada má publicidade e a menção do tio Will, relacionando-o
com a investigação de um crime poderia atrair pessoas ao museu. Era quase
uma hora. Estavam abertos desde as dez e meia e o único visitante fora um
homem do Texas que o que afinal queria era vender talhões de cemitério.
Evie vira um monte de contas sobre a secretária do tio, juntamente com
uma carta das finanças e outra de uma empresa imobiliária. Se não
começassem a ter um fluxo regular de visitantes, ver-se-iam no olho da rua
e Evie teria de regressar ao Ohio.
– Isto é sempre assim? – perguntou Evie a Jericho que estava absorvido
num texto religioso a cheirar a pó.
Jericho ergueu o olhar, confundido.
– Sempre assim, como?
– Morto.
– Está um pouco lento – concedeu Jericho.
Por enquanto, Evie não podia fazer muito em relação ao museu, mas
podia empenhar-se na Operação Jericho. Aproximou mais a cadeira da dele
e fez a sua melhor expressão pensativa.
– Sabes quem ficaria po-si-ti-va-men-te encantada neste tipo de coisas? A
Mabel!
– A Mabel? – Os olhos de Jericho tinham a expressão perdida de um
homem que tentava situar qualquer coisa.
– Mabel Rose! Vive por cima de nós no Bennington – esclareceu Evie.
Jericho continuava com a sua expressão perdida. – Vai muitas vezes lá a
casa e fala bem alto. Já lhe ouviste a voz. Tenta lembrar-te.
– Oh, essa Mabel.
– Pois. Agora que já a situaste entre as outras que conheces, o que pensas
dela? Acho que é uma rapariga estupenda. E tão inteligente! Sabes que fala
latim? Consegue declinar as palavras enquanto cogita! – Evie soltou uma
gargalhada.
– Quem? – perguntou Jericho voltando a página.
– A Mabel! – disse Evie irritada. – E tem uma figura adorável. Claro que
anda escondida por baixo daqueles vestidos horríveis. Mas o corpo está lá,
garanto.
– Estás a falar da Mabel do dezasseis-E?
– Sim, estou!
– Parece-me uma rapariga simpática – disse Jericho, encolhendo os
ombros.
Evie alegrou-se.
– Pois parece, não parece? Porque não vamos jantar os três juntos uma
noite destas?
– Tudo bem – respondeu Jericho distraído.
Evie sorriu. Pelo menos a Operação Jericho tivera um princípio animador.
Mais tarde imaginaria um plano para o museu.

***

– Que vais fazer, Homem Escritor?


Gabe encontrava-se entre Memphis e a rede, com os braços abertos e os
dedos prontos para o steal. Os sapatos rangiam no chão de madeira do
ginásio da igreja. Lá em cima zumbiam as ventoinhas do teto, mas não
conseguiam evitar o suor dos rapazes. Memphis passou o antebraço pelos
olhos, planeando o movimento seguinte.
– Vais ficar aí o dia inteiro? – provocou-o Gabe.
Memphis fingiu dirigir-se à esquerda. Gabe mordeu o isco e atirou-se,
deixando que Memphis passasse pela direita. Correu e colocou a bola com
toda a facilidade.
Gabe caiu no chão.
– Rendo-me.
Memphis ajudou-o a levantar-se.
– Belo jogo.
Gabe soltou uma gargalhada enquanto saíam do campo.
– Claro que foi um belo jogo para ti. Ganhaste.
Vestiram-se e dirigiram-se ao drugstore para irem comer qualquer coisa.
Gabe aclarou a garganta.
– Ouvi dizer que o tornozelo da Jo estava apenas torcido.
– Ainda bem – disse Memphis. Não queria falar do assunto.
– Mesmo assim vai estar sem trabalhar mais duas semanas.
– É uma pena.
– É tudo o que tens para dizer?
– Que mais querias que dissesse?
– Já alguma vez tentaste...
Memphis deteve-se.
– Já te disse. Não posso fazê-lo mais. Desde aquilo da minha mãe.
Gabe ergueu as mãos.
– Pronto, pronto. Não te aborreças. Se não podes, não podes.
Percorreram em silêncio um quarteirão vendo um corvo acompanhando-
os a esvoaçar de poste em poste.
– Jurava que aquele pássaro anda a seguir-nos – disse.
Gabe riu-se e girou a pata de coelho presa na corrente que tinha
pendurada no dedo. Afirmava tratar-se do seu amuleto e nunca fazia nada
sem ela.
– Eu disse-te, Casanova, tens de deixar de dar a esses pássaros doces e
flores. Depois nunca mais te deixam em paz.
– Não estou a brincar. Há duas semanas que o vejo todos os dias.
Gabe franziu as sobrancelhas e os seus lábios esboçaram um sorriso.
– E sabes que é o mesmo corvo? Tem nome? Talvez seja Alice. Ou
Berenice! Sim, senhor, parece-me que é Berenice.
Memphis percebeu que se trataria de uma piada que Gabe usaria nas
próximas semanas.
– Memphis... é apenas um pássaro. Os pássaros voam por aí, meu. É o
que costumam fazer. Não anda a seguir-te. Não se trata de um sinal. A
menos que lhe tenhas mesmo dado doces e flores e então és um homem
estranho, meu.
Memphis riu e afastou o mau pressentimento como um casaco sem
importância. Gabe tinha razão – estava a deixar-se assustar por nada. Era
aquele estranho sonho que não o deixava em paz. Não admirava que visse
maus presságios a cada esquina.
Instalaram-se num reservado de Mr. Reggie’s e mandaram vir sanduíches
e café.
– Escrevi outro poema ontem à noite – disse Memphis.
– Quando vais mostrar esses poemas a alguém que não aos mortos do
cemitério?
– Ainda não são suficientemente bons.
Gabe estendeu o braço e pegou no picle do prato de Memphis.
– Como sabes se nunca ninguém os leu? Um destes dias só precisas de
entrar na casa de menina A’Lelia Walker e dizer: «Como tem passado,
minha senhora? Sou Memphis Campbell e ficar-lhe-ia muito grato se lesse
o meu trabalho.»
Gabe comeu o picle e limpou as mãos ao guardanapo de Memphis.
– A vida não vai ter contigo, Memphis. Tens de a agarrar porque ninguém
a vai entregar, compreendes? Olha – Gabe encostou-se à parede do pequeno
reservado e abriu os braços –, pergunta-me porque estou a sorrir.
Memphis revirou os olhos.
– Porque estás a sorrir, Gabe?
– Adivinha quem vai tocar trompete no novo disco da Mamie Smith?
– Boa, meu!
– Disse-me o Clarence Williams da Okeh Records ontem à noite no
clube. Querem que lá vá amanhã. – Gabe abanou a cabeça. – Eu, a tocar
para menina Mamie Smith.
– Que se passa com a Mamie Smith? – Alma deixou-se cair no lugar ao
lado de Gabe e serviu-se da sua salada de batata.
– Convidei-te? – implicou Gabe.
– Convidei-me a mim mesma. Pensei que esta mesa precisava de classe.
– Aqui o senhor Gabriel Rolly Johnson é agora um artista que vai gravar
para a Okeh Records, tocando trompete para, nada mais, nada menos, do
que a menina Mamie Smith.
Alma soltou um gritinho de emoção e lançou os braços ao pescoço de
Gabe.
– Sabes o que isso significa, amor?
– O quê?
– Significa que podes pagar-me o almoço. Ei! Senhor Reggie! – gritou. –
Vou comer uma sanduíche de rolo de carne que pode pôr na conta do Gabe.
E junte um batido! – Olhou para Memphis semicerrando os olhos. – O que é
que te incomoda?
– Não tenho andado a dormir grande coisa.
– Oh? – disse Alma apertando os lábios numa expressão brincalhona. –
Como se chama ela?
– Chama-se Berenice e é uma ave muito persistente – troçou Gabe,
soltando uma gargalhada. Bateu na mesa fazendo saltar a pata de coelho.
– Não é ninguém – disse rapidamente Memphis.
– É esse o teu problema, meu – disse Gabe, limpando os olhos.
Acrescentou à sua sanduíche picles picantes, que fizeram pingar o nariz de
Memphis. – Tens de tirar o nariz de dentro desse caderno e vir comigo ao
clube um sábado à noite. Vamos arranjar-te uma miúda.
Alma fez uma careta.
– Como podes comer isso, Gabriel?
– Ajuda-me a manter os lábios suaves, miúda.
Memphis mexeu o pequeno monte de açúcar no fundo da chávena de
café.
– Não quero uma miúda. Quero a miúda.
Alma ergueu o dedo mindinho e espetou o queixo.
– Oh. A miúda.
Gabe imitou-lhe o tom arrogante.
– Só te digo, rapaz. Dá-lhe os meus cumprimentos.
Alma e Gabe começaram a troçar de Memphis, como se ele fosse um
peralvilho. Memphis era suficientemente esperto para não se mostrar
irritado com a troça dos dois, por isso esboçou um enorme sorriso e agarrou
na mochila.
– Tenho de ir a San Juan Hill tratar de uns assuntos do Papa Charles. Oh,
obrigado pelo almoço, Gabriel.
Conseguiu ainda ouvir Gabriel dizer:
– Ei! Olha lá! – e deixou-o com a conta para pagar.
– Ei! Ei! Senhor Campbell! É o senhor? – chamou o cego Bill da cadeira
diante da Barbearia Floyd. Por vezes Floyd punha à porta uma velha cadeira
e deixava-o sentar-se a tocar para os clientes, ou apenas a apanhar sol. – Sei
que é o senhor. Não brinque agora com o velho Bill. O meu número saiu
hoje?
– Não, senhor. Lamento. Espero que tenha melhor sorte da próxima vez.
– Ouvi dizer que houve pessoas a fazerem apostas com aquele crime que
aconteceu debaixo da ponte.
– Sim, senhor. Há pessoas que têm manias com essas coisas.
– Hum! – resmungou o velho Bill. – Isso não é nada bom. Se quer a
minha opinião, não se fazem apostas acerca de um assassinato.
– Eu só escrevo os papelinhos.
– Estou sempre a ver este número. Nos meus sonhos, sabe, vejo uma casa
e há um número, mas nunca percebo qual é.
Memphis nunca pensara nos sonhos do cego. Como poderia o velho Bill
ver uma casa e um número se não via nada? Mas havia boatos acerca de
Bill: perdera a visão depois de ter bebido uísque falsificado. Fora espancado
e deixado quase morto por causa de uma dívida de jogo que não pagara.
Enganara uma mulher e ela vingara-se lançando-lhe uma maldição. Havia
quem dissesse que perdera a visão num jogo de cartas com o Diabo e que
agora andava a fugir para não perder a alma. As pessoas diziam tudo o que
lhes vinha à cabeça.
O corvo crocitou mais uma vez, o cego Bill inclinou a orelha na sua
direção.
– Parece que arranjou um mensageiro, a questão é: veio para si ou para
mim?
Bill soltou uma enorme gargalhada em tom grave que se ligou com o
crocitar insistente do corvo numa discordante sinfonia.
Theta entrou no Globe Theatre com o casaco de leopardo ao ombro e um
cigarro nos lábios pintados. Deixou ficar os óculos escuros, tateando o
caminho pela coxia através das filas de cadeiras. O resto da companhia
estava a meio de um ensaio para o número da Geisha, que Theta
considerava o trabalho mais estúpido e insultuoso que alguma vez fizera – e
fizera muitos números estúpidos e insultuosos.
O contrarregra lançou-lhe um olhar furibundo.
– Ora, ora, ora. Mas não é que Sua Alteza veio, por fim, dar-nos a honra
da sua presença. Estás uma hora atrasada, Theta!
– Tem calma, Wally! Já cá estou – Theta trocou um olhar furtivo com
Henry que estava ao piano. Este abanou a cabeça e ela encolheu os ombros.
– Pensa que é melhor do que toda a gente – queixou-se uma das coristas,
uma bruxinha chamada Daisy.
Theta ignorou-a. Deixou cair o casaco na fila da frente, apagou o cigarro
na chávena de café do contrarregra e tomou o seu lugar no palco.
– Um dia destes, Theta – irritou-se ele –, vais fazer uma coisa que nem o
Flo Ziegfeld quererá tolerar e terei todo o prazer de te mandar...
– Vamos ficar a conversar o dia todo, ou vamos trabalhar? – perguntou
Theta irritada.
Theta executou os passos na perfeição. Sabia o número a dormir.
Contudo, achou melhor chocar com Daisy só para a irritar. Daisy estava
aborrecida porque Theta obtivera uma boa crítica nos jornais para um
número que deveria ser dela.
– Era a minha dança especial – declarara Daisy furiosa no camarim na
noite seguinte. – Roubaste-a debaixo do meu nariz.
– Não posso roubar-te o que não é teu – dissera Theta e Daisy atirara-lhe
com um boião de creme que nunca acertaria em Theta já que a sua pontaria
era tão questionável como a sua dança. Como sempre, Daisy fora queixar-se
a Flo que cedera e lhe dera o lugar principal para o número A Adoração de
Baal que fechava o espetáculo. Theta sentia-se cansada de ficar sempre à
sombra de alguém –, principalmente quando esse alguém não lhe chegava
aos calcanhares.
Interromperam por cinco minutos e Theta sentou-se no banco do piano ao
lado de Henry.
– Parece que fugiste da universidade – troçou. Henry vestia um casaco de
malha e tinha um chapéu de palhinha na cabeça.
– É tudo estilo, minha querida.
– Somos os dois demasiado grandes para esta porcaria de espetáculo,
Hen.
Henry tocava suavemente, quase por reflexo. Estava sempre feliz quando
tinha as mãos sobre as teclas e delas saía uma canção.
– Concordo querida, mas temos de pagar a renda.
Theta ajustou as costuras das meias para que ficassem direitas.
– Como correu quando foste mostrar ao Flo a nova melodia?
O perpétuo sorriso de Henry transformou-se num franzir de testa. Do
piano saiu um acorde mais triste e a música terminou.
– Mais ou menos como eu esperava.
Theta puxou-lhe a aba do chapéu.
– O Ziegfeld só gosta delas estúpidas e que fiquem no ouvido.
– «As pessoas pagam para se divertir, miúdo» – disse Henry numa
imitação perfeita do grande empresário. – «Querem sair daqui felizes e a
cantar. Principalmente não querem pensar muito!» – Suspirou. – Juro que
podia escrever uma canção acerca da prisão de ventre e desde que amor
rimasse com flor, o senhor Ziegfeld haveria de gostar. – Henry tocou uma
melodia alegre. Cantou em tom exageradamente romântico na sua voz de
tenor. – Meu amor, nesta solidão mandava-te uma flor não fosse ter no
ventre esta priiiisããão!
Theta soltou uma gargalhada.
– O que é que tem tanta graça? – Daisy aproximou-se deles.
– Percebi agora uma anedota que o Henry me contou quarta-feira
passada. – Theta acendeu o cigarro com um fósforo e soprou o fumo na
direção de Daisy, que nada percebera.
– Que andas a ler? – A corista espreitou o exemplar de The Weary Blues,
que estava sobre a mala de Theta. – Poesia negra?
– Não esperava que percebesses, Daisy. Não olhas para mais nada senão
para a Photoplay, e mesmo assim tens de arranjar alguém que te explique as
fotografias.
Daisy abriu a boca ofendida.
– Ora, francamente! Eu nunca…
– Sim, isso é o que dizes aos teus amigos, mas nós não engolimos. Vai-te
embora, Daisy. Xô, mosquinha! – Theta agitou os dedos como se sacudisse
Daisy que se afastou irritada e começou a queixar-se, a quem a quis ouvir,
dos modos altivos com que Theta tratava as outras bailarinas.
Os dedos de Henry voltaram de novo às teclas.
– Não há como tu para fazer amigas, minha querida.
– Não estou interessada em fazer amigas. Já tenho um bom amigo – disse
dando umas palmadinhas no joelho. Meteu a mão no sutiã e retirou dele
uma nota de cinquenta dólares que meteu no bolso da camisa de Henry. –
Toma. Para o fundo do piano.
– Disse-te que esquecesses isso.
Theta baixou a voz.
– Nunca esqueço um favor, bem sabes.
– Onde arranjaste a massa?
– Um corretor de Wall Street com mais dinheiro que juízo. Comprou-me
o casaco de peles só para que eu fosse vista com ele ao jantar. E foi o que
conseguiu... companhia para o jantar.
– Todos querem casar contigo.
– Gostaria de conhecer um fulano que não fosse um impostor. Que não
quisesse comprar-me um casaco de peles só para me exibir aos amigos.
– Quando conheceres esse fulano, vê se ele tem um irmão – brincou
Henry.
– Pensei que andavas encantado com o Lionel – gracejou Theta. Henry
fez uma careta.
– Parece um pau de fósforo. Dá gargalhadas quando o beijo.
– Talvez sejas engraçado a beijar – disse Theta a sorrir. Adorava a
maneira como Henry arranjava sempre uma razão para mandar passear os
namorados.
– Conheci-te numa rua no Ohio. Casámos na feira do Kansas.
Abandonaste-me na Florida. Agora estou desesperado… – cantou Henry.
– Um dia Henry DuBois, vais conhecer um fulano que te agrade e então
saberás o que fazer – gracejou Theta.
O contrarregra apareceu, batendo as palmas para chamar a atenção.
– Vamos lá todos. O número de Baal desde o princípio. Aos seus lugares,
por favor. Menina Knight, a menina também.
– Não perdia isto de maneira nenhuma, Wally. – Sorriu docemente como
num cartaz de espetáculo da famosa e americana Ziegfeld girl, antes de
apagar o segundo cigarro na nova chávena de café de Wally.
A RECORRÊNCIA ETERNA

Evie e Jericho estavam sentados a uma mesa comprida com montes de


livros, relatórios da polícia, desenhos e vários jornais diante deles. Jericho
acendera o lume na enorme lareira de pedra da biblioteca e as chamas
faziam estalar a madeira seca. Estavam a trabalhar havia já uma hora,
procurando nos livros bolorentos uma pista que pudesse lançar a luz sobre a
estranha natureza sobrenatural do assassinato. Evie estava cansada e
irritável. Não queria pensar no que vira no dia anterior, muito menos
envolver-se naquilo. Mas Will não dava mostras de querer parar. Enquanto
falava, caminhava em redor do quarto deixando atrás de si um rasto de
cinza.
– Certo. Vamos rever. O que sabemos até aqui? – perguntou.
– O assassino tem um fascínio pelo ocultismo e pela religião,
possivelmente pelo Apocalipse – respondeu Jericho do seu posto à cabeça
da mesa.
– Como o sabemos?
– As suas notas mencionam a Meretriz, a Prostituta da Babilónia e a
Besta, referindo-se possivelmente ao Anticristo.
– Exatamente – disse Will. – Mas trata-se, apenas parcialmente, de uma
passagem da Bíblia. Não corresponde com exatidão.
– Mas aproxima-se – disse Jericho.
– Qualquer bibliotecário ou académico diria que aproximado não é o
mesmo que preciso. E não se esqueçam que há também sinais, o que é mais
indicativo de um qualquer cerimonial de magia ou misticismo do que de
Cristandade. – Will indicou os gatafunhos que rodeavam a nota. Para Evie
eram apenas gatafunhos, cruzes estilizadas, floreados, letras elegantes e
figuras geométricas.
– Bom… – Will apagou o cigarro num cinzeiro a deitar por fora e
imediatamente abriu a cigarreira de prata para retirar outro sem sequer
interromper a tarefa. – Temos um símbolo, não é verdade?
– Um pentagrama – respondeu Evie.
– Sim. Não tenho dons artísticos. Evie, importas-te? – Will entregou-lhe
um bocado de giz que encontrara numa velha caixa de charutos contendo
vários objetos. Evie levou um instante a compreender que o tio esperava
que ela desenhasse o símbolo na ardósia. – Não. Desenhaste-o direito.
Invertido, por favor.
Com um suspiro, Evie apagou a sua estrela de cinco pontas e desenhou-a
mais uma vez com duas pontas para cima e uma para baixo.
– Qual é a diferença? – resmungou.
– Já te disse: invertido significa a matéria sobrepondo-se a Deus. O
espírito tornado carne e não o oposto. Agora a serpente, por favor.
Evie terminou o desenho. Era um belo desenho de uma serpente, disse
para consigo. Não que Will lhe agradecesse. Evie sacudiu o pó do giz das
mãos.
– Qual o significado da serpente?
– Ah! Trata-se de um símbolo muito antigo. A serpente devorando a
cauda, nada de princípio ou de fim. Existe através do tempo e das culturas.
Vemo-lo no Jormungandr nórdico, no Ouroboros grego, no gnosticismo, no
Império Ashanti, no egípcio. Representa ciclos, a ideia de que o universo
não é criado nem destruído, mas regressa infinitamente, para ser
representado uma e outra vez.
– Nietzsche chama-lhe a recorrência eterna – disse Jericho.
– Isso significa que vou ter de voltar a viver esta tarde? – gracejou Evie,
mas ninguém riu, de modo que se entreteve a desenhar um chapéu elegante
na cabeça da serpente.
Will agarrou numa mão-cheia de pastilhas de mentol de um prato e
agitou-as na palma da mão enquanto retomava o trabalho, ainda com o
cigarro aceso na outra mão.
– Podemos então concluir que o nosso assassino tem conhecimentos de
ocultismo, da magia e do simbolismo religioso, mais provavelmente do
Apocalipse. Mas refere a Prostituta da Babilónia como «Meretriz Adornada
sobre o Mar». – Will fez uma breve pausa. – É uma expressão estranha,
essa. Desconcertante. Possivelmente de uma religião inventada pelo próprio
criminoso.
– Como se inventa uma religião? – perguntou Evie.
Will olhou por cima dos óculos.
– Basta dizer: «Deus disse-me o seguinte» e depois esperar que as
pessoas adiram.
Evie nunca se preocupara muito com a religião. Os pais eram católicos,
passando depois a episcopalianos. Ao domingo assistiam aos serviços
religiosos, mas simplesmente por rotina, como tomavam banho e lavavam
os dentes. Uma coisa que se fazia porque era assim mesmo. Evie nem
sempre se sentira desse modo. No ano seguinte à morte de James, rezava
fervorosamente com a sua moeda de meio dólar entre as palmas das mãos,
para que acontecesse um milagre, por um telegrama que dissesse BOAS
NOTÍCIAS! FOI UM ERRO INCONCEBÍVEL, O SOLDADO JAMES XAVIER O’NEILL FOI
ENCONTRADO SÃO E SALVO NUMA QUINTA EM FRANÇA. Mas esse telegrama
nunca chegou e a fé que poderia ter florescido em Evie murchou e morreu.
Agora considerava-a como sendo mais uma espécie de publicidade para
uma vida que pertencia à geração anterior e não tinha qualquer significado
para a sua.
– Não respondemos à pergunta mais básica de todas: Porquê? Qual o
objetivo destes crimes? – perguntou Jericho, afastando Evie dos seus
pensamentos.
– É um monstro – disse Evie. – Não é verdade?
Will meteu a mão numa taça e retirou uma mão-cheia de uma mistura de
doces. Agitou-os na mão sem os comer.
– Sim. Mas isso é um «quê», não um «porquê». Nada acontece sem um
objetivo, por mais rebuscado que possa ser.
– Por que razão lhe terá arrancado os olhos? – perguntou Evie.
– Pode ter querido guardá-los como recordação.
Evie fez uma careta.
– Uma recordação é um moinho de papel de Coney Island, Tito.
– Para nós, sim. Para um louco? Talvez não. Mas talvez precise deles para
um ritual. Em certas culturas acredita-se que ao ingerir a carne das vítimas
se obtém a imortalidade. Os Aghori da Índia comem a carne dos mortos
acreditando que esta lhes confere poderes sobrenaturais, enquanto os
membros da tribo dos Algonquinos acreditam que quem come carne
humana se transforma num espírito demoníaco chamado Wendigo.
Evie sentiu o estômago às voltas.
– Bem, não há nada na Bíblia acerca de um canibalismo sagrado.
– Transubstanciação? – perguntou Jericho. – «Comer do meu corpo,
beber do meu sangue»?
– É isso – concordou Evie. – Nunca mais vou pensar na comunhão da
mesma maneira.
– Como já antes vos disse, a América é um país jovem, reunindo todo o
tipo de pessoas. As crenças convergem e transformam-se a toda a hora em
coisas novas. – Will terminou o segundo cigarro e Evie viu que os dedos
dele se agitavam em busca do terceiro, mas que, felizmente, resistiu. O
fumo espesso já pairava no ar.
– Há uma coisa que não entendo. A nota... – Evie procurou na confusão
de papéis que havia sobre a mesa e retirou a fotografia da nota deixada
sobre o corpo de Ruta. – A nota diz: «Esta foi a quinta oferenda.» Porquê a
quinta? Porque não a primeira?
– Sim, é perturbador. – Will deu mais uma volta à mesa apertando a
cigarreira na palma da mão.
– Jericho, podes telefonar ao detetive Malloy para lhe perguntares se há
crimes por resolver que possam ser de natureza semelhante?
– Não acham que ele o teria dito? – perguntou Evie.
– Nunca se devem tirar conclusões precipitadas – disse o tio Will e era
evidente que se tratava da sua última palavra sobre o assunto.
– São quase horas da sua conferência no clube da Associação Feminina
da Antiga Ordem da Fénix – recordou Jericho.
Will semicerrou os olhos para olhar para o relógio sobre a lareira como se
tencionasse zangar-se com ele por não mostrar as horas certas, depois
acenou rapidamente com a cabeça, como o diretor de uma escola que,
durante a aula, aceita finalmente a opinião académica de um aluno.
– É verdade. Será melhor ir buscar as notas para a conferência.
– Deixou-as lá em cima – disse Jericho.
– Ah, pois. Ainda bem. – Will fez mais uma pausa observando a sala. –
Não consigo deixar de pensar que há qualquer coisa que nos está a escapar.
E uma coisa importante.
O lume lançou sombras no rosto de Will. Pôs de parte as suas
desconfianças e partiu.
Bateram à porta. Por fim, um cliente! Jericho levantou-se em primeiro
lugar. Pela pressa que levava, Evie apercebeu-se de que não era ela a única
pessoa preocupada com o museu. Ouviu vozes e, logo a seguir, Jericho
regressou, trazendo atrás de si nada mais, nada menos do que Sam Lloyd.
Evie semicerrou os olhos.
– Ora, ora, ora, suponho que venhas trazer-me os vinte dólares.
Jericho olhou primeiro para Evie, depois para Sam e de novo para Evie.
– Conhecem-se?
– De facto vim ver o senhor William Fitzgerald. Ele está? – Sam esticou o
pescoço.
– O doutor Fitzgerald. E qual o assunto que veio tratar com o meu tio?
– O seu… o seu tio? – Sam sorriu surpreendido. – Não me diga! Mas não
é uma coincidência?
– O que é que é uma coincidência? – perguntou o tio Will entrando na
sala. Vinha de chapéu trazia a pasta na mão e um guarda-chuva pendurado
no braço esquerdo embora estivesse um dia de sol.
Sam avançou e apertou com força a mão de Will.
– Como está? Sam Lloyd. Tenho uma coisa que creio que lhe pertence.
– Ah, sim?
– Pois bem, não creio que a história me faça parecer um fulano fantástico.
Mas sabe, ontem à noite estava na casa de penhores à espera que me dessem
uns tostões pelo meu relógio... os tempos estão difíceis, e ouvi então um
fulano a dizer que tinha uma mercadoria para vender. Um tesouro raro do
Museu dos Arrepios. – Sam encolheu os ombros como que a pedir
desculpa. – É como toda a gente lhe chama, professor.
– Continue – disse o tio Will. Se estava admirado não o demonstrou.
Sam abriu o saco e retirou dele o punhal maçónico de Cornelius
Rathbone. Will ergueu-o à luz e espreitou.
– Tem razão. É o nosso.
– Ofereci ao fulano os meus últimos vinte dólares e ele aceitou já que o
homem da casa de penhores não parecia muito disposto a aceitá-lo por mais
do que dez. Não sabia se poderia haver uma recompensa pela sua
devolução. – Sam fez uma pausa olhando rapidamente para Will e depois
para as suas próprias mãos. – Pensei, bem, uma coisa será levar o que se
precisa para se poder comer, ou roubar um contrabandista de bebidas
alcoólicas, outra roubar tesouros de um museu. Isso é que é mesmo mau.
Evie ficou a olhá-lo com a boca ligeiramente aberta. Sam pestanejou e
disse:
– Cuidado menina... olhe que lhe pode cair a língua.
Evie olhou-o.
– Se me desaparecer a língua sei em que bolsos procurar! Mas que
história tão bem contada. Tito, tem de lhe dar um pontapé no rabo. É um
aldrabão, um mentiroso...
– A menina já o disse – declarou Sam.
– Pois bem, volto a dizê-lo! É este o filho da mãe que me roubou vinte
dólares na Penn Station!
– Evangeline, nem todos estão habituados ao teu encanto mafioso –
declarou o tio Will depois de uma pausa. – Isso é verdade, rapaz?
Sam esboçou um sorriso confiante.
– Sabe, professor, trata-se de uma enorme confusão.
– Confusa é a sua avó – ripostou Evie.
Sam adotou uma expressão ofendida.
– Não queria dizer isto e arranjar sarilhos à menina, mas ela roubou-me
um casaco.
– E não lho vou devolver enquanto não tiver de volta os meus vinte
dólares.
Jericho veio para junto de Evie, e inclinou-se para Sam.
– Olá – disse este. – É irmão da menina?
– Não.
Sam olhou de Jericho para Evie.
– São casados?
– Não! – disseram Evie e Jericho ao mesmo tempo, mas não sem que
Sam reparasse na cor que invadia o rosto de Jericho.
– Escute, menina, não sei que tipo de situação tem aqui. Também não
faço julgamentos. Fico contente por ver que está a salvo com o seu tio e o
seu… – fez um aceno a Jericho – o seu amigo grande. Estava apenas a
tentar praticar uma boa ação, mas já vejo que as boas ações também são
castigadas. Por isso se me entregar o meu casaco, ficamos quites e vou-me
embora. Nem sequer a acuso de ter roubado os meus bens.
Evie começou por falar precipitadamente, mas logo a seguir correu atrás
dele em volta da mesa comprida, derrubando, entretanto, pilhas de livros.
– Vou matá-lo, querem ver?
Jericho ergueu a mão.
Will pôs-se à frente da sobrinha obrigando-a a parar.
– Peço desculpa, mas estou totalmente confuso e também – Will olhou
para o relógio – seis minutos e meio atrasado para a minha conferência.
Não ligo muito a gatunos, mas odeio mentirosos e pessoas que me impedem
de tratar dos meus assuntos de maneira eficiente. Muito bem, roubou-lhe de
facto vinte dólares? Responda com cuidado, meu rapaz.
Pela primeira vez, Sam pareceu nervoso, passou a mão pelo cabelo e
aproximou-se um pouco mais da porta.
– Bem, meu caro senhor, um grande homem disse uma vez: «A
subjetividade é a verdade; a verdade é a subjetividade.»
– Kierkegaard – disse Will surpreendido. O seu tom de voz tornou-se
mais suave. – Mesmo assim, factos são factos.
Sam olhou para os sapatos.
– Lamento. Pensava pagar-lhe quando vi o tal fulano na casa de penhores
e lhe dei o meu último cêntimo para reaver o punhal. Pensei que pudesse ser
uma oferta de paz.
– Oh, que lata – murmurou Evie. – Provavelmente foi ele que o roubou.
Sam esforçou-se por não levantar os olhos.
– Estou tão falido que tive de saltar a cancela para não pagar o bilhete de
comboio. Podem chamar a polícia se quiserem. De facto nem vos
censuraria. Mas sou honesto como um senador quando digo que encontrei
os seus objetos roubados, meu caro senhor. Espero que possa ter isso em
conta.
– Ouvi dizer que dão três refeições por dia em Sing Sing – resmungou
Evie.
– Evangeline – disse Will, suspirando. – A caridade começa em casa.
– E também as doenças mentais.
Will tamborilou com os dedos nas costas da cadeira.
– Fez mal em levar o dinheiro da Evangeline por muitas necessidades que
estivesse a passar. Porém, foi um ato nobre devolver a propriedade do
museu quando não tinha de o fazer. Nunca antes pensei na segurança do
museu. – Will coçou a cabeça e olhou em volta para os seus preciosos
livros.
– Dê-me licença que lhe diga que hoje em dia todo o cuidado é pouco.
– Ora esta! – Evie olhou para Sam com os olhos muito abertos.
Will acenou com a cabeça enquanto refletia.
– Muito bem. Que me diz a um trabalho honesto aqui no museu? Há
muito que fazer e podia ficar aqui à noite a afugentar os ladrões
indesejáveis.
Evie voltou-se rapidamente para encarar Will.
– Tito! Ele é um ladrão!
– Sim, pois é. E é um bom ladrão, Sam?
Sam sorriu.
– O melhor, senhor.
– Um bom ladrão em busca de trabalho – declarou Will. – Suponho que
possa começar imediatamente.
– Will, a Evie tem razão. Não o conhece e ele vai apenas estorvar – disse
Jericho em voz baixa. – Eu posso montar guarda se achar necessário.
– Não creio que seja sensato, Jericho – respondeu Will, calmamente. Evie
não percebeu o que o tio queria dizer, mas o rosto de Jericho parecia de
pedra. – Podemos sempre aproveitar uma ajuda, principalmente agora que
estamos a investigar um assassínio.
– Um assassínio? – disse Sam. – Parece emocionante.
– Olha rapaz, em breve podem começar a investigar o teu – avisou-o
Evie.
– Pois sim, bem, espero que não seja avesso ao trabalho duro – disse Will.
– Nada melhor do que um honesto dia de trabalho, é o que digo sempre,
meu caro senhor.
Will olhou de novo para o relógio.
– Já estou nove minutos atrasado. Jericho, podes devolver o casaco ao
senhor Lloyd e levá-lo ao arquivo, por favor?
Muito irritado, Jericho retirou do armário o casaco de Sam e entregou-lho
com modos um pouco rudes.
– Ele é enorme – murmurou Sam a Evie. – O que lhe dão de comer?
Evie aproximou-se.
– Estou de olho em ti, rapaz. Se assobiares fora de tom prometo ser eu
mesma a dar-te uma corrida em osso. Nem vais ter tempo para agarrar no
chapéu.
– Bem. – Sam acenou com a cabeça e enfiou o casaco. – Gosto muito
deste chapéu. Foi bom encontrar-te outra vez, miúda.
– O prazer foi todo teu – disse Evie e foi a correr para apanhar Will.
Ouvia Sam assobiar atrás dela «Am I Wasting My Time on You?» Estava
desafinado, mas Evie tinha a nítida impressão de que o fazia de propósito.
– Tito! – chamou e apanhou-o à porta da rua.
– Evie, esse assunto não pode esperar? As senhoras da Antiga Ordem de
sei-lá-o-quê...
– Da Fénix – esclareceu Evie.
– Fénix, estão à minha espera e se não conseguir apanhar um táxi, passo
de desculpavelmente atrasado a egregiamente atrasado.
– Tito, não pode deixar o Sam Lloyd trabalhar aqui. Logo com estes
preciosos artefactos! O mais provável é roubar tudo.
– São precisamente essas qualidades que nos podem ser úteis.
– Que quer dizer com isso?
– De vez em quando, o museu tem de ser… inteligente e descobrir
objetos, histórias e pessoas antes que alguém cá chegue. É delicado.
– Quer que eu acredite que há outras pessoas que querem estas coisas
macabras?
– Ficarias surpreendida.
– Mesmo assim é um ladrão.
– Um ladrão que lê Kierkegaard é um ladrão muito interessante.
– Mas Tito…
– Evangeline, nem toda a gente começa a vida numa casa confortável
numa rua confortável do Ohio – disse Will severamente.
O comentário magoou-a. Porque estaria Will a defender Sam Lloyd, um
vulgar criminoso, preferindo-o a ela? Afinal Sam era um desconhecido; ela
era da família. Os parentes não se deviam proteger uns aos outros? Mas ele
tomara o partido do seu opositor, tal como o pai e a mãe tinham tomado o
partido de Harold Brodie em vez de defender a própria filha. Se o tio Will
queria ser idiota, o problema era dele. Fora uma estupidez tentar intervir.
– Espero que não se engane acerca dele – disse Evie e voltou para a
biblioteca.
Olhou com ar ameaçador para Sam e instalou-se à mesa examinando as
enormes pilhas de notícias de jornal e de livros, procurando qualquer coisa
que pudesse lançar uma luz sobre o estranho assassinato de Ruta Badowski.
Quando se fartou, procurou o seu exemplar da Photoplay.
– Então, a Clara Bow vai fugir com o Charlie Chaplin? – leu Sam por
cima do ombro dela.
Evie nem levantou os olhos.
– Porque não levas a revista e a lês sozinho? Pareces ser especialista em
levar o que não é teu. É isso, porque não a levas quando saíres?
Sam riu.
– E porque deixaria eu um emprego tão bom? Além do mais detestaria
que tivesses saudades minhas, miúda.
– A ausência aumenta o amor. Vamos pôr essa frase à prova, sim? Vou
buscar o teu chapéu.
– Nem penses. O teu tio precisa da minha ajuda. Olha para toda esta
tralha... quem diria que havia tantos amuletos supersticiosos? Como este.
Feitiço amoroso dos Hopi. Oh, miúda é melhor que não mexas nele. Podias
encantar-te em mim.
– Isso é que era bom.
– Nunca se sabe.
– Podes esperar sentado – disse Evie.
Ele aproximou-se um pouco mais. Evie via as centelhas de âmbar dos
olhos dele.
– Admite... até gostaste do beijo.
– Deves-me vinte dólares.
– Em dinheiro ou em cheque – disse ele atrevido. Até as mais enfadonhas
raparigas do Ohio sabiam que aquilo queria dizer em calão: Beijas-me
agora ou mais tarde?
– O banco já fechou, rapaz.
Sam acenou afirmativamente.
– Então é em cheque – dirigiu-se para as portas da biblioteca a assobiar.
Evie seguiu-o pela escada que levava ao primeiro andar do museu.
– Precisas de alguma coisa, miúda?
– Quero ter a certeza de que não sais daqui com metade do museu.
– Terás muito que esperar – disse ele apontando com a cabeça para a casa
de banho dos homens no cimo das escadas. Quando chegou à porta, Evie
ficou do lado de fora com os braços cruzados.
– Sinceramente, convidava-te a entrar, mas consegui evitar ser preso por
pequenos furtos. Detestava ir ver o sol aos quadradinhos por perversão.
– O que for preciso para te tirar do museu do meu tio – observou Evie
com ar sarcástico. – Eu espero.
– Como queiras, boneca.
Na casa de banho bafienta do museu, Sam lavou as mãos e deixou a água
a correr. Assobiando, sentou-se no chão de pedra rachado e ficou a ver a
sombra dos pés de Evie caminhando de um lado para o outro pela greta da
porta. Acabaria por se aborrecer. Abriu a carteira de Jericho de que
conseguira apoderar-se enquanto o gigante louro estava ocupado. Rapaz
confiante. A confiança era um hábito perigoso. Sam retirou a nota de cinco
dólares, substituindo-a por duas de um. Era o truque mais velho do mundo.
Se se roubasse o dinheiro todo, o outro podia acusá-lo de ladrão. Mas se
levasse uma nota grande e deixasse duas pequenas, o fulano pensaria que
tinha gasto a massa e não se lembrava de ter recebido o troco.
Retirou os cinzeiros de prata que conseguira subtrair da biblioteca sem
que ninguém desse por isso. Esperava vendê-los mais tarde por alguns
dólares numa casa de penhores de má reputação. Embrulhou-os numa das
toalhas de mão da casa de banho e escondeu-os por detrás da sanita. Tinha
grandes planos e os planos custavam tempo e dinheiro.
A sombra de Evie desapareceu. Sam abriu uma greta da porta e viu que o
corredor estava vazio. Fechou mais uma vez a porta da casa de banho dos
homens, fechou a torneira e ficou a olhar para o seu reflexo no alto espelho
de moldura de madeira. Duas madeixas de cabelo escuro caíam-lhe de
ambos os lados dos olhos dourados. A expressão de despreocupação tinha
desaparecido e fora substituída por um ar determinado.
«Prazer em conhecê-lo. Sou Sam Lloyd. Diga-me onde ela está, ou...»
Sam deteve-se. Embora tivesse ensaiado a cena várias vezes na sua
imaginação, não tinha de facto a certeza do que diria quando esse dia
chegasse. Apenas sabia que não iria às cegas. Sam puxou a perna das calças
e retirou a arma que lá escondera, deu-lhe uma volta, examinou o cano e
sentiu a tensão do gatilho. Abriu a câmara e fez girar o tambor. Ainda não
tinha balas. Com os cinzeiros conseguiria o suficiente para as comprar. O
emprego no museu fora um golpe de sorte, mais fácil do que fazer truques
de magia nas ruas de Times Square. Bastar-lhe-ia aguentar-se algum tempo
– o suficiente para descobrir quem teria de pagar pelo que tinha acontecido
à sua família. E pagariam.
Ao espelho, Sam tinha uma expressão zangada. Parecia mais velho do
que os seus dezassete anos. Endireitou a gola, transformou a expressão num
grande sorriso e ergueu a arma, apontando-a ao seu reflexo.
– Prazer em conhecê-lo. Sou Sam Lloyd. Diga-me onde ela está e talvez o
deixe vivo.
Sam ouviu passos e apressou-se a meter a pistola no coldre. A porta
abriu-se de par em par e Jericho entrou. Sam fez um enorme espetáculo a
lavar as mãos.
– Passa-se alguma coisa?
– Parece-me que perdi a minha carteira.
– Eh… que chatice, amigo – disse Sam. Quer que o ajude a procurar?
Jericho olhou para Sam com os olhos semicerrados, avaliando a oferta.
– Obrigado.
Sam acompanhou Jericho pelo museu procurando exageradamente,
apontando os lugares onde a carteira pudesse estar escondida. Quando
chegaram à biblioteca, soltou-a da perna das suas calças junto a uma das
estantes. Não seria bom ser ele a encontrá-la. Precisava de fazer com que o
próprio Jericho a encontrasse.
– Procurou aqui, grandalhão?
Jericho franziu a testa ao ouvir a expressão grandalhão. Subiu a escada
de caracol até ao primeiro andar e encaminhou-se para as estantes até
encontrar a carteira no chão.
– Já encontrei – exclamou. Abriu a carteira e franziu a testa. – Ia jurar que
tinha cinco dólares. Mas aqui estão apenas dois.
– Que aborrecimento. Será melhor não os perder – disse Sam distraído.

Evie passou os olhos pelas páginas de um livro intitulado Fervor Religioso


e Fanatismo no Distrito Queimado. O autor parecia ter escrito o livro com o
objetivo expresso de pôr os seus leitores a dormir e Evie tinha dificuldade
em reter o que estava a ler. Recorreu ao subterfúgio da leitura em diagonal,
detendo-se de repente quando encontrou uma ilustração perto do fim. Viu o
mesmo símbolo usado no assassinato. A inscrição dizia O PENTAGRAMA DA
IRMANDADE, BRETHREN, NOVA IORQUE, C. 1832.
O telefone tocou, ecoando através do museu vazio. Evie dobrou o canto
da página para mais tarde mostrar a Will e correu para o telefone.
– Só um momento, vou fazer a ligação – disse a telefonista. Ouviu-se um
clique e um assobio e depois a voz de Theta estalou pelos fios.
– Olá, Evil. É a Theta. Escuta, ainda queres ir ver o espetáculo?
– Ai não!
– Estupendo. Vou deixar os bilhetes para ti e para a Mabel no teatro para
o espetáculo desta noite. Depois há uma festa em Greenwich Village, se não
for depois da vossa hora de dormir.
– Nunca me deito antes da madrugada.
– Isso mesmo! Evil, traz a tua fardamenta mais janota.
– Vai ser a fatiota mais catita que já viste.
Na privacidade do escritório do tio, Evie saltou de alegria. Enfim! Nessa
noite ela e Mabel sairiam com Theta e o seu grupo elegante. Dançou até à
biblioteca, cantarolando um número de jazz.
– O que te aconteceu? Ganhaste o concurso de Miss América ou quê? –
perguntou Sam. Juntou o livro de Evie a um pequeno monte de livros para
guardar nas estantes.
– Esta noite sou convidada da menina Theta Knight para a última sessão
da revista do senhor Ziegfeld no Globe Theatre e depois para uma festa
particular.
– Fantástico. Precisas de par?
– Festa particular! – cantarolou Evie. Estendeu o braço e retirou o chapéu
e a echarpe da pata do urso empalhado em que os tinha pendurado.
– Olhem, gostava de saber se algum de vocês sabe alguma coisa a este
respeito. – Ele apontou para o recorte de jornal em cima do monte, acerca
da jovem com a doença letárgica.
Evie olhou de relance enquanto fazia um laço solto com a echarpe em
redor do pescoço.
– É um dos recortes mais estranhos do Tito. Coleciona pequenas histórias
de fantasmas. Suponho que faça parte do seu trabalho. Porque perguntas? –
quis saber Evie.
Sam forçou um sorriso.
– Por nada. Estava a tentar pôr-me a par do assunto.
Evie deu-lhe uma palmadinha na face.
– Boa sorte, Lloyd.
Evie saiu do museu e seguiu por Central Park West. Dez quarteirões mais
acima, avistou as espiras góticas do Bennington espreitando sobre telhados
e árvores. Era um fim de tarde agradável e sentiu apoderar-se dela um
súbito entusiasmo – a sensação de que todas as coisas eram possíveis e que
podia retirar do ar os seus mais profundos desejos, tal como um mágico
com uma moeda.
No quiosque dos jornais um rapaz anunciava a última edição apregoando
os títulos, mas Evie estava demasiado ocupada a pensar na festa perfeita
que a esperava, para lhes dar atenção. A sonhar com o que haveria de vestir
passou por mães atarefadas tentando reunir os filhos à saída do parque bem
como por um tocador de órgão acompanhado por um macaquinho vestido
de paquete que batia os dentes e guinchava aos transeuntes, até estes
atirarem moedas para a pequena caneca de lata. Duas jovens vestindo capas
iguais anunciando um clube noturno ofereceram-lhe um folheto.
– O que é isto? – perguntou Evie.
– É para o Nightawks Club. Vamos fazer uma festa do Cometa de
Salomão.
– O quê?
– Credo, o cometa! – disse a rapariga mais alta com um sotaque de Nova
Iorque. – Vai ser visto em Nova Iorque dentro de uma ou duas semanas.
Aparece de cinquenta em cinquenta anos, ou isso. Vai ser um... como é que
eles dizem, Bess?
– Um acontecimento de suma importância – anunciou cuidadosamente a
outra jovem. – Mais ou menos como magia. Todos os mágicos e membros
de certas igrejas acham que se trata de um sinal. De qualquer forma o clube
vai fazer uma festa estupenda para comemorar. Devias vir. Oh, o teu casaco
é o suco da barbatana!
– Obrigada – disse Evie, satisfeita. Olhou para o folheto. Tratava-se do
desenho de uma rapariga moderna dançando numa tempestade, com a taça
de cocktail a despejar o seu conteúdo. Por cima dela, um magnífico cometa
descrevia um arco sobre o horizonte da cidade de Nova Iorque. O artista
desenhara um rosto no cometa que sorria à encantadora jovem. A sua cauda
em chamas lançava centelhas sobre a cidade.
– Não vai querer perder a noite mais mágica do ano, pois não? –
perguntou a rapariga mais alta.
– Nunca na vida – disse Evie.
O Cometa de Salomão. Um acontecimento de tremendo significado.
Talvez lhe trouxesse sorte. De qualquer modo era uma ótima razão para
uma festa e só de pensar na noite que tinha diante de si e nas outras que se
seguiriam, continuou alegremente o seu caminho, com o folheto na mão. À
esquina, esperou que o sinaleiro acenasse com as suas mãos enluvadas para
a deixar atravessar. O polícia apitou, pondo de novo a multidão em
movimento e Evie seguiu na direção de casa.
Atrás dela, o ardina erguia a última edição do jornal, pregoando o título
para quem pudesse comprá-lo.
– Extra! Extra! Louco ameaça matar de novo!
FUMO E ESPELHOS

À entrada do Globe Theatre na Rua 42, o toldo iluminado informava em


grandes letras: FLORENZ ZIEGFELD APRESENTA: NO FOOLIN’: REVISTA
MUSICAL DE HOMENAGEM À RAPARIGA AMERICANA. Um mar de gente, de fato
de noite, entrava no belo teatro das artes, e o entusiasmo era geral porque
iam ver estrelas como Fanny Brice, Will Rogers e W. C. Fields, bem como
ouvir as canções e assistir à coreografia de talentosas coristas e das célebres
Ziegfeld Girls, belos modelos que atravessavam o palco com toucados
elaborados e fatos elegantes e reduzidos. Era o epítome do glamour e Evie
mal conseguia acreditar que ocupavam agora os seus lugares lá em cima, no
balcão, ao lado de todos as elegantes, cobertas de peles e joias.
Evie deu uma cotovelada a Mabel.
– Olha, está ali a Gloria Swanson. – Apontou com a cabeça para o nível
mais abaixo, onde a sedutora estrela de cinema, vestida de arminho e
veludo desfrutava dos olhares dos admiradores.
– É o suco da barbatana – murmurou Evie em tom apreciativo. – Olha
aquelas joias! O pescoço deve doer-lhe.
– Foi para isso que a Bayer inventou a aspirina – murmurou Mabel e Evie
sorriu, sabendo que nem uma socialista seria imune ao encanto das estrelas
de cinema.
As luzes diminuíram e as jovens apertaram a mão uma da outra,
emocionadas. O maestro ergueu a batuta e uma vibrante canção de abertura
ergueu-se do fosso da orquestra. O pano abriu-se e um grupo de coristas
sorridentes envergando fatos de banho de cores vivas dançaram um
sapateado perfeitamente sincronizado, enquanto o cavalheiro de smoking
entoava uma canção acerca de mulheres bonitas. Evie nunca se sentira tão
entusiasmada. Adorou tudo no espetáculo, desde o número engraçado de
canções dos Alpes à dança que teve lugar no harém de um xeque árabe.
Desejava que não acabasse, mas, pelo programa, percebeu que tinha
chegado ao fim. Dizia-se que o Sr. Ziegfeld guardava para o final o número
mais espetacular. As luzes piscaram a sugerir relâmpagos. Do fosso da
orquestra saía o troar dos címbalos e o grito agudo dos violinos contra o
violento bater do tambor. O fumo parecia sair da luz dos holofotes e dirigia-
se para o público. No palco, raparigas descalças, escassamente vestidas,
com enormes toucados na cabeça ondulavam sugestivamente por baixo da
réplica de um altar dourado. Uma beleza loira provocadoramente vestida de
seda dourada, encontrava-se sobre o altar. Dançava como que em transe,
enquanto a música aumentava de volume e cintilavam os relâmpagos. A
beldade cantava docemente, pedindo ao mundo do espírito para não a
sacrificar ao ídolo dourado. Ao longo de uma passerelle, as elegantes
Ziegfeld Girls caminhavam como fantasmas. Era fascinante e Evie
inclinava-se para diante hipnotizada.
– Lá está a Theta – murmurou Mabel. Apontou discretamente para a
corista, a segunda da direita. Mesmo vestida e maquilhada exatamente
como todas, havia qualquer coisa de especial em Theta, pensou Evie. As
expressões plácidas das outras bailarinas sugeriam que pensavam em coisas
emocionantes... como lavar as meias depois do espetáculo. Mas Theta fazia
os espetadores acreditar que era uma adoradora de Baal, em êxtase.
Quando a ação atingiu o ponto culminante e o sacerdote estava prestes a
mergulhar a faca no coração da loura, o herói correu para o altar,
empurrando os adoradores. Derrubou o sacerdote, esmagou o ídolo e
transportou a jovem enfeitiçada pelos degraus iluminados para a pôr em
segurança. Um grupo de raparigas deslizou pelo palco com enormes leques
de penas e, de repente, a cena transformou-se num casamento. As bailarinas
lançaram pétalas vermelhas de rosa enquanto os agora marido e mulher,
virtuosamente vestidos de branco, cantavam um ao outro uma promessa de
amor eterno antes que o pano se fechasse sobre toda aquela cena e o
espetáculo terminasse.
– Foste maravilhosa – exclamou Evie, pouco depois, quando os quatro,
Evie, Mabel, Theta e Henry, percorreram a arborizada Rua Bedford em
Greenwich Village a caminho da festa que uma das raparigas organizava.
– Sim. A minha especialidade é ser a «segunda figura à esquerda do
palco» – disse Theta friamente.
Henry deu-lhe o braço.
– Continua a trabalhar minha querida e em breve serás à «primeira à
esquerda do palco».
– Bem, achei que estavas lindamente – disse Evie. – E descobri-te logo,
não é verdade, Mabesie?
– E de que maneira!
– És um amor por dizeres isso, miúda. Olhem, é aqui a festa.
Pararam junto a um edifício de tijolo vermelho. A festa chegara à entrada
do prédio, onde uma rapariga envolta numa boa de penas, uma longa
boquilha entre os dedos, já estava embriagada. Bloqueou a entrada com
uma perna.
– Qual é a senha?
– Long Island – disse Henry.
– Têm de dizer assim: Lawn Guy-land – ensinou.
– Lawn Guy-land – repetiram todos.
– Entrez! – A jovem baixou pesadamente a perna e os quatro entraram
com alguma dificuldade para o vestíbulo e subiram os três lanços de
escadas repletos de pequenos grupos até chegarem a um apartamento cuja
porta era mantida aberta por um balde de gelo. Lá dentro, a telefonia tocava
música de jazz. A anfitriã passou por eles exclamando «Já chegaram!» antes
de desaparecer noutro aposento, como se cavalgasse uma onda invisível.
Havia um candeeiro no chão e um busto de Thomas Jefferson, em cuja
cabeça alguém tinha enfiado uma cloche, olhava para os quatro de cima de
um dos bicos do pequenino fogão da pequena cozinha. Um homem cantava
«I’ll Take Manhattan» para algumas coristas e amigas que, sentadas aos pés
dele, o acompanhavam.
Mabel puxou pela manga de Evie.
– Não estou vestida para esta festa.
– Nada de que não possamos tratar com um pouco de fumo e espelhos,
Bolacha – disse Evie. Com um suspiro retirou a sua fita de cabelo com
pedrarias e penas de pavão e colocou-a na cabeça de Mabel.
– Pronto, Mabesie, pareces a montra de Natal da Gimbels. E quem não
gosta disto?
– Obrigada, Evie.
– Botem abaixo – disse Theta, entregando uma bebida a cada uma das
amigas.
Mabel ficou a olhar para a sua.
– Mas eu não bebo.
– O primeiro gole é o mais difícil – avisou Henry.
Mabel provou e estremeceu.
– É horrível.
– Quanto mais embriagada ficares, melhor te sabe.
Evie estava tão nervosa que emborcou o seu cocktail em dois goles e foi
servir-se de mais.
Henry ergueu uma sobrancelha.
– Já vejo que és uma profissional.
– Que mais há para fazer no Ohio?
Na sala aquecia uma discussão e ouvia-se a voz aguda de uma mulher.
– Se não te calas com isso, vou eu próprio chamar esse assassino ocultista
e pedir que acabe contigo, Freddie!
Todos começaram a tagarelar sobre o crime da ponte e do último aviso.
– Um amigo meu, que tem um primo que é polícia, disse-me que se
tratava de um crime de sexo.
– Ouvi dizer que se tratava de um desentendimento entre a máfia italiana
e a irlandesa e que ela era amante de um dos mafiosos e se fez amiga de
quem não devia.
– Não há dúvida de que se trata de magia de um país da Europa. Não
deviam deixar que esses estrangeiros continuassem a entrar no país. É isto
que acontece.
– O tio da Evie está a ajudar a bófia a encontrar o assassino – informou-os
Theta.
Todos rodearam Evie, importunando-a com questões: Suspeitavam de
alguém? Era verdade que a rapariga assassinada era prostituta? Evie mal
conseguia responder a uma única pergunta, mas nesta altura uma jovem
gritou da porta.
– O Ronnie tem o uquelele! Bup-bup-a-dit-dit-duh-duh-da!
E, assim, passaram de uma emoção à seguinte sem terem tempo de fazer
um intervalo. Evie sentiu-se pequena e desinteressante ao lado de tanta
energia. Eram todos tão glamorosos e entusiasmados. A gente do teatro
sabia cantar, dançar e representar, conhecia banqueiros e ricaços. E Evie? O
que sabia fazer? Que talentos tinha para se poder destacar?
Evie teve a vaga consciência que estava prestes a ficar embriagada. A
vozinha da razão dizia-lhe para abrandar e ficar calada. Que,
provavelmente, aquilo que estava prestes a fazer não era boa ideia. Mas
desde quando ouvira a razão? A razão era para os tolos e para os membros
da Igreja presbiteriana. Evie emborcou o resto do martíni e chegou-se mais
para o grupo do elegante que cantava ao som do uquelele.
– Não adivinham o que sei fazer – disse Evie alegremente quando
acabaram de cantar «If You Knew Susie». – Vou dar-vos uma pista: é uma
espécie de truque de magia, só que é melhor. – Ronnie pousou os dedos nas
cordas do instrumento. Evie conseguira a atenção de todos e estava
satisfeita. – Consigo ler segredos a partir de uma coisa antiga. Bup-bup-a-
ding-dong… ding-dong.
Theta arrancou o copo da mão de Evie e cheirou-o.
– A sério que consigo! Olhem. – Estendeu a mão e pegou no brinco de
uma jovem, ignorando os protestos dela. Para um efeito mais dramático,
Evie encostou o brinco à testa. Hesitou um momento... e se ouvisse o
terrível assobio que ouvira com Ruta Badowski? Mas assim que se lembrou
do que acontecera, mais determinada ficou de retirar do seu espírito essa
imagem da ponte, e logo o brinco fez as suas confissões.
– O teu verdadeiro nome é Bertha. Mudaste-o para Billie antes de vires
do... Delaware?
A jovem abriu a boca. Bateu as palmas alegre.
– Mas não é estupendo! Oh, faz também com o Ronnie!
Evie foi de convidado em convidado, agarrando pequenos objetos,
ficando cada vez melhor à medida que avançava: «O teu aniversário é no
dia um de Junho e o nome da tua namorada é Mae.» «Foste jantar ao Sardi e
comeste corned beef.» «Tens um papagaio chamado Gladys.»
– Que estupendo, miúda, devias ter um número! – disse Ronnie, o músico
do uquelele.
– Hei de ter um número! – disse Evie em voz alta, deixando que fosse o
gim a falar. – Vou transformar a minha sala num salão e todas as noites as
pessoas virão para que eu lhes diga o que comeram. As colunas de todos os
jornais vão escrever acerca da minha pessoa. Vou ser um êxito!
Todos riram e esse riso cobriu Evie como o mais confortável dos
cobertores. Estava na melhor cidade do mundo e agora mergulhava nela.
Numa hora lera cerca de uma dúzia de objetos e estava positivamente
atordoada. Era muito tarde... ou era cedo, dependendo do ponto de vista.
Um fulano tinha-lhe atado a gravata à testa com um meio laço. Mabel
adormecera no sofá. A anfitriã deixara um tabuleiro de sanduíches
equilibrado sobre o estômago dela e de vez em quando um folião
aproximava-se para roubar uma. Aos pés dela um casal apaixonado
dedicava-se a um beijo eterno.
Henry instalou-se junto de Evie.
– Diz-me, queridinha, sabes um truque muito interessante. És assistente
de um mágico?
– Pois sim – disse Evie a sorrir.
– Como aprendeste a fazer isso? – insistiu Henry. – Sempre foste capaz…
– Poisou-lhe os dedos na testa e fingiu que lhe lia os pensamentos, fazendo
Evie rir. Estava suficientemente embriagada para lhe dizer a verdade, mas
uma vozinha dentro dela dizia-lhe que não o fizesse. A noite fora tão
perfeita. E se estragasse tudo, como na última festa?
– Uma senhora nunca revela os seus segredos – disse Evie em voz
arrastada.
Henry parecia prestes a perguntar-lhe outra coisa. Evie percebia-o. Mas
depois fez de novo aquele sorriso trocista.
– Claro que não.
– Queres que te conte os teus segredos, Henry?
– Não, obrigado, querida. Adoro viver em suspense. Além do mais se eu
contasse a mim próprio todos os meus segredos, perderia todo o meu
mistério. – Ergueu uma sobrancelha e apertou os lábios como John
Barrymore em Dom Juan e Evie sentiu que tinha feito o que estava certo.
Soltou uma gargalhadinha.
– Gosto de ti, Henry.
– Também gosto de ti, Evil.
– Somos amigos?
– Podes crer.
Theta deixou-se cair junto deles no tapete de pele de zebra.
– Sinto-me embalsamada.
– Metida num frasco e conservada em álcool?
– Ossificada até às guelras. São horas de darmos as boas-noites.
– Como queiras, minha vampe.
– Theta. – Evie abanou o dedo na direção da Theta. – Não me disseste os
teus segredos.
Theta hesitou uns momentos, mas estava demasiado embriagada para
dizer que não.
– Pois sim, Evil – disse, passando-lhe uma pulseira de ónix em forma de
jaguar. – O meu aniversário é no dia vinte e três de fevereiro e comi, na
cozinha, uma daquelas sanduíches sem graça nenhuma há um milhão de
horas.
Evie apertou a pulseira e sentiu uma avassaladora sensação de tristeza e
um traço de medo. Viu Theta a fugir de noite, com o vestido rasgado e a
cara numa lástima. Theta estava assustada, muito assutada.
Evie teve de desistir. Quando abriu os olhos, Theta olhava-a de modo
estranho e Evie apenas via a outra Theta, a jovem assustada que fugia para
salvar a vida.
– D...desculpa. Não consegui ver nada – mentiu Evie.
– Não faz mal – disse Theta reavendo a pulseira. Mas lançou a Evie um
olhar desconfiado e Evie esperou não ter ido longe de mais. Talvez o
melhor fosse ocultar por uns tempos o seu truque.
Uma jarra voou por cima das cabeças de ambas e esmagou-se de encontro
a uma parede, lançada pela loira que fazia o número de Baal. Daisy
qualquer coisa, que agora começara a gritar.
– Ninguém aprecia o que faço pelo espetáculo. Nem o Flo, nem ninguém!
Sou uma estrela e podia ir para Hollywood ser uma estrela de cinema assim
eu quisesse.
– A boa da Daisy – disse Henry com ar entendido.
– São horas de desandarmos – disse Theta.
Evie acordou a sonolenta Mabel e Henry foi buscar os casacos. Evie
procurava a manga com o braço esquerdo, sem a encontrar e, por fim,
Henry teve de lhe vestir o casaco.
Evie tocou-lhe no rosto.
– Manda-me a conta pelos teus serviços, Henry.
– Estes são oferta da casa.
De braço dado, seguiram os quatro pelas ruas boémias de Greenwich
Village, passando por clubes noturnos e antros de artistas. Enquanto
caminhavam, cantavam uma canção inventada por Henry com uma rima
muito simples «sentou a parte de trás nos joelhos de um rapaz» que fazia rir
Theta. Os primeiros tentáculos de uma monstruosa dor de cabeça invadiam
a nuca de Evie, apertando-lhe o crânio e fazendo-lhe doer os olhos. Não
conseguia esquecer o que vira quando apertara na mão a pulseira de Theta.
Não sabia de que terror fugiria a amiga e não tinha a certeza de querer
saber, por isso cantava bem alto para sufocar as vozes que ouvia na cabeça.
à entrada do Washington Square Park, Henry deteve-se e saltou para cima
de um banco.
– Sabem que dantes isto era uma vala comum? Há milhares de cadáveres
enterrados debaixo desta terra.
– Em breve posso ser um deles – disse Theta bocejando.
– Olhem para ali – disse Henry, olhando para a lua dourada que
derramava a sua luz pálida pelo céu escuro por cima do arco de Washington
Square. Inclinaram as cabeças para trás para a apreciar em toda a sua
beleza.
– Lindo – disse Evie.
– Bem o dizes – concordou Theta
– Oh, meu Deus – gemeu Mabel. Voltou-se para a valeta e vomitou.
DESGOSTO COMO PENAS

Memphis estava sentado no cemitério perto de uma pedra tumular que dizia
EZEKIEL TIMOTHY. NASCEU EM 1821. MORREU LIVRE EM 1892. Retirou a lanterna
do esconderijo e à sua luz amarelada começou a escrever um novo poema.
Veste o seu desgosto como um casaco de penas, tão pesado que não a deixa
voar. Riscou pesado e escreveu denso, depois decidiu que era uma palavra
pretensiosa e voltou a escrever pesado. Um barco cortava a superfície do
Hudson, deixando atrás de si esteiras de luz. Memphis ficou a olhá-lo
durante algum tempo, em busca da inspiração, mas estava cansado e por
fim descansou a cabeça nos braços e adormeceu.
No sonho já habitual, Memphis estava numa encruzilhada. A terra era lisa
e castanho-dourada. Na estrada em frente o pó amontoava-se num muro
brumoso que escurecia o dia. Havia uma quinta, um celeiro e uma árvore.
Um moinho de vento girava com força nos remoinhos de pó. O corvo
crocitava no campo, batendo as asas frenético diante do homem alto e
magro que, a cada passo, transformava o trigo em cinzas.
Memphis acordou sobressaltado. A vela da lanterna consumira-se
completamente. Estava muito escuro. Colocou de novo a lanterna no buraco
secreto da árvore, pegou nas suas coisas e passou pela casa da colina. Não
olhes, continua a andar, pensou Memphis quando chegou ao portão. Porque
teria pensado aquilo? Porque sentiria os braços arrepiados? Superstição.
Uma superstição estúpida e retrógrada. Ele não era supersticioso e, como
que para se desafiar, para se separar de uma longa linha de temerosos
antepassados entrou propositadamente pelo portão e deixou-se ficar no
caminho rachado e coberto de ervas daninhas que levava à mansão
arruinada. Obrigou-se a caminhar, avançando mais na direção das portas
danificadas. Talvez até entrasse, para acabar para sempre com aquela
estupidez. Estava quase lá. Só mais cinco passos, quatro, três...
As portas abriram-se de par em par, libertando um som que Memphis
apenas conseguia descrever como um gemido infernal. Memphis caiu para
trás, levantou-se com alguma dificuldade e correu a toda a velocidade,
abrandando apenas quando avistou as luzes fortes do Harlem.
Foi o vento, mais nada, raciocinou enquanto subia para casa de Octavia.
Deixara-se aterrorizar por uma rajada de vento. Abanou a cabeça pensando
na sua debilidade, depois sufocou um grito quando deu com Isaiah à porta
do quarto.
– Deus todo-poderoso, Homem de Gelo! – murmurou. – Quase tenho um
ataque de coração. Que fazes fora da cama? Queres um copo de água?
Isaiah olhava em frente.
– Ungi a vossa carne e preparai as paredes de vossas casas. O Senhor não
tolerará fraquezas dos seus escolhidos.
– Homem de Gelo?
– E a sexta oferenda será uma oferenda de obediência.
Memphis sentiu um arrepio subir-lhe dos braços até ao pescoço. Não
reconhecia as palavras de Isaiah. Era como se as recebesse. Memphis não
sabia o que fazer. Se fosse ter com Octavia, esta arrastá-lo-ia e a Isaiah até à
igreja e aí deixá-los-ia para rezarem toda a noite.
A irmã Walker. Talvez a irmã Walker soubesse. Amanhã falaria com ela
para lhe perguntar. Memphis pegou na mão de Isaiah e levou-o para a cama.
O rapaz continuava a olhar ao longe.
– Chegou o tempo. Estão a chegar – disse Isaiah, voltando para os
sonhos, a sua última palavra foi um mero murmúrio. – Os Adivinhos.
E adormeceu.
UM RAIO DE LUAR

A vários quarteirões e a mil anos de distância dos elegantes clubes noturnos


e teatros o luar escorria pelo céu, mas a luz não chegava à escuridão dos
edifícios ao longo da Décima Avenida, onde Tommy Duffy e os amigos
recebiam de bom grado o fresco da noite enquanto se pavoneavam por
Hell’s Kitchen. Intitulavam-se os Reis da Rua porque mandavam nos
montes de lixo e nos terminais de manobras. E arranjavam sarilhos. Sultões
do maldito West Side.
– ... ouvi dizer que há uma cave por aqui que aceita bufos – disse um dos
rapazes. – Disseram-me que o chão está coberto de dentes e que se lhes
pode arrancar o ouro e ir vendê-lo ao prego entre a Oito e a Quarenta.
– És tão aldrabão como o teu velho.
– Retira já o que disseste do meu pai.
– Sim a única coisa que o teu pai sabe fazer é beber o uísque do Owney.
Os dois rapazes atiraram-se um ao outro aos socos e aos palavrões, mais
por hábito do que por sentido de honra, até que Paddy Holleran os separou.
– Poupem-se – ordenou. – Podem precisar dos punhos para o que vamos
fazer esta noite.
Paddy tinha catorze anos e já executava uns pequenos trabalhinhos para o
gangue de Owney Madden, por isso os rapazes seguiam-no sem o
questionar gritando «Reis da Rua!», voltando os caixotes do lixo e atirando
pedras às janelas. Ninguém lhes tocava. Era a vantagem de se pertencer a
um gangue. Sem os outros rapazes não se era nada. Só um pateta. Um zé-
ninguém.
Quando chegaram aos terrenos desertos ao longo do Hudson, onde os
matadouros serviam de sentinelas, Paddy mandou-os calar.
– É preciso estarem alerta. Há um cão de guarda aqui, um grande pastor-
alemão com dentes de meio metro que está sempre à espreita. Come-vos a
cara.
– Qual é o esquema, Paddy? – perguntou Tommy. Tinha apenas doze anos
e respeitava o outro rapaz.
– Estão a ver aquele armazém ali ao fundo? Ouvi dizer que os homens do
Luciano têm lá escondido o uísque do Canadá. E também lá têm uma
destilaria. Roubamos uísque, destruímos a engenhoca e aposto que o
Owney fica todo contente. Aposto que ficamos bem-vistos por ele. Vamos
ensinar aos canalhas italianos que nós, os irlandeses, chegámos cá primeiro.
– Não foi o Colombo que descobriu a América? – perguntou Tommy.
Aprendera na escola antes de desistir no quinto ano.
Paddy bateu-lhe no nariz.
– Que raio se passa contigo? Agora queres passar-te para os italianos? É
isso?
– N...não.
– Olhem! Aqui o Tommy Pistola quer ser italiano! É demasiado fino para
nós.
– Não é nada disso! – gritou Tommy sobrepondo-se aos insultos.
– Ah, não? Então prova. – Paddy tinha uma centelha maldosa no olhar. –
Entras primeiro. Ficas lá durante cinco minutos, depois sais com qualquer
coisa e acreditamos em ti.
Tommy olhou para a extremidade sombria do terreno em que se
encontrava o armazém. Os bêbados dormiam ali. E os tarados também. Por
vezes os gangues rivais patrulhavam com canos de chumbo. E havia a
ameaça do pastor-alemão que Paddy mencionara. Tommy sentia um nó de
medo dentro do estômago.
– Vai ou já não fazes parte dos Rapazes da Rua.
Não haveria pior destino. Até a ideia de um velho esgrouviado lhe
mostrar as partes era melhor do que ser posto fora do gangue, e passar a ser
um zé-ninguém.
– Pronto, pronto – disse Tommy. Com as pernas a tremer encaminhou-se
para o enorme armazém junto ao rio. Gatos vadios moviam-se furtivamente
por entre as ervas daninhas, com coisas nos dentes. Um soprou com os
olhos vítreos no escuro. Rei das Ruas, Rei das Ruas, cantava Tommy para
consigo. Hesitou um segundo junto à porta enorme do armazém. Não estava
fechada a cadeado. Havia apenas uma barra de madeira metida entre os
puxadores. Um dos rapazes uivou como um cão e o coração de Tommy
bateu com força só de pensar no que poderia estar do outro lado da porta.
Rei das Ruas…
Tommy esgueirou-se lá para dentro e viu imediatamente que não se
tratava de uma destilaria secreta, mas de um matadouro. O local tinha um
cheiro nauseabundo a água do rio e carne morta. Atrás de si, Tommy ouviu
a barra de madeira a ser reposta nos puxadores. Atirou-se de encontro à
porta batendo-lhe com os punhos.
– Deixem-me sair! Eu mato-vos!
– Dá cumprimentos aos italianos, lorpa – gritou Paddy do outro lado e os
outros acompanharam-no nos seus insultos. Tommy escutava o riso deles a
afastarem-se do armazém, bem com os seus passos rápidos. Tommy lançou-
se de encontro à porta, mas sem sorte. A menos que pudesse encontrar outra
saída, ficaria ali preso até que chegasse mais alguém. Esse alguém poderia
ser um dos homens de Lucky Luciano, que era mais assustador do que
passar a noite só, no velho armazém. Vinda do rio, a lua entrava pelas
janelas altas e estreitas do edifício. A luz fraturada caiu primeiro sobre as
correntes e ganchos suspensos do teto, depois sobre as carcaças dos porcos
pendurados numa longa fila nas traseiras do armazém. Uma ratazana
passou-lhe por cima de um pé, fazendo-o gritar.
– Que bicho grande, não é verdade? – perguntou a voz de um homem.
Tommy girou sobre si mesmo.
– Quem está aí? Quem disse isso?
O homem saiu das sombras. Era grande como um pugilista, mas parecia
importante e deslocado, de fato completo e chapéu de coco. Tommy engoliu
em seco. E se aquele homem fosse um dos gorilas de Lucky Luciano?
– Foi uma partida. Os m...meus amigos fecharam-me aqui – conseguiu
Tommy dizer. – Juro, senhor. Não quero problemas.
– Como te chamas? – perguntou o homem.
– Tommy.
– Thomas – repetiu o homem, saboreando o nome. Havia qualquer coisa
nos seus olhos que não parecia normal. Tommy atribuiu-o à fraca luz da lua.
– Tomé o discípulo. Tomé o descrente, que teve de ver antes de acreditar.
– Hã???
O desconhecido sorriu. Era um sorriso um pouco perturbador, mas
Tommy sentiu-se atraído para ele.
– Como pareces estar na disposição de negociar, Thomas, vou também
propor-te um negócio. Esta noite é a noite em que podem fazer-se homens
de grande ousadia. Mas terás de pôr de lado as tuas dúvidas, Thomas.
O homem retirou do bolso uma nota nova de cem dólares e fê-la estalar
entre os dedos azulados com marcas. Tommy abriu ainda mais os olhos.
– Quéééé que eu tenho de fazer? – perguntou, cauteloso.
– Só tens de ir até ao fundo do armazém buscar a minha bengala. Tem
uma ponta de prata.
O homem apontou com a mão e Tommy viu o castão de prata da bengala
luzir ao longe do outro lado dos porcos.
– O que é que eu ganho?
– Ah! Isso é querer saber de mais, não achas? A vida é um jogo de sorte
para homens ousados, Thomas. Deves estar disposto a arriscar-te para seres
recompensado. Que dizes?
Tommy refletiu. Na sua curta vida, descobrira que os grandes negócios,
afinal não eram negócios. E a ideia de passar por aqueles pálidos porcos já
mortos para apanhar a bengala no outro extremo do armazém parecia-lhe
assustadora. Depois lembrou-se que estava ali por causa daqueles a quem
chamava amigos, que o tinham fechado só para se rirem. Havia de aparecer
para lhes esfregar na cara aqueles cem dólares.
– Muito bem, cavalheiro. Faço isso.
O homem esboçou um sorriso desconcertado.
– Afinal és um homem ousado. Posso ver as tuas mãos?
Tommy franziu a testa.
– Para quê?
– Um homem da minha posição tem de tomar certas precauções. As mãos
por favor.
Tommy estendeu as mãos primeiro com as palmas para cima, depois com
as palmas para baixo. Os olhos do desconhecido cintilaram.
– Já podes baixá-las. – O homem meteu a mão no bolso e retirou uma
bolsa de cabedal, e despejou na palma o que parecia ser poeira. Soprou-a
para o rosto de Tommy.
– P...p...porque fez isso? – cuspinhou Tommy, limpando o nariz e a boca.
– Estou a subir a parada – disse o desconhecido, segurando a nota de cem
dólares entre o segundo e o terceiro dedos, como uma oferta. – Um jogo de
sorte. Homens ousados.
Tommy arrancou a nota dos dedos do homem e meteu-a no bolso. Os
olhos do homem pareceram arder com um estranho fogo e Tommy desviou
rapidamente o olhar. Preferiu concentrar-se na bengala no outro extremo do
armazém. Respirou fundo e entrou no túnel comprido e escuro entre os
porcos mortos. Aqueles corpos ali pendurados, com olhos fixos e parados e
bocas abertas num silencioso grito final, fizeram-no sentir um pouco tonto e
enjoado, mas esforçou-se por manter os olhos na ponta de prata que parecia
a um milhão de quilómetros de distância. Tommy cantava baixinho: Rei das
Ruas, Rei das Ruas, Rei das Ruas.
– Isso mesmo, Thomas, continua a andar. Vais muito bem. Em breve te
livrarás de todas as dúvidas.
Tommy continuou a andar. Cem dólares era muito dinheiro. Quando
aparecesse ao Paddy de roupa nova, cabelo penteado com brilhantina e
dinheiro no bolso, mostraria aos outros quem era o lorpa. Ninguém nunca
mais o fecharia num armazém.
O desconhecido entoava uma canção enervante: «John Perverso, John
Perverso trabalha com o avental posto…»
A canção fez Tommy começar a suar. Percorreu os últimos passos de um
salto até apanhar a bengala que fora atirada para o chão como uma espada.
A seu lado encontrava-se um panfleto de algo chamado Os Bons qualquer
coisa – a última palavra começava por C, mas Tommy não tinha muito jeito
para a leitura; as letras misturavam-se na sua cabeça. Tommy agarrou na
bengala com ambas as mãos e puxou-a, mas não conseguiu libertá-la e a
canção do desconhecido começava a complicar-lhe com os nervos. Parecia-
lhe chegar de todos os lados e, subjacente à melodia quase poderia jurar que
ouvia, muito ao de leve, terríveis gemidos e silvos, como vozes chegadas
das profundezas dos infernos. Tinha o dinheiro no bolso. Podia fugir. Mas
alguma coisa lhe dizia que seria melhor acabar aquilo. Tommy colocou-se
por cima da bengala, limpou as mãos às calças sujas e experimentou mais
uma vez. Ela não se mexeu. Fez uma terceira tentativa, puxando com tanta
força que caiu para trás sobre as aparas de madeira. O sítio para onde caiu
era húmido e sentiu sobre o rosto um pingo de uma coisa qualquer, logo
seguido de outro. Tommy limpou a cara e a mão veio manchada de sangue.
Ainda deitado de costas, olhou para cima e viu um pastor-alemão
pendurado no gancho sobre ele, uma morte tão recente que o animal ainda
se debatia. Tinha o ventre aberto e as entranhas de fora.
Tommy pôs-se rapidamente de pé. O riso do desconhecido sobressaltou-o.
De repente estava ali, na frente dele. Tommy recuou e esbarrou com um dos
porcos que balançou de encontro aos outros. Com as mãos trémulas,
conseguiu imobilizar o porco, como se assim fosse possível levar ordem
àquele pesadelo em que os acontecimentos se tinham transformado. O
desconhecido estava ali mesmo. Como seria possível ele ter chegado ali?
– Não... não consigo tirá-la – murmurou Tommy. Nem se apercebia de
que recuava.
– Que pena. Talvez se eu te ajudasse? – disse o desconhecido, abanado a
cabeça ao ver o cão morto. Depois franziu a testa, brincalhão. – Não. Acho
que não. – Retirou a bengala do chão sem qualquer esforço.
Tommy sentia a cabeça às voltas. Não via com nitidez. As pernas dos
porcos pareciam-lhe marionetas. Mexiam-se, estrebuchavam nos ganchos e
guinchavam até que também Tommy começou a gritar. Os olhos do homem
ardiam com um fogo terrível e parecia ser ainda maior do que antes.
– Um jogo de azar, meu rapaz. Já lançaste os teus dados.
– Paddy! Liam! – gritou Tommy. – Johnny! Estou aqui!
– Os teus amigos abandonaram-te.
Tommy lançou um olhar na direção da porta trancada no outro extremo
do armazém, que estava levemente entreaberta. A que distância ficaria dali?
Duzentos, trezentos metros?
– Ah, estou a ver um último jogo – disse o desconhecido, como se lesse
os pensamentos de Tommy. – Continua Thomas. Faz a tua aposta. Lança os
dados. – A voz do homem ecoava pelo cavernoso armazém. – Corre!
Tommy partiu. Os seus joelhos mais pareciam êmbolos, os cotovelos
furando o ar parado. A porta oscilava no seu campo visual e as suas pernas
devoravam o chão. Todos sabiam quem era o rapaz mais veloz da Décima
Avenida. Escapara a bófias, padres, gangues e à própria mãe que era rápida
com um cinto quando ele a fazia zangar, coisa que acontecia sempre. Uma
corrente que pendia do teto veio de encontro a ele, mas afastou-a, sentindo a
pancada no pulso, e não abrandou. Ouvia atrás de si a voz do desconhecido,
por cima do ruido metálico das correntes do matadouro.
– «E a sexta oferenda foi uma oferenda de obediência...»
Tommy conseguia ver a porta. Estava talvez a sessenta metros de
distância e, mesmo assim, não havia sinais do desconhecido. Um coro
frenético batia na cabeça de Tommy, enquanto este afastava a última
carcaça. Rei das Ruas, Rei das Ruas, Rei das Ruas. Cinquenta metros.
Quarenta. Um luar maravilhoso entrava pela fresta da porta levemente
aberta. Tommy não se deteve a pensar como a teriam aberto. Só pensava em
empurrá-la para encontrar a liberdade, para correr para o atalho que o
levasse à Rua 39.
Trinta metros. Vinte…
Tommy já não via a porta. Num instante parecera-lhe ao seu alcance,
depois desaparecera. E o desconhecido estava diante dele. Tommy precisou
de um momento para abrandar, para que o seu cérebro indicasse às pernas
que havia problemas mais à frente – a beira de um precipício na forma de
um homem com olhos de fogo. Correra na direção errada. Como seria
possível? Como o teriam convencido daquela maneira? Nada parecia certo.
Tommy voltou-se e viu as sombras horrorosas trepando pelas paredes e pelo
teto do matadouro, como se o devorasse todo, o desconhecido caminhando
adiante do movimento, como um pregoeiro de feira, conduzindo uma
parada de escuridão.
Como?, pensou Tommy. Correu para a esquerda lutando contra os porcos
sufocantes, para se encontrar diante de uma parede de tijolos que
certamente não estava ali há um minuto. Foi para a direita, mas havia outra
parede. Quando avançou viu, mais uma vez, o desconhecido diante dele,
num fragmento de terrível luar. Estava despido até à cintura e Tommy ficou
a olhar para a pele brilhante, para as tatuagens como marcas, trepando pela
carne do homem e, por baixo, a pele parecia falsa e o que estava por baixo
esperava para sair.
– Perdeste, Thomas.
Urros diabólicos enchiam o armazém. A escuridão rodopiava por detrás
do desconhecido, escondendo as paredes e qualquer esperança de fuga.
– Eu sou ele, a Grande Besta, o Dragão Antigo. E todos olharão para mim
e tremerão...
O desconhecido continuou a falar, mas Tommy não o ouvia. Mantinha os
olhos na escuridão movediça e nas coisas inomináveis que havia dentro
dela, na forma mutável do desconhecido que se erguia na sua frente.
– P...por favor – pediu em voz rouca.
O desconhecido sorriu apenas.
– Que mãos tão perfeitas – disse enquanto a escuridão descia.
E A MORTE FUGIRÁ

Evie estava sentada na banheira com duas enormes rodelas de pepino a


cobrirem-lhe os olhos inchados e cantava apesar da latejante dor de cabeça.
– We’ll have Manhattan, the Bronx and Staten Island, too… eu bem que
tive Manhattan – resmungou. – E Manhattan teve-me a mim – deslizou para
baixo de água e deixou-se levar até que fortes pancadas na porta a
obrigaram a voltar à superfície.
– Estou a tomar banho – gritou.
– Vais demorar muito? – perguntou Jericho.
Evie deixou que o dedo do grande do pé brincasse com a torneira.
– É difícil de dizer.
– Preciso de… de, ah…
– Oh, bolas, – disse Evie com um suspiro. – Pronto, pronto. Não quero
que morras com uma peritonite como o Valentino. Espera um instante.
Evie lavou as rodelas de pepino debaixo da torneira e meteu-as não boca.
Puxou a válvula e deixou que a água rodopiasse cano abaixo enquanto
vestia o roupão e abria a porta com um floreado.
– É toda tua – disse, enquanto Jericho passava apressadamente por ela.
Na cozinha, Evie espremeu uma laranja para um copo, pescou os caroços
e emborcou o precioso sumo acompanhado de duas aspirinas.
– Oh, Virgem Maria!
Pouco depois, Jericho saiu da casa de banho, zangado.
– Que se passa contigo?
– Nada.
Sentou-se no sofá e atou calmamente um sapato, mas a sua reprovação
pairava na sala, como o perfume insistente dos sais de banho perfumados
que Evie usara. Evie não se importava de gritar, mas detestava ser julgada.
Irritava-a e fazia-a sentir-se pequena, feia e irremediável. Cantou
alegremente apesar de Jericho e da sua dolorida cabeça.
– You’re the berries, my bowl of cream, a dream come true, dear…
– Estava só a pensar se esta vai ser a tua rotina habitual – disse Jericho
por fim.
– Rotina habitual. Hmm, bem, podia juntar um macaco amestrado. Toda a
gente gosta deles.
– É o que tudo isto é para ti? Uma festa enorme?
Evie sentia-se zangada. Pelo menos não tinha medo de sair para se
divertir. Jericho não parecia conhecer a vida para lá das páginas de um livro
bolorento e também não parecia interessado em conhecer outra coisa para
além disso.
– É melhor do que passar as noites a meditar como se fosses o irmão
perdido de Byron. Não faças essa cara de ofendido. Gostas de meditar! E de
que serve, miúdo? Tens dezoito anos, não oitenta. Vive a vida.
Jericho levantou-se do sofá.
– Vive a vida? Vive a vida? – Soltou um ah! amargo. – Se soubesses… –
Deteve-se subitamente e Evie viu que fizera com que uma calma quase
mecânica descesse sobre ele. – Não importa. Nunca entenderias. Tenho de ir
para o museu. – Agarrou no seu muito manuseado exemplar de Nietzsche e
bateu com a porta atrás de si.

Evie sentou-se na cama de Mabel. A aspirina não ajudara grande coisa,


mas, como uma verdadeira rapariga moderna, não estava disposta a ficar
todo o dia de cama, ao contrário da pobre Mabel que sucumbira a uma
terrível ressaca. Estava deitada, dobrada sobre si mesma, agarrada a uma
bacia para o caso de precisar de vomitar.
– Aqui estão as notícias de hoje, fresquinhas. O amor da tua vida não
aprova os meus divertimentos modernos – disse Evie numa voz de afetado
mistério. – Realmente, Mabesie, devias reconsiderar. Esse rapaz é um
desmancha-prazeres.
– O meu estômago também não aprova os nossos divertimentos modernos
– disse Mabel tristemente e sem levantar a cabeça da almofada. – Nunca
mais bebo seja o que for.
– É o que todos dizem, Bolacha.
Mabel gemeu.
– Estou a falar a sério. Sinto-me horrorosamente mal. A minha ligação ao
álcool está terminada. – Ergueu a mão direita. – Podes ser o notário que
atesta esta declaração.
– Anotada e publicada.
Mabel deixou cair a mão, com o rosto torcido numa expressão de
renovada tristeza. Evie saltou da cama.
– Que se passa? Vais vomitar?
Mabel meteu a mão debaixo da cama e retirou o que restava da tiara de
Evie. Estava dobrada no meio porque certamente alguém a teria pisado.
Faltavam vários brilhantes e as penas de pavão estavam descaídas como
coristas estafadas.
– Desculpa.
– Oh… – Evie engoliu um palavrão. A boca de Mabel contorceu-se e
Evie percebeu que ela estava à beira de um pranto lendário. Atirou a fita da
cabeça como se fosse lixo. – Esta porcaria velha? De qualquer forma já
estava farta dela. Fizeste-me um favor, miúda, acabando com o seu
sofrimento.
Mabel ergueu uma sobrancelha.
– Estás a mentir, não é verdade?
– Sim.
– Só para me fazeres sentir melhor?
– Não. Para me fazer sentir melhor. De contrário desato a chorar.
– Obrigada. – Mabel conseguiu esboçar um fraco sorriso. Dobrou o dedo
mindinho. – Amigas para toda a vida?
Evie prendeu o seu mindinho no de Mabel.
– Para toda a vida. – Evie beijou a testa de Mabel e apagou o candeeiro da
mesa de cabeceira. – Dorme um bocadinho, Bolacha.
Evie saiu do Bennington e seguiu pela Broadway, passando pelas lojas.
Uma loja de rádios exibia o seu último modelo, deixando o som sair para os
passeios para atrair clientes. Evie ficou ali por algum tempo, à escuta,
enquanto pintava os lábios no reflexo da montra.
– … Daqui Cedric Donaldson, falando do Roosevelt Field, Long Island
onde, há poucos momentos, Jake Marlowe fez aterrar o seu American Flyer,
um aeroplano de sua invenção. Podem ouvir o entusiasmo das multidões
que se juntaram aqui, neste belo dia de outono para receber como um herói
este milionário inventor e industrial! E aqui vem a banda do Liceu de
Bayside a tocar The Stars and Stripes Forever.
O homem da loja espreitou Evie através do vidro, com ar reprovador. Ela
movimentou as pernas e os braços como se fosse marchar e fez continência
ao homem, para logo retomar o seu lento caminho até ao museu. Parou no
quiosque dos jornais e sentiu-se gelar. A primeira página do New York Daily
Mirror anunciava LOUCO DE MANHATTAN ATACA DE NOVO! Agarrou no jornal
e saltou o anúncio de uma loja para vender binóculos para observar o
Cometa de Salomão, indo diretamente para a página dois.
– Boneca! Vais-me pagar o jornal? – O ardina estendeu a mão.
Evie lançou-lhe uma moeda e, agarrando com força o jornal, correu até
chegar ao museu.
Will estava sentado na biblioteca com Sam e Jericho. Parecia pálido.
– Eu acabei... de saber... – disse Evie, sem fôlego. Segurou no jornal.
– Tommy Duffy. Doze anos – disse Will em voz baixa. – O assassino
arrancou-lhe as mãos.
Evie sentiu o estômago revolver-se de horror.
– É o mesmo assassino?
Will acenou afirmativamente.
– Primeiro mandou um aviso para os jornais.
Jericho abriu a última edição vespertina do Daily News.
– «E nesses dias os homens procurarão a morte, mas não a encontrarão;
desejarão morrer e a morte fugirá deles. Porque a Besta erguer-se-á quando
o cometa voar.»
– Este tipo parece gostar de dar nas vistas – disse Will. – Deixou outro
recado com o cadáver.
Evie desenrolou o fino pergaminho, semelhante ao primeiro, com
estranhos símbolos no fundo.
– Cuidado com isso... é um empréstimo do detetive Malloy – explicou
Will.
– «E nesses tempos, os jovens eram ociosos. As suas mãos estavam
ausentes dos arados e não as erguiam numa prece para louvar o Senhor
nosso Deus. E o Senhor zangou-se e ordenou à Besta uma sexta oferenda,
uma oferenda de obediência» – leu Evie. – As mãos. A Ruta retirou os
olhos e a Tommy Duffi as mãos. Porquê?
– Não faz qualquer sentido – concordou Will.
– O assassinato de uma criança nunca faz sentido.
– Estava a falar da simbologia. – Will andava de um lado para o outro na
sala. – Tommy Duffy foi colocado de uma determinada maneira. Foi
pendurado ao contrário, com uma perna dobrada. Não se trata de um
símbolo cristão, mas sim pagão. O Enforcado, como é visto no tarô. Aponta
para a magia ou para o misticismo. Sim, isto foi encontrado, metido no
bolso de trás do rapazinho.
Will colocou com força o panfleto sobre a mesa. Na capa via-se um
homem com vestes brancas e um chapéu pontiagudo por baixo de um Bíblia
aberta e de uma cruz, tocando o sino da liberdade, enquanto a o rosto
fantasmagórico de George Washington o olhava com ar reprovador.
– O Bom Cidadão – leu Evie. – O que é isto?
– É uma publicação mensal da Igreja do Pilar de Fogo – disse Will. – É
também um forte apoio da Ku Klux Klan.
– Pensa que a Ku Klux Klan pode ter matado o rapaz?
– É possível. Claro que também é possível que já por lá andasse antes do
crime. Porém, vale a pena notar que Tommy Duffy era irlandês e Ruta
Badowski era polaca. O assassino pode ter ódio a estrangeiros.
– Pode ser anticatólico – declarou Jericho.
– Não precisam de grandes razões – resmungou Sam.
Evie sabia que em Zenith havia homens que pertenciam à Ku Klux Klan e
que pessoas como o pai de Harold Brodie os apoiavam. Mas o pai e a mãe
de Evie haviam sido católicos. Os O’Neill irlandeses. E o pai opusera-se
repetidamente ao Klan e a todos os seus preconceitos.
– Quando vamos? – perguntou Evie.
– Vamos onde, boneca? – perguntou Sam.
– Vamos investigar a essa Igreja do Pilar de Fogo, ou não?
– Não posso – disse Will. – Uma vez ajudei nas acusações contra gente
importante da Ku Klux Klan. Conhecem-me.
– E o detetive Malloy? – perguntou Jericho.
Will soltou um longo suspiro.
– Mandou uns homens hoje de manhã, mas creio que foram impedidos.
Alma Bridwell White, bispo da Pilar de Fogo, ameaça processar quem quer
que pronuncie uma palavra contra a sua igreja.
Evie levantou-se.
– E se eu e o Jericho nos apresentássemos como recém-casados
interessados em entrar para a igreja? Poderíamos bisbilhotar por lá e ver o
que encontrávamos.
Jericho ergueu os olhos.
– Tu… e eu?
– Estão a gozar? – disse Sam. – Aqui o grandalhão podia ser comido
vivo.
– Sei tomar conta de mim, muito obrigado.
– Não te aborreças, grandalhão. És um tipo como deve ser. Mas precisas
de alguém que lime as arestas. Precisas de um aldrabão. Além do mais,
alguém tem de conduzir.
– Eu sei conduzir – disse Evie.
– A Evie sabe conduzir – disse Jericho. Havia uma expressão de desafio
no seu olhar.
– Ótimo. Vamos todos – disse Sam. – Mas se formos de carro, eu
conduzo.
– Como queiram – disse Will. – Evie, por favor, posso falar-te em
particular no meu gabinete?
– Ninguém me deixa conduzir. E eu conduzo muito bem – resmungou
Evie enquanto seguia o tio até ao escritório. Este retirou um frasco de prata
de uma gaveta da secretária e bebeu um pouco.
– Então também bebe – disse Evie.
– Lamento desapontar-te; isto é Leite de Magnésia Phillips. Tenho o
estômago incomodado... o que não me surpreende depois daquilo que
testemunhei hoje de manhã. Não precisas de te sentar, pois vou ser breve.
Evangeline, não sou a tua mãe, o que não significa que não tenha padrões
de comportamento. Não vou tolerar que chegues a casa embriagada às horas
que te apetecer. – Will olhou diretamente para ela. Evie sentiu que nunca
ninguém a olhara com tanta intensidade.
– Mas Tito…
Will ergueu a mão para impedir o protesto antes que Evie exagerasse.
– Devo recordar-te de que os comboios viajam em ambas as direções
entre Nova Iorque e o Ohio, Evangeline. Estamos entendidos.
Evie engoliu em seco.
– Percebi perfeitamente.
– Não me importo que desfrutes daquilo que Nova Iorque tem para
oferecer, mas penso que podes ser esperta para manteres a tua segurança.
Afinal, anda um assassino à solta na cidade.
Evie recordou-se subitamente da página que marcara no dia anterior para
mostrar a Will.
– Bolas! Ia dizer-lhe... creio que encontrei o nosso símbolo num livro da
biblioteca. Qualquer coisa sobre uma ordem religiosa... os Irmãos, a
Irmandade... oh, mas o que era?
De volta à biblioteca, Evie procurou nas pilhas de livros, desfazendo o
cuidadoso trabalho de Jericho que a seguia pondo as coisas em ordem.
– Cá está! – Evie desceu a correr a escada de caracol. Fervor e Fanatismo
Religioso no Distrito Queimado. Não há dúvida que o livro é a cura para as
insónias, mas tem isto. – Abriu na página do emblema com o pentagrama e
a serpente. – Os Irmãos! Isto mesmo! Sabe de que se trata?
– Não, mas sei de quem possa saber: o doutor Georg Poblocki da
Universidade de Columbia. É professor de religião e um velho amigo meu.
Vou telefonar-lhe imediatamente – disse Will, saindo apressadamente da
biblioteca.
Jericho aclarou a garganta.
– Queres fazer o primeiro turno, ou faço eu? – perguntou como se
naquele momento estivessem inundados de visitantes.
– Onde está o Sam? – perguntou Evie.
– Foi falar com um amigo por causa de um carro.
– Aposto que sim – respondeu Evie de mau modo.
– Se quiseres, posso fazer o primeiro turno – ofereceu-se Jericho.
– Não. Faço eu – disse Evie. Ainda estava incomodada com a repreensão
de Jericho naquela manhã e não lhe apetecia que o vissem como mártir.
Evie andou pelas salas do museu, pensando no crime e também na festa
da noite anterior. Provavelmente não deveria ter confessado publicamente a
sua capacidade de ler nos objetos. E se quisessem que o fizesse a todo o
momento? E se, à luz sóbria do dia, a considerassem estranha ou
assustadora, alguém capaz de adivinhar segredos que outros tratassem de
esconder? Jurou ser mais cuidadosa de futuro.
Mas sentia curiosidade acerca dos Adivinhos que Will mencionara no
primeiro dia no museu, por isso procurou o livro de Liberty Anne Rathbone
e enroscou-se a lê-lo junto ao fogão de lenha da sala das coleções.

As Profecias de Liberty Anne Rathbone,


Registadas por seu irmão e fiel seguidor
Cornelius T. Rathbone

No dia de hoje, a doce Liberty Anne permanece no mesmo estado


em que foi embruxada desde o seu passeio pelo bosque. Umas vezes
fala suavemente das maravilhas que observa, outras está perturbada
e murmura avisos de coisas terríveis que vão acontecer. É como se
olhasse para abismo vasto e celestial de que apenas os anjos e o olho
da providência que tudo vê são os únicos visitantes. Registei
imediatamente as suas parcas palavras:
«Somos os Adivinhos. Fomos e seremos. É um poder que advém da
grande energia da terra e do seu povo, um reino partilhado por um
feitiço, durante o tempo que for necessário. Vemos os mortos.
Falamos com os espíritos inquietos. Caminhamos nos sonhos. Lemos
o significado de todas as coisas escondidas. O futuro desdobra-se
diante de nós como o mapa do navegador, mostrando os mares que
ainda teremos de percorrer.»

Evie voltava as páginas entusiasmada.

«Não poderá haver segurança em troca da liberdade. O coração


da união não o permitirá… os céus iluminam-se com um estranho
fogo. A porta eterna está aberta. O homem do chapéu alto voltará
com a tempestade… o olho não pode ver.»

No final da página havia um pequeno desenho de um olho rodeado por


raios de sol, com um raio por baixo.
«Os Adivinhos devem permanecer, ou tudo fracassará.»
Evie fechou o livro e pô-lo de lado. Cornelius Rathbone amara
certamente a irmã. Sonharia com ela depois da sua partida como Evie
sonhava com James? A sua mão procurou o conforto do pendente que era a
moeda de meio dólar. Estava exausta da noite anterior. O sol da tarde batia
através das janelas e o calor do fogão tornava o quarto abafado. Evie poisou
a cabeça nos braços e adormeceu.
Sonhou com a cidade. As ruas tubulares estavam vazias, o pôr do Sol
dava um tom alaranjado às janelas, mas, ao longe, uma massa de nuvens
negras ameaçava aproximar-se. Chamou, mas não havia ninguém. Folhas de
jornais varriam as ruas e moviam-se velozmente junto às paredes dos
prédios. Apercebeu-se de outros. Sombras que não via. Pessoas-sombra.
Voltava a cabeça a tempo de os ver recuar para a escuridão cada vez mais
densa. E murmuravam: «É esta. É uma deles. Não podes deter-nos.
Ninguém pode deter-nos.»
Evie voltou uma esquina e ficou espantada ao ver que também Henry
caminhava pelas ruas como se procurasse alguém. Abriu muito os olhos
quando a viu.
– Evie, que fazes aqui? Não te lembras de mim – disse. E quando ela
olhou de novo, ele desaparecera. Mas mais alguém corria na sua direção e
Evie descobriu que não conseguia mexer-se. Estava paralisada de medo. A
figura aproximou-se mais. Era uma rapariga com cabelo negro, brilhante e
olhos verde-garrafa. Havia na jovem algo vagamente familiar; Evie quase
jurava que se conheciam. Depois lembrou-se – era a dona do restaurante de
Chinatown. A rapariga trazia na mão um estranho punhal. Parecia zangada,
alarmada e gritava:
– Não devias estar aqui! Acorda!
– Evie, acorda! – Sam sacudia-lhe o ombro. Evie pestanejou e acordou no
museu. O sol entrava pelos vitrais da sala das coleções. – Estavas a sonhar.
– Estava? – perguntou Evie espreguiçando-se, com o coração ainda
acelerado.
– Deve ter sido cá um sonho. Até gritaste.
– Foi mesmo um pesadelo – disse Evie acenando com a cabeça.
– Olha, boneca, não é de espantar com toda esta conversa dos
assassinatos. Conta aqui ao teu amigo Sam. Eu protejo-te. – Sam sentou-se
numa cadeira ao lado dela e afastou-lhe suavemente um caracol dos olhos,
mas o seu sorriso tinha a mesma expressão feroz que ela lhe vira na Penn
Station.
Evie lançou-lhe um olhar inocente.
– Bem, sonhei que estava em Nova Iorque, sozinha…
– Pobrezinha. – Sam passou-lhe o braço pelos ombros.
– Andava pelas ruas à procura de alguém, mas não via vivalma...
– Terrível... – Sam estava tão perto que ela sentia o cheiro dele.
– De repente, encontrei-me na Penn Station... – Evie fez uma pausa. – E,
a seguir, aconteceu uma coisa terrível.
– O que foi, boneca? – ronronou Sam.
– Um idiota chapado roubou-me vinte dólares. – Empurrou Sam com
força, quase o fazendo cair. Porém, ele aguentou-se no último momento.
Sam esboçou um sorriso afetado.
– Bem, foi um belo agradecimento ao fulano que te arranjou alguma coisa
para emborcares.
Evie fez uma ligeira vénia.
– Só cá vim dizer-te que tens um verdadeiro visitante, dos que pagam,
que quer dar uma volta aqui pela loja.
– Manda o Jericho – disse Evie, espreguiçando-se.
– Este fulano perguntou pelo teu tio, mas eu disse-lhe que eras tu que
estavas de serviço, Alteza. – Sam retribuiu a vénia.
Evie revirou os olhos.
– Achas que consegues não roubar coisa alguma enquanto eu não estou?
– A única coisa que tento roubar é o teu coração, boneca – Sam sorriu
com ar afetado.
– Não és um ladrão assim com tanto talento, Sam Lloyd.
Evie chegou ao vestíbulo e encontrou um jovem com um fato amarrotado
junto à porta, fazendo girar o chapéu entre as mãos. Tinha um bloco-notas a
sair-lhe do bolso do peito.
– Posso ajudá-lo? – perguntou Evie lançando-lhe o seu melhor sorriso.
O homem deixou de fazer girar o chapéu e estendeu a mão como se fosse
um vendedor.
– Como está. Harry Snyder. Sou do Winsconsin e estou aqui de visita.
Ouvi falar do vosso museu e tive mesmo de o vir ver com os meus olhos.
Nem posso esperar para contar às gentes lá da terra.
Se Harry Snyder era do Winsconsin, Evie era o rei de Inglaterra. Se se
chamava Harry Snyder, Evie era igualmente a rainha.
– Bem-vindo ao Museu Americano de Folclore, Superstição e Ocultismo,
senhor Snyder – disse Evie, estendendo a pronúncia do apelido. – Por aqui
por favor.
Evie conduziu o homem pelas várias salas, explicando os vários objetos,
fazendo a descrição histórica que tantas vezes ouvira de Will e
acrescentando um ou outro floreado. O homem ia sempre tomando notas no
seu bloco e olhava para todos os lados como se esperasse que um espírito se
manifestasse a qualquer momento.
– Soube por um amigo, que têm estado a ajudar a polícia na investigação
daquele crime... aquela história do louco de Manhattan. Parece-me horrível.
Têm alguma pista? – perguntou, pegando numa rara figurinha do século
XVII como se fosse um saleiro.
Evie tirou-lha das mãos e colocou-a de novo em cima da mesa.
– O seu tio disse-lhe alguma coisa sobre o assunto? O assassino está de
facto a levar a cabo um terrível ritual de ocultismo? Qual é o seu esquema?
– Receio bem ter jurado segredo sob as ordens do detetive Malloy.
O homem aproximou-se mais.
– Não posso deixar de reparar que o bom agente Malloy não se encontra
presente. Diga-me, o que fez o assassino aos olhos da pobre rapariga?
Disseram-me que os tinha enviado à polícia por correio com uma nota. É
verdade?
Evie semicerrou os olhos.
– Afinal, quem é o senhor?
– Sou Harry Snyder, de…
– Deixe-se de histórias! – disse Evie bruscamente.
O homem sorriu. Abanou um dedo com ar brincalhão.
– Apanhou-me! – Apertou-lhe a mão com firmeza. – Sou T. S.
Woodhouse, repórter do Daily News. Tenho tentado obter um comentário do
seu tio sobre o caso para o nosso jornal, mas ele não se descose nem bem
nem mal. Mas talvez eu tenha estado a insistir com o membro da família
errado? – O lápis de T. S. Woodhouse pairava na expetativa sobre o bloco.
– Ainda bem que lhe cobrei à entrada, senhor Woodhouse. Vou
acompanhá-lo à saída. – Dirigiu-se à porta fazendo soar os saltos no chão
de mármore. O Sr. Woodhouse corria ao lado dela.
– Chame-me T. S., por favor. Vá lá. Não gostaria de ver o seu nome no
jornal? Para mostrar aos seus amigos lá na terra? Poderíamos pôr a sua
fotografia, porque é uma jovem muito bonita. Seria a joia de Manhattan.
Evie fez uma pausa. Com todo aquele trabalho que estavam a ter, porque
não receber os louros e a recompensa? Porque não tornarem-se famosos por
causa de tudo aquilo? Mesmo assim, se o tio Will soubesse, ficaria furioso.
Já lhe prometera que não se meteria em mais sarilhos. E aquilo viria
certamente trazer-lhe problemas.
– Lamento, senhor Woodhouse, mas não posso.
T. S. Woodhouse levou o chapéu ao peito.
– Escute, menina O’Neill, vou ser sincero. Preciso dessa história. Poderia
ser o meu bilhete para coisas mais importantes. Já alguma vez quis muito
uma coisa?
Evie considerou T. S. Woodhouse uma espécie de menino da escola
demasiado crescido e caprichoso. Era alto e muito magro, uma verdadeira
espiral de energia; tinha um rosto afilado, mas sardento e por baixo de uma
rebelde cabeleira castanha e sobrancelhas direitas, os seus olhos azuis
pareciam observar e registar constantemente. E havia neles uma
determinação que Evie compreendia perfeitamente.
– Isso não me diz respeito.
– Mas podia dizer. – Concentrou nela os seus olhos azuis. – O que quer?
Diga-me. Quer aparecer nas colunas de mexericos? Quer uma coluna
enorme a dizer que há milionários que disputam a felicidade de casar
consigo? Posso fazer com que isso aconteça.
– Nem sequer consegue fazer esta história acontecer, senhor Woodhouse.
Como haveria de me ajudar?
– Com essa história chegaria bem alto, daria o exclusivo ao Daily News e
ficaria numa posição de lhe oferecer o que necessita. Um favor em troca de
outro favor. Um negócio limpo.
Estendeu de novo a mão. Evie fingiu não ver.
– Tudo muito calmo por aqui – disse o Sr. Woodhouse e não havia engano
possível na implicação.
– É um tempo morto da tarde.
T. S. Woodhouse dava forma ao chapéu, como se fosse essa a sua única
preocupação.
– Pelo que sei, há muitos tempos mortos. De facto, ouvi dizer que lá para
a primavera a Câmara iria fechar este local. A menos que, claro, começasse
a dar lucro.
Evie mordia o lábio enquanto refletia. Andava a pensar em como
poderiam transformar o museu numa coisa grande e, agora, a oportunidade
caía-lhe no colo. Will era um génio, mas não era lá grande empresário. Era
evidente que se alguém fosse salvar a loja, seria Evie. Ajudaria o museu – e
se também se ajudasse a ir própria, bem, que mal teria?
– Vou fazer um negócio consigo, senhor Woodhouse. Precisamos de gente
aqui. Vou dizer-lhe aquilo que sei... como fonte anónima... e o senhor
escreve que o museu é estupendo, que vêm cá pessoas importantes. Claro
que pode mencionar que o meu tio Will está a ser ajudado na investigação
desses odiosos crimes pela sobrinha, menina Evie O’Neill. E se a minha
fotografia for parar aos jornais... pois bem, não pude evitar, não é verdade?
– Não. Claro que não. – O Sr. Woodhouse mostrou um sorriso aberto e
empurrou o chapéu para a nuca. – Está mais que provado que os jornais
vendem mais quando jovens bonitas enfeitam as suas páginas.
– Então, negócio fechado?
– Negócio fechado. – Apertaram as mãos e o lápis de T. S. Woodhouse
pairou de novo sobre o bloco. – Estou pronto. Sabemos que o assassino
deixa símbolos do ocultismo. Que símbolos são esses?
– Trata-se de um pentagrama rodeado por uma serpente com a cauda na
boca. O assassino marca esse símbolo nos cadáveres. E deixa notas
religiosas. O meu Tito julga que têm a ver com o Apocalipse.
O lápis de T. S. Woodhouse escrevinhava no bloco.
– Muito bem. O Assassino do Apocalipse! Gosto.
– Ainda não sabemos se é verdade...
– Não importa. – A expressão de T. S. Woodhouse era extremamente
determinada. – Eu sou a imprensa. Vou fazer com que seja verdade. E que
mais?
– Por agora é tudo. Fico à espera da história, senhor Woodhouse.
T. S. Woodhouse colocou o lápis atrás da orelha, meteu o bloco no bolso
do casaco e apertou mais uma vez a mão de Evie.
– Foi estupenda, Evie. E não se preocupe... cumpro sempre as minhas
promessas.
Evie esperava que fosse verdade. Se Will não conseguia melhorar o
museu, talvez ela conseguisse. E se queria ficar em Manhattan no final
daqueles três meses, teria de começar a criar um lugar e um nome para si
própria. Ter um amigo como T. S. Woodhouse poderia ser muito útil.
É ESTRANHO
COMO AS COISAS ACONTECEM

Henry acordou do seu sonho com uma exclamação ofegante. Entrara na


esperança de encontrar Louis, mas, em vez dele, vira Evie – e não havia
dúvidas de que ela o vira. Era estranho e Henry sabia bem o que era
estranho. Havia já dois anos que caminhava nos sonhos e aquilo nunca
acontecera.
Henry dirigiu-se ao lavatório rachado. Lavou a cara com água da bacia e
alisou o cabelo com as mãos molhadas. Depois pôs o velho chapéu de palha
na cabeça e viu o seu pálido reflexo no espelho. Encostou a cabeça ao vidro
e fechou os olhos.
– Louis, onde estás? – perguntou ao quarto vazio, sem esperar resposta.

– Irmã – disse Memphis em voz baixa. – Posso perguntar-lhe uma coisa?


Em particular?
– Estão a falar de mim? – Isaiah espreitou da mesa da casa de jantar da
irmã Walker, onde fazia contas de somar, agora que o seu trabalho com a
irmã Walker e as cartas tinha terminado naquele dia. Memphis ficava
sempre admirado com o talento do irmão para escutar as conversas que não
devia.
– Mas porque haveria eu de querer falar sobre a tua pessoa? Eu e a irmã
temos coisas mais importantes para conversar.
Isaiah fez cara de zangado.
– Eu sou muito importante!
– Claro que és – garantiu-lhe a irmã Walker. – Porque não te serves de
mais um docinho, Isaiah? Memphis, vamos para a cozinha.
Memphis seguiu a irmã Walker até às traseiras do comprido apartamento
até uma cozinha alegre, com cortinas às flores enfeitando a janela que dava
para um pátio comum, cheio de cordas de roupa. Ela ofereceu-lhe uma
bolacha enquanto se sentava à mesa em frente dele. Memphis tasquinhou a
bolacha. A irmã não era grande cozinheira; as bolachas que fazia ficavam
sempre demasiado secas e eram pouco doces, mas ele aceitou por
delicadeza.
– Tens alguma coisa na ideia, Memphis?
– Estou preocupado com o Isaiah.
– Aconteceu-lhe alguma coisa?
Memphis não tinha a certeza do que haveria de dizer. E se a irmã Walker
já não quisesse trabalhar com Isaiah? Este ficaria arrasado. Porém, se
alguma coisa não estivesse bem, era preciso que alguém soubesse e
certamente não poderia contar a Octavia.
– Tem acordado durante a noite. Parece que está em transe. E diz coisas
estranhas.
A irmã Walker franziu o sobrolho.
– Que espécie de coisas?
– «Sou a Besta. O Dragão Antigo». E outras coisas que me pareceram das
escrituras, mas nada que eu conheça.
– «Sou a Besta. O Dragão Antigo» – repetiu a irmã Walker. – Isso é do
Apocalipse, se bem me lembro da catequese. Não gosto de levantar falsos
testemunhos, mas não poderá ser a Octavia? – sugeriu bondosa.
Memphis franziu a testa. Octavia era bem capaz de querer assustar Isaiah
com visões do Juízo Final.
– Disse outra coisa curiosa. Repetiu várias vezes a mesma palavra:
Adivinhos.
A cor fugiu do rosto da irmã Walker e Memphis receou ter dito qualquer
coisa que não devesse.
– Que se passa? É uma coisa má?
– Há muito tempo que não ouvia essa palavra – disse e Memphis pensou
que ela parecia um pouco triste. – É o nome de pessoas com dons raros.
– Dons como o de Isaiah?
A irmã Walker encolheu os ombros ao de leve.
– Claro que depende daquilo em que se acredita, suponho eu. Mas sim,
haveria quem considerasse Isaiah um Adivinho.
Memphis partiu a bolacha em bocadinhos.
– Mas onde ouviria ele isso?
– As crianças ouvem todo o tipo de coisas, suponho eu. – A irmã Walker
fez girar lentamente o gelo no seu copo de água. – O nome vem de relatos
de uma vidente dos princípios do século dezanove, Anne Rathbone. Era
uma menina. O irmão, Cornelius, construiu uma enorme mansão perto do
Central Park. Agora é o Museu Americano do Folclore, Superstição e
Ocultismo. Há quem lhe chame o Museu dos Arrepios.
– Oh, já ouvi falar. Mas porque haveria Isaiah de saber alguma coisa
acerca desses Adivinhos?
A irmã Walker dirigiu-se ao outro compartimento e voltou com o jornal
do dia, que abriu em cima da mesa.
– Os assassínios. O doutor Fitzgerald, diretor do museu, está a ajudar a
polícia a apanhar o assassino. Aposto que Isaiah ouviu alguém a falar do
assunto. Provavelmente ficou aterrorizado e isso fê-lo sonhar. Não é raro as
crianças serem sonâmbulas ou falarem a dormir quando se assustam com
qualquer coisa durante o dia. E os dons de Isaiah tornam-no ainda mais
sensível. É quase como um rádio captando sinais de todos os lados.
Na vizinhança muita gente falara dos crimes e até a tia Octavia trouxera o
assunto à baila. Memphis queria acreditar que fora esse o caso, mas o que
Isaiah dissera fora tão específico e depois a maneira como entrara em
transe... era perturbador. Mas já ocupara demasiado tempo à irmã Walker e
não queria incomodá-la com a vaga ideia de que as coisas poderiam não
estar bem.
– Aposto que é isso. Obrigado, irmã Walker.
– Não fiz grande coisa. Que mais?
Memphis pensou no seu sonho recorrente, mas não podia falar dele à irmã
Walker. Parecia tolice, de modo algum aquilo que um adulto perguntaria.
– Nada mais, minha senhora.
A irmã Walker acenou lentamente com a cabeça.
– Então muito bem. Memphis, lembra-me lá que idade tens.
– Dezassete.
– Dezassete – repetiu a irmã Walker, como se aquilo quisesse dizer
alguma coisa, embora Memphis não imaginasse o que poderia ser. –
Alguma vez conseguiste ler cartas como o Isaiah? Ou qualquer coisa
parecida?
Memphis não tinha a certeza se a irmã Walker saberia do seu passado
como curandeiro. Nunca o haviam discutido e ele não via qualquer razão
em dizer-lho agora. Não era nada semelhante aos talentos de Isaiah e, além
do mais, tinha desaparecido.
– Não, minha senhora. Creio que todos os dons foram para o Isaiah –
disse sem sombra de amargura, apenas a constatação de um facto. –
Obrigado pela bolacha.
A irmã Walker soltou uma gargalhada.
– Memphis, não é preciso que um Adivinho me diga que não gostaste
nada da bolacha.
– Não tinha muita fome, minha senhora. – Memphis esboçou um sorriso,
embora tivesse a certeza de que a irmã Walker conseguia também ver
através dele.
De novo na sala de jantar, Memphis esfregou o alto da cabeça de Isaiah e
disse:
– São horas de irmos, Camarão.
– Isaiah! – exclamou a irmã Walker. – Tens tido sonhos interessantes
ultimamente? – Lançou a Memphis um piscar de olhos sub-reptício.
– Sim, senhora. Sonhei que tinha apanhado um sapo. Era o maior sapo
que já vi e ele deixou-me andar a cavalo nele... só eu e mais ninguém!
A irmã Walker lançou a Memphis um olhar como que a dizer: Estás a
ver? Não tens de te preocupar.
– Ora, que pena o sapo não estar aqui para te dar uma boleia para casa.
Vê lá não te esqueças do teu livro.
Entregou o livro a Isaiah e apertou-lhe suavemente os ombros magros.
Isaiah tomou as mãos dela nas suas e olhou-a preocupado.
– Devia ter cuidado com aquela cadeira, irmã.
– De que cadeira falas?
– Da cadeira da cozinha.
– Isaiah, vamos embora – Memphis puxou pela manga do irmão.
– Muito bem. Vou ter cuidado. Vai já para casa antes que nos arranjes um
sarilho com a tua tia.
A irmã Walker acenou para se despedir, vendo os rapazes afastarem-se,
discutindo tolices, como todos os irmãos. Sentia que Memphis lhe escondia
qualquer coisa. A velha Margaret teria sido capaz de o descobrir sem
grande dificuldade. Mas isso fora no passado e ela estava preocupada com o
futuro. Quando chegara ao Harlem, havia seis meses, em busca de Memphis
Campbell, pensara que ele seria o futuro. Era estranho como as coisas
aconteciam. Mas agora tinha Isaiah. E se estivesse certa acerca daquilo que
se aproximava, precisava de o preparar para o que ia acontecer.
Muito mais tarde, foi buscar um prato de que precisava ao cimo do
armário, puxando uma cadeira para o poder apanhar. Quando já estava em
cima dela de braço estendido, a perna da cadeira cedeu e ela caiu no chão
da cozinha, batendo com um ombro e um joelho. Estava bem – apenas
trémula e dorida – mas a cadeira ficara partida. E, com um arrepio,
recordou-se das palavras que Isaiah lhe dissera: Devia ter cuidado com
aquela cadeira, irmã.
O BOM CIDADÃO

A Igreja do Pilar de Fogo situava-se num terreno outrora agrícola, com


trinta e dois hectares, em Zarephath, Nova Jérsia. A evangélica Alma
Bridwell White estabelecera aí uma comunidade, ao longo do rio Millstone,
longe do que considerava ser a influência que levava à corrupção do
mundo. Os seus seguidores tinham tudo o que precisavam – vida
comunitária, uma escola e uma igreja. As pessoas de fora não eram bem
recebidas.
Sam subiu o longo caminho de terra batida, ladeado por belas filas de
frondosos abetos que terminavam num conjunto de edifícios brancos
situados num agradável recinto semelhante a um parque. Homens e
mulheres, modestamente vestidos, cumprimentavam-se com sorrisos
delicados.
– Não parecem ser assassinos – comentou Evie.
– Nunca parecem – resmungou Sam.
Foram recebidos no edifício da administração por um tal Sr. Adkins, um
homem gordo, quase careca, com um queixo quadrado e um firme aperto de
mão.
– A Igreja do Pilar de Fogo dá-vos as boas-vindas.
Jericho e Evie apresentaram-se como o Sr. e a Sr.ª Jones e Sam era o Sr.
Smith, o primo de Jericho que graciosamente se oferecera para os levar lá
no seu automóvel.
– Que bela família – disse o Sr. Adkins. – São exatamente o nosso género
de pessoas.
Mostrou-lhes rapidamente o recinto e levou-os à igreja onde havia um
órgão enorme. Regressando ao edifício da administração, passaram pela
sala de jantar, onde várias senhoras com idênticas saias azuis e blusas
brancas, sentadas a uma mesa comprida, dobravam panfletos. Sorriram e
acenaram, como se se tratasse de um jantar da igreja e Evie, Sam e Jericho
fossem seus convidados. Evie não pôde deixar de imaginar aqueles mesmos
rostos agradáveis iluminados pelas chamas de uma cruz a arder durante a
noite. Uma gota de suor correu-lhe pelas costas, por baixo do vestido.
O Sr. Adkins fê-los entrar para um pequeno gabinete onde, pendurado na
parede, havia um painel simples com os dizeres A ETERNA VIGILÂNCIA É O
PREÇO DA LIBERDADE bordados a ponto de cruz. Evie sentou-se mesmo à
beira da cadeira que lhe foi oferecida. Jericho sentou-se a seu lado. Sam
ficou atrás deles com as mãos nos bolsos e olhos perscrutadores.
– O que pode a Igreja do Pilar de Fogo fazer hoje por vós, senhor e
senhora Jones?
– O senhor Jones e eu estamos muito impressionados com o vosso modo
santificado de viver. Gostaríamos de nos afastar de Manhattan, onde estão a
acontecer aqueles terríveis assassinatos. – Evie estremeceu para um efeito
mais dramático. – Não nos sentimos seguros, não é verdade, senhor Jones?
– Eu... hã...
Evie deu-lhe umas palmadinhas na mão.
– Não sentimos. Não acha que é simplesmente horroroso, senhor Adkins?
– De facto, concordo. Mas não posso dizer que fico surpreendido. São os
elementos estrangeiros que entram, sabe... como que poluem a nossa raça
branca e o nosso modo de vida. Os anarquistas judeus. Os bolcheviques. Os
italianos. Os irlandeses católicos. Os negros, com a sua música e as suas
danças. Não seguem o nosso código moral. Não partilham dos nossos
valores americanos. Acreditamos cem por cento no americanismo.
– De que tribo? – perguntou Sam em surdina.
Evie fingiu um ataque de tosse. Parecia prestes a perder um pulmão.
– Senhor Adkins, podia por favor arranjar-me um copo de água? – Evie
tossiu de novo.
– Com certeza. Eu, hã... tenho de o ir buscar à cozinha. Não demoro nada.
Por favor, estejam à vontade.
Assim que ele saiu, Evie levantou-se de um salto.
– É exatamente o que tenciono fazer. Rapazes, revistem esta sala. Eu vou
bisbilhotar.
Jericho abanou a cabeça.
– Não me parece boa ideia, Evie. E se ele volta?
– Diz-lhe que fui à casa de banho – disse Evie revirando os olhos. – Os
homens ficam positivamente paralisados só de ouvirem falar em mulheres
na casa de banho.
Evie espreitou o corredor, procurando qualquer coisa que pudesse ser
uma pista. Havia um novo monte de panfletos do Bom Cidadão sobre uma
mesa junto à escada. A imagem da capa mostrava o mesmo homem de
capuz segurando um católico de cabeça para baixo, do mesmo modo que
Tommy Duffy fora colocado. Evie meteu um panfleto no bolso para mostrar
mais tarde a Will.
– Psst! – chamou Sam da porta do gabinete.
– Sam, que estás a fazer? – murmurou Evie.
– O mesmo do que tu. A bisbilhotar.
Evie correu para o extremo do corredor. Não vendo ninguém, apressou-se
a entrar num gabinete e a fechar a porta.
– Devias ter ficado com o Jericho!
– Boneca, já devias saber que eu nunca faço o que devo.
– Não interessa. Encontraste alguma coisa?
– Ainda não. Vou ver aqui. Tu, procura ali.
Evie revistou as gavetas de uma mesa e depois uma estante, mas não viu
nada de interesse. Passou ao armário. Lá dentro, penduradas de ganchos,
havia vestes brancas com capuz, como as peles vazias de fantasmas. Evie
fechou rapidamente a porta e correu para Sam que abria as gavetas de uma
enorme secretária com tampa em harmónio.
– Vê as gavetas do fundo – disse ele.
Sam abriu a do lado direito que continha uma mistura de papéis e cartas.
Ergueu uma nota sobre uma reunião da Sociedade Americana de Eugenia.
Junto encontrava-se uma fotografia de um imponente castelo envolvido em
bruma. Qualquer coisa no castelo lhe parecia familiar, embora não soubesse
dizer o quê. Meteu a fotografia no bolso, enquanto a porta se abria com um
clique.
Um homem alto e esguio ficou à porta com ar incerto. Tinha um chapéu
escuro, fato de macaco de agricultor e uma camisa de trabalho de ganga. Ao
pescoço, uma fita de cabedal com pendente liso e redondo.
– Procuro a senhora White – disse o homem num tom brusco. – Viram-
na?
Evie fechou cuidadosamente a gaveta.
– Quem devo dizer-lhe que a procura? – perguntou.
– O irmão Jacob Call. – O homem avançou dois passos para dentro do
aposento. O olhar de Evie foi atraído pelo pendente, uma estrela de cinco
pontas rodeada por uma serpente que comia a cauda. Sentiu o coração
acelerado. Fez um sinal a Sam por trás das costas. Este apertou-lhe os dedos
como resposta.
– Bem, que pendente tão interessante tem ao pescoço. É muito antigo?
O homem tapou-o com a mão.
– É a marca do Senhor. Uma proteção para o seu povo no tempo da Besta.
Evie sentiu um arrepio percorrer-lhe a nuca e o braço. O pendente, a
menção da Besta – era perfeitamente possível que ela e Sam estivessem na
mesma sala com o Assassino do Pentagrama.
– C...como disse que se chamava? – perguntou Evie.
O homem pareceu subitamente desconfiado. Voltou-se bruscamente quase
esbarrando numa mulher avantajada num sóbrio vestido preto que olhava
para Sam e Evie por detrás de uns óculos com aros de metal.
– Mas o que estão os senhores a fazer aqui? – perguntou a mulher com
voz de quem está habituada a falar do púlpito.
– Quem quer saber, irmã? – perguntou Sam em tom de desafio.
A mulher semicerrou os olhos.
– Sou a senhora Alma Bridwell White, chefe da Igreja do Pilar de Fogo.
E os senhores estão no meu gabinete sem que para tal tenham sido
convidados.
Mandou chamar dois homens grandes com ar infeliz para escoltarem Evie
e Sam com alguma rudeza, de volta ao gabinete do Sr. Adkins, onde Jericho
continuava sentado. Abriu muito os olhos, mas Evie lançou-lhe um olhar de
aviso para que se calasse.
– Senhor Adkins, pode explicar o que estes dois intrusos estavam a fazer
no meu gabinete, sem serem convidados e desacompanhados?
– Peço desculpa, senhora White. Vieram perguntar como poderiam
tornar-se membros. Fui buscar um copo de água à senhora Jones e, quando
voltei, o senhor Jones disse-me que ela e aqui o senhor Smith tinham ido à
casa de banho.
– Espiões! É o que são. Digam-me então o que estavam os dois a fazer no
meu gabinete. Exijo uma explicação – insistiu a Sr.ª White.
Entraram alguns homens na sala. Todos pareciam prontos para um
confronto. Evie engoliu em seco. Se não conseguissem pensar nalguma
coisa, estavam perdidos.
– Eu não queria fazer isto, mas já chega de mentiras – disse subitamente
Sam. Evie percebeu que ele estava nervoso, pelo modo como agitava com a
mão os trocos que tinha no bolso.
– Eles… eles? – Evie procurava no rosto dele uma pista para perceber que
jogo iriam levar a cabo.
– Sim. Já não posso esconder mais, minha querida. – Sam passou o braço
por cima dos ombros de Evie, puxando-a para si. Beijou-a no rosto, perante
o ar admirado de Jericho. – Lamento que descubras assim, primo. Fomos
para aquele gabinete para estarmos sós. Estou apaixonado por ela e ela por
mim, não estás boneca? Vamos a Reno para conseguir a anulação e depois
damos o nó. Pronto, não te censuro se me esmurrares aqui mesmo, por
aquilo que fiz.
Murmúrios de admiração e reprovação ondularam por entre os membros
da Igreja do Pilar de Fogo. Escondido atrás do tamanho de Jericho, Sam fez
um pequeno gesto com o punho, esperando que o outro se apercebesse da
sugestão.
Por fim, Jericho entendeu e abriu muito os olhos.
– Pois bem, ela é minha mulher e não podes ficar com ela – anunciou
pouco à vontade. Recuou e esmurrou Sam, atingindo-o no maxilar e no
lábio inferior. Sam vacilou e caiu de joelhos com a boca ensanguentada.
– Filho da… – grasnou Sam.
– Oh, Sam! – Evie acocorou-se ao lado de Sam, limpando-lhe o lábio
com o lenço. – Nunca quis que isto acontecesse.
O olhar da Sr.ª White parecia puro aço.
– Creio que será melhor saírem daqui. Somos uma organização honrada e
não queremos nada com os vossos sórdidos assuntos citadinos.
– Uma «organização honrada» – disse Sam irritado atrás do volante,
enquanto percorriam o longo caminho. Já tinha um alto no rosto e na
camisa havia sangue seco. Evie limpava-lhe a ferida, mas ele estremecia. –
Ai!
– Desculpa lá aquilo – disse Jericho do assento traseiro, mas parecia
muito satisfeito consigo próprio.
– Esse soco fez com que saíssemos de lá. Bom trabalho, grandalhão. Para
a próxima tem mais calma, gigante antipático.
No fim do caminho, um grupo de homens atravessou-se-lhes à frente,
bloqueando-lhes a saída. Evie agarrou-se à alavanca da porta. As mãos de
Sam mantiveram-se no volante e, pela segunda vez, Evie desejou ser ela a
conduzir. Um homem de peito largo e chapéu de palhinha apoiou os dois
braços na janela aberta de Evie.
– Olhem, gente da cidade, saibam que nós temos conhecimento daquilo
que vocês por lá fazem e não queremos que nos metam nisso, percebem?
Evie acenou afirmativamente, com ar grave. Sentia o coração acelerado
no peito. Mantinha os olhos na estrada em frente.
– Nunca mais cá venham. Não precisamos de gente da vossa espécie.
Um dos homens aproximou o rosto do de Jericho. Sorriu-lhe de modo
amigável, como se fossem dois velhos amigos numa pescaria, um a dar
conselhos ao outro.
– Se fosse eu, filho, levava esse tipo até à mata e mostrava-lhe o que
acontece aos tipos que nos querem tirar o que é nosso por direito. – Tirou
do bolso uma carteira de fósforos, riscou um, ficou a ver a chama
transformar-se num diamante cor de laranja que atirou para cima de Sam,
no banco da frente. Evie deu um pequeno grito ao vê-lo cair sobre as calças
de Sam, mas este apagou-o rapidamente. Porém, parecia aterrorizado. A sua
habitual bazófia desaparecera completamente. Os homens recuaram. O tipo
da frente levantou a mão do capô e Sam acelerou, espalhando gravilha com
os pneus de trás. Chegaram à curva seguinte tão depressa que nem viram o
homem senão quando estavam quase em cima dele.
– Cuidado, Sam – gritou Evie.
Sam travou a fundo, o carro estremeceu e parou. Diante deles, o irmão
Jacob Call erguia as duas mãos, como se esperasse ser atingido. Apontou-
lhes o dedo comprido.
– O que começou há muito terminará quando o fogo arder no céu – disse.
– Arrependam-se porque a Besta chegou.
Depois voltou-se e subiu a encosta em passos longos e rápidos.

Evie, Jericho e Sam chegaram ao museu já da parte da tarde e contaram a


Will a sua fuga da Igreja do Pilar de Fogo e o seu curioso encontro com o
irmão Jacob Call.
– Acha que ele poderá ser o nosso assassino? – perguntou Jericho.
– Vou falar com o detetive Malloy imediatamente – respondeu Will. –
Estiveram muito bem. Pode ter sido a abertura de que precisamos.
– Ele disse outra coisa muito curiosa. – Evie em meias, descansava os pés
sobre uma pilha de livros que se encontrava no chão. – Disse que «o que
começou há muito terminará agora». O que começou há muito? Quando?
O telefone tocou e Will atendeu.
– William Fitzgerald. Entendo. Quem devo anunciar? Só um momento. –
Will estendeu o auscultador. – Evie é para ti. Um tal senhor Daily
Newsenhauser?
Evie pegou no telefone e disse:
– Não preciso de um Electrolux e já sou cliente da Colgate, portanto a
menos que me venha oferecer um casaco de peles, receio que…
– Alto aí, Sheba! Como vai isso aí nos Arrepios? – perguntou T. S.
Woodhouse.
Evie voltou as costas a Will e aos rapazes.
– Fantástico. O fantasma do presidente Lincoln convidou-me para tomar
chá. Adoro um fantasma bem-educado. Espertinho!
– Daily Newsenhauser? Foi bem lembrado.
Evie tapou o auscultador com a mão.
– Uma encomenda que fiz a um vendedor da B. Altman. É só um minuto.
– Não gosto que te apropries do telefone do museu para as tuas chamadas
pessoais, Evangeline – disse Will, mas sem levantar os olhos do monte de
recortes.
– Parece-me que não pode falar à vontade – disse Woodhouse.
– Acertou em cheio.
– Talvez nos pudéssemos encontrar.
– Não será muito provável.
– Então, Sheba. Faça-me a vontade. Tem alguma coisa para mim?
– Depende. E para mim, o que tem?
– Uma história sobre o museu nos jornais de amanhã. Nela menciona-se
uma tal menina O’Neill. Uma muito atraente menina O’Neill.
Evie sorriu.
– Espere um instante – disse. – Jericho, preciso de encomendar coisas que
não se podem mencionar. Sê um querido e não desligues que eu vou atender
no gabinete do meu tio. – Evie passou a correr por Sam, que ergueu as
sobrancelhas ao ouvir a expressão «não se podem mencionar». Evie revirou
os olhos irritada e correu para o telefone do gabinete de Will. – Já aqui
estou, Jericho, meu querido. – Esperou pelo clique e depois falou em voz
abafada. – Pensam que o assassino possa estar envolvido com a Klan. Foi
encontrado um exemplar de O Bom Cidadão no cadáver de Tommy Duffy.
– Está a brincar? Não me espanta nada que essa escumalha esteja
envolvida.
– Bem sei. São ainda piores que os repórteres.
– Adoro-a, Sheba.
– E eu gosto do que pode fazer por mim, senhor Woodhouse.
– E que mais?
– Nada mais. Primeiro quero ver esse artigo.
– Por favor, Evie, despede-te já – ordenou Will da porta.
Evie falou em tom alegre e muito alto para o auscultador.
– Põe um emplastro de mostarda e fica na cama, Mabesie, minha querida
e vais ver que ficas como nova! Tenho de ir agora! Beijocas! – Evie pousou
o auscultador no descanso e voltou-se para Will com um grande suspiro. –
Pobrezinha, ficaria perdida sem mim.
– Pensei que estavas a falar com um vendedor da B. Altman.
– Foram dois telefonemas! – mentiu Evie, sorrindo alegremente. – Oh,
Tito, francamente! Não ouviu o segundo toque? O som nestas mansões
antigas não é o que deveria ser, suponho eu. Bom, não importa. Eu ouvi. O
que é Tito?
Will enfiou os braços na gabardina e pôs o chapéu.
– Acabei de receber um recado do meu colega doutor Poblocki de
Columbia. A folha que descobriste foi muito útil. Afinal ele descobriu uma
coisa importante. Então?
Evie agarrou no casaco.
AS ONZE OFERENDAS

Evie e Will atravessaram o longo relvado de Columbia, em direção à


Biblioteca Low Memorial, um edifício enorme, de mármore, cujas colunas
jónicas lhe davam o aspeto de um templo grego. À direita, os telhados
sobrepostos dos prédios de apartamentos de Morningside Heights
destacavam-se no cinzento céu outonal. Algures soava o sino de uma igreja.
O dia estava ventoso, mas, mesmo assim, os estudantes sentavam-se nos
degraus da biblioteca do lado do relvado. As cabeças voltaram-se à
passagem de Evie e ela permitiu-se pensar que os olhares se deviam ao
facto de estar arrasadoramente bela no seu vestido cor-de-rosa e meias com
um padrão de penas de pavão, e não por ser uma das poucas raparigas no
campus.
O gabinete do Dr. Georg Poblocki ficava no fim de um longo corredor,
num edifício que cheirava a livros velhos e a anseios. O próprio Dr.
Poblocki era um homem encorpado com faces irregulares e olhos sapudos,
sombreados por sobrancelhas rebeldes que Evie sentiu vontade de aparar.
– Toda a história por trás deste desenho que me mandaste foi muito difícil
de descobrir, William – disse o Dr. Poblocki com um leve sotaque alemão.
Sorriu com uma alegria quase maliciosa. – Mas consegui.
Retirou um livro de um monte deles e abriu-o numa página marcada que
mostrava a conhecida estrela de cinco pontas rodeada por uma serpente.
– Vejam: o Pentagrama da Besta.
– A polícia devia ter-te consultado e não a mim, Georg.
O Dr. Poblocki encolheu os ombros.
– Eu não tenho um museu. O seu tio foi meu aluno antes de começar a
trabalhar para o governo – disse a Evie.
– Isso foi há muito tempo. – Will bateu na página. – Diz-me mais coisas
sobre esse Pentagrama da Besta, Georg. O que é? O que significa?
– É o emblema sagrado dos Irmãos um culto religioso extinto no Norte do
estado de Nova Iorque.
– Esqueço-me que Nova Iorque tem parte norte. Parece desnecessário
depois de Manhattan – gracejou Evie.
– Delicioso! – O Dr. Poblocki sorriu. – Gosto desta.
– E os Irmãos? – insistiu Will como se estivesse a repreender uma
estudante rebelde.
– A Mais Sagrada Aliança dos Irmãos de Deus. Formou-se durante o
Segundo Grande Despertar, no princípio do século dezanove.
– O segundo quê? – perguntou Evie.
– O Segundo Grande Despertar foi uma época em que a nação foi
invadida pelo fervor religioso. Os pregadores atravessavam o país fazendo
sermões incendiários acerca do fogo do inferno e da condenação,
acautelando as pessoas para as tentações do demónio enquanto salvavam
almas durante os encontros religiosos – disse o Dr. Poblocki, passando para
um tom professoral que Evie calculou ser o que ele usava com os alunos. –
Deu lugar a novas religiões, tais como a Igreja dos Santos dos Últimos
Dias, a Igreja de Cristo e os Adventistas do Sétimo Dia, bem como a esta. –
O Dr. Poblocki bateu com o dedo sobre o livro. – Os Irmãos foi formada
por um jovem pregador chamado John Joseph Algoode. O reverendo
Algoode criava ovelhas, tudo muito bíblico, e um dia viu um grande fogo
no céu. Era o Cometa de Salomão que atravessava o hemisfério Norte.
De repente, Evie lembrou-se das duas jovens que, na rua, lhe haviam
entregado o panfleto.
– O mesmo Cometa de Salomão...
– Que agora vai regressar, cinquenta anos depois – terminou o Dr.
Poblocki. Instalou-se numa cadeira, mas estremeceu. – É este meu maldito
joelho. Infelizmente acontece a todos quando chegamos a velhos.
– Eu é que vou ficar velho antes que nos contes toda a história, Georg –
insistiu Will e Evie sentiu-se um pouco embaraçada pela indelicadeza do
tio.
– Este seu tio... nunca soube esperar. Receio que essa impaciência venha
a dar cabo de ti, William – disse o Dr. Poblocki, olhando para Will com uma
expressão sombria. E, nesse momento, Evie pensou que o tio tinha uma
expressão arrependida. – O pastor Algoode afirmava ter tido uma visão: as
antigas igrejas da Europa eram uma corrupção da palavra de Deus. Era
necessária uma nova fé americana, dizia. Só essa grande experiência de
todo um país poderia produzir crentes suficientemente puros e devotos para
se submeterem totalmente à palavra e ao julgamento de Deus. Os Irmãos
seriam essa fé. Governariam a nova América. A verdadeira América.
Cumpririam a grande promessa. – O Dr. Poblocki tirou os óculos, soprou as
lentes com o seu hálito, limpou-as com um pano até se considerar satisfeito
e colocou de novo as hastes nas orelhas. – O pastor Algoode levou o seu
pequeno rebanho até às montanhas Catskill, em mil oitocentos e trinta e
dois. Instalaram-se em seis hectares de terreno e construíram a sua igreja
num velho celeiro, onde se reuniam todas as noites para rezarem as suas
orações à luz das velas e o dia inteiro aos domingos. Pintaram as casas e a
igreja com símbolos religiosos segundo o livro sagrado e trataram da terra.
Tinham um estranho sistema de crenças, apressadamente retirado da Bíblia,
particularmente do Apocalipse, e do ocultismo. Pensa-se que o Livro dos
Irmãos Sagrados era em parte doutrina religiosa, em parte magia.
– Magia? – disse Evie.
– Um livro de feitiçaria – explicou o Dr. Poblocki.
– Isso explica os símbolos, suponho eu – comentou Will.
O Dr. Poblocki acenou afirmativamente.
– Exato. Havia boatos, como sempre há, nestes casos, de que os Irmãos
praticavam tudo, desde desagradáveis práticas sexuais ao canibalismo e
sacrifícios humanos. Essa era uma das razões por que eram tão restritos e
viviam nas montanhas... para escaparem à perseguição. Tinham extensos
conhecimentos de alucinogénios, muito provavelmente aprendidos das
tribos nativas que os usavam nas suas adorações religiosas para atingirem a
transcendência. O relato de um caçador franco-canadiano, de visita à zona,
fala de um «fumo magnífico e de um vinho doce que, quando consumido,
faz com o que espírito imagine todo o tipo de anjos e demónios». Pronto.
Os Irmãos eram um culto escatológico.
– E seria legal? – perguntou Evie.
– Que dama encantadora! – exclamou, a rir, o Dr. Poblocki, dando umas
palmadinhas na mão de Evie. – Tem a certeza de que é aparentada com este
senhor? – Apontou para Will e Evie teve de conter a vontade rir.
– Escatologia – prosseguiu o Dr. Poblocki. – Do grego eschatos, significa
«o último» e refere-se ao fim do mundo e à segunda vinda de Jesus Cristo.
Ah, mas é aqui que as coisas se tornam muito interessantes.
Evie abriu muito os olhos.
– Mais interessantes do que droga e feitiçaria?
– Certamente! Sabe, os Irmãos, não só acreditavam que o fim do mundo
estava próximo; pensavam que a sua incumbência, ordenada por Deus, era
ajudá-lo a chegar rapidamente.
– Como pensavam fazê-lo? – perguntou Will.
– Erguendo o Anticristo. A própria Besta. – O Dr. Poblocki fez uma
pausa para dar tempo a que as palavras assentassem. Evie começava a ficar
com pele de galinha.
– Porque haveriam de o fazer, se eram cristãos?
– A linha entre a religião e o fanatismo é difícil de delimitar – respondeu
o Dr. Poblocki. – Quando é que a crença se torna justificação? Quando é
que o direito se torna racional e a cruzada se torna crime?
– Como tencionavam eles erguer a Besta, Georg? – perguntou Will.
– Com isto. – O Dr. Poblocki estendeu a mão para o monte de livros e
mostrou-lhes um volume rugoso encadernado a couro. – As onze oferendas.
É um ritual sacrificial mágico e religioso na sua origem, para que a Besta se
manifeste na terra.
O livro era muito velho e o papel fino e cheio de veios, macio ao toque de
Evie. Recordava-lhe uma Bíblia macabramente iluminada. Cada página
apresentava uma pequena ilustração colorida de um assassínio ritual,
acompanhada por uma passagem semelhante às Escrituras. Os mesmos
símbolos encontrados nas notas dos assassinos também percorriam as orlas
das entradas do livro.
Evie leu as oferendas em voz alta pela seguinte ordem:
– O Sacrifício dos Fiéis. O Tributo dos Dez Servos do Mestre. O
Cavaleiro Pálido Cavalgando a Morte Diante das Estrelas. A Morte da
Virgem. A Prostituta Adornada e Lançada ao Mar… – O desenho era de
uma mulher cega e coberta de joias disposta sobre a água, rodeada de
pérolas. Sobre a cabeça, havia o olho simbólico.
– Tito – disse Evie, estremecendo. – Foi exatamente assim que o cadáver
de Ruta Badowski foi encontrado.
Will estendeu a mão pela frente de Evie e passou a página.
– A sexta oferenda, o Sacrifício do Filho Ocioso… – A ilustração
mostrava um rapaz pendurado de cabeça para baixo, com uma perna
dobrada, como o Enforcado do tarô. O rapaz não tinha mãos e um par de
mãos postas em oração era o símbolo colocado por cima do desenho. –
Tommy Duffy.
Evie continuou a ler.
– A sétima oferenda, a Expulsão dos Irmãos Mentirosos do Templo de
Salomão. – Evie ergueu a cabeça a pensar. – É um padrão para os
assassínios. – Continuou: – A oitava oferenda, a Veneração do Arauto
Angélico. A nona, a Destruição do Ídolo de Ouro. A décima, o Lamento da
Viúva, a décima primeira oferenda, o Casamento da Besta e da Mulher
Vestida de Sol.
Na última página havia um desenho de um homem bestial, com chifres e
pés de cabra, duas asas enormes e cauda. Estava sentado num trono e tinha
olhos de fogo. Apertava na mão um coração ensanguentado. A seus pés via-
se uma mulher com uma coroa e um vestido dourado com o peito aberto. O
símbolo no fundo era um cometa. Evie estremeceu.
– Diz como se espera que a Besta venha a este mundo?
– Não é claro. Diz apenas que precisam de um escolhido.
– Um escolhido para cometer os assassínios? – Evie tentou esclarecer.
O Dr. Poblocki encolheu levemente os ombros.
– Receio que a esse respeito apenas se possam fazer conjeturas.
– O que é isto? – Evie apontou para uma página quase no fim. Mostrava
um homem ajoelhado diante de outro homem envergando vestes escuras,
provavelmente um sacerdote. O Pentagrama da Besta pairava sobre ambos
como um sol e espíritos celestes voavam ali perto. Havia também vários
montes de lenha. O sacerdote colocava um pendente ao pescoço do homem
ajoelhado.
– Parece o pendente que Jacob Call usava – disse Evie. – Para que serve?
– Possivelmente será para informar os outros que fazem parte da mesma
tribo. Tal como a estrela de David – disse o Dr. Poblocki. – Mas não tenho a
certeza absoluta.
– Qual é a próxima oferenda? – perguntou Will.
Evie voltou atrás.
– A sétima oferenda: a Expulsão dos Irmãos Mentirosos do Templo de
Salomão, seja o que for que isto quer dizer. – Evie voltou-se para o Dr.
Poblocki. – Pensa que o nosso assassino acredita que o cometa é uma
espécie de sinal?
– Sempre se pensou que os cometas eram portentos sagrados.
Mensageiros de Deus. Diz-se que, quando Lúcifer, o anjo da luz, caiu,
passou pelo céu como uma cauda de luz.
– Quando será o cometa visto em Nova Iorque?
– Oito de outubro, cerca da meia-noite – disse Will.
– Faltam menos de duas semanas. – Evie mordeu o lábio, a pensar.
– Disse que os Irmãos eram um culto extinto. Que lhes aconteceu?
– Toda a seita morreu queimada em mil oitocentos e quarenta e oito. – O
Dr. Poblocki abriu uma gaveta atafulhada de papéis. – Houve um surto de
varíola, sabe. Vários membros morreram da doença. Aparentemente, o
pastor Algoode convenceu-se de que se tratava de um sinal de Deus e que
deveriam preparar-se para o Armagedão. Ninguém sabe exatamente o que
aconteceu, mas pensa-se que Algoode juntou os seus e borrifou a casa de
reuniões com querosene… encontrou-se um frasco nas ruínas. As portas
foram barradas. Um caçador que se encontrava nas proximidades viu as
chamas e o fumo. Disse que ouvira as preces e os hinos transformarem-se
em gritos.
Evie estremeceu.
– Que horror. Sobreviveu alguém?
– Não escapou vivalma – disse solenemente. – A cidade de New
Brethren13 foi construída no vale lá em baixo, a cerca de oito quilómetros do
acampamento original, na colina. Dizem que os espíritos inquietos
continuam a assombrar os bosques da Brethren original. Ouvem-se sons
terríveis e veem-se luzes nas árvores, lá em cima, na montanha. Ninguém se
aventura a ir lá. Nem mesmo os caçadores.
Evie tentou imaginar todas aquelas almas fechadas na casa, a cantar e a
rezar, as mães abraçando os filhos enquanto as chamas avançavam.
– Queimados vivos. Porque fariam tal coisa?
– Porque é que se fazem certas coisas? Por fé. Uma fé que tinham como
certa e justa nas suas ações. Abraão desejava sacrificar o filho, Isaac,
porque acreditava que Deus o tinha ordenado. É impensável matar um filho.
Um crime. Mas se se age acreditando que o nosso Deus, a divindade
suprema a quem se deve obedecer, no-lo exigiu, será ainda um crime?
– Sim – declarou Will.
O Dr. Poblocki sorriu.
– Sei que não acreditas, Will. Mas imagina por um momento que
acreditas fervorosamente que é verdade. Neste enquadramento, as tuas
ações são justificadas. Até glorificadas. São inculpatus... sem culpa. Se este
for o caso do vosso assassino, então ele está numa missão sagrada e nada o
impedirá de a levar a cabo.
– O que é isto? – perguntou Evie. Tinha passado para a última página do
Livro dos Irmãos, que fora rasgada. Apenas restavam as orlas arrancadas.
O Dr. Poblocki aproximou-se e espreitou por cima dos óculos,
semicerrando os olhos.
– Ah! Isso. Posso dizer-lhe o que deve ser. Segundo os relatos, o Livro
dos Irmãos continha um feitiço para prender o espírito da Besta dentro de
um objeto... uma relíquia sagrada qualquer... e depois destruir o objeto e
lançar a Besta de volta para o inferno, assim que a missão dos fiéis estivesse
cumprida.
– Não compreendo – disse Evie.
– É como o jinn árabe ou génio. Um espírito pode ser contido num objeto
e depois destruído – disse Will. Parecia perturbado.
– Não parece ter grande importância – disse Evie. – Não que tenha
importância, pois falta a folha.
– Não só falta, como foi deliberadamente arrancada – lembrou o Dr.
Poblocki.
– Mas quem o faria e porquê?
– Parece que afinal alguém não queria que a Besta fosse destruída.
– Georg, posso ficar com isto? – disse Will agarrando no livro.
– À vontade. Mas promete-me que não vais criar o teu próprio culto do
Juízo Final com ele.
Concentrado nas iluminuras das páginas, Will nem respondeu.
– E agora são horas de ir ter com a senhora Poblocki para o nosso repasto
domingueiro. – O Dr. Poblocki beijou com elegância a mão de Evie. –
Espero que a investigação corra o melhor possível. Mantenha o seu tio na
linha.
Lá fora tinha começado a chover. Will abriu o jornal do dia e ofereceu
metade a Evie. Colocaram as finas folhas sobre a cabeça e caminharam
rapidamente pela relva em direção à Broadway.
– Se o nosso assassino segue as onze oferendas do culto dos Irmãos é
porque ouviu de qualquer forma falar do assunto. Será possível que seja
dessa região? – Evie olhou para a vasta expansão da cidade. – O que acha?
Will? Tito, ouviu o que eu disse?
– Humm? Sim – respondeu, distraído. Tinha o sobrolho franzido e os
olhos pareciam cansados. O caso incomodava-o mais do que o que queria
demonstrar. – Uma sólida observação, Evie.
Evie não pôde deixar de sorrir. Da parte de Will tratava-se de um enorme
elogio.
– Vou dizer ao detetive Malloy que temos uma pista possível e que o
assassino talvez seja da região de New Brethren. Talvez possam perguntar
no Norte do estado para saber se aconteceu alguma coisa de extraordinário
em ou nas proximidades de New Brethren. Mas agora já temos uma coisa
do nosso lado.
– O quê? – perguntou Evie. Chovia agora com mais força. O jornal
amolecera e ela tinha a nuca molhada.
– Se de facto o nosso assassino está a atuar a partir deste Livro dos
Irmãos, então a sua próxima oferenda será a sétima... a Expulsão dos
Irmãos Mentirosos do Templo de Salomão.
– Mas o que significa isso?
– O nosso trabalho será descobri-lo a tempo – disse Will.
Apareceu um táxi e o tio Will ergueu a mão para o mandar parar,
antecipando-se a dois estudantes.
– Desculpem, mas a minha sobrinha está doente – disse-lhes e Evie ficou
encantada com esta pequena mentira. Instalaram-se no táxi, no preciso
momento em que as nuvens despejavam uma aguaceiro tremendo.
Evie encostou a cabeça ao assento e ficou a ver a chuva a cair.
– Tito, o que acontece quando o assassino completar as onze oferendas?
Com certeza que não vai erguer um mítico demónio bíblico das
profundezas. Por isso o que procura ele?
– Mas ele acredita que sim. E uma fé tão forte é uma força poderosa.
– Então que espécie de fé poderosa será necessária para impedir uma
pessoa assim?
– Volte à esquerda por favor e não vá pela avenida – ordenou Will ao
motorista que decidiu discutir, à boa maneira de Nova Iorque, acerca do
melhor caminho a tomar àquela hora. Só depois de regressarem ao museu é
que Evie notou que ele não lhe respondera à pergunta.
13 Brethren significa «irmãos de uma congregação». (N. da T.)
ÜBERMENSCH

Jericho estava sentado na casa de jantar privada do Waldorf-Astoria na


Quinta Avenida. Reparara durante o caminho que a cor das folhas mudava
de verde para um leve vermelho e dourado. Jericho lembrou-se da quinta e
das colheitas. Esse pensamento tornava-o sempre um pouco melancólico,
por isso voltou a sua atenção para o chá com leite. Um momento depois um
empregado de luvas brancas abriu as portas e Jake Marlowe entrou na sala
como um príncipe benevolente.
– Não te levantes – disse Marlowe sentando-se à mesa. Era considerado
um homem bonito. Os jornais gastavam tanta tinta sobre a sua beleza
morena, queixo forte, altura e constituição atlética, como a discutir a sua
última investigação industrial ou revelação científica.
– Como estás, Jericho?
– Muito bem.
– Ótimo. Estás com um aspeto muito saudável.
– Sim.
Marlowe apontou para o volume muito folheado de Assim Falou
Zaratustra.
– É bom?
– Dá para passar o tempo.
– Eu sei que tens muito tempo para passar a trabalhar naquele museu.
Como está o teu amigo Will?
– Está bem.
– Ainda bem. Will e eu podemos ter tido as nossas diferenças, mas
sempre o admirei. E estou preocupado com ele e as suas... obsessões.
O criado silencioso e de luvas brancas apareceu de novo e serviu café na
chávena de porcelana de Marlowe.
– Quero uma salada Waldorf. Jericho?
– A mesma coisa, por favor.
O criado acenou afirmativamente e desapareceu.
– Como vai o negócio? – perguntou Jericho, sem a mínima sombra de
verdadeiro interesse.
– O negócio vai bem. O negócio está fantástico. Estamos a fazer coisas
emocionantes na Indústrias Marlowe. E a Califórnia é maravilhosa... irias
gostar.
Jericho conteve a vontade de dizer a Marlowe que este não fazia a
mínima ideia daquilo de que ele gostava.
– A oferta continua de pé... se te cansares de arrumar livros sobre magia e
fantasmas nas prateleiras, podes sempre vir trabalhar comigo.
Jericho examinou a colher que tinha no prato. Era de prata verdadeira,
com o emblema do hotel no cabo.
– O senhor sabe que tenho um emprego.
– Sim. Tens um emprego. Estou a falar de uma profissão. De uma
oportunidade para fazer parte do futuro e não de murchar num museu
poeirento.
– Sabe que o senhor Fitzgerald é brilhante.
– Foi – disse Marlowe e deixou pairar a palavra no ar. – Nunca mais foi o
mesmo depois do que aconteceu com Rotke. – Marlowe abanou a cabeça. –
Tanto brilho gasto a perseguir histórias de fantasmas. E para quê?
– Fazem parte da nossa história.
– Não somos um país com passado, Jericho. Somos um país de futuro. E
eu tenciono dar forma a esse futuro. – Marlowe poisou os cotovelos na
mesa e inclinou-se para diante, com uma expressão séria e penetrante nos
olhos azuis. – Como estás Jericho?
– Já lhe disse. Estou bem.
Marlowe baixou a voz.
– E não tiveste sintomas?
– Nenhum.
Marlowe encostou-se para trás com um sorriso satisfeito.
– Bem. Prometedor. Muito prometedor.
– Sim, senhor. – O rosto de Jericho refletia-se distorcido na colher.
Marlowe levantou-se e chegou-se junto a uma das janelas altas.
– Olha ali para fora. Que cidade! E sempre a crescer. É o melhor país do
mundo, Jericho. Um lugar onde um homem pode ser qualquer coisa que
sonhar ser. Já imaginaste se outros países tivessem os mesmos ideais
democráticos e a liberdade de que desfrutamos? Já imaginaste como seria o
mundo?
– O idealismo é uma fuga à realidade. As utopias não existem.
Marlowe sorriu.
– Achas que não? Pois discordo completamente. Isso é o Nietzsche a
falar? Ah, os alemães. Temos uma fábrica na Alemanha, sabes. De facto a
Alemanha é um belo exemplo, por isso vejamos a Alemanha: foram
esmagados na Grande Guerra. Têm uma dívida assustadora. Meio quilo de
pão custa quase três mil milhões de marcos! O Reichsmark não tinha
praticamente valor algum... terias mais sucesso a usá-lo como papel de
parede do que para comprar coisas ou pagar as contas. Mas as Indústrias
Marlowe vão ajudá-los a porem-se de pé. Vamos mudar o mundo. –
Marlowe sorriu alegremente, o sorriso que fazia com que os jornais
discorressem acerca das suas qualidades empreendedoras. – Podias mudar o
mundo, Jericho.
– Ninguém escolheria isto – disse Jericho amargamente.
– Oh, vê lá! Não é assim tão mau, pois não? – Marlowe voltou a sentar-se
diante de Jericho. – Olha para ti, Jericho. És um milagre ambulante. A
grande esperança.
– Não sou um dos seus sonhos. – Jericho bateu com o punho na mesa
partindo o prato.
– Cuidado – disse Marlowe.
– Eu… desculpe. – Jericho começou a apanhar os bocados, mas a um
gesto de Marlowe o criado apareceu para limpar a mesa com uma pequena
vassoura.
– Tens de ter cuidado – repetiu Marlowe.
Jericho acenou afirmativamente. Apertou e abriu o punho debaixo da
mesa. Quando se sentiu mais calmo, dobrou o guardanapo, colocou-o sobre
a mesa e levantou-se.
– Agradeço-lhe muito o chá. Tenho de voltar para o museu.
– Oh, vá lá. Vamos recomeçar com isto...
– T...tenho muito trabalho para fazer – disse Jericho, ficando à espera.
– Mas não comeste nada.
– Tenho de voltar.
– Com certeza – disse Marlowe depois de uma pausa. Encaminhou-se
para o outro extremo da sala onde estava a sua pasta e o guarda-chuva.
Retirou um pequeno saco castanho de dentro da pasta.
– Tens a certeza de que estás bem?
– Sim.
Marlowe entregou o saco castanho a Jericho, que baixou os olhos.
– Obrigado – murmurou Jericho. Detestava aquilo. Detestava ter de se
submeter àquele ritual uma vez por ano. Ter de fingir que se sentia grato
pelo que Marlowe tinha feito por ele. A ele.
Marlowe deu-lhe uma palmada no ombro.
– Estou muito satisfeito por ver que te encontras tão bem, Jericho.
– Sim, senhor. – Apertou a mão de Marlowe e deixou-o ali.
Sozinho no corredor, Jericho cerrou o punho da mão direita, depois
dobrou os dedos, abriu, fechou, abriu, fechou. Moviam-se perfeitamente.
Abriu o saco que Marlowe lhe tinha dado. Lá dentro havia um frasco de
vidro com comprimidos com o rótulo TÓNICO VITAMÍNICO DAS INDÚSTRIAS
MARLOWE. Ao lado estava uma caixa de prata com dez frascos de um soro
azulado. Por um momento, Jericho imaginou-se a despejar o saco no
caixote do lixo mais próximo e sair dali para fora. No entanto, meteu a
caixa de prata no bolso interior do casaco para estar mais segura e colocou
o tónico vitamínico no bolso exterior. Meteu o Zaratustra de Nietzsche
debaixo do braço e saiu para o dia fresco de Outono.

Mabel não teve tempo para notar a graça das folhas de outono enquanto
caminhava por entre a multidão reunida na Union Square. Sabia que
precisava estar alerta – os Detetives Pinkerton, disfarçados de
trabalhadores, perturbavam muitas vezes um protesto pacífico, dando à
polícia um motivo para avançar, interromper a manifestação e fazer
detenções. Por vezes as coisas ficavam feias.
A chuva parara e a mãe de Mabel encontrava-se sobre um estrado
improvisado, inspirando a multidão com os seus dotes oratórios e a sua
beleza morena. O seu nome de solteira era Virginia Newell, membro do
famoso clã Newell, uma das famílias da elite de Nova Iorque. Aos vinte
anos desistira de tudo para fugir com o pai de Mabel, Daniel Rose, um
incendiário jornalista judeu e socialista. A família cortara relações com ela
e deixara-a sem um cêntimo. Mas o glamour dos Newel mantivera-se.
Chamavam à mãe de Mabel a Rebelde da Alta Sociedade. E, até certo
ponto, o facto de a mãe ter desistido de tudo por amor, tornara-a ainda mais
famosa do que alguma vez seria como senhora de sociedade. Por isso
mudaram-se para o Bennington; ninguém recusaria uma menina Newell –
nem mesmo caída em desgraça.
Mas, para Mabel era difícil viver à sombra da mãe. Ninguém escrevia nos
jornais acerca dela. E, para mais ainda, Mabel herdara as parecenças do pai
– rosto redondo e nariz forte, olhos castanhos, profundos e cabelo
encaracolado castanho-arruivado.
– Deves parecer-te com o teu pai – diziam as pessoas e depois seguia-se
um silêncio incómodo. Mas quando a mãe sorria, a abraçava e lhe chamava
«a minha querida menina tão valente!» Mabel sentia-se inundada de um
afeto intenso. E quando, inevitavelmente, a mãe se envolvia numa causa ou
injustiça que tinha de ser defendida, Mabel ficava do lado dela, como filha
obediente, provando ser indispensável. As pessoas úteis e indispensáveis
são sempre amadas, não é verdade?
A única pessoa que não parecia olhar para a mãe de Mabel com espanto
era Evie. Mais do que uma vez, fizera dela uma imitação perfeita.
– «Mabel, miiinha queriiidinha, como te podes queixar de não teres
jantado, quando as massas trabalhadoras nem sequer respiram livremente?»
«Mabel queriiiidinha, diz-me: são precisos vestidos bonitos para ajudar os
pobres e defender os operários do Lower East Side?»
E por muito que Mabel se sentisse tentada a zangar-se com Evie e a
defender a mãe, tinha de admitir que era uma das coisas que mais gostava
na amiga. Fosse como fosse, Evie tomava sempre o partido de Mabel.
– És a verdadeira estrela da família Rose – insistia Evie. – Um dia todos
conhecerão o teu nome. – Mabel só tinha esperança que Evie pudesse fazer
com que Jericho fosse da mesma opinião.
Jericho. Embaraçava-a a frequência com que pensava nele. Tantas
fantasias românticas! Podia ser muito sensata, mas no que dizia respeito a
esse rapaz, perdia-se com as ideias dos livros de contos. Ele era tão
inteligente, estudioso e nobre – não era um marçano, como aquele Sam
Lloyd, só adulação e promessas para qualquer rapariga que se interessasse
por ele. Não. As afeições de Jericho significavam alguma coisa. Era esse o
desafio, não era? Se um rapaz como Jericho se apaixonasse por ela teria a
prova de que era desejável.
Mabel pensava em tudo isto, enquanto atravessava a Union Square,
entregando exemplares do Proletariat aos trabalhadores. Acenou aos
indivíduos que se encontravam na mesa dos Wobblies14, mas estes não lhe
deram atenção, por isso Mabel seguiu adiante, sentindo-se perdida na
multidão. Se decidisse desaparecer, alguém daria pela sua falta?
– Quem são os vossos líderes? – gritava a mãe de Mabel do cimo do
estrado.
– Somos todos líderes! – respondeu a multidão.
Mabel sentiu uma mão no braço. Voltou-se e viu uma jovem com um
bebé ao colo, acompanhada por uma mulher mais velha de lenço na cabeça.
A jovem falou num inglês entrecortado.
– A menina é a filha da Grande Senhora Rose?
Tenho nome. Chamo-me Mabel. Mabel Rose.
– Sou sim – respondeu irritada.
– Por favor, pode ajudar? Levaram a minha irmã da fábrica.
– Quem a levou?
A jovem falou com a mulher com ar de avó em italiano antes de se voltar
para Mabel.
– Os homens – disse.
– Que homens? A polícia?
A mulher olhou em volta para ter a certeza de que ninguém ouvia e
depois disse em voz baixa:
– Os homens que se movem como sombras.
Mabel não compreendeu o que a mulher queria dizer com aquilo. Seria
provavelmente uma nuance da língua impossível de traduzir.
– Mas porque levariam a sua irmã? Ela estava a organizar alguma coisa
na fábrica?
A jovem olhou de novo para a mulher mais velha, que acenou
afirmativamente.
– Ela é... profeta. – A jovem parecia procurar as palavras certas. – Ela...
fala com os mortos. Diz que eles vão chegar.
– Quem vai chegar?
O apito estridente da polícia soou à entrada do parque, juntando-se aos
gritos e exclamações da multidão. Uma lata de gás lacrimogéneo aterrou
por entre a multidão e o parque ficou submerso num nevoeiro químico que
queimava os olhos e a garganta. Mabel ouvia a mãe a pedir calma pelo
microfone, mas este foi logo cortado. As pessoas empurravam-se e corriam
aos gritos, enquanto a polícia perseguia os trabalhadores. Alguém deu um
enorme empurrão a Mabel e atirou com os jornais ao chão, que foram
pisados e feitos em bocados. Mabel não via os pais através do gás e da
multidão. A tossir e desorientada tentou abrir caminho por entre a multidão
caótica e começou a correr até dar de caras com um polícia.
– Apanhei-te – disse ele.
Em pânico, Mabel subiu a correr a Rua 15 em direção a Irving Place,
sempre com o apito do polícia a alertar os outros. Havia à vontade cinco
polícias atrás dela. Dirigiu-se aos portões de ferro de Gramercy, mas umas
mãos fortes puxaram-na para uma porta de serviço nas traseiras de um
restaurante. Começou a gritar, mas uma mão tapou-lhe a boca.
– Por aí não, menina. Esse caminho está cheio de polícias – murmurou-
lhe ao ouvido uma voz de homem e Mabel acalmou-se. Um minuto depois a
polícia passou com os bastões em riste. Do seu esconderijo viu-os desistir e
regressar a Union Square.
– Obrigada – disse Mabel, olhando para o seu salvador pela primeira vez.
Era jovem, pouco mais velho do que ela.
O rapaz afastou-a dali.
– A menina é filha dos Rose, não é verdade?
Mabel sentiu que nem ali conseguia escapar.
– Chamo-me Mabel – disse, como se quisesse desafiá-lo a contradizê-la.
– Mabel. Mabel Rose. Não me esqueço. – Cumprimentou-a com um forte
aperto de mão. – Pois bem, Mabel Rose, desejo que chegue a casa em
segurança.
Soou uma explosão nas imediações.
– Vá agora – disse-lhe o misterioso salvador e correu velozmente pelo
beco, subiu a escada de incêndio e desapareceu para lá dos telhados.

***
De volta ao Bennington, Mabel apanhou o elevador para o sexto andar.
Duas lâmpadas tinham-se fundido havia muito tempo, lançando
permanentemente o patamar na sombra, o que lhe causava arrepios. Mabel
ouviu murmurar no outro extremo do corredor escuro e assustou-se. E se
afinal a polícia tivesse vindo atrás dela?
Apesar do receio, avançou cautelosamente. A menina Addie estava junto
à janela estreita de camisa de dormir, com o cabelo grisalho todo
emaranhado. Tinha na mão um saco de sal que ia deitando no parapeito para
formar uma tira larga. O sal saía também de um buraco no saco e
espalhava-se no tapete.
– Menina Addie? O que está a fazer?
– Não posso deixá-los entrar – respondeu a menina Addie sem erguer os
olhos.
– Não pode deixar entrar quem?
– Estão a passar-se acontecimentos terríveis. Aproximam-se coisas
pecaminosas.
– Quer referir-se aos assassínios? – perguntou Mabel.
– Já começou. Sinto-o. Vi em sonhos o homem do chapéu alto com uma
capa de corvos. Aproxima-se uma situação terrível. – A mão de Addie
esvoaçava perto do seu rosto como um pássaro ferido. Parecia confusa,
como uma mulher que acordasse depois de uma anestesia com éter. – Onde
está a minha porta? Não consigo encontrá-la.
– A senhora está no sexto andar, menina Adelaide. Precisa de ir para o
décimo. Pronto, eu levo-a.
Mabel retirou o saco de sal das mãos da idosa e ajudou-a a entrar no
elevador, segurando o fecho traiçoeiro da porta.
– Quando as curandeiras foram acusadas de praticar bruxaria como se
fosse um jogo e as nossas forcas floresceram com mortos, o homem estava
lá. Quando os Choctaw foram levados à ruína pelo Caminho das Lágrimas,
o homem estava lá.
Mabel contou os andares, desejando que o elevador subisse mais
depressa.
– Dizem que apareceu ao senhor Lincoln uma noite antes da Guerra entre
os Estados. Foi como se uma mão descesse e arrancasse o coração da nação,
e até os rios sangraram e as feridas da terra não sararam. – De súbito, a
menina Addie calou-se e olhou diretamente para Mabel. – É terrível o que
as pessoas podem fazer umas às outras, não é verdade?
Mabel abriu apressadamente a porta do elevador para deixar sair a menina
Addie. Sabia que deveria ajudá-la a chegar à porta, mas estava demasiado
assustada.
– É ao fundo do corredor à direita, menina Adelaide.
– Sim, muito obrigada. – A menina Addie tirou o saco de sal das mãos de
Mabel e saiu para o patamar escuro. – Não estamos em segurança, sabes.
De maneira nenhuma.
Mas Mabel já fechara a porta e o elevador descia.
– É terrível o que as pessoas podem fazer – repetiu a menina Addie.
Do elevador, Mabel via afastarem-se os pés descalços da idosa, um rasto
de sal e a renda da camisa de dormir que a seguia como espuma do mar.
14 Industrial Workers of the World, em português Trabalhadores Industriais do Mundo, sindicato
adepto da Teoria Sindicalista Revolucionária. (N. da T.)
OPERAÇÃO JERICHO

– Boa noite, senhoras e senhores radiouvintes. Bem-vindos à Hora de


Gerard Whittington, que vos é oferecida pelas Indústrias Marlowe. Sim, as
Indústrias Marlowe, que Hoje Lhe Trazem o Amanhã. Desde as últimas
inovações na aviação e na segurança aos úteis aparelhos domésticos para a
dona de casa, Indústrias Marlowe.
– Continuo sem perceber – disse Evie, por cima do suave ruído do rádio.
Estava deitada no sofá com o livro ilustrado nas mãos. – Nada disto
responde ao mistério das primeiras quatro ofertas. Se o Assassino do
Pentagrama segue de facto os rituais presentes neste Livro dos Irmãos, para
chamar um qualquer Anticristo e provocar o Armagedão, porquê começar
com a quinta oferenda? Não faz sentido.
– O detetive Malloy não tem notícia de assassinatos semelhantes
anteriores à descoberta do corpo de Ruta Badowski – disse Jericho. Estava
sentado à mesa da casa de jantar com as suas notas.
Como sempre, Will passeava de um lado para outro.
– É misterioso. Mas isto sabemos: se o assassino segue as oferendas do
Livro dos Irmãos, e certamente parece que o faz, poderemos talvez impedir
a próxima tentativa...
Evie leu em voz alta a sétima oferenda.
– Que significa isto? Quem são os irmãos mentirosos? – interrogava-se
Will. Foi da janela semicircular até à pequena cozinha e voltou para trás até
Evie pensar que ele deixaria um rasto no tapete persa.
– Talvez estejamos a ver as coisas de modo errado. E se encontrarmos o
templo que ele menciona? Desse modo a polícia pode estar lá para o
impedir – sugeriu Evie. Fez estalar os dedos. – Há o templo egípcio no
Metropolitan Museum of Art.
– Pode referir-se a uma sinagoga, se estiver de algum modo ligado ao
Klan – comentou Jericho.
– E os templos da finança... a bolsa ou os bancos? – exclamou Evie. Era
como se estivesse a jogar um estranho jogo de salão, uma charada, mas com
jogadas mortalmente graves.
– Bom, muito bom – disse Will. Continuaram a discutir, fazendo uma
lista de possíveis significados para o templo mencionado na sétima
oferenda, e Jericho apontou todas elas.
– Vou avisar o Terrence de que o nosso assassino pode atacar num destes
lugares. Agora, Evie, podes ver se no livro de Hale há alguma coisa acerca
de iconografia religiosa? – Ordenou Will do seu posto momentâneo junto
das janelas semicirculares.
Acenderam-se os candeeiros da iluminação pública no Central Park.
Tinham estado atarefados com os livros durante algum tempo e esquecido
completamente o jantar. O estômago de Evie roncou.
– Tito, estou cheia de fome. Não podemos voltar depois a isto? –
implorou Evie.
Will olhou para o relógio e depois para a escuridão do lado de fora das
janelas. Fez uma expressão da mais completa surpresa.
– Oh, deves estar, pois. Porque é que tu e Jericho não vão à sala de jantar?
Eu arranjo uma sanduíche para comer mesmo aqui.
– Eu faço o mesmo – disse Jericho.
– Então vou sozinha – disse Evie. – Jericho, faria bem aos dois sairmos
daqui.
– Ela tem razão, Jericho – disse Will. – Vai lá abaixo um pouco. – Com
relutância, Jericho fechou os livros e seguiu Evie até ao elevador. Ela parou
no sexto andar e abriu a porta.
– Porque parámos aqui?
– De repente lembrei-me de que a Mabel deve estar a morrer de fome! Os
pais estão esta noite num comício e a pobre está sozinha.
– Provavelmente já jantou.
– Oh, não! Eu conheço-a bem. É uma ave noturna. Só come tarde... como
se fosse parisiense. Não leva um minuto.
Evie bateu à porta de Mabel da maneira habitual e a amiga abriu a porta
de par em par, com o seu roupão de banho e já a falar.
– Espero que me tenhas trazido o homem dos meus sonhos… Oh!
Evie aclarou a garganta.
– Boa noite, Mabel. Eu e o Jericho íamos jantar lá abaixo e viemos saber
se querias acompanhar-nos. – Evie lançou os olhos a Jericho que estava a
seu lado.
– Oh! Oh! – disse Mabel, olhando horrorizada para o roupão de banho. –
Deixem-me vestir.
– Olá, Evie – disse o Sr. Rose da mesa da cozinha onde estava sentado a
escrever uma história à máquina. Evie acenou.
Jericho abriu muito os olhos.
– Pensei que tinhas dito que estavam num comício.
– Disse? Devo ter confundido os dias. Que parva sou. Mabesie, minha
querida, apressa-te!
Minutos depois, os três estavam sentados a uma mesa comprida na sala
de jantar debaixo de um lustre que piscava de vez em quando devido a uma
qualquer falha dos fios elétricos. Evie pôs Mabel ao facto dos detalhes dos
assassinatos e daquilo que tinham descoberto por cortesia do Dr. Poblocki.
– O fulano parece estar a levar a cabo um estranho ritual antigo de um
culto desaparecido. É positivamente macabro. Que monstro!
– É o que acontece quando a sociedade é negligente e abusiva para com
as crianças – disse Mabel mexendo nos talheres. – Quando crescem
transformam-se em monstros.
– Que interessante teoria! Mabel, és tão esperta! – disse Evie. – Ela não é
esperta Jericho?
Jericho não levantou os olhos do seu frango e dos acompanhamentos. Do
outro lado da mesa Mabel pronunciou um urgente O que estás tu a fazer?
– Operação Jericho – respondeu Evie também num murmúrio.
– Como sabes que é isso que acontece? – perguntou Jericho.
– O que queres dizer? – perguntou Mabel.
– Como sabes que é a sociedade que faz os monstros?
– Bem, a minha mãe diz que...
– Não perguntei o que pensava a tua mãe – interrompeu Jericho. – Toda a
gente que saiba ler o jornal sabe o que pensa a tua mãe. Perguntei como
sabes que isso acontece.
Mabel procurou as massinhas da sua tigela de sopa. Comera uma hora
antes e não tinha a mínima fome.
– Bem, fui aos bairros da lata com os meus pais. Vi horrores causados
pela pobreza e pela ignorância.
– Então, como justificas as pobres almas torturadas que crescem e
conseguem realizar grandes coisas?
– Há sempre exceções.
– E se isso não for verdade? E se o mal existir? E se sempre existiu e
continuar a existir, uma eterna batalha entre o bem e o mal, sempre e para
sempre.
– Queres dizer como Deus e o Diabo? – Mabel abanou a cabeça. – Não
acredito nisso. Sou ateia. A religião é o ópio do povo.
– Karl Marx – disse Jericho. – Também não é a tua opinião. Acreditas
nisso porque realmente acreditas ou porque o ouviste deles em primeiro
lugar?
– Acredito – respondeu Mabel. – O mal é uma invenção humana. Uma
escolha.
– Jericho acredita que estamos condenados a repetir a nossa existência –
disse Evie fazendo subir e descer as sobrancelhas para mostrar a sua
opinião sobre a teoria. – Nietzsche.
– Parece-me que não sou a única pessoa influenciada pela opinião de
outros – declarou Mabel, fungando.
Evie tentou disfarçar o riso com um ataque de tosse. Olhou para Mabel e
bateu disfarçadamente no nariz.
– Oh, meu Deus! – exclamou com fingida preocupação. – Acho que perdi
a pulseira.
– Não, não perdeste! – exclamou Mabel. Deu um pontapé a Evie por
baixo da mesa e por engano atingiu Jericho.
– Au! – disse ele, olhando para ela.
– Desculpa. – Os olhos de Mabel abriram-se de horror. Olhou para Evie
com a expressão Por favor faz alguma coisa depressa.
– Sabem que mais? Creio que deveríamos comer a tarte – anunciou Evie e
fez sinal ao criado.
Ficaram quase em silêncio, os únicos sons em redor da mesa eram os que
faziam a mastigar e a sorver a sopa. Evie tentou conversar com Mabel, mas
tudo parecia forçado e pouco à vontade. Depois, subiram juntos no elevador
num silêncio incómodo, vendo a seta dourada marcar os andares um a um.
Mabel saltou praticamente do elevador quando a porta se abriu no seu
andar.
– Boa noite – disse sem se voltar e Evie soube que teria de ouvir mais
tarde. A primeira fase da Operação Jericho fora um fracasso completo.
Quando chegaram ao seu andar, viram que o tio Will tinha pregado um
recado na porta: Fui ver o Malloy – WF.
Era próprio do tio Will, desde a brevidade até às iniciais. Evie amachucou
a nota e bateu com a porta do apartamento atrás de si. Olhou para Jericho
que se instalara comodamente na cadeira de Will com o seu livro.
Evie passou para o sofá e ficou a olhá-lo.
– Não precisavas de ser tão indelicado, sabes?
– Não faço a mínima ideia do que estás a falar – resmungou Jericho.
– Da Mabel! Podias ao menos tentar ser bem-educado.
– Não estou interessado em ser bem-educado. É falso. Nietzsche diz...
– Deixa o Nietzsche fora disso. Está morto e pode até ter morrido de má-
educação. – Evie estava furiosa. – Ela é muito inteligente, sabes? Tão
inteligente como tu.
Jericho dignou-se a erguer os olhos do livro.
– Está debaixo da influência dos pais. Pensa aquilo que eles pensam.
Aquilo que disse esta noite acerca de ser a sociedade a fazer os monstros...
era a mãe dela a falar.
– Então estavas a ouvir!
– Precisa de ter as suas opiniões. Precisa de aprender a pensar por ela e
não ser um papagaio daquilo que os outros dizem.
– Queres dizer que não deve fazer como tu que bebes todas as palavras do
tio Will e de Nietzsche? – Evie arrancou-lhe o livro.
– Não faço nada disso – disse Jericho apanhando-o de novo. – E por que
razão estamos a ter esta conversa a respeito da Mabel? Porque é tão
importante para ti?
– Porque... – Evie hesitou. Não podia dizer simplesmente: Porque a
Mabel está caidinha por ti. Porque nos últimos três anos recebi cartas a
falar do seu amor. Porque de cada vez que entras no local em que ela está,
respira fundo e sustém a respiração. – Porque ela é minha amiga. E
ninguém é indelicado para as minhas amigas, percebeste?
Jericho deixou escapar um suspiro de irritação.
– A partir de agora, serei a própria imagem da delicadeza para com a
Mabel.
– Muito obrigada – disse Evie fazendo uma reverência. Jericho ignorou-a.
VIDA E MORTE

Memphis rasgou a página do caderno e amarrotou-a desagradado.


Tentara trabalhar mais uma vez no poema, o poema acerca da mãe e da sua
capa de desgosto, mas nada saía e perguntava a si próprio se estaria
condenado a ser um escritor falhado tal como perdera o dom de curar.
O vento assobiava através das folhas outonais. A mãe morrera na
primavera, as árvores florescendo como meninas transformando-se
timidamente em mulheres. Na primavera, um tempo em que ninguém
deveria morrer. O pai de Memphis acordara-o do sono com os olhos
sombrios.
– Chegou a hora, filho – disse ele e levou o sonolento Memphis pela casa
escura até ao quarto da mãe, onde ardia uma única vela. A mãe estava
deitada, a tiritar debaixo de um fino cobertor.
– Por favor meu filho, tens de o fazer. Tenho de a manter aqui.
O pai, levando-o até à cama. A mãe de Memphis pouco mais era do que
ossos, o cabelo fino como algodão-doce. Por baixo do cobertor, o corpo
estava imóvel. Ela olhou para o teto, seguindo com os olhos qualquer coisa
para além da visão de Memphis. Este tinha catorze anos.
– Vá lá, filho – disse o pai, com a voz entrecortada. – Por favor.
Memphis tinha medo. A mãe parecia tão próxima da morte que ele não
via como poderia impedi-la de morrer. Quisera curá-la antes, mas ela não
deixara.
– Não quero que o meu filho seja responsável por isso – dissera com
firmeza. – Será o que tiver de ser, bom ou mau.
Mas Memphis não queria que a mãe morresse. Pôs as mãos sobre ela. Os
olhos da mãe abriram-se muito e ela tentou abanar a cabeça, baixar-lhe as
mãos, mas estava demasiado fraca.
– Vou ajudá-la, minha mãe.
A mãe abriu os lábios gretados, mas não saiu deles qualquer som.
Memphis sentiu o dom curativo apoderar-se de si e assim ficou, puxado por
correntes que não conseguia controlar, nem entendia, e foram os dois
levados para um mar maior e desconhecido. Nos seus transes curativos,
sentia sempre a presença dos espíritos que o rodeavam. Era uma presença
calma e protetora e nunca tinha medo. O local em que se encontrava era um
cemitério escuro com uma pesada bruma. As sombras não pareciam
benevolentes quando se chegavam a ele. Um homem cinzento e magro de
chapéu alto estava sentado numa pedra com os punhos fechados.
– O que me darias por ela, curandeiro? – perguntou o homem e Memphis
pensou que o próprio vento murmurara a pergunta. O homem apontou com
o queixo para os punhos. – Numa das mãos está a vida; na outra, a morte.
Escolhe, escolhe e talvez a tenhas de volta.
Memphis avançou e aproximou mais o dedo. Direita ou esquerda?
De repente, viu a mãe, magra e fraca, no cemitério.
– Não podes trazer-me de volta, Memphis. Nunca, mas nunca, tentes
trazer de volta o que já partiu!
O homem sorriu-lhe com os dentes semelhantes a pequenos punhais.
– A escolha é dele!
A mãe parecia assustada, mas não recuou.
– Não passa de um rapazinho.
– A escolha. É. Dele.
Memphis concentrou-se de novo nos pulsos do homem. Bateu no direito.
O homem sorriu e abriu a mão. Ouviu um passarinho negro e brilhante
grasnar na sua direção.
A mãe de Memphis abanou a cabeça.
– Oh, meu filho, meu filho. O que fizeste?
Memphis não se lembrava de mais nada depois disso. Segundo Octavia
lhe dissera, adoecera com febres e o pai metera-o na cama. Na manhã
seguinte, acordou e viu Octavia cobrir os espelhos com lençóis. O pai
estava sentado na sua cadeira, com a camisa colada ao corpo do suor.
– Partiu – murmurou e Memphis viu a acusação nos olhos dele: Porque
não pudeste salvá-la? Todo esse dom e não pudeste salvar a única pessoa
importante?
Agora Memphis limpava a terra do cemitério das mãos. Alisou a página e
meteu-a de novo no caderno. Depois dirigiu-se a casa. Quando passou pela
velha mansão na colina, pensou ouvir qualquer coisa. Seria... um assobio?
Não podia ser. Mas sim, lá estava ele, por baixo do rugido do vento. Ou
seria apenas o vento? Memphis abriu o portão e avançou dois passos no
caminho quebrado. Quantas vezes lera histórias de fantasmas e pensara para
consigo: Não subas essas escadas! Afasta-te dessa casa velha! Contudo, ali
estava, no pátio da casa mais velha e ameaçadora que conhecia,
contemplando a ideia de entrar. Memphis apercebeu-se da loucura de se
encontrar junto à janela entaipada de uma casa decrépita e recuou.
Recordou-se imediatamente dos assassinatos ocorridos na cidade. Porque
lhe ocorrera aquela ideia ali mesmo? Ouviu de novo o som de um leve
assobio ecoando nos aposentos vazios da velha casa. Memphis fugiu,
deixando o portão a gemer nos gonzos ferrugentos.
De volta ao Harlem, Memphis caminhou pela Avenida Lenox sentindo,
durante muito tempo, que não andava ao mesmo ritmo das outras pessoas.
Vagueou até se encontrar em frente da imponente casa de menina A’Leila
Walker na Rua 136. Havia vários carros elegantes estacionados e um
mordomo à porta. As luzes estavam acesas e Memphis tinha a certeza de
que, lá dentro, ela estaria a realizar um dos seus famosos salões, com a
visita dos maiores talentos do Harlem – músicos, artistas, escritores,
académicos. Memphis imaginou-se numa dessas festas, a ler a sua poesia
para um público elegante. Porém, o caminho desde o passeio em que se
encontrava até ao salão iluminado, parecia-lhe uma distância impossível de
percorrer, de modo que voltou as costas. Pensou em ir ao Hotsy Totsy ou ao
Túmulo dos Anjos Caídos para ver o que lá se passava. Havia sempre uma
festa algures. Preferiu, no entanto, ir para casa com a recordação da mãe
fresca na memória. O cego Bill Johnson estava sentado no degrau da
entrada de um prédio, a tocar viola em surdina, embora não estivesse
ninguém a ouvi-lo. Memphis tentou passar disfarçadamente por ele.
– Quem está aí? Que quer passar pelo velho cego Bill sem dizer nada?
– Sou o Memphis Campbell, senhor Johnson.
A boca de Bill descontraiu-se num sorriso cheio de dentes.
– Bom dia, senhor Campbell. Estou extremamente aliviado de que seja o
senhor e não um lou-lou qualquer que me quisesse vir buscar.
– O que é um lou-lou?
– É uma palavra em cajun antigo. Como é que se diz? Um papão.
– Não senhor, não é um papão. Sou só eu.
O cego Bill apertou os lábios como se tivesse bebido um shot de gim
falsificado misturado com cuspo.
– Esta noite não é boa para andar por aí. Não o sente na nuca? O fifolet15?
Como quando paira o gás do pântano. Os espíritos do mal andam atrás de
nós.
Entre a história da casa e as superstições do cego Bill, Memphis
começava a sentir-se assustado. Não queria falar de fantasmas nem de
duendes.
– A minha tia diz que eu sou insensível como uma pedra. Seria a última
pessoa a sentir os espíritos que andam por aí.
O cego Bill voltou o rosto para Memphis quase como se conseguisse vê-
lo ali mesmo.
– Ouvi hoje uma coisa muito interessante na loja do Floyd. Ouvi dizer
que, dantes, tinha poderes curativos.
– Isso foi há muito tempo.
– Ainda tem o espírito curativo em si? Podia pôr as mãos no velho cego
Bill e devolver-me a vista?
– Já não tenho esse dom. – Memphis sentiu-se subitamente muito
cansado, demasiado cansado para guardar as suas palavras. Estas saíram em
catadupa na direção do velho. – Deixei de o ter quando a minha mãe... a
minha mãe estava muito doente. E eu pus as mãos sobre ela, e... – Memphis
sentia a garganta a doer. Engoliu para se livrar daquele nó. – Morreu.
Morreu ali, debaixo das minhas mãos. E o dom que eu tinha morreu com
ela.
– É uma história muito triste, senhor Campbell – disse o cego, depois de
uma pausa.
As lágrimas corriam pelo nariz de Memphis que se sentia satisfeito
porque o cego não podia vê-lo. Não disse mais nada.
O cego Bill, acenou afirmativamente, como se estivesse imerso numa
conversa particular.
– Mas o senhor não fez nada à sua mãe, a não ser aliviar-lhe a dor. Está a
ouvir? Por vezes é uma bênção – disse em voz baixa e Memphis ficou grato
pela bondade do velho.
– Vou dar-lhe uma coisa.
Bill procurou no bolso e retirou dele rebuçados. Buscou a palma da mão
de Memphis e meteu-os nela com os seus dedos secos e ásperos.
– Tome. Guarde-os. Para o caso de ter de pedir proteção ao Papa Legba.
– Papa quê?
– Papa Legba. É o guarda portão do Vilokan... o reino dos espíritos. Está
na encruzilhada. Se se perder ele ajuda-o a encontrar o caminho. Basta
deixar-lhe uma coisa doce.
A tia Octavia teria um ataque se ouvisse Bill falar assim. Uma vez,
obrigara-os a atravessar a rua para evitarem uma caixa de fósforos quase
escondida de uma loja cujas montras estavam cobertas com reposteiros
vermelhos e pretos, velas e figurinhas de santos e caras africanas. Um
pequeno cartaz anunciava: RETIRAM-SE MALDIÇÕES E OBSTÁCULOS À
FELICIDADE.
– Não se aproximem daquele vodu – dissera, quando Isaiah exigira saber
por que razão se afastavam um quarteirão do caminho. Ela recitou uma
oração em surdina.
Memphis segurou nos rebuçados sem saber o que fazer. Pareciam-lhe
estranhamente pesados na mão.
– A minha tia diz que apenas devemos rezar a Jesus.
O cego Bill resmungou e cuspiu.
– Acha que o deus dos brancos o vai ajudar? Pensa que está do nosso
lado?
– Não me parece que qualquer deus esteja do nosso lado.
Memphis preparou-se para uma repreensão. Mas o velho acenou com ar
entendido, os cantos da boca estremecendo num sorriso de amarga
concordância.
– Pode ter sido a coisa mais honesta que já disse senhor Campbell.
Melhor do que esse amuleto e essa brilhantina que usa no cabelo. – Soltou
uma gargalhada, que mais parecia um ofegante ataque de tosse, e deu uma
palmada na perna. A conversa, os rebuçados, a anterior aventura na casa,
pareceram tão completamente ridículas a Memphis que ele não poderia
deixar de o imitar. Os dois dobraram-se de riso como tolos.
– Oh, que graça! – exclamou o cego Bill batendo no peito. – Mas agora o
mundo é assim mesmo. A sorte transforma-se em azar. O azar transforma-se
em sorte. Não passa de um enorme jogo entre este mundo e o outro, e
somos nós os dados lançados. Vá para casa, senhor Campbell. Vá
descansar. Viva para lutar num novo dia. Tem muito tempo para se
lamentar. Saia e divirta-se enquanto ainda é novo.
– É o que vou fazer, sim, senhor. – Mudara de ideias acerca de ir para
casa. O cego Bill tinha razão. Memphis era jovem e a noite era uma criança.
Assim, mudou de rumo e dirigiu-se ao Hotsy Totsy.
Bill ouviu afastarem-se os passos de Memphis Campbell. Queria dizer a
Memphis que era um felizardo por ter perdido o dom naquela altura. Que
felicidade. Como deveria estar agradecido por não ter sido descoberto por
quem não devia. Bill meteu a mão no bolso à procura de dinheiro para ir
comer qualquer coisa. Esfregou as moedas entre os dedos. Não era muito.
Se ao menos conseguisse deixar de jogar. Mas era uma maldição; não
conseguia afastar-se do risco e da sorte, fosse às cartas, ao jogo dos
números, aos dados, às lutas de galos ou às corridas de cavalos. Mas
continuava a ver aquela casa nos seus sonhos, com as nuvens e a
encruzilhada. Ainda não descobrira a solução, mas haveria de o fazer. Havia
um número do lado da caixa do correio da casa. Se ao menos conseguisse
vê-lo, tinha a certeza de que ele seria a chave para a sorte grande. E assim
que tivesse o seu dinheiro poderia começar a vingar-se.
15 Luz misteriosa que por vezes é vista por cima dos pântanos. Segundo a superstição cajun,
poucos dos que a seguem regressam. (N. da T.)
A CASA DA COLINA

A casa estava situada na colina batida pelo vento, como uma sentinela. O
exterior coberto de hera que se espalhava como uma mancha. As janelas
estavam fechadas e pregadas. As portas entalhadas, de cerejeira, eram
castanhas. Se alguém conseguisse espreitar para dentro teria notado as teias
pendendo das portas e as aranhas ocultando nas frinchas as presas
envolvidas nos seus fios. As tábuas tortas curvavam-se perigosamente em
determinados pontos.
A casa fora magnífica nos seus tempos. Albergara festejos e bailes. Aos
domingos, as carruagens passavam por lá para admirar a sua altiva
presença, um símbolo de tudo o que era certo e bom e da esperança do país.
A casa era um sonho materializado. O homem que a construíra, Jacob
Knowles, fizera fortuna com o aço, o aço que fora utilizado para construir a
cidade. Apenas uma filha sua e de sua mulher sobrevivera. Chamava-se Ida
e era a maior alegria de ambos. Ida era pequena e atreita a constipações e,
por essa razão, os seus ansiosos pais satisfaziam todos os caprichos da
menina. Tinha aulas de piano, dava passeios de pónei e era dona de um
pequeno spaniel chamado Chester. Quando Ida organizava chás na relva, as
criadas ficavam por perto para servir as bonecas. Eram muitos os dias em
que fingia ser uma princesa árabe vigiando o seu reino. Subia as escadas até
ao último andar da casa, um sótão onde havia um quarto com um pequeno
terraço. Daí viu o fumo dos incêndios da Revolta de 1863, imaginando que
olhava para tocas de distantes dragões e não para as fervilhantes frustrações
de uma guerra de classes e racial, que se transformava numa brutal
violência de multidões. Durante a Guerra Civil, Ida transformou-se numa
jovem mulher. Sonhava casar-se com um bonito oficial para se
transformarem no senhor e senhora da imponente casa. Meses depois do
final da Guerra Civil os soldados da União juntaram-se ao próprio general
Grant para uma festa na casa e espalharam-se pelos relvados para o fogo de
artifício, enquanto os acordes de uma valsa ecoavam ao longo das vigas do
teto. Mas Ida estava constipada e ficou confinada à sua cama com uma
cataplasma de mostarda no peito, soluçando de infelicidade, embora a mãe
lhe tivesse dado umas palmadinhas na face e lhe dissesse que não se
preocupasse, que haveria outro baile e um jovem à espera dela e, além do
mais, que ainda não estavam preparados para que a sua única filha, a sua
querida Ida, os deixasse tão cedo.
Mas foi a mãe de Ida que teve de os deixar. Um ano após o baile, a Sr.ª
Knowles adoeceu de disenteria e foi enterrada uma semana depois. Um ano
mais tarde, Jacob Knowles morreu com uma súbita hemorragia cerebral. E
Ida, de vinte e dois anos, teve de manter Knowles’ End. Governar uma casa
era muito diferente de brincar às princesas e embora um primo afastado a
avisasse que deveria ser prudente com os seus gastos, ela não seguiu este
conselho. Dilacerada pelo desgosto de ter perdido os pais, Ida procurou
consolo no novo espiritualismo. Abriu Knowles’ End aos teosofistas,
cartomantes e médiuns espíritas. A mais dotada destes médiuns era uma
viúva rica chamada Mary White, que tinha uma misteriosa capacidade para
pôr Ida em comunicação com os seus parentes no outro mundo. Não havia
pancadas na mesa, nem truques baratos de levitação, como tantos tentavam.
Não. Mary White tinha um dom genuíno e uma atitude afetuosa, pelo que
Mary e Ida se tornaram muito próximas, chamando Ida «irmã» à amiga.
Mais uma vez, a casa encheu-se de atividade e Knowles’ End tornou-se
um local de reuniões espirituais, cartomancia, sessões de espiritismo e todo
o tipo de encontros esotéricos e ocultistas. Ida tinha a certeza de que era
apenas uma questão de tempo até a antiga glória de Knowles’ End ser
restaurada. Mas Mary nunca lhe dissera que os espíritos o garantiam.
Mary tinha um companheiro nestas tentativas, um homem extremamente
carismático com olhos penetrantes, um tal Sr. Hobbes. Era, garantia ela, um
profeta. Um homem santo.
É certo que passava muitas horas sozinho na biblioteca a ler e, por vezes,
durante as sessões de espiritismo, caía em estranhos transes e dizia palavras
que Ida não compreendia – prova, afirmava Mary, da sua ligação com o
reino dos espíritos.
Mas as despesas de Ida eram muitas – os médiuns espíritas são
dispendiosos – e a fortuna dos Knowles diminuiu rapidamente. Ida seria
socialmente humilhada se as suas dívidas fossem conhecidas. Foi Mary que
se ofereceu para comprar Knowles’ End e aceitar Ida como hóspede para
lhe poupar a reputação. Mary concordou em deixar ficar Ida no seu quarto
favorito, o quarto do sótão com vista para a cidade, e disse-lhe que não se
preocupasse, pois pagaria os impostos em atraso e o Sr. Hobbes ocupar-se-
ia da difícil tarefa de recuperar Knowles’ End, que entretanto se degradara,
e de a tornar de novo bela.
E foi o que fez. Mas foi uma confusão! Uma equipa trabalhava durante
uma semana, para ser sumariamente despedida e substituída por outra que
duraria talvez cinco ou seis dias antes que o Sr. Hobbes também os
mandasse embora. Por fim, ele próprio deitou mãos à obra trabalhando na
velha cave, para construir uma despensa para enlatados e provisões – ou
pelo menos foi o que disse, pois Ida não tinha autorização de ir lá abaixo.
– É demasiado perigoso – dizia-lhe com um sorriso que não lhe chegava
aos olhos. (Os seus olhos, frios e hipnotizadores.) – Não quereria que
encontrasse a morte lá em baixo.
Houve outras alterações peculiares na casa. Portas que abriam para lado
nenhum, rosetas decorativas que emolduravam buracos nas paredes de onde
saía um estranho fumo que o Sr. Hobbes insistia ser benéfico para os
pulmões e necessário para o importante trabalho espiritual. Uma longa
conduta inclinada para a roupa suja que a Sr.ª White garantia ser uma ajuda
para a pobre lavadeira. Estavam reduzidos a três criados – uma lavadeira,
uma criada de fora e um criado que era também motorista. Era uma
desgraça e Ida tinha esperança que ninguém descobrisse como as coisas
estavam mal. Mas depois, Mary sorria e dizia-lhe que tinha sido visitada
pela forma espectral do pai de Ida com um molho de rosmaninho na mão,
símbolo da recordação, sinal seguro de que cuidava de todos, e Ida sentia-se
grata por este pequeno conforto. Para tratar o estado nervoso de Ida, Mary
oferecia-lhe vinho doce que, por vezes, provocava nela estranhos sonhos de
fogo e destruição e visões fantasmagóricas de homens e mulheres de rostos
sérios.
As coisas começaram a azedar. Realizavam-se estranhas reuniões a altas
horas da noite. Uma ou duas vezes por mês, Ida ouvia música e cânticos
vindos lá debaixo. Havia gente que ia e vinha.
– O que fazem nessas reuniões? – perguntou Ida ansiosa, uma noite
enquanto jantavam. Mal tocou na comida. A carne assada estava demasiado
crua para o seu gosto.
– Porque não se junta a nós, minha querida? – sugeriu a Sr.ª White.
– A Babilónia, essa grande cidade, caiu. É tempo de uma limpeza. De um
renascimento. Não é da mesma opinião, menina Knowles? – perguntou o Sr.
Hobbes a sorrir. Tinha uns olhos tão azuis que Ida se sentia desconcertada.
Por um momento, ao olhá-lo, perguntou a si própria como seria dançar com
o Sr. Hobbes. Sentir os seus beijos. As suas carícias. E assim que o pensou,
foi vencida pelo asco.
– Certamente que não sei de que está a falar – disse, com as mãos a
tremer. O sangue da carne assada formava no seu prato uma pequena poça
enjoativa. – Eu... eu não me sinto bem. Se me desculparem, vou para a
cama.
Nessa noite, ouviu sons estranhos vindos do interior da casa, murmúrios e
ruídos bestiais. Sentia-se demasiado assustada para sair do quarto. Ficou
acordada, e tremeu até de manhã, debaixo dos cobertores.
Num armário do salão, o Sr. Hobbes guardava um livro grande, forrado a
couro, semelhante a uma Bíblia. Mas quando Ida tentou ir buscá-lo,
descobriu que o armário estava fechado. O seu próprio armário, na sua
própria casa, fechado, para que ela não pudesse ter-lhe acesso! Trémula de
raiva, enfrentou a Sr.ª White, pois já não a considerava como a sua afetuosa
irmã Mary.
– Não admito, senhora White, não admito – disse bruscamente.
– Já não está em sua casa, minha querida – respondeu a Sr.ª White e o seu
sorriso era cruel.
Foi numa terça-feira que Ida descobriu um monte de trapos
ensanguentados que o Sr. Hobbes lhe garantiu, de um modo tão delicado
como correto, pertencerem à lavadeira, devido às suas regras. (Coitada, foi
um embaraço para ela. Claro que lhe demos roupa limpa e mandámo-la
para casa descansar. Coitada, pobrezinha. Receio que, por ter ficado tão
envergonhada, já não queira voltar cá para casa.) Ida escreveu uma carta
desesperada ao primo, em Boston, que enviou as autoridades, mas, quando
estas chegaram, Ida estava num torpor tal, que a Sr.ª White lhes disse que
ela não se encontrava bem, que estava a ser tratada e que esperava que o
esforço de descer a escada para responder às perguntas não lhe pusesse a
saúde em perigo. As autoridades recuaram, resmungando desculpas.
A última criada, Emily, saiu pela calada da noite, sem sequer se despedir.
Nem esperou para receber o salário.
Ida estava farta. Deixou de beber o vinho. O seu corpo, embora
enfraquecido, tinha força suficiente para descer as escadas, pois tencionava
descobrir o que se passava na sua própria casa. Sim! A sua própria casa!
Fora construída pelo pai, para a sua família! Era uma Knowles, não um
desses novos-ricos cheios de dinheiro e prosápia: a Sr.ª White, essa charlatã,
saíra para organizar uma sessão de espiritismo em casa de uma pobre alma
com mais dinheiro que juízo. E o Sr. Hobbes, o Sr. Hobbes com os seus
olhos frios e ar arrogante, as suas mentiras e segredos. Que homem
malvado! Ida precisava de saber o que se passava na sua própria casa e
começaria por ir ver a cave proibida.
Começou a descer a escada alta e estreita para o espaço húmido e escuro.
Cheirava a terra e a mais qualquer coisa. Ida sentiu-se nauseada com o mau
cheiro. Daria uma olhadela em volta e, com sorte, encontraria o que
precisava para ir às autoridades e expulsar da sua casa aquela gente
horrível. Depois, procuraria um hóspede adequado, ou até – atrever-se-ia a
pensar? – um marido. Um nobre cavalheiro com quem partilharia a sua
vida. Juntos devolveriam à casa a sua antiga imponência. Festas
frequentadas por gente decente, gente importante e de classe. Knowles’ End
reinaria de novo.
A mão de Ida tremeu na pega da lanterna. A luz cintilou nas paredes e nos
cantos. Ida viera em busca de informação e obtivera-a. Sabia que, sem
sombra de dúvida, enfrentava um mal terrível. Não houve qualquer grito
quando a vela estremeceu e os murmúrios começaram. E exatamente no
momento em que Ida soltou o grito que retivera na garganta, a vela apagou-
se e ela mergulhou na escuridão.
O HOTSY TOTSY

Fora um dia excecionalmente aborrecido; a chuva não permitira que Evie


saísse do museu, onde se entreteve a alterar a ordem dos livros segundo
uma taxonomia que só ela entendia. Quando pensava que iria enlouquecer a
escutar a chuva arrastar-se de enfado, alegrou-se porque se recordou que –
se sobrevivesse a essa tarde – desfrutaria daquilo que prometia ser uma
noite emocionante com os amigos.
Por fim chegou a noite. Evie tomara banho, perfumara-se e experimentara
todos os vestidos que tinha no armário antes de se decidir por um prateado
com pequenas missangas que cintilava no seu corpo como chuva. Um longo
colar de pérolas dava-lhe duas voltas ao pescoço e tinha nos pés um par de
sapatos de cetim cinzento de presilhas, com saltos pretos e curvos e fivelas
redondas de pedrarias. Pintou os lábios de vermelho-vivo, acentuou os
olhos a negro e vestiu por cima um casaco preto de veludo com uma gola de
pele. Meteu vinte dólares das suas magras reservas na bolsinha de malha de
prata, perfumou-se com um jacto do seu atomizador e entrou a toda a pressa
na sala. Jericho estava sentado à mesa da cozinha, a pintar miniaturas para
um modelo de uma cena de batalha. O tio Will estava sentado à sua
desarrumada secretária junto às janelas semicirculares, rodeado de montes
de papéis e livros.
Ao ouvir Evie, ergueu a cabeça por um segundo, observou-a e voltou ao
trabalho.
– Estás toda elegante.
Evie calçou as suas luvas de renda, sem dedos e até ao cotovelo.
– Vou dançar com a Theta e o Henry ao clube noturno mais giro que há.
– Esta noite acho que não – disse Will.
Evie parou a meio de calçar a luva.
– Mas Tito, a Theta está à minha espera. Se eu não for, será po-si-ti-va-
men-te um insulto. Nunca mais me convidará seja para o que for!
– Não ouviste as notícias de que há um assassino brutal à solta pelas ruas
de Manhattan.
– Mas Tito…
– Lamento, Evie, não é seguro. Haverá outras ocasiões. Tenho a certeza
de que a Athena compreenderá.
– Chama-se Theta. E não, não compreenderá. – Evie sentiu as lágrimas a
ameaçarem. Passara tempos sem fim a pintar os olhos e pestanejou para
evitar que ficassem esborratados. – Por favor, Tito.
– Lamento, mas a minha decisão é definitiva. – Will inclinou a cabeça
sobre o livro, fim do julgamento, sentença rezada.
Na rádio, o locutor exaltava os méritos do Sistema Dental Parker:
«Porque a sua saúde dental é demasiado importante para ser deixada ao
acaso.»
Jericho aclarou a garganta.
– Se quiseres podemos jogar às cartas. Ou ouvir telefonia. Às nove horas
começa um programa novo.
– Estupendo – disse Evie, tristemente, voltando a correr para o quarto.
Bateu com a porta e atirou-se para cima da cama. A sua nova tiara, de
pérolas falsas, caiu-lhe para as sobrancelhas e teve de a empurrar para trás.
Porque seria que, logo naquela noite, o tio decidira agir como... como um
pai? Não podiam viver com medo atrás das paredes do Bennington, sem
nunca se aventurarem para além do museu. Evie deitou-se de costas, a olhar
pela janela, para o mundo para lá da saída de incêndio.
A saída de incêndio.
Evie sentou-se muito direita.
Retocou com os dedos a pintura dos olhos e calçou de novo as luvas.
Abriu uma greta da porta.
– Vou retirar-me para dormir – anunciou. Abriu cuidadosamente a janela
e saiu pela saída de incêndio. Um das poucas verdades que Evie aprendera
na sua curta vida era o perdão ser mais fácil de conseguir do que uma
autorização. Não tencionava pedir nem uma coisa nem outra.
Vários andares abaixo, Mabel gritou quando viu Evie entrar-lhe no quarto
pela janela, dizendo.
– Não grites, sou só eu.
– Pensei que fosse o Assassino do Pentagrama, que me viesse cortar o
pescoço.
– Tu e o meu Tito. Desculpa desiludir-te. – Evie alisou o vestido e
compô-lo.
– Mabel, minha querida, o que se passa? – perguntou a Sr.ª Rose do lado
de lá da porta.
– Nada mãe! Pensei que tinha visto uma aranha, mas enganei-me! –
gritou Mabel. – Não deveria ter sido eu a ir ter contigo lá acima? –
murmurou Evie.
– Mudança de planos. O Tito proibiu-me de sair. Juro que se está a portar
como se fosse meu pai! – Evie examinou o simples vestido branco de
organza de Mabel.
– Credo, Bolacha! Onde deixaste as ovelhas?
– O que tem de mal?
– Precisas de batom.
– Não preciso de batom.
Evie encolheu os ombros.
– Como queiras, Mabesie. Não posso lutar contra duas frentes esta noite.
Evie e Mabel seguiram em bicos de pés até à porta. Os Rose realizavam
outra das suas reuniões políticas em casa – qualquer coisa acerca do apelo
de Sacco e Vanzetti, os anarquistas.
– Olá, Evangeline – exclamou a Sr.ª Rose.
– Olá, senhora Rose.
– É muito simpático da parte do teu tio levar-vos a um sarau de poesia. É
importante cuidar da educação em vez de perder tempo em passatempos
burgueses e imorais, como dançar em clubes noturnos.
Evie semicerrou os olhos na direção de Mabel e esforçou-se por manter o
sorriso nos lábios.
– Temos de ir, mãe. Não queremos chegar atrasadas ao sarau – disse
Mabel, arrastando Evie.
– Parece-me que sou a única fugitiva esta noite – disse Evie, enquanto
corriam para o elevador.
Mabel sorriu.
– Aposto que não.

– E depois eu disse-lhe: «O prazer é todo seu.» Disse-o exatamente assim.


Fiquei com a última palavra – declarou Evie, relatando a primeira visita de
Sam Lloyd ao museu.
– Claro que sim! – Theta desatou a rir. – Não deverias deixar que um tipo
como esse Sam te impressionasse.
– Eu disse que ele me impressionou?
– Não. Estou a ver que soubeste muito bem ver-te livre dele – disse Theta
e Henry sorriu trocista.
Os quatro tomaram um táxi para o Harlem e Theta teve a simpatia de o
pagar. Iam a caminho de um clube noturno chamado Hotsy Totsy, que
diziam ser o suprassumo.
– Terminou. Acabou. Pu-lo a andar a grande velocidade – disse Evie
fazendo um gesto com a mão para maior efeito.
– Ainda bem, porque já chegámos e de certeza que a senha não é Sam
nem Lloyd.
Henry bateu à porta com um ritmo rápido – bum-da-BUM-bum – e pouco
depois, abriu-se uma greta da porta. Um homem com um smoking branco e
um laço sorriu.
– Boas noites, meus senhores. Isto é uma residência particular.
– Somos amigos do Sultão do Sião – disse Henry.
– Qual é a flor preferida do sultão?
– A edelweiss que é bem bonita.
Um instante depois a porta abria-se de par em par.
– Por aqui.
O homem de smoking conduziu-os a uma cozinha movimentada e cheia
de vapor e aí desceram uma escada de caracol até um túnel.
– Faz ligação com o prédio do lado – murmurou Henry a Evie e a Mabel.
– Desse modo se houver uma rusga ao clube, grande parte das bebidas estão
a salvo algures neste prédio.
O homem do smoking abriu outra porta e conduziu-os a uma sala
decorada como o palácio do sultão. Fetos enormes derramavam-se sobre a
borda de gigantescos vasos dourados. O teto estava coberto com painéis de
seda cor de champanhe e as paredes pintadas de vermelho-escuro. Sobre as
mesas havia toalhas de damasco branco e pequenos candeeiros de âmbar.
No palco, a orquestra tocava um número em ritmo de jazz com as jovens
contorcendo-se na pista enquanto os homens gritavam «Go, go GO!» e
«Get hot!», clientes bem-vestidos, de cocktail na mão, saltitavam de mesa
em mesa e acenavam às meninas que vendiam cigarros fazendo a ronda
para oferecer Lucky Strikes, Camels, Chesterfields e Old Golds em
tabuleiros metálicos. Um enorme cartaz prometia uma festa especial para
observação do Cometa de Salomão, mas Evie tentou não pensar no
significado mais sinistro que o cometa poderia ter para um louco.
– Isto é o suco da barbatana – disse Evie observando tudo. Era aquilo que
esperara. Clubes como aquele não existiam fora de Manhattan. – E a
orquestra é qualquer coisa!
Henry acenou afirmativamente.
– São os melhores. Já uma vez os ouvi tocar no Cotton Club. Mas não
gosto de lá ir porque fazem discriminação de cor. – Vendo a confusão de
Evie, Henry explicou: – No Cotton Club a orquestra pode tocar para os
brancos. Mas os músicos não têm licença de se sentar às mesas lá à frente
nem de pedir uma bebida ou de se misturarem com as outras pessoas. O
Papa Charles King é o gerente aqui do estabelecimento. Serve toda a gente.
Num canto, uma mulher branca estava sentada a conversar com um
homem negro. Tal nunca poderia acontecer no Ohio, e Evie gostaria de
saber o que teriam os pais dito acerca daquilo. Tinha a certeza que nada de
muito abonatório.
Theta deu uma cotovelada a Henry.
– Está ali o Jimmy D’Angelo. Vai dar-lhe graxa para que te deixe fazer
alguma coisa.
Henry pediu licença e dirigiu-se a uma mesa perto do palco, onde um
homem de chapéu alto e monóculo estava sentado a fumar um charuto, com
um papagaio verde-vivo empoleirado no ombro do smoking.
– O Henry tem um talento enorme, mas o Flo… o senhor Ziegfeld... não
quer ver – disse Theta. – O Henry vendeu algumas canções ao Tin Pan
Alley, o suficiente para ir vivendo e pouco mais. Só musiquinhas
engraçadas, mas as boas canções ninguém quer. Pobre rapaz.
– Gostaria de as ouvir – disse Mabel.
– Espero que consigas. O miúdo precisa de um golpe de sorte. – Theta
pôs o abrigo por cima de um ombro. – Hora do espetáculo, bonecas. Olhem
aqui para isto, como se fossem demasiado boas para este lixo. Sigam-me.
Theta serpenteou por entre as mesas, sem se dignar a olhar para quem lá
estava. As cabeças voltavam-se enquanto Theta, Evie e Mabel seguiam o
anfitrião por entre as mesas cheias. Eram meninas elegantes envergando os
vestidos mais modernos, e atraíam olhares apreciativos. Havia quem
reconhecesse Theta das Follies.
– Ser famoso deve ser uma coisa do outro mundo – declarou Evie.
Theta encolheu os ombros.
– Pensam que me conhecem, mas não conhecem.
O anfitrião sentou-as a uma mesa de canto e entregou-lhes as ementas
impressas num pesado papel bege. Os olhos de Mabel abriram-se
desmesuradamente.
– Não posso acreditar nestes preços!
– Acredita – disse Theta. – Trata de pedir o que gostas porque vais ter de
ficar com isso durante toda a noite.
– A minha mãe teria um fanico com estes excessos – disse Mabel com ar
culpado.
– A tua mãe não está cá.
– Graças a Deus – murmurou Evie.
Um criado apareceu com uma garrafa de champanhe e um balde de prata
com gelo.
– Desculpe, amigo. Não encomendámos espumante – disse Theta.
– Para as senhoras… de um cavalheiro admirador – confirmou o criado.
– Qual deles? – perguntou Evie, esticando o pescoço.
– O senhor Samson, da mesa quinze – disse o criado, indicando-o
delicadamente com um aceno de cabeça.
– Caramba – disse Theta.
– Que se passa? – Evie não via bem no escuro.
– Estão a ver aquele fulano ali em frente? Não olhem muito agora.
As raparigas espreitaram por cima das ementas. Quatro mesas depois
estava sentado um homem forte com um bigode farfalhudo e o ar
complacente de quem tem êxito na Wall Street.
– Aquele que se parece com um leão-marinho sem jardim zoológico? –
perguntou Evie.
– Esse mesmo. É um daqueles tipos que se quer sentir jovem e atraente.
Provavelmente tem mulher e três miúdos em Bedford e pensa que vamos
ajudá-lo a distrair-se. Oh! Está a olhar para nós. Sorriam, meninas!
Evie mostrou os dentes e o homem ergueu o copo. As jovens ergueram os
seus. O homem soprou-lhes um beijo e acenou para que se juntassem a ele.
– E agora? – perguntou Evie ainda através do seu sorriso.
– Agora chegou a hora do espetáculo. – Theta entornou o copo de
champanhe e soltou um arroto enorme que provocou olhares de desagrado
das pessoas que estavam ali perto. – Nada como um bom copo de água
gasosa para ajudar os interiores de uma mulher! – disse em voz alta, dando
uma palmada no estômago.
Do outro lado da pista, o homem imobilizou o copo e desviou
rapidamente o olhar.
– Ficou escandalizado – disse Evie, soltando uma gargalhada.
– Agora já pode voltar para Bedford, para a mulher, e nós podemos
saborear em paz o sumo de uva.
– Como sabes fazer estas coisas?
– Tive de aprender à minha custa – declarou Theta. Ela e Evie brindaram,
bebendo o champanhe do homem.
Mabel fez sinal ao criado.
– Pode arranjar-me um Sloe Gin Fizz sem gim?
– Para que serve isso, menina? – perguntou o criado.
– Para amanhã de manhã – disse Mabel.
– Como queira, menina.
– Como se está o Henry a sair? – perguntou Theta, esticando o pescoço.
Henry estava recostado numa cadeira a várias mesas de distância, com uma
expressão de enfado elegante, enquanto escutava o homem do papagaio.
– Ele não é teu irmão de verdade, pois não? – perguntou Evie.
Theta esboçou um sorriso tímido.
– Já percebeste? As pessoas vão falar.
Theta era tão natural que Evie levou um segundo a perceber que a amiga
estava a brincar.
– Como se conheceram?
– Na rua. Eu estava cheia de fome e ele deu-me parte da sua sanduíche. É
um verdadeiro amigo.
– Se não te ofendes com a pergunta, porque é que vocês os dois...?
Theta semicerrou os olhos e soprou uma fina espiral de fumo. Evie teve a
impressão de que ela meditava na melhor resposta a dar.
– Não nos encantámos um com outro. Pode não ser meu irmão de
verdade, mas é exatamente como se fosse. Faria tudo por ele.
Henry dirigiu-se lentamente para elas e Theta arranjou-lhe espaço à mesa.
– O que foi que perdi? – perguntou. – Digam-me lá de onde veio este
champanhe.
– Do leão-marinho solitário – explicou Evie a rir. Sentia-se já um pouco
embriagada, mais da emoção e do otimismo do que do champanhe. Gostava
de Theta e de Henry. Eram tão sofisticados, diferentes de todas as pessoas
que conhecera no local onde vivia. Esperava que também gostassem dela.
– Chegaste mesmo a tempo. Íamos fazer um brinde – disse Theta.
Henry ergueu o copo.
– A quê?
– A nós. Ao futuro – respondeu ela.
– Ao futuro – repetiram Henry, Evie e Mabel.
A orquestra saltitou para um trecho quente e sensual e Evie encostou a
cabeça ao ombro de Theta.
– Não te parece que esta noite qualquer coisa poderia acontecer?
– Estamos em Manhattan. Qualquer coisa pode acontecer a qualquer
momento.
– Mas, e se conhecesses esta noite o homem dos teus sonhos?
Theta lançou outra espiral de fumo do cigarro.
– Não estou interessada, miúda. O amor é uma confusão. Deixa que as
outras raparigas se transformem numas tolas de olhos em alvo. Eu tenho
outros planos.
– Que planos? – perguntou Mabel. Um criado trouxera patê e tostas, que
ela comia deliciada.
– Cinema. É esse o futuro. Ouvi dizer que iam começar a fazer filmes
sonoros.
Evie soltou uma gargalhada.
– Filmes sonoros? Que horror!
– Vai ser estupendo. Quando acabar o contrato, vou para a Califórnia com
o Henry. Não é, Henry?
– O que tu quiseres, beldade.
– Ouvi dizer que têm limoeiros e que se podem apanhar logo ali os limões
para fazer limonada. Vamos arranjar uma casa com um limoeiro no quintal.
Talvez até arranje um cão. Sempre quis ter um cão.
Evie teve vontade de rir. Mas Theta estava tão séria, com um ar até um
pouco triste, que levou a bebida à boca.
– Parece-me giro – tocou no copo de Theta. – Aos limoeiros e aos cães!
– Aos limoeiros e aos cães – disse Mabel com a boca cheia.
Evie inclinou-se para diante, apoiando o queixo na mão.
– E tu Henry?
– Eu? Eu vou escrever canções para os filmes. Canções de verdade. Não
as lamechices, de que Flo Ziegfeld gosta – respondeu Henry.
– Às verdadeiras canções! – brindou Evie. – Mabsie?
– Eu vou ajudar os pobres. Mas primeiro vou comer isto tudo – declarou
Mabel, extasiada. – Divinal.
Theta inclinou a cabeça.
– E tu Evil?
Evie fez girar o copo lentamente sobre a mesa. O que poderia dizer? Vou
deixar de ter pesadelos com o meu irmão que morreu. Vou querer que o
passado deixe de me assombrar como um fantasma vingativo. Vou
encontrar o meu lugar no mundo e mostrar a todos aquilo de que sou feita.
Sentira-o desde que saíra do comboio em Penn Station, uma sensação de
que era ali que pertencia, de que Manhattan era a sua verdadeira casa.
– Provavelmente vai parecer-vos uma tolice…
Henry soltou uma gargalhada ruidosa e dramática, depois encolheu os
ombros.
– Só queria acabar com isto, minha querida.
Evie sorriu. Oh, gostava muito deles!
– Desde que cheguei aqui, que tenho uma sensação idiota de destino... de
que o que tem de acontecer, de que seja quem for que eu tenha de ser, está à
minha espera ao virar da esquina. Quero estar preparada. Quero encontrar
tudo isso. – Evie ergueu o copo.
– Brindemos ao que nos espera ao voltar da esquina.
– Só espero que não seja um carro que venha contra nós – gracejou
Mabel.
– Às boas coisas que não conseguimos ver – repetiu Theta.
– Ao destino de Evie – disse Henry tocando satisfeito no copo dos
amigos.
Evie fez uma pausa com o copo no ar.
– Não posso acreditar. Com os diabos!
– Que se passa contigo? – perguntou Theta.
Evie bateu com o copo na toalha.
– Theta, fica com a minha bolsa. Tem vinte dólares. Podes precisar para
me pagar a fiança.
– Mas afinal, o que se passa?
– Sam Lloyd – sussurrou Evie e dirigiu-se a toda a pressa ao local em que
ele se encontrava, encostado a uma coluna, falando com uma loura com
uma boca em forma de arco de Cupido.
– Com licença, menina. – Evie meteu-se entre eles.
– Então! – exclamou a jovem, mas Evie manteve-se firme.
– O que fazes aqui? – perguntou.
– O que faço aqui? Venho sempre aqui. E tu? O que fazes aqui?
– Esta quem é? A tua mãe? – perguntou a loura, numa voz tão aguda que
conseguiria partir um vidro.
Evie voltou-se.
– Sou do departamento de saúde. Já ouviu falar da Maria Tifoide16? Este
homem tem micróbios suficientes para contagiar uma colónia inteira.
Os olhos da rapariga abriram-se de espanto.
– Com um raio!
– É como vê! E para que não lhe aconteça nada, o melhor será queimar
esses trapos que tem vestidos. De facto talvez até os deva queimar por
princípio.
– Hã?
Evie olhou para Sam erguendo uma sobrancelha.
– Ora, Sam, é encantadora. – Evie voltou-se para a loira que continuava
ali perto e murmurou: – Está a ver ali aquele homem de bigode? – Evie
apontou para o leão-marinho. – É tão rico que poderia comprar a Wool and
Worth e ainda lhe sobrava um monte de dinheiro. Porque não vai ver se ele
lhe paga uma bebida?
– Está a falar a sério?
– E de que maneira. É podre de rico. Confie em mim.
A rapariga sorriu.
– Ora, obrigada pelo conselho, querida.
– Nós as mulheres temos de ser umas para as outras.
A jovem parecia preocupada.
– E vai ficar bem com este… tifoide?
– Não há problema – disse Evie olhando para Sam. – Estou imunizada
contra a doença que ele tem.
Sam ficou a ver a bela loira menear-se em direção ao leão-marinho e
abanou a cabeça.
– Já te disseram que és muito inconveniente, miúda?
– Onde arranjaste o smoking? Parece-me caro.
Sam sorriu.
– Nas costas de uma cadeira.
– Roubaste-o?
– Digamos que o pedi emprestado pela duração da minha estada.
– Acho que vou contar ao meu tio Will.
– À vontade. Claro que depois terás de explicar o que estavas a fazer num
speakeasy do Harlem às onze e meia da noite.
Evie abriu a boca para dar uma descompostura a Sam, quando o mestre
de cerimónias, de smoking, se aproximou do microfone. A sua camisa
branca tinha tanta goma que parecia à prova de bala.
– E agora o Hotsy Totsy apresenta as famosas Hotsy Totsy Girls a
executar a dança proibida, o Black Bottom!
A orquestra lançou-se numa melodia bem ritmada. Com uma enorme
algazarra, as coristas abriram caminho para o palco. Balançavam as ancas,
marcando o ritmo frenético com os sapatos prateados. A cada oscilação,
balançavam as missangas dos seus fatos escandalosamente reveladores. Era
o tipo de exibição que, Evie sabia muito bem, a mãe consideraria chocante
– um exemplo de decadência moral da jovem geração. Era sexual, perigosa
e emocionante e Evie queria mais.
O pianista chamou as raparigas, que se aproximaram avançando as ancas.
A um sinal das jovens todos correram para a pista de dança por baixo do
palco, atraídos pela dança e pela noite.

Theta ficou sentada à mesa, só, por trás de uma imperscrutável nuvem de
fumo de cigarros, a assistir. Henry começara uma conversa com um criado
bem-parecido chamado Billy, o que a fez duvidar de que ele fosse para casa
nessa noite. Observou o divertimento das debutantes mimadas que tinham
vindo à zona norte da cidade para ouvir jazz em clubes proibidos, só para
irritar as mães. Observou os barmen enchendo copos, mas sempre com os
olhos nas portas. Observou os corações solitários das mulheres suspirando
por homens que, sem reparar nelas, suspiravam pelas suas queridas.
Observou uma discussão entre um casal que agora se remetera a um triste
silêncio. Observou as meninas que vendiam cigarros sorrindo para as
mesas, gabando os benefícios dos Lucky Strikes ou Chesterfields para a
saúde, conforme a empresa que lhes pagava mais. Observou as jovens que
dançavam no palco, imaginando a idade que teriam quando começaram.
Teriam sido arrastadas de cidade em cidade naquela vida desde os quatro
anos? Teriam ficado acordadas no chão de motéis baratos, para depois, na
manhã seguinte, fazerem a ronda pelos agentes, quase mortas de cansaço?
Alguma delas se atrevera a fugir de uma pequena cidade, a meio da noite?
Teriam mudado os nomes e a aparência, tornando-se pessoas
completamente diferentes, para não serem encontradas? Alguma delas teria
um poder tão assustador que tinha de ser bem escondido, fechado a sete
chaves?
Um rapaz bem-parecido com um emblema de uma república universitária
na lapela aproximou-se da mesa de Theta, bloqueando-lhe a vista.
– Importa-se que lhe faça companhia?
Theta esmagou o cigarro no cinzeiro.
– Desculpe, amigo. Ia-me já embora. – Agarrou no seu abrigo e na bolsa
de Evie e foi em busca da casa de banho.

Memphis terminara a sua ronda pela noite. No caminho da cozinha do


Hotsy Totsy metera no bolso uns bolinhos para Isaiah e foi ver o que se
passava no clube. Uma rapariga embriagada cujos caracóis se haviam
desmanchado enquanto dançava, gritou-lhe ao passar:
– Rapaz! Vai buscar o meu casaco! – E pôs-lhe uma moeda na mão.
– Tenho ar de ser seu criado? Vá a senhora buscar o seu casaco! –
Memphis atirou-lhe a moeda de volta e esta caiu aos pés da jovem.
– Ora, eu nunca vi…
– E nunca verá – resmungou Memphis. A meio do corredor havia uma
sala com cadeiras de braços e tapetes persas para onde os casais iam
namorar ou fumar. Memphis passou por um parzinho e sentou-se a ler na
sua cadeira preferida.
– Importa-se? – disse-lhe o homem.
– Um pouco. Mas tudo bem – respondeu Memphis lançando-lhe o seu
melhor sorriso.
Abriu o livro. O homem praguejou em surdina e chamou-lhe um nome de
que Memphis não gostou. Mas não se mexeu e, momentos depois, o casal
partiu. Sozinho na sala, Memphis entregou-se aos prazeres do livro.

***

– Vamos dançar – disse Sam.


– Contigo? – troçou Evie. – Fica sabendo que, pelo sim, pelo não, a Theta
ficou com a minha bolsa.
– Anda boneca, vou ser respeitador como um escuteiro – entrelaçou os
dedos nos dela. – Sente o ritmo, miúda. Em ti não faz efeito?
Evie olhou para a pista de dança. Um grupo de raparigas embriagadas
pelo álcool e pelo ritmo, divertia-se. Evie queria experimentar tudo. Deixar-
se ir debaixo das luzes.
– Uma dança – disse Evie e arrastou-o para a multidão rodopiante. Sam
começou uma valsa. Poisou-lhe a mão quente nos rins.
– Que estás a fazer? – perguntou ela enquanto giravam suavemente no
mesmo sítio.
– Estou a fazer o que os outros não estão – respondeu Sam.
– Talvez eu goste de fazer o mesmo que toda a gente.
– Tu? Não me parece.
– Talvez não me conheças tão bem quanto julgas – gritou-lhe Evie ao
ouvido. Era difícil fazer-se ouvir por cima da orquestra e das pessoas que
dançavam.
– Poderíamos trabalhar nisso – disse Sam, puxando-a e fazendo-a girar.
Era um bom dançarino. Gracioso e leve, sabia conduzi-la sem se impor
demasiado. Pelo menos na pista de dança, davam-se estupendamente.
– Cheiras tão bem que me apetecia dar-te uma dentada – disse-lhe Sam
junto ao ouvido, arrepiando-lhe a pele do maxilar.
– Tal como o Lobo Mau – murmurou Evie.
– Diz-me uma coisa a propósito daquela história dos fantasmas. O teu tio
acredita mesmo naquilo, ou só quer ganhar dinheiro?
– Como queres que saiba? – perguntou Evie. Naquele momento não
desejava pensar em Will. – Porquê? Tu acreditas?
Sam forçou um sorriso.
– Uma pessoa tem de acreditar em alguma coisa.
Fez girar Evie sob as luzes.

***

Mabel fora à casa de banho e regressou para a mesa vazia. Um minuto


depois vira-se obrigada a dançar com um tipo chamado Scotty que
conseguira pisar-lhe os dois pés três vezes e insistia em tratá-la por um
nome que não era o seu. Agora estava sentada à mesa onde os outros já não
estavam, a ouvi-lo discorrer acerca de títulos e ações e de descobrir a
rapariga certa para apresentar à mãe. Mabel calculava que a rapariga certa
não seria a filha de um socialista judeu e de uma menina de sociedade
transformada em agitadora.
– A menina é uma ótima ouvinte, May Belle – dizia Scotty com a língua
enrolada do uísque.
– Mabel – corrigiu ela. Semicerrou os olhos na atmosfera brilhante do
clube e permitiu-se pensar que aquele idiota enfadonho era Jericho. Na
pista, Evie dançava com Sam, depois de ter jurado que ia dar cabo dele.
– Ora, a menina é exatamente como...
– Uma irmã. – Mabel terminou a frase.
– Exatamente.
– Estupendo. – Mabel suspirou.
O rapaz continuou a falar, fazendo-a sentir-se cada vez mais pequena e
mais feia. O vestido não era apropriado; parecia que se vestira para a
audição de um cortejo de Natal, algures. Estava cansada de ser ignorada, ou
comparada à irmã de alguém, ou considerada uma menina doce e
inofensiva, o tipo de pessoa com quem ninguém se importava e que
ninguém procurava. Como permitira que a convencessem a ir ali? Para Evie
era diferente, pois nascera para ser uma descuidada jovem do seu tempo.
Mabel não. Nos clubes noturnos ou nos bailes sentia-se fora do seu
elemento. Por uma vez, gostaria de sentir a emoção de ser a rapariga que
todos desejassem.
– Não é verdade, May Belle? – perguntou o idiota, terminando um
qualquer pensamento, sem dúvida acerca de pesca ou automóveis. Agarrou-
lhe o braço com um pouco de força.
– Chega – disse Mabel, levantando-se. Atirou o guardanapo para cima da
mesa. – Não! Não é verdade! Não sei o que acabou de dizer, mas seja o que
for, tenho a certeza de que não passa de um disparate qualquer. Não quero
dançar. Não quero saber dos seus planos para comprar uma casa de verão. E
não sou sua irmã. E se fosse sua irmã, teria de dizer às pessoas que o senhor
fora adotado por caridade. Por favor, não se levante!
– Não me ia levantar – disse Scotty.
Mabel dirigiu-se a Evie e bateu-lhe no ombro.
– Evie, quero ir para casa.
– Oh, Mabel, não. Ainda agora começámos!
– Tu, ainda agora começaste. Eu já terminei.
Evie afastou-se com Mabel.
– Que se passa, Bolacha?
– Ninguém quer dançar comigo.
– Vou dizer ao Sam que dance contigo.
– Não quero que digas seja a quem for para dançar comigo. Sei
perfeitamente do que estou a falar. Seria diferente se o Jericho aqui
estivesse.
– Tentei que ele viesse, Bolacha, a sério que tentei, mas ele é posi-ti-va-
men-te alérgico a divertir-se. Porque não mandas vir outro sumo de laranja
jazz baby?
– São cinco dólares!
– Vá lá, Mabesie. Vive um pouco. Não vais morrer por isso. Oh, estão a
tocar a minha canção preferida!
Evie correu para a pista de dança antes que Mabel a pudesse impedir. Não
seria provavelmente a sua canção preferida; precisava de uma desculpa para
se afastar e evitar Mabel. Por vezes, Evie conseguia ser egoísta.
Mabel viu Scotty, completamente embriagado, dirigir-se a ela com um
derretido «Eiii, Maybeline, princesa» e correu a esconder-se atrás de um
enorme feto, pensando em todas as maneiras possíveis de assassinar Evie,
quando a noite chegasse ao fim.

Theta caminhou pelos corredores do clube, arrastando o abrigo de pele atrás


de si. Algumas pessoas reconheciam-na e perguntavam «Ei, mas não é a...»,
ao que Theta respondia: «Desculpe. Deve ter-me confundido com outra
pessoa.»
Atrás dela, um homem gritou «Betty» e Theta voltou-se rapidamente,
com o coração acelerado. Mas ele chamara uma ruiva que lhe respondeu
também aos gritos: «Aguenta aí! Preciso de ir à casa de banho.»
Theta estava farta. Não queria ir para casa, mas também não queria ficar.
Não sabia bem aquilo que queria, exceto que desejava uma coisa nova, que
a fizesse sentir ligada à própria vida. Sentia que a qualquer momento
poderia desvanecer-se. É certo que tinha Henry, o maravilhoso Henry, que
era como um irmão. Henry salvara-lhe a vida, quando viera para a cidade,
desesperada e morta de fome. E fora Henry que lhe salvara a vida pela
segunda vez. Ficariam sempre juntos. Aquilo tinha a forma do destino, uma
sensação a que não conseguia dar um nome.
Uma multidão de foliões passava pelo corredor e Theta enfiou pela
primeira sala que encontrou. Parecia-lhe vazia, mas quando passou ao lado
de um cadeirão verde viu que este estava ocupado por um jovem bem-
parecido, com um livro de poemas. Estava tão absorvido na leitura que nem
reparou nela.
– Deve ser um livro muito bom! – disse, sobressaltando-o.
Memphis ergueu os olhos e viu uma jovem esplendorosa com cabelo
negro, fumando um cigarro e olhando para ele.
– Walt Whitman.
– Humm – disse Theta.
– Também sou poeta – disse Memphis. Mostrou o seu caderno de capa de
cabedal. Theta pegou-lhe e folheou-o, abrindo-o numa página com uma
série de números escritos. Ergueu uma sobrancelha.
– Não me parece poesia. Parecem-me os apontamentos de um corretor de
apostas.
Memphis recuperou rapidamente o caderno. Lançou-lhe o sorriso
deslumbrante que dava sempre resultado com coristas e gangsters nervosos.
– Esse caderno é de um amigo meu.
– Hum...hum.
– Chamo-me Memphis. Memphis Campbell. E a menina?
– Só uma rapariga num clube noturno. – Theta soprou uma espiral de
fumo.
– Não devia fumar isso. A irmã diz que são venenosos.
– A sua irmã é uma brincalhona.
Memphis soltou uma gargalhada.
– Ela não é minha irmã. Chamamos-lhe irmã. Irmã Walker. E sabe de
tudo um pouco. – Theta esboçou um tímido sorriso, mas bastou para que
Memphis se sentisse encorajado. – A menina é francesa? Tem um certo ar
francês. Talvez tenha um pouco de crioula.
Theta encolheu os ombros e sacudiu a cinza do cigarro num cinzeiro alto
prateado.
– Sou como toda a gente.
– Pois bem, vou chamar-lhe Princesa Crioula.
– Pode chamar-me como quiser, mas não significa que lhe responda.
– Mesmo assim vou insistir.
– Tenho de admitir que é um homem persistente, Memphis Campbell. O
que faz aqui para além de ler livros da biblioteca?
– Oh, sabe como é, uma coisinha aqui, outra ali.
Theta ergueu uma sobrancelha.
– Está a parecer-me que são sarilhos.
Memphis abriu os braços num gesto de inocência.
– Eu? Sou a pessoa mais livre de sarilhos que imaginar se pode.
– Humm – disse Theta, caminhando pela sala.
– Porque não está lá em cima no clube?
Theta encolheu os ombros.
– Estava aborrecida.
– Aborrecida! É a primeira vez que oiço. Não sabe que o Hotsy Totsy é o
clube mais elegante da cidade?
Theta encolheu os ombros.
– Já estive em muitos clubes.
– Ah, sim?
– Sim. – Theta puxou uma fumaça do cigarro. – Com que então é poeta.
Porque não me lê qualquer coisa?
– Como queira, Princesa Crioula. – Memphis abriu o livro e leu, enquanto
Theta folheava ao acaso o caderno. Memphis tinha uma voz bonita,
adequada à poesia.
– «Canto o corpo elétrico. /As legiões daqueles a quem amo, envolvem-
me e são por mim envolvidas./ Não me abandonarão enquanto não os
acompanhar e não os seguir, /E os purificar fortalecendo-os com o vigor da
alma…» É o que diz o senhor Walt Whitman. Um dos nossos melhores
poetas.
Theta voltou a página. Ficou então a olhar para o símbolo do olho e do
raio que alguém desenhara num canto. Sentiu o coração acelerado.
– Desenhou isto? – tentou manter a voz calma.
– Isso? Olhe, foi uma coisa que vi num sonho.
– Num… sonho? – repetiu Theta. Sentia-se afogueada e tonta. – O que é?
O que sabe a este respeito?
– Nada. Como já lhe disse, é uma coisa que vi num sonho.
O desenho parecia ter perturbado a jovem. Memphis queria perguntar-lhe
porquê, mas também não queria assustá-la.
– Olhe, deixe-me mostrar-lhe o clube. – Estendeu a mão para o caderno,
mas Theta agarrou-se a ele. Olhou-o de frente, mas não parecia zangada:
parecia surpreendida, talvez um pouco assustada.
– Já vi este símbolo nos meus sonhos – disse ela.
Memphis não sabia por onde começar.
– Sabe o que é ou de onde vem? Já o viu antes?
Theta abanou a cabeça.
– Só em sonhos.
– Quando começou?
– Não sei. Talvez há seis meses. E o seu?
– Mais ou menos nessa altura.
– Sonha muitas vezes com ele? – perguntou Theta.
– Duas vezes por semana. Talvez mais. Dantes era só de vez em quando,
mas ultimamente acontece cada vez mais.
Theta acenou afirmativamente.
– Também sonho com ele com mais frequência.
Também ela sonhava com o mesmo símbolo.
Memphis lidava todos os dias com probabilidades e sabia que estas eram
desconcertantes. Teriam de significar alguma coisa.
– Diga-me exatamente como é o seu sonho.
Theta afundou-se na cadeira. Estava a tremer.
– É sempre o mesmo. Encontro-me algures, longe de Nova Iorque. Não
sei onde. Não conheço o local. Estou numa estrada e o céu está pejado de
nuvens de tempestade…
Memphis sentia o coração a disparar-lhe no peito.
– Também vê uma quinta? Uma casa branca com um alpendre?
Os olhos de Theta abriram-se de espanto.
– Sim – murmurou. – E searas de trigo, ou milho. Campos. E ao longe há
uma árvore…
– Sem folhas. Uma árvore grande e velha, retorcida, com ramos grossos
como braços de gigante.
Theta sentiu a pele da nuca toda arrepiada.
– E vem qualquer coisa pela estrada…
– Por detrás de um muro de poeira – terminou Memphis por ela.
Theta acenou afirmativamente. Sentia-se gelada. O que estaria a
acontecer?
– O pior é a sensação – disse em voz baixa. – Como se uma coisa terrível
fosse chegar. Uma coisa que não quero ver.
– Uma coisa que nos obrigará a tomar uma atitude – disse Memphis.
– O que significa isso?
Ouviu-se lá em cima um barulho enorme, seguido de gritos e de apitos da
polícia. Passos frenéticos batiam no teto. Memphis correu à porta e
espreitou, conseguindo ver um esquadrão de polícias a entrar pela cozinha.
Theta abriu desmesuradamente os olhos.
– Raios! Uma rusga!
– Não pode ser – disse Memphis pondo a mochila ao ombro. Ainda
segurava o livro na mão. – O Papa Charles tem os chuis na mão.
– Mas se calhar abriu-a de mais, Poeta. – O terror do sonho partilhado foi
substituído pelo medo real de ser presa. – Como saio daqui? Não posso ser
engavetada.
– Por aqui! – Memphis estendeu-lhe a mão. – Conheço este sítio como a
palma da minha mão. Vou tirá-la daqui. Confie em mim.
Theta aceitou a mão que ele lhe estendia e saíram a correr pelo estreito
corredor.

Mabel sentiu-se sufocada quando as portas do clube foram arrombadas e


duas filas de polícias entraram no clube. Um agarrou-a pelo pulso. Ela
tentou escapar, mas a mão dele era forte.
– Por aqui, menina. O carro está à espera – disse o agente a sorrir.
– A minha mãe mata-me – gemeu Mabel, enquanto o polícia a arrastava
do caos que se desenrolava atrás dela.

Theta e Memphis fugiram. Atrás deles a polícia invadia o local, partindo as


paredes, atirando com as cadeiras. Duas raparigas e os seus companheiros
gritavam e tropeçavam embriagados na parede policial. Um homem
nitidamente embriagado, com o rosto coberto de batom, sacou de uma arma
e disparou indiscriminadamente. uma das balas atravessou o livro de
poemas na mão de Memphis. Este meteu o dedo no buraco.
– O livro é da biblioteca – comentou sufocado.
– Poeta, temos de cavar daqui!
Memphis e Theta fugiram, dobraram a esquina e ele puxou-a para uma
cabina telefónica. Através das longas pestanas, ela observou-lhe o rosto
bonito. Já vira muitos homens bem-parecidos, mas nenhum que escrevesse
poesia e partilhasse o seu estranho pesadelo. Lá no fundo sentia-se invadida
por sensações a que se furtava desde Roy e do Kansas e do que lá
acontecera.
– Puxaste-me para aqui para me esconder ou para a marmelada, Poeta? –
gracejou Theta, tentando recuperar o fôlego.
– Confia em mim – disse Memphis. Deu três voltas à manivela do
telefone e um forte empurrão na parede detrás, que se abriu para uma
passagem secreta.

Lá em cima no clube era o caos, enquanto a polícia deitava as portas


abaixo. Os barmen movimentavam-se rapidamente. Voltaram o balcão
lançando duas dezenas de garrafas de bebidas de boa qualidade para uma
conduta. Depois puxaram uma alavanca no próprio balcão, lançando as
garrafas e os copos por outra conduta e limpando os restos com panos. Em
pânico, os clientes gritavam e trepavam por cima das mesas, deitando uma
abaixo. Algumas dançarinas continuaram a rodopiar, emocionadas por
poderem ser presas e ir parar aos jornais.
– Têm a certeza de que não querem uma bebida, senhores agentes? –
perguntou o gerente do clube enquanto os polícias o conduziam à porta. No
meio da histeria, Henry encaminhou-se calmamente para o piano, sentou-se
e começou a tocar.
– Não olhe para mim, senhor agente. Sou apenas o pianista – disse, mas o
homem de azul, mesmo assim algemou-o.
Na confusão, Sam e Evie separaram-se. Evie esquivou-se e conseguiu
chegar a uma saída, exatamente quando uma nova onda de polícias entrava.
Voltou para trás, passando pela mesma loura que, com a sua história,
tentava comover o agente que a prendera.
– Estes tipos são todos iguais. Tanto tentam meter-nos no assento traseiro
de um carro, como a seguir nos aldrabam.
Encurralada, Evie meteu-se debaixo de uma mesa e escondeu-se por trás
da toalha branca a observar. Estendeu o braço o suficiente para agarrar
numa garrafa aberta de champanhe e puxá-la. Seria uma pena deixar
estragar uma bebida tão cara e já que ia para a cadeia, queria ir em grande
estilo. Minutos depois, espreitou e viu Sam deslizar pela porta, intacto. Ou
melhor, pensou que o tinha visto. Movimentara-se com tamanha rapidez
que ela nem tinha a certeza. Só sabia que já se sentia zangada. Correu atrás
dele, chamando-o pelo nome, mas uma segunda onda de polícias contornou
a esquina. Evie regressou disfarçadamente à sala do clube. Apercebeu-se de
que havia um elevador escondido atrás do balcão, dirigiu-se para ele e
encolheu-se para caber lá dentro. O seu enorme colar ficou preso num
gancho e espalhou as pérolas pelo chão, fazendo tropeçar o agente que a
perseguia. Não havia tempo para se lamentar da perda das pérolas, por isso
fechou a porta com força e subiu para a liberdade.

– Não te disse que confiasses em mim? – disse Memphis. Ele e Theta


encontravam-se na cave húmida por baixo do clube. Uma lâmpada solitária
sobre a porta lançava uma luz fraca pelo chão sujo e pelos barris
armazenados.
– Que lugar é este?
– É aqui que guardam as bebidas alcoólicas que chegam do Canadá –
explicou Memphis. – Vá, tem cuidado… vê onde pões os pés.
– E agora? Para onde vamos?
Memphis parou uns instantes, tentando orientar-se. Não passara aqui
muito tempo, por isso não estava muito certo. Apenas sabia que deveria
haver uma porta algures. No cimo dos degraus, o puxador mexeu-se e
ouviram-se gritos.
– A bófia – murmurou Theta.
– Espera, espera – respondeu Memphis, também em surdina. – Vamos ver
se se vão embora.
Fez-se silêncio. Ouviam apenas a sua própria respiração. Depois o
silêncio foi quebrado por um golpe e Theta soltou um grito abafado quando
o machado da polícia atacou a enorme porta de madeira da cave.
– Diz-me que sabes como se sai daqui! – disse Theta.
– Por aqui! – disse Memphis, esperando ter razão. Atravessaram a cave
por entre os barris. Atrás deles, a porta cedeu e alguém gritou:
– Parem imediatamente!
– Achas que…? – perguntou Theta ofegante.
– Nem penses nisso, Princesa – respondeu Memphis, puxando-a.
Os passos ecoaram no espaço cavernoso. Os polícias tinham conseguido
entrar e aproximavam-se deles. Memphis pagara a alguns destes homens em
nome de Papa Charles; a maioria disfarçaria e deixá-lo-ia partir. Mas outros
eram rápidos com os bastões, e encontrar um negro com uma mulher branca
numa cave cheia de bebidas alcoólicas não abonaria em favor de Memphis.
De novo se ouviram os gritos «Parem! Parem!», desta vez sublinhados por
tiros. Onde seria a saída?
Encostada à parede do fundo, Memphis viu a sombra das escadas.
Seguiu-a e viu o contorno da porta. Tinha de levar à saída de incêndio.
– Por aqui – disse Memphis, quase sufocado, arrastando Theta pelas
escadas pouco firmes.
– Ali estão eles – gritou um polícia.
Memphis tentou abrir a porta, mas estava perra. Atirou-se contra ela, uma
vez e outra e, por fim, conseguiu fazer saltar os gonzos ferrugentos.
Empurrou Theta para a saída de incêndio. Lá em baixo havia dois polícias a
fumar.
– Sobe! – murmurou.
Theta acenou afirmativamente e começou a subir para o telhado. Havia
uma cadeira encostada ao corrimão. Memphis colocou-a por baixo do
puxador da porta e, enquanto os polícias batiam nela, subiu atrás de Theta.
O brilho cintilante de um cartaz de néon anunciando cigarros Lucky Strike
transformava o telhado numa névoa branca. Correram até à beira do
telhado, ultrapassando a meia-parede para o telhado seguinte e depois para
o seguinte, descendo pelo menos outra saída de incêndio que dava para um
beco. Memphis saltou primeiro, depois ajudou Theta, desfrutando por um
breve segundo poder senti-la de encontro ao seu peito. Correram os dois
para fora e juntaram-se às aves noturnas que ainda percorriam as ruas da
cidade.

O elevador chegou ao cimo. Gemendo, Evie empurrou a porta com os


punhos e depois com os pés, mas esta estava completamente emperrada.
– Ei! – murmurou. – Ei! Está alguém aí?
Um momento depois, a porta abriu-se. A mão de um homem apareceu e
Evie tomou-a agradecida, esticando lentamente os braços e as pernas e
saindo da caixa apertada, segurando ainda a garrafa de champanhe.
– Oh, estupendo! Obrigada, querido!
– De nada, amor – disse o polícia, algemando-a. – Está detida.

Sam deslizou com toda a facilidade através da multidão e seguiu pelo


corredor até ao edifício do lado. Sempre que um polícia lhe surgia à frente,
Sam pensava da mesma maneira – Não me vês – e antes que o agente
pudesse aperceber-se do que acontecera, Sam seguia em frente, deixando-o
a abanar a cabeça e a perseguir outra pessoa. Esperava que Evie tivesse
conseguido escapar. Tinha de admitir que ela era arrojada. Gostava de
raparigas arrojadas. Eram um problema e Sam gostava de problemas ainda
mais do que de mulheres arrojadas.

– Ficaram para trás? – perguntou Theta ofegante. Tinha as pernas a tremer e


a pele do casaco estava suja de terra.
– Creio que sim. – Memphis tinha ainda o livro na mão. – A senhora
Andrews vai matar-me – suspirou.
– Pelo menos terás alguma coisa acerca de que escrever – disse Theta a
rir. Era uma gargalhada ruidosa e sincera em completo desacordo com a sua
atitude afetada. A frieza que anteriormente lhe mostrara desaparecera. A
fuga entontecera-os. Encontravam-se agora na esquina da Sétima Avenida
rindo da sua sorte como dois miúdos na manhã do Dia de Natal. Theta
lançou a cabeça para trás para aproveitar a brisa. Nesse momento, estava
tão bela que Memphis desejou que pudessem continuar a fugir.
– Estás bem, Poeta? Parece que alguém te deu alguma coisa a beber.
Memphis forçou um sorriso e abriu os braços.
– Eu? Não tenho preocupações.
– Vamos dar uma espreitadela.
Seguiram pelo quarteirão e atravessaram a rua até um local onde tivessem
uma boa visão do que se passava no clube. As sirenes soavam pela rua e os
carros da polícia estavam alinhados numa longa fila. Os homens fardados
de azul retiravam os clientes do clube, enquanto a vizinhança assistia.
Chegara a imprensa e os flashes estalavam; sentia-se o cheiro do magnésio
queimado no ar da noite.
– O Papa Charles vai gostar – disse Memphis. – Paga uma pipa de massa
aos chuis para não fazerem rusgas nos clubes. Espero que os teus amigos
tenham conseguido sair sem problema.
– Também eu – disse Theta. Ainda tinha na mão a bolsa de Evie. –
Suponho que será melhor ir para casa para saber o que lhes aconteceu.
Memphis sentiu-se desiludido. Não queria que a noite terminasse.
– Podia levar-te a beber um café, se quisesses. Estava a fazer-me falta um.
Theta sorriu. Um sorriso doce, quase tímido.
– Obrigada, Poeta, mas tenho de dormir o meu sono de beleza.
Memphis ia começar a dizer qualquer coisa espirituosa como «Porquê se
já és a rapariga mais bonita da cidade?», mas não o fez. Pareceria cantiga
para a engatar e ele não queria engatar aquela rapariga. Queria conhecê-la.
Mas a magia da fuga não poderia durar para sempre.
– Talvez te encontre nos meus sonhos esta noite – disse. – Naquela
estrada.
O sorriso de Theta hesitou um pouco.
– Creio que me sentiria menos assustada se lá estivesses.
Os polícias bateram na porta de um dos carros para o mandar embora. As
ruas estavam agora cheias de gente. Theta estendeu a mão.
– Obrigada pela fuga corajosa, Poeta.
Memphis apertou a mão de Theta, maravilhado com a sua suavidade.
– Não tens nada que agradecer, Princesa Crioula.
Theta correu em direção ao metro. Na esquina, voltou-se e viu Memphis
ainda a olhar para ela. Não a observava como o público ou os admiradores
na rua. Não a fazia sentir-se estranha ou imaginária; pelo contrário, nunca
se sentira tão real.
– Olha, Poeta! – chamou-o. – Chamo-me Theta!
– Como? – gritou ele.
– O meu nome. É Theta…
A multidão aumentava entre eles e alguém puxou Memphis por trás. Este
voltou-se, pronto para a luta. A rir, Gabe ergueu as mãos como se se
rendesse e recuou.
– Calma, mano. Sou só eu. Acreditas que fizeram uma rusga ao clube?
Alguém anda a apertar com o Papa Charles. Saí para ir fumar, ou então
também estaria dentro de um daqueles carros. Ei, Memphis… estás a ouvir-
me?
Memphis voltara as costas a Gabe e esticava a cabeça em busca de algum
sinal de Theta, mas ela tinha desaparecido. Como a encontraria de novo? A
seu lado, Gabe falava a toda a pressa, mas Memphis não o escutava.
Algo mudara no cosmos. O seu futuro parecia ter-se resumido a um ponto
do destino e tinha nome: Theta.

***

Quando Memphis entrou no apartamento de Octavia, encontrou Isaiah aos


pés da cama sob a luz azulada do luar. O rapaz olhou para a penumbra do
quarto abanando levemente a cabeça.
– Então, Homem de Gelo. O que estás a fazer? – O rapaz não respondeu.
– Isaiah, sentes-te bem?
Isaiah revirou os olhos até apenas o branco ficar visível e pestanejava
violentamente.
– A sétima oferenda é vingança. Expulsar os hereges do Templo de
Salomão. E os seus pecados serão purificados pelo sangue e pelo fogo.
– Isaiah? – murmurou Memphis. Sentiu-se gelar de medo ao ouvir
aquelas palavras saírem da boca do irmão.
– Unge a tua carne e prepara os muros da tua casa para o receberes. – O
corpo magro de Isaiah estremecia com pequenos espasmos.
Memphis segurou-lhe os braços. Deveria ir chamar Octavia? O médico?
Não sabia.
– Isaiah, de que estás a falar? – murmurou suavemente.
– Eles vêm aí. Chegou o momento.
– Isaiah, acorda já. Estás com um pesadelo. Acorda, já te disse!
Isaiah acalmou e descontraiu-se nas mãos do irmão. Fechou as pálpebras
como se fosse voltar a adormecer. De súbito, endireitou-se. Abriu
repentinamente os olhos. Olhou para Memphis e o seu pequeno corpo
estremeceu. As suas palavras eram um murmúrio sufocado.
– Oh, meu filho, meu filho. Que fizeste?
Isaiah desequilibrou-se, mas Memphis agarrou-o a tempo e deitou o
irmão na cama, onde voltou a adormecer como se nada fosse.
Memphis sentou-se a tremer na sua própria cama. Incapaz de descansar,
ficou a olhar algum tempo para o peito do irmão que subia e descia, até que
a madrugada encheu o quarto com uma luz fraca e leitosa. Como poderia
Isaiah saber? Ninguém exceto Memphis. Fora aquilo que vira quando
estava em transe nos últimos momentos da vida da mãe, à cabeceira da sua
cama sem a conseguir curar. Quando andara por esse outro lugar, uma terra
de bruma entre a vigília e a morte, vira o espírito dela, triste e assustado, as
mãos tentando chegar-lhe antes de ser engolida por uma vasta escuridão,
pronunciando as palavras que eram ao mesmo tempo uma bênção e um
aviso:
Oh, meu filho, meu filho. Que fizeste?
16 Mary Mallon (1869-1938), imigrante irlandesa nos EUA, conhecida por ser portadora da
bactéria da febre tifoide. Embora tenha adoecido com pouca gravidade continuou a contagiar outras
pessoas, ainda que parecesse saudável. (N. da T.)
SANGUE E FOGO

Eugene Meriwether entrou no imponente edifício branco da Grande Loja


Maçónica, no lado oeste da Rua 23, junto ao estridente troar do El da Sexta
Avenida e subiu os degraus até um pequeno escritório no terceiro andar.
Desfrutara de um jantar com os seus Irmãos após uma reunião acerca de
uma instituição de caridade que esperavam pôr em ação. Agora, à luz suave
do seu candeeiro de secretária, elaborava uma proposta para que o Grão-
Mestre desse a sua opinião.
No silêncio do escritório, abriu uma caixinha que trouxera escondida na
algibeira interior do casaco e passou um dedo pelos botões de punho
aninhados no veludo escuro. No dia seguinte seria o aniversário de Edward.
Sorriu, imaginando-o a dizer «O que é isto?», enquanto abria a caixa e
observava o fino entalhe dos botões de punho, com uma elaborada letra E, a
inicial que ambos partilhavam. Praticamente conseguia sentir o doce beijo
de Edward nos seus lábios. Edward, o seu grande amor; Edward, o seu
grande segredo.
Um ruído súbito chamou a atenção de Eugene – um assobio jovial.
Consternado, lembrou-se do velho Sr. Saunders, que gostava de beber e
poderia ter tropeçado.
– Saunders, meu amigo, é o senhor?
O assobio deixou de se ouvir. Satisfeito, Eugene voltou ao trabalho. Mas,
momentos depois surgiu de novo: uma melodia simples e irritante ecoando
pela loja vazia. Mais do que irritante... incómoda. Havia um telefone na
secretária e Eugene interrogou-se se deveria ligar à polícia. Como se
sentiria idiota se afinal se tratasse do velho Saunders. E como seria
humilhante para Saunders que era íntimo amigo do próprio Grão-Mestre.
Ora, Eugene poderia arruinar a sua própria posição na Fraternidade e nunca
passar de Primeiro Vigilante. Não, não se poderia arriscar a cair no ridículo.
Gostaria de um dia ser Grão-Mestre. Sim, melhor seria tratar daquilo
sozinho. Se tratasse do assunto com Saunders, cautelosa e discretamente, o
velho talvez o apreciasse. Era este o tipo de oportunidade disfarçada de
obstáculo, de que falavam os livros inspiracionais! Enfrentaria o desafio.
Como Edward ficaria orgulhoso quando mais tarde lhe contasse.
Chamou de novo:
– Saunders? Está a ouvir-me?
Nada senão o maldito assobio.
Endireitando a gravata, Eugene Meriwether deixou o conforto da sua
secretária e espreitou da porta do gabinete. Na extremidade oposta do
corredor escuro, uma luz dourada escoava-se da porta levemente aberta da
Sala Gótica. Curioso, o maçon dirigiu-se para lá, passando pelos retratos
emoldurados dos finados irmãos maçónicos. Enquanto caminhava pelo
corredor escuro, Eugene Meriwether sentiu no ventre uma espécie de
alarme silencioso que lhe pulsou no sangue. Algo que remontava aos
antepassados primitivos e à necessidade de se reunirem em redor de
fogueiras, o tipo de aviso que nenhum avanço civilizacional poderia alguma
vez erradicar. Quase desejou ter chamado a polícia, mas a sua ambição
empurrava-o para diante, em direção ao quarto luminoso. Levou a mão à
maçaneta e abriu a porta.
Fogo. O brilho dourado vinha do fogo que ardia no altar central. E
enquanto tentava perceber o que se passava – Fogo? Na Sala Gótica?
Como? – a porta fechou-se com estrondo atrás de si. Puxou pela maçaneta,
lembrando-se das explicações mais lógicas. É uma partida. Uns espertos
que precisam de uma lição. Vão arrepender-se amargamente. Estão a puxar
a porta do outro lado. Os jovens de hoje não têm respeito por ninguém.
Malfeitores, é o que são.
Deixou de ouvir o assobio. Uma voz profunda e retumbante ecoou na
sala. «Porque não seguiram o caminho da probidade e vede como
provocaram a ira do Senhor.»
Uma sombra escura passou pela parede. À primeira vista parecia ser a
longa sombra de um homem, mas à medida que se aproximava, era evidente
que aquilo que se aproximava por trás de Eugene estava longe de ser
humano.
– «E foi ordenado para a sétima oferenda: afasta os hereges do Templo de
Salomão sob o olho vigilante de Deus e purifica os seus pecados com uma
oferenda de sangue e fogo. Porque não há expiação do pecado senão pelo
sangue...»
Eugene Meriwether pôs a mão no peito, sentindo o furioso bater do seu
coração por baixo da pequena caixa que tencionava oferecer a Edward.
Pensando no seu amor, Eugene voltou-se lentamente. E quando as paredes
começaram a murmurar, perdeu o equilíbrio no precipício da razão e
começou a queda terrível num inferno para além de toda a sua fantasia.
CONTAS

Evie e Mabel passaram toda a noite numa cela em Tombs, a famosa prisão
da Baixa da cidade, rodeadas de jovens embriagadas, prostitutas e uma
mulher enorme que rosnava como um cão sempre que alguém se
aproximava. A mãe de Mabel foi a primeira a chegar, varrendo o corredor
com a sua altivez característica.
– Espero que as meninas tenham tido tempo de refletir sobre a vossa noite
– disse, mas era para Evie que olhava e era claríssimo que pensava que ela
deveria arcar com todas as culpas.
– Adeus, Evie – disse Mabel, enquanto a mãe a acompanhava à saída.
Parecia uma prisioneira a caminho da cadeira elétrica sem direito a uma
última refeição.
Já passava das sete horas, quando o tio Will pagou a fiança de Evie. A
cidade acordava ruidosamente para a vida, para outra manhã em Manhattan,
quando ela e Will chegaram à Rua White.
– Devia ter-te deixado lá ficar mais tempo – disse Will bruscamente.
Caminhava tão depressa que Evie mal o conseguia acompanhar. A cabeça
doía-lhe a cada passo.
– Peço muita desculpa, Tito.
– Tínhamos um acordo: eu dava-te liberdade, mas tu não te metias em
sarilhos.
– Bem sei e sinto-me completamente estúpida por ter sido apanhada
assim.
Will espetou um dedo.
– Não é essa a questão, Evangeline. Tu desobedeceste deliberadamente ao
meu muito razoável pedido para que ficasses em casa ontem à noite.
Mentiste-me.
– Não menti exatamente…
– Sair à socapa é mentir.
– Sim, mas... pode abrandar um pouco, Tito? Estou cheia de dores de
cabeça. – O sol da manhã magoava-lhe os olhos.
O tio Will parou junto a uma banca de jornais e passou a mão pelo cabelo.
Um miúdo acenou-lhe com o jornal, mas ele enxotou-o.
– Foi uma ideia horrível. Sou solteiro; não faço a mínima ideia de como
ser pai ou sequer tio.
– Não é verdade. É um tio muito bom. É o melhor tio que conheço. A sua
fotografia devia estar no dicionário junto da entrada da palavra tio.
– Essa graxa não dá resultado, Evie. Proibi-te de sair ontem à noite por
uma boa razão. Porém, preferiste ignorar o meu pedido.
– Oh, mas Tito…
– E avisei-te especificamente para não te meteres em sarilhos, não é
verdade? Bem, é mais que evidente que este acordo não resulta.
– Q...que quer dizer com isso? – perguntou Evie, já com o estômago a
doer.
– Será melhor que regresses ao Ohio. Amanhã telefono à tua mãe... –
olhou para o relógio – … hoje. E trato de tudo.
– Mas... foi só a primeira vez que me meti em sarilhos! – Assim que
acabou de dizer isto, Evie apercebeu-se de como aquele argumento era
ridículo. Era quase uma promessa de que mais sarilhos estavam para vir e
desejou poder retirar o que dissera. – Por favor, Tito. Peço muitas
desculpas. Nunca mais lhe desobedeço.
Will encostou-se a um candeeiro da rua. Evie apercebia-se de que ele
estava a ceder, por isso manteve o ataque.
– Faço tudo, varro o chão, limpo o pó às bugigangas. Faço sanduíches
todas as noites. Mas, por favor, por favor, não me mande para casa.
– Não tenciono ter esta discussão em plena Rua White com uma pessoa
que cheira como uma destilaria. Vou levar-te para o Bennington para
dormires a sesta e, sugiro, tomares um banho.
Evie cheirou a manga do casaco e fez uma careta.
– Espero-te no museu às três da tarde. Nessa altura dir-te-ei o que vou
fazer. Não te atrases.

Um banho demorado e quente eliminou o cheiro da Tombs, mas, apesar de


exausta, Evie sentia-se demasiado nervosa para adormecer. Resolveu ir ao
apartamento de Mabel e bateu do seu modo especial.
– Olá, coisinha. Estou em apuros. O Tito ameaçou mandar-me de volta
para o Ohio por causa do que aconteceu ontem à noite e tenho de arranjar
maneira de o convencer a deixar-me ficar. Creio que está a amansar um
bocadinho, mas talvez se tu lhe dissesses que a ideia foi tua ele não fosse
tão duro comigo. Sim, sei que isso não é completamente verdade, Bolacha,
mas é absolutamente uma emergência de primeira ordem e... olha, Mabesie,
não vais convidar-me a entrar?
Lançando um olhar furtivo para dentro do apartamento, Mabel saiu para o
patamar e fechou a porta.
– Oh, oh. Conheço essa cara. O que é que ainda não me contaste? Morreu
alguém?
– A minha mãe culpa-te pela minha prisão. Proibiu a tua entrada cá em
casa – disse Mabel.
Evie abriu a boca ofendida.
– A tua mãe foi presa mais vezes do que eu!
– Pela causa. Ela pensa que ser presa por beber num clube noturno é
amoral e um sinal da ganância capitalista – segredou Mabel. – Diz que és
uma má influência.
– Safa, espero bem que sim. Diz à tua mãe que se não fosse eu ainda
usarias meias pretas e lerias romances russos acerca de aristocratas
condenados.
Mabel ergueu o queixo.
– Qual é o mal de ler a Anna Karenina?
– Tudo. Desde o A até ao enina. Olha, Bolacha, deixa-me entrar e eu
convenço-a.
– Evie, não...
– Cinco minutos com uma história comovente acerca de eu ser um
produto dos valores da classe média burguesa, perdidos na maquinaria de
um mundo corrupto e ela organizará um comício em minha honra...
– Não sabes quando deves parar? – perguntou Mabel bruscamente. – Por
vezes és tão egoísta, Evie! Para ti é tudo um jogo que queres sempre
manipular a teu favor, e ao diabo o que os outros querem.
– Não é verdade, Mabel!
– Ah, não? Não me quis vir embora ontem à noite?
– Mas terias perdido o melhor. E assim que chegasses a casa, ficarias a
resmungar que deverias ter ficado. Arrepender-te-ias. Eu conheço-te,
Mabesie...
– Conheces? – ripostou Mabel.
Evie sentiu-se como se tivesse levado uma bofetada. Só queria que Mabel
saísse do controlo da mãe e fosse independente para viver as coisas e se
divertir. Não fora o que acontecera?
– Já basta, Evie. Estou cansada e vou voltar para a cama.
Trémula, Evie respirou fundo.
– Mabesie... não pensei...
– Nunca pensas. O problema é esse.
Do outro lado da porta, soou a voz da Sr.ª Rose.
– Mabel, querida, onde estás?
– Já vou – gritou Mabel. Voltou para dentro e fechou a porta.
Evie ficou a olhar por um momento. Bateu mais uma vez da sua maneira
secreta, mas Mabel não abriu. Foi então ter com o tio. No caminho para o
museu, Evie tentou não dar importância à sua discussão com Mabel, mas
foi impossível fazê-lo. Nunca tinham discutido e sentia-se ferida pelas
palavras da amiga. Aquilo era o que os outros, os idiotas deste mundo,
diriam dela. Mas Mabel, não. Logo a sua melhor amiga.
No museu, Evie ouviu vozes. Jericho mostrava a coleção a um casal de
raros visitantes, falando no seu tom calmo e didático, gémeo do tio Will. O
casal parecia enfadado.
– Essas bugigangas podem assombrar-nos se lhes tocarmos? – perguntou
a mulher.
– Não. São inofensivas – ouviu Jericho dizer. Fora uma oportunidade
perdida. Se tivesse sido Evie a servir-lhes de cicerone, teria inventado uma
história que eles nunca esqueceriam, qualquer coisa que os fizesse voltar.
Sam passou por ela no comprido corredor, a caminho da sala das
coleções. Sorriu alegremente.
– Olá, miúda, estou contente por ver que o teu tio te salvou do xelindró.
Evie fez má cara.
– Deixaste-me naquele clube, estupor. Foi muito pouco cavalheiresco da
tua parte.
– Não pensaste em mim quando te meteste no elevador da cozinha. Não
finjas que és melhor que eu, menina. Também sabes ser mazinha.
Evie bateu com a porta na cara de Sam e sentou-se no gabinete de Will
para aguardar o seu destino. E se o tio resolvesse mandá-la para casa? Não
se tinha permitido pensar de facto nessa possibilidade. Partira do princípio
que o convenceria. Agora a ideia invadia-a e deixava-a perturbada.
Precisamente um minuto antes das três horas, Will entrou. Pendurou o
chapéu e o casaco no cabide e levou algum tempo a descalçar as luvas,
enquanto Evie se agitava em silêncio. Por fim, instalou-se na cadeira atrás
da secretária, uniu as pontas dos dedos e olhou-a com ar pensativo. Evie
engoliu. A saliva prendera-se-lhe na garganta e teve de evitar tossir.
– A tua mãe estava num almoço no clube quando lhe telefonei. Deixei
recado para que me ligasse. Amanhã à tarde há um comboio para Zenith e
vais apanhá-lo.
Evie ficou sufocada.
– Oh, Tito, por favor. Não me pode mandar para casa. Ainda não. – Sentia
as lágrimas arderem-lhe no canto dos olhos.
– O que está feito está feito. – Will esfregou a cana do nariz. – Foi uma
idiotice da minha parte pensar que poderia arcar com isto. Sou um solteirão,
com os meus hábitos.
– Não é, não – disse Evie, fungando. – Desculpe. Vai ser tudo estupendo,
vai ver. Dê-me só outra oportunidade, por favor. – A voz de Evie esbatia-se
num murmúrio suplicante.
– É a minha decisão final, Evangeline – disse Will delicadamente, e a sua
compaixão era pior do que raiva. – Ficarás melhor na tua casa, com os teus
amigos.
– Não, não fico. – Evie esfregou as faces com as costas das mãos, mas as
lágrimas continuavam a correr.
Will fazia um discurso, qualquer coisa acerca de já ter sido jovem e
descuidado, o tipo de coisas que os velhos dizem quando desferem um
golpe de morte, como se pensassem que a sua conversa hipócrita disfarçada
de empatia fosse bem aceite, mas Evie mal o ouvia. Apercebia-se de que
nunca lhe falara na sua capacidade de ler nos objetos. Ele não sabia. Não
sabia o que ela podia fazer – não sabia que ela podia usar os seus dons para
o ajudar a encontrar o Assassino do Pentagrama. Afinal, ela vira qualquer
coisa ao pegar na fivela do sapato de Ruta Badowski. Talvez o que ouvira
não fosse assim tão irrelevante.
– Há uma coisa que tenho de lhe dizer – disse, de repente, interrompendo
o solilóquio do tio sobre a responsabilidade. – Nunca lhe contei o que
aconteceu em Zenith. O sarilho em que me meti.
– Foi qualquer coisa acerca de um jogo numa festa e uma difamação –
respondeu Will. – A tua mãe contou-me...
– Não foi um jogo numa festa.
– Realmente, Evie, não há necessidade...
– Há sim, por favor.
Will cedeu e Evie encheu-se de coragem.
– Na noite da festa meti-me num sarilho porque adivinhei. Creio que sou
Adivinha, Tito, como a Liberty Anne Rathbone. E se assim for, podia usar
os meus poderes para o ajudar a resolver este caso.
Will olhava para ela de boca aberta, mas, naquele momento, Evie não lhe
deu oportunidade de dizer o que quer que fosse.
– Lembra-se de no primeiro local do crime eu ter ficado maldisposta? –
perguntou Evie, falando a toda a pressa. – Não foi a visão da rapariga,
embora o estado dela fosse horrível. Foi a fivela que se soltou de um dos
seus sapatos. Quis colocá-la de novo, para fazer qualquer coisa... certa.
Devo tê-la apertado muito na mão... com mais força do que desejava... e... –
Evie soltou um suspiro. – Vi coisas. Só por ter na mão algo que lhe
pertencia.
A compaixão de Will transformara-se num evidente desagrado.
– Já suspeitava que se tratasse de um esquema da tua parte para ficares
em Nova Iorque, mas nunca pensei que descesses tanto para te aproveitares
dos assassinatos de dois inocentes...
– Estou a tentar contar-lhe uma coisa importante! – Evie quase gritava,
obrigando-o a remeter-se ao silêncio. – Por favor, dê-me cinco minutos do
seu tempo. Não peço mais nada.
Will abriu o relógio de bolso.
– Muito bem. Tens cinco minutos do meu tempo, e começam... agora.
Pronto! Se não conseguisse convencer o tio Will, estaria no primeiro
comboio para o Ohio. Precisava de lho provar.
– Será mais rápido se puder mostrar-lho. Dê-me uma coisa sua... um
lenço ou o chapéu. E não me diga nada acerca desse objeto.
– Evie – suspirou o tio Will. Ela conhecia aquele suspiro. Acompanhava
geralmente o seu nome e uma expressão de desapontamento e teve de evitar
as lágrimas que queriam sair. Porque haveria ele de a levar a sério? A
menina das festas, a rapariga moderna, sempre com resposta pronta e um
armário cheio de pedrarias e meias bordadas.
– Por favor, Tito – disse em voz baixa. – Por favor.
– Muito bem. – O tio Will procurou em seu redor e poisou os olhos numa
luva. – Pronto. Restam-te exatamente quatro minutos e meio.
Evie apertou a luva entre as palmas das mãos e concentrou-se. O tique-
taque do ponteiro do relógio do tio distraía-a. Tentou bloqueá-lo e
concentrar-se na luva, mas não via nada e os primeiros arrepios de pânico
apoderaram-se dela.
– Três minutos – disse Will.
Evie rangeu os dentes. Não compreendia porquê ou como funcionava
aquele seu dom, só que funcionava, mas à sua maneira e a seu devido
tempo.
– Restam dois minutos e meio…
Evie sentiu então as imagens desenrolarem-se lentamente.
– Estas estavam numa caixa no Woolworth, marcadas a setenta e oito
cêntimos. Estava frio nesse dia e o tio tinha perdido uma luva do outro par.
Pedeu também a direita deste. Está sempre a tirá-la e esquece-se.
Evie abriu os olhos. Will continuava a olhar para o relógio.
– Podes ter-te deitado a adivinhar. Ou ser pura esperteza. É vulgar haver
luvas a esse preço no Woolworth. Já reparaste que muitas vezes não sei
onde ponho a da mão direita. Não prova nada. Tens mais um minuto.
Evie estava cansada, desesperada e um pouco zangada. Fechou de novo
os olhos. Desta vez a cena era forte. Viu uma mulher a rir, tinha cabelo e
olhos escuros e as mãos escondidas num regalo de pele.
– «É mesmo teu, William. Sempre com uma luva a menos.» – Evie
repetiu o que ouvira à mulher.
– Para – disse Will friamente, mas Evie estava dentro de cena. Quase
sentia o vento. Um Will muito mais novo patinava no gelo enquanto a
mulher bonita se ria. Evie sorriu inconscientemente.
– Vejo-a. Está junto à pista de gelo... com um casaco verde-escuro... na
neve.
– Para, Evie.
– Ela é muito bonita e... e está feliz... muito feliz... talvez seja o dia mais
feliz da sua vi...
Will arrancou a luva das mãos de Evie, sobressaltando-a. Inclinou-se para
ela zangado e com as faces afogueadas.
– Disse-te que parasses! – vociferou.
Evie deu meia-volta e saiu a correr do museu, sem ouvir Sam, que a
chamava.
DEUS ESTÁ MORTO

Evie percorreu as ruas da cidade, até se sentir demasiado cansada para


continuar. No Central Park encontrou um banco junto ao lago e aí se sentou
para observar dois casais num barco a remos. Riam todos desfrutando do
dia de sol. Pareciam descuidados e sem preocupações e Evie detestou-os
por isso. Sempre esperara que o tio Will a compreendesse. Evie limpou as
lágrimas com as costas das mãos. O natural seria ir ter com Mabel em busca
de consolo, mas isso estava fora de questão, pelo que se sentia perdida e só.
Voltou ao Bennington e subiu as escadas para o telhado, onde se sentou
entre os pombos. Sentia um aperto invadir-lhe o peito como se tivesse a
pele apertada. Como se descrevesse uma curva sem visibilidade e todos os
demónios que queria manter à distância estivessem aí à sua espera. Will
lecionava a crença no sobrenatural, mas os únicos fantasmas que
assustavam Evie eram verdadeiros, e tinha-os dentro de si. Algumas
manhãs acordava e prometia: Hoje farei tudo como deve ser. Não vou ser
uma pessoa tão horrível. Não vou perder a cabeça nem ser indelicada. Não
vou exagerar nas minhas piadas para que não seja preciso que todos se
calem em sinal de reprovação. Serei bondosa, simpática, sensata e
paciente. Como toda a gente gosta. Mas à noite, as suas boas intenções
desfiar-se-iam. Diria o que não devia ou falaria alto de mais. Atrever-se-ia a
fazer o que não devia só para se tornar notada. Talvez Mabel tivesse razão e
ela fosse egoísta. Mas de que valeria viver tão discretamente, sem fazer
barulho? «Ó Evie, és de mais», diziam as pessoas, mas não para a elogiar.
Sim, era de mais. Também era assim que se sentia interiormente.
Então porque nunca se conteria?
Evie olhava para as colunas de janelas cortadas no edifício do outro lado
da rua. Tantas janelas. Quem viveria por detrás delas? Os moradores seriam
felizes? Ou sentar-se-iam por vezes no telhado assombrados por uma
profunda solidão para a qual parecia não haver cura?
A porta abriu-se um pouco e Jericho enfiou os ombros largos pela
abertura.
– Imaginei que te encontrasse aqui. O que se passou com o teu tio Will?
Evie voltou o rosto e limpou os olhos.
– Meti o pé na argola.
Jericho desceu pela parede, mantendo uma respeitável distância entre
ambos.
– Não precisas de me contar.
Evie nada disse. A sul, o sol refletia-se na ponta de aço de um edifício.
Das chaminés dos telhados saíam grossas baforadas de fumo. Um cartaz
anunciava as Pastilhas Elásticas Mentoladas Wrigley em gigantescas letras
de aço. Na beira do telhado, os pombos arqueavam o pescoço em busca de
alimento.
– Perguntaste-me porque tinha vindo viver com o teu tio e eu não
respondi logo – disse Jericho. Tirou do bolso um pedaço de pão e
desembrulhou-o.
– Não, não me respondeste – confirmou Evie. Sentira muita curiosidade,
mas agora já não parecia ter importância, tendo em vista a sua iminente
expulsão. Mas sentia-se grata a Jericho por este ter vindo tentar consolá-la à
sua maneira. Só queria que ele continuasse a falar. – Vais contar-me agora?
O rapaz semicerrou os olhos.
– Fui criado numa quinta da Pensilvânia com vacas e pastagens, terrenos
ondulantes, amanheceres únicos. O mais longe possível daqui.
– Parece-me fantástico – disse Evie, esperando que as suas palavras não
lhe soassem a ela tão vazias como lhe soavam a si.
Jericho esperou um pouco, como se procurasse as palavras.
– Houve uma epidemia. Paralisia infantil. Primeiro levou a minha irmã e,
depois, um dia acordei com febre. Quando me levaram para o hospital em
Filadélfia, já não sentia os braços nem as pernas e tinha dificuldade em
respirar. Tinha nove anos.
Enquanto falava, Jericho partia o pão em bocadinhos que atirava para o
liso telhado de alcatrão para os pássaros os virem buscar.
– Puseram-me numa máquina, um protótipo de uma coisa em que
estavam a trabalhar chamada pulmão de aço. Respirava por mim. Claro que
ficava preso lá dentro, como que num caixão de metal. Passei dias inteiros a
olhar para o teto, a ver a luz das janelas atrás de mim mudar como num
relógio de sol. A minha mãe vinha todos os domingos de Lancaster numa
carroça puxada por um cavalo e rezava por mim. Mas há muito que fazer
numa quinta e ela tinha mais duas crianças em casa e vinha outra a
caminho. Em breve vinha só de quinze em quinze dias. Depois deixou de
vir. – Jericho partiu mais pão e atirou-o para o bando de pássaros
barulhentos. – Dizia para comigo que era por causa da neve... que cobria as
estradas e a impedia de chegar a Filadélfia. Dizia centenas de mentiras a
mim próprio. É espantoso o tipo de coisas em que nos forçamos a acreditar.
Evie não sabia o que dizer, por isso deixou-se ficar em silêncio a ver os
pássaros aproximarem-se do pão e disputando-o entre si.
– Um dia vi um pássaro a cantar no parapeito da janela, assinalando a
primavera. Percebi que se o pássaro podia chegar ali, ela também poderia.
Soube que ela não vinha mais no momento em que ouvi esse pássaro do
outro lado da minha janela. Soube mesmo antes dos médicos me dizerem
que os meus pais tinham assinado os papéis em que me entregavam à tutela
do Estado.
Jericho limpou as mãos ao lenço.
– Como é que os teus pais te puderam deixar assim? – perguntou Evie,
algum tempo depois.
– Os inválidos não crescem para trabalhar com o arado ou com a máquina
debulhadora. Não podiam cuidar de mim. E tinham outras bocas para
sustentar.
– Como podes perdoar-lhes com tanta facilidade?
– De que adiantaria não lhes perdoar?
– Mas agora estás forte e saudável. Como...?
Jericho atirou uma pequena pedra do telhado com a força de um jogador
de basebol.
– Experimentaram uma coisa nova e tive sorte; deu resultado. Algum
tempo depois curei-me.
– Então foi um milagre!
– Não há milagres – disse ele com uma expressão imperscrutável. – O teu
tio concordou em ser o meu tutor. Precisava de um assistente e eu precisava
de um lar. É um bom homem, melhor que muitos.
– Apenas se dedica ao seu trabalho e àquele maldito museu – disse Evie
sem se preocupar com as palavras que empregava.
– Não é verdade. Não sei o que aconteceu hoje, mas estava terrivelmente
preocupado. Fala com ele.
Evie queria contar a Jericho o que se passara, mas não lhe apetecia passar
por novo escrutínio.
– Já decidiu mandar-me de volta para o Ohio – disse Evie. – Talvez me
ouvisse se eu fosse um fantasma.
– Não existem fantasmas. Mas não digas isso ao teu tio – continuou
Jericho, fazendo Evie sorrir por um momento.
Sabia que deveria começar a fazer as malas, mas queria adiar o inevitável
por mais algum tempo, para gravar na memória a linha do horizonte da
cidade. Tinham sido umas semanas maravilhosas. Era uma pena terem
terminado.
Jericho pegou no seu livro muito folheado e Evie apontou para ele com o
queixo.
– Posso?
Jericho entregou-lho e ela leu na página marcada:
– «Deus está morto. Deus continua morto. Nós matámo-lo. Como nos
consolaremos, nós, assassinos de todos os assassinos?» – Evie fitou-o de
olhos semicerrados. – Sabes mesmo divertir-te, não é verdade? – Devolveu-
lhe o livro. – Queres ler para mim?
– Queres que te leia Nietzsche?
– Da maneira como me sinto, mal não faz.
Jericho aclarou a voz e instalou-se.
– «O que o mundo possuiu, até agora, de mais sagrado e mais poderoso
sucumbiu exangue aos golpes das nossas lâminas. Quem nos limpará desse
sangue? Que água nos purificará?...»
Evie sentia-se embalada pela voz de Jericho. Via o brilho do sol refletido
no lado de uma caixa de água colocada num telhado a oeste. Perto, os
pombos saltitavam na sua eterna busca por alimento.
– «Que festividades de desagravo, que jogos sagrados haveremos de
inventar? A grandiosidade deste ato não será demasiada para nós? Não
teremos de nos tornar deuses, para parecermos apenas dignos dele?»
– Jericho, experimentaram a tua cura milagrosa em mais alguém?
– Já te disse que não há milagres – declarou Jericho.
PENA SUSPENSA

Will regressou a casa pela hora do jantar e chamou Evie ao seu escritório.
Estava sentado muito direito na cadeira, mexendo num cigarro apagado. A
telefonia tocava em surdina.
– Evangeline, não deveria ter-me irritado contigo há bocado. Peço
desculpa.
Evie encolheu os ombros.
– Toda a gente se zanga de vez em quando.
– Apanhaste-me de surpresa, parece-me. – Will acendeu o Chesterfield
que tinha na mão, puxou uma baforada e soprou uma fina espiral de fumo. –
Fala-me então um pouco mais desse teu talento.
– Teve início há dois anos quando comecei a sonhar com o James.
– Com o teu irmão James?
– Não, com o porteiro – disse Evie exasperada, para logo se arrepender. A
última coisa que desejava era irritar o tio.
– Não havia antecedentes. Sou curador e académico. Preciso das fontes –
disse Will em tom prático. – Como o descobriste?
– A primeira vez aconteceu com uma pregadeira da minha mãe. Queria
usá-la, mas ela não queria. Deixou-a em cima do toucador e eu peguei-lhe,
mas não conseguia arranjar coragem para a pregar no meu vestido. Comecei
a dar-lhe voltas nas mãos e tive uma sensação estranha. A pregadeira ficou
quente, senti um formigueiro na palma das mãos que também aqueceram. –
Evie fez uma pausa. Queria falar do assunto, mas sentia-se exposta.
– Continua. O que viste? Só tiveste acesso a uma hora da história do
objeto, ou conseguiste ver mais para trás? Apercebeste-o mais como uma
sensação, uma sugestão, ou sentiste-o como se estivesses com a pessoa a
viver esse momento?
– Quer dizer que… acredita em mim?
Will acenou afirmativamente.
– Acredito em ti.
Evie inclinou-se para diante esperançosa.
– Foi como se me sentasse no cinema, mas a ver um filme em que o
projetor não fosse muito forte. Foi apenas um momento. Consegui ver a
minha mãe sentada ao toucador e sentir o que ela sentira quando usara a
pregadeira.
– E o que foi?
Evie olhou-o nos olhos.
– Desejou que tivesse sido eu a morrer em vez do James.
Will afastou o olhar.
– As mães amam igualmente todos os filhos.
– Não. Não amam. Isso é o que está convencionado dizer-se.
– E foi essa a primeira vez?
– Sim. Depois testei. Sempre que me concentrava num objeto, sentia
parte da sua história. Não é sempre da mesma maneira. Por vezes, as
imagens que vejo são esbatidas, outras vezes, mais fortes. Penso que,
quando a emoção é forte, sinto e vejo mais.
– Dirias que essa capacidade se tem tornado mais forte ou mais fraca?
– Não sei. Não tenho praticado como se tocasse castanholas – disse Evie.
– Será que se pode praticar como se fossem castanholas?
– Conheces alguém que consiga fazer o mesmo que tu? – inquiriu Will,
ignorando a pergunta.
– Há outras pessoas como eu?
– Se há, não se deram a conhecer. Disseste aos teus pais?
– Já foi difícil dizer-lhes depois do que aconteceu no Ohio. Pensam que
foi uma das minhas partidas.
– Muito bem – disse Will.
– Porque me está a fazer todas essas perguntas?
– Estou a tentar perceber – respondeu Will.
Nunca ninguém falara com Evie daquele modo. Os pais sempre quiseram
aconselhá-la, instruí-la ou dar-lhe ordens. Eram boas pessoas, mas
precisavam que o mundo se lhes curvasse, para caber na sua ordem de
coisas. Evie nunca se adaptara exatamente e quando tentava, acabava por
saltar dela, como uma boneca espremida para caber numa caixa demasiado
pequena.
– Então ninguém sabe – murmurou Will.
– Bem, exibi-me um pouco naquela festa a que a Theta me levou – disse
Evie, vacilante.
– Fizeste isto numa festa? – Will parecia assustado.
– Não foi nada de importante! Só disse às pessoas o que elas tinham
jantado, ou o nome dos cães ou dos filhos. A maioria das pessoas estava
com os copos. – Evie teve o cuidado de não dizer que tinha bebido. – Foi só
por brincadeira. Porque não haveria de o fazer?
– Não foi isso que te meteu em sarilhos?
– Isso foi no Ohio. Estamos em Nova Iorque. Se as raparigas podem
dançar quase nuas nos clubes noturnos, não sei porque não hei de pôr em
prática as minhas capacidades de adivinhação.
– As pessoas não têm medo de raparigas quase nuas nos clubes noturnos.
– Pensa então que terão medo de mim?
– As pessoas têm sempre medo daquilo que não compreendem,
Evangeline. A história prova-o. Suponho que, se estavam a beber... – Will
não terminou a frase. – E dizes que tiveste um desses episódios com a fivela
do sapato de Ruta Badowski?
Evie acenou afirmativamente.
– Vi uma sala terrível, uma fornalha enorme e o contorno de um homem,
creio. Mas foi apenas uma silhueta, uma sombra. Não tenho a certeza. –
Abanou a cabeça. – Crê que aquilo que vi estava relacionado com o crime?
Will tinha uma expressão rígida.
– Não sei.
– Pensa que devo contar à polícia? – perguntou Evie.
– Certamente que não.
– Porque não? Se ajudasse...
– Pensariam que eras maluca. Ou pior: alguém a tentar conseguir que o
seu nome apareça nos jornais. Terrence e eu somos amigos há algum tempo.
Sei o que a polícia pensa.
– Mas se conseguisse ler mais alguma coisa a partir dos crimes, alguma
coisa que pertencesse ao Tommy Duffy, por exemplo…
– Nem penses nisso – declarou Will. – Não creio que devas tocar no que
quer que seja que tenha a ver com estes crimes. – Will saltou da cadeira e
andou de um lado para o outro a todo o comprimento da sala. Parou a meio
para deitar a cinza num cinzeiro de prata de pé alto junto de um cadeirão às
riscas azuis e brancas que parecia nunca ter sido usado. Era como se a
energia de Will não lhe permitisse sentar-se tempo suficiente para nele
deixar uma impressão. – Vamos apanhar o nosso assassino com trabalho de
detetive à moda antiga, mesmo que tenhamos de ler todos os livros sobre
ocultismo que há na biblioteca do museu.
– Então... posso ficar? – perguntou Evie.
– Sim. Podes ficar. Por enquanto. Mas haverá novas regras. Nada de idas
a speakeasies. E deverás ajudar no museu.
– Claro. – Era melhor que o comboio de volta para o Ohio. E assim que
provasse ao tio como era indispensável, este teria de ficar com ela a longo
prazo.
– Obrigada, Tito. – Evie lançou os braços em redor do pescoço de Will
que se endireitou e esperou que ela se retirasse.
À porta, Jericho aclarou a garganta e esperou que dessem por ele. Deixou
cair a última edição do jornal sobre a secretária de Will.
– Talvez queira ler isto.
– «Exclusivo para o New York Daily News, por T. S. Woodhouse. O
Museu e o Crime do Pentagrama» – leu Will em voz alta. Franziu a testa e
abanou o jornal. – O que é isto?
Evie arrancou-lhe o jornal da mão e continuou a ler.
– «A cidade de Nova Iorque, essa animada metrópole não é alheia à
violência. Bugsy Siegel, Meyer Lansky e o resto da Companhia dos
Assassinos juntaram cadáveres mais depressa do que foi possível os chuis
aceitarem subornos para fazer vista grossa. Mas os Assassínios do
Pentagrama assustaram os habitantes de Nova Iorque, incluindo os mais
empedernidos. As mães não deixam os filhos jogar à bola nas ruas depois
do pôr do Sol. As empregadas das lojas gastam os tostões que tanto lhes
custam a ganhar em táxis para irem diretas para casa, para os seus
apartamentos em Murray Hill e na Rua Orchard, que nem sequer têm água
quente. O sultão do swing, o próprio Sr. Babe Ruth prometeu uma
recompensa de quinhentos dólares a quem tiver informações que levem à
captura desses terríveis inimigos. Mas no meio de toda esta criminomania
de Manhattan há uma chafarica que começa a destacar-se – o Museu
Americano do Folclore, Superstição e Ocultismo. O Museu dos Arrepios
para os que estão dentro do assunto.» Tito, o Museu chegou aos jornais! – e
continuou: – «Tem a ver com tudo o que é macabro e qualquer coisa
macabra é boa para o negócio. Numa destas sextas-feiras, este repórter
testemunhou uma multidão estacionada junto à entrada da mansão do velho
Cornelius T. Rathbone, perto de Central Park. Isto porque o curador do
Museu, o professor William Fitzgerald…» Oh! É o meu Tito! – exclamou
Evie – «ajuda a polícia a descobrir o que provoca este diabólico assassino
na esperança de o encontrar antes que ataque de novo. É assistido no seu
trabalho pela sobrinha, a menina Evie O’Neill, vinda de Zenith, Ohio, uma
elegante menina de dezassete anos que entende de tudo desde o penteado
das bruxas aos ossos dos conjurados chineses. Mas quando este repórter
tentou recolher informações acerca da caçada ao assassino, a dama fechou-
se em copas. “Receio bem não poder comentar acerca desse assunto”, disse
ela e piscou os seus belos olhos azuis. Rapazes, preparem-se. Há mais do
que um assassino nesta cidade.»
Evie tentou esconder um sorriso. Afinal T. S. Woodhouse cumprira o
prometido.
– Evangeline, falaste com este Woodhouse? – perguntou.
– Tito, não fazia a mínima ideia de que ele fosse um repórter! Era um
visitante do museu e pagou a entrada. Servi de cicerone. Quando começou a
fazer perguntas, cortei-lhe as vazas. O rapaz queria enganar-me!
– Tens de ter mais cuidado. Aprende a viver em Nova Iorque. – Will
bateu com um segundo cigarro na mesa antes de o acender, para compactar
mais o tabaco. – O que terá acontecido ao verdadeiro jornalismo?
– Não sabe? – comentou Jericho. – Não vende jornais.
– Tem toda a razão, Tito. Esse Woodhouse é um cretino. Mas pelo menos
mencionou o museu – disse Evie. – Sabe o que isso quer dizer?
Will soprou duas espirais de fumo pelas narinas.
– Sarilhos – declarou.
O telefone tocou sobressaltando-os a todos. Will atendeu e a sua
expressão endureceu.
– Vamos ter contigo.
– Que se passa? – perguntou Evie.
– O Assassino do Pentagrama atacou de novo.
O PAPÃO

Will e Evie foram recebidos à porta da Grande Loja Maçónica por um


homem baixo de bigode fino, cujos óculos redondos e escuros lhe
aumentavam os olhos para duas intermitentes órbitas azuis, que, segundo
Evie, faziam lembrar um mocho.
– Por aqui – disse o homem, nervoso. – A polícia já cá está, claro. –
Conduziu-os através de um corredor coberto de painéis de madeira até uma
porta lisa. Uma placa de latão informava tratar-se da Sala Gótica. O homem
baixo abriu a porta para uma abafada antecâmara, antes de abrir uma outra
para uma sala grande como a do santuário de uma igreja. O cheiro
perturbou imediatamente Evie – um terrível e penetrante odor a fumo e a
carne queimada que se lhe instalou ao fundo da garganta.
Os olhos de Evie concentraram-se em primeiro lugar na imponência da
sala: os tetos altos cobertos de madeira com lustres enormes. Numa
extremidade um órgão de tubos, no outro via-se a letra G colocada dentro
de um sol. No centro da sala um grupo de polícias e um médico-legista
rodeavam um pequeno altar. Afastaram-se e Evie soltou uma exclamação
ofegante. Sobre o altar via-se o corpo não totalmente queimado da última
vítima do Assassino do Pentagrama.
– Um elemento da nossa Fraternidade encontrou o corpo esta manhã,
cerca das dez horas – disse o homem que pestanejava. Hesitou ao
pronunciar a palavra corpo e o seu bigode encolheu-se desagradado. – O
Muito Venerado Grão-Mestre foi notificado por telegrama. Está fora com a
família.
– O defunto é o irmão Eugene Meriwether – declarou Malloy.
– É um Primeiro Vigilante – interrompeu o homem com cara de mocho.
– Era – declarou Malloy, para que o homenzinho soubesse quem estava
encarregado das investigações. – Ontem à noite ficou no gabinete a
trabalhar até tarde. Saiu cerca das oito para jantar com outros maçons num
restaurante da Oitava Avenida. Despediram-se, cerca das dez horas e o
senhor Meriwether voltou sozinho para aqui. Desta vez o assassino
adiantou-se.
Os olhos de Evie poisaram por reflexo nas protuberâncias arredondadas
das pernas do homem e sentiu uma tontura invadi-la. Agarrou-se a uma
cadeira para se firmar e fechar os olhos, mas a imagem residual manteve-se.
– Deixou na vítima a mesma marca do pentagrama. É a única parte do
corpo que não está queimada. – Apontou para um círculo de carne que fora
poupado no tronco do homem.
– Que o Grande Arquiteto nos proteja a todos – disse solenemente o
homem com cara de mocho.
– As portas estavam fechadas por dentro. – Malloy beliscou a cana do
nariz e semicerrou os olhos na direção do homem com cara de mocho. – Há
alguém aqui na Fraternidade com contas para ajustar? Ou talvez alguém
com alguns problemas mentais?
– Com certeza que não. – Os gigantescos olhos do homem não
pestanejaram por trás dos óculos. – George Washington, Benjamin Franklin,
John Jacob Astor, Henry Ford, Harry Houdini, Francis Bellamy, o autor do
Juramento de Lealdade, do próprio Juramento, meu caro senhor! São, todos
eles, nossos Irmãos. Este país não poderia ter sido fundado, nem ter
continuado a florescer, sem a influência maçónica.
O homem e o detetive Malloy começaram a discutir e as vozes de ambos
erguiam-se na sala profanada.
– «Estamos muito longe de casa e cansados» – disse por fim Will.
O homem dos olhos de mocho interrompeu o seu indignado discurso e
sorriu.
– Não o sabia dos nossos, meu caro senhor. Perdoe-me, senhor… –
Aproximou-se para um aperto de mão que Will evitou, concentrando-se no
cadáver.
– O falecido tinha inimigos?
– O senhor Meriwether? Não. Era altamente considerado.
– Pois bem, alguém não gostava dele – resmungou Malloy.
– Poderia ter vindo a ser o Muito Venerado Grão-Mestre. O seu discurso
no clube Kiwanis no ano passado foi muito bem recebido, muito bem
recebido.
– Não sabemos a mínima coisa, Will. Caramba! – Frustrado, Malloy deu
um pontapé na cadeira.
Apesar do trabalho não estavam mais perto de apanhar o louco. Uma
sensação de desespero pairava na sala misturada com o fumo. Evie
começou a aproximar-se do morto. O corpo fora queimado e ficara com
uma cor negro-azulada, com laivos de carne viva, avermelhada e húmida.
Tinha as mãos contorcidas e a cabeça arqueada para trás, como se soltasse
um grito de agonia. Devia ter sentido uma dor e medo inimagináveis. E se
Evie fizesse o que pensava, poderia muito bem saber os horrores por que
ele passara. Sentia o coração acelerado enquanto amadurecia a ideia. O anel
de Eugene Meriwether derretera-se no seu dedo enegrecido, mas poderia
ainda oferecer-lhe uma leitura.
O tio Will continuava a conversar com o homem com cara de mocho e
com o agente Malloy. Os outros agentes andavam pela sala a tomar notas.
Ninguém lhe prestava atenção. Era agora ou nunca. Evie respirou pela boca
e fechou a mão em redor da mão de Meriwether. Quando os seus dedos
passaram pelos do maçon, a pele esboroou-se um pouco e ela evitou soltar o
grito que lhe apertava a garganta. As lágrimas ardiam-lhe nos olhos e sentia
a respiração presa no peito.
Não deveria fazê-lo. Seria demasiado horrível. Ergueu a sua mão da mão
da vítima, procurando o conforto da moeda que trazia ao pescoço e veio-lhe
à ideia uma recordação.
– Porque tens de ir? – perguntara a James através das lágrimas, no jardim
de casa.
– Porque, miúda – respondera ele, limpando-lhe as lágrimas –, temos de
lutar pelo que está certo. Não podemos deixar que os tiranos vençam.
Evie respirou fundo três vezes e apertou a mão em redor do anel
parcialmente derretido e da carne esboroada do maçon. Teve vagamente
consciência de que rangia os dentes à medida que as imagens lhe surgiam
sob as pálpebras fechadas, como uma mancha de chuva cada vez mais
pesada.
Eugene Meriwether a dar brilho ao anel com um pano. Orgulhoso. Um
dia na praia com um amigo. O sol a brilhar na areia. Uma limonada... Evie
sentia a sua frescura. Mas nenhuma dessas recordações apanharia o
assassino. Evie apertou o anel com mais força, desejando que este lhe desse
mais informações, mas as imagens mantinham-se esbatidas e vacilantes,
fotografias passadas depressa de mais para que quem as via pudesse
encontrar nelas algo de significativo.
Respira, disse Evie para consigo. Devagar. Vê tudo. Mas era distraída
pelas terríveis condições do corpo e pelos seus nervos. Perdeu a ligação e
teve de se esforçar para a retomar. E depois ouviu: um assobio. Era a
mesma melodia que ouvira quando tocara na fivela do sapato de Ruta
Badowski. Evie tinha consciência do bater apressado do seu coração. No
seu estado onírico, viu-se de súbito junto a Eugene Meriwether enquanto
este caminhava pelo corredor escuro em direção à luz que jorrava da Sala
Gótica. A mão estendida. O puxador brilhante. A porta a abrir-se.
– Que está a fazer? – Um dos investigadores agarrou firmemente a mão
de Evie, interrompendo a ligação. Olhou-a com desagrado.
– Eu… eu… – murmurou Evie. – Estava a rezar – conseguiu dizer.
Estivera tão perto. Um momento mais e poderia ter visto o rosto do
assassino. Lágrimas de frustração corriam-lhe pelas faces e o polícia
acalmou-se.
Deu-lhe uma palmadinha no ombro.
– Vá queridinha, saia já daí.
Deixou-se conduzir. Não havia dúvida de que ouvira qualquer coisa. Seria
muito importante? O assobio teria vindo do assassino ou de qualquer outro
lado? Seria a mesma melodia? Era. Disso tinha a certeza.
Chegou uma equipa de mulheres da limpeza com os seus aventais
engomados com esfregões e baldes de água e sabão.
– Não toquem em nada! – exclamaram Malloy e Will ao mesmo tempo. O
homem com olhos de mocho enxotou-as com um gesto dos seus dedos
macios e elas retiraram-se para a sombra da antecâmara onde aguardariam
mais instruções.
– Temos aqui um belo sarilho, Will – disse Malloy.

Saíram a pestanejar para a luz enevoada da Rua 23 e foram rodeados por


uma onda de repórteres em grande berraria. A lâmpada de um flash apagou-
se e Evie pestanejou ao ver as manchas brilhantes dançando no ar.
– Abutres! – resmungou Malloy. – Saiam daqui!
T. S. Woodhouse aproximou-se a correr, com o bloco e o lápis na mão.
Nessa manhã tinha penteado com brilhantina o cabelo castanho
habitualmente em desalinho, mas agora caía-lhe uma madeixa sobre o olho
esquerdo à laia de véu. Evie esperava que ele não a denunciasse.
– Com licença! Cavalheiros, T. S. Woodhouse do Daily News. Ouvi dizer
que têm outro morto lá dentro. E esse não é nem uma dançarina de
maratona de Brooklyn nem um miúdo do West Side.
– Põe-te a andar, Woody – resmungou Malloy.
O insulto não pareceu fazer mossa no Sr. Woodhouse. Olhou para Evie e
depois voltou-se para Will.
– Que diz a isto, professor? Deve ser muito mau para terem ido chamar
um civil. Será uma guerra de gangues? A máfia? Anarquistas? Os
vermelhos? Os Wobblies? – Woodhouse sorriu. – O papão?
– Talvez tenha sido um repórter! – provocou-o Malloy. – Porque não
escreves isso, Woody? Dá-nos uma razão para mandarmos os teus rapazes
para a Rússia.
– Liberdade de imprensa, detetive.
– Liberdade dos chacais, isso sim. Da maneira como vocês jogam com os
factos, em breve todos leremos histórias tão verdadeiras como as que o meu
avô contava quando ia à pesca.
– Os anarquistas querem abolir o Estado – disse Will, como se ainda
continuasse a conversa anterior. – Querem causar todo o caos possível para
destruir a ordem. É metódico. Planeado.
O lápis do repórter escrevia a toda a pressa.
– Com que então é o papão, não?
– Amigo, não serás demasiado jovem para estes trabalhos? – perguntou,
de novo, Malloy.
– Já é tempo de nos livrarmos dos velhadas que escrevem historiazinhas
muito bonitas, detetive. Digo-lhe que é preciso sangue novo. Estamos no
mundo moderno. As pessoas precisam de notícias com emoção. Um pouco
de energia. Não concorda, menina O’Neill?
Evie não respondeu.
– Boa sorte – disse Malloy.
– Não acredito na sorte. Acredito na oportunidade. Na minha e na sua,
professor. Podíamos trabalhar juntos aqui. Pôr o assassino em maus lençóis.
O que me diz?
O tio Will assentou o chapéu e caminhou em direção à Sexta Avenida. T.
S. colocou-se ao lado de Evie e tocou no chapéu.
– Deve ter sido uma cena horrível o que viu ali, pobrezinha. Está a
tremer, deixe-me ajudá-la. Com licença, com licença, pessoal, deixem
passar.
T. S. Woodhouse conduziu Evie a um local atrás do carro da polícia.
Abriu o casaco e mostrou um termo.
– Ah, a menina, não precisará de um pouco de coragem líquida?
Evie tomou um gole e logo a seguir mais outro.
– Obrigada.
– Não tem de agradecer. Mas até pode dizer como era a cena lá dentro.
Evie pô-lo ao corrente de alguns pormenores, ocultando
propositadamente outros.
– Se alguma vez precisar de um favor, avise aqui o T. S. Woodhouse.
– Não me vou esquecer, senhor Woodhouse.
Evie tomou outro gole do termo e endireitou o lenço.
– Que tal estou?
T. S. Woodhouse sorriu.
– Está estupenda, Sheba.
– Veja se o seu fotógrafo me apanha do lado esquerdo. É o meu lado bom.
Oh, e não devemos parecer amigos. Sabe bem porquê.
T. S. Woodhouse esboçou um sorriso com os lábios apertados.
– Só falamos de negócios.
– Não há pior classe de seres humanos nesta terra do que os insensíveis
assassinos. Exceto os repórteres – disse Evie em voz alta, enquanto passava
pela corrente humana de polícias que continha os jornalistas. Voltou-se
ligeiramente, mantendo a pose para que o fotógrafo do Daily News lhe
tirasse a fotografia. Depois, lançando a echarpe para cima do ombro, correu
em direção a Will e ao carro que esperava na esquina.
A dor de cabeça começara. Evie encostou-se no assento e ficou a ver
passar a Sexta Avenida pelas janelas do carro da polícia. Numa rua lateral,
vários rapazes jogavam à bola, perfeitamente descansados, sem saber o que
se passava, Evie esperava que se mantivessem assim durante muito tempo.
No banco da frente, o agente Malloy rabiscava o seu bloco de
apontamentos. O ruído do lápis fazia-lhe doer ainda mais a cabeça. Fechou
os olhos. Não tinha consciência de que assobiava a canção que ouvira no
Templo, até Malloy dizer.
– Há muito tempo que não ouvia isso.
Evie inclinou-se para a frente.
– Conhece a canção? O que é?
– John Perverso, John Perverso trabalha com o avental posto – cantou
Malloy. – Corta-te o pescoço, leva-te os ossos e vende-os por uma mão-
cheia de pedras. No meu bairro costumavam cantar isto para assustar os
miúdos e conseguir que se portassem bem. Diziam que o John Perverso
viria buscá-los se fizessem asneiras.
– Quem?
– O John Perverso. John Hobbes. Ladrão de sepulturas, burlão e
assassino. Guardava os ossos das pessoas em casa, uma velha mansão na
zona norte da cidade.
– Acha que ele poderá estar por detrás destes crimes?
Malloy sorriu com ar superior.
– Será pouco provável, menina O’Neill.
– Porquê?
Malloy deixou de escrever e olhou-a nos olhos.
– Porque John Hobbes está morto. E já está nesse estado há quase um
século.
JOHN PERVERSO

Evie seguiu Will até ao museu, falando rapidamente apesar de sentir a


cabeça a latejar.
– Ouvi essa mesma canção com a fivela da Ruta Badowski e depois com
o anel do Eugene Meriwether.
– Não te pedi especificamente que não fizesses essas coisas?
– E se houvesse alguma ligação que tivéssemos ignorado? E se o
assassino tivesse copiado os feitos do John Perverso?
– Estás a basear os teus pressupostos numa canção...
– Uma canção que sabemos estar associada a um assassino!
– É um palpite algo questionável para seguir...
Jericho e Sam observavam o desenrolar da cena como se fosse um jogo
de ténis a dar para o torto.
– Que se passa? – perguntou Jericho ao mesmo tempo que Sam
perguntava a Evie.
– Porque haverias de tocar no anel de um morto?
Will e Evie ignoraram-nos e continuaram a discutir.
– Tocavas no anel de um morto? – perguntou Sam a Jericho, que encolheu
os ombros.
– Tito, é a única pista que temos – declarou Evie.
– Muito bem – disse Will após uma pausa. – Se sentes que é mesmo
assim...
– Sinto.
– Então podes fazer o mesmo que os académicos quando se apaixonam
por um determinado assunto.
– O que é?
– Podes visitar a biblioteca – declarou Will. – A Biblioteca Pública de
Nova Iorque deve ter o que precisas de saber acerca desse John Hobbes.
– Então é o que vou fazer. – Evie pendurou o chapéu e a echarpe na pata
do urso empalhado.
– Sabemos que o assassino age seguindo o Livro dos Irmãos – disse Will.
– O Templo de Salomão: os pedreiros-livres também se referem às suas
lojas como templos e consideram-se descendentes do rei Salomão.
– Tivemos a ideia certa, mas a ligação errada – disse Sam. – Qual é a
oferenda seguinte – perguntou.
Jericho voltou a página do Livro dos Irmãos.
– Oitava oferenda, a Veneração do Arauto Angélico – disse e começou
imediatamente a sugerir possibilidades. – Anjos... uma igreja, um padre ou
uma freira, alguém chamado Angel ou Angelica. Um arauto... um
mensageiro qualquer... carteiro, locutor de rádio, repórter, músico...
– Repórter – repetiu Evie, esfregando as têmporas.
– Que se passa? – perguntou Will.
– É só uma dor de cabeça.
– Uma dor de cabeça? Quando começou? – perguntou Will.
– Não é nada de especial. A minha mãe diz que preciso de lunetas...
humm, óculos, mas sou muito vaidosa e não os quero usar. Disse-lhe que a
minha visão é ótima. A sério, com duas aspirinas fico como nova.
Jericho trouxe a Evie duas aspirinas e um copo de água.
– Tito, porque me olha dessa maneira? – perguntou Evie.
Will observava-a de sobrolho franzido. Depois ocupou-se com uma inútil
arrumação da sua secretária.
– Toma a aspirina – foi a sua resposta.
A PESSOA ERRADA

Memphis estava distraído. Durante todo o dia reviu o seu encontro com
Theta, a emoção da sua fuga da polícia. O modo como ela o olhara quando
se apercebeu de que tinham conseguido, com gratidão e alguma timidez.
Naquele momento, Memphis nada mais desejara do que arrebatá-la num
beijo romântico. De facto, foi o pensar naquele beijo que quase lhe
provocou problemas. Nessa manhã, quando foi ao salão da Sr.ª Jordan para
escrever os papelinhos, trocou os números habituais da Sr.ª Jordan com os
da Sr.ª Robinson por ter o pensamento muito longe dali.
– Memphis, onde estás com a cabeça? – perguntou a Sr.ª Jordan com
simpatia e Memphis pediu desculpa e correu a entregar os números na
Barbearia Floyd pouco antes do fecho.
Papa Charles convocara uma reunião no Restaurante Dee-Luxe, um dos
que lhe pertencia, para discutir a desastrosa rusga do dia anterior. Garantiu a
todos que a situação era de pouca monta, um mal-entendido já prestes a ser
resolvido e que o cadeado em breve seria retirado das portas do Hotsy
Totsy. Mas Memphis percebia que sob os seus elegantes modos e o seu
calmo discurso, o Papa Charles estava nervoso. Tinha o tal tique no queixo
que Memphis já algumas vezes lhe notara, quando tinha de lidar com um
cliente embriagado e beligerante ou um contrabandista drogado. Mas,
mesmo assim, Memphis não deixava de pensar em Theta.
Theta, Theta, Theta. Encontrara a rapariga dos seus sonhos – uma
rapariga que tinha o mesmo sonho que ele – e perdera-a por entre a
multidão. Logo quando sentira que o seu destino estava a tomar forma,
perdera-a. Não sabia onde ela vivia, de onde era, nem sequer o apelido dela.
E aquele pássaro louco voltara, seguindo-o a cada passo.
– Xô! – Memphis agitava as mãos na direção do corvo. – Vá, Berenice!
Sai!
E agora Memphis estava atrasado para ir buscar Isaiah à escola. Entrou na
sala de aula cheio de desculpas, mas Isaiah não quis saber de desgraças. Na
rua, de mau humor, o irmão seguia aos pontapés a uma pedra, metendo-a na
valeta.
– Devias estar aqui às três horas!
– Tive coisas que fazer, Homem de Gelo.
– Que coisas?
– Coisas minhas. Não é nada contigo.
– Para a próxima vou sozinho para casa.
– Para a próxima não me atraso.
– Calhando andas por aí aos saltos com aquela Princesa Crioula –
resmungou Isaiah.
Memphis parou.
– Onde é que ouviste isso?
Isaiah desatou a rir.
– Vi escrito no teu caderno ontem à noite. O Memphis arranjou uma
namorada! O Memphis arranjou uma na-mo-ra-da!
Memphis pegou no braço de Isaiah.
– Ouve bem: o caderno é privado. Pertence-me. Percebeste?
Isaiah espetou o queixo.
– Larga-me o braço!
– Promete!
– Larga! – Isaiah soltou-se e desatou a correr pela rua movimentada. Era
imprevisível quando se enfurecia e tanto podia queixar-se a Octavia como
não.
Memphis acalmou-se. Não havia necessidade de descarregar as suas
frustrações em Isaiah, por muito aborrecido que estivesse. Apressou-se a
apanhá-lo, dizendo:
– Não te zangues, Homem de Gelo. Anda, vamos comer um hambúrguer
ao senhor Reggie. Podes sentar-te ao balcão, nos bancos giratórios. Mas não
dês muitas voltas para não vomitares o hambúrguer.
Isaiah parou. Tinha o nariz a pingar.
– Quero chocolate.
– Então dou-te chocolate – prometeu Memphis.
Memphis estava preocupado com Isaiah. Fora por acaso que a irmã
Walker lhe descobrira aqueles talentos especiais. Havia cerca de seis meses
que se mudara para o Harlem e fora visitar Octavia. Dissera ser uma velha
amiga da mãe deles e ficara triste ao saber o que ela passara.
– A Viola era muito boa mulher – dissera a irmã Walker.
Octavia observara-a e não ficara convencida.
– Estranho, ela nunca me ter falado de si. E éramos tão próximas.
– Ora, suponho que até as irmãs guardam alguns segredos – respondera a
irmã Walker e Memphis percebera que aquilo não assentara bem à tia.
Mas quando a menina Walker se ofereceu para ajudar Isaiah com a
aritmética, uma disciplina que lhe causava problemas, e ainda por cima de
graça, Octavia cedeu. Um dia, enquanto a irmã Walker usava as cartas para
lhe ensinar a multiplicação, Isaiah começou a dizer quais eram
antecipadamente e a irmã perguntou-lhe se ele sabia fazer outras coisas.
Disse que era um dom que o poderia ajudar na vida e incentivou-o a
trabalhá-lo como se fosse uma disciplina da escola. Memphis não via como
esse dom seria uma ajuda para a vida de Isaiah, como era para Gabe tocar
trompete ou resolver equações numéricas era para a Sr.ª Ward na escola. E
se alguma vez Octavia descobrisse o que de facto se passava em casa da
irmã Walker, teria uma fúria nunca vista. Mas era importante para Isaiah.
Fazia-o sentir-se especial e feliz como antes, quando a mãe ainda era viva e
brincava com eles às escondidas enquanto estendia a roupa na corda no
jardim que partilhavam com os Touissant na casa da Rua 145. Memphis
ainda se lembrava do riso da mãe quando dizia: «Muito bem, vamos ver
agora se conseguem estender estes lençóis tão bem como se escondem
neles.»
Tinham sido tempos felizes, o pai voltava para casa do trabalho na
Orquestra de Gerard Lockhart e perguntava jovial: «Ora muito bem, o que
andaram hoje a fazer os irmãos Campbell?» Memphis tinha saudades do
cheiro do cachimbo do pai na sala da frente. Por vezes passava pela loja de
tabaco na Avenida Lenox só para avivar a memória desse aroma.
– Toma conta do Isaiah – dissera a mãe. Nessa altura estava pele e osso,
deitada na sala da frente, a doença roubando-lhe a alegria que ele tanto
gostava de ver nela. Tinha os olhos cavos. – Promete-me. – E ele
prometera. Três dias depois enterraram-na no Cemitério de Woodlawn. A
Orquestra de Gerard Lockhart mudou-se para Chicago e o pai de Memphis
foi também até poder poupar o suficiente para mandar para os filhos. Mas
nunca parecia ser suficiente e ali tinham ficado no quarto das traseiras em
casa de Octavia.
Isaiah era tudo o que restava desses dias felizes em que a família estava
toda junta e bastava entrar em casa para ouvir alguém a rir ou a perguntar,
«Quem está a bater à minha porta?» e Memphis agarrava-se com força ao
irmão. Se alguma coisa acontecesse a Isaiah não sabia se conseguiria
sobreviver.
Mas tudo aquilo já pertencia ao passado e ele não ia ficar agarrado ao que
já não voltava. A noite anterior com Theta dera-lhe uma nova esperança.
Ela estava algures naquela cidade e Memphis tencionava procurá-la até
voltar a encontrá-la.
Na farmácia17 ele e Isaiah ocuparam dois lugares ao balcão e o Sr. Reggie
preparou-lhes os pedidos, pressionando com uma espátula os dois
hambúrgueres na grelha que soltava um reconfortante assobio de gordura e
calor. Passou-os para pratos e serviu-os juntamente com uma gasosa para
Memphis e um batido de chocolate para Isaiah. Este encarregou-se
imediatamente de meter na boca colheradas do gelado deixando escorrer
metade pelo queixo.
– Parece-me que cheguei mesmo a tempo. – Gabe deixou-se cair no
banco ao lado de Memphis e agarrou-lhe o hambúrguer para lhe dar uma
generosa dentada. – Senhor Campbell. Exatamente o homem que eu queria
encontrar. A Alma vai dar uma festa de angariação de fundos para pagar a
renda. E nós vamos. E arranjei para nós uma pipa de massa.
Gabe entregou-lhe um maço de notas.
– Em frente do Isaiah, não – murmurou Memphis.
– Ele não sabe do que estamos a falar. Está a adorar aquele batido – disse
Gabe.
– Não sei o quê? – perguntou Isaiah.
Memphis lançou um olhar a Gabe Estás a ver?
Gabe apertou os lábios e cruzou os braços.
– Rapaz, por acaso terás ouvidos mágicos?
Isaiah sorriu.
– Não. Mas tenho poderes.
– Isaiah – avisou-o Memphis.
– Ah, não me digas! Eu sei como é – troçou Gabe.
– Aposto que sei quanto dinheiro tens no bolso – disse Isaiah dando a
volta no banco do bar.
– Isaiah, o Gabe não tem tempo agora para as tuas brincadeiras – disse
Memphis ríspido. – Come já!
Isaiah semicerrou os olhos. Memphis conhecia bem aquele olhar para
saber que a seguir vinham problemas.
– Tens uma nota de cinco, uma de um e duas moedas de vinte cinco
cêntimos. E a direção de uma senhora chamada Cymbelline.
Gabe esvaziou os bolsos e uniu as sobrancelhas.
– Como sabes?
– Eu bem te disse que tinha um dom. Também sei fazer profecias.
– Ele não sabe fazer nada disso. Isaiah, deixa-te de histórias – disse
Memphis, lançando ao irmão outro olhar de aviso.
– Posso dizer o que me apetecer – respondeu bruscamente Isaiah.
– Ele pode dizer o que lhe apetecer – disse Gabe a sorrir. – Diz-me outra
coisa, rapaz.
– Por vezes consigo ver o futuro das pessoas.
– Isaiah, acaba já com isso. Olha que temos de ir para casa...
– Espera aí, meu. O puto vai dizer-me o futuro. Talvez saiba alguma coisa
das gravações. Diz-me lá Isaiah, achas que vou ser a nova estrela da Okeh
Records.
– Tenho de tocar em ti.
– Senhor Reggie! Desculpe, senhor Reggie! – disse Memphis
rapidamente. – Quanto lhe devemos?
– Espera um segundo, Memphis – disse o Sr. Reggie. Trazia dois pratos
de comida nas mãos.
– Diz-me – murmurou Gabe, estendendo a mão. Isaiah tomou-a na sua e
concentrou-se. Depois de uns segundos deixou cair rapidamente a mão de
Gabe e recuou com os olhos muito abertos.
– O que viste? Não me digas... ela é feia? – troçou Gabe.
– Não vi nada – respondeu Isaiah e olhou para Memphis com os olhos
muito abertos. Memphis percebeu que o irmão ficara muito assustado com
o que vira.
– Vai buscar o casaco, Homem de Gelo.
Mas Gabe não o deixava em paz.
– Vá lá! O que foi que viste para o teu amigo Gabriel?
– Debaixo da ponte... não passes por baixo da ponte – disse Isaiah em voz
baixa. – Ele está lá.
– Que ponte? Ele quem? Que me vai acontecer se eu passar?
– Vais morrer.
– Isaiah! – vociferou Memphis. – Ele não quer dizer isso, mano. Só está a
brincar. Pede desculpa, Isaiah.
Com os olhos muito abertos, Isaiah afastou os olhos de Memphis, fitou
Gabriel e olhou de novo para Memphis.
– Desculpa, Gabe – disse baixinho.
– Estavas só a brincar, Isaiah? – perguntou Gabe.
– Estava sim – murmurou Isaiah, com a cabeça baixa.
O rosto de Gabe descontraiu-se num sorriso em parte de alívio, em parte
de aborrecimento.
– Maninhos – disse, abanando a cabeça. Deu uma palmada nas costas de
Memphis. – Não te esqueças do resto, Memphis.
– Não me esqueço.
O cego Bill Johnson estava sentado num canto com uma caneca de sopa
que Reggie tivera a delicadeza de lhe oferecer. A sopa era rala, mas estava
quente e ele comia-a vagarosamente enquanto se desenrolava a cena ao
balcão. Agora que terminara, pôs a viola às costas com um gemido e seguiu
batendo com a bengala pelas ruas do Harlem. O ar cheirava a chuva. Não
gostava de chuva, recordava-lhe a Luisiana. Era filho de um rendeiro com
dois olhos bons, apanhava algodão o dia inteiro e a chuva quase afogava
quem queria cumprir a sua quota. Recordava-lhe o dia em que o dono, o Sr.
Smith lhe batera com uma correia por tê-lo apanhado a tocar viola em vez
de apanhar algodão e como, mais tarde, metade da colheita do homem se
estragara – queimada e transformada em tufos – e encontraram o corpo
dilatado do Sr. Smith no rio, inchado como uma saca de arroz apodrecido e
as más-línguas diziam que não se podia confiar em Bill Johnson, porque
havia nele qualquer coisa de mabouya. Que ele ficara no cruzamento à
meia-noite e amaldiçoara o Papa Legba. Que cuspira na cruz. Que vendera
a alma ao Diabo.
Chovia na noite em que os homens de fato escuro chegaram ao
acampamento. As colheitas tinham chamado a atenção. Espalhara-se o
rumor de que a culpa poderia ser de Bill Johnson. Que podia matar um cão
velho que precisasse de misericórdia ou que, quando estava zangado,
segurava uma borboleta na mão e esta morria. Os homens de fatos escuros
sentaram-se, calmos e pacientes como tudo, só sorrisos e delicadezas na
sala do Sr. Tate a beber limonada por copos cobertos de gotas.
Trouxeram Bill à presença deles. Era um homem robusto, de vinte anos e
um metro e oitenta, a pele macia e castanho-escura, livre das marcas que os
antepassados ostentavam envergonhados. Bill sentou-se numa velha cadeira
de cana, com as mãos nos joelhos, enquanto os homens faziam perguntas:
Bill quereria ajudar a manter o país seguro? Gostaria de ir com eles e
conversar?
Bill queria sair dos campos e da Luisiana com os seus homens de capuzes
brancos que incendiavam a noite com as suas cruzes. Fora com os homens
de fato escuro na parte de trás do carro com as cortinas das janelas laterais
corridas.
Fez as coisas que lhe pediram. Falara-lhes do que era capaz de fazer com
o corpo, mostrara-lhes como a sua coluna se dobrava e o cabelo
embranquecia. Tinha apenas vinte anos, mas parecia ter cinquenta. Os
homens tinham esboçado os mesmos sorrisos suaves e dito: «Só mais uma
vez Bill.»
E quando a sua vista se limitou a pequenos pontos de luz indistinta que
em breve passara a negro, mandaram-no embora sem nada. Restava-lhe a
viola e uma cicatriz saliente na pele e um aperto de mão de aviso para que
não falasse. Perdera a vista. Tinha o corpo quebrado e cansado. E o dom –
se é que assim se poderia chamar – também parecia tê-lo abandonado.
Quantas vezes não invetivara o céu e desejara ter o dom de volta? E depois,
subitamente, cerca de três meses atrás, sentira as primeiras palpitações de
esperança. Apenas precisava da faísca certa para o retomar.
Agora, enquanto os irmãos Campbell saíam do drugstore do Reggie,
fazendo soar a pequena campainha sobre a porta, Bill ouvia-os a discutir. O
Campbell mais novo tinha o dom – era mais que evidente – e o mais velho
queria guardar segredo. Fazia bem. Não era bom que todos soubessem
segredos desses. Podiam ser descobertos pelas pessoas erradas. Por alguém
que até nem soubesse como eram perigosos.
As primeiras gotas de chuva caíram nos óculos escuros de Bill que
franziu o nariz. Maldita chuva. sem pensar esfregou a cicatriz da mão
esquerda e desceu a colina a bater com a bengala.
17 Nas farmácias americanas vendiam-se também refeições ligeiras e bebidas. (N. da T.)
ESTRELA CELESTIAL

Theta estava amuada. Qualquer pessoa pensaria que, provavelmente, estaria


aborrecida, mas Henry que tudo sabia acerca de Theta tinha a certeza de
que estava amuada. Viu-a sentada na beira do palco no seu fato de uma peça
de calções e meias pretas que lhe emolduravam o corpo esguio. Atara na
testa uma echarpe com desenhos de cornucópias à maneira boémia. Tinha
os lábios pintados de vermelho, num contraste com os seus olhos castanhos
e a elegante pele morena.
Henry sentou-se ao piano e viu-a suspirar amuada, balançando uma
perna.
– O senhor Ziegfeld chegará em breve, pessoal – gritou o contrarregra. –
Quer trabalhar o número da Estrela Celestial do segundo ato. Acha que está
a ficar chato.
– É chato. As piadas já eram velhas quando a minha mãe nasceu. E a
canção é péssima – declarou bruscamente Theta, acendendo um cigarro.
– Como sempre agradecemos-te a tua valiosa opinião, Theta – respondeu.
– Talvez se passasses mais tempo a ensaiar os passos e menos a queixar-te
tivéssemos espetáculo. Um intervalo de dez minutos para todos.
– Era capaz de fazer aqueles passos com as duas pernas partidas –
resmungou Theta empoleirando-se no banco do piano ao lado de Henry.
– Há aqui uma pessoa rabugenta – disse Henry para se meter com ela,
mas para que só Theta pudesse ouvir.
Ela descansou a cabeleira negra no ombro dele.
– Obrigada pela compreensão.
– Ainda continuas a chorar pelo teu misterioso cavaleiro de armadura
brilhante?
– Se o conhecesses, compreenderias.
– É bonito? – perguntou Henry, com um gorjeio sensual.
– E de que maneira.
– Galante? – Mudou para o ritmo heroico de um galope.
– Muito.
A música de Henry tornou-se suave e romântica.
– Encantador, mas sensível.
– Hã-hã.
– Rico?
Theta abanou a cabeça.
– Um poeta.
– Um poeta? – Poisou as mãos com força para emitir notas discordantes.
– Não ouviste dizer, minha querida, que deves casar por dinheiro e não por
amor?
– Tem o mesmo sonho que eu, Hen. Viu aquele estranho olho com o raio
e a encruzilhada. Quais são as possibilidades disso acontecer?
– Tenho de admitir que é bastante assustador. – Henry baixou a voz. –
Julgas que ele seja… especial como tu e eu?
– Não sei. Havia qualquer coisa nele que me levou a sentir que o conhecia
de toda a vida. Não consigo explicar.
Henry executou um pequeno número de jazz da sua autoria.
– Estás a fazer-me ciúmes.
Theta deu-lhe um beijo na face.
– Nunca ninguém te substituirá, Henry. Sabes perfeitamente.
– Podíamos ir ao Harlem tentar encontrá-lo.
– O Hotsy Totsy está fechado a cadeado.
– Há outros clubes onde procurar. E, ao mesmo tempo, podias ver quais
os que contratam bailarinas, porque sabes perfeitamente o que o Flo vai
dizer quando souber que namoras o negro do jogo dos papelinhos.
– O Flo não precisa de saber.
– O Flo sabe tudo.
Wally veio a correr pela coxia, batendo as palmas para conseguir a
atenção de todos.
– Toda a gente aos seus lugares! Chegou o senhor Ziegfeld!
O ensaio foi longo e desencorajador. Nada agradou ao Sr. Ziegfeld. O Sr.
Ziegfeld detestou tudo. Interrompeu-os durante todos os números a gritar.
– Não, não e não! Pode estar muito bem para o Scandals, mas isto é um
espetáculo Ziegfeld! Representamos aqui alguma coisa.
Estavam a apresentar o número da Estrela Celestial havia quase uma hora
e nada saía como devia ser.
– Essa parte não encaixa – gritou o Sr. Ziegfeld do fundo do teatro. Era
um homem elegante com o cabelo branco penteado para trás e um bigode
impecavelmente aparado. Dizia-se que os seus fatos, andava sempre de fato,
eram feitos em Savile Row, em Londres. – Precisamos de gargalhadas. De
qualquer coisa.
– Pois bem, podíamos trazer de volta o senhor Rogers – disse Wally.
– Não estou preocupado com o Will Rogers. O Will Rogers podia
gargarejar e seria engraçado! Estou preocupado com este número!
Estavam todos nervosos. Quando o Sr. Ziegfeld não estava satisfeito,
ninguém estava satisfeito. Podia despedi-los a todos e contratar um novo
coro, transformando tudo num golpe publicitário.
– Outra vez! – vociferou o grande Ziegfeld.
Henry atirou-se à música. A estrela da peça, um cantor arrogante
chamado Don, desceu a larga escadaria, cantando num vibrato
melodramático: «Stars up in heaven, fall from the sky. So tell me, my
darling, why can’t I fall into your arms like a heavenly star, and live there
forever just as you are…»
No piano, Henry revirou os olhos quando Theta olhou para ele. Formou
as palavras prisão de ventre com os lábios e Theta tentou não soltar uma
gargalhada.
Com os braços no ar, as jovens iniciaram a elegante descida. Na plateia,
Flo observava como se chupasse funcho avinagrado. Theta sabia que
acabariam por repetir. Mas por muitos ensaios que houvesse nunca
conseguiriam aperfeiçoar o número. Era horrível – sentimental e de mau
gosto. Enquanto executava cuidadosamente cada passo, lembrava-se do
conselho que lhe tinham dado no vaudeville. Se queres que se riam, faz algo
inesperado.
Enquanto as jovens desciam graciosamente a longa escadaria, Theta,
intencionalmente, avançou ao contrário, deslizando para a esquerda como
uma desorientada Isadora Duncan, perturbando as outras jovens que
tiveram de se deslocar à pressa para a rodear.
– Ei, cuidado! – queixou-se Daisy.
– Desculpa, mamã – disse Theta conseguindo obter resmungos de outras
jovens.
– Theta! Que estás a fazer? Volta para a fila! – gritou Wally.
Theta continuou. Esbarrou com a brilhante estrela celestial.
– Oh! – disse, acariciando-a como se fosse uma rapariga embriagada. –
Desculpe, senhor Rogers.
A companhia olhou nervosamente para Theta e depois de novo para o Sr.
Ziegfeld sentado na plateia. Don, nada entusiasmado, retomou a canção
fitando Theta com um sorriso pouco à vontade. Esta subiu as escadas aos
tropeções, cantarolando.
– Não pares, Don, querido. Estás a ir lindamente! Até o senhor Rogers
gostou – disse apontando para a estrela brilhante. – Oh, Henry!
Theta correu para junto de Henry, perto das coxias do palco e lançou-lhe
os braços ao pescoço para lhe dar um beijo apaixonado.
– Oh, não faz mal. É meu irmão.
– Não digas nada às nossas mães – respondeu ele com graça e toda a
gente riu, exceto Don, Daisy e Wally que corou.
– Menina Knight! Já basta deste seu péssimo comportamento...
– Bolas, Wally, não foi isso que disseste ontem à noite – declarou Theta.
Aproximava-se perigosamente do abismo. Poderia até cair. Parecia-lhe que
dentro de instantes seria mandada para a rua. Algures na escuridão, Flo
observava, à espera para dar o seu veredito.
– Senhor Ziegfeld, não consigo trabalhar nestas condições – resmungou.
O silêncio caiu sobre toda a companhia, enquanto o grande Florenz
Ziegfeld marchava pela coxia central.
– Pois bem, Don. Não precisas. Posso arranjar outra pessoa. – O Sr.
Ziegfeld olhou para Theta, semicerrando os olhos. Esboçou lentamente um
sorriso, aplaudindo a representação. – Pronto, isto foi divertido!
Theta soltou a respiração que contivera.
Ziegfeld apontou para o contrarregra, falando à velocidade do trânsito de
Nova Iorque.
– Wally, acrescenta esta parte e constrói uma cena com ela. E quero uma
notícia nos jornais: «Ziegfeld descobre uma nova estrela em...» – Sorriu
para Theta.
– Theta. Theta Knight.
– Menina Theta Knight!
– E o irmão Henry DuBois – acrescentou Theta.
As coristas riram outra vez, exceto Daisy, que se pusera do lado de Don.
Lançava a Theta olhares assassinos.
– E o irmão – repetiu Flo. – Gosto desta miúda. De onde és queridinha?
– Do Connecticut – mentiu Theta.
– Do Connecticut? Mas alguém nasce no Connecticut? – O grande
Ziegfeld fez uma careta como se provasse leite azedo. Andou de um lado
para outro junto ao fosso de orquestra, a pensar.
– És um membro há muito desparecido da nobreza russa, cujos pais
foram mortos pelos comunistas... é o que apela ao coração das pessoas.
Foste retirada do país por criados fiéis que numa ousada fuga a meio da
noite te meteram num navio para a América, terra de sonhos. Wally, vamos
tirar-lhe umas fotografias num navio. Põe-lhe um laço na cabeça. Um laço
grande. Azul. Não, encarnado! Não, azul. Amor, faz um olhar triste.
Theta lançou os olhos ao céu e apertou as mãos no peito.
– Acha que está suficientemente triste? – perguntou pelo canto da boca
amargurada.
– Perfeito! Mais um minuto e precisava de um lenço. Depois foste criada
em Brooklyn por umas bondosas freiras... Wally descobre-me um colégio
de freiras em Brooklyn que precise de donativos... que a minha querida
mulher Billie foi visitar... trata de pôr essa parte da Billie, mais uma
fotografia dela com um bebé ao colo... e ouviu-te cantar «Noite Feliz». –
Ziegfeld fez uma careta. – A «Noite Feliz» será de mais?
Olhou para Henry que encolheu os ombros.
– Então fica a «Noite Feliz» – continuou o grande Ziegfeld. – E Billie
trouxe-te para mim, o teu tio Flo, que reconhece imediatamente a beleza e o
talento assim que os vê. Gosto. Estás prestes a tornar-te famosa, miúda.
– Senhor Ziegfeld, o Henry podia escrever-lhe um número estupendo. É
muito talentoso. – Theta lançou a Henry um olhar como que a dizer-lhe
Fala sobre ti, homem.
– Podia.
– Ótimo, ótimo. Hank...
– Henry, senhor Ziegfeld.
– Pois escreve-me esse número, Hank. Torna-o…
– Trauteável – terminou Henry por ele.
– Exatamente!
Henry voltou-se para Theta com uma expressão de Eu bem te disse no
rosto, e ela respondeu com um leve encolher de ombros como que a
perguntar, O que hás de fazer?
– Wally, põe tudo isto a andar. Tenho de ir ter com a Billie para ir ver uma
casa de campo... só essa mulher para gastar dinheiro. Felizmente tenho
muito.
– Claro, senhor Ziegfeld – disse Wally seguindo o grande homem até à
porta. Olhou para trás para Theta que lhe deitou a língua de fora.
As raparigas rodearam Theta, felicitando-a pela sua sorte, enquanto Daisy
lhe lançava uma série de impropérios.
– Atropelar os outros no palco não é muito bonito – alvitrou Don quando
passou por ela.
– Se tu prestasses, não conseguiria atropelar-te, Don – gritou Theta.
Abraçou Henry. – Sabes o que isto significa?
– Mais ensaios?
– Vamos por fim poder comprar um piano, Hen. E toda a gente vai sair do
espetáculo a cantar a tua canção.
– Queres dizer a trautear a minha canção.
– Não te faças engraçado. É um princípio.
– Já estou a ver – disse Henry, agitando as mãos. – Florenz Ziegfeld
apresenta a memorável melodia do senhor Henry DuBois «Blues da Prisão
de Ventre»!
Theta bateu-lhe.
CHAMAR O DIABO

A Biblioteca Pública de Nova Iorque, a imponente rainha das belas-artes


dos livros, preside à Quinta Avenida entre as Ruas 40 e 42 com uma
majestade que poucos edifícios conseguem igualar. Exatamente às dez
horas da manhã, Evie chegou junto dos grandiosos degraus de mármore,
confiante de que encontraria o necessário para abrir o caso do Assassino do
Pentagrama e que lhe bastaria cerca de meia hora, mais coisa, menos coisa.
Andara atrás do detetive Malloy para que este lhe contasse o que sabia
acerca de John Hobbes, que não era muito. Acabou por lhe dizer que o
homem fora enforcado, julgava ele, algures em 1876.
– Yes, sir, That’s my baby. No, sir, don’t mean maybe. Yes sir, that’s my
baby, now – cantarolava ao passar pelos dois leões de pedra esculpida que
guardavam a entrada. Fez uma festa na pata direita de um deles. «Lindo
gatinho», e entrou.
Mandaram-na subir três lanços de escadas de caracol até uma enorme sala
forrada de painéis de madeira e coberta de estantes. Um bibliotecário cuja
placa metálica o identificava como sendo um tal Sr. J. Martin, ergueu os
olhos de um exemplar de A Casa da Felicidade de Edith Wharton.
– Posso ajudá-la?
– Po-si-ti-va-men-te! – Evie sorriu. – Tenho de investigar umas coisas
acerca de um assassino para o meu tio, o doutor William Fitzgerald do
Museu Americano de Folclore, Superstição e Ocultismo. Talvez já tenha
ouvido falar de nós.
Evie esperou enquanto o Sr. Martin franzia o sobrolho e pensava.
– Não lhe posso dizer que sim.
– Oh – disse Evie, desapontada. – Pois bem. O que me pode dizer de um
homem chamado John Hobbes que foi julgado por assassinato em mil
oitocentos e setenta e seis? Oh, e não se importa de ser um querido e ser
rápido? Há uns saldos estupendos no B. Altman e eu quero chegar lá antes
que se junte muita gente.
– Sou bibliotecário, não um oráculo – disse o Sr. Martin. Entregou-lhe um
bocado de papel e um lápis. – Importa-se de escrever o nome, por favor?
Evie rascunhou John Hobbes, assassino, e 1876 no papel e devolveu-lho.
O Sr. Martin desapareceu durante algum tempo, depois regressou com dois
montes de jornais presos numa calha de madeira e colocou-os na mesa
diante de Evie. Deveria haver cerca de duas semanas de trabalho para ela
naqueles dois volumes. Naquele dia não iria às compras. Ou,
possivelmente, nunca.
– Isto tudo? – perguntou.
– Oh, não – disse o Sr. Martin.
– Graças a Deus.
– Já volto com os outros.
– Outros?
– Sim. São catorze.

Às seis e meia Evie arrastou-se até ao museu. Entrou pesadamente na


biblioteca, passou pela mesa onde Will, Jericho e Sam estavam a trabalhar,
atirou a echarpe para o chão e, soltando um pesado suspiro, deixou-se cair
no sofá de veludo, ainda com a cloche na cabeça.
– Estou exausta.
– Pensei que tinhas ido à biblioteca – disse o tio Will.
Evie lançou um olhar de soslaio ao tio que não ergueu os olhos do livro.
– Porque pensa que estou tão exausta? Quem gostar de saber tudo o que
se passou nesta cidade em mil oitocentos e setenta e seis, por favor levante
o braço. Não vejo braços? É po-si-ti-va-men-te incrível. – Evie socou a
almofada do canto de sofá e encostou a cara. – Há uma invenção odiosa
chamada Sistema Decimal de Dewey. E é preciso procurar os tópicos em
livros e jornais. Páginas e páginas e páginas...
O tio Will franziu o sobrolho.
– Nessa escola onde andaste não te ensinaram a fazer uma pesquisa?
– Não. Mas sei recitar o Hino da Batalha da República enquanto preparo
martínis.
– Temo pelo futuro.
– É aí que entram os martínis. – Evie bocejou e espreguiçou-se. – De
qualquer forma pensei que uma pesquisa tivesse mais glamour. Que iria dar
ao bibliotecário uma senha secreta e ele dar-me-ia o livro de que eu
precisasse, murmurando os números das páginas. Como num speakeasy,
mas com livros.
– Não vejo nenhum livro – disse o tio Will cauteloso.
– Tenho tudo aqui. – Evie tocou na cabeça. – E aqui – disse dando uma
palmadinha na sua mala.
– Roubaste livros da Biblioteca Pública de Nova Iorque? – A voz de Will
ergueu-se numa nota assustada.
– Ó homem de pouca fé. Tirei apontamentos, Tito.
Evie retirou da mala um caderno com apontamentos estenografados.
O tio Will estendeu a mão.
– Posso ver?
Evie apertou-os de encontro ao peito.
– Nada disso. Perdi horas da minha preciosa juventude que nunca
recuperarei e nem sequer consegui ir às compras ao B. Altman. Estou a
fazer de locutor de rádio, aqui. – Evie deitou-se no sofá com os pés
apoiados na parte de trás e folheou o caderno até encontrar o que queria. –
O John Perverso, nascido John Hobbes, foi criado em Brooklyn, Nova
Iorque, no Orfanato Mother Nova, onde o deixaram com nove anos.
Criança perturbada, fugiu duas vezes, conseguindo ser bem-sucedido com
quinze anos. Aparece de novo nos registos policiais aos vinte e nove anos,
quando uma senhora o acusou de a drogar e de tentar meter-se com ela...
que rapaz desagradável! – Evie agitou as sobrancelhas e Sam riu-se. –
Porém, a senhora em questão era uma prostituta e o caso foi arquivado.
Pobre mulher. – Evie passou a outra página. – Trabalhou numa fundição de
onde foi posto a andar quando o apanharam a usar o ferro da empresa para
fazer coisas para si próprio. Apareceu de novo em mil oitocentos e sessenta
e cinco por vender droga aos soldados da União de regresso a casa. Em
setenta e um trabalhou para um embalsamador, um cangalheiro de verdade.
Criou à parte um negócio lucrativo de venda de cadáveres para as escolas
médicas. Em determinada altura reinventou-se como espiritualista e fazia
sessões de espiritismo em Knowles’ End, uma elegante mansão, na parte
alta da cidade junto ao Hudson. Ida Knowles, que era a dona do casarão,
ficou arruinada e teve de o vender a uma senhora... – Evie seguiu com o
dedo a linha que precisava – chamada Mary White. A companheira do John
Perverso era uma viúva rica e médium, que se tomou de amizades com Ida
depois de os pais desta terem morrido. Essa Ida era uma lorpa que não tinha
os alqueires bem medidos...
– Desculpa… – disse Will.
– Era muito crédula – explicou Sam.
– Começou a gastar o carcanhol em sessões de espiritismo com Mary e
John. De qualquer forma as badalações falavam...
– As quê? – perguntou Will.
– As más-línguas – disse Sam.
– Diziam que John Hobbes guardava lá grande quantidade de droga e que
esses encontros espiritualistas deveriam ser chamados «encontros espíritas»
porque toda a gente estava mais ou menos pedrada e aquilo que levavam a
cabo devia fazer com que todas as puritanas da região necessitassem dos
seus sais.
Will estendeu a mão.
– Por favor, dás-me licença?
– À vontade. – Evie entregou-lhe os apontamentos, bem como os vários
artigos de jornais que Will observou com uma expressão preocupada.
– Como retiraste isto da Biblioteca?
Evie encolheu os ombros.
– Amanhã vou devolvê-los e dizer-lhes que lamento terrivelmente, mas
que pensava que era o meu Daily News.
– A tua mãe sabe que tens uma mente criminosa em desenvolvimento?
– Foi por isso que me mandou para sua casa.
Sam sorriu.
– Bom trabalho, Sheba.
– Nas calmas. – Evie reclinou-se nas almofadas e fechou os olhos. –
Amanhã vou estar tão cansada que nem posso ir ao cinema.
Will andava de um lado para outro a ler.
– ... a senhora Mary White, uma viúva bastante original cujo companheiro
era John Hobbes. Ida continuou a viver na ala oriental e ela e Mary
tornaram-se muito próximas. Porém, Ida não apreciava muito o senhor
Hobbes. Escreveu nas cartas que enviou a uma prima: «Ontem à noite,
Mary e o senhor Hobbes realizaram na sala outro dos seus encontros
espirituais, até uma hora pouco decente. Assisti durante algum tempo. O
senhor Hobbes ofereceu vinho doce que me fez sentir esquisita. Vi e ouvi
estranhas aparições e não tenho a certeza do que era verdadeiro e do que
não era. Pedi licença e retirei-me para a cama onde fui incomodada por
sonhos peculiares.
«Guarda fechado à chave no armário de vidro, o livro velho, que não
permite que eu leia. “É o livro dos meus irmãos da congregação, que me foi
dado pelo meu falecido pai antes de eu ser enviado para o orfanato”, disse-
me com um sorriso...»
– O livro dos meus irmãos da congregação! – exclamou Evie. – Caramba!
– «Mas não confio numa palavra do que diz» – continuou Will. – «Porque
parece mentir com a mesma facilidade com que ri. Mente para conseguir
compaixão ou assustar. Uma vez disse-me que tinha o poder de, se quisesse,
chamar o Diabo. Há um cheiro fétido na casa, como se as paredes
estivessem putrefactas, e oiço ruídos aterrorizadores. Há gente que entra e
sai a toda a hora do dia e da noite. A maioria dos criados despediu-se.
Receio que alguma coisa malévola se esteja a passar nesta casa, querida
prima. Por favor, manda as autoridades para que investiguem, pois sinto-me
demasiado doente para ser eu a tratar disso.»
Will ficou em silêncio enquanto lia os relatos dos jornais que Evie
roubara na biblioteca.
– Então como acabou esse tal John Perverso? – perguntou Sam.
– Ida Knowles desapareceu – disse Evie saboreando a maldade da
história. – A bófia veio investigar. O John Perverso contou-lhes umas lérias
acerca de Ida ter fugido com um qualquer traficante de drogas. Disse que
ele e Mary White não tinham denunciado o facto com medo de arruinar a
reputação dela, porque – Evie levou a mão à testa com ar melodramático – a
adoravam como se fosse uma irmã.
– Quanta aldrabice – disse Sam.
– Dizes bem, menino, a polícia também não acreditou numa palavra.
Fizeram uma busca à casa e encontraram dez cadáveres, que o senhor
Hobbes confessou terem a ver com o seu negócio de fornecimento de
mortos às escolas médicas. Só que a polícia também não teve muita certeza.
– É daí que vem a canção – disse Jericho.
– Corta-te o pescoço, leva-te os ossos e vende-os por uma mão-cheia de
pedras – cantou Evie como se estivesse num saloon. – O mais formidável é
que...
– «Quando procuraram melhor» – leu Will em voz alta – «encontraram o
corpo de uma mulher. Por acaso usava uma pregadeira que pertencia a Ida
Knowles.»
Evie deixou cair os braços desapontada.
– Roubou-me o grande final, Tito.
Will ignorou-a.
– «Embora ele e Mary White protestassem a sua inocência, John Hobbes
foi acusado do seu assassinato por causa das cartas dela, da pregadeira, bem
como dos dez cadáveres e condenado à morte por enforcamento.»
– Gostava de saber se também venderam o corpo dele a uma escola
médica – gracejou Sam.
Will retirou um cigarro da cigarreira de prata e procurou um isqueiro nos
bolsos e na secretária coberta de papéis.
– Foi enterrado como indigente na vala comum. Nenhuma funerária o
quis e não tinha familiares próximos que reclamassem o cadáver.
– Pensam que poderá haver uma ligação com o nosso assassino? O nosso
assassino poderá estar familiarizado com esta história? Estará a imitar a
história? – perguntou Evie.
Sam estendeu a mão por trás de uma pilha de livros e retirou de lá um
isqueiro de prata com as iniciais de Will gravadas, que lhe entregou. Will
acendeu o cigarro e soprou uma espiral de fumo.
– Continuo a pensar que te agarras a coisas de pouca monta, Evangeline.
Concordo que há algumas correlações...
Evie contou pelos dedos.
– O cometa. O Livro dos Irmãos. A canção...
– Já agora, como sabes da canção? – perguntou Jericho.
Evie olhou para Will, que lhe lançou um olhar de aviso.
– Intuição feminina – declarou.
– Hobbes disse o livro dos meus irmãos... não é exatamente o mesmo –
corrigiu Will. – Semântica.
– Santinho! – disse Evie. – Bom aqui está uma coisa que também
interessa. – Sentou-se, inclinou-se para diante, saboreando a atenção de
todos eles, embora na verdade Will parecesse mais impaciente do que em
suspenso das suas palavras. – É mencionado o desaparecimento de algumas
pessoas e um crime por resolver que teve lugar no verão de mil oitocentos e
setenta e cinco. Foi encontrado um corpo com marcas estranhas!
– Há cinquenta anos – disse Will severamente. – E não sabes que marcas
eram essas. Não consigo perceber o que possa ter a ver com o caso.
Evie suspirou.
– Tem razão. Mas é interessante. – Evie tamborilou com os dedos na
mesa tentando fazer ligações que se desvaneciam como fumo.
– O que aconteceu a Mary White, a queridinha do John? – perguntou
Sam.
– Depois de John Hobbes ter sido pendurado, casou-se com um artista
chamado Herbert Blodgett em mil oitocentos e setenta e nove. Saíram de
Knowles’ End. Há registos de ela ter caído de um cavalo e de ter ficado
com problemas de saúde, mas depois, mais nada.
– Provavelmente morreu – disse Sam.
De repente pancadas furiosas ecoaram pelo museu. Evie correu à porta e
abriu-a para se encontrar com um grupo de cerca de doze pessoas em fila. O
homem da frente erguia o Daily News com o artigo de T. S. Woodhouse.
– Queremos ver o porquê de tanta confusão.

Dias depois do primeiro artigo de T. S. Woodhouse, a que rapidamente se


seguiu um segundo e um terceiro, o museu tinha mais movimento do que
alguma vez tivera. Will fora convidado para dar conferências em toda a
parte, desde clubes privados a almoços de senhoras da alta sociedade e, por
muito que tentasse manter as coisas a nível académico, todos queriam fazer
perguntas sobre os assassinatos. Nos bairros mais elegantes de Nova Iorque,
as pessoas da alta, que eram demasiado distintas para admitirem receios,
organizaram «Clubes de Crime» onde bebiam cocktails com nomes como
Veneno do Pentagrama, Verniz Vodu e Cocktail Assassino – uma potente
mistura de uísque, champanhe, sumo de laranja e cerejas esmagadas, com
fama de que quem os bebesse desejaria estar morto no dia seguinte. Os
assassinatos eram apenas mais um pretexto para beber e dançar durante toda
a noite. Era ótimo para o negócio. Parecia que todos tinham sido
contagiados pela febre do Assassino do Pentagrama, e Evie fazia tenção de
a aproveitar o melhor possível.
No museu, durante as visitas guiadas por Evie, uma simples touca de
linho transformou-se na coifa de uma das bruxas de Salem, acusada de
dançar no bosque com o Diabo. Uma tigela de água que Evie enchera nessa
manhã e duas velas acesas eram «uma bênção dos monges para manter a
sala livre de corrupção espiritual». Fez um pequeno altar e colocou o
fragmento de osso do operário chinês da construção do caminho de ferro
junto de uma fotografia espírita tirada no Massachusetts Ocidental e disse
aos crédulos visitantes que se tratava do osso da menina da fotografia – uma
menina que ainda assombrava o museu. Nessa altura, Sam sopraria um fole
escondido para agitar as cortinas e as jovens e os seus galantes namorados
soltariam exclamações sufocadas seguidas de risinhos, encantados pela
proximidade de um fantasma.
Foi numa destas tardes que Will regressou de uma conferência para
encontrar o museu cheio de visitantes que enchiam a sala dos objetos.
Tentou aproximar-se, mas foi empurrado por um jovem.
– Espere pela sua vez, velhote! – Will espreitou por cima das cabeças de
duas raparigas muito modernas e viu Evie a discursar.
– Claro que têm de ter muito cuidado com estes objetos. São
extremamente poderosos. Não vão querer que eles vos assombrem depois
da vossa saída.
– Isso é possível? – perguntou uma mulher na fila da frente. Parecia
assustada.
– Oh, sim! – disse Evie. Mas é por isso que vendemos os amuletos na
loja. São réplicas dos antigos símbolos que diziam afastar o demónio. –
Evie segurou num pequeno disco de prata. – Tenho sempre vários comigo.
Nunca se está suficientemente seguro, principalmente com um assassino
oculto à solta na cidade.
– Evie! – vociferou Will do corredor. – Posso falar-te em particular por
um momento?
Evie forçou um sorriso.
– Com certeza, doutor Fitzgerald. Este é o professor Fitzgerald, curador
do museu e o principal erudito desta cidade no campo das Coisas e
Criaturas Assustadoras. Como sabem, o doutor Fitzgerald, tal como eu, está
a auxiliar a polícia na investigação dos hediondos assassinatos que
aterrorizam a cidade.
Todos ao mesmo tempo se voltaram para olhar para Will, estremecendo
de emoção.
– Fale-nos dos crimes, por favor, professor – pediu uma jovem. – É
verdade que ele lhes bebe o sangue e veste as suas roupas? É verdade que
comete esses crimes horríveis como castigo contra a Lei Seca?
Will olhou para Evie que imediatamente se ocupou em limpar uma
mancha imaginária na parede.
– Evie, já para o meu gabinete, por favor.
– Com certeza Tit... doutor Fitzgerald. Volto já, senhoras e cavalheiros.
Por favor, tenham cuidado. Não gostaria que os espíritos fossem
perturbados. Quem desejar despender algum dinheiro com os amuletos
protetores, por favor fale como o nosso associado, senhor Sam Lloyd na
nossa loja.
– Evangeline! Já!
Quando entrou, Evie fechou as portas do pequeno gabinete. A madeira
estremecia com a tagarelice dos emocionados visitantes.
– Sim, Tito?
– Mas que raio estás a fazer? – perguntou Will. Acendera um cigarro e
agarrara numa mão-cheia de frutos secos ao mesmo tempo, parecendo
hesitar naquilo que deveria levar à boca em primeiro lugar.
– Estou a fazer uma visita guiada.
– Já percebi. Que disparates estás a dizer a essa gente?
– Estou a criar ambiente! Oh, Tito, enfim, aparecem pessoas aqui na loja!
Pessoas que pagam. Podemos ter aqui uma boa agitação.
– Não estou interessado em agitações. Sou um académico.
– Tudo bem, Tito. Não nos vamos zangar por isso.
– E desde quando temos uma loja?
– Desde ontem à noite. Agora não precisa de se aborrecer... não estou a
vender artefactos preciosos. Usei a sua máquina de gravar em relevo, lacre
e papel de prata. Voilá! Amuletos instantâneos.
– Isso é desonesto!
– Não. É negócio – replicou Evie. Will ia falar, mas ela silenciou-o,
implorando com as mãos. – Tito, quando a Lucky Strike vende cigarros,
dizem «Temos para si um produto com tabaco dentro de uma caixa»? Claro
que não! Dizem, «Lucky Strike são os meus preferidos!» e mostram-lhe
fotografias de pessoas bonitas em belos locais desfrutando desse cigarro
como se... como se fizessem amor.
Will tossiu engasgado com o fumo que lhe saía dos pulmões.
– Desculpa!
– Fazem com que os deseje. Precisa de os obter. São o que alguém que é
alguém tem, por isso o melhor é não perderes o comboio, miúdo, ou
ninguém te dará importância. É isso que estou a fazer com o nosso museu.
– O nosso museu? – Will colocou no prato os frutos secos que já tinha na
mão e puxou outra fumaça do cigarro. Depois apontou para Evie. – Não
vais vender mais «amuletos». E limitas-te aos factos. Falei claro?
– Como queira – disse Evie. Abriu as portas, direita à multidão. – Por
aqui, por favor, meus senhores. Entrámos na casa de jantar, onde é possível
que se tenham realizado sessões de espiritismo e onde os espíritos talvez
tenham sido invocados – disse Evie olhando o tio de soslaio. – E enquanto
não temos a certeza, diz-se que o próprio presidente Abe Lincoln pode ter
comunicado com o outro mundo a esta mesma mesa.
Will apagou o cigarro no cinzeiro e acendeu imediatamente outro.

***

– Perguntem-me quanto dinheiro fizemos hoje. – Evie sorriu para Sam e


Jericho. Eram cinco e cinquenta e a última pessoa fora mandada embora
havia dez minutos.
– Quanto?
– O suficiente para pagar a conta da eletricidade e ainda há dinheiro de
sobra para tomarmos uma chávena de chá. Bem, de água quente.
– Bom trabalho, menina – disse Sam.
– Bom trabalho, todos nós – corrigiu Evie.
A pancada do batente de metal ecoou pelo museu vazio. Evie olhou para
o relógio.
– São quase horas de fechar. Vão-se embora – disse com um suspiro
exausto.
– Queres que me veja livre deles? – perguntou Sam.
– Não, eu trato do assunto. Jericho toma conta do Sam por causa da caixa
– troçou Evie, piscando o olho.
Lá fora, Memphis encontrava-se nos degraus da entrada do museu,
olhando para as enormes portas de carvalho. Desde que a irmã Walker
mencionara a história dos Adivinhos e de Liberty Anne, irmã de Cornelius
Rathborne, que pensava neste local. Esperava que o Dr. Fitzgerald pudesse
lançar alguma luz sobre o problema de Isaiah e o estranho símbolo que via
nos seus sonhos. Embora agora já não tivesse a certeza que fora boa ideia
ter ido ali. Nem sequer conhecia as pessoas. O que poderia dizer que não o
fizesse parecer ridículo? Como saber se poderia confiar neles? E, tanto
quanto sabia, o museu nem sequer estava aberto a negros. Estás a agir
como se não tivesses um pingo de bom senso, repreendeu-se Memphis,
como se a tia Octavia andasse ali por perto. Estava prestes a dar meia-volta
e a dirigir-se ao metropolitano, quando as enormes portas se abriram e uma
rapariga branca, baixinha, com ar de boneca, de caracóis loiros e grandes
olhos azuis se encostou à ombreira da porta.
– Receio que o museu feche dentro de dez minutos – disse com ar de
quem pede desculpas.
– Oh, estou a perceber. Volto então outro dia. Desculpe o incómodo. –
Memphis amaldiçoou o dinheiro gasto no bilhete de metropolitano.
– Oh, vá lá. Entre. Mas desde já o aviso. Foi um dia extenuante e posso
ter de tirar os sapatos.
Memphis seguiu-a até à enorme mansão escura, com as suas paredes
forradas a painéis de madeira e as janelas de vitrais. Parecia mais uma
catedral do que uma casa antiga.
– Evie O’Neill, às suas ordens.
– Memphis Campbell.
– Pois bem, senhor Campbell, visto que só temos dez minutos, podemos
dar uma vista rápida à sala das coleções, por isso tem de se decidir. Escolha
o que mais gosta: bruxas, fantasmas ou sacerdotes de vodu?
Memphis abriu a mochila e retirou de lá o seu caderno.
– Para lhe dizer a verdade, menina, li a seu respeito no jornal e estava a
pensar se me poderia explicar o que significa este símbolo. – Memphis
mostrou-lhe o desenho do olho e do raio.
Evie observou-o. Abanou a cabeça.
– Não faço a mínima. Lamento muito, mas se quiser voltar outro dia,
pode procurar na nossa biblioteca para ver se consegue encontrar alguma
coisa.
– Obrigado. É o que vou fazer – disse Memphis. Sentia-se frustrado por
não ter respostas. Estava quase junto à porta quando voltou para trás.
– Deseja mais alguma coisa, senhor Campbell? – perguntou-lhe Evie.
– Sim, humm, não. Isto é, sinto-me um pouco ridículo por lhe perguntar.
Sabe, há uma casa velha a norte do local em que vivo, embora já me tenham
dito que foi uma verdadeira atração.
A jovem sorria para ele com ar paciente, como se escutasse uma avó um
pouco confusa, e Memphis sentiu de novo o ridículo da sua busca. Mesmo
assim, via-se forçado a contar a alguém, mesmo que se tratasse apenas da
sua imaginação a trabalhar e que parecesse ridículo por se preocupar com o
assunto. Mexia na fivela da mochila.
– Sabe... por vezes vou lá e, bem... ultimamente há qualquer coisa de
estranho naquela casa velha. Quase parece que vive lá gente, e, bem... –
Pareces um louco, Memphis. – Gostava de saber se têm livros sobre
Knowles’ End ou se sabem de alguma coisa sobre o assunto. É apenas uma
velha ruína, por isso...
– Como disse? – A jovem abriu muito os olhos.
– Disse que era uma ruína…
– Antes disso. Falou em Knowles’ End.
– É esse o nome da casa. Ou pelo menos era há muito tempo. Agora só
tem aranhas e tábuas podres.
Evie olhava para Memphis de um modo que o fazia sentir pouco à
vontade. Via que o rapaz tinha as mãos trémulas.
– Importa-se de esperar aqui, senhor Campbell? Não demoro um minuto.
Evie O’Neill apressou-se pelo corredor, com os saltos a bater no chão de
mármore. Enquanto esperava no vestíbulo com o chapéu na mão, Memphis
assustou-se: e se ela pensasse que ele era o Assassino do Pentagrama?
Não esperou que Evie regressasse. Escapou-se pela porta e percorreu
vários quarteirões a toda a pressa, abrandando apenas quando se apercebeu
que os brancos que passavam na rua lhe lançavam olhares estranhos.
Esforçou-se por andar naturalmente, usando o encanto do seu sorriso
enquanto caminhava, como se fosse o homem mais despreocupado deste
mundo, apesar de o seu coração bater desordenado. Continuando a sorrir e a
caminhar foi esbarrar numa jovem. Agarrou-a quando ela tropeçou.
– Peço muita desculpa, menina.
– Vá lá, implora! – disse a jovem, naquela voz esbatida que lhe era
familiar.
Memphis sorriu. Tinha o coração a bater de novo, mas desta vez, de pura
alegria.
– Ora, ora, não é a Princesa Crioula?
– Não podemos continuar a encontrarmo-nos assim, Poeta – disse Theta.

No museu, Evie regressou com Will, Sam e Jericho atrás, mas encontrou o
vestíbulo vazio e nem sinal de Memphis Campbell ali ou na rua.
– Estava aqui mesmo! – disse Evie, assoprando. – Tito, estava a falar de
Knowles’ End! Não acha estranho?
– Tens a certeza de que não era um repórter?
– Suponho que podia ser – admitiu Evie. – Mas parecia muito sincero.
Estava a perguntar qualquer coisa de um símbolo... um olho com... vou
desenhar para verem.
Evie desenhou o olho e o raio e mostrou-o a Will. Sam aproximou-se de
Evie.
– Ele fez perguntas acerca desse símbolo?
– Como é que disseste que o rapaz se chamava? – perguntou Will.
– Memphis. Memphis Campbell – replicou Evie.
– Sabe o que significa esse símbolo, professor? – perguntou Sam. Estava
a olhar para o desenho do olho com grande interesse.
Will olhou para a folha.
– Nunca o vi. Agora, por favor, não me incomodem. Tenho de trabalhar. –
Deu meia-volta e deixou-os no vestíbulo.

Memphis e Theta estavam sentados a conversar no drugstore do Sr. Reggie,


no Harlem, com dois egg creams diante deles. Theta tinha a sensação de
nunca ter falado tanto desde que conhecera Henry. Fez Memphis rir com as
suas histórias dos disparates da gente do espetáculo e Memphis falou-lhe do
jogo dos números e da música e de como Isaiah conseguia irritá-lo, mas
Theta apercebeu-se de que ele adorava o irmão. Falaram tanto, que
perderam a noção do tempo. Theta faltara ao teatro, mas encolheu os
ombros.
– Digo-lhes que houve um incêndio no metropolitano – declarou.
– Tens a certeza de que não queres mais nada? Uma sandes? Sopa? –
perguntou-lhe Memphis.
– Pela última vez, estou satisfeita – disse Theta. Tinha consciência de que
toda a gente os observava. Quando ela levantava a cabeça, desviavam os
olhos, ocupando-se dos talheres ou fingindo que liam o jornal.
Havia tantas coisas que ele ainda lhe queria perguntar. De onde era?
Ainda sonhava com o olho? Se tinha pensado nele desde a noite da rusga?
Se também tinha ficado acordada, a olhar para o teto, imaginando o rosto
dele, como ele imaginara o dela?
– Com que então és uma Ziegfeld girl! – foi tudo o que disse.
– Ouvi dizer que o lugar de poeta já estava ocupado – brincou Theta. –
Por falar de poesia, leste The Weary Blues de Langston Hughes?
– «E dentro da noite entoou a canção/As estrelas saíram e também a lua»
– citou Memphis, sorrindo loucamente.
– «O cantor calou-se e foi dormir/Enquanto os Blues Tristes ecoavam
dentro de si/Dormiu como uma pedra ou como um homem morto» –
terminou Theta. – Nunca tinha lido nada tão bonito.
– Nem eu.
O resto do drugstore parecia ter desaparecido – o bater dos pratos lá atrás,
o som da caixa registadora, o ruído surdo das conversas – e apenas lá
estavam Memphis e Theta e o momento. A mão de Theta deslizou
ligeiramente para a de Memphis. A dele também avançou um pouco e os
dedos dele tocaram ao de leve os dela.
– Há uma festa de angariação este sábado em casa da minha amiga Alma,
se te apetecer ir – disse.
– Gostava muito – respondeu Theta.
O drugstore pareceu girar de novo para a vida ruidosa. Um homem mais
velho passou por eles e franziu o sobrolho, e Theta e Memphis afastaram as
mãos e ficaram em silêncio.
UMA ESCOLHA TERRÍVEL

Evie e Jericho almoçavam já tarde na antiquada sala de jantar do


Bennington. Jericho falava, mas Evie estava perdida nos seus pensamentos.
Equilibrando o queixo no pulso, olhava sem ver para o café que mexera
distraidamente durante cerca de dez minutos.
– Por isso, dei um tiro nas costas do homem – disse Jericho para
experimentar a atenção de Evie.
– Interessante – disse Evie, sem sequer erguer os olhos.
– E depois arranquei-lhe a cabeça e guardei-a debaixo da minha cama.
– Claro – resmungou Evie.
– Evie. Evie!
Evie ergueu os olhos e esboçou um fraco sorriso.
– Sim? Não estás a ouvir.
– Oh! Po-si-ti-va-men-te, Jericho!
– O que foi que acabei de dizer?
Evie lançou-lhe um olhar vago.
– Bem, seja o que for. De certeza que foi uma coisa muito inteligente.
– Acabei de dizer que tinha morto um homem pelas costas e que lhe
arranquei a cabeça.
– Tenho a certeza que ele mereceu. Oh, Jericho, desculpa. Não consigo
parar de pensar que há uma ligação entre esse tal John Hobbes e os nossos
assassinos.
– Mas porquê?
Evie não podia falar-lhe da canção e, sem isso, não havia de facto grande
coisa.
– Não achas interessante que tenha havido há cinquenta anos uns
assassinatos por resolver, de natureza muito semelhante?
– É interessante, mas remoto. Mas se quiseres saber o que aconteceu,
podemos ir à biblioteca...
Evie gemeu.
– Por favor, não me obrigues a voltar lá. Eu porto-me bem.
Jericho esboçou a sombra de um sorriso.
– A biblioteca é tua amiga, Evie.
– A biblioteca pode ser tua amiga, Jericho, mas despreza-me po-si-ti-va-
men-te.
– Só precisas de saber como usá-la. – Jericho brincava com o garfo.
Aclarou a garganta. – Um dia destes posso mostrar-te como se faz.
Evie sentou-se muito direita.
– Jericho! – disse ela a sorrir.
Jericho devolveu-lhe o sorriso.
– Não seria incómodo nenhum. Até podíamos ir...
– Sei de alguém que poderia descobrir coisas desses antigos assassinatos!
– Quem? – perguntou Jericho, com esperanças de que ela não desse pelo
seu desapontamento.
Uma pessoa que me deve um favor.
Evie correu para a cabina telefónica do Bennington e fechou a porta de
vidro atrás de si.
– Algonquin quatro, cinco, sete, dois, por favor – disse para o aparelho e
ficou à espera que a telefonista fizesse a sua magia.
– T. S. Woodhouse, Daily News.
– Senhor Woodhouse, fala Evie O’Neill. Venho cobrar-lhe aquele favor
que me prometeu.
– Diga.
– Pode descobrir-me informações acerca de um assassinato por resolver
em Manhattan no verão de mil oitocentos e setenta e cinco?
Ouviu o repórter rir-se do lado de lá.
– Tem um teste de história, Sheba?
– Diga-me só o que descobrir, por favor. É muito importante. E, senhor
Woodhouse, isto fica só entre mim e o portão do jardim. Entende?
– Como queira, Sheba.
Sentindo-se muito esperta, Evie saiu da cabina telefónica e dirigiu-se à
casa de jantar. Quando passou pelo elevador, as portas abriram-se e lá
dentro estava a menina Lillian muito afogueada.
– Valha-me Deus, vim para baixo em vez de subir! – Debatia-se com um
saco de mercearias e Evie ofereceu-se para a ajudar a levá-lo até ao
apartamento.
– Entre, entre, minha querida – disse a menina Lillian. – É tão bom ter
uma visita. Vou pôr a chaleira ao lume.
– Por favor, não se incomode – disse Evie, mas a senhora já estava na
cozinha. Evie ouviu-a acender um fósforo e ligar o gás. Não tinha intenção
de ficar de conversa. Era o problema de ajudar as pessoas de idade. Quase
tropeçou num gato, que miou surpreendido e fugiu a toda a pressa. Um
segundo gato, preto e de olhos amarelos espreitou de debaixo da mesa. Era
difícil ver com tão pouca luz. A menina Lillian voltou à sala e acendeu um
candeeiro.
– Tem uma casa encantadora – conseguiu dizer Evie, esperando que a sua
careta passasse por sorriso. A sala estava numa confusão, montes de papéis
e livros por toda a parte, as superfícies cobertas de bricabraque: relógios
enfeitados marcando horas diferentes, castiçais de metal com cotos de velas
escuras, um busto de Thomas Jefferson, uma fotografia emoldurada de
imponentes senhoras do tempo dos peregrinos, tirada num monte, plantas,
flores mortas numa jarra de vidro, cuja água se tinha transformado numa
película que cobria os lados e um ferrótipo de alguém que Evie presumiu
serem as jovens Lillian e Adelaide com os seus bibes. Se houvesse um
prémio para o péssimo gosto, pensou Evie, as irmãs Proctor consegui-lo-
iam de caras.
– Aqui tem o seu chá, minha querida. Sente-se – disse a menina Lillian,
apontando para uma cadeira de baloiço ao lado de um velho órgão de fole.
– Muito obrigada – disse Evie, já pensando numa desculpa para se ir
embora: o tio doente, a arder em febre, um súbito caso de gangrena.
– Addie e eu vivemos no Bennington quase desde o princípio. Mudámo-
nos para cá na primavera de mil oitocentos e setenta e cinco. Em Abril –
franziu o sobrolho. – Ou talvez em Maio.
– Primavera de mil oitocentos setenta e cinco – disse Evie, pensando. – A
menina Lillian, lembra-se de um homem chamado John Hobbes que foi
condenado à forca por assassínio em mil novecentos e setenta e seis?
A menina Lillian apertou os lábios, tentando recordar-se.
– Não creio.
– Foi acusado de assassinar uma mulher chamada Ida Knowles.
– Oh! Ida Knowles! Sim, recordo-me disso. Disseram que fugiu com um
caçador de fortunas. E depois... sim, sim, agora recordo-me! Esse homem...
– John Hobbes.
– Foi julgado. Oh, parecia não prestar. Ladrão de campas, se bem me
recordo. Um charlatão.
– Recorda-se de pormenores do caso, ou de alguma coisa a respeito dele?
Qualquer coisa? – Evie bebeu um gole de chá. Tinha um sabor estranho.
– Não, receio que não, minha querida. Sou uma velha. Ah, aí está a
Addie.
A menina Adelaide trazia ao colo o gato preto de olhos amarelos e usava
um vestido que provavelmente teria visto melhores dias, quando Teddy
Roosevelt era presidente.
– Encontrei o Hawthorne a tentar comer as minhas begónias, que
diabinho – disse acariciando com o nariz o gato que miava.
– A menina O’Neill estava a perguntar-me acerca do caso da Ida
Knowles, lembras-te, não é verdade, querida? E aquele homem horroroso
que foi enforcado por causa disso. Mas não me lembro de grade coisa,
lamento. Hawthorne, vem comer. – Pôs um pouco de salada de frango num
prato aos seus pés e o gato saltou do colo de Adelaide e correu para lá.
– Enforcaram-no na noite do cometa – disse a menina Addie com ar
sonhador.
– O Cometa de Salomão? – perguntou Evie, cautelosa.
– Sim, isso mesmo. Pediu-lhes que o fizessem. Foi aliás o seu único
pedido.
– John Hobbes pediu para ser enforcado na noite do Cometa de Salomão?
– repetiu Evie. Queria ter a certeza de que tinha ouvido bem. Parecia-lhe
importante embora não soubesse porquê. – E porque teria feito esse pedido?
– Os cometas são prodígios muito poderosos! – declarou a menina Lillian
com uma exclamação de desdém. – Os antigos acreditavam que apareciam
em épocas em que o véu entre este mundo e o outro era mais ténue.
– Não percebo.
– Se quisesse abrir a porta para o grande reino do espírito, para garantir o
seu regresso, haveria melhor ocasião para planear a sua morte?
– Mas, menina Proctor, isso é impossível – disse Evie delicadamente.
– É um mundo impossível – disse a menina Lillian a sorrir. – Beba o seu
chá, minha querida.
Evie engoliu o resto do chá, cuspindo o que restava das pequenas folhas.
– Tem um belo talismã – disse a menina Addie, olhando para o pendente
de Evie.
– Oh, foi um presente do meu irmão – replicou Evie. Mas não lhes deu
mais explicações. Se lhes dissesse que James morrera, elas tentariam
consolá-la, mostrando enorme compaixão, ou então mudariam de conversa
e falariam de todos os parentes defuntos. Evie passaria ali o resto do dia.
Precisava de se ir embora.
A menina Addie estendeu o dedo e passou-o pela superfície do meio
dólar, empalidecendo ao mesmo tempo.
– Uma escolha terrível para se fazer.
– O que quer dizer? – perguntou Evie.
– A Addie examina a alma eterna – disse a menina Lillian. – Addie,
minha querida, deixaste arrefecer o teu chá, e ainda temos muito que fazer.
– A menina Lillian levantou-se apressada. – Receio bem que tenhamos de
lhe desejar um bom-dia, menina O’Neill. Obrigada pela sua visita.
– Uma escolha terrível – repetiu a menina Addie, olhando para Evie com
tal compaixão que esta se sentiu intrigada.
Lá fora, na luz bruxuleante do patamar – porque seria que nunca
conseguiriam arranjar os candeeiros naquelas casas antigas? – Evie pensou
no estranho pedido de John Hobbes. Teria pensado que poderia voltar
depois da morte? Claro que era ridículo. Só um louco egoísta poderia
pensar que seria possível. Daí a duas semanas, o mesmo cometa voltaria aos
céus de Nova Iorque.
Enquanto esperava pelo ruidoso elevador, sentiu um arrepio na espinha,
sem mesmo saber porquê. Desejou poder conversar com Mabel sobre o
assunto. Desejou poder troçar com ela da decoração horrorosa das irmãs
Proctor, mas ela e Mabel ainda estavam desentendidas. Nunca tinham
passado tanto tempo sem se falarem e Evie vacilava entre estar zangada
com Mabel e sentir imensamente a falta dela. Quando a porta do elevador
se abriu, ergueu o dedo para tocar no botão do andar de Mabel. No último
segundo, carregou no botão do vestíbulo.
No abafado apartamento das irmãs Proctor, Hawthorne encostou-se
afetuosamente à perna da menina Adelaide. No outro quarto, a irmã
prosseguiu com as suas atividades diárias. A menina Addie espreitou para
os restos do chá de Evie, examinando o padrão de folhas que ficaram no
fundo da chávena e franziu o sobrolho.
TOMBS

O detetive Malloy entrou à força no museu, empurrando os curiosos e


silenciando com um expressão muito mal-humorada todos os que tentavam
fazer-lhe perguntas acerca do Assassino do Pentagrama.
– Menina O’Neill – disse, tocando no chapéu.
– O meu Tito não está neste momento, detetive. Tem novidades?
Ele acenou afirmativamente e apontou para a biblioteca. Evie mandou
Sam encarregar-se das coisas e conduziu o detetive Malloy para a
biblioteca, fechando as portas atrás de si. Malloy atirou o chapéu para a
estátua metálica de uma águia.
– Segui aquela indicação que o seu tio nos deu acerca dos Irmãos.
Acontece que houve um ressurgimento desse culto religioso nos últimos
anos. As pessoas da cidade têm apresentado queixas deles. Adivinha quem
é o líder?
– Suponho que não seja Will Rogers.
– O irmão Jacob Call – declarou Malloy.
Malloy pegou numa mão-cheia de frutos secos da tigela de vidro que se
encontrava sobre a secretária de Will.
– Dizem que tem andado a pregar acerca do regresso do Cometa de
Salomão e da Besta que vai também regressar. – Esperou um pouco. –
Acontece que cria gado e vem à cidade de vez em quando para vender aos
carniceiros.
– Ele é um carniceiro!
– Pois. E esteve cá quando ocorreram os crimes. Mandei que o
detivessem e o levassem para a esquadra. Mas até agora recusa-se a falar
connosco. Pensei que o seu tio conseguisse alguma coisa.
Evie mordeu o lábio.
– Detetive, posso experimentar?
Malloy ergueu as sobrancelhas.
– Quer interrogar um possível assassino? Receio bem que não.
– Talvez se abra para uma rapariga. Afinal não sou uma ameaça, como a
polícia.
– Admiro a sua coragem, menina O’Neill, mas não será essa a sua função.
– Tocou no chapéu e desejou-lhe um bom-dia.
Evie correu para o vestíbulo assim que ele saiu. O museu estava cheio de
gente e, pela primeira vez, desejou que não estivesse. Saltou para conseguir
ver por cima das cabeças dos visitantes.
– Sam! – chamou. – Sam Lloyd! Preciso de ti!
Sam apareceu a seu lado, a sorrir.
– Sabia que havias de chamar por mim.
Evie revirou os olhos.
– Vai tomar banho, rapaz. Preciso que me ajudes a chegar a Tombs18.
– Ainda não aprendeste?
– Oh, Jericho! – chamou Evie. – Podes tomar conta das coisas? Preciso
do Sam para uma missão da maior importância.
– Posso ajudar-te – disse Jericho.
– Já estás a ajudar-me! – cantarolou. Deu o braço a Sam e arrastou-o para
a porta. – Explico-te pelo caminho.
Sam e Evie pediram emprestado o carro velho de Will para se dirigirem
desde o Upper West Side até à famosa prisão da cidade. Era uma viagem
longa e Sam queria conversar.
– A tua amiga Mabel ainda está caidinha pelo gigante?
– Jericho? Humm-hum – disse Evie, quase estremecendo ao ouvir as
palavras a tua amiga Mabel.
– Que se passa com esse tipo?
– Não gostas dele porque ele te detesta.
– Não é a única razão – disse Sam.
– Que queres dizer?
– Nada. Suponho que também gostes do gigante.
– Do Jericho? Oh, é bem simpático, acho.
– Então não gostas dele – disse Sam a sorrir.
– Não disse isso.
Tinham passado pelas muitas editoras musicais de Tin Pan Alley na Rua
28 Oeste e aproximaram-se das elegantes casas de Gramercy.
– Tens namorado? – perguntou Sam pouco depois.
– Nenhum rapaz me aguenta por muito tempo.
Sam olhou-a de soslaio.
– Estás a desafiar-me?
– Não. É a constatação de um facto.
– Veremos.
– Ainda me deves vinte dólares – declarou Evie.
– És muito mais parecida comigo do que pensas, Evie O’Neill.
– Ah!
– O que quis dizer é que gostas mais de mim do que aquilo que pensas.
– Continua a conduzir, Lloyd.
O carro seguiu aos solavancos, passou por um grupo de empresários de
fato escuro agarrados aos chapéus de coco devido ao vento que soprava
vindo do rio East e se metia pelas ruas em forma de desfiladeiros.
– Tenho uma coisinha para ti – disse Sam e sorriu misteriosamente.
Evie ergueu uma sobrancelha.
– Ah, sim? E o que é? Já te disse que o banco estava fechado.
– Um enfeite para o pescoço. – Retirou um colar do bolso e ofereceu-lho.
Evie susteve a respiração.
– Raios me partam se isso não parece um verdadeiro diamante! Onde
arranjaste isso?
– Acreditavas se te dissesse que foi uma tia generosa?
– Não.
– Também achei que não. Há muitos onde arranjei este. Não vão sentir-
lhe a falta.
Evie suspirou.
– Sam…
– Conheço-lhes o tipo. Não se preocupam com o que acontece senão a
eles próprios. Compram tudo o que as revistas e os cartazes lhe dizem para
comprar e esquecem-se do que compraram quando aparecem coisas novas.
– E pensa o tio Will que eu sou cínica! – Evie empurrou o colar para
dentro do bolso do casaco de Sam. – Não podes andar por aí a tirar as coisas
que não te pertencem, Sam.
– Porque não? Se os capitães de indústria o fazem, são heróis. Se as
pessoas como eu, sem qualquer importância, o fazem, são criminosos.
– Olha, pareces um bolchevique. Diz-me uma coisa, não serás um desses
anarquistas, pois não?
– Bombas e revolução? Não são o meu estilo. Tenho a minha missão –
disse Sam e a última parte da frase foi-lhe difícil de pronunciar.
– Que missão é essa? Desencaminhar meninas com pedras preciosas
roubadas?
Sam olhou-a de soslaio.
– Já ouviste falar de uma coisa chamada Projeto Buffalo?
– Acho que não.
– Pois bem, se procurares informações sobre ele, não as vais encontrar.
Foi uma operação secreta durante a guerra.
– Então como sabes tu do assunto?
– A minha mãe trabalhou para ela. Fez uma espécie de teste...
– Um teste? Que…?
– Não sei. Fosse como fosse, teve resultados muito bons. Ela e o meu pai
tiveram uma enorme discussão por causa disso. Ouvi-os no outro quarto.
Ela disse que tinha de se ir embora. «Que podemos fazer?», perguntou ela.
O meu pai disse que não. O meu pai adora a palavra não. – Uma sombra
passou pelo rosto de Sam. – De qualquer maneira, um mês depois, os tais
fulanos do Governo apareceram. Tinham os documentos do meu pai.
Disseram que o podiam deportar para a Rússia se ele não cooperasse. O
meu pai não ia voltar para a Rússia para morrer de fome ou ser assassinado.
Tinha uma boa casa e um negócio de peles. Por isso, nessa noite, a minha
mãe fez a mala e partiu. Mandou-nos apenas uma carta. O resto foi
censurado. Mas dizia que faziam um bom trabalho, um trabalho importante
para o país. Disse que iria mudar a humanidade. Depois, nunca mais
soubemos dela. Quando o meu pai lhes escreveu, disseram que ela tinha
morrido de gripe. Eu tinha oito anos.
– Lamento. É horrível. – A cidade cintilava ao sol da tarde como uma
miragem. – Mas o nome Sam Lloyd não me parece muito russo.
– Sergei Lubovitch. O meu pai mudou o apelido para Lloyd quando ele e
a minha mãe chegaram a Nova Iorque. Quando nasci, insistiu que me
chamassem Sam. Como o Tio Sam.
– Bem me parecia que te conhecia – troçou Evie. – E onde está agora o
teu pai?
– Suponho que tenha voltado para Chicago.
– Não sabes?
– Eu e o meu pai não nos dávamos muito bem. Ele gosta de dizer não e eu
tenho de dizer sim. Não gostava quando eu próprio dizia não. E claro que
não gostava quando eu dizia que queria saber o que de facto tinha
acontecido à minha mãe.
– Não disseste que ela morreu?
– Foi o que nos disseram. Há dois anos recebi isto. – Retirou o velho
bilhete-postal com as árvores e as montanhas do bolso do casaco. Evie
fingiu que era a primeira vez que o via.
– É bonito. Onde é?
– Não sei. A frase escrita atrás está em russo.
Evie examinou a caligrafia, obviamente feminina.
– Significa «raposinho». Era a alcunha que a minha mãe me dava. Era a
única pessoa que me chamava assim. Foi por isso que soube que a minha
mãe estava viva e ia encontrá-la. Por isso parti. Alistei-me na marinha
durante algum tempo... até que descobriram que tinha apenas quinze anos.
Depois fui parar a um circo.
– Não me digas!
– Palavra de escuteiro.
– Tu não és escuteiro – contrapôs Evie.
Bateram numa lomba e Evie foi de encontro a Sam.
– Desculpa – endireitou-se, corada.
Sam sorriu.
– Não precisas de pedir desculpa. Talvez vá esbarrar com outra.
Evie aclarou a voz.
– E o circo?
– O circo. Aprendi a ser acrobata. Era muito bom no arame. Tinha pés
rápidos. Fui piloto acrobata e realizei truques aéreos.
– Num avião em movimento?
Sam sorriu.
– Deverias experimentar. Porém, se quiseres ver quem os faz bem, espera
pela Belle Butler, a extraordinária acrobata.
– Por favor, diz-me quem é essa pessoa.
– Uma velha amiga.
Evie arqueou uma sobrancelha.
– Que espécie de amiga?
Sam sorriu, mas não lhe satisfez a curiosidade.
– O circo levou-me para Coney Island. Quando se dirigiram para sul, para
a Florida, a fim de passar o inverno, decidi ficar aqui durante algum tempo,
para ver se conseguia ganhar dinheiro para ir à procura da minha mãe.
Evie olhou de novo para o postal. Era uma bela imagem de céus azuis e
árvores altas, com montanhas ao fundo. Devolveu-o a Sam que o meteu de
novo no bolso do casaco.
– Não parece grande coisa para poderes continuar.
– Vou encontrá-la – disse Sam, parecendo muito determinado. – Agora já
sabes coisas a meu respeito. E tu? Porque vieste para casa do teu tio?
Deveria dizer-lhe a verdade? Então teria de admitir que tentara fazer uma
leitura do postal da mãe dele e de nada se apercebera. Ou podia ficar
furioso. Ou talvez lhe pedisse que tentasse de novo. E se ela não
conseguisse, pensaria que lhe estava a mentir.
– Matei um homem que insultou a minha honra – disse Evie com
indiferença.
– Naturalmente. E que mais?
– E roubei uma loja de bugigangas. Adoro pulseiras baratas.
– Quem não gosta? E...?
– E... acusei o menino de ouro lá da cidade de ter engravidado uma
empregada de quartos.
Sam soltou um pequeno assobio.
– Para te divertires?
Evie ergueu os olhos. O sol parecia tão próximo como um adereço
cintilante de papel de prata num espetáculo da Broadway.
– Estava numa festa cheia de «jovens» brilhantes de quem fingimos não
gostar. Sim. Eu era um deles. Era muito tarde, estava embriagada e... de
qualquer forma, era uma coisa que eu tinha ouvido – mentiu. – Mas que,
afinal, era verdade.
– Não compreendo. Se era verdade, porque foste mandada para cá?
Evie desejou poder dizer-lhe a verdade, mas também tinha prometido a
Will ser discreta e não queria pôr em perigo a sua estada em Nova Iorque.
– Matei de facto um homem no Ohio.
– Humm. E depois esses assassínios começaram em Nova Iorque.
Coincidência?
– Sabes como sou, Lloyd. Receio ter de te matar também. Sê um querido
e senta-te quietinho enquanto te estrangulo. – A brincar, Evie estendeu as
mãos para o pescoço dele e Sam deu uma volta ao volante, fazendo o carro
oscilar e obrigando Evie a soltar um grito.
– Eu vou calado, miúda – disse Sam corrigindo a condução. – Mas não
dês cabo de nós.
Estacionaram o velho Modelo T de Will a um quarteirão de distância e
evitaram o elétrico que subia fazendo estremecer as pedras da Rua Centre a
caminho de Tombs. A imponente cadeia elítica tinha um torreão em cada
extremidade e estava rodeada por um alto muro de pedra e por um
gradeamento de ferro que lhe dava um ar mais de fortaleza medieval do que
de um moderno edifício de Nova Iorque.
– Se eu te fizer este sinal… – Sam encostou o dedo ao lado do nariz –
significa que distraí o chui enquanto eu roubo aquilo de que precisamos.
Percebeste?
– Percebi. Mas como descobrimos onde o têm preso? – perguntou Evie
desesperada.
Entraram no edifício para encontrar uma confusão de agentes e
malfeitores. Parecia uma estreia num espetáculo de criminosos da
Broadway.
Sam dirigiu-se ao agente na receção.
– Peço desculpa, mas esta senhora pensa que o irmão está preso aqui.
Jacob Call?
O agente conferenciou com alguém pelo telefone e voltou abanando a
cabeça.
– Não tem visitas.
– Compreendo. Só queríamos ter a certeza de que não estava preso lá em
baixo. Teve uma pneumonia no mês passado e esse ar húmido não é bom
para os pulmões dele – disse Sam.
O agente voltou-se para Evie.
– Ele está no gabinete do diretor, neste piso, por isso pode descansar à
vontade, menina.
Evie pestanejou e tentou parecer infeliz.
– Muito obrigada. O senhor guarda foi um amor.
Sam levou o dedo ao nariz, fazendo o sinal secreto e nesse momento Evie
agitou as pálpebras. Depois deixou-se cair no chão.
– Oh, ohhh! – Desmaiou com o ar mais atraente possível e o agente
apanhou-a. Pelos olhos semicerrados, Evie viu Sam roubar as chaves.
– Oh, obrigada, senhor agente. Se me pudesse sentar algures até me sentir
com forças para me pôr de pé?
O agente levou-a para dentro e sentou-a num banco. Evie piscou o olho a
Sam e este murmurou-lhe qualquer coisa ao ouvido, fazendo-lhe cócegas no
pescoço.
– Miúda, juntos faríamos cá uma destas equipas!
Mais adiante, estalou uma confusão entre um grupo de bêbados e o agente
abandonou Evie e Sam para ir ajudar. Evie agarrou o braço de Sam e
puxou-o para que a seguisse para dentro do edifício.
– Para que conste, miúda, não é esta a minha ideia de divertimento –
murmurou Sam enquanto Evie se esgueirava pelos labirínticos corredores
da famosa cadeia da cidade.
– Como vamos passar pelos guardas? – perguntou Evie. Via um polícia
sentado num banco por trás de uma secretária, a preencher a papelada.
– Deixa isso comigo.
– Sam – avisou-o Evie quando se aproximaram.
O agente ergueu os olhos e Evie pensou que ele tinha olhado para eles.
Ouviu Sam resmungar qualquer coisa em surdina, como se fosse uma
oração. Ergueu a mão como para os proteger e o agente voltou a olhar para
a papelada como se não os tivesse visto. Era muito estranho e Evie disse
para consigo que ele não os podia ter visto de maneira alguma.
– Foi um golpe de sorte – disse ela, soltando o fôlego.
– Continua a andar – ordenou Sam.
Encontraram Jacob Call sentado num pequeno gabinete com apenas duas
cadeiras e uma mesa. Usava o mesmo macaco e chapéu preto que da última
vez que o haviam visto. Ainda tinha o pendente ao pescoço. Arregaçara as
mangas e Evie conseguiu ver umas tatuagens rudimentares a espreitar por
cima dos punhos.
– Olá, outra vez – disse Evie. – Recorda-se de mim, senhor Call?
O irmão Call mal olhou para ela.
– Pois.
– Ouvi dizer que não queria contar nada à polícia. Porquê?
– Não lhes digo a eles. Não lhes digo a si – declarou.
– Que pena. Pensei que teríamos montes de coisas de que falar. Disto, por
exemplo. – Evie colocou o Livro dos Irmãos sobre a mesa entre ambos.
A expressão de Jacob Call ensombrou-se.
– Onde arranjou isso?
Evie abriu o livro e passou as páginas, mas não o deixou ver.
– Uma leitura fascinante. Muito melhor que Moby Dick. Como esta
passagem, por exemplo.
Abriu a página na décima primeira oferenda, o Casamento da Besta e da
Mulher Vestida de Sol. Colocou o livro sobre a mesa e viu Jacob Call olhá-
lo, assustado.
– O ritual das oferendas. Já começou, não é verdade? O erguer da Besta.
Inclinou-se para diante, colocando reverentemente a mão sobre a página.
– Tal como o profeta viu – disse ele. – Quando o fogo arder no céu, o
escolhido fará a oferenda final. A Besta erguer-se-á nele e o Armagedão
começará.
Evie sentiu a pele arrepiada. Esforçou-se por manter a compostura.
– E a Besta chegará a este mundo através do ritual da morte... hum, das
oferendas. Não é verdade?
Jacob Call fez um curto aceno.
– O mundo caiu no pecado. O Senhor purificá-lo-á com sangue através do
escolhido.
– E é o senhor o escolhido? – atreveu-se Evie.
O homem franziu os lábios numa expressão de desprezo.
– Porque haveria de lhe dizer? A senhora não é quem manda nem é
crente. É só uma rapariga.
– Tal como Ruta Badowski era? – perguntou Evie de repente. Não
gostava nada de Jacob Call. – Diga-me, é verdade que enviou os olhos dela
à polícia como oferenda à Besta, para que ela soubesse que cumpriu a
profecia? – perguntou Evie tentando enganá-lo.
– Pois foi. E que agrade ao Senhor.
Jacob Call não daria um bom jogador de póquer, pensou Evie. Nesse
desprevenido momento de surpresa, mostrara a mão – não sabia que ela
estava a mentir. Desconhecia os pormenores do assassínio.
– E as mãos do Tommy Duffy? Que fez com elas? – insistiu.
Jacob Call tinha uma expressão de pedra.
– Já disse o que tinha a dizer, não digo mais nada.
– Pois então muito bem. Só quero saber mais uma coisa e depois deixo-o
em paz. O seu pendente... o que significa?
Jacob Call continuou em silêncio.
– Vamos cavar daqui, Evie – disse Sam. – Parece-me que vem alguém
pelo corredor.
– É uma maravilha! – disse Evie, provocando-o deliberadamente. – Tenho
de arranjar um para mim. Onde o arranjou?
– Não pode troçar do Senhor! – disse Jacob terrivelmente zangado.
– Quem falou em troçar do Senhor? Só quero saber o nome da sua
ourivesaria. Ou talvez me venda o seu... – Evie estendeu um dedo para tocar
no pendente e Jacob Call bateu com os punhos na mesa, obrigando-a a dar
um salto para trás.
– É meu e só meu! E o Senhor disse: «Ungi a vossa carne e preparai as
paredes de vossas casas. Ligai o vosso espírito à Marca Sagrada e usai-a
sempre sobre a vossa pessoa e assim serei protegido nesta vida e na outra.
Mas cuidai que a Marca Sagrada não seja destruída, pois assim cortareis o
laço com o vosso espírito!»
– Estou a perceber – disse Evie, tentando não sorrir. Conseguira o que
precisava, embora sentisse o coração acelerado. – Mesmo assim vou tentar
a Tiffany. Obrigada na mesma.

***

– Que treta era aquela de se ligarem à Marca Sagrada? – perguntou Sam


depois de se terem esgueirado de Tombs e caminharem já a toda a pressa
para o local onde ficara o carro de Will.
– Parece que ele acredita que se pode ligar o espírito àquele pendente e
que é uma espécie de objeto mágico que nos permite continuar a viver.
Sam soltou um assobio e abanou a cabeça.
– As coisas em que as pessoas acreditam. Então, pensas que se trata do
nosso assassino?
Evie abanou lentamente a cabeça.
– Penso que não. O assassino não mandou os olhos de Ruta Badowski
pelo correio. Aquilo inventei eu e ele foi na conversa.
– Talvez finja não saber.
– Talvez – concordou Evie, mas não estava convencida.
No passeio, um ardina gritava os títulos da última edição.
– Extra! Extra! Daily News! Exclusivo do Assassino do Pentagrama!
Leiam!
Evie atirou uns trocos ao rapazinho e ficou a olhar para o título:
ASSASSINO DE IMITAÇÃO! FANÁTICO DO PENTAGRAMA COPIA UMA PÁGINA
MACABRA DA HISTÓRIA?
– Canalha! – disse Evie, furiosa. – Sugeri-lhe isso e ele usou-o seu favor!
– Nunca confies na imprensa, boneca – comentou Sam.
Evie procurou a história e leram-na ambos na rua por entre o vaivém dos
transeuntes.
– «No verão de 1875, o corpo parcialmente decomposto de um homem
não identificado foi encontrado na pista de corridas de Belmont. O corpo
tinha vestígios de estranhas tatuagens, incluindo a de uma estrela de cinco
pontas e um recado preso à camisa. Grande parte da tinta tinha-se
desvanecido por ação dos elementos, mas eram legíveis duas palavras:
cavaleiro e estrelas.» – Evie soltou uma exclamação sufocada. – O
Cavaleiro Pálido Cavalgando a Morte Diante das Estrelas. A terceira
oferenda. Retirou uma página da história.
Subiram para o carro de Will e dirigiram-se rapidamente à parte alta da
cidade e, enquanto Sam estacionava, Evie irrompeu pelo museu
interrompendo a aula de Will.
Ergueu o jornal.
– Encontrei a terceira oferenda – e saiu a correr, deixando Will e os
alunos sem perceber o que se passava.
Momentos depois, Will irrompia pela biblioteca.
– Evie, por que diabo me interrompeste a aula?
– Tito, oiça isto! – Leu-lhe parte do artigo de T. S. Woodhouse. – Há
cinquenta anos! A terceira oferenda aconteceu há cinquenta anos...
– Evie – disse Will.
– Foi por isso que o assassino começou com a quinta oferenda, porque as
outras quatro já se realizaram e ele apenas quer terminar o trabalho!
– Evie, Evie! – interrompeu Will. – Jacob Call confessou.
– Ele... o quê?
– Há meia hora. O Terrence telefonou-me. Confessou tudo. Disse que era
o escolhido para trazer o fim.
– Mas ele não é o assassino. Não pode ser.
– É sim, Evie. A polícia de New Brethren confirmou que há seis meses
que anda a pregar a vinda da Besta e a chegada do Cometa de Salomão.
Admitiu o crime. Acabou – disse Will para encerrar o assunto. – Porque não
tiras a noite para ir dançar com os teus amigos? Bem o mereces. E agora
tenho de voltar para a aula.
Evie sentou-se na larga escadaria e escutou a voz de Will que vinha da
sala de aula enquanto ele falava da natureza do mal.
Jericho veio sentar-se ao lado dela.
– O Fausto de Murnau está em exibição no Palace.
– Estupendo – disse Evie, dando ainda voltas à cabeça com o que o tio lhe
dissera.
– Estava a pensar se quererias…
Ouviu-se bater à porta.
– Eu vou – disse Evie. – Provavelmente é outro repórter.
– Ir comigo – terminou Jericho, enquanto via Evie afastar-se.
A mulher negra que se encontrava nos degraus do museu era alta e de
ombros largos, bem arranjada, com um fato de quadrados castanhos e um
chapéu bege com uma fita vermelha. Não parecia repórter; de facto tinha
antes porte de rainha.
– Em que posso ajudá-la? – perguntou Evie.
O sorriso da mulher era delicado, mas formal.
– Venho à procura do doutor William Fitzgerald.
– Neste momento ele está a dar uma aula.
– Compreendo. – A mulher assentiu. – Posso deixar o meu cartão?
– Claro.
A mulher retirou da carteira um simples cartão de visita de cor creme.
Evie passou o dedo por cima das letras. Menina Margaret Walker, com
uma morada na parte alta da cidade.
– Trabalha para o doutor Fitzgerald? – perguntou a mulher. Havia
qualquer coisa de estranho no modo como ela disse «trabalha». Um tom de
desconfiança que pôs Evie de sobreaviso.
– Sou a sobrinha, Evie O’Neill.
– A sobrinha – disse a menina Walker admirada. – Ora, ora, quem diria?
Evie não sabia o que pensar da menina Margaret Walker. Não era
frequente uma pessoa desprezá-la daquele modo.
– E a senhora trabalha com o meu tio, menina Walker?
A boca da menina Walker estremeceu, brincando com a sombra de um
sorriso antes de se decidir por uma expressão mais séria.
– Não. – A mulher começou a descer a escada, mas voltou-se. – Menina
O’Neill, desculpe a minha indiscrição, mas que idade tem?
– Dezassete anos.
– Dezassete. – A mulher pareceu refletir. – Passe um bom-dia, menina
O’Neill.
Evie voltou o cartão e ficou surpreendida ao ver que Margaret Walker
deixara uma nota numa caligrafia tão precisa e recortada como ela parecia
ser.
Está a voltar.
O que estaria a voltar? Quem seria Margaret Walker? E o que seria ela a
Will?
Ao regressar à biblioteca, Evie ficou admirada por encontrar Will.
– Oh, já terminou. Veio uma pessoa à sua procura. Uma mulher. Deixou
um cartão.
Will olhou para o nome do cartão. Voltou-o e leu o que estava escrito do
outro lado.
– Quem é ela, Tito?
– Ninguém que eu conheça – respondeu Will e deitou o cartão de
Margaret Walker para o cesto dos papéis.
18 Sepulturas, nome porque era conhecida a prisão de Manhattan (Manhattan Detention Complex).
(N. da T.)
GUARDA OS TEUS PROBLEMAS

Evie estava a sonhar.


Na lógica circular e exótica dos sonhos, estava sentada num velho baloiço
de madeira, nas traseiras da casa no Ohio, enquanto James a empurrava.
Sentia uma necessidade desesperada de olhar para trás, para se assegurar de
que ele estava lá e de lhe murmurar um aviso, mas o baloiço subia cada vez
mais e ela apenas se agarrava com força. Ao quarto empurrão, subiu tão alto
que o pendente lhe voou do pescoço. Evie estendeu a mão para o agarrar e
caiu, caiu, caiu, na eternidade aveludada.
Um corvo arrancou-lhe dos dedos e voou para um céu de tempestade por
cima de um enorme campo de trigo. Os relâmpagos explodiam das nuvens e
atingiam a terra. O trigo ardia e Evie teve de erguer um braço para se
proteger do calor.
Quando afastou o braço encontrou-se nas ruas completamente desertas de
Times Square. Sob o gigantesco anúncio das Indústrias Marlowe, um
veterano de guerra na sua cadeira de rodas agitava uma lata.
– Chegou o tempo – disse ele.
A mulher bonita na fotografia do tio Will passou a patinar e a rir. «É
mesmo teu», William, disse. Evie ouviu o riso e voltou-se para ver que se
tratava de Will, o jovem Will dos retratos de família. Mas quando olhou de
novo, era James, na bruma, à entrada de uma floresta sua conhecida. Estava
pálido, tão pálido. Com enormes olheiras sob os olhos vazios. Acenava a
Evie e ela seguiu pelo bosque até ao acampamento militar. Uma vitrola
tocava em cima de um barril, e o disco rodava, rodava, rodava: Guarda os
teus problemas na velha mochila e sorri, sorri, sorri…
Os sacos de areia formavam uma muralha diante de uma longa trincheira.
Uma vedação de arame farpado estendia-se por quilómetros. E o nevoeiro
pairava, pesado, sobre tudo aquilo.
Não deixes que a alegria e o riso encontrem obstáculos. Sorriam rapazes,
assim é que é...
Por cima da copa das árvores apareceu um longo terraço serreado, como
um castelo de fadas na bruma. Onde estaria James?
O disco girava: De que serve preocuparem-se? Nunca valeu a pena…
Os soldados andavam por ali conversando, comendo das latas, bebendo
dos cantis. Pestanejou e, por um breve instante, os rapazes tornaram-se
espectros esqueléticos. Evie gritou e tapou os olhos, quando olhou de novo
eram apenas soldados. Um fez-lhe um brinde com o cantil. Sorriu e
saltaram-lhe gafanhotos da boca.
Por isso guarda os teus problemas na velha mochila e sorri, sorri, s…
Uma explosão fez estremecer a terra. Uma feroz coluna de luz perfurou o
céu e espalhou-se em ondas rápidas, dizimando as árvores e os soldados,
exatamente onde se encontravam – ossos descarnados, órbitas sem olhos,
membros derretidos, bocas abertas em gritos mudos, enquanto a vitrola
girava sibilante. Evie fugiu. Os seus pés nus enfiavam-se em campos de
lama ensanguentada que lhe salpicava a camisa de dormir, o rosto e os
braços. O sangue transformou-se em papoilas, que se ergueram ao lado das
árvores queimadas. Viu James mais adiante, de costas para ela. Estava vivo
e incólume!
James. Gritou o nome dele, mas no mundo do sonho, não emitiu qualquer
som. James, James! Estava perto. Conseguiria chegar-lhe e fugiriam ambos
daquele lugar horrível. Sim, fugiriam. E não lhes aconteceria nada. Eles...
Ele voltou-se lentamente para ela e retirou a máscara de gás, de modo que
Evie viu que o belo rosto do irmão estava horrorosamente pálido e
esquelético, os dentes brilhavam agora porque já não tinha lábios.
E depois, derretia-se como todos os outros.
Evie acordou a tremer. Sentou-se e puxou os joelhos para o peito,
aguardando que a respiração voltasse ao normal. Sabia que já não dormiria
mais naquela noite. Exausta, foi à cozinha buscar um copo de água e,
depois, instalou-se na cadeira da secretária no escritório de Will e tentou
consolar-se arrumando a confusão que havia na secretária dele. Pegou no
pesa-papéis de vidro. Uma faca de papel. A fotografia emoldurada da
mulher que vira quando tivera na mão a luva de Will. Se quisesse poderia
segurar qualquer destas coisas entre as mãos, concentrar-se e descobrir os
segredos de Will. E também os de Jericho. E os de Sam, de Mabel e de
Theta. A lista era interminável. Mas saber os segredos das pessoas sem o
seu consentimento seria uma forma de roubo. E não tinha a certeza de
querer a responsabilidade desse conhecimento.
Devolveu a fotografia ao seu lugar e tocou com a palma da mão no meio
dólar que tinha ao pescoço, sentindo-se consolada pela sua presença. Nunca
conseguira lê-lo, a moeda estava demasiado imbuída nas suas próprias
recordações. Mas gostava de lhe sentir o peso junto ao pescoço. Era a sua
última ligação com James e James fora a sua ligação com tudo o que era
bom. Recordava-se da nota de parabéns que acompanhara o presente.

Feliz aniversário, miúda.


Já tens sete anos? Dentro em breve estarás a prender gardénias no
teu vestido de baile, sentada com os teus admiradores no alpendre
em frente de casa... sob o olhar atento do teu querido irmão, claro. A
França é terrivelmente lamacenta. Divertir-te-ias muito a fazer bolos
de lama e a atirá-los aos alemães. Amanhã é um grande dia, por isso
não te vou escrever durante algum tempo. Aqui vai uma coisinha
para te lembrares do teu irmão mais velho.
Não vás gastar tudo na loja dos doces.
Adoro-te, James.

Uma semana depois, receberam o horrível telegrama a avisar da morte de


James e a família quebrou-se e voltou a unir-se, como uma fotografia em
pose por trás de um vidro partido.
Sobre a secretária de Will, o Daily News estava dobrado no último artigo
de T. S. Woodhouse sobre o Assassino do Pentagrama. O irmão morrera
havia muito tempo e algures naquela cidade um assassino quebrava os
corações. Evie girou o pendente e pensou nas famílias enlutadas de Tommy
Duffy e Eugene Meriwether. Sabia o que era esperar por alguém que nunca
voltaria a casa. Sabia que o desgosto, como uma cicatriz, esbatia-se, mas
nunca desaparecia. O tio Will não quisera que ela usasse os seus talentos
para apanhar o assassino; pensou que seria muito perigoso. Enganava-se,
perigoso seria não os usar. Não que isso tivesse qualquer importância, agora
que Jacob Call confessara. Mas por que razão não conseguiria sentir-se
melhor?

Jericho esquecera-se de correr a cortina antes de ir para a cama e agora o


enfadonho néon da cidade que não dorme acordou-o. Dirigiu-se ao espelho
e aí ficou, sem camisa, a examinar-se. Era alto, um metro e oitenta, com os
ombros largos do agricultor que seria se não tivesse adoecido. Abriu
silenciosamente a gaveta da secretária e retirou o estojo de cabedal do
esconderijo por baixo das camisas dobradas, abriu-o e passou um dedo
pelos frascos azul-escuros. Apeteceu-lhe erguer um punho fechado e
quebrá-los todos. Mas estendeu as mãos diante do corpo e aí as manteve
durante alguns segundos, observando-as antes de as deixar cair ao longo do
corpo. Tinha as mãos firmes, a pele macia, os olhos límpidos. O coração
mantinha um ritmo firme e reconfortante. Apenas alguém muito chegado
viria alguma vez a saber a verdade, mas não tencionava deixar que ninguém
se aproximasse tanto.
Sentiu movimento no apartamento e abriu uma frincha da porta. Viu Evie
a sair do escritório de Will de volta para o quarto. A luz azulada que entrava
pelas janelas delineava-lhe a silhueta do corpo por baixo da camisa de
dormir e Jericho sentiu uma agitação no ventre. Repreendeu-se por estar a
olhar, mas não deixou de o fazer. Quando ela desapareceu da sua vista,
fechou silenciosamente a porta e deixou-se cair no chão em posição para
fazer flexões executando uma castigadora série de exercícios, contando-os
silenciosamente: Trinta… cinquenta… cem. Quando terminou tinha o corpo
coberto por uma pelicula de suor que lhe dava uma sensação de alívio. Suar
era bom. Saudável. Normal. Estendeu de novo as mãos. Firmes como uma
rocha. Escondeu o estojo de cabedal debaixo das camisas e fechou a gaveta.

No apartamento com quintal do Harlem, a festa de Alma estava em plena


animação. O trompete de Gabe gemia e vociferava como um homem em
busca de qualquer coisa. O pequeno apartamento estava cheio de gente que
dançava e bebia, cantando e gritando para a noite. Quando Memphis chegou
ao apartamento já cheio com Theta pelo braço, houve quem erguesse as
sobrancelhas e lançasse um ou dois olhares. Tudo isso terminou quando
Rita, amiga de Alma se dirigiu a Theta e perguntou em voz alta:
– Tens um cigarro?
Ao que Theta respondeu:
– Tenho dez. Qual queres?
Pelo que Rita soltou uma gargalhada e declarou.
– Ela é das nossas. – E depois tudo correu bem.
Em breve todos se dedicavam ao divertimento. Ou quase todos.
Gabe puxou Memphis para um canto.
– Mano, quando disse que devias arranjar uma miúda, não estava a falar
de uma miúda branca.
Memphis não quis adiantar o assunto com Gabe, pelo que se limitou a
dizer:
– Estamos num país livre. – E foi à cozinha comprar bebidas com Gabe
atrás.
– Não, não estamos. E tu bem sabes.
– Então deveríamos estar.
– Deveríamos estar e estamos não é a mesma coisa. O que acontecerá
quando ela se cansar de ti, ou pior, de te acusar de alguma coisa? Lembras-
te de Rosewood?
– Duas cervejas! – disse Memphis ao homem que tratava das bebidas. –
Porque te foste agora lembrar dessa cidade, Gabriel?
– Essa cidade foi incendiada por causa do que disse uma mulher branca…
– Ga-bri-el! – Chamou Alma num tom acima do barulho. – Vens tocar ou
preferes ficar a dar à língua a noite inteira?
– Não te enerves, amor – respondeu Gabe a sorrir. O sorriso desapareceu
quando se voltou para Memphis. – Já não é suficiente que eles nos
desprezem e ocupem as melhores mesas nos nossos clubes, quando nem
sequer as podemos ocupar nos deles? Ou que tentem controlar os nossos
negócios como aconteceu com o Hotsy Totsy. E agora queres andar a exibir-
te com uma deles?
– Não me ando a exibir, Gabriel.
– Mano, andas à procura de sarilhos. Faz um favor a todos: leva-a até lá
fora, mete-a num táxi para a Baixa e diz-lhe adeus.
– Não queiras governar a minha vida, Gabe – disse Memphis irritado.
Gabe agarrou na manga de Memphis.
– Não estou a tentar governá-la; estou a tentar salvá-la. Vais ser apanhado
pelas pessoas erradas e não conseguirás curar o que elas te fizerem.
– Já te disse que não consigo curar – disse Memphis por entre os dentes
cerrados. Soltou-se da mão de Gabriel, pagou as cervejas e atravessou a sala
onde os pares dançavam até onde Theta estava sentada, balançando a perna
ao som da louca música do piano do Count.
– Está tudo bem, Poeta? – perguntou Theta.
– Está. Não há problema.
– Claro que não – disse Theta, observando-lhe o rosto de perto. – Aqui
está muito fumo, não achas? Talvez devêssemos ir respirar ar puro.
O apartamento de Alma encontrava-se cheio de gente desde o sítio em
que estavam sentados até à porta e ao outro extremo. Levaria uma
eternidade tentar atravessá-lo. Por isso, Memphis apontou para a janela e
ele e Theta saíram por ela para um jardinzinho quadrado e bem arranjado
cruzado por cordas com roupa estendida. O ar era frio, mas sabia bem
depois de terem estado fechados lá dentro.
– De onde és? – perguntou Memphis a Theta.
– De todo o lado.
– Mas de onde é a tua família?
– Neste país as pessoas gostam sempre de saber de onde são os outros e
quem é a família – resmungou Theta. – Para dizer a verdade, não sei. O
meu pai pôs-se a andar antes de eu nascer. A minha mãe deixou-me nos
degraus de uma igreja do Kansas quando eu era bebé. Aos três anos fui
adotada por uma tal senhora Bowers, que não era aquilo a que se chama um
tipo maternal. Desde o momento em que consegui calçar uns sapatos de
sapateado passei para o Orpheum Circuit para fazer oito espetáculos por
semana.
– Não imagino que alguém te consiga abandonar – disse Memphis com
tal sinceridade que Theta sentiu um baque no peito.
– Toma cuidado, Poeta. Posso começar a acreditar.
– Sou um tipo em quem se pode acreditar.
– Ah, sim? Prova. Diz-me um segredo acerca de ti.
Memphis pensou um pouco antes de responder.
– Dantes conseguia curar – disse por fim. – Chamavam-me o Curandeiro
do Harlem. Memphis, o Milagroso. Uma vez por mês na igreja, ficava ali
em frente e apunha as mãos sobre as pessoas para lhes retirar as dores e as
doenças.
– Estás a brincar comigo? – perguntou com uma expressão séria.
Memphis abanou a cabeça.
– Quem me dera. – Contou-lhe a morte da mãe e como nessa noite
perdera o dom e nunca mais o recuperara. – E foi uma boa coisa, acho eu.
Theta ouviu com atenção. Percebia que ele estava a ser sincero. Queria
contar-lhe o que se passara no Kansas. O que fizera e porque tivera de fugir.
Mas que homem ficaria com ela depois de ouvir uma coisa daquelas?
– Vem cá. – Theta fez sinal com o dedo e Memphis seguiu-a pelo
caminho estreito entre duas filas de roupa estendida. Escondidos e em
segurança beijaram-se enquanto a noite rugia à volta deles. As bocas
estavam doces do bolo de coco de Alma e da cerveja feita em casa.
– Isto está a acontecer muito depressa, não é verdade? – disse Memphis.
Não se lembrava do tempo em que não conhecia Theta, do tempo em que
ela não lhe ocupava os pensamentos e sonhos.
– A vida é rápida, Poeta.
Memphis tomou-lhe o rosto entre as mãos e poisou a boca na dela. Theta
nunca fora beijada como Memphis agora a beijava. Houvera rapazes
desajeitados, trémulos de desejo nervoso. Houvera donos de teatro, «tios»
que a apalpavam quando ela passava por eles ou que queriam «inspecionar»
o seu traje para garantir que era decente até à roupa interior, homens que
davam um beijo de vez em quando para evitar outra coisa pior. E Roy,
claro. Roy, belo e cruel, cujos beijos eram afirmativos, como se precisasse
conquistar Theta, marcá-la com a sua boca. Esses homens nunca tinham de
facto conhecido Theta. Mas o beijo de Memphis era diferente dos deles. Era
apaixonado, mas terno. Uma concordância mútua de desejo. Era um beijo
partilhado. Ele beijava-a a ela. Ele estava com ela.
Memphis afastou-se.
– Está tudo bem?
– Não – respondeu Theta.
– Que se passa?
Theta olhou-o através das frondosas pestanas.
– Paraste.
E puxou-o para si. Agarrou-se à corda para se equilibrar e caíram no
chão, rindo, num monte de roupa que teria de ser lavada outra vez.
– Vamos ficar mesmo aqui – disse Memphis e Theta descansou a cabeça
no peito dele, escutando-lhe o bater firme do coração enquanto ele a
apertava contra si.
Lá fora a cidade agitava-se e suspirava no seu sono. O vapor saía das
tampas dos esgotos e envolvia o candeeiro como a cauda de um deus
esquecido. Debaixo do chão, nos túneis inacabados das novas linhas do
metropolitano, as ratazanas corriam pelos carris fugindo de uma coisa que
pensavam que as perseguia, uma coisa mais horrível do que o que os sonhos
das ratazanas conjuravam. Uma vidente de fachada cuja ligação com os
espíritos não passava do puxar de um cordel com o dedo do pé para dar uma
pancada por baixo do tampo da mesa, sentiu-se de súbito levada a cobrir a
bola de cristal com um pano e a fechá-la num armário. Em Chinatown, a
jovem de cabelo escuro e olhos verdes curvava-se reverente aos seus
antepassados, oferecendo-lhes as suas preces e preparava-se para caminhar
em sonhos, por entre vivos e mortos. A norte, ao longo do Hudson, numa
aldeia abandonada e em ruínas, o vento transportava os terríveis gritos de
morte de fantasmagóricos habitantes e o som ecoava fraco lá em baixo na
aldeia fazendo com que os homens debruçados sobre os seus tabuleiros de
damas nas traseiras do armazém, olhassem nervosos uns para os outros,
com a respiração suspensa durante vários segundos até o vento e o som
desaparecerem. Algures, na região, havia semelhante alvoroço. Uma mãe
sonhava com a filha morta e podia jurar que acordava ao som arrepiante das
palavras Mamã, cheguei. Um homem do Klan que deixara a reunião no
bosque para urinar junto a uma velha árvore, saltou sobressaltado ao sentir
uns pés passando-lhe pelos ombros, marcando-o. Não havia nada ali, mas,
mesmo assim, sacudiu os ombros, juntando-se apressadamente aos seus
irmãos de branco perto da fogueira. Um jovem ojíbua viu um machado
descrever um círculo brilhante e prateado por cima da sua cabeça para logo
desaparecer. «Há duas meninas que me chamam para jogar às escondidas
nos campos de milho», murmurou. O pai, sonolento, mandou-o de volta
para a cama e quando o rapaz passou pela janela do andar de cima, viu as
meninas incandescentes com as suas saias compridas e as blusas de gola
alta desvanecendo-se no milho, chorando tristemente: «Vem, vem brincar
connosco...»
E ainda mais adiante, nas vastas pradarias que no espírito americano
foram transformadas em mito, havia uma figura escondida na sombra, à
espera, um espantalho a aguardar a colheita.
O ANJO GABRIEL

Gabe não sentiu a pressão dos fantasmas enquanto se dirigia para oeste a
caminho de casa, com a cabeça ainda zonza da erva que fumara na festa de
Alma. A noite arrefecera, obrigando-o a soprar as mãos para tentar aquecê-
las. Fora um dia bom, tão agradável quanto qualquer outro de que Gabe se
lembrava. Conhecera a grande Mamie Smith. Tinha apenas dezoito anos,
mas os outros músicos tratavam-no como se fosse um deles, sorrindo
enquanto fazia os solos, elogiando-lhe a técnica.
A única sombra fora a discussão com Memphis. Mas o que lhe dera para
levar aquela rapariga à festa? Claro que era bonita. Mas havia muitas
raparigas bonitas que não causavam problemas, ou pelo menos não mais do
que o habitual nas mulheres. Não lhe agradava que tivessem ficado
zangados. Memphis e Theta tinham desaparecido sem sequer se
despedirem. Se era assim que ele queria, muito bem. Quando a miúda o
deixasse por um importante qualquer, a quem se iria ele queixar? A Gabe,
estava visto.
Um som sobressaltou-o. Um, dois, três; um, dois, três. Uma cadência a
três tempos, como uma valsa. Mas quando se voltou, não viu ninguém.
Sentia-se irritado e a história de Memphis e da miúda estava a estragar-
lhe a sua boa disposição. Gabe subiu a gola do casaco para se proteger
temporariamente do vento que soprava do Hudson, e continuou a andar. O
vento teve de se contentar em arrastar uma lata pela rua abaixo. Lá em
cima, os carris do El da Nona Avenida gemiam no seu vazio. Gabe reviveu
os melhores momentos desse dia. A camaradagem com os outros músicos.
O aperto de mão de Clarence Williams, que lhe prometera um futuro
brilhante com a Okeh Records. «Vou pôr-te a tocar para toda a gente»,
dissera. E para Gabe estava feito.
O som surgiu de novo – um, dois, três, um dois, três, clic, step, step, clic,
step, step.
– Está alguém aí? – perguntou Gabe para as sombras. Qualquer coisa
surgiu de entre os largos pneus de um Ford estacionado e Gabe soltou um
pequeno grito. Quando viu o gato desaparecer no beco, riu-se. – Meu Deus,
gato, para a próxima faz-te anunciar. Não tenho sete vidas como tu.
Abanando a cabeça, continuou o seu caminho, trauteando em surdina um
pouco da canção de Mamie Smith, pousando os dedos num trompete
imaginário. Os carris entrançados da ponte do El deixavam riscas de luz na
estrada. Foi então que se recordou do aviso de Isaiah. A ponte. Não passes
debaixo da ponte. Gabe nunca comentaria o assunto com Memphis, mas
havia certamente qualquer coisa de estranho com Isaiah. Aquela história de
ler o futuro a Gabe era um bom exemplo. Isaiah levara a piada longe de
mais; Gabe acreditara que o miúdo também estava assustado. Demasiada
imaginação – era o problema daquele rapaz.
Um, dois, três, um, dois, três, clic, step, step.
Outra vez aquele maldito som! Gabriel voltou-se. De repente surgira um
nevoeiro cerrado. As luzes do Whoopee Club brilhavam vagamente ao
longe.
Não passes por baixo da ponte. Ele está lá.
Gabe apertou mais a gola do casaco em redor do pescoço. Porque se
deixaria assustar pelas palavras tolas daquele rapaz? Ouviu o som de
passos. Pareciam vir de todos os lados. O nevoeiro tornava-se ainda mais
cerrado. Como seria possível? Como poderia ter ficado mais cerrado numa
questão de segundos? Estaria a aproximar-se do rio? Ter-se-ia perdido?
Gabe sentia-se desorientado. Qual seria o caminho para voltar aos clubes?
O som do assobio atravessava a bruma.
– Gabriel…
Alguém chamava pelo seu nome. Não reconhecia a voz.
– Quem está aí?
– Gabriel, o anjo. O mensageiro…
– És tu, Memphis? Vá lá, olha...
Gabe procurou qualquer coisa que pudesse usar se necessitasse, mas nada
conseguia ver. Não passes por baixo da ponte. Ele está lá.
Se aquilo era uma gracinha, Gabe não tinha vontade de rir. Avançou
rapidamente.
O homem saiu do ar húmido como se lá tivesse nascido. Vestia roupas
antiquadas e trazia uma bengala de prata. Sorria a Gabe. Era um sorriso
frio, frio, e Gabe sentiu os pés pouco firmes.
– O Arcanjo Gabriel cuja trombeta rasgou o céu.
– Se está à procura de quem toque instrumentos de sopro, já estou
comprometido com o grupo do Count – disse Gabe. O bater do seu coração
disparara violentamente. Provavelmente seria apenas um maluco que se
embebedara. Gabe podia vencê-lo se chegassem a isso, então porque se
sentiria de repente tão assustado?
Não passes por baixo da ponte. Ele está lá. Vais morrer.
– Gabriel, cuja trombeta anunciou o nascimento de João Batista. De Jesus
Cristo. E cuja chamada será testemunha da chegada da Besta – continuou o
desconhecido com os olhos a rolar em fogo, mas Gabe não conseguia
afastar os seus. – E a oitava oferenda foi a oferenda do anjo, do grande
mensageiro cuja música celestial alinhou as esferas e recebeu o fogo no céu.
E aí, ao tocar a sua trombeta dourada, marcou o nascimento da Besta.
O homem parecia cada vez maior com olhos como chamas gémeas e a
pele a alterar-se lentamente. A mudar.
– E o Senhor disse, que todas as línguas deem as boas-vindas e louvem o
Dragão antigo pois Dele é o caminho da justiça.
Do nevoeiro surgiu um terrível murmúrio demoníaco, um hálito do
próprio inferno.
– Vais respeitar-me, Gabriel? Vais respeitar-me e contemplar-me?
Gabe descobriu que não podia falar, porque o que tinha na sua frente
ficava para lá das palavras.
KNOWLES’ END

Os jornais relatavam a prisão de Jacob Call em enormes parangonas:


APANHADO O ASSASSINO! OH, IRMÃO CALL, ESTE ESTÁ RESOLVIDO! TUDO
TRANQUILO! Embora o detetive Malloy insistisse publicamente que Jacob
Call era apenas um suspeito, no tribunal da opinião pública já tinha sido
julgado e declarado culpado. Mas Evie falara com Jacob Call. Era óbvio
que ele não sabia grande coisa acerca do assassínio de Ruta Badowski. Era
quase como se ele quisesse chamar a atenção para si, assim que o
prenderam.
Evie deixara a Mabel uma oferta de paz: uma fotografia de Jericho que
encontrara por ali. Metera-a num papel que dizia simplesmente: «Desculpa,
Bolacha. Perdoas a tua amiga má? Evie.» Mabel respondera, subindo
imediatamente e abraçando Evie. Prometeram nunca mais se zangar. Evie
combinara um almoço com Jericho e depois, à mesa, declarou que
lamentava muito, mas que tinha um telefonema importante a fazer. Quando
regressou, quarenta minutos depois, encontrou os dois envolvidos numa
agradável conversa sobre Tolstoi. Não era o fogo de artifício da paixão, mas
também não havia indelicadezas e Evie considerou aquilo bom sinal.
Agora, enroladas em capas, Mabel e Evie estavam sentadas nas cadeiras
de um salão de beleza da Rua 57 enquanto duas cabeleireiras lhes lavavam
e arranjavam o cabelo.
– Gostavas de uma aventura? – perguntou Evie por cima do ruído da água
a correr no lavatório.
– Que espécie de aventura? – respondeu Mabel, também aos gritos.
– Confias em mim, não é verdade?
– Ah!
A conversa parou por uns instantes enquanto as cabeleireiras lhes
secavam o cabelo e as conduziam às cadeiras, começando a trabalhar na
ondulação do cabelo de Evie e a pentear a longa cabeleira de Mabel.
– Há momentos em que uma mulher precisa de ter uma fé cega na sua
melhor amiga. Chegou a altura – disse Evie depois de uma longa pausa. –
Além do mais, quando foi que te deixei ficar mal?
– Queres que faça uma lista?
– E se eu te dissesse que isto tinha a ver com os crimes do Assassino do
Pentagrama e que iriamos levar a cabo a necessária investigação? – O pente
fez uma pausa sobre o cabelo de Mabel e Evie lançou à cabeleireira um
olhar de soslaio. – Aposto que vinhas comigo, ou não?
– Absoluta e positivamente! Levava uma arma com seis balas para matar
esse homem horrível. Depois, apunhalava-o para ter a certeza de que estava
morto. – A cabeleireira encolheu os ombros e continuou a penteá-la. – É
preciso ter a certeza.
– Podes crer – disse Evie.
– Au! – exclamou Mabel enquanto o pente lhe desembaraçava o cabelo.
Levou a mão ao couro cabeludo magoado.
– Desculpe, menina, mas tem aqui uma enorme cabeleira. Já alguma vez
pensou em cortá-la?
– Nem vale a pena tentar – disse Evie, com um suspiro. – Há que tempos
que a queremos convencer.
– Muito bem – disse Mabel decidida. – Vamos a isso.
Evie deu um abraço a Mabel.
– Mabel, bem-vinda ao século vinte! Hip, hip, hurra!
– Carpe diem! – declarou Mabel.
A cabeleireira abanou a cabeça.
– Bem, não sei nada dessas estrelas de cinema, mas a menina ficaria
muito bem com um corte como o da Clara Bow – disse e pegou na tesoura.

O Sol era uma enorme bola quando Mabel e Evie saíram do comboio na
Rua 155 e se dirigiram para norte por ruas ladeadas por casas estilo Tudor e
por outras mais pequenas, passaram a taberna do Velho Lobo e a mercearia
Johnson, numa esquina onde havia uma agência imobiliária com andares
para alugar e seguiram em direção ao rio onde as casas eram mais escassas.
Uns rapazes de fatos de macaco poeirentos jogavam basebol fazendo o
relato da partida como se fosse um jogo dos Yankees: «Babe Ruth prepara-
se para bater a bola, o Grande Bambino, o Rei do Swing corre para a
base...» Os rapazes acenaram às duas jovens e Evie fez um movimento de
swing.
– Bates a bola como o Califa! – exclamou ela. Por fim, as jovens
voltaram em Knowles’ End, uma abandonada rua lateral que dava a volta à
colina sobranceira ao Hudson. Aí via-se a casa como uma gárgula num
monte ventoso.
– Por favor, não me digas que temos de ir ali – disse Mabel sufocada,
ofegante. A subida fora difícil. – Vamos ser comidas por ratazanas ou
encontramos o monstro do doutor Frankenstein.
– Não seria uma tarde emocionante? Pelo menos aparecerias com o
penteado mais moderno da cidade. O teu cabelo está o suco da barbatana!
Estou mesmo feliz por teres decidido cortá-lo!
Mabel recusou deixar-se convencer.
– Evie, porque me trouxeste aqui? O que tem isto a ver com a
investigação dos homicídios?
– Creio que é esta a toca do Assassino do Pentagrama.
Mabel ficou a olhar abismada.
– A Theta tinha razão quando te pôs a alcunha de Evil19. Julgo que
precisarás dos serviços de Sigmund Freud. Será a única pessoa que
possivelmente entenderá o funcionamento do teu pouco saudável cérebro.
Evie deu o braço a Mabel.
– Vou dizer-te uma coisa confidencial acerca deste caso. Mas tens de jurar
sobre a Bíblia...
– Sou ateia.
– Tens de jurar sobre a Bíblia dos ateus que não contas.
– Não existe nenhuma Bíblia dos ateus.
– Então, devias escrever uma. Jura sobre a campa do Xeque!
– Juro sobre a campa do Rodolfo Valentino – disse Mabel.
– Sei de fonte segura que, nesta casa, pode haver pistas que identifiquem
a identidade do criminoso. – Não estava exatamente a mentir.
– Pensei que a polícia já tinha engavetado o assassino... esse tal Jacob
Call. – Mabel observou atentamente o rosto da amiga. – Não pensas que
seja ele o Assassino do Pentagrama?
– É um palpite.
– Oh, não – disse Mabel. – Não, não e não!
– Por favor, Mabesie. Tenho de fazer isto.
Cedeu e contou a Mabel tudo o que ocultara acerca da investigação dos
crimes: o facto de ter pegado na fivela do sapato de Ruta, o assobio, a
ligação de John Perverso a Knowles’ End e a breve e estranha visita de
Memphis Campbell ao museu, quando disse que a casa parecia habitada.
– Caramba, Evie – disse Evie. Estremeceu, mas depois refletiu. Evie
conhecia as expressões de Mabel quando refletia; a amiga estava a delinear
um plano. – Não vamos para lá sem tomar precauções.
Mabel fez sinal a Evie para que a seguisse enquanto descia a colina e
voltava ao sítio onde os rapazes jogavam basebol.
– Vocês conhecem aquela casa velha na colina?
– Sim, menina – responderam.
– Vive lá alguém? Viram pessoas a entrar ou a sair?
– Ninguém entra ali. Nem sequer por causa de apostas – disse um dos
rapazes num tom enfático.
Mabel olhou para Evie como que a dizer-lhe Estás a ver?
– Pois bem, nós vamos entrar. É uma... aposta... da nossa fraternidade –
informou-os Mabel.
O outro rapaz abanou a cabeça.
– O mal é para si, menina.
– Rapazes, não querem ganhar dez cêntimos?
Os rapazes acompanharam-nas à esquina que era, segundo disseram, o
mais longe que as mães lhes permitiam chegar.
– Se eu e a menina O’Neill não sairmos dentro de trinta minutos, chamem
a polícia – ordenou-lhes Mabel.
– Não vamos à polícia por nada neste mundo. São tão maus como a casa.
– E que tal se, se não sairmos dentro de trinta minutos, lançarem essa
bola, com toda a força, para a janela e correrem para as vossas mães? Pode
ser?
– É a única bola que temos.
– Cinquenta cêntimos – disse Mabel.
– Por cinquenta cêntimos faço um lançamento como os do Babe Ruth.
– Fantástico! – Evie meteu vinte e cinco cêntimos na mão de cada um. –
Agora confiamos que fiquem aqui como duas pessoas normais, mas de
vigia. São cavaleiros a quem foi confiada uma importante missão.
– Hã?
– Abram bem esses faróis e não se atrevam a cavar daqui – disse Evie.
Obrigou-os a cuspir e a jurar sobre o cuspo, e depois, de braço dado, ela e
Mabel dirigiram-se para a ruína de Knowles’ End.
A casa fora certamente uma beleza nos seus tempos, com os seus
imponentes torreões, a varanda, duas pequenas chaminés e uma muito
grande, e as janelas em arco. Mas agora as janelas estavam entaipadas e as
duas portadas que restavam, presas por pregos e a ameaçar cair. A porta
dupla de carvalho ficara cinzenta por ação do tempo. Marcas metálicas
marcavam o lugar onde existira a aldraba, agora desaparecida –
provavelmente vendida ou roubada. A porta estava trancada.
– Tem de haver maneira de entrar. Olha à volta – disse Evie. Tropeçou
numa coisa no chão e viu que se tratava de uma boneca. Era uma boneca de
criança com o rosto de porcelana rachado. O bolor cobria as costuras
semelhantes a cicatrizes.
Nas traseiras ficava a entrada dos criados. Evie tirou um gancho do
cabelo e meteu-o na fechadura simples, conseguindo fazê-la girar. A porta
abriu-se com um rangido e encontraram-se numa despensa com armários
altos. Cheirava a pó e a podre. Fracas barras de sol passavam pelas fendas
das portadas.
Evie retirou uma lanterna do bolso e o feixe de luz mostrou os tetos de
metal rachados e grãos de poeira.
– De que diabo andas aqui à procura, Evie?
Evie não tinha bem a certeza. Precisava de uma coisa que lhe permitisse
fazer uma leitura.
– Vê se consegues encontrar um pendente antigo com um pentagrama.
– Um pentagrama como o do Assassino do Pentagrama? – perguntou
Mabel, à cautela.
– Só um pendente – mentiu Evie. – Tem calma, amiga. Oh!!!
Evie entrou no que certamente deveria ter sido em outros tempos um
salão de baile. Parte da mobília estava coberta com lençóis, dando à sala um
ar de cemitério. Junto de uma enorme lareira via-se um sofá bolorento, com
o miolo espalhado pelo chão. O papel caía em tiras da parede e em
determinados sítios tinha mesmo desaparecido, expondo as tábuas
apodrecidas. Havia muito que tudo de valor fora retirado daquela casa. Não
havia livros, pratas ou bibelôs, nada que ajudasse Evie. Até os apliques
tinham desaparecido. Encostado a um canto havia um piano de cauda,
coberto de teias de aranha e com falta de várias teclas. Evie carregou numa
e um ruído desagradável soou no espaço morto. Uma aranhinha preta saiu
de entre duas teclas e Evie afastou a mão. Na parede oposta via-se um
espelho partido que refletia a sala como um quadro rasgado. Evie pensou ter
visto movimento num dos estilhaços e deu um salto.
– Que se passa? – perguntou Mabel e Evie apercebeu-se de que fora
apenas a amiga que se aproximara.
– Nada. – Evie observou toda a sala. – É estranho – disse.
– O quê?
– Do exterior reparei que havia uma enorme chaminé, mas esta lareira é
muito pequena.
– Não temos tempo de criticar a arquitetura, Evie. A qualquer instante,
esses miúdos vão chamar as mães. Se é que não foram já à farmácia tomar
uns batidos. Não devias ter-lhes dado o dinheiro antes.
– Continua à procura – pediu Evie.
– De quê? – perguntou Mabel.
Não sei.
– Vou lá acima.
Mabel correu para ela.
– Evangeline Mary O’Neill! Não vais deixar-me nem por um momento!
Vamos ficar mais juntas do que George e Ira Gershwin20.
– Oh, a rapsódia. Nunca serei azul – gracejou Evie, embora parecesse
estranho brincar naquela sepultura.
– Importas-te de continuar?
Uma imponente escadaria levava ao primeiro andar. Os seus pilares
elegantemente entalhados tinham pontos apodrecidos. Os degraus rangiam e
gemiam a cada passo e Evie esperava que os degraus aguentassem com o
peso das duas. Passou a luz da lanterna por velhos retratos a óleo prateados
por teias de aranha. No cimo, o patamar dividia-se em dois corredores, um à
direita e outro à esquerda, cada um com várias portas. Evie mantinha-se
atenta a qualquer coisa em que pudesse tocar para obter uma leitura sólida,
qualquer coisa de pessoal.
– Por aqui – disse, dirigindo-se para a direita. Experimentou os puxadores
de todas as portas, mas estavam trancadas. Ao fundo da casa, encontraram
nova escadaria. Esta era estreita e mais fechada e levava a um sótão cuja
lucerna fora entaipada. Pequenas tiras de luz saíam pelas fendas, mas não
eram suficientes para iluminar a escuridão. Evie passou a luz da lanterna
pela divisão. O raio de luz aterrou numa cama de quatro postes envolvida
em cortinas. Um toucador com um espelho triplo. Um guarda-vestidos.
Com todo o cuidado, Mabel abriu as portas que rangeram. Estava vazio,
excetuando alguns chapéus. Sobre o toucador havia um espelho de mão e
uma escova.
De repente, Mabel soltou um grito arrepiante.
– O que foi? O que foi? – perguntou Evie com o coração acelerado.
Mabel ainda gemia quando apontou para a cama onde a lanterna de Evie
encontrou a forma de uma ratazana que fugia assustada e Evie e Mabel
quase ficaram ao colo uma da outra, aos gritos.
– Isto é a última gota, Evie! – exclamou Mabel sufocada. – Por favor,
podemos ir?
– Muito bem – disse. Não podia deixar de pensar que tinha fracassado.
Quando deu meia-volta para sair, tropeçou em qualquer coisa e quase caiu
em cima de Mabel.
– Evie, queres que eu morra de susto?
– Desculpa, amiga. – Evie apontou o feixe de luz para o chão. Parte de
uma tábua estava podre e, por baixo, havia qualquer coisa escondida. –
Segura aqui – disse, entregando a lanterna a Mabel. Puxou a tábua com um
gemido.
– Diz-me que não vais meter a mão aí dentro – disse Mabel.
– Está bem, não te digo. – Evie sufocou um grito e meteu os dedos no
espaço escuro por baixo da tábua podre, palpando com todo o cuidado para
encontrar o objeto. Quando ficou ao seu alcance, puxou-o com um grito e
ficou a tremer.
– Com mil raios! Nunca mais quero fazer isto.
Mabel acocorou-se junto de Evie.
– O que é?
Evie limpou as camadas de pó da caixa de camisas e levantou a tampa. Lá
dentro, estava um pequeno livro de capa de couro. Enquanto Mabel
segurava na lanterna, Evie abria o livro numa página ao acaso. No cimo
estava marcada uma data: 22 de março de 1870.
– «Esta noite, o papá encontra-se sobre a mesa da casa de jantar
embrulhado numa mortalha, pronto para ser enterrado. Sou a última pessoa
que resta dos Knowles. Oh, sinto-me perdida!» – leu Evie em voz alta. – O
diário da Ida Knowles – disse admirada.
– Era isso que querias encontrar?
– Muito melhor!
– Estupendo. Vamo-nos pôr a andar. Esta casa faz-me arrepios.
Desceram as escadas o mais depressa que puderam sem se magoar e
Mabel dirigiu-se à cozinha, por onde tinham entrado. Mas Evie reparou
numa porta que se abria lentamente no extremo oposto do corredor. Não
reparara antes. E se lá houvesse uma pista importante?
– Evie! Vamos embora! – sussurrou Mabel, mas Evie já estava à porta.
Evie entrou e encontrou-se num pequeno aposento. Estranhamente, havia
outra porta no centro da parede. Fez girar o puxador da porta que abriu um
alçapão que a fez cair por uma conduta de roupa. A gritar procurava nas
paredes lisas uma saliência a que se pudesse agarrar, para abrandar a
descida. Quando saiu no outro extremo, o casaco prendeu-se numa aresta
afiada, deixando-a suspensa. Livrou-se do casaco com todo o cuidado,
segurando-se a ele enquanto descia. O casaco rasgou-se na gola e aterrou no
chão sujo com uma pancada pouco agradável que lhe abanou os ossos. Não
partiu nada, mas ficou sem a lanterna e o seu casaco novo de brocado
dourado em tiras; um quadrado de tecido brilhante ficara agarrado à boca da
conduta.
Evie pôs-se de pé com algum esforço e esperou que os seus olhos se
habituassem à escuridão. O aposento tomou uma forma escura. Continha
uma fornalha velha. Uma mesa de trabalho, coberta de ferramentas. Roupa
estendida numa corda, dura e poeirenta. Uma peça moveu-se ligeiramente e
Evie ouviu o sangue latejar-lhe nos ouvidos. Não havia ninguém. Mas tinha
a certeza de que a peça de roupa se tinha mexido. Ergueu a mão e sentiu
uma leve brisa. Mas de onde? Não via janelas naquele túmulo escuro.
– Evie! Estás bem? – O pânico na voz de Mabel ecoava na conduta. –
Evie!
– Mabel, querida, havias de ver... há aqui um speakeasy muito giro e o
George Barrymore vai servir-me um cocktail de champanhe. – Evie
gracejava para acalmar os nervos.
– Não te atrevas a gozar comigo!
– Está tudo fantástico, Bolacha. Ando à procura da escada. Já subo.
Mabel continuava a falar. Era o que fazia quando estava nervosa, mas
Evie sentia-se grata enquanto andava aos tropeções naquela cave escura,
com a mão levantada, seguindo a leve aragem.
– ... não acredito que me convenceste a vir aqui...
A aragem levava a uma parede. Era impossível, o ar não conseguia
atravessar uma parede.
– … nunca, mas nunca mais me metes noutra, Evie O’Neill…
Estava tão escuro. Evie apalpou a parede em busca de uma abertura. No
silêncio parecia-lhe ouvir murmúrios e um tom baixo e firme. A pele de
galinha subia-lhe pelos braços até ao pescoço. Sim, murmúrios. Como o
bater de asas. O zumbido de insetos. O rosnar profundo dos cães. Um
milhar de línguas murmurando ao mesmo tempo.
– Calma, mulher, calma – disse para consigo, em voz alta. Era o que
James lhe dizia quando a ajudava a aprender a patinar sobre o lago gelado,
de mão dada com ela.
Agora tremiam-lhe as mãos e a respiração. Sentiu qualquer coisa ranger
debaixo dos pés e pisou uma coisa dura. Inclinou-se para apanhar o objeto e
descobriu bocados de um fecho de pedrarias. A fivela de um sapato. Como
a que faltava no sapato de Ruta Badowski. Sentiu o espírito num turbilhão e
uma tontura. Deixou cair a fivela, como se fosse uma coisa suja. Os
murmúrios voltaram. Parecia-lhe que qualquer coisa se movia na escuridão.
A velha fornalha acendeu-se e Evie recuou assustada. No mesmo instante
apagou-se.
Ouviu uma pancada surda lá em cima seguida de um grito de Mabel.
– Mabel! Mabel! – gritou Evie.
– Os miúdos atiraram a bola depois de uma eternidade! – gritou Mabel
pela conduta. – Será melhor irmos embora antes que as mães deles venham
cá e nos mandem prender por invasão de propriedade.
Evie andou aos tropeções pela cave e quase gritou de alegria quando por
fim encontrou uma escada. Subiu a correr as frágeis escadas e bateu na
porta até que Mabel a abriu para a deixar sair. De braço dado, saíram a
correr pela porta da frente para o sol acolhedor, sem se importarem em
correr o ferrolho e sem se deterem até chegarem à plataforma do
metropolitano e verem o comboio aos solavancos pelos carris da longa
espinha metálica da cidade.

Evie sabia que Will teria um ataque quando lhe contasse as explorações
desse dia em Knowles’ End, mas ficaria provavelmente encantado quando
lhe mostrasse o diário de Ida, que conseguira arrancar a Mabel, com a
promessa de que o leriam juntas depois de o mostrar ao tio Will. Instalou-se
então numa mesa do primeiro andar da biblioteca do museu, junto de um
candeeiro verde e leu algumas das últimas entradas.

7 de Setembro de 1874
Esta foi uma noite de grandes acontecimentos! Na sala escurecida, a
minha querida Mary comunicou com os espíritos dos meus falecidos
pais. Demos as mãos e Mary e o Sr. Hobbes falaram em línguas
desconhecidas. Ouviram-se pancadas e a chama da vela estremeceu
e apagou-se. Ficámos na mais completa escuridão.
«Não tenhas medo, queridinha», disse Mary em transe e soube
imediatamente que era o meu querido pai a pronunciar aquelas
palavras através dela. Oh, ouvir as suas palavras a uma tão grande
distância, erguer o véu para aqueles momentos preciosos, foi o maior
bálsamo que alguma vez recebi!
«Como vão os meus lilases?», perguntou a minha mãe, como o
faria se estivesse viva. Os seus queridos lilases! Eu mal podia falar,
com as saudades que sentia no meu peito.
«Lindos como sempre», respondi e, embora parecesse indecoroso,
não pude conter as lágrimas.
Foi tão breve a sua estada neste plano e espero tentar de novo o
mais depressa possível.

3 de Outubro
O Sr. Hobbes é um homem muito peculiar. Usa um estranhíssimo
pendente, um medalhão redondo sobre o qual está gravada uma
constelação de curiosos símbolos. A Mary diz que se trata de uma
relíquia sagrada de uma ordem secreta. Por vezes vejo-o sentado ao
fresco na biblioteca a estudar um texto antigo para o qual, segundo
afirma, foi conduzido pelo Senhor para o encontrar escondido no
buraco de um velho carvalho. O livro é um texto místico cheio de
cifras para o outro mundo, que não podem ser partilhadas com os
não iniciados, disse ele à laia de desculpa para o ter fechado no
armário e guardado a chave. Achei impertinente o facto de se ter
apropriado dessa maneira do meu armário. Mas Mary diz-me que o
Sr. Hobbes é um homem espiritual que não pode ser incomodado por
preocupações e haveres terrenos, embora seja suficientemente
bondoso para pagar do seu bolso as reparações da casa, o que para
mim é um grande consolo, pois desejo que Knowles’ End regresse à
sua antiga glória.

28 de Outubro
Quanto barulho! Os martelos do Sr. Hobbes perturbam-nos de noite
e de dia. Mudei-me para o velho quarto do sótão para evitar a poeira
e o barulho.

22 de Novembro
O Sr. Hobbes não me deixa descer à minha própria cave. Quando me
ofendi, disse-me, o mais delicadamente possível, que houvera um
terrível problema na cave e que a antiga fornalha fora substituída.
Sorriu ao dizê-lo, mas reparei que o sorriso nunca se espelha nos
olhos dele, que são de um gélido tom de azul.

15
de Janeiro
Estou adoentada, pelo que me encontro de cama. Mary diz que estou
prostrada pelo desgosto de falar tantas vezes com os meus queridos
pais e por receber constantemente as cartas para o pagamento dos
impostos. Não tenho dinheiro. «Vende-me Knowles’ End, minha
querida e eu pago os impostos e poderás viver como antes, se te
aperceberes que não és tu a dona da casa. O teu bem-estar nunca
estará em questão», disse-me Mary. Não suporto a angústia de não
vender Knowles’ End, mas seria pior perdê-la, levando-a à praça.
Tenho de pensar. Mary ofereceu-me vinho doce e insistiu para que eu
o bebesse para acalmar os nervos.

20 de Janeiro
O meu sono é perturbado pelos mais terríveis sonhos.

21 de Abril
Encontrei-o às escuras na sala, nu. «Olha para mim e admira-te»,
vociferou. E os seus olhos ardiam no escuro como chamas gémeas.
Depois, de nada mais me lembro até acordar na minha cama, já
depois do meio-dia com uma enorme dor de cabeça e Mary a insistir
em que eu não precisava de médico, mas sim de descansar sob os
seus cuidados.

Maio
Não sei que dia é, pois as datas juntam-se como correntes num
ribeiro. Lá em baixo realizam estranhas sessões de espiritismo. Oiço-
os daqui, mas estou demasiado fraca para descer e estou muito
assustada.

Agosto
Está um calor terrível. O mau cheiro impregna a casa e revolta-me o
estômago. O hóspede desapareceu, não sei para onde.

1 de Setembro
A besta assola os corredores desta casa, assustando todos os que cá
estão. Os poucos criados que ainda cá se mantêm receiam-no. Conta
as histórias mais fantásticas. Uma vez afirmou ser o último membro
sobrevivente de uma tribo perdida e escolhida, quando eu sei que era
pobre de pedir, uma pessoa perfeitamente vulgar, criado num
orfanato de Brooklyn. Conta uma história diferente de cada vez, até
ser impossível saber o que é verdade e o que não passa de uma
loucura.

20 de Setembro
Nunca mais beberei o vinho doce dessa mulher.

28 de Setembro
A falta de vinho pôs-me terrivelmente doente. Fiquei uma semana
inteira de cama, estrebuchando e vomitando, assistida pela minha
querida Emily, a criada que nos resta. Confessou-me estar tão
assustada como eu. Parece que se atreveu a entrar num quarto
fechado, que por acaso não o estava e quase caiu por um alçapão e
uma conduta que, segundo calcula, só podem ir ter à cave.

3 de Outubro
Esta noite fui acordada por gritos, mas não sei dizer onde acabaram
os sonhos e começou a vigília.

8 de Outubro
Ab Emily desapareceu há três dias.

10 de Outubro
Levantei-me da cama com algum esforço e desci as escadas. As
portadas estavam seladas e a casa parecia uma catacumba. «Onde
está Emily?», perguntei ao Sr. Hobbes, com um ar muito calmo,
embora por baixo do roupão sentisse os joelhos a tremer. «Teve de
partir com toda a urgência porque a irmã entrou em trabalho de
parto», respondeu a besta. «É estranho que nada me tenha dito, nem
tenha vindo receber o salário», disse eu. «Não quis incomodá-la com
coisas de tão pouca monta», respondeu. «Então porque se foi embora
sem a bolsa?» perguntei, pois já tinha ido ao quarto dela e
encontrara-a aí, intacta. Foi então que a Sr.ª White se materializou
ao lado dele, sem dúvida atraída pelo meu tom de voz. «Vamos
certificar-nos de que lhe é devolvida, coitada. Estava tão preocupada
com a irmã.»
Que mulher deixa a bolsa para trás?

13 de Outubro
Fui de novo impedida de entrar na cave pelo Sr. Hobbes. «Não é
seguro», declarou, e houve qualquer coisa no seu tom de voz, no azul
frio do seu olhar que fez com que eu regressasse imediatamente ao
quarto.

15 de Outubro
Oiço murmúrios em todas as paredes. Oh, aproxima-se sem dúvida
uma terrível calamidade!

17 de Outubro
A Sr.ª White foi ao campo prestar os seus serviços de médium. Que
charlatã! Estou aqui em casa sozinha com ele.

19 de Outubro
Hoje, quando vi a carruagem do Sr. Hobbes sair da garagem para a
rua, apressei-me a descer e, meti um gancho na fechadura do
armário de portas de vidro até que este cedeu. Depois li o seu
horrível livro. Profano! Obsceno! Cheio de degradação e imundície!
Foi difícil não o ter queimado. Oh, estou em perigo! Escrevi ao meu
querido primo e contei-lhe tudo. Porque terei consentido em vender a
casa a esta horrível mulher? Imposturas e enganos! Mentiras e mais
mentiras. Vou reavê-la. Sou Ida Knowles, esta é a minha casa,
construída pelo meu pai. Mas primeiro tenho de descobrir o que se
passa na cave. Tenho de ver com os meus próprios olhos.

– Que se passaria na cave? – perguntou Evie a si própria.


A cabeça de Jericho apareceu à porta da biblioteca; ele estava ofegante.
– Evie, podes dar aqui uma ajuda? Estamos cheios de gente.
– Já vou – disse, pondo de lado o diário.
19 Mal em inglês. (N. da T.)

20 Os irmãos Gershwin compuseram a famosa «Rhapsody in Blue», combinando elementos de jazz


e música clássica. (N. da T.)
PRELÚDIO

Memphis saiu para a rua numa manhã que parecia ter acordado de mau
humor, cinzenta, fria e chuvosa. A chuva da noite lançara no passeio um
aguaceiro de folhas outonais que mais pareciam um tapete manchado de
ouro. Octavia pedira a Memphis que as varresse antes de saírem para a
igreja e foi o que ele fez, apanhando-as com uma pá e metendo-as no
caixote do lixo. Um carro da polícia subia a Broadway seguido por um
segundo e por um terceiro. Memphis inclinou-se sobre o portão, tentando
ver o que se passava. Perguntou a um vizinho que por ali circulava.
– Que aconteceu?
– Ouvi dizer que encontraram um cadáver no Trinity Cemetery – disse o
homem.
– Há montes de cadáveres no Trinity Cemetery. É por isso que se chama
cemitério – disse Memphis secamente.
– Pensam que tenha sido o Assassino do Pentagrama – disse o homem e
apressou-se a descer a rua para se juntar aos outros. Memphis largou a
vassoura e seguiu-o.
Juntara-se uma multidão perto dos portões de ferro do Trinity Cemetery,
pessoas ainda de roupão, chinelos e lenços. As mães enxotavam os filhos
para os passeios com ordens para não saírem de lá a menos que quisessem
umas boas palmadas no rabo. A polícia percorria as suaves colinas do velho
cemitério que fora o local de uma grande batalha durante a Guerra da
Revolução e ainda tinha um marco a comemorar o acontecimento. Memphis
recuou e subiu a um candeeiro para tentar ver melhor.
Ouviu-se um grito na rua, seguido de exclamações abafadas e mais gritos
à medida que a notícia passava de boca em boca, invadindo as pessoas
como uma onda enorme. Memphis espreitou o barbeiro Floyd, desceu e foi
ter com ele.
– Floyd, que se passa? O que aconteceu?
Floyd olhou para ele com olhos doridos e abanou a cabeça.
– Nada de bom, Memphis.
Memphis sentiu-se como se tivesse engolido um bocado de gelo que se
fosse derretendo lentamente através de si.
– Quem é? – perguntou, mas já sentia o sangue a latejar-lhe nos ouvidos
como um prelúdio.
– É o Gabriel Johnson. Dizem que o assassino lhe tirou a boca e o
pendurou como um anjo crucificado.
A MORTE
JÁ NÃO TEM AUTORIDADE

Memphis estava sentado num banco muito cheio da Igreja Sionista da Mãe
AME entre Octavia e Isaiah. Lá à frente o caixão de Gabe cintilava sob um
manto de lírios doados pela própria Mamie Smith. Todos os lugares se
encontravam ocupados e vários homens estavam encostados à parede do
fundo. A sala estava abafada e as mulheres refrescavam-se abanando-se
com leques de madeira fornecidos pela funerária.
O pastor Brown subiu ao púlpito e baixou a cabeça, desgostoso.
– Um jovem, ceifado na primavera da vida por uma indescritível
violência. É quase impossível suportar...
As pessoas choravam e fungavam enquanto o pastor Brown falava do
amigo morto de Memphis, da sua vida prometedora que tão cedo terminara.
Memphis engoliu em seco pensando em como haviam discutido na noite em
que ele fora morto. Desejava poder voltar atrás para conversarem. Desejava
ter impedido Gabe de sair sozinho da festa. Se tivessem saído juntos, ainda
estaria vivo? Retirou do bolso a pata de coelho da sorte que pertencera a
Gabe. Dera-lha a Sr.ª Johnson, dizendo: «Ele havia de gostar que ficasses
com isto. Eras como um irmão para ele.» Memphis apertou-a com força na
mão.
– A morte já não tem autoridade sobre o irmão Johnson – vociferou o
pastor Brown.
– Ámen – exclamou uma mulher.
– Porque diz a Bíblia, «assim como Cristo ressuscitou dos mortos pela
glória do Pai, devemos caminhar na nossa nova vida. Pois se fomos criados
à semelhança da sua morte, certamente o seremos à semelhança da sua
ressurreição», assim disse o Senhor.
– Aleluia! – exclamaram várias pessoas. E a seguir. – Palavra do Senhor.
– Oremos agora pelo nosso irmão, Gabriel Rolly Johnson, para que possa
ser recebido no seio de Jesus Cristo e encontre a paz eterna. Ámen.
– Ámen – responderam os membros da congregação.
O coro começou a cantar. «Atravessai as águas, atravessai as águas,
atravessai as águas, o Senhor agitará as águas...»
As notas tristes do conhecido espiritual invadiram Memphis e arrastaram-
no para as terríveis profundezas, como se tivesse pedras nos bolsos. A tia
Octavia chorava para dentro do lenço, rezando em voz baixa, por entre
lágrimas «Senhor, Senhor». De vez em quando estendia a mão enluvada e
apertava a de Memphis para o consolar, mas Memphis mantinha-se de olhos
secos e sem ação. Olhava para Isaiah, que ainda não deixara de fitar os
sapatos. Pensava no que Isaiah dissera a Gabe no drugstore do Sr. Reggie:
«Vais morrer.» Isaiah teria visto que alguma coisa aconteceria a Gabe? E se
alguém os tivesse ouvido? E se alguém dissesse alguma coisa à polícia?
Tinha de proteger Isaiah a todo o custo.
Depois do serviço religioso, o cortejo fúnebre fez a sua passagem lenta e
funesta pela Broadway. O Elks Club pagara o funeral e insistira numa
despedida adequada. Caminhavam na frente, com as suas faixas, o Papa
Charles abria o cortejo com o chapéu encostado ao peito. Atrás dele, vários
músicos do Harlem tocavam um hino fúnebre nos seus instrumentos de
sopro e cantava um coro de mulheres de luto. O caixão de Gabe foi
transportado por uma carreta pelas ruas até ao local do seu repouso
provisório na Funerária Merrick. Mais tarde seria sepultado pela família. Os
repórteres enchiam os passeios, tomando notas e tirando fotografias,
erguendo os chapéus no momento em que o caixão passava. Memphis
caminhava atrás do caixão com passos lentos e obedientes, acompanhando-
o até à funerária. Não entrara aí desde a morte da mãe, e não suportava ter
de o fazer agora.
– Vou apanhar ar – explicou à tia Octavia, que lhe deu uma palmadinha
no rosto, disse que ele era uma pobre criança e acenou para que fosse.
Memphis esgueirou-se discretamente por entre a multidão que tentava
conseguir um vislumbre da última vítima do Assassino do Pentagrama.
Alguns eram apenas mirones curiosos. Outros mostravam-se zangados e
gritavam aos polícias exigindo respostas. Não tinham apanhado o
assassino? Não estava na cadeia? E então? Que faziam para proteger os
cidadãos de Nova Iorque? Quando se sentiriam de novo em segurança? Os
polícias mantinham-se em silêncio.
Numa esquina, Memphis espiava a rapariga do museu. Não deveriam
ajudar a apanhar o assassino? Porque não o tinham ainda apanhado?
Memphis, louco de raiva, dirigiu-se a Evie O’Neill e bateu-lhe no ombro.
Ela levou um segundo a reconhecê-lo.
– É você, o senhor Campbell.
– Já sabe quem é o assassino?
– Ainda não.
Memphis acenou, com o queixo apertado.
– Conhecia… conhecia o falecido? – perguntou Evie.
– Era o meu melhor amigo.
– Lamento muito – disse ela. E Memphis pensou que ela de facto
lamentava. Não era como os repórteres que diziam «lamento a sua perda» e
logo a seguir perguntavam-lhe se o seu melhor amigo era viciado em drogas
ou se pensava que a culpa era do jazz.
– Memphis!
Ao ouvirem a voz de Theta, Evie e Memphis voltaram-se. Ela corria pela
rua fora, ainda com a maquilhagem do teatro e um casaco por cima do traje
que usava. Evie via as lantejoulas. Theta deu a Evie um rápido abraço e
voltou-se para Memphis.
– Vim assim que soube.
– Vocês... vocês conhecem-se? – perguntou Evie.
– Ele morreu – disse Memphis, a voz trémula ao pronunciar a última
palavra. – O Gabe morreu.
Theta falou em voz baixa, para consolar Memphis e Evie sentiu-se
estranha por estar ali sem dizer nada.
– Lamento muito pelo seu amigo – disse, embora as palavras lhe
parecessem vazias.
Memphis voltou-se para ela com uma expressão dura.
– Quero ajudar a descobrir o assassino de Gabe.
– Há uma coisa que pode fazer – disse Evie ainda hesitante. – Ajudava a
nossa investigação se pudéssemos ter qualquer coisa do falecido... hum... do
Gabriel. De preferência algo que tivesse consigo na noite da sua morte.
– Como pode isso ajudar? – perguntou Memphis.
– Por favor – implorou Evie. – Por favor, confie em mim. Queremos
apanhá-lo tanto como o senhor.
Memphis meteu a mão no bolso e retirou de lá a pata de coelho.
– Era o seu amuleto. Nunca andava sem ele.
– Obrigada. Prometo tomar bem conta dele – disse Evie, mas Memphis
não a ouvia. Theta dera-lhe a mão e apenas olhavam um para o outro. Evie
afastou-se, deixando-os nessa conversa privada e silenciosa.
A imprensa empurrava as barricadas, pedindo comentários, tentando
ouvir opiniões, mas os polícias continuavam firmes, de boca fechada. T. S.
Woodhouse mantinha-se na linha da frente. Evie tentou esgueirar-se sem
que ele a visse.
– Ora, ora, mas é a Sheba – disse, impedindo-lhe a fuga. – Não podemos
continuar a encontrarmo-nos desta maneira.
– Então porque não se vai embora?
– Não está aborrecida com aquela história, pois não?
– Como não? Pedi-lhe um favor e tratou de me roubar o que lhe disse
para publicar nos jornais.
T. S. Woodhouse abriu os braços num gesto conciliatório.
– Sou repórter, menina O’Neill. Deixe-me compensá-la. Diga-me o que
sabe disto e eu faço uma reportagem sobre a sua pessoa. Talvez lhe dê até
um espaço nas colunas para escrever o que lhe apetecer. Será a jovem mais
famosa de Manhattan.
– Lamento... já não falo com repórteres.
Afastou-se, mas Woodhouse seguiu-a apressado para lhe acompanhar o
passo.
– Vá lá, Sheba. A bófia não nos diz nada, só a conversa do costume.
Sabemos que Jacob Call não pode ser o Assassino do Pentagrama, a menos
que possa limpar o sebo a alguém mesmo estando atrás das grades ou tenha
um cúmplice. Um cúmplice. É isso.
– Adeus, senhor Woodhouse.
T. S. Woodhouse agarrou o braço de Evie e ela olhou-o de tal forma que
ele retirou a mão. Ele apontou com a cabeça os outros repórteres.
– Estes fulanos passam-me à frente. Não tenho história para hoje. Tenho
andado a fazer elogios ao museu do seu tio. Também quero ser conhecido,
compreende?
Evie compreendia. Também compreendia que T. S. Woodhouse tudo
faria, tudo diria, todos pisaria para conseguir aquela história. Fora um erro
envolver-se com ele. E era tempo de ele ter o que merecia.
– Muito bem, senhor Woodhouse – disse Evie. – Julgamos que o
assassino trabalhe segundo um antigo texto místico, o Ars Mysterium.
– Ah, sim? – Woodhouse salivava praticamente ao ouvir aquela
informação. – Ótimo.
– Agora, nem uma palavra disto a ninguém, nem sequer ao seu editor. –
Evie mordeu o lábio e tratou de esticar o pescoço fingindo querer assegurar-
se de que ninguém os ouvia. – Pensamos que o próximo assassinato terá
lugar esta noite na ponte de Hell Gate. Vai querer levar um fotógrafo.
– Não está a brincar?
– E eu mentiria a um tão importante membro da imprensa?
T. S. Woodhouse pesava de um lado a sua ambição contra a história dela.
Evie percebia-o ao vê-lo torcer a boca.
– Obrigado, Sheba – disse, por fim.
– Não tem de quê... estou a falar a sério, senhor Woodhouse.
Fora um dia simplesmente horrendo, mas quando se afastou de T. S.
Woodhouse, Evie não pôde deixar de sentir uma pontada de satisfação ao
imaginá-lo mais tarde, ao vento gelado da ponte de Hell Gate, à espera de
uma história que nunca aconteceria, enquanto todos os repórteres lhe
passavam à frente.
A MESMA CANÇÃO

– Que raio! – Will apagou com força o cigarro no cinzeiro. Os quatro, Evie,
Jericho, Sam e Will, estavam sentados a uma das compridas mesas da
biblioteca. Will fechara o museu mais tarde, apesar das multidões que
pediam visitas ao sobrenatural conduzidas pelo maior especialista em
ocultismo de Manhattan.
– Ele vai continuar a matar e estaremos sempre um passo atrás dele.
– Não temos de estar – disse Evie, olhando fixamente para o tio. – Posso
descobrir o que precisamos de saber.
– Como será isso possível? – perguntou Jericho.
– Com isto. – Evie colocou a pata de coelho de Gabe sobre a mesa.
As sobrancelhas de Sam dispararam.
– Queres apanhar um assassino com um bocado de pelo de um animal
morto?
– Pertencia ao Gabriel Johnson. Tinha-o consigo na noite em que morreu.
– Evie olhou para Will. – Tito, posso lê-la, sei que sim. Dê-me uma
oportunidade.
– Ler o quê? – perguntou Jericho.
Will admirou-se.
– Onde arranjaste isso?
– Deu-ma um amigo dele.
Will abanou a cabeça.
– É muito perigoso, Evangeline.
Evie saltou da cadeira e bateu com o punho na mesa. Estava farta da
relutância do tio. Tinham tentado à maneira dele e apenas haviam
conseguido outro cadáver.
– O que é muito perigoso é pelo menos não tentar.
Jericho olhou para Sam, que encolheu os ombros.
– Não olhem para mim. Não sei de nada – disse.
– Anda um assassino à solta e temos de o impedir de qualquer maneira –
implorou Evie. – Por favor.
– É uma loucura – murmurou Will. Passou os dedos pelo cabelo.
– Alguém me quer contar o que se passa? – pediu Jericho.
– Sou Adivinha – disse Evie.
– Evangeline!
– Eles podem saber, Tito! Estou cansada de guardar segredo. – Voltou-se
para Jericho e para Sam. – Consigo ler objetos. Um anel, uma faca de papel,
uma luva, são mais do que meras coisas para mim. Dá-me o teu relógio e
consigo dizer-te o que jantaste ontem à noite... ou os teus mais profundos
segredos. Depende. – Olhou de novo para Will. – O que diz, Tito?
Com as mãos atrás das costas, Will deu uma volta completa à biblioteca.
Parou junto de Evie, olhando-a durante muito tempo, o que a fez sentir
pouco à vontade.
– Vamos fazê-lo de um modo controlado, compreendes?
– Como queira, Tito.
– Eu guio-te. Não te envolvas muito, Evangeline. Deves manter-te
afastada, uma mera espetadora.
– Vejo o que consigo fazer e depois afasto-me.
– Se sentires a mínima ameaça, deves deixá-lo mediatamente.
– Tenho tudo controlado, Tito.
– Ainda bem que alguém tem – disse Sam, sacudindo a cabeça.
– Dentro de momentos já veremos – anunciou Will. – Evie, vem sentar-te.
Evie instalou-se num cadeirão de couro.
– Estás confortável? – perguntou Will.
– Sim. – Sentia o coração acelerado e a boca seca. Desejava sentir-se
pronta para aquilo.
– Lembra-te de que se te sentires assustada…
– Eu compreendi, Will – garantiu Evie.
– Will, isto é seguro? – perguntou Jericho.
– Eu garanto a segurança dela – declarou Will. – Podes começar quando
te sentires preparada, Evie.
Will colocou-lhe a pata de coelho nas mãos. Evie fechou os olhos e tocou
nas rugas. Vá lá, pensou. Por favor... levou alguns segundos, mas assim que
conseguiu, imagens do dia de Gabe surgiram em enorme confusão. Era
como se Evie tivesse mergulhado num lago frio e tentasse regressar à
superfície.
– Não consigo... não consigo perceber...
– Calma. Devagar. Respira e concentra-te – comandou Will.
A respiração de Evie acalmou. Conseguia ouvi-la bem como o suave
correr do seu sangue.
As anteriores cenas inconsequentes do dia de Gabriel desapareceram.
Estava com ele nas ruas escuras do Harlem. A cena parecia enevoada, como
uma fotografia mal revelada, mas conseguia distinguir Gabriel a caminhar
debaixo dos carris do El e sentir o que ele sentia.
– Está zangado por qualquer coisa... – disse Evie, hesitante.
– Não te aproximes tanto – avisou Will.
Evie respirou fundo mais uma vez. A rua ficou um pouco menos
enevoada quando se concentrou. O piscar de um reclame de néon ao longe e
o cheiro a fumo e a lixo tomaram vida no seu espírito. Ouviu passos e um
estranho som metálico.
– Alguém o segue.
– Cuidado, Evie.
– De repente, ficou tudo muito enevoado, mas está lá alguém. – Viu
primeiro uma bengala, uma coisa de prata com a cabeça de um lobo. O
homem que a tinha ocultava-se na sombra e na bruma. Gabe chamou e,
como nada ouviu, continuou a andar sob a enorme sombra dos carris aéreos.
Evie apenas conseguia ver o que ele via. Mas ouvia os passos lentos e
deliberados na rua. Sentiu o primeiro golpe de apreensão de Gabe. E depois
ouviu o assobio.
Evie soltou uma exclamação sufocada.
– É a mesma canção.
– Evie, é altura de parares – declarou Will, mas Evie não estava disposta a
parar. Estava quase. Mesmo quase.
Passos que se aproximavam. Um, dois, clic. Um, dois, clic. A bengala
cintilava na bruma.
– É ele. Está a chegar...
– Evie, para – ordenou Will.
Evie agarrou com força a pata de coelho. O homem saiu da sombra e o
pulso de Evie bateu acelerado.
– Estou a vê-lo.
– Evie, para! – vociferou Will. Bateu as palmas várias vezes para quebrar
o transe. Evie deixou cair o amuleto e pestanejou com os olhos
lacrimejantes.
– Conheço-o! Já o vi antes! – disse.
Correu para a vasta coleção de apontamentos, empurrando papéis, até
encontrar o que procurava. Sentia o estômago trémulo de emoção e
incompreensão.
– É ele – disse, batendo na fotografia de John Hobbes num recorte de
jornal que estava sobre a mesa. – O homem debaixo da ponte era John
Hobbes. O Gabriel Johnson foi assassinado por um morto.
APENAS HISTÓRIAS

Will olhava para o fogo com o queixo apertado.


– Como será possível, tio Will? Como será possível que um homem
morto há cinquenta anos tenha assassinado estas pessoas?
– Viste alguém parecido com ele, boneca. Mais nada – disse Sam.
– Sei muito bem aquilo que vi!
– Estou a dizer-te... é o poder da sugestão. Examinámos a lenda do John
Hobbes. Viste as fuças dele no jornal, de modo que já estava no teu espírito
quando entraste em transe. Forneceste ao assassino o primeiro rosto de que
te lembraste.
– Queres deixar de olhar para mim, por favor! – disse Evie a Jericho, que
rapidamente desviou o olhar, afogueado. As pequenas garras de uma dor de
cabeça apertavam o crânio de Evie.
– Tito, não respondeu à minha pergunta. Como pode o John Hobbes ter
assassinado o Gabriel Johnson e, possivelmente, todos os outros?
Sam passou o braço pelos ombros de Evie.
– Estou a dizer-te, beldade. Não foi ele.
– É ele – disse Will, quebrando por fim o seu mutismo.
A sala ficou em silêncio. Só se ouviam os estalos da madeira consumida
pelo fogo.
– Will – disse Jericho momentos depois. – Não está a dizer que acredita
sinceramente que um fantasma tenha assassinado essas pessoas, pois não?
– Sim – disse Will em voz rouca.
– Não quero ofendê-lo, professor, o senhor tem aqui um museu
estupendo... mas os fantasmas não existem – disse Sam.
– Têm a certeza disso, não têm? – Will voltou-se para eles. A luz da
lareira cobria-lhe o rosto de sombras. – Há portas entre este mundo e o
mundo do sobrenatural. Fantasmas. Entidades demoníacas. O inexplicável e
o indefinido. O misterioso. Tenho muitos livros e arquivos completos a esse
respeito.
– Mas são apenas histórias que as pessoas contam – disse Evie. A dor de
cabeça espalhava-se-lhe por trás dos olhos.
– Não há maior poder neste mundo que o de uma história. – Will andava
na sala de um lado para outro. – As pessoas pensam que são os limites e as
fronteiras que formam as nações. Disparate... são as palavras. As crenças, as
declarações, as constituições... palavras. Histórias. Mitos. Mentiras.
Promessas. História. – Will agarrou numa pilha de recortes de jornais que
tinha sobre a secretária. – Estes e estes – apontou para as prateleiras cheias
da biblioteca. – São um testamento da rica história do sobrenatural deste
país.
– Mas Will, não está apenas a dizer que existem fantasmas; está a dizer
que eles podem voltar dos mortos e matar – disse Jericho.
Will afundou-se na cadeira, porém, batia insistentemente com o pé no
chão.
– Bem sei. É impossível. Não seriam capazes… – disse falando mais para
consigo do que para os outros. – Tenho estado de vigia.
– De vigia a quê? – perguntou Jericho.
A cadeira não era suficiente para ele, e Will levantou-se e retomou o
passeio pela sala. Pelo caminho, pegou noutra mão-cheia de recortes de
jornal.
– Estes. Avistamentos de fantasmas. Atividade sobrenatural. No ano
passado subiu imenso. Em vez de um ou dois relatos aqui e ali, houve
centenas, alguns relatos diários.
– E pensa que têm relação com o nosso caso, que o John Perverso voltou
dos mortos? – Evie estendeu a mão para esfregar a testa.
– Tenho a certeza – disse Will. – A questão não é se o John Hobbes
voltou dos mortos, mas como e porquê.
– Os fantasmas existem. Os fantasmas são reais – murmurou Evie como
um mantra. Ergueu os olhos e viu que Jericho a fitava. – Que se passa?
– Nada – disse Jericho, desviando novamente os olhos a toda a pressa.
Will cedeu e pegou num cigarro. Puxou várias baforadas antes de falar de
novo.
– As partes do corpo – disse, soprando uma espiral de fumo. – Penso que
ele tem de as ingerir para se fortalecer. Para se tornar mais corpóreo. Para
que o espírito se torne carne. Uma perversão da transubstanciação. Torna-se
mais forte com cada morte. Agora está muito forte e em breve será
imparável.
Evie estremeceu só de pensar.
– E depois?
– Armagedão. Um pequeno inferno na terra.
– Mas ele não pode transformar-se verdadeiramente num Anticristo, ou
pode? – perguntou Jericho.
– Acredita que se pode transformar na Besta através deste ritual. E a
convicção é tudo. Além do mais, nós não compreendemos tudo o que pode
fazer. Não estamos a jogar aqui segundo as regras do nosso mundo. São as
regras dele… as regras do mundo sobrenatural.
– Então, como o detemos? – perguntou Evie. – Como se detém um
fantasma?
– Temos de nos encontrar com ele onde ele está. Temos de o expulsar por
via das suas próprias crenças. Se a última página do Livro dos Irmãos
contiver alguma espécie de feitiço ou encantamento para nos vermos livres
do John Hobbes, precisamos de saber o que está nessa página. E temos de
resolver o mistério da sua ligação com esse livro. Porque será tão
importante para ele?
Evie abriu o Livro dos Irmãos e passou a mão pela saliência que ficara no
lugar da última página arrancada. Restavam três oferendas: a Destruição do
Ídolo de Ouro, o Lamento da Viúva e o Casamento da Besta e da Mulher
Vestida de Sol. Folheou as páginas referentes às outras oferendas.
– O cadáver encontrado em Belmont em mil oitocentos e setenta e cinco...
deve ter sido a terceira oferenda, o Cavaleiro Pálido Cavalgando a Morte
Diante das Estrelas – disse Evie.
– E para além da Ida Knowles, encontraram exatamente dez corpos na
cave de Knowles’ End – afirmou Jericho.
– Os dez criados e o patrão – disse Evie, entusiasmada. – Uma lavadeira e
uma criada de quarto desapareceram, tal como pessoas lá hospedadas.
Podiam ser todos considerados criados. A segunda oferenda. Oh, Tito,
encaixa!
– Então, quem foi a primeira oferenda? – perguntou Sam. Ergueu as
mãos. – Estou só a acompanhar-vos. Não acredito em fantasmas.
Evie olhou para a fotografia daquilo que parecia ser uma casa ou um
celeiro.
– A primeira oferenda: o Sacrifício dos Fiéis. Ida Knowles foi fiel. Pelo
menos durante algum tempo.
– Mas não foi a primeira – disse Jericho.
– É verdade – concordou Evie com um suspiro.
O tio Will pegou noutro cigarro.
– Não gostei que tivesses ido a Knowles’ End, Evie. Principalmente com
o que sabemos agora.
– Mas é apenas uma casa, Tito.
– Uma casa horrenda, que esteve cheia de cadáveres – disse Sam
alegremente. – Tenho a certeza de que é estupenda no Natal.
– É a casa dele – disse Will. – A sua toca e imagino que não teria tratado
muito bem os invasores de propriedade. Evie, tu e a Mabel não deixaram
nada para trás, espero.
Evie pensou no bocadinho de tecido que ficara preso na conduta da roupa
suja. Era demasiado pequeno – demasiado pequeno para ter importância.
Ou não?
– Não, Tito.
– Porque não ir lá e incendiá-la? – perguntou Sam.
– Porque não sabemos bem com que espécie de entidade estamos a lidar –
explicou Will. – E se apenas o tornasse mais forte? Não. Até termos
descoberto a razão pela qual o John Perverso está a levar a cabo este ritual,
porque é tão importante para ele e soubermos o que estava na página que
falta, a nossa única esperança é impedir que mate de novo. Sabemos que
tem de completar os assassínios até ao dia do Cometa de Salomão...
– Que é dentro de quatro dias – recordou Jericho.
– Se o impedirmos de terminar o seu trabalho a tempo já não conseguirá.
A chave está no tempo.
Sam brincava com uma moeda sobre os nós dos dedos da mão direita,
deitou-a ao ar e apanhou-a com toda a destreza com a esquerda.
– Pensa contar ao detetive Malloy que anda à caça do fantasma de um
assassino enforcado há cinquenta anos? Não importa que ele seja muito seu
amigo, professor, vai meter-nos a todos no manicómio.
– O Sam tem razão – declarou Jericho.
Will acenou afirmativamente.
– Concordo. Não podemos deixar que o Terrence saiba. Estamos
sozinhos. Evie, qual é a próxima oferenda?
Evie passou à página correta.
– A Destruição do Ídolo de Ouro. «E ai, não acreditavam, mas foram
seduzidos pelo bezerro de ouro. Pagaram tributo a falsos ídolos e foram
amaldiçoados por isso. E a nona oferenda vem da luxúria e do pecado. O
bezerro de ouro foi destruído, despido da sua pele vergonhosa e colocado
no altar do Senhor. E a Besta foi saciada.» – Evie ergueu os olhos para ver
que Jericho continuava a fitá-la daquela maneira estranha. – Francamente,
Jericho, que se passa? Nasceu-me uma segunda cabeça?
– Desculpa. É que... não és aquilo que eu pensava. – Não era assim que se
quisera explicar.
Evie estava cansada e assustada e a dor de cabeça incomodava-a muito.
Agora Jericho pensava que ela era um fenómeno. Estava com medo dela.
Pensara que com ele seria diferente. Era um pensador profundo, um
filósofo, mas afinal não era diferente dos espíritos tacanhos da sua pequena
cidade. Zangada agarrou-lhe na mão, que estava fria e pôs a sua sobre o
relógio dele.
– É verdade. Sou boa para ir para o circo. – Ele tentou escapar, mas ela
meteu os dedos debaixo do relógio. – Que tal, Jericho? Gostavas que eu
contasse os teus segredos? Todas as pequenas mentiras que escondes do
mundo?
– Não! – Jericho afastou a mão tão depressa que quase se desequilibrou.
Evie sentiu as lágrimas nos cantos dos olhos e um nó na garganta. Não
iria chorar ali, por isso saiu a correr da biblioteca e fechou-se na casa de
banho.
– Belo trabalho, Frederick – resmungou Sam e foi atrás dela.
Sam sentou-se no chão do outro lado da porta da casa de banho,
esperando que Evie pudesse ouvi-lo.
– Boneca, não me importo que leias todos os meus segredos. Nem sequer
me importo que me deixes ficar aqui à porta da retrete a noite inteira. Bem,
as minhas pernas importam-se, mas não lhes ligues... gostam de se queixar.
Evie não respondeu e Sam soltou a respiração contida. Nunca conhecera
uma pessoa com um dom tão estranho. Nunca. Agora eram dois. Um par.
Um par, que bom.
– Não há nada de mal contigo. Só quero que saibas isso.
Silêncio.
– Leva o tempo que quiseres, boneca. Sabes onde me encontrar. Eu
guardo-te o lugar.
Na casa de banho, Evie encostou a cabeça à porta.
– Obrigada – murmurou, embora Sam já lá não estivesse para a ouvir.

O estranho estava no escuro da cave, à escuta enquanto a casa murmurava


para ele ouvir. Sabia que qualquer coisa não estava bem. A casa parecia
violada. Suja. Teria de pintar de novo os símbolos para lhes restaurar a
pureza. Ungi a vossa carne e preparai as paredes de vossas casas.
Mantinha-se o contrato sagrado.
John Perverso apanhou o bocado de tecido do casaco de Evie da conduta
da roupa suja. Mais uma vez a casa murmurou. Uma rapariga. Uma rapariga
cometera aquela violação. Teria de pagar pela sua transgressão. Mas,
primeiro, a casa teria de ser preparada a tempo para a oferenda do dia
seguinte.
Assobiando a antiga melodia, procurou a porta secreta que se abriu para
ele e o recebeu dentro de si com suspiros e murmúrios.
A NONA OFERENDA

O detetive Malloy não tinha um ar muito satisfeito quando os foi procurar


no dia seguinte. Apontou para a multidão de visitantes.
– Vejo que o negócio corre bem.
– Passámos de esquecidos a obrigatórios em poucas semanas – disse Will.
Duas universitárias pediram o autógrafo a Will entre gargalhadinhas, mas
este declinou educadamente, deixando-as desapontadas.
O detetive Malloy observou a mudança.
– É esse o problema.
– Que quer dizer com isso? – perguntou Evie. Nunca vira o detetive com
um ar tão profissional. Estava pouco à vontade, era evidente. Mas ela não
fazia a mínima ideia porquê. Afinal, não deveria estar satisfeito por o
museu do seu velho amigo ter finalmente clientela?
O detetive baixou a voz.
– Will, dizem para aí que podes estar envolvido nas mortes.
Will abriu muito os olhos.
– Como?
– Que treta! – protestou Evie.
– Bem sei. Mas as coisas não estão com bom aspeto... o fulano que tudo
sabe acerca do ocultismo, que nos deu a pista de Jacob Call, cujo museu é
agora a coisa mais na berra nesta cidade, aparece em todos os jornais.
– Nada tive a ver com esses artigos de jornal, posso garantir – disse Will
bruscamente e Evie esperou que ninguém a visse corar.
– Estou só a dizer que podes querer manter-te fora disto. Deixar o caso
para a polícia.
– Mas estamos tão próximo – disse Evie. – Vamos descobri-lo. – Gostaria
de poder dizer ao detetive Malloy aquilo que teriam de combater, mas claro
que seria impossível. Como poderiam confessar que procuravam um
fantasma? Metê-los-ia no manicómio para sempre.
– Will, digo-te como amigo para te afastares do caso. Volta para o ensino.
Eu tomo conta das coisas a partir daqui.
O tio Will endireitou os ombros.
– E se eu recusar?
– Então ficas por tua conta e risco. Não posso proteger-te. – O detetive
pôs o chapéu na cabeça. – Fitz, não faças nada estúpido. Aprende a desistir.
– Vai desistir? – perguntou Evie depois de o detetive ter partido.
– Nunca na vida.
Nessa noite, Evie, Jericho, Sam e Will estavam de novo reunidos em
volta da mesa da biblioteca.
– A nona oferenda, a Destruição do Ídolo de Ouro – disse Evie e
praguejou em surdina. – Ele anda por aí, pronto para matar de novo e não
fazemos ideia de onde vai.
Enterrou a cabeça nas mãos.
– Não te deixes vencer pela frustração, Evangeline. Pensa. Ídolos de
ouro... – Will girou a roda do seu isqueiro de prata, criando faíscas e
apagando-as com o polegar.
– Ouro. Dinheiro, ganância… Wall Street, um banqueiro ou um corretor?
– disse Jericho.
– O Palácio Dourado em Chinatown? – sugeriu Sam. Pela voz, Evie
apercebia-se do seu cansaço.
– Na Bíblia é um bezerro de ouro. Mas não podemos ter a certeza de que
a oferenda seja mesmo uma referência bíblica. Lembrem-se de que o Livro
dos Irmãos é um decalque – afirmou Will.
– Provavelmente ficaremos aqui a noite toda – disse Evie com um
suspiro.
– Não creio que tenhamos a noite toda – disse Jericho.
– Nenhum de nós comeu – disse Will, de súbito, e Evie pensou que ele
deveria ter fome, pois de contrário, nada diria. – Vou à Charcutaria Wolf na
Broadway buscar sandes de pastrami. Continuem a trabalhar que não
demoro.
– Deixa-me ver – disse Evie quando Will saiu, tirando a Bíblia das mãos
de Jericho. Não tinham trocado mais que meia dúzia de palavras desde que
ele descobrira que ela era Adivinha e Evie ainda se sentia ofendida com o
comentário dele. Evie leu várias vezes a passagem da Bíblia em busca de
uma pista que não conseguia encontrar.
– Adorar falsos ídolos... – Algo tomava forma no seu espírito. – Como se
chama… – Interrompeu o pensamento e folheou a Bíblia. – Baal – disse de
repente. – A adoração de Baal. Oh, meu Deus...
– Que se passa, boneca?
– Já sei onde ele vai atacar – disse Evie agarrando no casaco e no chapéu.
– Para onde vamos?
– Para o Globe Theatre! – gritou Evie.
– Que se passa no Globe? – perguntou Jericho.
– A revista do Ziegfeld – disse Sam, saindo a correr atrás de Evie.
A PEQUENA BETTY SUE BOWERS

Theta estava sentada ao espelho do seu camarim retirando com creme o


resto da maquilhagem. Echarpes e boas pendiam dos espelhos. A
encarregada do guarda-roupa já arrumara os fatos que as raparigas tinham
despido rapidamente para irem ter com os namorados e admiradores. Theta
gostara sempre da sensação de um teatro vazio.
Theta tinha seis anos quando se estreara no empório musical de Peoria,
Illinois, como a pequena Betty Sue Bowers, envergando um vestidinho
vermelho, branco e azul, sapatos prateados de sapateado que cintilavam por
baixo dos projetores. Cantou e dançou God Bless America, enquanto a sua
mãe de acolhimento assistia nos bastidores cantando em surdina a letra
completa. O público ficou encantado. Chamaram-lhe a Miúda dos Caracóis
e Betty Baby Doll. Em breve fazia o Orpheum Circuit por todo o Midwest.
Theta odiava o vaudeville, odiava as horas de trabalho, os camarins cheios
de correntes de ar, os «tios» devassos que a convidavam para se sentar no
colo deles. Atravessara o país e todas as cidadezinhas com as suas
moribundas salas de espetáculo.
Todas as noites a Sr.ª Bowers lhe punha rolos no cabelo e batia-lhe no
traseiro com a escova dizendo «Não estragues tudo». Theta tinha medo de
adormecer e amassar os caracóis, o que lhe custaria uma sova muito maior
de manhã. Nunca fora à escola. Nunca tivera uma festa de anos ou uma
verdadeira amiga.
Quando Theta fez catorze anos era evidente que já não podia ser a Miúda
dos Caracóis. Tinha já corpo e rosto de mulher, com pernas longas e bem
torneadas e lábios carnudos. Tinha idade a mais para representar uma
menina adorável e era demasiado jovem para se arriscar a outros números.
Theta estava a caminho de não servir para nada.
Tinham assinado um contrato de um mês no Palace de Kansas City
quando Theta conheceu um patifório chamado Roy, com quem fugiu duas
semanas mais tarde. Acabara por ser um erro ainda maior do que ficar com
a Sr.ª Bowers. A princípio, Roy fazia com que se sentisse protegida, mas,
em breve, ficou obcecado por ela, querendo controlar o que vestia, onde ia,
com quem falava. Uma vez chegara até a fechá-la na casa de banho durante
toda a noite enquanto saía com outros rapazes. Theta abrira a fechadura e
saíra pela janela do primeiro andar. Roy não gostara. Não gostara mesmo
nada.
Na manhã seguinte, com um olho inchado e negro e o lábio cortado,
tentou voltar para casa. Ficou no alpendre da pensão com a malinha de
xadrez e as lágrimas a arderem-lhe na boca ferida.
– Por favor, mãezinha, desculpe – implorara.
– Quem boa cama faz nela se deita, Betty Sue – dissera a Sr.ª Bowers
fechando-lhe a porta na cara.
Theta tentara ser aquilo que pensava ser uma boa esposa, mas nada
parecia agradar a Roy. Tinha as meias tortas. A torrada estava demasiado
queimada. Não apanhava o cabelo espesso como as cerdas de uma vassoura,
como seria próprio de uma senhora, o que lhe dava o ar de «uma espécie de
squaw índia»! A casa não estava limpa. Se não arranjava carne boa no talho
era uma dona de casa horrorosa. Se arranjava um bife bom era porque devia
ter namorado com o homem do talho. A escova nada era comparada com a
mão de Roy. O pior eram as noites. Cerrava os dentes e olhava para o teto à
espera que tudo terminasse. Uma vez tentou fazer parte de um número no
Palace, mas Roy proibiu-a e, assim como assim, a nova moda eram os
filmes. Os teatros de vaudeville e music-hall eram reconvertidos em salas
de cinema. Os dias do vaudeville estavam a terminar. Por vezes, quando
Roy saía para trabalhar e o calor do restaurante lá de baixo penetrava o
linóleo, aquecendo o apartamento, Theta despia-se, ficava em combinação,
enrolava os tapetes e dançava ao som do rádio, imaginando que era
Josephine Baker nas Folies Bergère, em Paris. Nestas fantasias, não eram a
adulação e o amor imaginário do público que a incentivavam, mas sim uma
sensação de absoluta liberdade, de dançar porque podia, de dançar porque
gostava e não porque tinha de o fazer.
– Why you gotta be such a mean old Daddy – cantava na sua voz rouca,
com uma mão aberta sobre a curva elegante do seu ventre. Erguia a outra
cada vez mais alto como se pudesse, a qualquer momento, arrancar uma
estrela do firmamento ou abrir um buraco no céu para poder fugir. Foi
durante uma dessas tardes húmidas e sufocantes na pradaria que Theta se
perdeu numa destas suas pequenas fugas cantando ao mesmo tempo que o
rádio (Love me sweet, honey, like you ought to) tão completamente
encantada com as voltas do seu corpo – as suas pernas, as suas ancas, suas,
suas, só suas – que nem ouviu a chave de Roy na fechadura.
– Muito bem, mas que belo espetáculo – vociferou ele, obrigando-a a
voltar-se com uma exclamação sufocada, ao vê-lo ocupar toda a porta, com
o peito levemente inclinado para a frente, os músculos dos antebraços
encostados às ombreiras como uma fisga de tendões pronta a disparar. – É
assim que passas o tempo enquanto eu vou trabalhar?
Viera para casa embriagado e cruel. Theta preparou-se mentalmente, com
as pequenas lisonjas, as esperançosas ofertas de paz e as distrações para a
fúria dele, que precisava de ter sempre à mão para evitar uma sova.
– Queres que te arranje o jantar, Roy? Senta-te e descansa que vou fazer-
te uma sandes – disse, esperando que o desespero não se lhe notasse na voz.
– Uma sandes? É essa a tua ideia de uma refeição feita em casa? – gritou
Roy.
Escolhera mal. Não importava que chorasse ou gritasse. Já o fizera muitas
vezes. Ninguém lhe acudira. Corriam-se as cortinas, fechavam-se as janelas
escondendo a sua desgraça. Era assim na cidade. Aprendera a sofrer em
silêncio. Descobrira que as pancadas demoravam menos tempo. A mão dele
atravessava o ar como a de um amante, mas nada havia de amoroso no
gesto brusco que lhe fazia chegar as lágrimas aos olhos, dobrar o pescoço,
enrolar o corpo, de modo a que apenas pudesse segui-lo como um cão segue
o dono. A primeira bofetada era um aviso. A face ardia-lhe.
– Queres dançar, hã?
Bofetada.
– Gosto de dançar.
Bofetada.
– Então vamos dançar. Quero dançar com a minha miúda.
Empurrava-a para a cama, prendia-lhe os braços acima da cabeça com a
mão enorme. Ela abafava um grito quando o sentia rasgar a fraca proteção
da sua roupa interior, e, mais uma vez quando a mesma mão lançava uma
chuva de pancadas até a deixar com os lábios em sangue e os ouvidos a
zumbir. Depois as coxas dele abriam as suas com violência e ela apenas
conseguia engolir o medo com o gosto metálico do sangue.
O pânico acendeu nela uma sensação estranha, algo que não podia
controlar. Recordava-se de sentir as mãos cada vez mais quentes, o corpo
cada vez mais quente. Recordava-se da expressão do rosto de Roy: o branco
dos olhos cada vez maior, a boca aberta de surpresa, antes de um grito sair
de dentro dele.
Theta fechou os olhos com força. Depois dessa parte ficava com o
espírito em branco, como num filme a que faltasse uma bobina. Apenas se
lembrava de um comboio para outro comboio e depois de Nova Iorque,
onde chegara suja, quebrada e esfomeada e onde sobrevivera dormindo nos
bancos dos parques, refugiando-se na casa de banho das senhoras do Grand
Central Terminal e entrando à socapa nos cinemas para dormir todo o dia,
saindo apenas quando a expulsavam. Roubava as garrafas de leite que
encontrava nos degraus na noite anónima. Evitava por pouco os homens
cruéis que a espreitavam nas ruelas e de automóveis em marcha lenta.
Poderia ter continuado assim muito mais tempo se não tivesse visto Henry
sentado a uma mesa perto da montra da Horn & Hardart Automat na Sexta
Avenida, escrevinhando num papel branco, sem se interessar pela comida.
Theta estava prestes a desmaiar de fome. Aventurou-se a entrar e
aproximou-se da mesa, na esperança de roubar os restos quando, sem uma
palavra, Henry lhe estendeu a outra metade da sandes. A princípio hesitou –
Theta sabia como agir nas ruas e sabia que não se aceita nada de
desconhecidos. Mas a fome é um animal que nos pode comer interiormente.
A fome animal venceu e comeu tão depressa que quase vomitou a sandes.
Ainda em silêncio, Henry dirigiu-se às máquinas brilhantes e iluminadas,
meteu duas moedas, esperou que o tabuleiro desse a volta, abriu a pequena
porta de vidro e tirou primeiro um quadrado de arroz-doce e uma
embalagem de leite. Trouxe a comida para a mesa coberta de migalhas,
colocou-a diante de Theta e ficou a vê-la meter as colheres de arroz-doce na
boca com uma precisão mecânica, acompanhando tudo com rápidos goles
de leite, sem se importar que ele lhe escorresse pelo queixo em dois pingos
brancos. Depois, ficou sentada com os olhos vítreos, num estupor quase
drogado, sentindo-se ao mesmo tempo cheia e enjoada.
– Como está? Chamo-me Henry Bartholomew DuBois IV – dissera
Henry pronunciando lentamente as sílabas e estendendo a mão. Tinha a mão
mais comprida e elegante que Theta já vira. Tudo nele era louro. O cabelo,
espesso e comprido. As suaves sobrancelhas, a pesada franja de pestanas
pálidas e as pálpebras pesadas davam um ar permanentemente sonolento
aos seus olhos cor de avelã. Nos braços, faces e nariz havia uma leve
constelação de sardas, só visível à luz do Sol. Só a boca com um perpétuo
sorriso de desdém era de um tom mais escuro que a pele. Passaria
despercebido não fora a sua excêntrica maneira de vestir: um par de calças
de tweed seguro por suspensórios sobre uma camisa de cerimónia, vestida
por baixo de um colete aberto e, na cabeça, com uma inclinação atrevida,
um alegre chapéu de palhinha com uma fita vermelha, azul e branca,
indicando pelo menos alguma impertinência.
– Betty – conseguira dizer, apertando-lhe rapidamente os dedos.
Henry erguera o queixo e olhara-a com uma expressão apreciadora.
– Que nome tão desinteressante para uma jovem tão interessante.
Ela esforçou-se por manter os olhos abertos.
– Precisa de um lugar para ficar? – perguntou calmamente Henry.
Os olhos de Theta abriram-se de repente. Pegou na faca.
– Experimenta armares-te em engraçado, rapaz, e vais arrepender-te.
– Bem, depois de tudo, não gostaria de encontrar o meu fim na ponta de
uma faca de manteiga – disse Henry como se a estivesse a cumprimentar. –
Garanto-lhe Betty, sou um cavalheiro e um homem de palavra.
Theta estava tão cansada. Era como se a fome lhe tivesse evitado as
emoções. Agora que fora saciada, começara a chorar baixinho ali sentada.
– Muito bem, querida. Vá lá. – Mais tarde, Henry disse-lhe que nunca
vira ninguém tão belo chorar assim.
Theta seguiu Henry até casa, o seu estúdio com um telhado por onde
entrava a chuva em St. Mark’s Place e onde ele lhe ofereceu uma almofada
e um cobertor. Enquanto se enrolava neles, ainda desconfiada, Henry
arrastou uma velha cadeira de cana para um piano em mau estado junto de
uma janela de ventilação. Cantarolou baixinho e tomou notas nas mesmas
folhas de papel cheias de rabiscos e borrões de tinta.
– Podes cá ficar – disse sem erguer os olhos. – Não tenho mulher de
limpeza, os canos vazam. A casa de banho do corredor é partilhada com dez
vizinhos muito excêntricos. É frio no inverno e quente como o diabo no
verão. Resumindo, não é muito melhor que as ruas. Mas, mesmo assim, és
bem-vinda.
Theta pensou que ele quereria alguma coisa em troca, mas nunca tentara o
que quer que fosse. Theta dormiu toda a noite e o dia seguinte. Quando
acordou encontrou um donut num prato lascado e, ao lado, um malmequer
um pouco mole metido numa garrafa de leite vazia, que segurava um
recado.

Espero que tenhas dormido bem. Peço-te que não roubes nada,
porque não há nada para roubar.
Podes ficar o tempo que quiseres.
Cumprimentos,
Henry DuBois IV

Theta não tinha onde ir, por isso comeu o donut e lavou o prato. Depois
lavou os outros pratos e arrumou-os. Henry chegou a casa e viu tudo tão
limpo que saiu e voltou a entrar para ter a certeza de que não se enganara no
apartamento.
– Por acaso não te chamas Branca de Neve, pois não? – perguntou
irónico.
Dividiram uma tigela de canja de uma loja de comida e conversaram até
altas horas.
Fora Henry que a convencera a cortar o cabelo. De braço dado dirigiram-
se a um barbeiro na Rua Bleecker, Theta vestida com a roupa de Henry.
Sentou-se perfeitamente imóvel, a olhar em frente, enquanto a tesoura
cortava os seus fartos caracóis. O cabelo caía como penas em redor da
cadeira. Sentia a cabeça mais leve, como se se visse livre do peso da
recordação, dos fantasmas do passado. Quando o barbeiro fez girar a
cadeira para que se visse ao espelho, Theta abriu a boca de espanto. Tocou
suavemente na pele macia do pescoço, chocada ao sentir a nuca onde o
corte formava um V provocante. Ao espelho viu que Henry mordia o lábio.
– Para onde olhas tão espantado, Pianista? Nunca tinhas visto uma
rapariga moderna? – perguntou, piscando um olho.
– És a rapariga mais bonita da rua – disse Henry e Theta esperou que ele
a beijasse. Como ele não o fez, sentiu um estranho misto de desilusão e
alívio.
Celebraram com champanhe num clube noturno boémio em Greenwich
Village, junto à Rua MacDougal onde, longe dos olhares críticos, belos
rapazes dançavam juntos com elegância, peito com peito, agarrando-se,
trocando olhares pelas mesas decoradas com homens decorativos. Theta
ouvira falar da existência de tais lugares e sabia que havia homens que
preferiam outros homens – «mariquinhas», chamava-lhes a Sr.ª Bowers com
desprezo e Theta sentiu no coração a vergonha da palavra – mas nunca
estivera num desses clubes. Receava não ser bem recebida, mas descobriu
que era.
Na penumbra do clube, Henry recostou-se na cadeira e observou a cena,
demorando o olhar sobre um belo rapaz de cabelo escuro que também o
olhava de vez em quando. Nesse momento, Theta percebeu.
– Já vi tudo, miúdo – dissera. Depois, num gesto de artista, dirigiu-se ao
jovem de cabelo escuro, puxou da cadeira e disse: – O meu amigo Henry
vai ser o próximo George Gershwin. Devia pedir-lhe para dançar antes que
ele se torne rico e famoso.
Muito mais tarde estavam sentados, todos juntos num sofá de veludo.
Theta de um lado de Henry, do outro o rapaz bonito, mais outros dois
universitários de Nova Jérsia e um marinheiro do Kentucky, a rir e a beber,
a cantar, a puxar as gravatas uns dos outros. Tentavam arranjar um nome
novo para Theta que, segundo Henry declarou, nunca se poderia chamar
Betty. Passaram por toda a espécie de nomes desde os glamorosos – Gloria,
Hedwig, Natalia, Carlotta – aos tolos – Mah Jong, Merry Christmas, Ruby
Valentino, Mary Pickaxe.
– Talvez te devesses chamar Sigma Chi! – disse um dos universitários,
interrompendo-os a todos.
– Que horror! – declarou Henry entre gargalhadas. Tinha as faces
levemente afogueadas. Parecia um menino de coro libertino.
– Alpha Beta! Delta Upsilon! Phi Beta Kappa! Delta Theta!
– Esperem... qual foi essa última palavra? – perguntou Theta.
– Theta – disse o universitário e os companheiros repetiram-na, ruidosos,
com uma embriagada e contagiosa alegria.
– Theta – disse ela saboreando a palavra. – Pois fica Theta.
Insistiu que o apelido fosse Knight. Fazia-a sentir forte e corajosa. Um
nome de cavaleiro. Porque se defenderia na sua nova vida.
– À menina Theta Knight – brindaram os rapazes e Theta bebeu à saúde
do seu novo nome. A rir, dançaram em roda debaixo do lustre que os
banhava num luz manchada e ela desejou que a noite não terminasse.
Uma semana depois, Theta acordou Henry tão cedo que a luz do dia não
passava de um pensamento azulado que os manchava de cor. Tinha os olhos
inchados e vermelhos, as faces manchadas de lágrimas. Havia dois meses
que saíra do Kansas e que Roy a magoara pela última vez.
Henry sentou-se apoiado nos cotovelos, a voz rouca de sono.
– Que se passa, querida?
Ela contou-lhe o que se passara no Kansas, conseguindo não soluçar até
quase ao fim. Sentira-se tão leve naquelas últimas semanas, como se tivesse
sido salva de morrer afogada na corrente de um rio transbordado, aquecida
na margem, ao sol quente para agora descobrir que o rio aumentara durante
a noite, puxando-a outra vez para o fundo.
Henry escutou-a calmamente. Quando ela terminou, puxou-a para si e
estreitou-a de encontro ao peito nu e macio.
– Se quiseres, caso-me contigo – disse.
Ela beijou-lhe as palmas das mãos e levou-as ao rosto.
– Não posso ter o bebé, Hen.
Henry assentiu lentamente com a cabeça.
– Sei de alguém que pode ajudar-nos.
Dissera assim – ajudar-nos. E foi então que Theta soube que nunca se
separariam, que seriam sempre assim, duas metades do mesmo todo, os
melhores amigos.
Tinham o nome de um homem e uma morada escritos num bocado de
papel escondido na mão de Theta. Estava a chover quando percorreram uma
ruela e entraram num edifício velho, onde dois homens andavam de um
lado para o outro a fumar, com ar assustado, depois subiram cinco lanços de
uma escada em mau estado e passaram por portas fechadas atrás das quais
crianças choravam e eram mandadas calar. O odor a peixe cozinhado
pairava no corredor, dando voltas ao estômago de Theta que teve de se
conter para não vomitar. Chegaram por fim ao último andar e bateram à
porta castanha de um apartamento que cheirava fortemente a desinfetante.
Um homem muito magro de cara enrugada fê-los entrar para uma sala de
espera suja com cadeiras desirmanadas. À direita estava uma banheira
quase cheia com água ensanguentada e uma coleção de facas. Uma mulher
gemia atrás de uma cortina. Theta apertou com tanta força a mão de Henry
que pensou que lha partiria. O homem magro apontou para uma maca com
um lençol e disse-lhe que se despisse e deitasse. A mulher gritou de novo e
Theta correu escadas abaixo e saiu para a rua suja sem se importar por ficar
encharcada.
– Não faz mal – disse Henry quando a apanhou. Estava sem fôlego. –
Vamos arranjar o dinheiro.
Henry vendeu o piano e arranjaram outro médico, caro, mas limpo.
Depois de tudo tratado, Theta ficou deitada na cama de Henry, dorida e
anestesiada com éter, prometendo comprar-lhe outro piano, nem que fosse a
última coisa que faria. Henry apertou-lhe a mão e ela adormeceu. Duas
semanas depois, Theta arranjou emprego como corista nas Follies. Tivera
de mentir em relação ao nome, à sua história, à idade, mas era o que todas
faziam. Era por isso que adorava aquela cidade – uma pessoa podia ser
quem quisesse. Quando o pianista dos ensaios se despediu para ir tocar num
clube noturno da zona norte da cidade, sugeriu que contratassem Henry.
Com mais algum dinheiro conseguiram alugar um apartamento maior no
Bennington, apresentando-se como irmãos, o que era cómico, já que o seu
aspeto era tão diferente quanto as suas almas eram semelhantes. E todas as
semanas, Theta metia um dólar numa velha lata de café onde escrevera
DINHEIRO PARA O PIANO DO HENRY.
Pensara que aquilo continuaria para sempre, Theta e Henry, pertencendo
apenas a si próprios e um ao outro. Não contara com a possibilidade de
conhecer Memphis. Não era apenas o facto de terem sonhado com o mesmo
símbolo estranho, coisa que era certamente importante. Não. Era o próprio
Memphis. Era bondoso, forte e bonito. Quando estava com ele, sentia-se
cheia de leveza e esperança, embora a ideia de estarem juntos parecesse
completamente sem esperança. E se Flo descobrisse, expulsá-la-ia do seu
espetáculo.
Daisy deixara um par de brincos de rubi na mesa de maquilhagem, um
dos muitos presentes que recebera do seu corretor ou do crítico de teatro.
Theta quase pensara vendê-los e dar a massa a um orfanato, só para ensinar
aquela vaca frívola a tomar conta das suas coisas. Mas deixou-os lá e
apagou as luzes, caminhando pelo teatro apenas iluminado pelas luzes de
presença. Chegara aos bastidores quando um assobio agudo algures dentro
do teatro a imobilizou de medo.
– Wally? És tu? – gritou com o coração a bater acelerado.
O assobio calou-se. Não houve resposta.
Theta apressou os passos. Se algum engraçadinho lhe quisesse pregar
uma partida, seria capaz de lhe dar um soco nos queixos. Theta passou as
pernas por cima do palco e saltou para a primeira fila. Ouviu de novo o
assobio atrevido algures dentro do teatro. Desejou ter deixado as luzes
acesas.
– Quem está aí? – gritou. – Daisy, se és tu, juro que não vais poder dançar
durante meses porque vou partir-te as duas pernas.
Mas o assobio não parou e Theta não conseguia localizar a fonte. Parecia-
lhe vir de todos os lados ao mesmo tempo. Correu pela coxia direita, no
escuro, e bateu com uma perna contra o braço de uma cadeira. Lançou-se de
encontro às portas do teatro, mas descobriu que estavam trancadas.
De onde viria o assobio? Recuou pela coxia espreitando a plateia. De
repente acendeu-se um projetor que a cegou. Pestanejando para afastar as
manchas negras, voltou-se e correu em direção aos camarins, com a música
cava sempre a segui-la. As portas estavam abertas e Theta avançou pelo
comprido corredor mal iluminado, temendo que o autor do assobio saltasse
de trás de qualquer dessas portas. Theta estava agora verdadeiramente
assustada. Por baixo das luvas sentia a pele muito quente e a picar-lhe.
– Não – murmurou. – Não.
Uma réstia de luz brilhava no fundo do corredor, a porta do palco estava
entreaberta. Os dedos ardiam-lhe num fogo desagradável. O assobio era
agora mais alto. Parecia vir de trás dela. As luzes picavam e apagavam-se à
sua passagem. Tropeçou e magoou um joelho, o que a fez gemer de dor.
Encostou a mão à parede e sentiu a madeira a escaldar. Sufocada, Theta
correu para a porta. A porta, a porta, a porta. A saída dos artistas, o seu
meio de fuga. A saída dos artistas, cuja porta começava a fechar-se.
O QUE TRABALHA COM AS DUAS
MÃOS

Memphis acordou com a sensação de que alguma coisa não estava bem.
Quando olhou para o lado e viu que a cama de Isaiah estava vazia,
levantou-se imediatamente e percorreu o apartamento a toda a pressa com o
coração acelerado. Foi ver a cozinha e a casa de banho. Octavia ressonava
na cama e Memphis fez os possíveis por não fazer barulho e não a acordar.
Olhou pelas janelas da sala e viu o irmão, de pijama, ao frio, no jardim.
Correu para o lado dele.
– Isaiah, que estás a fazer? – Memphis abanou o rapaz. Isaiah estava
gelado.
– Estou a falar com o Gabriel. – Tinha os dentes a bater. Os olhos
estavam fixos, cegos como que em transe. – Memphis, mano – murmurou
Isaiah. – Aproxima-se a tempestade… Aproxima-se a tempestade…
– Isaiah! Isaiah! – Memphis abanou o irmão com força.
– Em nome de Deus, mas o que se passa aqui? – Octavia saíra de casa de
camisa de dormir. – Que estão a fazer aqui fora a meio da noite?
– O Isaiah está com um pesadelo. Vá lá, Homem de Gelo, acorda!
– A nona oferenda foi uma oferenda de luxúria e pecado… – disse Isaiah
revirando os olhos e torcendo a boca.
Octavia levou a mão à boca, assustada.
– Oh, meu Jesus. Memphis, ajuda-me a levá-lo para dentro.
Juntos, levaram o trémulo Isaiah e meteram-no na cama. Octavia caiu de
joelhos e pôs uma mão na testa do sobrinho e a outra no seu próprio
coração.
– Ajoelha-te, Memphis John. Reza comigo. Vamos rezar para tirar o
Diabo de dentro desta criança.
– Não há nenhum diabo dentro do Isaiah! – vociferou Memphis.
– Eles vêm, irmão... – murmurou Isaiah. Os seus tremores eram agora
mais violentos.
– Diz comigo – ordenou Octavia. – O Senhor é meu pastor, nada me há
de faltar.
Horrorizado, Memphis via aquela cena desenrolar-se no seu próprio
quarto. O seu melhor amigo morrera. O irmão estava doente e tinha visões.
A mãe morrera cedo e assombrava-lhe o sono e o pai partira e
possivelmente nunca mais voltaria. Memphis estava farto de tudo. Queria
agarrar em Theta e fugir dali.
– O Senhor faz-me deitar em verdes prados – rezava Octavia com fervor.
– Guia-me mansamente a águas tranquilas. Refrigera a minha alma…
Memphis John, onde pensas que vais?
– Para longe daqui! – gritou Memphis. Lançou um casaco por cima do
pijama, calçou os sapatos sem meias e saiu de casa furioso e sem destino. O
nevoeiro caíra, ofuscando a luz dos candeeiros e transformando o Harlem
numa cidade fantasma. Obscurecidas pela bruma, as poucas pessoas nas
ruas mais pareciam sombras que riam. Memphis afastou-se delas e dirigiu-
se para norte.
Porque estaria tudo aquilo a acontecer? E se Isaiah estivesse doente como
a mãe? Não tinham sabido que ela estava tão mal, senão quando já fora
demasiado tarde. Seria um aviso? Recordou-se do que a irmã Walker
dissera acerca de Isaiah ser como um rádio que recebia os sinais. Que sinais
receberia Isaiah e como se poria fim a tudo aquilo?
Deu por si diante do Trinity Cemetery. O portão aberto rangia ao vento.
Porque estaria aberto? Um gato preto atravessou a estrada, obrigando
Memphis a parar.
– Vá, desaparece! – sussurrou.
Memphis estremeceu arrepiado. Tinha arrefecido consideravelmente,
embora não percebesse porquê. Não havia vento, nem um ramo de árvore
balançava. As folhas não restolhavam. Memphis sentia pele de galinha nos
braços e no pescoço. De repente pensou que deveria dar meia-volta e ir para
casa, meter-se na cama e puxar os cobertores para cima da cabeça.
– Crá! – Lá em cima, nos ramos de uma árvore nua, estava um corvo a
olhar para ele.
– Deixa-me em paz! – berrou Memphis para o pássaro.
No cemitério viu a silhueta de uma figura envolta em nevoeiro. A pessoa
não se mexia. Estava apenas ali.
– Memphis…
A voz era rouca como o restolhar de folhas secas numa sarjeta. Memphis
manteve-se imóvel, exceto o tremor dos seus joelhos. A respiração saía-lhe
em Morse num código de medo. Tentou falar, mas tinha a língua seca.
– Gabe?
A figura pedia-lhe que se aproximasse.
– Mano…
Ouviu de novo o corvo. Memphis começou a rir. Estava a enlouquecer –
era isso mesmo. Estava preso numa espécie de pesadelo e não conseguia
acordar. Com uma sensação de fatalidade, seguiu a figura e internou-se no
cemitério coberto pelo nevoeiro, até chegar ao mausoléu em que o corpo de
Gabe fora depositado como um anjo caído. Agora Gabe estava ali na
bruma, com o fato do funeral. Tinha a pele esticada sobre os ossos do crânio
e cintilava em decomposição, fosforescente, um peixe de águas profundas
que nadava brevemente pelos baixios. Memphis ouvia um som, com a nota
entrecortada de trompete. Chegou aos seus ouvidos e acelerou-lhe o
coração. Os joelhos cederam e caiu no chão. Por cima dele, Gabe cintilava,
como que em sonhos, como se Memphis visse um ciclo da morte de Gabe:
o seu amigo de olhos emocionados. Um demónio a rir. Uma máscara
mortuária em decomposição, coberta de moscas, os olhos cozidos, a língua
desaparecida.
A voz de Gabe surgiu como um longo e elaborado murmúrio, como se
fossem esses os últimos sons que poderia pronunciar.
– Na encruzilhada, terás de escolher, mano. Tem cuidado com aquele que
trabalha com as duas mãos. Não deixes que os olhos te vejam...
O corpo de Memphis estremeceu. O instrumento atingiu uma nota tão alta
que quase o obrigou a gritar. O nevoeiro girava em torno de Gabriel e a
última coisa que Memphis ouviu antes de desmaiar foi o aviso.
– Aproxima-se a tempestade... Todos são precisos.
A irmã Walker estava sentada à mesa da cozinha, de roupão, com o cabelo
metido num lenço, uma chávena de café intacta à sua frente, a ouvir
Memphis falar do seu amigo morto. Manteve-se no mais perfeito silêncio
enquanto ele desfiava a sua história incrível, começando pelo transe de
Isaiah e terminando no Trinity Cemetery; nem sequer se mexeu quando
Gabe emitira o aviso – «Aproxima-se a tempestade» – antes de desaparecer
no nevoeiro. Quando Memphis terminou, ouvia-se apenas o tique-taque
regular do relógio da cozinha e a primeira luz leitosa da madrugada entrava
pela janela.
Por fim, a irmã Walker falou.
– Memphis, quero que me escutes com muita atenção. Sofreste um
choque terrível. Não sei o que aconteceu nesse cemitério, mas, por
enquanto, gostaria que esse assunto ficasse entre nós. Não digas a
ninguém... a ninguém, entendes?
Memphis sentia-se demasiado cansado para fazer outra coisa que não
acenar afirmativamente.
– Quanto ao Isaiah vou deixar de trabalhar com ele durante algum tempo,
até ele melhorar. Quando cá vier da próxima vez trabalharemos com a
aritmética e nada mais.
– O Isaiah não vai gostar – disse Memphis numa voz cava.
– Deixa que eu cuido do Isaiah. – Tossiu com força durante muito tempo,
pelo que meteu uma pastilha na boca. Depois colocou o casaco nos ombros
de Memphis como faria uma mãe e ele sentiu um grito formar-se-lhe no
fundo da garganta.
– Agora vai para casa, Memphis. Vai descansar.
A irmã Walker ficou à porta a ver Memphis dirigir-se para casa. Estava
com muita tosse... e dormia pouco. Um gole de remédio e chá quente
ajudariam por agora. Em relação ao que ouvira, não havia remédio – apenas
uma profunda sensação de medo de que um horror inominável estivesse
prestes a varrer a terra com a sua asa negra, e que todos se perdessem na sua
sombra.
FALSOS ÍDOLOS

O carro guinchou ao travar diante do Globe Theatre e Evie saltou lá de


dentro antes de o motor deixar de cuspir. Experimentou a porta da frente.
– Trancada! – gritou.
– A entrada dos artistas! – disse Jericho. Dirigiu-se para o beco com Evie
e Sam a correr atrás. A porta dos artistas estava entreaberta. A maçaneta
parcialmente derretida, a moldura da porta queimada.
Evie sentiu as pernas vacilarem enquanto percorria o corredor dos
bastidores e passava pelos camarins cujos espelhos brilhavam no escuro.
– Jericho? – murmurou aflita. – Sam?
– Estou aqui – disse Sam saltando de um camarim e fazendo-a saltar.
Havia luz no palco e quando Evie se aproximou pôde ver a cena
completa. Viu a escada iluminada do número da adoração de Baal e o seu
coração disparou.
– Theta? – chamou. Não houve resposta.
Evie caminhou pelo palco. Pôs a mão em pala para proteger os olhos da
luz do projetor e seguiu-a até ao altar no cimo da escada. O projetor lançava
milhares de faíscas refletindo as contas do traje da jovem morta ali deitada.
– Sam! Jericho! – gritou Evie e, apesar do medo, subiu as escadas a toda a
pressa.
Ao ver o corpo estendeu a mão para se equilibrar e evitar cair de costas.
– É ela? – perguntou Sam, correndo escada acima.
– Não – disse Evie em voz baixa. A jovem era loura.
– A pele dela… – disse Sam. Tocou com a mão no ombro de Evie e esta
deu um salto.
– Desapareceu – terminou Jericho.
As portas abriram-se de par em par e os gritos de «Fiquem onde estão!» e
«Não se mexam!» chegaram-lhe quando uma onda de agentes da polícia, de
arma em punho, invadiu as coxias do teatro. Evie via o brilho das algemas
no teatro escuro.
– Está detida – disse um agente.
Evie estendeu as mãos e deixou-se levar para a esquadra sem qualquer
protesto.
O detetive Malloy estava furioso. Enquanto Evie estava sentada com
Jericho e Sam nas cadeiras junto ao gabinete, ouvia-o zangado a falar com o
tio Will.
– Contaminaram o local do crime... invasão de propriedade. Pensei que te
tinha dito para te afastares disto...
Evie trocou um olhar com o tio pela porta entreaberta do gabinete e foi o
suficiente para se voltar imediatamente.
– Eu digo-lhe que a ideia foi minha – disse Sam.
– Estupendo. Também lhe digo que a ideia foi tua – disse Evie.
Os agentes arrastaram para a esquadra T. S. Woodhouse, que protestava, e
atiraram-no sem-cerimónias para uma cadeira ao lado de Evie e dos outros.
– Ei, tenho direitos, sabem? – gritou Woodhouse.
– Ah, sim? – respondeu o agente irritado. – Mas não durante muito
tempo. Sargento... apanhei este no teatro a tirar fotografias do corpo com
uma máquina que tinha presa à perna. Onde já se viu?
– A máquina é propriedade do Daily News, homem! – gritou T. S. Depois,
reparando em Evie, disse: – Olha, olha, mas não é a minha Sheba preferida?
– Woodhouse lançou-lhe um olhar de desprezo. – Na outra noite mandou-
me para uma bela caçada. Com que então Ars Mysterium? A fazer pouco de
mim.
– Era exatamente o que merecia, senhor Woodhouse.
Os olhos de T. S. Woodhouse disparavam centelhas.
– Ai, sim? O que acha que dirá o seu tio quando souber que foi a menina
que me deu informações sobre o caso?
– Foste tu? – disse Sam erguendo as sobrancelhas.
– E de que maneira – respondeu Woodhouse sem tirar os olhos de Evie.
– Está a fazer chantagem comigo, senhor Woodhouse.
O repórter encolheu os ombros.
– É possível.
– Boa. Quer saber quem é o Assassino do Pentagrama? É o John Perverso
Hobbes em pessoa, que voltou dos mortos para terminar um ritual iniciado
em mil oitocentos e setenta e cinco. E quando terminar, será o inferno na
terra.
– Evie – avisou-a Jericho.
Evie olhou para T. S. Woodhouse que lhe respondia com um riso cínico.
– A menina é cá uma bisca, Sheba, tenho de confessar. Mas eu não
esperaria mais artigos favoráveis para o museu... ou para si, se é que me
entende.
Will saiu para o corredor.
– Ninguém fala até chegarmos a casa.
– Adeus, Sheba – disse T. S. Woodhouse. – Foi um prazer conhecê-la.

Henry estava a dormir, voltado para a parede. Theta deslizou e encostou-se


a ele, passando-lhe um braço por cima. Ele estremeceu e entrelaçou os
dedos nos dela. Theta começou a chorar e Henry voltou-se para ela.
– Theta, que se passa?
– Estava no teatro. E… ouvi barulho. Estava lá alguém, Hen!
Henry despertou e tentou perceber o que Theta dizia.
– Quem estava lá? Estás a falar de quê, querida?
– Voltei e o Wally estava lá com os polícias. Parecia que lhe tinham dado
um soco. Fingi que tinha passado ali por acaso e perguntei o que se passava.
Theta enterrou o rosto na anca de Henry. Ele sentia-a tremer.
– Foi a Daisy – conseguiu dizer. – O Assassino do Pentagrama apanhou a
Daisy. Ela deve ter voltado atrás para ir buscar os brincos, mas podia ter
sido eu, Henry.
Theta começou de novo a chorar e Henry puxou-a para si. A ideia de a
perder aterrorizava-o.
– Fizeram-te mal?
– Oh, não, Henry. Ouvi um assobio horrível que se ouvia em toda a parte.
Comecei a correr, mas não conseguia abrir as portas, e... – Baixou a voz
quase para um murmúrio. – Aconteceu outra vez, Henry. Quase como no
Kansas.
Henry sabia o que acontecera no Kansas. Também sabia que nunca mais
acontecera.
– Pronto, agora estás em segurança. Estás comigo.
– O que está a acontecer, Hen?
– Não sei, minha querida.
Henry abraçou-a. Theta encostou a cabeça ao peito dele e assim ficaram
até de madrugada.
O SELVAGEM DO BORNÉU

Os matutinos tiveram um dia fantástico com o assassínio de Daisy


Goodwin. ÚLTIMA HORA! ASSASSINATO NO FOLLIES! O ASSASSINO DO
PENTAGRAMA ATACA DE NOVO!
Evie lia a primeira página do Daily News quando Sam entrou a correr,
acenando com um papel de aspeto oficial por cima da cabeça.
– Tenho novidades! – Subiu a correr a escada de caracol até onde Evie se
encontrava na biblioteca e ficou a olhá-la como um gato que sabe que tem
um pires de leite à espera dele.
– Está bem, diz lá. Por que raio estás tão entusiasmado?
– Encontrei os registos dos impostos de Knowles’ End. – Passou as
pernas por cima do corrimão, saltou para a escada de rodas e empurrou-a.
– Desde quando te tornaste tão inteligente na área da investigação?
– Bem, confiei nos meus encantos – admitiu Sam. – Nem imaginas como
a rapariga dos registos foi solícita.
Evie desceu dois degraus de cada vez até ao rés do chão e correu ao lado
de Sam que estava em cima da escada.
– E então, encontraste alguma coisa de interessante?
Sam empurrou outra vez a escada.
– E de que maneira. Nos últimos anos os impostos foram pagos por uma
tal senhora Eleanor Joan Ambrosio. – Fez uma pausa dramática.
Evie revirou os olhos.
– E…?
– O nome não significava nada para mim. Por isso tratei de me informar.
Ambrosio é nome de casada. O nome dela de solteira é Blodgett. Diz-te
alguma coisa?
– Não. – Evie tentou agarrar a escada, mas Sam empurrou-a deixando-a
com a mão no ar. Evie sabia que ele se divertia com a situação.
– A Mary White casou com um fulano chamado Blodgett. Eleanor era
filha deles.
Evie acompanhou a escada.
– Então a filha pagou os impostos de Knowles’ End? Porquê?
– Foi exatamente o que eu disse. Estás a ver? Pensamos da mesma
maneira.
– Importas-te de descer daí? Estás a pôr-me tonta. – Evie parou
abruptamente a escada e Sam saltou.
– Boneca, dizes coisas tão doces.
– Sam, estou a avisar-te. Podes ser a próxima vítima.
Sam instalou-se numa cadeira e pôs as botas em cima da mesa.
Entrelaçou os dedos atrás do pescoço e os cotovelos dobrados espetavam-se
como asas de ambos os lados da cabeça.
– Se me permites dizer, foi muito inteligente da minha parte lembrar-me
de ir em busca dos registos dos impostos.
– Quando acabares de te felicitar, talvez possas explicar.
– Pareceu-me estranho. Se a filha herdou aquela casa velha, porque
haveria de a conservar? Porque não vendê-la para realizar umas massas?
Porque ficar agarrada àquela porcaria?
– Vais manter-me em suspense toda a noite?
Sam sorriu.
– Toda a noite?
– Anda lá com isso.
Sam apoiou a cadeira nas pernas de trás, baloiçando-a um pouco.
– Fiz mais umas investigações e descobri o registo de uma oferta da
imobiliária Milton & Sons para comprar a casa. Aparentemente, pensavam
que o local poderia ser perfeito para habitações elegantes e estavam
dispostos a pagar bem por ele. Mas a oferta foi recusada, com a assinatura
da legítima dona, a senhora Mary White Blodgett. – Meteu uma uva na
boca e ficou à espera da reação.
– A nossa Mary White? A antiga amante do John Hobbes?
– Certíssimo. Ela mesma.
Os batimentos cardíacos de Evie aumentaram.
– Há quanto tempo fizeram a oferta?
– Há três meses.
– A Mary White está viva? – perguntou Evie com os olhos muito abertos.
– Sim, está. Vive numa daquelas cabanas em Coney e não larga a casa da
colina.
– Porque será? Gostava de saber.
– Talvez consigamos descobrir.

Mary White Blodgett vivia na Avenida Surf num bungalow danificado pelo
vento e pelo ar salgado com vista para a montanha-russa Thunderbolt.
Eleanor, a filha da Sr.ª White abriu a porta a Will e a Evie com um vestido
de andar por casa e a cabeça cheia de rolos.
– Senhora Ambrosio? – perguntou Will.
– Quem deseja saber?
– Como está? Sou William Fitzgerald do museu. Falámos ao telefone.
Uma centelha de reconhecimento brilhou nos olhos da mulher.
– Oh, com certeza. Claro que sim. A minha mãe já tem muita idade e está
bastante doente. Por isso não a deixem agitada.
– Claro que não – afirmou Will, tirando o chapéu.
A Sr.ª Ambrosio fê-los atravessar uma sala cheia de caixas vazias de
bombons Whitman’s Sampler e a coleção de frascos de Radithor que ainda
não tinham ido parar ao caixote do lixo. A casa cheirava a cerveja velha e a
sal.
– É o dia de folga da mulher da limpeza – disse ela e era difícil perceber
se se tratava de uma brincadeira ou de uma desculpa, ou talvez das duas
coisas. – Esperem uns minutos aqui na cozinha.
Evie não mexeu em nada. Não queria estar ali de pé e muito menos
sentada. Sobre a desarrumada mesa da cozinha havia um frasco com o
rótulo de MORFINA perto de outro que dizia VENENO PARA RATOS. Via-se uma
seringa suja sobre um bocado de algodão manchado de sangue.
A Sr.ª Ambrosio desapareceu atrás de uma cortina, mas conseguiam
ouvir-lhe a voz alta e esganiçada.
– Mãe! Estão aqui umas pessoas que querem falar do senhor Hobbes.
A Sr.ª Ambrosio reapareceu de repente, metendo os frascos num armário
e fechando a porta.
– Por vezes temos ratos – explicou. – Como vos disse, ela está muito
doente. Não demorem mais de quinze minutos. São horas da sesta dela.
Atrás da cortina, o quarto de Mary White parecia um túmulo. As gelosias
tinham sido descidas e o brilhante sol da praia entrava pelos cantos. A velha
estava sentada na cama, encostada a uma almofada. Tinha na cabeça uma
touca de dormir e vestia um casaquinho de seda cor de pêssego, muito sujo.
Por baixo da frágil pele dos braços, as veias azul-acinzentadas destacavam-
se como as escarpas de uma montanha ao longo das dobras de um mapa.
– Querem então saber do meu John – disse em voz fraca e com
dificuldade em respirar.
– Sim, senhora Blodgett, muito obrigada.
O tio Will sentou-se na única cadeira, obrigando Evie a instalar-se na
borda da cama. A velha cheirava a Mentholatum e a qualquer outra coisa
adocicada, como flores murchas. Evie teve vontade de fugir porta fora e
correr para a luz forte da praia.
– Conheceu o meu John? – perguntou Mary White a sorrir, mostrando os
dentes castanho-acinzentados.
– Não, receio bem que não – respondeu o tio Will.
– Era um homem encantador. Trazia-me um cravo todas as semanas.
Umas vezes branco, outras vezes vermelho. Ou cor-de-rosa, nos dias
especiais.
Evie estremeceu. Pelo que sabiam, John Hobbes fora tudo menos um
homem encantador. Matara várias pessoas e mutilara-lhes o corpo.
Aterrorizara e, provavelmente, assassinara Ida Knowles. E se estivessem
certos, o seu espírito voltara para terminar um ritual macabro e trazer uma
terrível destruição.
– Sim, bem, a senhora pode falar-nos acerca das crenças dele? – pediu o
tio Will. – Acerca do culto dos Irmãos e...
– Não se tratava de um culto! – A velha tossiu. Evie ajudou-a a beber um
pouco de água de um copo sujo. – Tentaram fazê-lo parecer diabólico. Mas
não era, era muito belo. Procurávamos manifestar o reino espiritual neste
plano. Jefferson, Washington, Franklin, homens esclarecidos, fundadores da
nossa grande nação, conheciam os segredos dos antigos. Segredos
desconhecidos até para os maçons nas suas grandes salas. Queríamos
libertar os espíritos das pessoas, para que se vissem livres das algemas. O
mundo que conhecemos morreria e no seu lugar nasceria um novo mundo.
Era essa a nossa missão... renascer. O John sabia-o.
– E o hóspede que desapareceu? E a criada? – insistiu Will.
– Mentiras – disse Mary irritada. – O hóspede partiu sem pagar a renda. A
criada era insolente. Foi-se embora para ir ver a irmã e nem se deu ao
trabalho de nos dizer adeus.
– E a Ida Knowles?
– A Ida? – As mãos de Mary esvoaçaram-lhe junto da boca e nos seus
olhos surgiu uma expressão desconfiada. – Quem são vocês? O que
querem? – perguntou com a voz mais alta. – Eu não disse que vos
receberia!
Evie pegou na mão fria e magra de Mary White e tomou-a entre as suas.
– Compreendo o que quer dizer acerca do senhor Hobbes – começou
Evie. – Os puritanos pensam que nós, as raparigas modernas, somos
moralmente indecentes. Mas tentamos apenas aproveitar a vida. – Evie
olhou para o tio que lhe fez um leve aceno para que continuasse. – Pois
aposto que se o senhor Hobbes estivesse hoje aqui, seria sem dúvida
considerado muito moderno.
A Sr.ª White sorriu. Dois dos seus dentes tinham apodrecido
completamente. Poisou a mão húmida na face de Evie.
– Teria gostado de si. O John gostava sempre de uma cara bonita.
Evie silenciou o grito que lhe subia da garganta.
– Sou um pouco curiosa e, se não se importa que lhe pergunte, porque
nunca quis desistir de Knowles’ End? Tenho a certeza que teria feito uma
fortuna se a vendesse.
– Nunca o faria.
– Claro que não – concordou Evie, acenando veementemente. – Só tenho
curiosidade em saber porque não o fez.
– Para que o John tivesse uma casa para poder voltar. Disse que era muito
importante. «Nunca vendas a casa, Mary, ou não poderei voltar para ti.»
Arrepios dançavam pelas costas de Evie.
– Mas como?
Mary White encostou a cabeça à velha fronha de cetim e olhou para a luz
que se esgueirava pelos cantos da janela.
– O Johnny não me contava tudo. Só ele entendia o plano infinito do
Todo-Poderoso. O seu corpo fora ungido, sabe, como uma obra de arte: a
Vénus de Botticelli, o David de Miguel Ângelo. As marcas em toda a parte.
Usava-as como uma segunda pele.
– Porquê?
– Fazia parte do plano, sabe. Ele voltaria. Renasceria. Uma ressurreição.
E uma vez renascido traria o fim dos tempos. O mundo seria purificado
pelo fogo. Ele governá-lo-ia como um deus. E nós estaríamos a seu lado. –
Riu-se, uma gargalhadinha de colegial, completamente oposta à sua cara
enrugada. – Chamava-me a sua Senhora Sol. Oh, era um príncipe. Olhe. –
Com esforço, Mary abriu a gaveta da mesa de cabeceira e retirou de lá uma
caixinha preta.
– Abra.
Uma larga aliança de ouro, baço do passar dos anos, repousava no veludo
negro.
– É linda – disse Evie.
– Era dele – murmurou em tom conspirativo. – Ofereci-lha. Meu marido,
era como eu lhe chamava, embora ainda não tivéssemos casado. Usou-a
quase até ao fim, o meu Johnny.
Os dedos de Evie estremeceram de desejo de pegar na aliança, de a ler.
Pertencia-lhe. A John Hobbes.
– Guarde-a, por favor – ordenou a Sr.ª Blodgett.
Evie fechou a caixa com alguma relutância.
– Oh, mas a senhora não pode sentir-se confortável, senhora Blodgett. Por
favor, doutor Fitzgerald, não poderia sentá-la numa posição mais cómoda?
Will pareceu momentaneamente atordoado, mas tratou de ajudar a velha
que parecia querer impedi-lo. Durante a confusão, Evie meteu rapidamente
o anel no bolso e voltou a meter a caixa na gaveta.
– Ah, assim está melhor, não é verdade?
– Sim, obrigada – disse Mary, como se tivesse sido ela a pensar naquilo.
Depois continuou. – Mas ele tinha de melhorar o mundo. Purgá-lo do
pecado. Tomá-lo como um salvador. Para comer o pecado do mundo. – Os
olhos de Mary White estavam molhados de lágrimas. – Assassinaram-no, o
meu Johnny. Era tão belo e assassinaram-no. Filisteus! Filisteus! – Tossiu
de novo e Evie ajudou-a a beber mais água. – Nunca fez mal a ninguém! As
pessoas sentiam-se atraídas por ele... principalmente as mulheres. – Sorriu e
deu uma palmadinha no braço de Evie. A mera sugestão de tocar em John
Hobbes deu volta ao estômago da jovem. – Estou com dores. Onde está a
Eleanor com o meu remédio? Que rapariga estúpida. Sempre atrasada.
– Sim, sim – acalmou-a Evie. – Vai já tomar o seu remédio. Mas também
gostava de saber uma coisa: o senhor Hobbes alguma vez falou de um ritual
para prender um espírito ou para o enviar de volta para o outro reino assim
que tivesse terminado o seu trabalho?
Mary White franziu a testa.
– Não. Por favor chamem-na para que me dê o meu remédio.
– Claro que sim! E o senhor Hobbes usava um pendente especial, não é
verdade?
– Sim – respondeu Mary White, com a voz esvaída de dor. – Sempre.
– E onde está agora o pendente?
– O pendente? – Tinha um olhar vago e Evie receou que não
conseguissem a tempo aquilo de que necessitavam.
– Ele deu-lho a si? – sugeriu Evie. – Talvez como presente.
– Já lhe disse que o usava sempre – disse a mulher, irritada. – Tinha-o
quando morreu. Foi enterrado com ele. Eleanor! O meu remédio! – gritou a
Sr.ª White.
– Foi enterrado como indigente. Já desapareceu há muito – disse Will a
Evie em voz baixa.
– Não, não, não! O meu Johnny não foi enterrado como indigente –
corrigiu-o Mary White com um ouvido nitidamente mais perfeito do que a
sua memória.
– Peço perdão, pensei...
– Pagámos a um guarda para que nos devolvesse o corpo. De acordo com
os desejos de Johnny, enterrámo-lo na sua casa.
– Em Brooklyn ou em Knowles’ End?
– Não – disse a velha irritada. – Na sua verdadeira casa.
– Onde ficava? – perguntou Evie.
– Ora, em Brethren, minha querida. Lá em cima na velha colina, com os
fiéis.
O quarto pareceu girar. Evie ouviu a sua própria voz como vinda de muito
longe.
– O senhor Hobbes era de Brethren?
– Sim. Claro.
– Mas não houve sobreviventes do incêndio de Brethren – disse Evie.
– Só um. Pode dar-me essa caixa de chapéus, minha querida?
Evie entregou-lhe a caixa de chapéus que se encontrava sobre o toucador.
Mary White meteu lá a mão e abriu um fundo falso, para retirar um livro de
hinos. De dentro das suas páginas finíssimas retirou uma folha de papel
dobrada, que entregou a Evie.
Era uma certidão de nascimento do condado para a aldeia de Brethren,
datada de 6 de junho de 1842: Yohanan Hobbeson Algoode, filho do pastor
John Joseph Algoode e de Ruth Algoode (que morrera de parto).
– Foi um sacrifício tão grande que fizeram por ele, o escolhido.
A cortina foi afastada com força. A filha de Mary White apareceu com
uma seringa numa mão e um tubo na outra.
– Tenho estado à espera – resmungou Mary White. – Queres que eu sofra,
não é verdade? Ai, como a minha vida era boa.
– Pois sim. Quando vivia na mansão da colina, bem sei. Se não tivesse
andado a pagar os malditos impostos daquela casa velha, não teríamos de
viver neste buraco. Já alguma vez pensou nisso?
Mary White gemeu quando a filha lhe espetou a agulha na curva já
magoada do braço e depois retirou o tubo. Logo a seguir os olhos da mulher
cintilaram com a morfina.
– Ele vem aí, sabem? – O tom de voz era agora meloso. – Disse que vinha
buscar-me, e eu sei que sim. – Tinha os olhos vidrados. – Era um homem
tão bonito. – Fechou os olhos pelo efeito da morfina e Evie e Will saíram da
casa.
Já em segurança ao sol, Evie e Will caminharam rapidamente por entre as
famílias que andavam a passear.
– Claro! – exclamou Will.
Deteve-se diante de um cartaz colorido que anunciava o Selvagem do
Bornéu. Do lado de fora da tenda, um homem com o casaco vermelho e o
chapéu alto de empresário de circo tentava os curiosos:
– Entrem e vejam o selvagem… metade monstro, metade homem! – Atrás
deles, a montanha-russa subia a inclinação com um firme clic-clic-clic,
antes de mergulhar às voltas com as pessoas aos gritos numa mistura de
medo e prazer. Era o último divertimento do ano antes que os divertimentos
encerrassem até ao verão seguinte.
– Claro – repetiu Will, repreendendo-se. – Agora tudo faz sentido.
– Ótimo! Pode explicar-me?
– Yohanan é o nome hebraico correspondente a John. John Hobbeson
Algoode. John Hobbes – disse Will. – O perverso John Hobbes era filho do
pastor Algoode... o escolhido. A Besta prometida pela profecia. Voltou para
terminar o trabalho do pai, para trazer o inferno à terra.
Caminhavam de novo e as palavras de Will eram tão rápidas como os
seus passos.
– A Mary disse que ele tinha de comer o pecado do mundo. Que tinha de
tomar os seus pecados. É por isso que retira partes deles, segundo os sinais.
Ingere partes deles. A ideia de que ao comer partes dos inimigos se fica
mais forte é uma magia antiga. Não podem derrotar-nos. Dois, por favor...
com legumes!
Will parara diante dos Nathan’s Hot Dogs. Tirou duas moedas do bolso e
entregou-as ao rapaz atrás do balcão, recebendo em troca dois cachorros
quentes. Entregou um a Evie que o segurou desajeitadamente.
– Uf – disse fazendo uma careta. – Francamente, Tito.
Will engoliu rapidamente o seu, continuando a falar.
– No caso do John, está a ajudar a manifestar-se. Dá-lhe força.
Evie experimentou dar uma pequena dentada no cachorro.
Surpreendentemente era delicioso e nem mesmo a conversa do canibalismo
a pôde impedir de o devorar.
– Se o pendente é a sua ligação com este plano, a sua proteção, então
bastará destruí-lo para destruir a sua ligação a este mundo. Será assim?
– Parece razoável.
– Mas ela disse que foi enterrado com ele.
– Sim – disse Will fazendo uma pausa para pensar. – Isso vai ser um
trabalho sujo.
Evie deixou de mastigar.
– Não pode estar a falar a sério. – Ficou a olhar para Will. – Oh, valha-me
um burro aos coices, está a falar a sério.
Will deitou o papel do cachorro num caixote do lixo.
– Vamos para Brethren. E precisamos de uma pá.

Jericho voltou ao Bennington vindo do Arquivo dos registos, onde Will o


enviara. Nem sequer parou para tirar o casaco.
– Encontrei! Encontrei a documentação.
Entregou-a a Will e acenou com ar irritado a Sam que estava sentado à
mesa da casa de jantar com Evie.
– Sam, estás aqui há muito tempo. Vais atrasar-te.
– Tenho estado a fazer companhia à Evie – respondeu Sam, lançando a
Jericho um olhar de triunfo.
– Yohanan Hobbeson Algoode foi deixado pela mãe no Orfanato Mother
Nova, onde foi admitido a dez de outubro de mil oitocentos e cinquenta e
um. Os registos do diretor são breves, mas atestam que Yohanan Algoode
era sossegado, mas mal-humorado, molhava a cama, era arrogante e
propenso a pequenos atos de crueldade. Quando trazido ao diretor para ser
castigado, limitava-se a dizer: “Sou o Dragão antigo, escolhido pelo Senhor
nosso Deus.” As outras crianças afastavam-se dele. Chamava a si próprio a
Besta. Depois de duas tentativas goradas, Yohanan conseguiu fugir no verão
de mil oitocentos e cinquenta e sete. Não existe mais documentação.
– Sabemos então que é ele. Mas continuamos a ignorar como detê-lo –
disse Jericho, despindo por fim o casaco e pendurando-o no cabide. – A
última página do Livro dos Irmãos, a do encantamento para prender e
destruir a Besta, foi rasgada. Disse-nos que o tínhamos de exterminar
segundo as suas crenças. Mas como iremos encontrar essas informações a
tempo? O cometa chega dentro de dois dias.
– Tenho de vos mostrar uma coisa. – Evie desembrulhou o papel fino que
guardava a aliança de John Hobbes.
– Isso é o que eu penso que seja? – perguntou Will e Evie acenou
afirmativamente. – Está a transformar-se num hábito, Evangeline.
– Will, se eu puder vê-lo e compreendê-lo, ficaremos um passo à frente
dele.
– Achas que será boa ideia, boneca? – perguntou Sam. – O tipo é um
assassino.
– E um fantasma – acrescentou Jericho.
– De que serve ter este poder e não o usar?
– Saúdo a tua coragem, mas questiono a tua sanidade – disse Sam.
Will acocorou-se junto de Evie.
– Evie, não se trata de um truque para fazer numa festa. O anel pertence à
própria Besta.
– Compreendo.
– Entra, retira o que precisamos e sai – aconselhou Will e Evie acenou
afirmativamente. – Bato três vezes as palmas para te ajudar a sair. Se em
qualquer altura te sentires em perigo...
– Não gosto dessa conversa. Gostas, Frederick? – resmungou Sam.
– Dirás uma palavra em código. Vamos combinar agora.
– Que tal não – sugeriu Sam. – Ou hooey? Ou basta?
– James – disse Evie. – A senha será James.
– Muito bem – concordou Will, acenando com a cabeça.
– Evie, tens a certeza de que queres fazer isto? – perguntou Jericho.
– Po-si-ti-va-men-te. – Evie experimentou sorrir, mas as mãos tremiam-
lhe de apreensão e excitação. Entrar era uma emoção muito maior do que
ter uma mesa de primeira fila num clube noturno exclusivo. – Ponham o
anel na minha mão, por favor.
– Não estou a gostar disto – resmungou Sam, mas, de qualquer forma,
entregou-lhe o anel.
Evie fechou-o com força na mão e colocou a outra por cima, como um
selo. Levou um instante a encontrar o ritmo para logo o seu espírito viajar
através do tempo.
– Vejo uma cidade com ruas lamacentas… – disse Evie no seu estado de
transe. – Cavalos e carroças. Não consigo... está a acelerar...
– Concentra-te. Respira fundo – instruiu-a Will.
Evie respirou fundo três vezes e a imagem estabilizou.
– Há uma multidão e um pregador...
Um homem alto, de barba, vestido de preto pregava à entrada da cidade,
empoleirado sobre um caixote de fruta voltado ao contrário. Juntara-se uma
multidão. Muitos ridicularizavam-no. Evie via os seus rostos trocistas,
quase satânicos. O pregador não se calava, parecendo até ganhar força na
voz.
– Tendes de vos preparar para que, quando chegar o dia do Juízo Final,
quando a Besta exercer a justiça divina sobre os pecadores, possais fazer
parte do número do Senhor e ser poupados. Preparai as paredes das vossas
casas com a sua marca, para receber a sua sagrada vinda e ungi a vossa
carne para testemunhar a sua glória! – vociferava o pregador. Ao lado dele
estava um rapazinho de nove ou dez anos, de rosto pálido e olhos azuis
maravilhosos.
O rapaz ergueu um livro de capa de couro.
– Esta é a Palavra do Senhor! O Evangelho dos Irmãos!
Alguém lhes atirou um tomate que se abriu no rosto do pregador e
escorreu manchando-lhe o fato com a polpa. Todos riram. O pregador
limpou o rosto com um lenço, mas sem interromper o seu inflamado
sermão. Porém, o rapaz lançava olhares terríveis ao homem que lançara o
tomate e qualquer coisa nesse olhar lhe fez gelar o riso.
– Evie? – disse Will, pois ela calara-se.
– Sim. Estou aqui – respondeu Evie. – Está a mudar. Vejo carroças e um
rio. Está frio, a respiração do pregador sai em pequenas baforadas brancas.
Estão a rezar...
Viu o reverendo Algoode erguer as mãos ao céu enquanto se dirigia à sua
pequena congregação.
– Sois os escolhidos, os fiéis, os Irmãos... O anjo do Senhor apareceu-me
vindo do céu como uma lança de fogo e ordenou-me que me afastasse da
corrupção e do velho mundo e construísse um novo corpo divino e celestial
nesta região... – repetia Evie. – O Sangue do Cordeiro corre nas nossas
veias e pelo sangue venceremos os nossos inimigos e executaremos a
verdadeira missão de Deus na terra.
A ligação ficou incerta durante alguns momentos, e depois Evie
prosseguiu. Concentrou-se com todas as suas forças e viu os pés do rapaz
correrem sobre as folhas, ouviu o haf-haf-haf da sua respiração. Estava
deitado sobre a margem do rio a observar as nuvens preguiçosas e, por
momentos, Evie sentiu a sua solidão e a dúvida. Um veado aventurou-se a
sair de entre as árvores em busca de alimento. Levantou a cabeça e o rapaz
atirou-lhe uma pedra, a rir, enquanto o animal, sobressaltado, voltava para a
floresta.
– Evie, onde estás?
– Dentro da igreja, julgo eu – respondeu lentamente, quando a imagem
mudou mais uma vez no seu espírito.
O rapaz dos olhos azuis estava em tronco nu e amarrado a uma cadeira.
Os fiéis rodeavam-no. Ele estrebuchava, olhando para o pregador que
colocava um ferro de marcar gado sobre o carvão incandescente. Havia ao
todo doze marcas – um pentagrama e onze para cada uma das oferendas.
– A tua carne tem de ser forte. O Senhor não tolera fraqueza nos seus
escolhidos – disse o pregador. Retirou o ferro do fogo e aproximou-o do
rapaz que gritava como um louco.
– Oh, meu Deus – disse Evie sem ter consciência de que as lágrimas lhe
corriam pelo rosto.
– Will, faça-a parar – acautelou Jericho.
– Tenho a mesma opinião que Frederick, o Gigante – declarou Sam.
Will hesitou.
– Só mais um pouco. Já estamos próximo.
Sam não esperou.
– Ei, boneca! Já é tempo de vires apanhar ar. Estás a ouvir?
– Eu disse, só mais um pouco! – irritou-se Will.
O espírito de Evie afastou-se do medo do rapaz. Por instantes, viu-se
dentro de um louco turbilhão de imagens. Esforçou-se por respirar fundo e
ficar calma, sem querer fugir. Em breve as imagens se instalavam de novo
no seu espírito.
– Estou bem – disse em voz calma. – Estou bem.
O rapaz estava sentado junto ao rio com o Livro dos Irmãos, aberto na
última página. O bater do coração de Evie acelerou ao tentar vê-la.
– A página que falta. Estou a vê-la – disse, e Will correu a buscar uma
caneta. «Neste vaso, prendo o teu espírito. No fogo encomendo o teu
espírito. Na escuridão, ordeno-te Besta que nunca mais te levantes.»
O jovem John Hobbes arrancou a página do livro e rasgou-a em mil
bocadinhos que ficaram a flutuar no rio.
– Já conseguimos, Evie. Podemos parar agora – disse Will.
Evie nunca entrara a um nível tão profundo. Estava vagamente consciente
das vozes dos outros, como se pertencessem a uma conversa noutro
compartimento, enquanto adormecia. A sensação era quase como uma
droga e ela não estava pronta para parar.
– Estou agora noutro sítio – disse, sonhadora.
Caminhava por entre folhas frondosas e molhadas num bosque azul-
acinzentado, em direção a um acampamento. Homens e mulheres, de rostos
sombrios e roupas simples, saíam das suas modestas cabanas de troncos e
encaminhavam-se com os filhos para um celeiro de tábuas brancas onde
estavam inscritos os mesmos sinais que Hobbes rabiscara no fundo das suas
notas. E ali, do outro lado da porta encontrava-se o emblema com a estrela
de cinco pontas e a serpente.
– O Pentagrama da Besta – murmurou ela.
– Evie, vou bater as palmas – disse Will. Foi o que fez, mas Evie insistiu.
Estava fora do alcance dele.
No seu transe seguiu os outros até à igreja. As mulheres estavam sentadas
em cadeiras simples, com as crianças aos pés, enquanto os homens se
sentavam do outro lado. Com uma expressão zangada, o pastor Algoode
erguia-se diante deles com o filho ao lado.
– Chegou o momento. Ouvi dizer na cidade que as autoridades se dirigem
a Brethren para nos derrotar. Perdoai-lhes, Pai, porque não sabem o que
fazem. Sim, chegou o momento para o escolhido começar a sua viagem!
– Aleluia! – gritou uma mulher erguendo as mãos.
– Chegou o momento para começar o ritual! Para que a Besta se erga e
leve o juízo aos pecadores!
– Aleluia! – repetiram outros.
– Somos os fiéis. Temos de ser fortes. O Senhor não permitirá fraquezas
aos escolhidos. – O pastor Algoode abriu o livro e encontrou a página de
que precisava. – E ouvi o anjo dizer na sua voz de trovão: «Os fiéis não
entrarão no reino do Senhor sem purificar a carne com o óleo e as chamas
do céu. O seu sacrifício será o primeiro, o sacrifício dos fiéis, e a Besta
tomará deles o livro e banhar-se-á no fumo do seu contributo. Assim será
feita a primeira oferenda e que o ritual comece.» Aleluia!
O pastor Algoode fez passar dois jarros por entre os fiéis para que estes
os despejassem sobre si próprios. Evie sentiu o forte cheiro a querosene. O
seu coração disparou. O pastor Algoode colocou o pendente em redor do
pescoço do rapaz e encostou-lhe a mão à testa.
– Toma a nossa carne e faz dela tua. Assim disse o Senhor. Vai. Faz o que
tens a fazer. Encontra uma morada e santifica-a. Prepara as paredes da tua
casa. Não te esqueças de nos honrar com o tributo.
Calmo e em silêncio, o rapaz abandou o celeiro, trancando-o por fora. Do
outro lado da porta, o pastor Algoode continuava a rezar, enquanto a
congregação iniciava um choroso hino. Evie sentia o cheiro a fumo. Das
fendas do celeiro escapavam-se farripas negras. As chamas lambiam o
telhado. O rapaz manteve-se firme, a rezar, deixando que o fumo lhe
enchesse os pulmões.
– O Senhor não tolerará fraqueza nos seus escolhidos – repetia uma e
outra vez.
Lá dentro, as crianças gritavam e tossiam. As mulheres tentavam
continuar a cantar. A voz do pastor Algoode sufocava de dor; transformava
as suas orações num terrível grito. Evie queria sair dali, mas não conseguia.
Não conseguia ordenar à mão que soltasse o anel, nem se lembrava da
senha. Estava demasiado longe, sem saber como voltar ou pedir ajuda. Os
gritos transformaram-se em gemidos isolados. O telhado cedeu. O fumo.
Evie tossiu; sufocava. Vinham gritos da floresta – alguém subia à
montanha.
O rapaz abriu rapidamente os olhos. Por um segundo, Evie pensou ver
chamas refletidas no gelo vítreo desses olhos. O rapaz caminhou lentamente
para a floresta e para o som da voz de um homem que chamava. De repente
deteve-se e voltou-se para Evie. Qualquer coisa no seu rosto – calmo, frio,
cruel – fez disparar o coração de Evie. Ele olhava diretamente para ela!
– Eu vejo-te! – disse, e a sua voz não era a voz de um rapaz, era um som
terrível, mais bestial que humano. – Eu vejo-te agora.
– James – murmurou Evie, recordando, de repente a senha. – Socorro.
James.
Quando deu por si, Jericho abanava-a. Tinha os dedos apertados, mas o
anel desaparecera; Sam tirara-lho da mão.
– Evie! – gritava Jericho. – Evie!
Aspirou uma golfada de ar, como uma afogada que chega à superfície de
um lago.
– Oh, meu Deus! Oh, meu Deus!
– Devíamos tê-la chamado antes, Will! – resmungou Jericho.
– Está tudo bem – declarou Will quase automaticamente.
– Eu vi-o... vi a Besta! Horrível! Horrível! – Quase vomitou. Doía-lhe a
cabeça e vacilava-lhe a visão.
– Vou buscar água – disse Sam, correndo para a cozinha.
Evie segurou-se à beira da secretária, embora estivesse sentada. Tinha as
faces pálidas e a cabeça banhada em suor. A sala girava.
– Ele… ele olhou para mim! Diretamente para mim! E disse: «Eu vejo-te!
Eu vejo-te!»
– Que diabo quer isso dizer? – perguntou Sam. Voltara com a água e
tentou que Evie bebesse, mas ela não conseguia.
– Está tudo bem – disse Will, perturbado.
– Não está nada bem! Não pode fazer isto com ela. Não é uma
experiência – disse Jericho, irritado, espantando Will. Pegou em Evie ao
colo, levou-a para o quaro e deitou-a na cama.
Evie nunca se sentira tão mal. A cabeça latejava-lhe e tinha o estômago às
voltas, ali deitada nos lençóis coberta de suor. Todos os sons pareciam
ecoar-lhe na cabeça. Tinha uma vaga consciência de ter sonhado de novo
com James, mas as imagens formavam um caleidoscópio com as que
retirara do anel de John Hobbes, a ponto de já não saber o que se passava.
Em determinada altura viu John Perverso a jogar xadrez com James no
campo de batalha, a vitrola a tocar a tal velocidade que a canção parecia
uma palhaçada. Viu também Henry, a correr por entre as árvores, a gritar
por alguém que se chamava Louis. À entrada da floresta, encontrava-se uma
mulher de camisa de dormir e máscara de gás. Quando retirou a máscara,
Evie viu que se tratava da menina Addie. «Que escolha terrível», disse
enquanto o céu se iluminava e as primeiras ondas de uma explosão se
aproximavam de todos.
Às nove e meia da noite, Evie acordou com uma sede desesperada. Foi à
cozinha buscar água e viu que a luz do tio Will estava acesa. A porta
encontrava-se entreaberta, mas, mesmo assim ela bateu.
– Como te sentes? – perguntou o tio.
– Melhor. – Evie instalou-se numa cadeira incómoda que parecia ter sido
desenhada para que um visitante não se demorasse muito tempo. – O que
aconteceu no fim?
– Estabeleceste com ele um contacto psíquico. Via-lo, mas ele também te
via. É esse o perigo do teu dom. Podes abrir-te ao outro lado. – Will juntou
as pontas dos dedos e tocou com eles no queixo. – Conheces a história das
quatro irmãs Fox de Hydesville, Nova Iorque?
– São um quarteto da rádio?
Um breve sorriso passou pelos lábios de Will.
– Não havia rádio nos meados do século dezanove. As irmãs Fox viviam
em Hydesville, Nova Iorque, numa casa que se dizia estar assombrada.
Maggie e Kate, as irmãs mais novas, afirmavam poder comunicar com o
mundo dos espíritos. Faziam perguntas e o espírito, a quem chamavam
senhor Splitfoot, respondia por pancadas. – Will bateu na secretária para
demonstrar. – Durante o movimento espiritualista tiveram um enorme êxito,
realizado sessões com pessoas famosas.
– É o que acontece quando não se tem rádio – disse Evie.
– Pois, sim. Mais tarde as raparigas abraçaram outros interesses.
Tornaram-se religiosas e confessaram que a sua comunicação com os
espíritos era uma fraude elaborada e que conseguiam as pancadas fazendo
estalar os dedos dos pés. Seguiram-se tempos difíceis. Tornaram-se
alcoólicas. Houve quem dissesse que bebiam para fugirem aos fenómenos.
Evie ficou a olhar para o dedo do pé que arranhava uma mancha no
tapete.
– Há alguma razão para me contar essa história?
– Um ano mais tarde, a Margaret Fox retratou-se formalmente. Mudara de
ideias. Disse a toda a gente que as coisas tinham acontecido como a
princípio haviam dito. Acredito nela. Creio que as irmãs estavam
assustadas, por isso pararam e renunciaram. Foi como se tivessem dito aos
espíritos inquietos: «Partam. Estamos fechadas para vós.» E muito tempo
depois de as irmãs terem morrido foi encontrado um esqueleto humano na
cave da casa delas em Hydesville.
Will folheou os recortes de jornal que tinha sobre a secretária.
Provavelmente haveria muito tempo que os examinava, calculou Evie.
– Porque é que isto está agora a acontecer? – perguntou Evie.
Will uniu de novo os dedos.
– Não sei. Qualquer coisa está a reunir os seres semelhantes a John
Hobbes. Há aqui alguma energia. Os espíritos são atraídos por alterações de
energia sísmica, caos e acontecimentos políticos, movimentos religiosos,
guerra e invenções, indústria e inovação. Diz-se que houve uma enorme
quantidade de avistamentos de fantasmas e fenómenos inexplicáveis
durante a Revolução Americana e, de novo, durante a Guerra Civil. Este
país foi fundado sobre alguma tensão. – Juntou os pulsos. – Há um
dualismo inerente à democracia... forças opostas que se empurram, sempre.
Choques de culturas. Diferentes sistemas religiosos. Tudo se reuniu para
criar este país. Porém, este equilíbrio necessita de muita energia... e, como
te disse, a energia atrai os espíritos. – Descansou as mãos sobre a secretária.
– Conseguiremos detê-lo?
– Acredito que sim. – Will esboçou um leve sorriso. – De manhã iremos a
Brethren exumar o cadáver e tirar a fonte do seu poder neste plano... o
pendente.
– E depois?
– Depois trazemo-lo para o museu onde poderemos criar um círculo
protetor. Usando o encantamento, prenderemos o seu espírito no pendente
que destruiremos em seguida, antes da passagem do Cometa de Salomão.
Evie sentia que Will a olhava agora com novo apreço.
– Hoje foste muito corajosa, Evangeline.
– Fui, não fui?
– O mais possível. É de família, sabes?
Evie sentiu-se melhor com o elogio de Will. O estômago normalizara e
sentia a cabeça mais leve. Deu por si a olhar para a única fotografia sobre a
secretária de Will – a mulher misteriosa que vira ao segurar a luva do tio,
naquele dia, havia pouco mais de uma semana. Teria passado apenas uma
semana? Pareciam anos.
– Quem é, Tito?
Inconscientemente. Will passou um dedo pelo rosto da mulher.
– Rotke Wasserman. Foi minha noiva durante algum tempo.
– Porque não se casou com ela? – perguntou Evie, mas apercebeu-se
imediatamente do erro que cometera. E se a mulher tivesse abandonado o
tio no altar? Se o tivesse trocado por um homem mais rico e de melhor
posição?
– Ela morreu – disse Will em voz baixa.
– Oh!
– Já foi há muitos anos – disse Will como se isso lhe suavizasse a dor. –
Nunca mais consegui guardar a outra luva. Estou sempre... a perdê-la.
Pela primeira vez, Evie não sabia o que dizer. Nunca considerara o tio
muito humano. Era mais um livro de estudo que, de vez em quando, se
lembrava de usar gravata. Mas era evidente que, afinal, era humano, com
uma profunda ferida chamada Rotke.
– Lamento – disse ela depois de uma pausa.
– Sim. Bem. Ambos perdemos alguém. – Will voltou a fotografia para a
parede.
A mão de Evie procurou o conforto da sua moeda talismã. Desde que
descobrira que os fantasmas eram reais, que queria perguntar uma coisa ao
tio. Só agora se sentia com coragem de o fazer.
– Essas histórias das pessoas comunicarem com os espíritos dos mortos,
os médiuns... É verdade que, se quisermos, podemos contactar com alguém
do outro lado?
O olhar de Will seguiu a mão de Evie que se agarrava com força ao
pendente que trazia ao pescoço.
– É melhor deixar os mortos descansarem em paz – disse ele em voz
baixa.
– Mas e se não estiverem em paz? Se precisarem de ajuda? E se nos
aparecerem em sonhos uma e outra vez? – Evie sentia de novo a ameaça
das lágrimas. Ultimamente estava a transformar-se numa fonte. Evitou
chorar. – E se tentarem chegar a nós para nos dizerem uma coisa qualquer e
nós não soubermos o que fazer?
– E se quiserem fazer-te mal? – perguntou Will. – Já alguma vez pensaste
nisso?
Não. Não pensara. Mas e James? James nunca lhe faria mal. Ou faria?
– As pessoas têm tendência para pensar que o ódio é a emoção mais
perigosa. Mas o amor é igualmente arriscado – disse Will. – Há muitas
histórias de espíritos que assombram os lugares e as pessoas que mais
significaram para eles. De facto existem mais histórias deste tipo do que de
vingança.
– Tito, se acredita em fantasmas e em duendes…
– Não acredito em duendes…
– Ou coisa parecida – disse Evie, revirando os olhos. – Porque tem tanta
dificuldade em acreditar em Deus?
– Que espécie de deus permitiria a existência deste mundo? – disse ele
olhando-a nos olhos antes de ver as horas no seu relógio de bolso. – Creio
que está na hora do Capitão Nightfall e a Brigada Secreta. Vamos ouvir?
– Parece-me estupendo.
Will ligou a telefonia. Ouviu-se uma música misteriosa. «Onde quer que
o mal se esconda, onde quer que as sombras se juntem, encontrarão sempre
o Capitão Nightfall e a sua Brigada Secreta para combater as forças da
iniquidade e proteger os cidadãos deste país de todas as vilanias...»
A sala sombria encheu-se com os efeitos sonoros e a música, e com as
vozes bem moduladas dos atores fingindo encarnar os maus.
Mas não era o suficiente para afastar os fantasmas.
A chuva batia suavemente nas janelas. As árvores do Central Park
curvavam-se ao vento. E na rua, no escuro, ouvia-se um assobio. Enquanto
John Hobbes caminhava pelos quarteirões encharcados até ao Museu
Americano de Folclore, Superstição e Ocultismo. Entrou facilmente na
velha mansão com as suas coleções de sacos de amuletos, cartas de bruxas e
fotografias de espíritos. Coisa sem importância. Brincadeiras de criança.
Chapéus de chuva abertos, para proteger de um tufão. Dentro de dois dias,
aquilo não teria a mínima importância. Mas primeiro havia trabalho a fazer.
Assobiando, John Hobbes visitou a antiga biblioteca. Estava coberta pela
capa da noite, mas John descobriu sem problemas a desarrumada secretária.
Via perfeitamente no escuro. Primeiro abriu a secretária e deixou um
pequeno presente. Mas precisava de uma coisa. Ali, na secretária, mesmo
por baixo de uma pilha de recortes de jornais. Serviria. Serviria
perfeitamente. Meteu-o no bolso e saiu do museu cantando em voz baixa:
– «John Perverso, John Perverso trabalha com o avental posto…»
Lá em cima, no quarto, Sam acordou por uns momentos, pensando ter
ouvido alguém cantar, mas tudo estava em silêncio, por isso voltou-se para
o outro lado e adormeceu.
VAI CORRER TUDO BEM

Memphis caminhou por entre as ruas cheias de folhas do Upper West Side,
aconchegando o casaco para se abrigar do vento frio. Já era outono. O fumo
das chaminés queimava um pouco o ar e perfumava o vento. As noites
tinham peso. Vai correr tudo bem, Memphis. Deixa de te preocupar.
Memphis caminhava mais depressa, desejoso de chegar ao Museu
Americano de Folclore, Superstição e Ocultismo. A irmã Walker dissera-lhe
que guardasse para si o episódio com o fantasma de Gabe, porque
provavelmente andaria a ver coisas que mais não seriam que efeitos da
tristeza e do cansaço. Mas os transes de Isaiah, a visita de Gabe e o sonho
que partilhava com Theta eram demasiadas coisas para ignorar, e Memphis
precisava que alguém lhe explicasse o que se passava.
Memphis avistou ao longe as torres góticas do Bennington espreitando
por entre as folhas que já rareavam. Era ali que Theta vivia e, por
momentos, desejou poder subir para a ver e esquecer este mundo louco.
Mas o mundo dela era tão misterioso como o resto que tanto o preocupava.
Nada podia fazer acerca disso e, além do mais, precisava de respostas. Por
isso seguiu o seu caminho.
Foi perto de Central Park West e da Rua 88 que percebeu que alguém o
seguia. Quando olhou por cima do ombro, viu-os: vinham dois homens
atrás dele, a respeitável, mas consistente distância. Memphis percebeu
imediatamente tratar-se de polícias à paisana. O coração bateu-lhe com
mais força. Não trazia papelinhos consigo. Estava tudo bem. Memphis
continuou a andar. Os homens também. Não havia dúvida de que o
seguiam. Memphis investigou a rua em busca de uma saída. Ao longo de
Central Park West, havia trabalhadores a escavar a rua para a nova linha do
metropolitano. Seria possível esconder-se ali? Não. Certamente ficaria
encurralado e acabaria por partir uma perna. Talvez pudesse despistá-los.
Memphis esperou até que um carro subisse a rua, depois lançou-se para a
frente dele, fazendo o condutor guinar e subir a avenida, bloqueando
momentaneamente o trânsito. Partiu a correr para o Central Park. Sentia os
pulmões a arder e ouvia o ruído dos sapatos no atalho do circuito que
rodeava árvores e pedras negras e aguçadas, com o sol a manchar o trilho
com promessas de luz da cor do ouro falso. Por cima da sua respiração
entrecortada, Memphis ouviu os polícias a correr atrás dele aos gritos. Eram
mais velozes do que aparentavam, mas Memphis conseguia ser ainda mais
rápido. Atreveu-se a olhar de novo para trás; não os viu, o que o fez sentir
uma súbita alegria no peito. Voltou-se a tempo de ver uma ama com um
carrinho de bebé mesmo à sua frente e a expressão de horror da ama,
transfigurada, incapaz de sair do seu caminho. Ganhara demasiada
velocidade a descer a colina. Tentou parar e escorregou e depois de ter
rolado sobre si foi parar à relva, magoado e tonto. Tinha as calças rasgadas
e ensanguentadas nos joelhos. Mesmo assim, pôs-se de pé com dificuldade,
preparado para correr. Mas era demasiado tarde; os dois homens estavam
em cima dele, erguendo-o violentamente, torcendo-lhe os braços e
puxando-os para trás das costas.
– Mas o que temos aqui? – perguntou um polícia ofegante e Memphis
sentiu-se satisfeito por pelo menos os ter cansado. – Parece que apanhámos
um homem dos papelinhos.
– Eu não – disse Memphis. – Não tenho papelinhos nenhuns.
– Ah, não? Então e o que é isto nos teus bolsos? – disse o outro polícia.
Tirou do próprio bolso um monte de papelinhos e enfiou-os no bolso de
Memphis.
– Diria que aqui estão pelo menos vinte e cinco, o suficiente para um juiz
te mandar engavetar, rapaz.
– Mas esses não são meus! – Assim que as palavras lhe saíram da boca,
Memphis apercebeu-se de como os seus protestos eram estúpidos e fúteis.
A palavra de dois polícias brancos contra a de um negro do jogo dos
papelinhos? Era uma guerra perdida.
– Chamem o Papa Charles – disse Memphis. – Ele dá-vos o que
precisarem.
– Não trabalhamos para o Papa Charles – disse um dos polícias
desdenhoso, e Memphis percebeu que o polícia trabalhava para Dutch
Schultz. – Vais para a esquadra, amigo.
Os polícias empurraram-no rudemente para dentro do carro estacionado
junto ao passeio. Atrás de si, Memphis conseguia ver as pontas aguçadas do
Bennington flutuando por cima de umas nuvens, transparentes como uma
miragem.
UMA HERANÇA SAUDÁVEL

Eram quase quatro horas e as sombras do dia estendiam-se longas sobre as


curvas encostas das Catskill quando o tio Will voltou no cruzamento da
estrada principal, atrás da placa deteriorada pelas intempéries que indicava
o caminho para Brethren. A estrada serpenteava em direção ao vale,
passando por uma pequena quinta, cujo celeiro tinha ao lado a marca branca
de um feitiço. As folhas tinham agora os tons outonais de vermelho,
dourado e alaranjado. Lá em baixo, a pequena cidade desdobrava-se como a
fotografia de um bilhete-postal, com telhados de empenas, candeeiros a gás
para a iluminação pública e torres de igreja. A cidade tinha um estranho
encanto, como se tivesse parado no tempo por volta do princípio do século.
Era o tipo de local que os políticos gostavam de conservar e apresentar
como exemplo nostálgico de tudo o que era americano, de tudo o que o país
corria o risco de perder.
Depois seguiram para norte. As estradas eram lamacentas e agora
estavam consideravelmente mais atrasados do que haviam desejado.
Hospedaram-se num motel à entrada da cidade. Era um lugar rústico,
semelhante a uma cabana, com um parque grande para os carros e carroças.
O tio Will tocou à campainha. Foram recebidos pelo proprietário, um
homem com um bigode de pontas retorcidas, mas vestindo um casaco de
corte mais moderno. Will assinou o livro de registos como Sr. John Smith e
família de Albany e pediu dois quartos – um individual para Evie e outro
duplo, onde ficaria com Jericho.
– Vieram à feira do condado? – perguntou o estalajadeiro.
– Sim. Ouvimos dizer que era a melhor do estado de Nova Iorque –
respondeu Will com um sorriso tenso. – O meu filho e a minha filha estão
desejosos de lá ir.
Evie lançou a Will um olhar de surpresa. Continuando a sorrir, o tio fez
um pequeno gesto com a cabeça para a avisar que pegasse na deixa.
– Oh, pois é – disse o estalajadeiro com orgulho. – Recomendo-vos a
compota de pêssego da Primeira Igreja Metodista. É qualquer coisa de
especial.
– A Evangeline adora compota de pêssego, não é verdade, querida?
– Nunca me farto dela – respondeu Evie.
Will pegou nas chaves e apressou-os a irem para os quartos.
– Porque temos de ficar aqui? – perguntou Evie desiludida ao ver o quarto
escuro e forrado a madeira, e a cama cheia de altos. Vira uma estalagem
antiga ótima quando tinham entrado na cidade. Naquela nem sequer havia
telefone.
– Daremos menos nas vistas – disse Will. Abriu um mapa simples sobre a
secretária lascada. – Bom, segundo isto, o velho acampamento fica no alto
da montanha, mais ou menos aqui. A campa de John Hobbes deve ficar
algures por trás da antiga casa de oração. Só há uma estrada para lá... se é
que se pode chamar estrada. Talvez seja difícil lá chegar, principalmente se
o tempo ficar desagradável. E, infelizmente, teremos de ir quando ficar
escuro...
– Segundo o Almanaque do Agricultor, o Sol põe-se às seis e vinte e
cinco – disse Jericho.
– Então, teremos de nos reunir aqui cerca de um quarto para as seis, o
mais tardar.
– Aqui? Vamos onde?
– Vocês vão – corrigiu Will. – Tu e o Jericho vão à feira.
– Oh, Tito. Pensei que estava apenas a ser simpático!
– Será bom. Pensarão que somos turistas interessados. Temos de despistar
todos daquilo que vamos fazer.
Evie tinha uma recordação especial de uma visita à Feira do Estado do
Ohio e de ter ficado enjoada com o cheiro dos animais e de comer
demasiado algodão-doce. As feiras estatais nada tinham a ver com os clubes
noturnos de Manhattan; ela e Jericho possivelmente morreriam de tédio
antes de conseguirem chegar ao local onde os Irmãos tinham vivido. Mas
pelo tom de voz de Will, percebeu que nada havia a fazer.
Evie soltou um longo suspiro.
– Está bem, Tito. Vou comer compota de pêssego com os saloios. Mas
fica a dever-me uma.
Will levou Evie e Jericho à feira antes de se dirigir à cidade para ver se
conseguia arranjar mais provisões para a expedição. Evie e Jericho
compraram os bilhetes e entraram no recinto da feira com o resto da
multidão. Tinham sido montadas várias tendas brancas, que davam à feira a
aparência de um acampamento medieval. Um mundo de delícias
imaginárias aguardava-os. Gordas abóboras empilhavam-se em frágeis
bancas de madeira. Cartazes pintados à mão prometiam A MELHOR TARTE DE
MAÇÃ DO CONDADO E SABÃO DE POTÁSSIO SCHROBSDORFF – O MELHOR AGENTE
DE LIMPEZA! Bem como picles doces, ameixas em conserva, milho
caramelizado em cartuchos de papel de jornal, e naperons de renda tão fina
que nem pareciam feitos com uma agulha. Um ruído jovial enchia o recinto
da feira.
– Equipamento para cavalos Feber… por aqui!
– Um jogo de damas, um penny!
– Venham ver a exposição de automóveis e apreciar os carros do futuro!
Passaram pelo enorme pavilhão do gado, com os seus cercados cheios de
animais magnificamente tratados enquanto os agricultores aguardavam
nervosos, sérios e de braços cruzados o veredito dos homens que julgavam
a sua qualidade.
Saíram do pavilhão e encontraram uma antiquada banda de metais que
ocupava o centro de um estrado e tocava «Abidewith me», enquanto pares
grisalhos, sentados em cadeiras desdobráveis cantavam o antigo hino.
Crianças com roupas domingueiras corriam por ali a sorrir de olhos
maravilhados, com os seus moinhos de papel a girar ao sabor da brisa.
Apesar das suas resmunguices, Evie estava encantada. Por breves
momentos, conseguia esquecer a terrível razão que os tinha levado até ali.
Ficaram na fila para os passeios de carroça, rindo com os solavancos das
rodas por cima do terreno irregular e riram de novo ao retirar o feno do
cabelo e da roupa como cães sacudindo a água. Num pequeno balcão de
madeira deram enormes dentadas em fatias de pão acabado de cozer,
untadas com manteiga e salpicadas com mel. Evie riu-se quando uma
grossa gota de mel escorreu do pão de Jericho e este tentou apanhá-la com a
língua.
– Ainda deixaste ficar – disse e, sem pensar, passou-lhe o polegar por
cima da boca. Os lábios dele entreabriram-se, como se quisesse comer-lhe o
dedo. Jericho recuou, substituindo a mão dela pela sua.
– Obrigado, Evie.
– De nada – disse Evie timidamente. Jericho olhava-a de um modo que
não conseguia perceber.
– Olha, vamos andar na roda gigante – pediu Evie, dirigindo-se
rapidamente para o local.
Compraram os bilhetes a um penny cada e instalaram-se na cadeira de
metal que balançou quando começou a subir. Evie soltou um gritinho e
agarrou-se ao braço de Jericho que lhe deu a mão, enquanto a roda subia no
ar; o estômago de Evie estremecia pelo prazer da altura e da proximidade
do Jericho.
– Olha para ali! Consegue-se ver a estalagem – disse Evie retirando a mão
da dele para apontar. Era má educação apontar, mas era ainda pior estar de
mão dada com o rapaz por quem a sua melhor amiga morria de amores,
mesmo que ele estivesse apenas a ser cavalheiro.
– Onde? – Jericho inclinou-se levemente sobre ela, para conseguir ver, e o
corpo de Evie estremeceu mais uma vez.
– Oh! Não... não acredito que agora consigas vê-la. – Encostou-se na
cadeira e pousou firmemente as mãos na barra.
Quando saíram da roda gigante, notaram que a temperatura descera
bastante. As nuvens esfarrapadas passavam velozes no céu brumoso por
cima dos montes vermelho-dourados.
– Tens frio? – perguntou Jericho.
– Um pouco – disse Evie, batendo o dente. Apontou para um pavilhão de
madeira ali ao lado. – Ali deve estar mais quente.
Um cartaz sobre a porta anunciava FAMÍLIAS SAUDÁVEIS PARA FUTURAS
LAREIRAS. Um rapaz louro saiu a toda a pressa e desceu os degraus,
mostrando orgulhoso uma medalha de bronze presa por uma fita.
– Eh, lá, rapaz! O que ganhaste? – perguntou Evie e ele deixou-a ler a
inscrição. – «Sim, tenho uma herança saudável» – leu Evie. – Olha, ainda
bem para ti.
Lá dentro o barracão fora arranjado com mesas compridas e zonas
protegidas por cortinas com a indicação EXAMES. Havia famílias sentadas, à
espera de vez, enquanto as enfermeiras com aventais engomados e toucas
brancas andavam por ali a escrever informações e a acompanhar as pessoas,
uma de cada vez, para trás das cortinas. Os pais preenchiam inquéritos e
respondiam a perguntas, enquanto as mães abanavam bebés incomodados
no colo e ordenavam aos filhos que se mantivessem direitos, na esperança
de receberem uma medalha de bronze como aquela que tanto orgulho
provocara no rapaz. Havia cacau quente e Jericho foi buscar as chávenas
enquanto Evie esperava.
Numa mesa próxima, um homem alto e magro, de cabelo grisalho fazia
perguntas a um jovem casal.
– Alguém na vossa família tem problemas de coração? Paralisia infantil?
Escoliose? Raquitismo?
Eles abanavam a cabeça e o homem grisalho sorria.
– Ótimo, ótimo. E história de problemas nervosos? Os senhores, ou
algum membro da vossa família alguma vez demonstrou capacidades
invulgares? Por exemplo, se eu escondesse uma carta na mão e eles
demonstrassem ter, por assim dizer, uma sensação de qual era a carta?
Gostariam de ser testados para essas capacidades?
Evie mal escutava. Dirigiu-se à parede oposta, onde estava suspenso um
quadro enorme. O quadro continha pequenas lâmpadas que piscavam e
estava dividido ao meio. No lado esquerdo, onde uma seta apontava para
uma luz que piscava rapidamente, estava escrito A CADA QUARENTA E OITO
SEGUNDOS, NASCE UMA PESSOA NOS ESTADOS UNIDOS QUE VIRÁ A SER UM PESO
PARA A SOCIEDADE. A AMÉRICA PRECISA DE MENOS PESSOAS ASSIM E DE MAIS
PESSOAS ASSIM…
Uma seta do lado direito apontava para uma luz que raramente piscava. O
texto dizia: A CADA SETE MINUTOS E MEIO NASCE UMA PESSOA DE GRANDE
QUALIDADE NOS ESTADOS UNIDOS COM CAPACIDADES PARA TRABALHAR E
PRONTA PARA ASSUMIR CHEFIAS. SÓ QUATRO POR CENTO DE TODOS OS
AMERICANOS PERTENCEM A ESTE GRUPO. INFORME-SE ACERCA DA
HEREDITARIEDADE. PODE AJUDAR A CORRIGIR ESTAS CONDIÇÕES. – FUNDAÇÃO
PARA A MELHORIA HUMANA: FORTALECER A AMÉRICA ATRAVÉS DA CIÊNCIA DA
EUGENIA.
Jericho voltou com o cacau. Franziu a testa ao ver o quadro. Uma
enfermeira sorridente, com uma papeleta na mão, aproximou-se deles.
– Desejam ser testados?
– Para quê? – perguntou Evie.
– Não precisamos de uma medalha – disse Jericho com ar de poucos
amigos.
– Já ouviram falar da eugenia? – perguntou a enfermeira como se não o
tivesse ouvido. – Trata-se de um maravilhoso movimento científico
designado para ajudar a América a atingir o seu mais completo potencial. É
a independência da evolução humana.
»Porque todos os agricultores sabem que a chave para ter o melhor gado
possível está no acasalamento – explicava a enfermeira como se ensinasse
catequese a crianças pequenas. – Se acasalam animais inferiores, terão gado
inferior. É preciso manter a superioridade das estirpes para obter um gado
verdadeiramente superior. O mesmo acontece com as pessoas. Quais os
custos pagos pela América quando nascem pessoas defeituosas? Há os
infelizes. Os degenerados. Os doentes, loucos, aleijados e atrasados
mentais. Os criminosos encontrados nas classes mais baixas. Os defeitos
próprios de algumas raças. Muitos agitadores que causam desassossego à
nossa sociedade, são um exemplo do elemento inferior que leva à
mestiçagem da cultura americana. A pureza é a parede mestra da nossa
grande civilização. A eugenia propõe correções para o que estiver doente na
nossa sociedade.
– Vamos embora – insistiu Jericho ao ouvido de Evie, mas a enfermeira
continuava a falar.
– Imaginem a América depois de nos terem retirado os males físicos e
sociais. Não haveria doenças. Não haveria guerra. Nem pobreza, nem
crime. Haveria paz, pois as pessoas de espírito elevado sabem resolver as
suas diferenças. Uma verdadeira democracia! Nem todos os homens
nascem iguais, mas poderiam nascer. A humanidade foi feita para avançar
sempre! Correções – repetiu a enfermeira sorridente. – Têm a certeza de
que não querem fazer os testes? Ocupariam apenas uns minutos do vosso
tempo e temos uns biscoitinhos ótimos.
– Não estamos interessados – disse Jericho irritado e saiu bruscamente.
– Jericho, Jericho, espera, por favor – disse Evie aborrecida. Saíra atrás
dele do pavilhão das Famílias mais Saudáveis. Jericho caminhava a toda a
pressa e ela tinha dificuldade em acompanhá-lo. – O que é? Que se passa?
– Nada – disse Jericho embora fosse evidente que se passava alguma
coisa. Evie nunca o vira tão zangado. Ele que era sempre tão sereno, tão
calmo.
– Aquilo não é ciência. É fanatismo, intolerância. E... e eu não gosto de
experiências – respirou fundo como se estivesse a fazer um esforço para se
acalmar. – São horas de regressarmos. Já estamos atrasados.
Saíram pelo outro extremo da feira e dirigiram-se ao transporte que
levava as pessoas à cidade. Por trás da sebe, viram cerca de meia dúzia de
homens sobre um pequeno estrado improvisado. Usavam fatos de macaco,
casacos pretos, simples e chapéus pretos. Evie parou de repente.
– Olha, é o Jacob Call!
Erguendo o seu livro sagrado, o irmão Jacob Call falava em voz de
trovão.
– O pastor Algoode disse a verdade e indicou o caminho. Não veem o que
está a acontecer neste país? O pecado enraizou-se nas nossas casas. A
ganância e a inveja apodrecem os alicerces. Perdemo-nos no caminho.
Arrependei-vos pecadores, pois aproxima-se o fim! Escutai a palavra do
Senhor Deus como foi revelada pelo seu profeta, o reverendo Algoode,
ámen!
– Os Irmãos – murmurou Evie.
– E o Senhor falou com a língua de mil serpentes, dizendo: «Ungi a vossa
carne e preparai as paredes das vossas casas, pois o fim está a chegar.» O
Senhor vosso Deus ordenou que a Besta se erguesse!
– A Besta erguer-se-á – repetiram os homens. Um deles estremeceu e
revirou os olhos. Estrebuchou e disse coisas incompreensíveis.
– Aproxima-se o Cometa de Salomão. O Dragão antigo erguer-se-á e
apenas os fiéis serão salvos para combater na guerra sagrada de Deus,
enquanto os pecadores perecerão!
Evie e Jericho teriam de passar por eles para chegar ao transporte.
– Não posso – disse ela.
– Não te preocupes, estou contigo – disse Jericho, colocando-se entre ela
e os homens.
Evie sentiu o olhar deles sobre a sua pessoa. Fechou automaticamente o
casaco. Desejou não ter calçado as meias com desenhos nem ter pintado os
lábios, apesar de se sentir zangada porque o desprezo dos fanáticos a fazia
sentir-se mal. Um rapaz, que não teria mais de catorze anos, olhou-a com
intensidade, com uma expressão hesitante entre a luxúria e o ódio.
– O pecado do mundo foi o pecado da mulher – gritou o rapaz com uma
voz que ainda não mudara; era mais novo do que Evie pensara.
– Continua a andar – murmurou Jericho dando-lhe a mão.
Evie tentou olhar em frente, mas conseguiu ouvir o rapaz a dizer qualquer
coisa, uma palavra que lhe chamou a atenção. Não era uma palavra bonita.
– Prostituta – sussurrou ele, levando o braço atrás como se preparasse um
lançamento. Evie ficou completamente chocada quando foi atingida. Soltou
uma exclamação sufocada quando a lama se espalhou na frente do seu
casaco.
– Prostituta! – gritou de novo o rapaz.
As pessoas olhavam para ela – para ela, como se ela tivesse feito alguma
coisa de errado. Teve vontade de gritar com eles, de esmurrar o rapaz com
toda a força. Também sentia vontade de chorar.
– Prostituta – gritou Jacob Call e os outros homens fizeram coro com ele.
– Prostituta!
Jericho apertou com força a mão de Evie e conduziu-a apressadamente
para os portões da feira. Mas ela continuava a ouvi-los gritar nas suas
costas.
Prostituta, prostituta, prostituta, prostituta!
JURAMENTO

Memphis estava atrasado. Dissera a Isaiah que o iria buscar às cinco horas a
casa da irmã Walker, mas eram quase seis e Isaiah já tinha fome. A tia
Octavia punha o jantar na mesa pontualmente às seis e quinze. Se não
estivessem lavados e sentados à mesa a essa hora, iam para a cama com
fome. Isaiah já estava zangado porque a irmã Walker não o deixara ler as
cartas. Durante toda essa tarde apenas tinham feito contas de somar e a
tabuada e, por isso, sentia-se bastante aborrecido. Não tencionava passar a
noite às voltas com o estômago vazio por causa de Memphis. Isaiah sabia
que a irmã não o deixaria sair dali sem a companhia de um adulto, por isso
esperou até que ela fosse à cozinha buscar o chá e disse em voz alta:
– Parece que já estou a vê-lo, irmã! – E saiu porta fora antes que ela o
pudesse apanhar.
Até àquele dia nunca saíra sozinho de casa da irmã Walker. Era
emocionante, como se tivesse um mundo secreto para explorar. Porém,
desejava que não fosse quase noite. Não gostava do escuro. O caminho
levava-o a passar pela funerária e pensou na mãe, deitada no caixão, com o
seu vestido branco dos domingos, e também em Gabe. Por isso sentiu-se
triste e um pouco assustado. Depois tinha de passar pelo Trinity Cemetery à
noite. Todos sabiam que era a essa hora que os mortos passeavam. Sentiu o
estômago a roncar e pensou que Octavia lhe negaria o jantar.
Isaiah susteve a respiração – devia-se sempre reter a respiração ao passar
por um cemitério, também todos sabiam isso – enquanto corria por cima das
primeiras folhas caídas do outono, ao passar pelos altos muros de pedra e
ferro. Esperava que os pulmões aguentassem. Era difícil correr e suster a
respiração ao mesmo tempo. Quando chegou ao fim, sentia-se tonto.
Chocou de cabeça com o cego Bill Johnson e soltou um grito.
– Assustou-me!
Bill sorriu.
– Isaiah Campbell! Pensaste que eu era um fantasma?
– Pois. Não gosto de passar pelo cemitério, mas se não chego a casa a
horas, a minha tia Octavia não me dá de jantar.
– Então é melhor apressarmo-nos. Anda. Conheço um atalho. – A bengala
de Bill fazia tap-tap-tap no passeio. Pararam à esquina. – Diz-me, gostas de
truques de magia?
– Acho que sim.
– Achas? Que espécie de resposta é essa? – disse Bill, fingindo-se
ofendido. – Vais ver uma coisa. Tenho andado a praticar o meu número de
magia. Queres ver?
– Claro – disse Isaiah. Batia uma bola, apanhando-a quase sempre.
– Observa! Nesta mão tenho uma rosa. – Bill abriu a mão direita para
mostrar ao rapaz, e depois fechou-a. – Abracadabra! – Abriu a mão. – O
que vês?
Isaiah semicerrou os olhos para a rosa levemente esmagada.
– Não aconteceu nada.
– Nada?
– Ná.
– Deixa-me tentar outra vez. Ó grandes espíritos da terra, colocai um sapo
na minha mão direita! – O cego Bill abriu a mão. A rosa continuava a ser
uma rosa.
Isaiah riu-se.
– Ainda não há sapo.
– Confundi-me – disse o cego Bill. – Leram-me um livro de magia e tudo.
Acho que não tenho jeito.
Isaiah queria contar ao velho o que podia fazer. Memphis não queria que
ele falasse no assunto, mas Memphis não estava aqui. Fora sabia-se lá para
onde e esquecera-se do irmão. Tinha vontade de chorar, mas os rapazes não
deviam chorar. Parecia que havia uma lista de coisas que Isaiah não devia
fazer e já se sentia cansado de tantos deveres.
– Eu sei fazer magia – confessou Isaiah de repente.
– Sabes?
– Hum-hum. A irmã diz que sou especial. – Se Memphis tinha segredos
para ele, também Isaiah poderia ter segredos para Memphis. E podia contá-
los.
– Ah, sim? E porque és tão especial?
– A irmã diz que não posso dizer.
– Está bem, mas podes contar ao velho cego Bill, não podes? Achas que
vou dizer a quem?
– A irmã diz que não.
– Hum. Estou a ver. Vais deixar que essa mulher mande em ti, quando já
és um homenzinho? – Rápido como uma serpente, agarrou na bola com a
mão esquerda e pô-la fora do alcance de Isaiah.
– Ei!
– Se és tão especial, que tal se ma tirasses? Ou não serás assim tão
especial?
– Sou!
– Pois, sim, filho! Não podemos ser todos especiais.
– Sou especial! – exclamou Isaiah, tão zangado que as lágrimas lhe
chegaram aos olhos.
O cego Bill entregou a bola a Isaiah e deu-lhe uma palmadinha na cabeça.
– Então, então. Não queria ofender-te, rapaz. Claro que és especial. Eu
sei. O cego Bill sabe.
– Sabe?
– Sei sim senhor, sei sim senhor.
As palavras do velho foram um bálsamo para Isaiah. Pelo menos alguém
se preocupava com os seus sentimentos. Isaiah estava cansado de ser
pequeno e que o pusessem de parte. Estava cansado de todos – a irmã
Walker, Memphis, Octavia, os professores, as pessoas da Mãe AME – lhe
dizerem constantemente o que devia e não devia fazer. De que servia ter um
dom tão especial se ninguém podia saber?
– Muito bem. Vou contar-lhe. Mas tem de me prometer que vai guardar
segredo.
O velho fez uma cruz sobre o coração com o dedo comprido.
– Juro, que eu morra já aqui.
Era o juramento mais solene que Isaiah conhecia.
– Consigo ver as coisas na minha cabeça. Quando a irmã Walker segura
nas cartas, consigo dizer quais os naipes sem sequer olhar.
Bill torceu a boca.
– Ah, sim? Devias ser bom a jogar póquer.
– A irmã não me deixa.
– Não, claro que não.
– E, às vezes... – Isaiah fez uma pausa.
– Sim?
– Às vezes, consigo ver coisas que ainda não aconteceram.
Bill sentiu uma espécie de comichão no estômago, que logo lhe invadiu o
sangue como um desejo.
Com a mão trémula, tocou de novo no alto da cabeça do rapaz.
Isaiah pegou na mão do velho e voltou-a.
– Tem aqui uma marca.
– É um corte do tempo em que colhia algodão. Os troncos são duros e
APANHAM-NOS! – Bill assustou Isaiah que gritou e depois riu. Gostava de
Bill, gostava que o velho brincasse com ele. Recordava-lhe o pai, a balançá-
lo suspenso dos dois braços quando andavam na rua e a mãe a dizer:
«Marvin, olha que lhe arrancas um braço.» Entristeceu-se ao pensar na mãe
e no pai.
Chegaram a uma rua estreita a que Bill dissera que Isaiah deveria estar
atento.
– O atalho – disse ao velho.
– Obrigada. – Bill abrandou o passo. – Estás bem, homenzinho? Pareces
triste.
– Estava a pensar na minha mãe. Ela morreu.
– Bem. É mesmo muito triste. – Bill abrandou um pouco mais. Sabia que
aquela rua era um beco e terminava num muro. Já lá dormira algumas
vezes. – Podia retirar toda essa tristeza da tua cabeça, se quisesses.
– E como faria uma coisa dessas?
– Anda cá que eu mostro-te.
Isaiah ficou desconfiado. Não era só pelo facto de a tia lhe ter dito que
devia ter cuidado com desconhecidos. O cego Bill não era exatamente um
desconhecido. Houve uma pausa, uma coisa que interiormente o
aconselhava a ter cautela, mas mesmo assim seguiu o cego.
– Isto não é um atalho, senhor Johnson. Há um muro lá ao fundo.
– Enganei-me. Devia estar a pensar noutra rua. É difícil para um cego,
sabes. Vem cá, então. Vá, vem cá.
Isaiah olhou para trás, para a rua deserta.
– Não estás com medo, pois não? Um rapaz especial como tu?
– Não. Não ’tou com medo – disse Isaiah. Não estou com medo, diria
Memphis. Mas Memphis não estava presente. Isaiah foi ter com o velho.
– Tenho de pôr a minha mão na tua cabeça, assim. Faz comichão?
Fazia, um pouco, e Isaiah riu-se.
– Tomo isso como um sim. E aqui? – Bill avançou a mão para que as
pontas dos dedos agarrassem firmemente a testa do rapaz.
– É bom.
– Muito bem. Vou apertar um bocadinho e depois não vais mais sentir-te
triste.
Nunca mais, corrigiu Isaiah em silêncio. Tal como Memphis. Teve uma
súbita premonição acerca do irmão, uma sensação de que estava com
problemas, de que qualquer coisa não estava bem.
– Tenho de ir para casa, senhor Johnson. A tia Octavia está à minha
espera.
– Espera um pouco, filho.
– Tenho de ir.
– Não te debatas. Não te debatas.
O pânico apoderou-se de Isaiah. A sensação de perigo transformou-se
numa visão terrível: viu o irmão numa encruzilhada debaixo de um céu de
tempestade.
– Largue-me! – gritou Bill, tentando em vão escapar-se da mão firme de
Bill. Solte-me, solte-me!
Bill gemeu e aguentou-se e foi recompensado pelo estremeção elétrico.
Nas suas mãos, Isaiah estrebuchava e, como no passado, quando
conseguia ver, Bill sabia que o rapaz revirava os olhos, que talvez um fio de
cuspo lhe saísse dos cantos da boca. O coração do próprio Bill batia
acelerado e, por um segundo, viu-se a correr pelos campos de tabaco,
descalço debaixo dos céus que se estendiam em todas as direções. Um
número flutuava diante dele – um, quatro, quatro. Um número! Conseguira
um número em tudo aquilo! Um novo estremeção sacudiu o corpo de Bill,
mais forte que o primeiro. Enrolou-se-lhe a língua e sentiu um gosto
metálico. Viu uma encruzilhada e uma nuvem de poeira a formar-se na
estrada como acontece antes das tempestades; depois viu um homem alto,
muito magro e acinzentado, de chapéu alto. Nas suas mãos o rapazinho
estava silencioso e calmo. Caiu no passeio aos pés de Bill e o velho
acocorou-se junto dele, escutando o som da sua respiração.
– Ei! Ei! – gritou alguém na rua.
Bill praguejou em surdina e retirou a mão.
– Aqui! Precisamos de ajuda aqui!
A voz dirigiu-se a eles e transformou-se na silhueta de um homem. Uma
sombra! Oh! Se ao menos tivesse mais uns momentos! Que mais não
poderia ver? Que outros poderes poderia provar?
– O que aconteceu? – A voz do homem era dura, acusatória.
– Não sei. O rapazinho estava perdido. Tentei ajudá-lo a encontrar o
caminho, mas teve uma espécie de ataque, julgo eu. Não sei dizer por causa
do meu problema. – Bill poisou a mão na bengala. Tenho estado a gritar.
Não me ouviu?
– Creio que sim – respondeu o homem. – Creio que foi o que me chamou
a atenção. Foi uma sorte o senhor estar aqui.
– O Senhor devia estar a tomar conta.
As pessoas eram tão sugestionáveis.

Octavia gritou quando viu o homem carregando o corpo inanimado de


Isaiah pelo passeio, com Bill Johnson atrás. O rapaz foi metido na cama e
chamaram o médico.
Octavia ofereceu pratos de empadão e Bill pôs o seu no colo e comeu
vorazmente. Havia muito que não provava comida caseira e Octavia era
uma ótima cozinheira.
– O que aconteceu? – perguntou ela.
– Minha senhora, o menino perdeu-se e eu estava a ajudá-lo. – Bill
contou-lhe a mesma história que contara ao homem. Estava quase a
terminar quando ouviu o Campbell mais velho irromper pela porta da frente
como se a quisesse partir.
– Onde está ele? Onde está o Isaiah? – Havia pânico na sua voz.
– A descansar. – Havia fúria na dela.
– Desculpe, eu…
– Poupa o fôlego para as tuas orações, Memphis John. Já soube pela
senhora Robinson que foste preso e que o Papa Charles teve de pagar a
caução – disse em tom amargo.
– Posso ver o Isaiah?
Bill não ouviu nada, por isso pensou que a comunicação fosse um sinal –
um aceno, um gesto. Quantas conversas silenciosas não perdera em todos
aqueles anos? Ouviu Memphis dirigir-se para outro aposento – para a
cabeceira do irmão, sem dúvida. Aqueles dois eram unha com carne. Um
laço criado pela tragédia. Bill deteve-se, mas pôs a ideia de lado. Não era da
sua conta fazer voltar a justiça a este mundo.
– Não seja muito ríspida com o rapaz – disse a Octavia, como oferta de
paz. Levantou-se para sair e Octavia entregou-lhe a bengala, mais outro
bocado de empadão embrulhado em papel encerado.
– Muito obrigada, senhor Johnson.
– Bill.
– Muito obrigada, Bill. – Ele apercebeu-se da emoção na voz dela. – Oh,
meu Jesus, e se não estivesse ao pé dele? E se ele estivesse sozinho?
– Insondáveis são os caminhos do Senhor, minha senhora.
– Apareça sempre – disse Octavia atrás dele, quando já se encontrava
junto ao pequeno portão.
– Obrigado. Apareço, sim.
Bill Johnson voltou para a noite, que não era tão escura como o local
onde estivera. Retirou a rosa do bolso e apertou-a na mão esquerda.
– Lamento, rapazinho. Lamento muito – murmurou o cego Bill. Quando
abriu a mão a rosa transformara-se em cinzas.
No silêncio do quarto das traseiras, Memphis observava a respiração do
irmão. Cada inspiração parecia uma acusação: Onde… estavas… mano?
Engoliu em seco, aterrorizado. E se tivesse sido ele a provocar aquilo em
Isaiah? E se uma maldição destinada a Memphis tivesse tocado antes o
irmão? Sentiu-se mal e o suor cobria-lhe a testa.
– Não te preocupes, Homem de Gelo – murmurou. – Vou tratar de tudo.
Vou repor as coisas.
Memphis poisou as mãos sobre o corpo do irmão, fechou os olhos com
força e esperou o calor do transe, dos estranhos sonhos da cura. Mas nada
aconteceu. As suas mãos não ganharam calor. O irmão continuou a dormir,
como o residente encantado de um enfeitiçado reino de um conto de fadas,
e Memphis, o matador de dragões, estava do outro lado das muralhas
intransponíveis do reino. Deixou-se cair ao lado da cama e enterrou a
cabeça nas mãos inúteis.
BRETHREN

As ruínas da antiga Brethren situavam-se nos bosques frondosos da


montanha Yotahala, nome que os Oneida lhe haviam dado e que significa
«sol». Mas havia muito pouca luz quando o Ford de Will percorreu a firme
subida de três quilómetros sobre a estreita estrada de terra batida através da
floresta, onde a luz do fim da tarde mal entrava. Começara a nevar um
pouco naquele princípio de outubro. Os flocos finos dançavam na luz dos
faróis do Modelo T. O carro não era aquecido e Evie batia o dente no banco
de trás sentindo todos os solavancos.
– Estamos perto – declarou Will por cima do firme gemido do motor. –
Procurem um carvalho torto. É aí o cruzamento.
– Não estava a fazer nada senão a passar por ali – disse Evie, continuando
a conversa anterior. Ainda estava abalada pelo encontro com os fiéis à saída
da feira. – Nada.
– A culpa não é tua. Não há nada mais assustador do que a certeza dos
que acreditam deter a razão – disse Will. Estava inclinado sobre o volante,
esticando o pescoço para a direita e para a esquerda, não se contentando em
confiar na busca de Evie e Jericho.
– O empregado do arquivo disse-me que nos últimos anos tem havido um
ressurgir do culto dos Irmãos.
– Mas porquê?
– Quando o mundo avança demasiado para algumas pessoas, estas tentam
fazer-nos recuar com o seu medo – explicou Will. – Esperemos que se
deixem ficar na feira. Não gostaria de pensar no que pode acontecer se nos
descobrirem a exumar o cadáver do filho do profeta.
Do lado direito da estrada, guardado por árvores com casca semelhante a
joelhos esfolados, Evie avistou, pendurado num ramo torcido, um amuleto
de pele de animal marcado com o bem conhecido pentagrama.
Mecanicamente cobriu o pescoço nu com a lapela do casaco.
– Creio que estamos perto.
– Ali está o carvalho torto. – Jericho apontou para uma árvore enorme,
cujos ramos tortos se tinham entrelaçado num estranho ballet.
Will retirou o carro da estrada e meteu-o na clareira, estacionando-o por
trás de uma moita ainda verdejante.
– Felizmente estes arbustos vão ocultar a nossa presença durante bastante
tempo – disse.
Retirou da mala um candeeiro de querosene, que acendeu, mantendo-lhe
a luz fraca, uma lanterna para Evie e duas pás, uma das quais entregou a
Jericho. Quando o fez, Evie recordou-se da intenção macabra daquele ato.
Will pôs a pá ao ombro e ergueu o candeeiro na direção da imponente
montanha arborizada que se erguia diante de si.
– Por aqui – disse, conduzindo-os pela encosta por um discreto atalho de
terra. A luz fraca e incerta emprestava ao bosque uma cor cinzenta e
profunda. Evie tentou imaginar o jovem John Hobbes vivendo num tal
isolamento, tendo este bosque por única companhia, longe das acolhedoras
lareiras das tabernas e da conversa com os vizinhos
As pernas de Evie ressentiam-se da subida íngreme, fazendo com que se
sentisse satisfeita por ter calçado sapatos práticos. O ar rareava,
dificultando-lhe a respiração. Olhou para trás e já não conseguiu ver o Ford
no seu esconderijo.
– Falta… muito… ainda? – perguntou ofegante. Tinha os músculos
doridos.
– Estamos quase – respondeu Will, também ofegante.
Quase por magia o atalho ficou plano. Rodeava a face proeminente de
uma pequena elevação e nessa altura Evie conseguiu retomar um pouco de
fôlego.
– Minhas senhoras e meus senhores, estamos na antiga Brethren – disse
Will em voz baixa.
Tinham chegado às ruinas abandonadas do antigo acampamento.
Algumas cabanas de troncos já cheias de bolor espalhavam-se pela clareira.
Uma porta rachada abria-se ainda nos seus gonzos ferrugentos; as janelas
escuras e vazias davam o aspeto de um monumento funerário. As ervas
cresciam em redor da carcaça de pedra de um poço. Um caminho de pedras
era ainda visível debaixo de uma cobertura de folhas e trevos. Circulava as
árvores envoltas em bruma. À esquerda, o som do rio misturava-se com o
cantar dos grilos e dos pássaros. A lanterna de Evie refletiu-se nos olhos de
uma raposa, sobressaltando-a. A raposa saltou para se pôr a salvo, enquanto
a lanterna estremecia nas mãos da jovem.
– A antiga igreja – disse Will, dirigindo-se rapidamente a um grande
quadrado no centro, onde um monte enorme de madeira queimada era um
testemunho silencioso como um mausoléu. Evie passou o limiar destruído,
cheio de ervas altas e viu-se nos restos da igreja. Apesar dos devaneios
filosóficos a altas horas da noite, acerca da natureza do mal, nada a
preparara para aquela sensação, para o peso real de uma maldade excessiva
encostado à sua pele. Porque a antiga igreja de Brethren transportava dentro
da sua decadência o peso inegável e a paciente persistência do mal. Sob o
vento quase se conseguia aperceber do riso de uma criança, de uma onda de
gemidos, de uma ameaça de suspiros. Queria fugir. Mas fugir para onde?
Que local ficaria fora do alcance do mal?
A um canto, um monte de tijolos partidos formava um semicírculo que
Evie reconheceu como sendo o local da fogueira que vira quando tinha na
mão o anel de John Hobbes. Não passava de uma calha queimada, e os
tijolos estavam cinzentos e cobertos de musgo. Atrás, na relva, via-se o
ferro com a marca. Evie pegou-lhe delicadamente. O Pentagrama da Besta.
Deixou-o cair rapidamente, sobressaltando uma pequena cobra que
deslizava de dentro de um monte de pedras. Evie espreitou o poço
abandonado e viu acendalhas novas, cotos de velas, alguém estivera ali
recentemente. O coração bateu-lhe mais acelerado ao pensar que alguma
coisa ou alguém poderiam estar dentro daquele bosque.
– Continuam a usá-la como casa de oração – disse Will, como se lhe lesse
os pensamentos. Apontou para um arranjo de pedras colocadas em círculo
em volta de uma placa de lata. Com a ponta do pé voltou a placa. A parte de
trás estava também adornada com a estrela de cinco pontas e a serpente.
Will olhou para a luz que se desvanecia.
– Vamos procurar a campa.
O crepúsculo caía rapidamente. O bosque estava envolvido numa sombra
azul-escura. Uma meia-lua apareceu, quase transparente, enquanto
caminhavam por trás da igreja queimada e desciam a colina. O pequeno
muro de pedra do cemitério apareceu à luz do candeeiro de Will. Mais atrás
viam-se pedras tumulares escurecidas como dentes tortos numa boca podre.
Evie iluminou as várias pedras, tentando ler os nomes. Jedidiah Blake.
Richard Jean. Mary Schultz. Todas tinham uma inscrição a dizer ERGUER-SE-
Á.
– Procurem uma coisa invulgar... ossos de animais, um pentagrama,
amuletos e outras oferendas. Provavelmente desejarão venerar a campa dele
– ordenou Will.
Evie não se afastou de Jericho. Sentia os calcanhares afundarem-se na
terra mole, ao mesmo tempo que pensava no que estava enterrado ali por
baixo. Desejava ter calçado meias de lã; estava muito mais frio ali do que
no vale. A respiração saía-lhes em pequenas baforadas cinzentas, como se
os pulmões expelissem fantasmas de ar. Os restos de luz ausentaram-se do
céu, como convidados impertinentes a quem a anfitriã fechasse a porta.
Acendeu-se uma esteira de estrelas vespertinas. O raio de luz da lanterna de
Evie balançava sobre as pedras tumulares dando-lhes um aspeto macabro.
– E se não conseguirmos encontrá-la? – perguntou.
– Teremos de escavar todas as sepulturas até o encontrarmos – respondeu
Will.
O vento assobiava de novo pelas montanhas, como dedos que lhe
tocassem a pele, para a puxar para um jogo infantil em que ela participasse
vendada.
– Aqui! – chamou Jericho. Will foi ter com ele e segurou o candeeiro
sobre um local marcado com uma simples cruz de onde pendiam amuletos e
com a caveira de um pequeno animal junto à base.
– Acham que é aqui? – perguntou Evie.
Will limpou uma mancha de terra da cruz, deixando que aparecessem as
iniciais YHA gravadas na madeira.
– Yohanan Hobbeson Algoode – disse Will. – Vamos começar a cavar.
Will colocou a lanterna junto à cruz. Ele e Jericho despiram os casacos,
arregaçaram as mangas e começaram a trabalhar com as pás. A função de
Evie era iluminá-los com a lanterna e ficar alerta a qualquer ruído. Evie
saltava por tudo e por nada, balançando a lanterna de um lado para outro.
– Por favor, mantém a luz sobre nós – aconselhou Will.
Evie precisava de qualquer coisa para manter a mente ocupada, por isso
começou a observar os braços de Jericho enquanto ele trabalhava, dando
atenção aos movimentos do músculo, à força das suas mãos. Recordou-se
da sensação da mão dele sobre a dela, como um escudo. Jericho era para ela
um mistério e descobriu então que queria saber os segredos dele – sem os
arrancar por meio de uma carteira ou da sua caneta preferida, mas
oferecidos como um presente. Queria provar-lhe que era de confiança.
Especial. Havia qualquer coisa nele que a enervava. Sentia-o ligeiramente
perigoso; mas ela também o era. Nunca lhe agradaria um homem que não
compreendesse essa sua maneira de ser, a escuridão por trás da fachada
descuidada, que brincava com as tempestades, mas que se assustava quando
as sentia dentro de si. Observava as enormes mãos de Jericho e imaginava-a
a acariciar a sua pele nua, imaginava o gosto da sua boca, a pressão do seu
corpo contra o dela.
Mas logo tentou livrar-se dessas ideias. Jericho era o amor de Mabel.
Evie lembrou-se das muitas cartas escritas pela amiga acerca desse assunto.
Mas eram fantasias românticas de rapariga. Jericho e Mabel não tinham
sido feitos um para o outro. Se tivessem isso já teria acontecido, ou não?
Evie não podia roubar aquilo que Mabel nunca possuíra.
Em silêncio, Evie repreendeu-se por pensar sequer no assunto.
Provavelmente, Jericho precisaria de uma pessoa como Mabel. Boa, forte,
sensata, que se lembraria de apagar as luzes e trazer o leite para casa. Uma
rapariga que tomasse conta das coisas. Evie tinha a terrível sensação de ser
do tipo descuidado. Roupas por dobrar em cima da cama, livros com
manchas de café. Contas pagas no último momento. Rapazes que beijava e
de quem uma semana depois se esquecia. Compreendia tudo isso, mas essa
compreensão não lhe trazia qualquer conforto.
Um ruído cavo ecoou na sepultura quando a pá de Jericho bateu na
madeira. Apesar do frio ele e Will estavam encharcados em suor. Jericho
saltou para o buraco. Introduziu a pá junto dos cantos da tampa do caixão
de pinho para soltar o selo. Com um gemido retirou a tampa, expondo o
corpo decomposto de John Hobbes.
Quando James morrera não houvera corpo para sepultar. Nada a que
prestar homenagem pelo seu falecimento. Havia uma campa que visitavam
todos os anos no dia do seu aniversário, mas que não continha os ossos, o
uniforme ou qualquer essência do irmão.
O corpo de John Hobbes repousava no seu caixão de madeira vestido com
um simples fato de lã com o pendente do Pentagrama da Besta a brilhar em
redor do seu pescoço. Os lábios haviam sido cosidos com linha que se
soltara nos cantos, para revelar os dentes compridos e amarelados. O seu
corpo estava tão desprovido de vida como decomposto e destruído como as
cabanas abandonadas dos Irmãos. Era uma coisa. Inerte. Como uma pedra.
Como uma recordação. Era então aquele o aspeto da morte. Irrefutável. E
Evie sentia um estranho alívio por afinal não ter visto o corpo de James,
como se naquela recusa, pudesse fingir que ele não tinha morrido.
Jericho estendeu a mão e retirou o pendente, entregando-o a Evie que o
segurou como se segura um lagarto pela cauda. Depois subiu e limpou as
mãos às calças – um gesto inútil, pois as calças estavam tão sujas como as
mãos.
Evie olhou para o que tinha na mão. Queria deitá-lo fora, queimá-lo ali
mesmo.
– Não creio que deva ter isto na mão – disse. – Pode dar-me o seu lenço,
Tito?
Evie enrolou o pendente com todo cuidado na sua capa protetora. Ia
entregá-lo a Will quando um ruído agudo soou vindo da direita. Evie voltou
a luz da lanterna na direção do som. A luz tremia sobre os ramos outonais
que roçavam uns pelos outros. As folhas secas esvoaçavam pelo chão nos
espaços vazios entre as pedras tumulares. Nada, mas depois o mesmo som,
da esquerda. Desta vez voltou rapidamente a luz naquela direção. O raio de
luz apanhou um leve movimento. As mãos de Evie estremeceram. Outro
piar de pássaro, mais à frente. Outro atrás. Depois à direita, a seguir à
esquerda. À beira da sepultura, Evie voltava a lanterna para todos os lados.
Os homens da feira apareceram à luz. Evie contou-os. Eram cinco, mais o
rapaz que lhe sujara o casaco. Traziam corda e facas de caça. O rapaz
segurava rigidamente uma caçadeira que parecia demasiado grande para
ele, como se se tivesse mascarado.
– Esta propriedade é privada. Solo sagrado – disse o rapaz.
Evie escondeu na mão o pendente embrulhado no lenço e pôs a mão atrás
das costas.
– Oh, sim. Claro – disse Will. Parecia assustado, sem saber o que fazer, o
que aterrorizou Evie ainda mais do que a presença dos homens.
– Qual a razão da vossa transgressão? – insistiu um homem.
– Ouvimos dizer que aqui havia ouro enterrado – disse Jericho
subitamente. – Fizemos mal. Já percebemos. Vamo-nos embora. Desculpem
tê-los incomodado. – Inclinou-se calmamente para recuperar a pá. Um tiro
de espingarda irrompeu no silêncio do cemitério, sobressaltando Jericho
que deixou cair a pá.
Jacob Call surgiu de trás com a espingarda ainda fumegante nas mãos.
– Os nossos inimigos enganam-nos. Diz o Senhor que em tempos de
tribulações antes do dia do Juízo Final, os nossos inimigos serão mais do
que os pecados do homem. Enganar-vos-ão – pregou. – Esta é a palavra do
mensageiro do Senhor aqui na terra, o Abençoado pastor Algoode. Ámen.
– Ámen – disseram os outros em coro.
– Os fiéis fizeram este pacto. Esperamos a vontade e a decisão do Senhor.
O cometa confirma-o. «Quando a luz queima o céu como a cauda de um
dragão.» A Besta erguer-se-á.
– Erguer-se-á! Aleluia! – exclamaram os homens.
– Aproxima-se o dia do Juízo Final. Abençoados sejamos, aleluia!
– Aleluia – repetiram.
– Por favor. Escutem-me. – Will estendeu a mão para os sossegar. – John
Hobbes não é a Besta que o seu pai profetizou. Não tem intenção de
regressar ao plano espiritual depois de se manifestar. Apenas realiza o ritual
das oferendas para poder governar...
Jacob Call esbofeteou Will com força.
– A Besta exterminará os malvados. Lançará pragas e pestilência sobre
Sodoma e Gomorra. Os fiéis serão ungidos. – Abriu o colarinho da camisa
para mostrar duas marcas e Evie calculou que houvesse mais. – Seremos
conhecidos pelas nossas marcas e poupados. O nosso grande exército
erguer-se-á e lançará de novo a Besta para os fogos do inferno, onde o
escolhido ressuscitará e será glorificado! Erguer-se-á aos píncaros do céu e
sentar-se-á no conselho celestial com o pastor Algoode e esta terra será a
sua terra divina. Aleluia!
– Aleluia! – repetiram os fiéis.
– Como o mandarão embora depois de terminar o seu trabalho? E se a
Besta recusar ser vencida? Já pensaram nisso? E se, depois de conquistar
toda a terra, decidir que não quer desistir de a controlar?
– Foi ordenado. O caminho está prometido no Livro dos Irmãos. É a
vontade de Deus. Que nenhum homem impeça o que Deus pôs em
movimento.
– Aleluia!
Não havia maneira de convencer aquela gente. Evie sentia-lhes o ódio. A
convicção. Poderiam destruir o pendente e o fantasma de John Hobbes, mas
não conseguiriam matar o que se seguiria. O mundo era um tirano.
O rapaz murmurou umas palavras a Jacob que fitou Evie com os olhos
semicerrados.
– O que tens aí, Filha de Eva?
– Nada. – Evie continuava com a mão em que guardava o pendente atrás
das costas.
– A prostituta mente – disse o rapaz. Retirou a espingarda do ombro.
– Não acredito.
Evie olhou para Will, que acenou. Lentamente estendeu a mão e mostrou
o pendente.
– Ladrões. Idolatras. Fornicadores. Pecadores. Qual será o castigo para os
inimigos de Deus? – vociferou Jacob Call.
– Vão arder! – gritou um dos fiéis. Um archote passou de mão em mão
até chegar a um homem alto que lhe lançou fogo. A chama lançava sombras
macabras sobre os troncos das árvores, pálidos à luz da lua.
– Não podem fazer isso – disse Will, quando acenderam um segundo
archote. – Vão chamar a atenção da polícia.
Um dos homens à beira do círculo começou a balançar e a dizer coisas
ininteligíveis, com as mãos hirtas e espuma a formar-se-lhe aos cantos da
boca.
– Vão chamar as atenções antes de a Besta se erguer! Ele vai ficar
furioso! – continuou Will, desesperado.
Os archotes estavam acesos. Dois homens aproximaram-se da corda.
Jericho pegou na pá pronto para se defender.
– Calai os mentirosos! – ordenou Jacob Call. Os homens aproximaram-se
de Jericho que empunhou a pá, mantendo-os à distância.
– Deixem-nos partir e nunca mais voltamos – disse Will.
Mas os homens avançavam. Jericho movimentou a pá e o rapaz
empunhou a espingarda, pronto a disparar. Estavam encurralados.
Impotentes. O mundo tirano levaria a melhor, tal como acontecera no dia
em que o irmão fora despedaçado, sem que nada ficasse para ser enterrado e
tudo para o lamentarem. Deveriam estar todos mortos.
– O Senhor não tolera fraqueza nos escolhidos – gritou o rapaz e qualquer
coisa se quebrou dentro de Evie. O seu medo transformou-se em raiva.
Olhou para o rapaz presumido e arrogante, pronto a incendiar o mundo
inteiro para mostrar que tinha razão. Cuspiu-lhe para um olho.
– Então esse filho da mãe haveria de gostar de mim – gritou. Com um
movimento rápido, lançou o candeeiro para a sepultura pegando fogo ao
velho fato de lã de John Hobbes e incendiando o cadáver.
– Fujam! – gritou e dirigiu-se para o bosque a toda a pressa.
A ação e o imediato calor do incêndio paralisaram por momentos os
novos Irmãos fiéis que hesitaram, tentando decidir o que seria mais
importante: se salvar o corpo do seu amado patriarca ou persegui-los. Foi o
bastante para conseguirem um avanço.
– Por aqui! – gritou Evie correndo encosta abaixo numa direção que
esperava fosse correta, pois escurecera ainda mais, o que conferira ao
bosque uma uniformidade de aparência e cor, que tornava difícil saber onde
se encontravam. – Will, Jericho! – chamou.
– Estamos aqui! – respondeu Jericho, e ela viu a camisa dele à sua direita.
Correram juntos, Evie apertando o pendente na mão. Levantou-se vento
que lhes trazia o ruído de uma centena de vozes zangadas e a obrigou a
inclinar-se para prosseguir. O disparo de uma espingarda soou lá em cima
no monte. Um aviso.
– Onde... está... o carro?
– Por aqui! – Jericho arrastou-a atrás de si. Evie avistou o Ford escondido
nas árvores e correu para ele como para um salva-vidas.
Will abriu bruscamente a porta do carro e sentou-se ao volante,
procurando a alavanca com os dedos.
– Porque é que não pega? – vociferou.
– O motor está muito frio. Vai precisar da manivela – disse Evie.
– Jericho… a manivela – disse Will, sufocado.
– Vou oferecer-lhe um carro novo, juro que vou – prometeu Evie.
Jericho correu para a parte da frente do carro apoiando-se no capô para se
equilibrar. Com a outra chegou à manivela. Soou outro tiro.
– Jericho! Mete o polegar debaixo dos dedos, não vá a manivela saltar! –
gritou Evie. – Podes partir o braço!
Jericho acenou afirmativamente! Deu à manivela, uma, duas vezes. O
motor arrotou, tossiu e ficou de novo em silêncio. A luz intermitente dos
archotes avistava-se já por entre as árvores sombrias acima deles.
Depois imobilizaram-se momentaneamente no monte, como que
perdidos, hesitando entre incendiar ou iluminar o bosque. Jericho empurrou
de novo. Conforme Evie avisara, a alavanca soltou-se de repente e ele mal
teve tempo de saltar para trás para evitar magoar-se. O motor estremeceu e
acordou – ta-taquetá-taquetá-taquetá.
Ouviam-se os gritos vindos do monte. Os archotes, já resolutos, desciam
a encosta em ziguezague, deixando furiosos rastos de lume e fumo. O motor
estremeceu, ameaçando morrer de novo.
– Não! – gritou Evie, como se a sua repreensão pusesse o Dona Elvira em
movimento.
Com furiosa determinação, Will manobrou a alavanca e desta vez o motor
pegou com um ronronar decidido. Os archotes aproximavam-se. Evie
divisava já a forma da multidão, enquanto Jericho se aproximava do carro.
A espingarda disparou. Jericho recuou, chocando de encontro ao carro,
numa dança terrível.
– Jericho! – gritou Evie.
Jericho gemeu e caiu de joelhos.
– Acho que foi atingido!
– Não deixes o carro ir abaixo! – disse Will. Correu para Jericho e Evie
passou para trás do volante. O seu coração batia em uníssono com o motor
do Ford, obrigando-a a chorar como que para exorcizar o medo através das
lágrimas e da respiração entrecortada. A multidão aproximava-se.
Will arrastou Jericho para o assento de trás, enquanto Evie carregava no
acelerador, evitando afogar o motor.
– Que estás a fazer? – perguntou Will.
– Estou a conduzir! – O carro avançou com um solavanco, os pneus
espirrando pedrinhas e folhas enquanto o Ford avançava para a estrada de
terra.
Continuavam a ouvir-se disparos, mas Evie acelerou e quando chegaram
à estrada já iam bastante afastados da multidão.
Jericho gemia com a cabeça encostada ao assento de trás. Evie carregava
no acelerador, descrevendo a curva a uma velocidade incrível, com as rodas
traseiras a derrapar. O tio Will olhou do cimo do precipício e viu as luzes do
vale lá em baixo.
– Valha-me Deus! – exclamou.
– O meu pai é um concessionário! – gritou ela. – Já conduzi tudo o que
possa imaginar!
– Vê se consegues pôr-nos lá em baixo inteiros!
Evie descrevia as curvas apertadas, derrapando uma vez para evitar um
carro que subia o monte em sentido contrário. O Ford estremeceu sobre
duas rodas antes de cair de novo sobre as quatro. No assento de trás, Will
praguejava. Por fim, avistaram as luzes da cidade.
– Onde ficará o hospital neste fim de mundo? – gritou Evie, quando
chegaram aos solavancos, à rua principal.
– Leva-nos à estalagem – ordenou Will.
– Valha-me Deus, Will, ele levou um tiro! Precisa de um médico!
– Não podemos levá-lo ao hospital.
– Porque não? – Evie deu meia-volta.
– Digo-te mais tarde. – O rosto de Will tinha uma expressão séria. –
Confia em mim. Tratamos dele na estalagem. Presta atenção à estrada!
Evie teve vontade de gritar. Queria gritar com Will, pelo caso, pelos
Irmãos, por Jericho. Era uma loucura. Estava farta.
– Espero que tenha razão, Tito. – Com um solavanco, afastou o carro do
centro da cidade e dirigiu-se à estalagem.
– O que quer que eu faça, acompanha-me – disse Will, quando chegaram,
vestindo o seu sobretudo a Jericho e abotoando-o. Desapareceu lá dentro
para logo sair com dois homens que ajudaram a levantar Jericho e a levá-lo
para a sala da estalagem. Atrás da secretária da receção a mulher do
estalajadeiro olhava com ar reprovador o trio que arrastava para a sua
estalagem um homem praticamente inconsciente.
– Já te falei dos custos do pecado – disse o tio Will em voz alta, para que
a mulher ouvisse.
– O meu irmão – acrescentou Evie tentando parecer o mais envergonhada
e preocupada possível. Ainda tremia da provação por que passara. – O meu
pai esforça-se tanto.
– Os jovens de hoje – lamentou a senhora.
Assim que se viram dentro do quarto, o tio Will estendeu Jericho, quase
sem sentidos na cama e agradeceu aos homens com uma gorjeta. Evie
fechou a porta à chave enquanto Will lavava as mãos e despia o sobretudo a
Jericho. A jovem não conseguia perceber exatamente onde Jericho fora
atingido. Não se via sangue, embora a camisa, toda suja de terra e
manchada das ervas, estivesse completamente encharcada.
– Evie, preciso de ti – disse Will. – Abre a minha mala e tira de lá uma
pequena bolsa de cabedal com fecho de correr.
Evie encontrou a bolsa e entregou-a ao tio. Dentro dela havia quatro
pequenos frascos com um líquido azul, espesso e uma estranha seringa.
– O que é isso?
– Não tenho tempo para te explicar. Depressa antes que o corpo dele se
feche. Coloca o frasco na câmara da seringa.
Evie assim fez. Ouviu o som agudo do rasgar da camisa de Jericho.
Esforçava-se por compreender o que via. Por um momento, o mundo
abrandou no seu movimento e Evie tentava em vão perceber, mas sem o
conseguir. A bala deixara um buraco grande logo abaixo do coração de
Jericho. Por baixo da ferida havia uma espécie de maquinaria, um
complicado sistema de tubos e fios metálicos.
– Evie! – A voz de Will fez com que se concentrasse na sua tarefa. Will
retirou-lhe a seringa das mãos, batendo no vidro do frasco para fazer
eliminar as bolhas de ar do líquido azul.
– Não há tempo para o amarrarmos. A princípio vai ficar agitado.
Prepara-te.
– Não compreendo... – disse Evie, vendo horrorizada como o tio
mergulhava a seringa no peito de Jericho e puxava o êmbolo.
– Outro.
Evie preparou a seringa com o segundo frasco que Will administrou.
Jericho não se mexeu.
– Outra vez!
– Não. Precisamos de um médico!
– Eu disse, outra vez!
– Que diabo, Will – resmungou Evie, enquanto colocava a terceira
ampola.
Will preparava a seringa quando Jericho se levantou da cama com os
movimentos de quem está possuído. Uma expressão estranha no olhar,
procurando, como se não soubesse onde estava e quem eles eram. Estendeu
o braço esquerdo, derrubando o candeeiro da mesa de cabeceira. Com o
braço direito atingiu o queixo de Will, que caiu no chão, entontecido.
– Evie! Espeta a seringa. Já!
Evie deu um salto para a seringa e enfiou-a na perna de Jericho, logo se
afastando para um canto ao vê-lo rodopiar violentamente.
– Jericho… – murmurou Evie.
Ele cambaleou até ela, hesitou um ou dois segundos, caiu na cama e
apagou-se.
Evie continuava acocorada num canto.
– Ele…
Will tocou no queixo inchado e estremeceu de dor. Depois atirou-se para
cima da outra cama, exausto.
– Vai ficar bem. Deixa-o dormir.
Uma pancada forte na porta sobressaltou-os. Will cobriu Jericho com um
cobertor e Evie correu a abrir uma nesga da porta. O estalajadeiro e a
mulher tentavam ver o que se passava lá dentro, mas Evie não o permitiu.
– Mas que raio se passa aqui?
– O meu irmão caiu e partiu o candeeiro – disse Evie, ofegante. – O meu
pai pagará a despesa, claro.
– Este estabelecimento é para gente decente. Não quero aqui confusões. –
A mulher esticou o pescoço para espreitar por cima da cabeça de Evie.
– Claro. Tem toda a razão.
Evie fechou a porta e sentou-se na cama de Will a vê-lo suturar com toda
a habilidade a pele do peito de Jericho, que dormia agora como um anjo.
– O que havia nesse líquido?
– Trata-se de um soro especial. Não posso dizer-te muito mais.
O cérebro de Evie parecia não aguentar mais.
– O que é o Jericho?
– Uma experiência – respondeu Will, determinado, como um professor
que manda sair uma turma. Cortou o fio da sutura e arrumou os
instrumentos no estojo que continha a seringa e os tubos.
– Onde está o pendente?
No meio do caos, Evie esquecera-o completamente. Foi ao casaco e
retirou o asqueroso objeto para o entregar ao tio.
– Que fazemos com ele?
– Quando chegarmos ao museu, criamos um círculo protetor. Usamos o
que viste na página arrancada, prendemos o espírito no pendente e
destruímo-lo.
– Acha que dará resultado?
– Tenho de acreditar que sim.
– Quero que me fale do Jericho – insistiu Evie.
Will pegou num cigarro. Bateu-o no bolso do peito.
– Onde terá ido parar o meu isqueiro?
– O tio está sempre a perdê-lo. – Evie deu-lhe uma carteira de fósforos. –
E o Jericho?
Will acendeu o cigarro e lançou uma baforada de fumo.
– Creio que será melhor o Jericho contar-te. A história é dele e não
minha. – Fez uma pausa. – Evie, esta noite foste magnífica – disse,
estendendo-lhe a mão que ela ignorou. Se o tio se sentiu incomodado, não o
deu a entender.
– Creio que devido aos visitantes que tivemos esta noite, devemos sair
muito cedo. Antes do amanhecer – disse Will. – Devias ir descansar.
Evie abanou a cabeça.
– Vou ficar a vigiar o Jericho.
– Não é preciso. Ele fica bem.
– Vou ficar a vigiar.
– Não precis...
– Will! Alguém tem de vigiar! – Evie falava num tom simultaneamente
furioso e implorante, resumindo toda aquela noite na recusa de se afastar do
lado de Jericho.
Will acenou afirmativamente.
– Muito bem. Esta noite durmo no teu quarto.
Pouco depois, Evie ouviu-o do outro da parede fina, provavelmente
andando de um lado para o outro, a fumar.
Molhou uma toalha e limpou suavemente a terra e o soro da ferida de
Jericho. Depois, estendeu-se de lado na cama vazia de Will a observar o
peito de Jericho subir e descer. Vigiou-o enquanto foi capaz. Mas não
conseguiu combater a sua exaustão e caiu num sono inquieto e cheio de
sonhos.
LAMENTAÇÃO

A chuva forte açoitava as bancas fechadas e as silenciosas diversões do


passeio de Coney Island quando Mary White Blodgett acordou do nevoeiro
da morfina com o coração acelerado e sentindo que o mundo girava no seu
eixo com excessiva velocidade. Começou a chamar a filha, mas lembrou-se
de que Eleanor fora ao casino.
A dor invadia o braço de Mary. Como desejava ter mais morfina à mão.
Para conseguir aguentar as horas até à chegada da sua maldita filha, teria de
ocupar o espírito. Fechou os olhos e recordou-se dos seus tempos de mulher
importante.
Oh, fora a rainha dos bailes antes de casar, com uma infinidade de
pretendentes, o que não era vulgar numa jovem de meios tão modestos. Mas
fora Ethan White que lhe chamara a atenção. Era mais velho do que ela,
preocupado, exigente, nada romântico, mas com uma mão para os negócios
que lhe daria toda a segurança, e o casamento saíra nos jornais de
Poughkeesie para toda a gente ver. Fizera dinheiro com a especulação do
petróleo. Uma qualquer cidade poeirenta do Texas vomitara o ouro negro e
o dinheiro inundara a conta bancária dos White. Houvera caviar, uma casa a
norte da cidade e camarotes na ópera, espetáculo que Mary nem por isso
apreciava, mas a que assistia para que todos a vissem lá de casaco de peles
e coberta de joias, a Sr.ª Ethan White.
Tivera conhecimento da jovem de Lubbock. Tudo estaria bem se Ethan
tivesse querido mantê-la discretamente. Mas ela estava à espera de bebé e
Ethan criara repentinamente ideias de cavalheirismo romântico. Queria
abandonar Mary e ficar com a jovem. Mary ficara escandalizada. Nunca
mais se poderia sentar no seu imponente camarote no teatro da ópera,
espreitando a gentinha que a olhava invejosa. Olhá-la-iam com pena. Pena
que Mary White não suportava. Discutira com Ethan. Implorara até – Mary
nunca implorava e, até agora, com a cama molhada do suor da morfina,
apertava os lábios ao lembrar-se daquela desagradável recordação – mas ele
estava decidido. Iria falar com os advogados para tratar dos papéis. Ela
ficaria muito bem, desde que calasse a boca e não armasse confusões.
Mary não tinha a mínima intenção de ser objeto da maledicência.
Ethan tomava sempre um copo de xerez à noite para acalmar os nervos.
Mary pediu à criada que trouxesse o xerez, como de costume. Mary
adicionou à bebida o arsénico que tinham sempre à mão para os ratos do
campo que tentavam instalar-se na cave. Na escuridão do quarto, sentara-se
na sua cadeira de baloiço com um volume da poesia de John Donne,
enquanto o marido estrebuchava na cama, com a mão enclavinhada
estendida enquanto ela passava calmamente as páginas. Aos vinte e quatro
anos, Mary White tornou-se uma viúva muito rica. Guardou o véu de luto
juntamente com tudo o que tinha de valor e mudou-se para o Plaza Hotel de
Manhattan.
Um estrondo estranho acordou Mary das suas recordações e ficou
atentamente à escuta até chegar à conclusão de que era apenas o vento e a
chuva a açoitar a casa.
Tinha sido também numa noite de tempestade que conhecera Johnny.
Fora seis meses depois de ir ouvir a grande teosofista Madame Blavatsky
falar na Cooper Union. Mary sentira-se cativada pela dama russa, com as
suas ideias da humanidade em permanente evolução, da união com o divino
e o reino espiritual. Encontrou-se particularmente com essa grande mulher e
ofereceu-lhe donativos em troca de conhecimento.
– Conhecerá um homem que irá oferecer-lhe uma porta para o outro
mundo – disse-lhe Madame Blavatsky e, no dia seguinte, durante uma
enorme chuvada em que não tinha transporte, um homem imponente com
olhos azuis hipnotizantes ofereceu-lhe transporte. Chamava-se John Hobbes
e partilhava o seu fascínio pelo misticismo. Confessou ser descendente de
uma tribo sagrada chamada os Irmãos, preferidos de Deus, e ele fora
escolhido para cumprir a sua sagrada missão na terra. Mostrara-lhe
maravilhas inexplicáveis e conhecimentos que nunca sonhara possíveis.
Convertera-a à sua fé e prometera-lhe um caminho de luz, pois seria ela a
sua Senhora do Sol.
Foi esta sensação de destino, de vaidade, que juntou Mary e John.
Estavam acima de todas as regras. Existiam num plano superior e com um
objetivo mais elevado. Antes das suas aventuras no mundo espiritual, Mary
fora assaltada por dúvidas ocasionais acerca do que fizera a Ethan. Mas
com a ajuda de John viu que havia justiça, que se tratava de um plano
preordenado. Se não tivesse castigado Ethan pela sua maldade e não tivesse
herdado o seu dinheiro nunca teria ajudado John na sua missão. Por isso,
fora benéfico, certo e determinado ter matado o marido na cama, naquela
noite.
O chão de madeira rangeu dentro de casa, mas Mary só vagamente deu
por isso; perdera-se no seu devaneio. Lembrava-se de John lhe mostrar o
antigo livro com as onze oferendas, explicando-lhe o que deveria fazer. A
princípio admitira ter reservas. Medo, até. Mas ele beijara-a com doçura,
depois com fúria, impondo-se-lhe como ela tanto gostava, como desejava e
foi totalmente sua. John era um deus dourado. E ela, Mary White, a sua
sagrada consorte. A Besta erguer-se-ia. O mundo arderia e uma nova
sociedade surgiria das cinzas. Governariam o mundo como rei e rainha. Ela,
a pequena Mary White, que vinha do nada. E quando John percebeu que
seria levado, um sacrifício como outro menor realizado quase dois mil anos
antes, ela seguira as instruções dele, pagando aos guardas e a um motorista
para levar secretamente o corpo dele através das ruas empedradas de Nova
Iorque durante a noite. Enterrara-o nos montes, atrás das ruínas de uma
velha aldeia e, conforme o prometido, mantivera Knowles’ End afastado do
perigo das demolições ou de novos donos, pagando os impostos todos os
meses, mesmo tendo de gastar toda a sua fortuna e de viver numa espelunca
para poder fazê-lo. John fora muito explícito a esse respeito e, quando ela
lhe perguntara porquê, ele nunca respondera. Era um mistério que nunca
partilhara com ela.
As tábuas do chão rangeram ruidosamente.
– Quem é? Quem está aí? – Puxou os lençóis para o pescoço. – Sou uma
idosa! O que quer?
De novo, o chão rangeu. Não era o vento a brincar com as portadas. Era
lá dentro, sem sombra de dúvida. Oh! Porque dissera a Eleanor que podia
sair naquela noite?
O ranger terminara do outro lado da cortina. Mary sentia o sangue latejar-
lhe nos ouvidos.
– Quem… quem? – piava como um mocho.
A cortina abriu-se lentamente e a escuridão encheu-se de uma luz
dourada. Mary White soltou um pequeno grito de felicidade.
– Sabia que virias!
John Hobbes chegou-se aos pés da cama da velha. Não tinha camisa e ela
olhava para a tinta negra dos símbolos inscritos no brilho da sua pele.
Porque não a abraçava? Estaria tão velha que lhe causasse repulsa? Mas a
forma, o rosto dela, não passavam de uma concha; estavam unidos em
espírito. Em breve, John faria dela a sua rainha, a sua Dama do Sol! Voltara
para ela, como prometera.
– Fui fiel como te prometi. Mantive a casa velha.
Silêncio. Apenas o tap-tap-tap da chuva, o misterioso gemido do vento.
Os relâmpagos iluminavam o quarto e o perfil de John. Os olhos dele. Mas
havia qualquer coisa de estranho nesses olhos.
– Johnny. Johnny, meu amor… – Sentia as lágrimas aos cantos dos olhos.
– Há quanto tempo. Deixa-me olhar para ti.
Ele nada dizia. Mary zangou-se. Não respeitara o seu compromisso
durante todos aqueles anos?
– «Olhai e a Besta transformou-se em carne e falou com línguas de fogo e
os céus estremeceram ao ouvir o som.»
Mary White soltou um estrangulado grito de alegria. A voz dele! Depois
de tantos anos, ainda retumbante. Ainda magnífica.
– Sim, sim, meu amor… fala comigo, a tua humilde serva.
– Preciso que escrevas um recado, Mary.
– Sim, meu amor, tudo o que quiseres.
Como que por magia, apareceu um papel sob as suas mãos. E uma caneta.
Ele disse-lhe o que escrever, disse-lhe que guardasse o papel no bolso dela,
onde seria encontrado.
– Encontrado? Não compreendo, Johnny...
– «Na lamentação da viúva, as línguas foram silenciadas e os céus
abriram-se aos seus gritos...»
Não. Aquilo não estava certo. Não podia ser a décima oferenda. Quereria
dizer a décima primeira: o Casamento da Besta e da Mulher Vestida de Sol.
Ela era a sua Dama Sol. Unir-se-iam. Ela ficaria imortal, como ele.
Seriam...
– E assim foi feita a décima oferenda.
– John, John!
– Vê a minha nova forma e surpreende-te.
Todo o amor que anteriormente sentira transformou-se num gélido terror.
Ele emergia nas pulsações dos relâmpagos: Uma asa. Uma garra. Pontas
dos dentes afiadas como lâminas. E os olhos, os olhos ardentes,
insondáveis, as janelas da alma, mas não havia alma nesses inflamados
lagos gémeos. Neles, Mary viu a mentira da sua vida descrita como num
livro, a louca crença de que ela e outros poderiam escapar às consequências
deste mundo, poderiam fugir da morte. Essa era a mentira. A verdadeira
serpente do jardim.
E comerás o pó em todos os dias da tua vida...
– Olha para mim.
Mary White olhou e ficou assombrada sem conseguir afastar o olhar. Sem
conseguir impedir que o ar ficasse preso na sua garganta quando o grito que
queria soltar morreu antes de poder ter voz.
Na costa, o vento rodopiava, amontoando a areia em pequenos montes,
para logo os desfazer, espalhando os grãos. Os trabalhadores das diversões
guardavam as cartas e os dados. Um cão ladrava e foi recompensado com
os restos de um cachorro quente. A mulher barbuda suspirava à janela, o
seu amante atrasava-se. O globo do mundo girava e vacilava posto em
movimento por um dedo invisível. Uma fina capa de nuvens cinzentas
passava no céu da noite, a lua ocultava-se por trás delas, escondendo o rosto
desgostosa.
O SARGENTO LEONARD

Jericho sentou-se gemendo de dor. Estava magoado e sem camisa. A


cicatriz esbatida que lhe serpenteava no peito largo estava parcialmente
escondida por uma camada de pelos macios. Havia uma nova ferida – um
buraco cosido acima do músculo peitoral esquerdo – e Jericho recordava-se
de haver gente à sua volta nos bosques, recordava-se da arma que disparara
e do impacto. Calculou o que deveria ter acontecido e apercebeu-se com
grande horror que Evie já deveria saber de tudo. Ali estava ela, na outra
cama, a dormir vestida e calçada. Apercebera-se de que ela ficara com ele.
Descobrira tudo e decidira ficar.
Jericho ficou deitado de lado, a vê-la respirar a pouca distância dele. Não
era bonita a dormir; tinha a boca entreaberta e ressonava levemente, o que,
apesar de tudo o que acontecera o fez sorrir. A sonhar, Evie mexeu-se e
estendeu-se e ele desviou o olhar. Os primeiros raios da madrugada
penetraram através da janela. O pequeno relógio de metal sobre a mesa de
cabeceira mostrava que passavam dez minutos das cinco. Os olhos de Evie
estremeceram e abriram-se, e Jericho puxou rapidamente o lençol para tapar
as cicatrizes.
– Jericho? – inquiriu Evie ainda com voz sonolenta.
– Evie, o que aconteceu?
– Levaste um tiro. O Tito e eu trouxemos-te para aqui – disse, cautelosa.
– Jericho, o que há naqueles tubos azuis?
– Quantos tomei?
– Três.
– Eu… fiz-te mal? Ou ao Will?
– Não – mentiu. – Por favor, Jericho.
– Não compreenderias – disse ele em voz baixa.
– Por favor, deixa de me dizeres isso.
– Não mesmo.
– E não compreendo, a menos que me expliques.
– A paralisia infantil. Não houve milagre. Atacou-me exatamente como à
minha irmã. Primeiro as pernas, depois os braços e, por fim, os pulmões.
Meteram-me num caixão de metal e disseram-me que ficaria lá o resto da
vida. Encurralado. Nunca respiraria por mim próprio. Nunca mais andaria
ou montaria a cavalo. Nunca tocaria em ninguém. – O seu olhar deteve-se
na curva do corpo de Evie. – Nada mais faria senão olhar para o teto até
morrer. Depois da guerra, voltaram soldados sem braços nem pernas.
Homens destruídos. Andavam a testar uma inovação secreta: o programa
Daedalus... para ajudar os soldados.
– Que tipo de inovação?
Jericho respirou fundo.
– Uma mistura de homem e máquina. Um híbrido humano-autómato –
respondeu Jericho. – Substituiriam o que não tinha remédio, por ter ficado
danificado pela guerra ou por uma doença, por fios e rodas dentadas.
Seríamos o milagre perfeito da era industrial. Estás a olhar para o robotnik.
Evie desviou rapidamente o olhar.
– Eu... eu... lamento. Mas é fantástico. Só não compreendo... – Olhou de
novo para ele. – Por favor.
– Servimos de teste – continuou Jericho. – Não nos diziam nada, exceto
que a maquinaria substituiria as nossas peças danificadas e, com o tempo,
fundir-se-ia com os nossos sistemas humanos. Isto seria conseguido por
meio de um soro milagroso, os frascos do líquido azul e um tónico
vitamínico. Deveriam manter o equilíbrio entre as nossas duas partes.
Mudaríamos a humanidade, prometeram.
– Mas isso é espantoso. Porque não apareceu nos jornais? Porque não foi
a história mais importante depois de Moisés ter aparecido com os Dez
Mandamentos?
– Porque não deu resultado – disse Jericho amargamente.
– Mas... não compreendo.
– Disse-te que havia outros. – Jericho fez rolar na mão uma ampola vazia.
– Os seus corpos rejeitaram a fórmula, a maquinaria ou as duas coisas.
Passaram dias ou semanas e ficaram cheios de febre à medida que a
infeção avançava nos seus corpos destroçados, provando que, afinal, eram
muito humanos. Mas os que morreram tiveram muita sorte.
– Sorte? – perguntou Evie, incrédula.
A expressão de Jericho entristeceu-se.
– Alguns enlouqueceram. Viam coisas que lá não estavam, falavam
sozinhos. Faziam estranhas profecias. Ou tornavam-se violentos até que os
auxiliares tinham de os vir manietar e, mesmo assim, eram precisos vários
homens para os dominar. Os médicos davam-lhes calmantes até poderem
descobrir o que fazer. Vi-os definhar. Eram mandados para os manicómios e
lá morriam.
Jericho colocou a ampola na mesa de cabeceira. O frasco mantinha um
tom azulado.
– Havia um soldado na cama ao lado da minha, o sargento Barry Leonard,
de Topeka. Recordo-me de ele me dizer que se eu quisesse saber como era
Topeka deveria imaginar o inferno com um armazém de vendas a retalho. E
o armazém não tinha nada do que o que nós queríamos. Era um homem
engraçado.
Jericho sorriu de uma recordação só sua e depois ficou de novo sério.
– Voltara da guerra sem as duas pernas e um braço. Menos de metade de
um homem deitado naquela cama. As pessoas passavam por ele sem sequer
olhar. Era como se tivessem medo de, se o vissem, ser contagiados pela sua
má sorte. A dor dele era mais terrível do que a morte.
Evie dobrou o braço, encostou a cabeça a uma mão. Jericho sentou-se,
cobriu-se com o lençol, mas não antes de Evie lançar um olhar furtivo ao
peito dele – à suave penugem dourada, aos belos músculos, à antiga cicatriz
junto à mais recente feita pelo tio Will. Queria tocar-lhe e beijar-lhe o
centro do peito.
– Levaram-nos a ambos para o Daedalus, dizendo que éramos bons
candidatos. Fomos juntos. Antes de me anestesiarem, vi o sargento Leonard
a sorrir para mim. «Nunca aceites gato por lebre, rapaz», era o que
costumava dizer. – Jericho esboçou um pálido sorriso. – Ainda me lembro
de como foi mexer os dedos dos pés pela primeira vez depois de muitos
meses. Nem calculava que o dedo grande pudesse ser tão incrível. A
primeira vez que saí e senti o sol no rosto... – Abanou a cabeça. – Apetecia-
me levantar o braço e puxar o sol, segurá-lo como um balão que se recebe
no aniversário quando se é criança, e nunca o soltar. Uma semana depois,
eu conseguia correr. Corria quilómetros sem me cansar. O sargento Leonard
corria ao meu lado, desafiando-me a acompanhá-lo. Quando terminávamos,
dava-me uma palmada nas costas como um irmão. Dizia-me que éramos a
nova raça, o futuro. A maneira como o dizia, cheio de encanto e esperança...
– Jericho queria afastar a recordação. – Sentávamo-nos num banco do pátio,
vendo o Sol a pôr-se atrás dos montes, maravilhados com a sua constância.
Evie pensou que deveria dizer qualquer coisa, mas não se lembrou de
nada que não parecesse despropositado. Além do mais, Jericho falava com
ela, estava a contar-lhe a história que ela queria ouvir e ela não queria
quebrar o feitiço.
– Começou com a mão dele. – Jericho fez uma pausa, bebeu água do
copo de Evie e retomou a narrativa. – Um dia não conseguiu apertá-la.
Recordo-me perfeitamente desse momento. Voltou-se para mim e disse:
«Parece que a minha maldita mão está embriagada. Miúdo, por acaso não
me levaste a mão enquanto dormia para uma rapidinha, pois não?» – Disse
aquilo como se fosse uma piada. Mas percebi que estava assustado. Porém,
não disse aos médicos. Continuava a dizer-lhes que se sentia são como um
pero.
Jericho esticava a bainha do lençol entre os dedos, puxando-a com força e
depois soltando-a.
– Ficava mal-humorado, agitado. Uma vez, atirou uma travessa de batatas
de encontro a uma parede, fazendo nela um buraco. Tinha um olhar
assombrado. Pediu-me que fugisse com ele. Levou-me até lá fora. Não
podia ou não queria parar. Deixei-o ir, pois não me era possível acompanhá-
lo. Mais tarde, vi-o no pátio à chuva. Ali estava a deixar que a chuva o
molhasse. Corri a dizer-lhe que viesse para dentro e ele respondeu: «É
como se tivesse demasiado dentro de mim. Empurra-me, empurra-me e não
tenho para onde ir.» Consegui que entrasse e que se deitasse. Ouvi-o no
escuro, murmurando. «Por favor... por favor... por favor.» Enfim, uma noite
parecia ter enlouquecido. Despiu-se completamente e correu pelo hospital
como um macaco, balançando-se dos canos, partindo vidros. «Sou o
futuro!», gritava. Foram precisos quatro auxiliares para o apanharem e
atarem à cama. O médico veio e explicou que o processo se tornara instável.
Para bem dele teriam de o parar.
Jericho enterrou a cabeça nas mãos durante um minuto antes de continuar.
– Ele gritava, gritava: «Não podem fazer-me isto, sou um homem.»
Deram-lhe uma injeção qualquer para o acalmar, mas continuou a debater-
se, continuou a gritar que era um homem, que tinha os seus direitos, que só
precisava que lhe dessem uma oportunidade, uma desgraçada oportunidade.
Depois a droga começou a fazer efeito; debatia-se menos. Chorava, pedia,
implorava-lhes a eles e a Deus quando o levaram. – Jericho sacudiu a
cabeça lembrando-se de qualquer coisa para lá das palavras. – Reverteram o
processo, segundo ouvi. Pior ainda. Tiveram de lhe tirar o outro braço.
Tinha-se espalhado pelo corpo.
Jericho calou-se. Lá fora, ao frio, alguém tentava pôr um carro a
trabalhar. O motor protestou com um estremeção.
– Enforcou-se no duche com o próprio cinto.
– Oh! – exclamou Evie. – Que horror.
Jericho acenou mecanicamente.
– Nunca perceberam como o fez, sem ter braços nem pernas.
O carro pegou e ficaram à escuta do conforto do banal ronronar do motor
que estremeceu, parou, depois com um solavanco, pôs-se em marcha.
Jericho falava cada vez mais baixo, quase num murmúrio.
– Era tarde. Eu estava a dormir e acordei ao ouvi-lo chorar. A enfermaria
estava escura, só com a luz da secretária das enfermeiras. «Miúdo», disse-
me, e a voz dele... a voz dele parecia um fantasma. Como se uma parte dele
já tivesse morrido e tivesse vindo buscar o resto. «Miúdo, isto é pior que
Topeka.» Disse-me que uma vez, na guerra, encontrara um soldado alemão
com as entranhas de fora; ali estava, no chão, agonizante. O soldado erguera
os olhos para o sargento Leonard e, embora não falassem a mesma língua,
compreenderam-se através do olhar. O alemão deitado no chão, o
americano olhando-o. Meteu uma bala na testa do soldado. Não por raiva,
por ser um inimigo, mas porque era um homem como ele, «Um soldado a
ajudar um soldado», foi assim que explicou as coisas. – Jericho calou-se
mais uma vez. – Disse-me que precisava que eu o fizesse. Disse-me que não
tinha de o fazer. Disse-me que, se o fizesse, garantir-me-ia o perdão de
Deus, se era isso que me preocupava. Um soldado a ajudar um soldado.
Jericho calou-se. Evie, silenciosa, pensou que não aguentaria.
– Encontrei o cinto na cómoda e ajudei-o a sentar-se na cadeira de rodas.
O corredor estava em silêncio até à zona dos duches. Lembro-me que o
chão estava muito limpo, como um espelho. Tive de fazer outro furo no
cinto para lho apertar no pescoço. Mesmo sem braços e sem pernas era
pesado. Mas eu era forte. Um pouco antes olhou para mim e nunca
esquecerei o seu rosto, por muito que viva... como se se tivesse apercebido
de um grande segredo, mas tarde de mais. «Esta vida é um jogo de porcaria,
miúdo. Não deixes que te apanhem sem dares luta», disse-me.
Silêncio. Um cão ladrava ao longe. Um golpe de vento de encontro ao
vidro, tentando entrar.
– Depois, levei de volta a cadeira de rodas e deixei-a no mesmo local. A
seguir, meti-me debaixo dos cobertores e fingi dormir até de manhã quando
o encontraram. Depois adormeci e dormi doze horas.
Evie sentia a garganta seca, mas não queria estender o braço para chegar
ao copo de água. Engoliu para suavizar a garganta que lhe ardia, tentando
fazer o menos barulho possível e, momentos depois, Jericho continuou.
– Não sei se a história do soldado alemão era verdadeira, ou inventada
por ele para me convencer a ajudá-lo. Não importa. Nem o perdão de Deus.
Depois da morte do sargento Leonard, cancelaram o projeto Daedalus. Era
demasiado arriscado. Os médicos e cientistas queriam terminar também o
meu caso. Receavam o que pudesse acontecer comigo. Ter-me-iam metido
de novo naquele caixão de aço, mas o teu tio apareceu. Disse-me que me
levaria para casa para morrer com dignidade. Levou também um estojo com
soro. Para eles, Jericho Jones morreu há dez anos. Se o Will não me tivesse
recebido, estaria agora a olhar para o mesmo teto, sem nenhum soldado
para me ajudar.
Evie sentou-se.
– Mas curaram-te. Podes ser a pista para um avanço prodigioso.
– Curaram? – perguntou Jericho de mau modo. – Vivo cada dia a pensar
que alguma coisa pode correr mal e que voltarei para o caixão de ferro. Sou
o único da minha espécie. Metade homem, metade máquina. Um fenómeno.
– Não és um fenómeno.
– Nem sei o que sou – disse Jericho, olhando para Evie. – Também tu és
diferente.
– Parece que sim.
– Dois companheiros. – Jericho estendeu as mãos e tomou as de Evie.
Voltou-as com a palma para cima e passou os polegares pelo interior dos
pulsos delas. A suavidade da pele era um milagre. Jericho não sabia se
poderia funcionar como um homem normal. Apenas sabia que os seus
sentimentos eram os de um homem normal. Queria Evie. Desejava-a
desesperadamente. Com as suas mãos nas dela, imaginava o que seria beijá-
la, fazer amor com ela. Era um pouco mimada e, por vezes, egoísta, uma
jovem que gostava de se divertir, mas com rasgos de bondade. Corria para a
vida com toda a ousadia, enquanto Jericho se continha, sem se atrever. Evie
fazia-o sentir-se vivo e querer mais.
Uma forte pancada na porta fez Evie dar um salto. Receou que fosse o
estalajadeiro para os expulsar, mas era Will que estava lá fora, de chapéu na
cabeça e relógio aberto na mão. No céu já havia a luz acinzentada do nascer
do dia.
– Ah, ainda bem que estão levantados. O Sol vai nascer. São horas de
irmos, antes que os Irmãos venham à nossa procura.
O COMETA DE SALOMÃO

O carro de Will, muito sujo, atravessou o Sul do Bronx para entrar em


Upper Manhattan, e a cidade surgiu sob uma névoa de nuvens e fumo como
uma miragem de terra e aço. Evie estava exausta da provação em Brethren e
da noite de vigia a Jericho, ao ouvir a sua comovente confissão. Também se
sentia cheia de dúvidas pelo que começara a sentir por ele.
A imensa linha de edifícios de Manhattan passava pelas janelas do
automóvel enquanto Evie pensava nos perigos que haviam corrido em
Brethren. Mas tinham conseguido ultrapassá-los e agora tinham o pendente.
Nessa noite realizariam o ritual e expulsariam John Hobbes para sempre
deste mundo. Depois pediria a Will que lhe explicasse o significado de tudo
aquilo. Pedir-lhe-ia que lhe explicasse exatamente o que ela era e o que
devia fazer. Poisou a mão no seu próprio talismã e adormeceu.

Durante todo esse dia Evie sentiu-se dentro de uma bruma de nervos. O
museu nunca tinha tido tanta gente e parecia que a afluência tinha duplicado
devido à passagem do Cometa de Salomão. Toda a cidade fervilhava. O
Mayor Walker pedira aos habitantes de Nova Iorque que reduzissem a
iluminação, para que pudessem avistar o cometa na sua visita única sem o
brilho das luzes. Muitas pessoas tinham já transportado cadeiras e
almofadas e até colchões para os terraços de alcatrão dos telhados dos
prédios ou pequenas varandas. As lojas baratas esgotaram chapéus e apitos.
Os clubes noturnos anunciavam festas especiais à meia-noite e ofereciam
bebidas com o nome de Sensação de Salomão e Estrela Cadente. Havia até
um concurso de fatos de banho que prometia coroar uma Miss Cometa. Era
como se alguém fosse dar uma festa e tivesse convidado toda a Manhattan.
Porém, Evie não estava voltada para comemorações; se não fizessem
corretamente as coisas, John Hobbes poderia ter vindo para ficar e o inferno
com ele.
Quando o último visitante saíra do museu, Evie trancou as portas e ela,
Sam e Jericho reuniram-se na biblioteca. Eram sete horas. O cometa
passaria nos céus de Nova Iorque um minuto antes da meia-noite. Jericho
descansava no sofá, ainda fraco da provação da noite anterior.
– Sentes-te bem, Jericho? – perguntou Evie, algo tímida. – Precisas de
alguma coisa?
– Não, estou... ótimo, obrigado – disse tentando sorrir.
Sam observava-os de soslaio. Qualquer coisa acontecera em Brethren,
para além de terem encontrado o pendente e fugido aos fiéis. E Sam não
estava a gostar.
– Caramba, estou um farrapo de tantos nervos – disse Evie ligando a
telefonia. A Orquestra de Paul Whiteman tocava uma hora especial de hot
jazz dedicada ao «Velho Rei Salomão». As canções alegres pareciam
deslocadas em relação ao que teriam de fazer naquela noite.
– Há uma coisa que não percebo – disse Sam. – Porque não terá ele feito
ainda a décima oferenda. Pensam que esta noite fará as duas oferendas ao
mesmo tempo?
Evie mordeu uma unha. Era estranho.
– Não sei. Só sei é que se queimarmos o pendente esta noite e repetirmos
o encantamento nos livramos para sempre de John Hobbes.
Will entrou de repente na biblioteca com um saco.
– Tenho aqui tudo o que precisamos.
Entregou a Evie um bocado de giz e a Sam uma lata de sal.
– Evie, desenha um círculo grande no chão e, dentro dele, um
pentagrama. Sam, dá a volta ao perímetro da sala com o sal, por favor.
Ouviu-se uma pancada muito forte e insistente na porta do museu.
– Que se passará agora? – disse Evie. – Não se preocupem... vou dizer
que o museu está fechado esta noite.
Ficou admirada ao encontrar o detetive Malloy à porta. Não tinha
exatamente a sua habitual cara de poucos amigos. De facto poderia dizer-se
que vinha com uma expressão terrível. Evie sentiu um nó no estômago.
Ladeado por vários agentes, passou por ela a caminho da biblioteca. Will
empalideceu ao vê-los.
– Houve outro assassínio – disse Malloy. – Mary White Blodgett foi
encontrada em Coney dentro do Túnel do Amor. As mesmas marcas dos
outros. E tem a língua cortada.
– «Ao ver a Besta, a viúva soltou lamentações, até a sua língua ser
silenciada...» – disse Evie, em voz baixa.
– O Lamento da Viúva. A décima oferenda – disse Sam.
Will estava pálido e parecia indisposto.
– A filha da senhora Blodgett disse que, há dois dias, a mãe recebera a
visita de uma jovem. Disse que tinha feito todo o tipo de perguntas acerca
de John Hobbes – prosseguiu Malloy.
– É verdade – disse Will.
– Não pensaste em dizer-me nada, Fitz? – O detetive parecia zangado e
ofendido.
– Não pensei... não me pareceu relevante. Era apenas um palpite.
– Pagam-me para seguir os palpites – disse Malloy. – E disse-vos que se
afastassem do caso. E se eu preguntasse se têm a fivela do outro sapato de
Ruta Badowski no vosso museu, qual seria a resposta?
– Diria que isso é ridículo – respondeu Will.
Malloy acenou lentamente com a cabeça.
– Espero que tenhas razão. Importa-se que dê uma olhadela, professor?
A polícia já invadira o museu, esvaziando gavetas e abrindo armários.
Um agente quase deixou cair uma pequena estatueta e Will exclamou:
– Tenham cuidado com isso, por favor? Pois são artefactos bastante
preciosos.
Outro agente abriu a gaveta da secretária de Will e retirou a fivela do
sapato de Ruta Badowski.
– Está aqui, tal como dizia o recado.
– Como é que...? – Will ficou completamente imóvel, como se estivesse
pregado ao chão.
– Esperem um momento… que recado?
– Podes dizer-me como vieram parar ao museu as provas de um crime? –
Malloy nem pestanejou.
– Não sei, Terrence, juro – disse Will em voz baixa.
– E suponho que também não saibas como o teu isqueiro acabou no local
do crime. – O detetive Malloy mostrou o isqueiro que Will perdera.
As mãos de Will dirigiram-se imediatamente ao bolso do peito.
– Perdi-o há pouco e...
– Foi encontrado em casa de Mary White Blodgett.
– Fui eu que apanhei a fivela – confessou Sam. – Encontrei-a no porto e
pensei que poderia fazer um bom dinheiro com ela. Há fulanos macabros
que pagam por essas coisas.
– Sam, não – avisou-o Evie.
Ele esboçou um sorriso fraco.
– Tudo bem, boneca, ficamos empatados com os vinte dólares.
– Tens aqui um pessoal jeitoso, Fitz – disse Malloy. Observou a sala: o
pentagrama traçado a giz no chão. O sal não totalmente despejado. O
pendente.
– Que se passa aqui, Will?
– Se eu te disser, pensarás que estou louco.
– Se não me disseres aqui, vais dizer-me na esquadra! – vociferou Malloy.
– Não creio que te apercebas dos sarilhos em que estás metido, Fitz!
– Por favor, detetive Malloy, que recado encontrou? – insistiu Evie.
– Foi escrito pela senhora Blodgett antes de morrer e estava metido no
bolso do seu roupão. A filha confirmou ser a caligrafia da mãe. Acusa Will
de ser o assassino.
Will recuou.
– Como?
– Mas que coisa mais idiota! – exclamou Sam.
– Ela disse que encontraríamos provas no museu. Disse que lhe tinham
feito várias perguntas acerca dos assassínios, com a desculpa de
conseguirem coisas interessantes para o museu. – Os ombros enormes de
Malloy descaíram. Parecia ter envelhecido anos nos momentos em que
segurara a fivela partida do sapato de Ruta Badowski. – Senhor Fitzgerald,
terá de nos acompanhar à esquadra para responder a algumas perguntas.
Rapazes, já agora tragam também o ladrãozeco.
– Oh, ele é esperto, é muito, muito esperto – disse Will, mais para consigo
do que para qualquer outra pessoa. – Não veem? Sabia que estávamos
perto! Sabia! Obrigou-a a escrever o recado. Preparou-nos uma armadilha e
caímos nela, direitinhos.
– Oh, Tito, que vamos fazer?
– De que estão a falar?
– Terrence, vai parecer-te que enlouqueci completamente, mas garanto-te
que estou no meu perfeito juízo. O Assassino do Pentagrama não é um
copiador de crimes e certamente não sou eu. É o John Hobbes.
O rosto de Malloy parecia de pedra.
– O John Hobbes que morreu há cinquenta anos? Estás a dizer-me que um
morto cometeu estes crimes?
– Através de uma qualquer espécie de feitiçaria, o seu espírito
manifestou-se neste plano, sim. Sei que parece uma loucura...
– Mas é verdade! – Evie interrompeu-o. – Foi por isso que fomos a
Brethren, à sua campa secreta e desenterrámos o corpo dele. É por isso que
temos de destruir este pendente... para retirar o seu espírito deste mundo. E,
se não o fizermos antes da passagem do cometa, esta noite, estamos feitos.
Evie apercebeu-se de como pareciam ridículos. Os outros agentes
soltavam risinhos. Só Malloy não o fazia, parecendo francamente zangado.
– Sabes, Fritz, nunca imaginei que acreditasses nestas aldrabices que
vendes aqui no museu. Também nunca te imaginei como assassino. –
Voltou-se para os outros agentes. – Levem-no!
Os agentes rodearam Will e Sam e conduziram-nos para fora do museu.
– Assassínio. Profanação de sepulturas. Destruição de propriedade.
Roubo. E corrupção de menores... – Malloy afastou-se, mas não antes de
Evie poder escutar o tom de desagrado e cautela na sua voz. – Creio que
nunca conhecemos verdadeiramente uma pessoa, não é verdade?
Evie correu atrás deles, batendo com os calcanhares no chão de mármore.
– Por favor, detetive Malloy, não pode levá-lo! Esta noite temos de
impedir o John Hobbes. Vai atacar durante a passagem do Cometa de
Salomão e transformar-se na Besta. É a nossa última oportunidade!
– Minha querida, não sei o que ele lhe disse, mas não existem assassinos
fantasmas. E não existem fantasmas, ponto final. Não há nenhum papão,
nem uma Besta que cause o fim do mundo. Isso são contos de fadas. Mais
nada. Lamento. – No rosto de Malloy havia uma verdadeira expressão de
compaixão.
– Terrence, por favor, escuta-me... tens de o impedir antes que esta noite
ele faça a última oferenda – implorou Will enquanto os agentes o metiam no
banco de trás do carro da polícia.
– Se ele atacar esta noite, o senhor está salvo, professor – disse o
desdenhoso agente antes de fechar a porta.
Dentro do museu, Evie andava de um lado para o outro na biblioteca.
Jericho olhava-a.
– Como poderemos impedi-lo? Pensa, Evie, pensa.
– Levaram o pendente com eles.
– Terá de haver outra maneira. – Evie abriu o Livro dos Irmãos,
examinando cuidadosamente as páginas. Quando chegou à última, à décima
primeira oferenda, ficou a olhar. A Besta estava junto do corpo inclinado de
uma mulher, dando-lhe as mãos. Via-se um pequeno altar. Por cima deles, o
céu da noite ardia com o fogo do cometa.
– Por que razão teria ele pedido a Mary White para não se desfazer da
casa? – interrogou-se Evie.
– Precisava de um local para regressar – disse Jericho. – Precisava de um
local seguro.
– Mas deixou os cadáveres em locais muito públicos, por isso podia ter
ido para qualquer outro lado. Porquê nessa casa? O que haverá nela que lhe
faz falta? – Evie andava de novo de um lado para o outro.
– Estás a parecer-te com o teu tio – disse Jericho. – E estás a pôr-me um
pouco tonto.
– Desculpa. – Evie sentou-se à mesa comprida com as perigosas pilhas de
livros, a pensar. Pegou no diário de Ida Knowles. – A última entrada de Ida
Knowles foi feita presumivelmente antes de ir à cave. O que haveria lá em
baixo?
– A polícia encontrou apenas uma cave cheia de ossos.
– «Ungi a vossa carne e preparai as paredes das vossas casas…» – recitou
Evie. Lembrou-se do dia em que ela e Mabel havia ido a Knowles’ End.
Reparara numa grande chaminé na parte de fora da casa, mas não
conseguira encontrar a lareira correspondente no interior. Depois, na cave,
sentira uma corrente de ar.
De repente, Evie começou a andar de um lado para o outro da biblioteca,
metendo fósforos e lanternas nos bolsos.
– O que estás a fazer?
– Creio que há uma espécie de quarto secreto, um lugar especial para ele
e é aí que provavelmente esconderá aquilo que o mantém vivo. – Evie
olhou de soslaio para o relógio. Eram dez e meia. – Temos de nos
despachar, se quisermos chegar a tempo.
Jericho pôs-se de pé, mas estremeceu com a dor na ferida.
– Onde vamos?
– Não podemos esperar que o John Hobbes faça a sua última vítima.
Vamos combatê-lo. Vamos a Knowles’ End.
AS ENTRANHAS DA BESTA

Como se detém um fantasma? Como se corta o fio do mal quando este se


entreteceu no mundo? Estas perguntas pesavam no espírito de Evie
enquanto ela e Jericho conduziam o carro de Will pelas ruas cheias de
foliões prontos a dar as boas-vindas ao Cometa de Salomão. As jovens
modernas dançavam um improvisado cancã enquanto se dirigiam para a
festa seguinte. Mais à frente, um homem de andas cambaleava nas suas
longas pernas, impedindo o caminho. Pela janela, um homem embriagado,
com um chapéu de arlequim, soprou subitamente uma corneta de papel em
direção a Evie, sobressaltando-a e obrigando-a a soltar um grito.
– Apanhei-te! – exclamou e afastou-se a rir como um demónio.
Evie buzinou furiosamente ao homem das andas até ele se afastar. O
caminho abriu-se à frente do carro e ela continuou a buzinar como aviso.
Mais a norte as multidões rareavam. Por cima deles, as sombras da
grande jaula de metal que eram os carris elevados passavam pela capota do
Ford, luz, escuro, luz, escuro. Em breve seguiam pelas desoladas margens
do Hudson, com os faróis por única iluminação. Por fim chegaram à velha
casa Knowles. Sobranceira à rua parecia um deus esquecido com a lua cheia
e branca por trás.
Evie deslizou até à antiga porta de serviço por onde entrara da outra vez.
A porta abriu-se com um rangido enorme. A última vez que ali estivera fora
em plena luz de um dia de muito sol. Agora, na escuridão, todas as sombras
pareciam ameaçadoras. Evie acendeu a lanterna. O pálido raio de luz caiu
sobre uma geleira partida, um armário camiseiro, um lava-loiça. Iluminou a
forma corcunda de uma ratazana sobre a bancada. A ratazana espetou o
focinho pontiagudo para a luz, antes de saltar para a escuridão
reconfortante.
– Por aqui – disse Evie
Conduziu Jericho à despensa e tentou não pensar que John Hobbes
poderia estar dentro de um daqueles armários altos, pronto a saltar-lhes em
cima quando passassem. Apressou-se a chegar ao corredor que ligava a
cozinha ao resto da casa.
– Cuidado – murmurou Evie. – Há armadilhas em toda a parte.
Como havia muitas portas, Evie já não se lembrava qual delas levava à
cave. Certamente não queria descer da mesma forma que descera da outra
vez.
– O que poderá mantê-lo vivo? Qual será a sua ligação com este mundo?
– perguntou Jericho.
– Não sei, mas deve estar escondida algures nesta casa. Se for preciso
deito abaixo todas as paredes para a encontrar – disse Evie. – Que horas
são?
John pousou as latas de querosene e colocou o relógio debaixo da
lanterna de Evie.
– Onze e vinte.
– Não temos muito tempo.
A casa parecia-lhe diferente. Esforçava-se por perceber o que teria de
facto mudado. Viva. Acordada. Pronta. Eram as palavras que lhe vinham à
ideia como se a casa fosse um organismo vivo, um grande útero pronto para
um terrível nascimento. O feixe de luz iluminou o papel de parede
bolorento. As paredes estavam escorregadias de condensação. O suor
também escorria pelas costas de Evie. O frio da última visita fora
substituído por um calor quase sufocante. Abriu uma porta e encontrou
apenas um armário baixo. O interior da porta estava húmido.
Experimentaram outras portas e encontraram um quarto, um escritório e
uma casa de banho.
– Porque não conseguiremos encontrá-la? – perguntou Evie. – Não
percebo porque não consigo encontrar a entrada. Já lá estive. É quase
como... – É quase como se a casa a escondesse de nós, esteve para dizer. –
Vamos continuar à procura. Com certeza estou a fazer confusão. Há uma
sala à direita.
Chegaram à sala, mas as portas corrediças estavam fechadas.
– Da outra vez estavam abertas.
Abriram-nas com algum esforço. A lanterna de Jericho moveu-se
lentamente pelo aposento. Os lençóis tinham sido retirados de cima da
mobília.
– Da outra vez não estava assim – murmurou Evie.
– Parece que isto estava à nossa espera – disse Jericho também em
surdina.
– Porque disseste «isto»? – perguntou Evie. Jericho não respondeu, mas
ambos o sentiam... aquilo, a casa. A casa estava à espera.
A luz da lanterna trepava pelas paredes. Estas pareciam arquear-se
ligeiramente para fora. Como pulmões, a respirar, pensou, mas logo afastou
o pensamento. Era difícil ver o que quer que fosse naquela escuridão. O
feixe de luz de Evie dirigiu-se ao espelho quebrado, cegando-a com o
reflexo. Pestanejou, e quase poderia jurar que vira rostos sombrios e
fantasmagóricos. Sufocada, virou a luz, mas nada havia atrás dela. A casa
gemeu e estalou.
– Não gosto disto – disse Jericho.
– Que alternativa temos? Se não o detivermos esta noite, vai manifestar-
se completamente. E depois não poderemos combatê-lo.
– Mas já não temos o pendente. Como vamos… – Baixou a voz como se
a casa o estivesse a ouvir. – Como vamos prender-lhe o espírito?
– Encontraremos qualquer outra coisa – murmurou Evie. – Ou deitamos
fogo à casa, se for preciso.
Jericho movimentou a mão para cima e para baixo.
– Estás a ver aquela luz? – Seguiu o feixe até uma roseta gravada na
lareira. – Creio que haverá alguma coisa por trás disto. – Aproximou o rosto
para tentar ver.
– Jericho, não! – gritou subitamente Evie.
Um golpe de ar poeirento atingiu o rosto de Jericho. Este tossiu, cuspiu e
abanou-se. Tinha um cheiro doce e enjoativo, como a flores mortas. Jericho
pestanejou e abanou a cabeça.
– Sentes-te bem?
– Sim. Estou bem – disse com voz vacilante.
A lareira acendeu-se e ganhou vida, obrigando Evie e Jericho a darem um
salto para trás.
– Ele sabe que estamos aqui – murmurou Evie.
– Como pode saber?
– Penso... penso que é a casa que lhe diz. Temos de nos despachar. Que
horas são?
– Onze e vinte.
– Disseste o mesmo da última vez que te perguntei.
Jericho observou o relógio à luz da lanterna de Evie. O ponteiro dos
minutos não se mexia.
– Não trabalha. Trabalhava bem antes de termos…
Entrado na casa. Não era preciso dizer mais.
– Isto não me agrada – murmurou Jericho, limpando as gotas de suor da
testa. Tinha os olhos um pouco vítreos, por isso Evie desejava que ele não
tivesse perdido as forças. – Pensas que seja o que for que o mantém vivo
está escondido algures dentro desta casa?
Evie acenou afirmativamente.
– Então, na minha opinião não devemos perder mais tempo. Vamos
incendiá-la. Incendiá-la e fugir.
O vento soprava de encontro à casa, fazendo-a gemer. Will fora muito
claro quando dissera que precisavam de acabar com o fantasma de John
Hobbes nos seus próprios termos: deviam ligá-lo ao pendente e queimá-lo.
Mas a polícia tinha o pendente e Will estava preso. Evie e Jericho teriam de
resolver o assunto.
– Incendiá-la e fugir – concordou Evie. Agarrou numa lata de querosene.
A casa era muito grande para espalhar o combustível. – Temos de a
incendiar completamente. Eu vou lá acima e tu tratas aqui da parte de baixo.
Jericho abanou a cabeça.
– Não sais da minha vista.
– Jericho, sê razoável.
– Não. Ficamos juntos.
– Então ao trabalho.
Andaram rapidamente de quarto em quarto, espalhando querosene sobre
tudo o que pudesse arder. Evie subiu ao quarto no sótão que pertencera a
Ida Knowles. Através de uma fenda nas tábuas pregadas na janela, viu a
cidade ao longe. As pessoas andavam na rua, a divertir-se, a dançar, a
celebrar a passagem do cometa, sem ideia do que aquilo significava. Do rés
do chão vinha o som leve e triste de uma música. Pareciam vagamente
vozes a cantar um hino. Fez um gesto para que Jericho deixasse de espalhar
o querosene e ficasse em silêncio, mas deixou de ouvir.
– Apressemo-nos – disse. Quando desciam as escadas um degrau cedeu, e
Jericho quase caiu. Evie teve de o puxar para conseguir que se pusesse de
pé. Voltaram ao salão de baile e Evie soltou uma exclamação sufocada. As
cadeiras estavam dispostas em círculo, como acontecera em Brethren.
– Jericho – murmurou Evie, recuando e saindo da sala.
– John Perverso, John Perverso trabalha com o avental posto – cantou
Jericho a rir.
– Jericho, isso não tem graça.
Ele fez um sorriso estranho.
– Ouves a música?
Evie inclinou a cabeça, à escuta, mas nada ouviu, exceto os gemidos e os
rangidos da velha casa.
– Não.
– Parece uma festa! – Jericho sorriu feliz. – Vamos dançar. Adoras
dançar, não é verdade, Evie? – Puxou-a para os seus braços, fazendo-a girar
com tanta força que a entonteceu.
– Jericho, que se passa contigo? – perguntou Evie e depois lembrou-se: a
baforada de pó da roseta. As poderosas plantas que os Irmãos usavam para
fazer vinho e cigarros. Jericho estava agora sob o seu efeito.
– Sempre quis dançar contigo – murmurou, encostando o nariz ao
pescoço dela. – Tenho-te observado, sabes? Quando pensavas que ninguém
estava a olhar. – Encostou a boca ao ouvido dela. O seu hálito era quente e
fazia-lhe cócegas na pele. – Pensava em ti à noite. Em tantas noites...
Tinha de o tirar dali e mais nada. Subestimara a casa. Era coconspiradora
do formidável John Hobbes. Faria tudo para o proteger.
– Então dançamos – disse Evie soltando-se de Jericho. – Mas aqui não.
– Aqui sim – disse ele, puxando-a de novo e encostando-a a si. Evie podia
jurar que as paredes tinham suspirado e que ouvia um riso horrível vindo de
algures.
– Conheço um lugar melhor! Por aqui – disse Evie arrastando Jericho em
direção à cozinha. Tinha de o obrigar a sair para apanhar ar fresco. Depois
podia atirar um fósforo à casa e fugir com Jericho para o mais longe
possível.
– Onde me levas? – perguntou ele com ar sonhador.
– Já estamos quase – disse Evie e embora tentasse parecer despreocupada,
tinha a voz entrecortada. Como se tivesse adivinhado o seu plano, a porta
bateu com força.
– Não! – Evie agarrou o puxador com toda a força, mas este não se
mexeu, nem sequer quando ela se atirou várias vezes de encontro à porta.
Estavam encurralados. A casa não queria deixá-los sair.
Jericho segurou-lhe na mão.
– Dança comigo – disse em voz rouca.
– Jericho, temos de sair daqui. Já. Compreendes?
– Só compreendo que te quero.
O cheiro a querosene era intenso. Não levaria muito tempo a transformar
tudo aquilo numa bola de fogo com os dois lá dentro. Muito bem. Se não
podiam sair desta maneira, Evie tentaria outra – arrancando as portadas das
janelas, arrancando a fechadura com uma cadeira, o que fosse preciso para
saírem dali.
Evie agarrou na mão que Jericho lhe estendia e arrastou-o atrás de si. Ele
ria; o som das gargalhadas arrepiava-lhe a espinha, fazendo com que ela
quisesse fugir e deixar tudo para atrás – incluindo ele. Chegava à porta da
frente quando ouviu qualquer coisa lá fora. Viria alguém a subir a rua? Se
gritasse, ouvi-la-iam? Correu às janelas por cima da porta da frente, pronta
a retirar a madeira com as mãos se necessário fosse.
Um assobio. A pessoa que subia a rua vinha a assobiar a melodia familiar.
Sentiu os braços cheios de pele de galinha.
– Ele vem aí. Temos de nos esconder.
Olhando para todos os lados, girando no aposento como uma louca, Evie
procurava um lugar. Onde poderiam esconder-se? E se agora John Perverso
estivesse de volta a casa, trazendo consigo a sua última oferenda?
Conseguiria ela ficar à espera, escondida, para atacar antes que ele pudesse
terminar a sua macabra tarefa? Bastar-lhe-ia esperá-lo e atacar antes da
passagem do cometa. Então tudo terminaria para John Hobbes. Fá-lo-ia.
Teria de o fazer. Mas esconder-se onde? O feixe de luz da lanterna de Evie
passava pelas paredes brilhantes de cal pastosa.
O assobio aproximava-se.
– Não os ouves? – murmurou Jericho. – Estão aqui. Estão à espera.
Jericho. Tinha de o calar. Havia uma pequena sala à esquerda. Evie
empurrou-o para lá.
– Vai para aí – disse. Jericho fez girar o puxador da porta e o chão deu de
si. Ele desapareceu na escuridão.
– Jericho! Jericho! – gritou Evie para o buraco negro no chão. Não houve
resposta. Iria o alçapão dar à cave, como a conduta? Estaria ele lá em baixo,
no chão sujo, com uma perna partida ou a cabeça rachada? Correu de novo
para o grande vestíbulo, à escuta. O assobio calara-se. Tinha o coração tão
acelerado de encontro às costelas que pensou que elas quebrariam com a
pressão. Tinha a garganta tão seca que não conseguia engolir. Mexe-te, Evie,
disse a si própria, mas estava paralisada de medo. O desespero imobilizava-
a ali mesmo. Como poderia vencer aquela batalha contra um mal tão
inominável? Se desistisse agora, tudo terminaria rapidamente e não estaria
presente quando o mundo ardesse. A casa suspirou e ronronou em volta
dela, como se murmurasse a sua concordância.
Depois, de repente, viu: debaixo da escada havia uma porta que não
estivera lá antes. Estava brilhante com um brilho molhado, como um osso
no escuro.
– Jericho! – chamou de novo. – Já vou ter contigo. Não te mexas.
A casa inspirou e susteve o ar. Uma sombra passou pelas janelas da
frente, rápida como a asa de um pássaro. Ele estava em casa. Sufocada,
Evie correu para a porta da cave. O puxador girou com toda a facilidade e a
porta abriu-se. Não podia ir senão para baixo, para as profundezas do
campo de morte de John Perverso.
Nas escadas havia uma escuridão total. Evie fazia deslizar as palmas das
mãos pelas paredes e tateava a beira de cada degrau. O estuque estava
quente ao toque, húmido e pegajoso. O coração batia acelerado como o de
um pássaro; sentia na cabeça o latejar da pulsação. A casa ficara de novo
silenciosa e ela achava-a ainda mais assustadora do que com o assobio.
Esperava que Jericho não estivesse ferido. Obrigou-se a continuar até
chegar por fim ao chão da cave. Estava insuportavelmente quente, o chão
de terra parecia mole debaixo dos pés dela. Aquecia-lhe as solas dos
sapatos, obrigando-a a caminhar. Evie dava pequenos passos cautelosos.
Por onde deveria ir? Onde estaria John Hobbes. Deveria acender a lanterna,
ou seria melhor ir a coberto das trevas? O que haveria ali na escuridão vasta
e desconhecida?
As paredes respiravam. Oh, meu Deus. Ela ouvia-as! Não podia tolerar
mais a escuridão. Tremendo, carregou no botão da lanterna.
Algures, lá em cima, ouviu o assobio suave e agudo de uma canção de
embalar. Mas aquela canção não seria ouvida num quarto de crianças.
A voz de John Hobbes soou.
– «O Senhor falou com as línguas de mil anjos. Restava apenas a décima
primeira oferenda, o Casamento da Besta e da Mulher Vestida de Sol… sei
que estás aí, Senhora Sol. Sinto-te.»
O espírito de Evie esforçava-se por compreender. Ele chamara-lhe a sua
Senhora Sol. Sua. Senhora Sol. A Mulher Vestida de Sol. John Perverso
estava em casa. Estava em casa e pronto para completar a sua
transformação. Andava à procura dela – dela! Evie obrigou-se a continuar,
balançando a luz da lanterna pelo aposento, à procura de Jericho. Desejava
estar muito longe dali – num clube noturno ou no Bennington ou até na
enfadonha biblioteca do museu. Fora tão idiota em pensar que poderia
acabar com um assassino, um fantasma, a própria Besta.
Lá em cima, o assobio parou, mas logo se ouviu a canção.
– John Perverso, John Perverso trabalha com o avental posto. Corta-te o
pescoço, leva-te os ossos e vende-os por uma mão-cheia de pedras…
O medo encurtou o raciocínio de Evie tornando-o praticamente inútil.
Tinha de sair dali. De fugir. Correu para os frágeis degraus. Não se
importava... arriscava. Queria subir e sair dali. Pedir socorro. Gritar tanto
que toda a cidade de Nova Iorque acudiria. Mas não... Jericho. Primeiro
tinha de encontrar Jericho. Talvez tivesse caído e encontrado uma saída.
Dizia-o a si própria enquanto obrigava as pernas a mexer. Ora, talvez
naquele momento estivesse a pedir socorro e a qualquer instante a porta
seria arrombada e um grupo de polícias entraria naquela toca infame. Sim, a
qualquer momento, ouviria a voz de Jericho a gritar o seu nome: «Evie!
Evie! Estás salva. Sai!» Perdida no seu medo, Evie começou a rir e tapou a
boca com a mão.
Acima da sua cabeça os soalhos de madeira rangiam, os batimentos do
seu coração duplicaram. Mesmo com a humidade do aposento, sentia a
garganta seca como giz e engasgou-se. Lá em cima os passos batiam com
uma intensidade contrária aos batimentos do seu coração. Tump. Tump.
Tump. Tump. As sombras de dois sapatos apareceram ao longo da fina greta
por baixo da porta no cimo das escadas.
O cérebro de Evie disparava impressões e ordens de uma só palavra: Ele.
Aqui. Esconder. Onde? Vai. Já. Onde? Vou. Vou. Descer. Esconder. Onde?
Recordou-se da corrente de ar que sentira quando estivera na casa com
Mabel, correu então para a cave escura e ergueu a mão, na esperança de a
encontrar outra vez. Uma corrente de ar frio beijou-lhe a palma da mão.
Seguiu-a até à parede oposta atrás da fornalha. Provavelmente não
encontraria a porta escondida se não tivesse erguido a mão e sentido a
fenda. Apalpou a saliência e sufocou um soluço quando não conseguiu
descobrir fechadura, maçaneta ou puxador para entrar.
A porta da cave gemeu ao abrir-se. Ouviam-se agora passos na escada.
Depois a porta diante dela abriu-se por vontade própria. A luz brilhou do
interior. O luar, apercebeu-se Evie. Era uma saída. Tinha de ser uma saída.
Evie atravessou um vestíbulo estreito, que parecia abrir-se para uma
câmara maior. Apercebeu-se de que a luz vinha de uma abertura lá em cima,
uma pequena janela que parecia dar para o céu da noite. A chaminé que
faltava, pensou e estremeceu. O aposento não tinha janelas, nem porta a não
ser o corredor de entrada. Tinha uma forma estranha, em estrela. Num canto
via-se um antigo braseiro de ferro. Um pentagrama pintado ocupava o
centro do chão. Um altar enorme com um cometa gravado fora colocado no
próprio centro do pentagrama. Ela voltou-se lentamente para poder observar
todo o aposento. As paredes tinham símbolos pintados – um símbolo para
cada uma das onze oferendas, para cada um dos assassínios.
Sentiu um frio terrível invadi-la. Como podia ter sido tão estúpida?
Quantas vezes ouvira a frase sem lhe dar importância? Encontrava-se no
Livro dos Irmãos e no diário de Ida Knowles. Ouvira o pastor Knowles
pronunciá-la quando estivera em transe. Os novos discípulos dos Irmãos
tinham-na pregado à entrada da feira. As casas em ruínas do antigo
acampamento no monte haviam sido pintadas exatamente com os mesmos
símbolos.
Preparai as paredes das vossas casas…
Não era um pendente, um livro ou qualquer outro objeto que mantinha
vivo John Hobbes. Era um local. Um aposento. Aquele aposento.
O Livros dos Irmãos estava sobre o altar, aberto na página da décima
primeira oferenda. Evie olhou para o desenho de uma bela jovem
envergando um cintilante vestido de ouro, com um olho pintado na testa e
as mãos abertas. Tinha o peito aberto e o coração nas mãos da Besta.
Era então aquela a sua verdadeira toca. A razão por que obrigara Mary
White a manter a casa pronta para ele. E ela entrara exatamente nas
entranhas da Besta. Teria de sair dali imediatamente. Se necessário fosse
lançaria um fósforo e devolveria John Perverso ao inferno a que ele
pertencia.
Ouvia-o cantar no fundo da cave:
– John Perverso, John Perverso trabalha com o avental posto.
Os dedos de Evie procuravam os fósforos no bolso. Sim, lançaria um
fósforo e fugiria. O pânico toldava-lhe os pensamentos. Estava desesperada.
Encolheu-se como um animal que sabe que vai ser encurralado por um
lobo.
Não desmaies, não desmaies, não desmaies, faças o que fizeres, não
desmaies, mulher...
O lobo chegara à sua porta. A sombra dele entrava no aposento,
invadindo-o. Com dedos trémulos, Evie acendeu o fósforo e lançou-o
contra a sombra e o ar, ficando a ver a chama desfazer-se em fumo.
Acendeu outro, já sem raciocinar, reduzindo a carteira de fósforos a
pequenos pedaços. Apesar dos avisos dela, o espírito de Evie não cooperou.
Revirou os olhos e caiu no chão, inconsciente.
A MULHER VESTIDA DE SOL

Estrelas. Foi o que Evie viu. Sobre ela, o céu cor de tinta cintilava com a
falsa esperança das estrelas. Doía-lhe a cabeça, pois batera com ela no chão.
A boca sabia-lhe a sangue.
– Ah, estás a acordada – disse a voz. – Ainda bem.
A visão de Evie ficou por momentos ofuscada, mas logo se concentrou na
figura de John Hobbes. Era um homem grande, de farto bigode. Despira a
camisa e ela pôde ver as marcas que lhe cobriam o tronco, as costas e os
braços, transformando o corpo dele numa tapeçaria de pesadelo. Ungi a
vossa carne…
Os olhos eram os mesmos que Evie já vira: frios e azuis.
– Foi muita bondade tua vires ter comigo. Poupaste-me o trabalho de te ir
buscar. – Cintilava diante dela como cera de uma vela, instável, mas com
capacidade para arder.
– Jericho! – gritou Evie. – Jericho!
John Perverso sorriu.
– Presentemente o teu companheiro não se encontra bem – declarou e
Evie receou perguntar-lhe o que queria aquilo dizer.
Evie sentou-se, admirada de o poder fazer com tanta facilidade.
– De que serviria prender-te? – perguntou como se lhe lesse os
pensamentos.
Evie estava paralisada de medo.
– Porquê? – perguntou. Foi tudo o que conseguiu, o terror reduzia-lhe as
palavras.
– Porquê? – repetiu John Hobbes, como se ela fosse uma criança
insolente e ele o seu enfadado, mas paciente professor. – Porque haveria eu
de deixar continuar este mundo cheio de pecado e vício e de todos os tipos
de corrupção? Necessita de ser governado por um novo senhor, Senhora
Sol.
– Não s...sou a s...sua Senhora Sol.
John Hobbes puxou do pequeno quadrado de brocado dourado do casaco
dela.
– A Mulher Vestida de Sol.
Sorriu, fazendo com que Evie sentisse o sangue latejar-lhe na cabeça.
Olhava para todos os lado na sala, procurando maneira de fugir, tentando
divisar o que lhe poderia ser útil. Sentiu o coração acelerado quando se
apercebeu de que a porta estava levemente entreaberta. Avançou depressa,
mas como se se apercebesse do seu plano, a porta fechou-se antes de lá
poder chegar. Bateu-lhe com os punhos.
– «E o Senhor disse, que a Besta se una à Mulher Vestida de Sol. Ungi a
vossa carne com a sua.»
John Hobbes caminhava calmamente em direção ao pequeno braseiro.
Dele saíam vários ferros, com os símbolos incandescentes sobre as brasas.
– Eu… eu... – O medo sufocava-lhe as palavras na garganta.
Evie, pensa, mulher. Tencionava incendiar a casa com John Perverso lá
dentro, mas o plano gorara-se. Precisava de um novo plano. Will dissera
que seria necessário ligar o espírito dele a um objeto sagrado, como o
pendente, depois dizer as palavras e destruir o objeto. Mas o que teria ela à
sua disposição? Procurava de novo, aflita, um objeto que pudesse usar.
– Esta sala é a sua força, não é verdade? «Preparai as paredes das vossas
casas.» Não é o que diz? O que acontecerá se eu destruir estas paredes?
Como se poderá manifestar? – perguntou ela, sondando-o.
– Tarde de mais. O cometa está prestes a passar. Dentro de três minutos.
Vais ser a minha noiva e o teu coração assegurará a minha imortalidade. E
tu viverás para sempre como os fiéis, meus Irmãos.
As paredes cintilavam junto de Evie. Curvavam-se como uma membrana
e ela via rostos e mãos lá encostados. Evie recuou na direção do altar
enquanto os corpos dos falecidos Irmãos enchiam o aposento – cadáveres
vivos com a pele a suar sangue, queimada até ao osso em certos pontos.
Rostos esqueléticos sem olhos. Bocas arrancadas. Os fiéis. Os malditos.
Prontos para o sacrifício final, a última oferenda. Não se deteriam até o
coração de Evie lhe ser arrancado do peito e a Besta se transformar num
todo.
– Estão aqui comigo. Os Irmãos escolhidos, sacrificados na primeira das
onze oferendas. Para agradar ao Senhor!
O vento parecia rodopiar sobre os Irmãos que respondiam:
– Ámen, ámen, ámen…
– Exigem um tributo pelo seu sacrifício. E recebê-lo-ão.
Os Irmãos mortos aproximavam-se dela. Vinham buscá-la. Evie correu à
frente de John Hobbes e retirou um ferro das brasas. Queimou-lhe a mão e
teve de o largar com um grito. Envolveu a pega do ferro na bainha da blusa
e segurou-o de novo, erguendo-o na sua frente. A mão tremia-lhe com
violência.
– Neste vaso, p...prendo o teu espírito. Dentro do f...fogo, eu... eu...
Não se recordava das palavras.
O riso de John Hobbes borbulhava com a crueldade de uma criança
encantada com o poder de esmagar um inseto com a sua bota.
– Tem de ser uma relíquia sagrada! Só um objeto abençoado pode conter
o espírito.
– Jericho! – gritou de novo Evie, embora soubesse que não valia a pena.
Lançou o ferro contra as paredes, fazendo-o ressaltar pelo chão.
– Não importa. Posso ungir a tua carne quando estiveres morta.
Evie pousou a mão no peito, como se fosse o bastante para impedir que a
Besta e os fiéis lhe arrancassem o coração. Os seus dedos tocaram na
moeda de meio dólar e agarrou-se a ela como uma criança assustada.
Tendo retomado o poder da fala, os Irmãos mortos abriram as bocas num
alvoroço coletivo que arrepiou Evie. As suas mandíbulas deslocadas
vomitavam uma substância negra e oleosa que corria pelo chão como um
rio de serpentes. Trepava pelas pernas de John Hobbes juntando-se às
marcas da sua pele. Cobria-o como uma armadura para ser absorvida por
ele.
– Olha para o meu corpo e assombra-te!
Estendeu os braços, lançou a cabeça para trás e soltou um grito que tanto
poderia ser de agonia como de êxtase. A pele rompeu-se como se alguma
coisa tentasse quebrar-se de dentro. Evie via com horror o rosto de John
Hobbes contorcer-se. A boca curvava-se-lhe num esgar cruel. Os dentes
cresciam em forma de lâmina e saíam-lhe garras das pontas dos dedos.
Brotaram-lhe nas costas duas asas enormes, brancas como a lã de um
cordeiro. O aposento encheu-se de luz. Manifestava-se diante dela
transformando-se numa coisa terrivelmente bela. Evie sentiu os olhos
doridos ao fitá-lo. Para ficar completo, apenas precisava do coração de
Evie.
– O Senhor não tolera fraqueza nos seus escolhidos! – disse a Besta. A
sua voz era, como mil vozes falando ao mesmo tempo, uma sinfonia
demoníaca.
Por momentos, Evie perdeu todo o desejo de lutar. Não podia lutar contra
um mal tão grande, tão perfeito. Apenas poderia submeter-se. Que
acontecesse e terminasse. O céu da noite começou a clarear por entre a
pequena abertura: o Cometa de Salomão no seu profetizado regresso aos
céus. A futilidade da luta pesava sobre Evie como pedras tumulares.
– O cometa está prestes a passar lá em cima – anunciou John Hobbes.
A mão dele era uma garra pronta a trespassá-la. Evie gostaria de ser todos
os outros – Ruta Badowski com os seus sapatos partidos. Tommy Duffy
ainda com o pó do último jogo de basebol debaixo das unhas. Gabriel
Johnson, levado no melhor dia da sua vida. Ou até Mary White tentando
manter-se à espera de um futuro que nunca chegou. Seria como todos
aqueles rapazes brilhantes marchando para a guerra, de espingarda ao
ombro e promessas nos lábios feitas às namoradas: voltariam para casa no
Natal, a emoção do jogo nos seus rostos. Voltariam homens, heróis com
aventuras para contar, de como haviam vencido o inimigo e reposto o que
estava certo neste mundo, resumindo-o a sim e não. Branco e preto. Certo e
errado. Aqui e ali. Nós e eles. Mas acabaram por morrer na Flandres, presos
no arame farpado, atacados pela gripe na Frente Ocidental, mortos em
explosões na terra de ninguém, estrebuchando nas trincheiras, ainda a sorrir,
oferta dos gases fosgénio, clorídrico ou mostarda. Alguns voltaram a casa
com síndrome pós-traumática, pestanejando, as mãos trémulas, falando
sozinhos, seguindo as ordens de uma guerra particular que ainda continuava
nas suas mentes. Ou, como James, simplesmente desaparecidos, relegados
para livros de história que ninguém se preocupava em ler, medalhas
guardadas em armários fechados. Um monte de peças de xadrez
movimentadas por mãos invisíveis num universo enfadado consigo mesmo.
E agora ali estava ela, mais um peão. Evie tinha vontade de chorar. De
medo. De exaustão, sim. Mas, principalmente, da cruel inutilidade, da
estúpida arbitrariedade de tudo aquilo.
– «Um grande sinal aparecerá no céu, o céu iluminado em chamas, a
mulher vestida de sol, coroada de estrelas. E o seu coração foi uma oferta à
Besta, o coração do mundo, que ela devorará para se transformar num todo
e caminhar pela terra durante mil anos...»
A moeda passou pela mão de Evie. Pensou em James e um pensamento
terrível, desesperado, tomou forma. Não. Não podia. Teria de haver outra
maneira.
Os mortos chegavam. Chegavam para a vir buscar.
Tremendo, Evie arrancou o pendente do pescoço e ergueu-o diante de si.
– Neste vaso, p...prendo o teu espírito... – Tremia tanto que receava não
conseguir pronunciar as palavras.
Os mortos aproximavam-se. Via-lhes as órbitas vazias nos rostos
sombrios e esqueléticos. Dedos brancos, sem vida, estendiam-se para ela.
Bocas negras jorrando líquido negro pelos queixos manchados.
– Ao fogo, entrego o teu espírito – disse Evie mais alto.
As mãos estendiam-se para ela. Dedos mortos abriam-se sobre os seus
pés, mas ela empurrou-os, gritando, tentando não perder o equilíbrio para
não cair sobre a multidão indigna. O aposento iluminou-se. Quanto tempo
faltaria para a passagem do cometa? Um minuto? Trinta segundos?
Os gritos sibilantes dos Irmãos eram ensurdecedores. Falavam um milhar
de línguas. Mas sob a cacofonia, Evie ouvia alguns gemidos. Sob a sua
raiva, Evie sentia-lhes o medo. Os seus grunhidos aflitivos, abrangentes
saltavam no aposento
– Matem-na, matem-na, matem-na. Sois a Besta, a Besta, a Besta, a Besta
deverá erguer-se...
– Essa moeda não é uma relíquia sagrada, Senhora Sol – provocou-a John
Hobbes.
Evie agarrou com força na moeda, sentindo o relevo na sua mão, um
conforto e um castigo. O único laço físico que a ligava ao irmão.
– Para mim é – disse em voz rouca. E gritou sobrepondo-se ao tumulto: –
Besta! Lanço-te nas trevas, para não mais te ergueres!
As almas dos Irmãos gritavam. O fogo lambia as paredes. Parecia que
uma pintura macabra ganhara vida. Os Irmãos gritavam como se fossem de
novo engolidos pelas chamas. Evie fechou os olhos e esperou. O pendente
tremia-lhe violentamente na mão. As vozes sibilantes tinham deixado de se
ouvir, para serem substituídas por uma arrepiante sinfonia de gritos e
berros, grunhidos guturais e latidos, sons que não sabia nem queria
identificar. Sentia o cheiro a fumo. Quando abriu os olhos, viu que as almas
dos Irmãos eram arrastadas e sugadas pelas paredes, há muito engolidas
pelas chamas.
John Perverso mantinha-se. Mais forte, graças às dez oferendas. Talvez
demasiado forte para ser dominado e Evie receava que aquilo que possuía
não tivesse afinal força suficiente.
– Vou matar-te – vociferou, atirando-se a ela.
Evie ergueu a moeda bem alto.
– Neste vaso… – gritou, desta vez em voz mais forte.
A forma dele tremeluziu, a carne contorceu-se de um modo que Evie
pensou ser dolorosa. Sangue negro escorria-lhe dos cantos da boca. Os
dentes soltaram-se e caíram. Retraíram-se as poderosas garras.
– Eu... p...prendo, eu... – O horror sobrepunha-se à memória de Evie.
– Destrói-me e nunca saberás o que aconteceu. Ou o que vai acontecer –
cuspiu John com a respiração entrecortada.
Queria distraí-la. Truques. Mentiras.
– Neste vaso, prendo o teu espírito...
John Hobbes gritou. Caiu de joelhos. A sua pele enrugava-se como se
estivesse cheia de ratos.
– Nunca saberás... do teu irmão – disse.
Evie sentiu-se gelar.
– O meu irmão, como?
Uma gargalhada rouca ergueu-se no peito de John, transformando-se em
tosse. Gotas de sangue negro borrifaram o rosto de Evie que conteve o
desejo de gritar.
– O meu irmão, como? – gritou.
– Não fazes ideia... do que se soltou.
– Está a falar de quê?
John Hobbes sorriu. O sangue manchava-lhe os poucos dentes que lhe
restavam.
– Pergunta… James.
Avançou e quase atingiu Evie com as suas asas, obrigando-a a deixar cair
o pendente. Com um grito ela atirou-se a ele, mas ele fez o mesmo com
mãos mais ágeis. Lutaram e a Besta ganhava vantagem. Estava sobre ela; o
cometa aproximava-se. Uma garra surgiu-lhe na pele do indicador direito e
uma segunda no dedo médio – o suficiente para a cortar, o suficiente para
lhe arrancar o coração.
Evie agarrou o pendente pelo outro lado e os seus dedos tocaram nos
dela.
– Neste vaso, prendo o teu espírito. No fogo encomendo o teu espírito.
Nas trevas...
– Vais perder…
– Ordeno-te, Besta, que nunca mais te ergas! – terminou Evie.
Os olhos azuis de John Hobbes mostraram medo pela primeira vez,
quando o Cometa de Salomão brilhou lá em cima. A sua forma foi sugada
pela moeda que estremeceu e brilhou incandescente na mão de Evie, que foi
obrigada a soltá-la. Uma enorme coluna de fumo ergueu-se do seu centro e
juntou-se ao cometa numa luminosa explosão. Depois, tão rapidamente
como chegara, o cometa partiu, tal como o pendente, que se transformara
em cinzas. O céu escurecera de novo e aquietara-se. Na névoa que o cobria
surgiam novas estrelas.
Evie ouviu outro som sibilante e pôs-se de pé. As chamas soltavam-se das
paredes enegrecidas, mas desta vez não provinham de uma antiga
recordação. Era um verdadeiro incêndio. Ardiam-lhe os olhos do calor e
sentia dificuldade em respirar sem tossir. Evie foi de novo invadida pela
sensação de pânico. Como sair dali? Que deveria fazer? Por uns momentos,
ficou perfeitamente imóvel, paralisada pelo medo e pelo horror da noite.
Ergueu os olhos para o céu, como se esperasse que ele a ajudasse na sua
decisão. O fumo negro erguia-se no ar, bloqueando a vista das estrelas. Não.
Não chegara até ali, não sacrificara o que tinha de mais precioso para
morrer ali. O teto cedeu e o estuque caía. Com um urro quase animalesco,
Evie correu para a porta, estendendo as mãos para se proteger dos
destroços. Correu pela cave e subiu as escadas com as pernas trémulas,
gritando por Jericho.
– Evie? Evie!
Ao ouvir a voz de Jericho, Evie sentiu uma esperança renovada.
– Jericho! Continua a chamar!
Seguiu os gritos de Jericho até ao aposento em que ele tinha caído.
Agarrou a lanterna e espreitou pela abertura. Não era muito funda, via-o
agora. Quando caíra devia ter batido com a cabeça. Estendeu o braço, e foi
o suficiente para Jericho se apoiar e subir.
– Temos de fugir daqui a toda a pressa – disse com esforço.
– O que aconteceu ao...? – Jericho esfregou os olhos.
– Desapareceu – disse ela. – Acabou.
As tábuas estalaram. Os vidros rebentaram e sobre eles caiu uma chuva
de estilhaços. A casa estremeceu nos alicerces, afundando-se com o fogo
como se quisesse levar tudo e todos consigo. Evie e Jericho correram para a
cozinha.
– Porque acendeste o fósforo? – gritou Evie.
– Não acendi! – jurou Jericho.
A porta da cozinha não abria. Evie puxou freneticamente a maçaneta.
Jericho correu para ela, mas ficou presa. Evie gritou quando o telhado caiu
e a porta se abriu. Não esperou, agarrou na mão de Jericho, puxou-o e
rebolaram ambos pela relva, indo parar à rua enquanto a casa se
despedaçava.

Os bombeiros apontavam as mangueiras para as ruínas fumegantes de


Knowles’ End que se afundava sobre si própria, uma última vénia. Nada
poderia salvar-se. O querosene tratara do assunto, mesmo antes da última
função de John Knowles.
Evie estava sentada no passeio, com um cobertor pelas costas a olhar para
o fogo. Jericho recusara-se a ser observado por um médico, afirmando ter
apenas um alto na cabeça. Veio sentar-se junto dela, ainda com os olhos um
pouco vítreos. Na rua juntara-se uma multidão de curiosos. Várias crianças
tentavam aproximar-se, atraídas pelas chamas e pela emoção, mas as mães
repreendiam-nas, obrigando-as a guardar a distância de segurança.
Evie já não acreditava em distâncias de segurança.
– Estás a chorar – disse Jericho.
– Estou? – perguntou Evie, em voz fraca. – Que chatice.
Levou a mão ao lugar vazio no seu pescoço e chorou.
AS PESSOAS ACREDITAM EM TUDO

Na pequena e húmida sala de interrogatórios, Will descansava a cabeça nos


braços. O relógio mostrava que eram cinco horas da tarde. A porta abriu-se
e Malloy instalou o seu corpanzil na cadeira em frente do tio Will.
– Apanhámos a tua sobrinha e o teu assistente na velha casa dos Knowles.
– Ela está...?
– Ela está bem. A casa ardeu de cima a baixo, mas ela está bem. – Malloy
fez uma pausa, talvez um pouco demorada. – Jura que lutou com o
assassino... o espírito do Perverso John Hobbes que voltou à vida.
Will olhou para as mãos entrelaçadas e nada disse.
– É uma coisa muito estranha, mas sabes aquele pendente que
encontraste? Parece que, quando os rapazes foram buscá-lo para servir de
prova, encontraram apenas um monte de cinzas. Calculo que não saibas
nada do assunto, não é verdade?
Will manteve-se em silêncio.
– Soube pelos rapazes de Brethren que também lá houve um incêndio
ontem à noite... começou mais ou menos à hora da passagem do cometa, à
mesma hora do incêndio em Knowles’ End. Não tem havido calor lá por
esses bosques. De facto, até choveu o dia inteiro. Mas também não foi fogo
posto. Não. Parece que o antigo acampamento, e só o antigo acampamento,
ardeu completamente num instante. Nada restou. Nem uma pedra, nem um
pau. – Malloy inclinou-se para diante. Os papos por baixo dos seus olhos
estavam um pouco mais inchados do que era costume.
– Will, que se passa aqui?
Will olhou-o por fim.
– Que queres que te diga?
Malloy pareceu refletir no assunto durante muito tempo, soltando depois
um suspiro em longo solilóquio.
– Nada – respondeu por fim. – Não sei e não quero saber, Fitz. Gostaria
de me reformar daqui a dez anos, por isso vou dizer-te o que aconteceu. No
que diz respeito à cidade, o Assassino do Pentagrama foi morto com um tiro
e ardeu no incêndio, sem que se lhe conhecesse a identidade. Foi morto por
um dos nossos polícias. O agente Lyga vai ser promovido. É um bom
homem e agora é um herói. É bom que haja heróis pois permitem que as
pessoas durmam bem de noite. É essa a história. Percebeste?
– Julgas que as pessoas acreditam?
– As pessoas acreditam em tudo se isso significar que podem continuar a
sua vida sem terem de pensar muito no assunto. – Malloy levantou-se e
abriu a porta. – Podes ir.
À porta pousou a mão no braço de Will e falou em tom preocupado.
– Will, o que está a acontecer?
– Vai descansar, Terrence.
– Não faças de mim teu inimigo, Will – disse Malloy atrás do amigo.
Will percorreu o labirinto de corredores da esquadra. Passou por uma sala
envidraçada, com os estores meio corridos, onde dois homens de fatos
escuros esperavam para falar com o chefe. Ambos estavam sentados, em
silêncio, aparentemente sem razões para ter pressa. Como se estivessem
habituados a conseguir o que queriam e, por isso, aquela reunião não seria
diferente.
Will empalideceu e apressou-se a sair, empurrando as portas da esquadra
para a neblina de lã cinzenta dessa manhã. Atirou dois cêntimos a um
ardina e leu os últimos títulos do dia acerca da morte do Assassino do
Pentagrama que mostravam uma fotografia em pose do agente Lyga ao lado
da bandeira americana, com a legenda AGENTE HERÓI MANTÉM A CIDADE
SEGURA. Tinham trabalhado a toda a pressa. Não mencionavam nem o
museu nem Will. Este abandonou o jornal num banco próximo e meteu as
mãos nos bolsos para esconder o tremor.

Memphis esperou que Octavia dormisse a sono solto, depois fechou a porta
do quarto em que Isaiah dormia e deitou-se ao lado dele. Olhou para as suas
mãos. Tinham passado três anos desde que, em vão, tentara curar a mãe e
sentia a pressão dos espíritos por entre um adejar de asas. Talvez tivesse
perdido o dom para sempre. Mas estava cansado de ter medo de o descobrir.
Memphis ajoelhou-se ao lado da cama. Pensou em rezar, mas rezar para
quê? Para pedir a ajuda de Deus ou o Seu perdão? Nem tinha a certeza de
acreditar, por isso, nada disse e colocou as mãos sobre o corpo do irmão,
pensando na cura. Ali ajoelhado, nada sentia. Nem calor, nem cheiro a
flores antes de ser transportado para o mundo dos espíritos e das estranhas
visões.
– Não desisto, caramba – disse através dos dentes cerrados. – Estão a
ouvir? Não desisto.
Memphis respirou fundo. Começou com um tremor nos dedos. Depois o
calor familiar percorreu-lhe as veias como uma torneira subitamente aberta.
E antes que tivesse tempo para pensar, foi sugado para o reino das sombras
entre os mundos. Sentiu à sua volta a pressão dos espíritos, que lhe
pousavam suavemente as mãos nos ombros e braços, numa enorme cadeia
de cura. Ouviu a voz da mãe, doce e suave.
– Memphis.
Usava uma capa iridescente como um lago ao luar. Não estava doente e
magra como da última vez que a vira, mas sim muito bela, embora um
pouco sombria. A sua mãe estava ali e ele queria correr para ela.
– O nosso tempo é breve, meu filho.
– Mãe? És tu?
– Tenho de te dizer estas coisas enquanto posso. Serás chamado a tomar
grandes decisões e a fazer grandes sacrifícios – disse um pouco triste. –
Tudo será necessário, mas apenas tu podes decidir qual o caminho certo.
Aproxima-se uma tempestade e tens de estar preparado.
– E o Isaiah?
A mãe não respondeu.
– Há uma coisa que nunca te disse. Uma coisa que deveria ter-te dito...
O doce conforto dos espíritos desapareceu. Estavam na encruzilhada do
sonho dele. Ao longe via-se a quinta e a árvore retorcida. O céu coberto de
nuvens negras rasgadas por relâmpagos. A mãe de Memphis olhava o céu,
receosa. O vento soprava forte, levantando uma nuvem de poeira.
– Não podes trazer nada de volta, Memphis. Quando partem, acabou.
Promete-me!
A poeira aproximava-se dela.
– Foge, mãe!
– Promete-me! – gritou e foi engolida pelo muro de pó.
Memphis avançou pela estrada, cambaleando, tentando ultrapassar a
poeira sufocante. No campo à sua direita viu que o trigo se curvava numa
ruína negra quando um homem magro, de casaco cinzento e chapéu alto o
atravessou. O corvo voou no caminho de Memphis.
O transe quebrou-se. Memphis caiu no chão com uma pancada forte.
Estava coberto de suor e tremia. Estivera no local de cura. Vira a mãe nesse
mundo.
– Memphis. Que estás a fazer deitado no chão?
Isaiah acordara e olhava-o com olhos de sono, como se fosse uma manhã
qualquer.
– Isaiah? – Memphis sentia-se sufocado. – Isaiah?
– É esse o meu nome. Estás muito esquisito – disse Isaiah espreguiçando-
se. – Tenho sede.
O irmão estava curado. Estava curado e fora Memphis que o conseguira.
As palmas das mãos vibravam ainda do toque. Não perdera o dom; o dom
voltara. Memphis envolveu Isaiah nos seus braços.
– Que se passa?
– Nada. Nada, homenzinho. Já está tudo bem.
– Continuo com sede.
– Vou buscar-te qualquer coisa para beber. Fica aqui. Não saias para
qualquer lado.
– Para lado nenhum – corrigiu Isaiah sonolento.
– Isso, também.
Memphis correu à cozinha e encheu um copo com água da torneira,
desejando que fosse mais rápido.
– Obrigado – disse, embora não soubesse a quem agradecia, ou porquê.
Fechou a torneira e apressou-se a ir para junto de Isaiah.
Do outro lado da janela da cozinha, os relâmpagos rasgavam as nuvens. O
corvo olhava em silêncio.
TEMPESTADE IMINENTE

Evie, Theta e Mabel passeavam na tarde límpida e fria. Estava um dia


luminoso, sem nuvens; o ar parecia acabado de nascer e Evie queria
comprar um chapéu novo. Havia quatro dias que enfrentara John Hobbes, a
Besta, naquele pequeno aposento. Havia quatro dias que lhe prendera a
alma na sua mais sagrada relíquia e a perdera para os salvar a todos.
Mas continuava a levar a mão ao pescoço, por baixo do lenço, em busca
do peso da moeda. Não sonhara uma única vez desde aí, mas tentava não
pensar no assunto. Ela e o tio Will mal falaram acerca daquela noite. Ele
parecia ainda mais distante do que antes, fechado com os seus livros e
recortes de jornais, quase a transformar-se também num fantasma. Mais
tarde far-lhe-ia perguntas acerca dos Adivinhos, perguntar-lhe-ia como
haveria de saber se havia outros como ela e como poderia fortalecer os seus
poderes e controlá-los mais. Havia tanta coisa que Evie desejava saber. Mas
tudo isso poderia esperar. Por enquanto, ela, Mabel e Theta estavam no
elétrico a caminho da chapelaria que Theta conhecia, onde Evie tencionava
comprar uma nova cloche com uma fita presa num complicado laço que
indicaria que era solteira e estava totalmente disponível. A cidade era delas.
O tempo era delas. Prometera a Mabel que se divertiriam o mais possível e
estava disposta a cumprir a promessa até ao fim.
O elétrico parou num semáforo e um pouco antes de retomar a marcha
Sam saltou para ele, agarrando-se aos ferros junto ao ombro de Evie.
– Olá, minhas senhoras! – cumprimentou.
– Sam, vai-te embora! – ralhou Evie.
Sam espreitou para trás para a rua que rapidamente se movia.
– Não me parece boa ideia.
– Ainda não acredito que te deixaram sair de Tombs.
– Tudo se deve o meu charme, miúda. Mesmo assim saí com as algemas.
– O seu sorriso sugeria qualquer coisa maliciosa e Evie revirou os olhos. –
Só para vos dizer que vou estar ausente por uns dias.
– Vou pôr um véu preto e chorar toda a noite.
Theta e Mabel soltaram um risinho e desviaram o olhar.
– Vais ter saudades minhas, bem sei, miúda. – E lançou-lhe um dos seus
enormes sorrisos.
– Ei! – gritou o revisor. – Desça já daí!
– Sam, vais arranjar sarilhos!
Sam sorriu.
– Oh, meu amor, pensei que gostavas de sarilhos.
– Importas-te de descer antes que te mates?
– Estás preocupada com o meu bem-estar?
– Desce! Já!
Sam saltou do elétrico, quase caindo sobre uma mulher que empurrava
um carrinho de bebé.
– Desculpe minha senhora. – Sacudiu as mãos para as limpar. – Um dia,
Evie O’Neill – gritou –, vais morrer de amores por mim!
– Podes esperar sentado! – respondeu Evie.
Sam fingiu que uma seta lhe trespassava o coração e caiu. Evie soltou
uma gargalhada contra a sua vontade.
– Idiota.
Theta ergueu uma sobrancelha.
– Esse rapaz está caidinho por ti, Evil.
Evie revirou os olhos.
– Não brinques comigo. Não temos nada a ver um com o outro. Esse
rapaz só quer o que não pode ter.
Theta olhou para as luzes brilhantes da Broadway, que se acendiam
iluminando a obscuridade.
– E não é o que todos queremos?

Quando Evie chegou ao museu, anoitecera e os últimos visitantes desse dia


tinham partido. Cantarolando uma melodia que ouvira na telefonia, deixou
cair a echarpe, o casaco e a carteira sobre uma cadeira e dirigiu-se à
biblioteca. As portas estavam entreabertas e pôde ouvir uma voz de mulher
que lhe era desconhecida.
– A tempestade aproxima-se, Will. Quer estejas ou não preparado, ela
está iminente.
– E se estiveres enganada? – disse Will. Parecia tenso.
– Acreditas mesmo que se tratou de uma ocorrência isolada? Não lês os
jornais como eu? Viste os sinais.
A conversa continuou em voz mais baixa e Evie aproximou-se para poder
escutar.
– Bem te disse que as coisas não iam correr bem.
– Tentei, Margaret, bem sabes que tentei.
Deviam ter mudado de lugar. O som era agora abafado e Evie ouvia
apenas algumas partes: «Um refúgio seguro». «Adivinhos». «Vão ser
precisos».
Evie aproximou-se mais, tentando escutar.
– E a tua sobrinha? Sabes o que ela é. Tens de a preparar.
O coração de Evie começou a bater acelerado.
– Não. Nem pensar nisso.
– Tens de lhe dizer, Will. Ou digo-lhe eu.
Incapaz de suportar a ansiedade por mais tempo, Evie irrompeu na sala.
– Diz-me o quê?
– Evie! – Will deixou cair o cigarro. – Esta conversa é particular.
– Ouvi-vos a falar da minha pessoa. – Evie voltou-se para a imponente
mulher que se encontrava junto à secretária de Will. Era a mesma mulher
que viera visitá-lo umas semanas atrás e lhe deixara o cartão. Aquela que
Will fingira não conhecer. – O que é que ele não quer dizer-me?
– A menina Walker estava já de partida. – Will lançou à mulher um olhar
de aviso e ela abanou lentamente a cabeça com uma expressão de
resignação ou reprovação. Evie não tinha a certeza.
– Suponho que estava. – A mulher ajeitou o chapéu. – Não precisam de
me acompanhar. Saio sozinha. A tempestade vem aí, Will, quer estejas ou
não preparado – repetiu e saiu da biblioteca com o seu ar imponente.
Evie esperou até ouvir o ruído dos passos dela nos degraus de mármore lá
fora, depois voltou-se para Will.
– Quem é esta mulher?
– Ninguém da tua conta.
Will acendeu um cigarro e Evie arrancou-lho dos dedos, furiosa, para o
apagar no cinzeiro.
– Mas ela estava a falar de mim! Quero saber porquê! – exigiu Evie. – E o
tio disse-me que nunca a tinha visto.
Will hesitou por momentos junto à secretária, parecendo completamente
perdido. Depois tomou de novo o seu ar calmo e académico e voltou a ser o
incontestável Will Fitzgerald. Fingiu arranjar os objetos sobre a secretária
numa aparente ordem.
– Evie, tenho estado a pensar se não seria melhor regressares ao Ohio.
Evie recuou como se tivesse recebido um soco.
– O quê? Mas Tito, prometeu-me...
– Que podias ficar mais um tempo. Evie, sou um velho solteirão, com os
meus hábitos. Não estou preparado para tomar conta de uma jovem...
– Tenho dezassete anos! – gritou ela.
– Mesmo assim.
– Não teria resolvido o caso sem mim.
– Bem sei. E estou a tentar desculpar-me por te haver envolvido. – Will
deixou-se cair na cadeira. Não estava habituado a ficar sentado, quieto e
parecia não saber o que fazer com as mãos, descansando-as nos braços da
cadeira como Lincoln a posar para o monumento.
– Mas... porquê? – perguntou Evie. Estava diante dele, patética, como
uma menina da escola implorando ao diretor uma nova oportunidade. E
detestava-se por isso.
– Porque… – começou Will. – Porque não é seguro estares aqui.
Evie sentia-se à beira de lágrimas de raiva. A voz vacilou-lhe.
– Porque não me diz o que se passa?
– Tens de confiar em mim, Evie. Quanto menos souberes, melhor. É para
teu próprio bem.
– Estou cansada de que toda a gente decida o que é o meu próprio bem!
– Há certas pessoas neste mundo, Evie. Não sabes do que elas são
capazes.
As lágrimas perlavam o rímel das pestanas de Evie.
– Prometeu que eu podia ficar.
– E cumpri essa promessa. O caso terminou. É tempo de voltares para
casa – disse Will com a maior delicadeza possível.
Evie ajudara a resolver o caso. Enfrentara corajosamente as dores de
cabeça e a maldita batalha com John Hobbes, bem como a fantasmagórica
congregação dos Irmãos naquele buraco infame. Oferecera a coisa que mais
significado tinha para ela – o seu talismã, a moeda de meio dólar e a
possibilidade de saber o que acontecera com James – para acabar com tudo
aquilo. E era aquela a sua recompensa? Não era justo. Nem pensar.
– Vou odiá-lo para sempre – murmurou, perdendo a batalha contra as
lágrimas.
– Bem sei – disse Will em voz baixa.
Jericho enfiou a cabeça pela porta.
– Will, creio que deveria ver isto – disse num tom urgente.
A imprensa juntara-se nos degraus do museu, com os blocos preparados.
Tinham um ar irritado e aborrecido e pareciam prontos para uma história
cheia de sangue. O Assassino do Pentagrama fora bom para o negócio;
devia ter sido difícil deixá-lo escapar. À frente encontrava-se T. S.
Woodhouse em pessoa.
– Eu trato disto. – Will saiu e os repórteres prepararam-se.
– Senhores. Senhoras. A que devo esta honra? Se estão desejosos de
espreitar o museu, abriremos de novo as portas às dez e meia, amanhã.
– Senhor Fitzgerald! Ei, Fitz, aqui! – Os repórteres tentavam atropelar-se
uns aos outros.
– Já recuperou da sua detenção?
– Sim, professor... porque o levaram para o xelindró? Limpou o sebo a
alguém?
– Que pode dizer-nos acerca do Assassino do Pentagrama?
– Há alguma veracidade no boato acerca da existência no caso de um
elemento sobrenatural? Algum embuste antigo? – perguntou T. S.
Woodhouse.
Will ergueu a mão, num gesto apaziguador. Esboçou um sorriso que mais
pareceu um esgar.
– Deixo o sobrenatural no museu.
– É verdade que o assassino era um fantasma? – insistiu T. S. Woodhouse.
– É o boato que corre por aí, professor.
– A polícia fez uma declaração. Já têm a vossa história, meus senhores e
minhas senhoras. Receio nada mais ter a acrescentar. Desejo a todos uma
boa-noite.
Woodhouse voltou-se para Evie.
– Menina O’Neill, não tem uma declaração para nós?
– Evie, vamos para dentro. Está frio – disse Will.
Evie ficou nos degraus, pequena e pálida na semiobscuridade. Deixara o
casaco lá dentro e o vento frio de outubro trespassava-lhe o vestido. Will
queria que ela entrasse. Depois enviá-la-ia de volta para o Ohio, onde, com
efeito, os pais também a mandariam entrar. Estava cansada de que aquela
geração que estragara tudo lhe dissesse o que tinha de fazer. Vendiam aos
filhos uma infinidade de mentiras: Deus e a pátria. Ama os teus pais. Tudo é
justo. E, depois, tinham mandado aqueles rapazes, o irmão, lutar contra o
enorme monstro de uma guerra que estropiava, matava e destruía tudo o que
estava dentro deles. Mesmo assim mentiam, esperando que repetisse
aquelas palavras e continuasse como se nada fosse. Pois não seria assim.
Sabia agora que o mundo não era justo. Sabia que os monstros existiam.
– Vou dizer-vos o que aconteceu – disse, e nos seus olhos brilhava uma
expressão dura.
– Evie, não faças isso – avisou o tio, mas a imprensa já se voltara e
reparara nela. Um homem de chapéu de veludo tirou-lhe uma fotografia e
Evie pestanejou com o brilho esbranquiçado do flash.
– Como te chamas, minha querida?
– Evangeline O’Neill, mas os meus amigos chamam-me Evie. E claro
que, geralmente, ligam-me da cadeia.
Os repórteres riram.
– Gosto desta. É vivaça – disse um. – E bonita, ainda por cima.
– Se é – murmurou apreciativamente T. S. Woodhouse.
– Menina O’Neill! John Linden do Gotham Trumpet. Que tal um
exclusivo para nós?
– Patricia Ready, da Hearst, menina O’Neill. Nós as mulheres temos de
nos manter unidas, não acha?
– Ei, boneca... olha para aqui! Sorri, miúda!
Exigiam a sua história aos gritos de «Menina O’Neill! Menina O’Neill!».
O seu nome clamado em Manhattan, o centro do mundo.
– Qual de nós ficará com o exclusivo? – gritou um repórter.
– Depende... qual de vós tem gim? – respondeu Evie e eles soltaram
enormes risadas.
T. S. Woodhouse empurrou o chapéu para a nuca e aproximou-se de Evie.
– T. S. Woodhouse, o seu velho amigo do Daily News. Não está ofendida
comigo, espero. Sabe que sempre tive um fraquinho por si, Sheba. O meu
lápis é simpático e afiado. Quase tão afiado como a menina. Que tal se nos
desse novidades, amorzinho?
Evie olhou para trás, para o tio e para Jericho. Atrás deles o museu
silencioso. Sobre eles, a cidade cintilava com um milhar de quadrados de
luz fria e dura.
– Menina O’Neill? Evie? – T. S. Woodhouse encostava a ponta do lápis
ao bloco.
– O meu tio não contou toda a verdade. Para resolver o caso foram usados
poderes espaciais... creio que lhes poderão chamar sobrenaturais... os meus
poderes.
Os repórteres voltaram a tagarelar e a gritar.
Evie ergueu as mãos.
– Como todos somos de Nova Iorque e não um bando de palermas
suponho que queiram uma demonstração. Talvez venha finalmente a ser
útil, senhor Woodhouse.
Os repórteres riram e T. S. curvou-se para ela.
– Os seus desejos são ordens.
– Estupendo. Pode dar-me uma coisa que lhe pertença? Uma luva, o
relógio... qualquer objeto serve.
– Ela quer a tua carteira – gracejou um repórter.
– Desde que não seja o teu coração, Thomas.
– Então não sabem? Sou jornalista, não tenho coração – replicou
Woodhouse.
Evie ergueu a mão.
– Qualquer coisa serve.
Ele entregou-lhe o lenço, deixando que os seus dedos se demorassem um
momento nos dela. A princípio nada aconteceu e Evie escondeu uma
sensação de pânico. Fechou os olhos e concentrou-se. Por fim, a sua boca,
pintada em arco de Cupido, esboçou um sorriso encantador.
– Senhor Woodhouse, o senhor vive no Bronx, numa rua perto de uma
padaria irlandesa chamada Black Holly’s Biscuits. Deve ao seu corretor
cinquenta dólares do combate Martin-Burns. Sugiro que lhe pague. Não me
parece ser um homem muito paciente.
Woodhouse franziu a testa.
– Qualquer pessoa pode saber isso.
– Uma jovem de dezassete anos? – gritou outro jornalista.
Evie apertou o lenço com mais força e vislumbrou segredos mais
profundos. Curvou-se para lhos murmurar ao ouvido. A sua expressão de
surpresa denunciou que tinha percebido.
– Um novo título: «A Bela Vidente Confessa Ter Resolvido o Crime por
Meio de Misteriosos Talentos.”
Os repórteres aproximaram-se mais, exigentes.
– O que aconteceu, Evie?
– Evie, olhe para aqui!
– Ei, Menina O’Neill, sorria… isso mesmo.
T. S. Woodhouse ergueu o lápis.
– Estou à espera, querida.
Evie fitou-o.
– Há já algum tempo que tenho este... dom – declarou.
Contou-lhes que a sua habilidade para ler objetos a tinha conduzido ao
assassino. Manteve-se próximo da história oficial – um homem perturbado
morto pelos corajosos polícias. Não lhes contou que havia coisas de que ter
medo, que os fantasmas que eles imaginavam e lhes provocavam arrepios
na nuca nas noites escuras eram verdadeiros. Não mencionou a tempestade
iminente anunciada pela menina Walker. Preferiu entusiasmá-los com outra
demonstração – apenas uma rápida visão de factos cómicos a partir do
bloco de um repórter. Juntou-se uma multidão e adoraram-na. Na maior
cidade do mundo, no seu momento mais importante, ali estava no centro de
tudo. Agora Will não poderia mandá-la para casa. Haveria um protesto.
Organizá-lo-ia se necessário fosse.
– Menina O’Neill… ei, beleza! Aqui!
O flash explodiu em pequenas garras de luz. Outro flash e ainda outro.
Ofuscavam e magoavam os olhos de Evie, obrigando-a a voltar a cabeça.
Esperava ver Will e Jericho, mas os degraus atrás dela estavam vazios. Evie
voltou-se para a multidão. Do outro lado da rua, à entrada do parque, estava
Margaret Walker, perfeitamente imóvel, a observar. O flash disparou mais
uma vez e, quando conseguiu ver melhor, Evie reparou que, também ela, se
tinha ido embora.
PROJETO BUFFALO

O cego Bill Johnson bateu à porta da casa da tia Octavia e esperou até a
porta ranger e ela o convidar a entrar. Sentaram-se na sala e Octavia trouxe
as chávenas de café e um prato com bolachas de manteiga.
– Nem sei como lhe agradecer por lá ter estado, senhor Johnson – disse
Octavia com voz emocionada.
– Ora, minha senhora, ainda bem que o Bom Deus lá me colocou.
– O senhor tem um fato novo e um chapéu muito elegantes, senhor
Johnson.
– Bill. Obrigado, minha senhora. Comprei-os com os meus ganhos. Saiu
o meu número. Ganhei duzentos dólares assim de repente! – Bill fez estalar
os dedos.
– Deve ter sido uma recompensa do céu pelas suas boas obras.
Bill pigarreou.
– E... humm, como está o rapazinho?
– Oh, não soube? – Bill detetou a exuberância na voz dela. – Está ótimo.
Melhor que ótimo. Curado como se nada lhe tivesse acontecido.
– Percebo. – As mãos de Bill tremeram e ele apertou-as no colo. – E ele
lembra-se do que aconteceu?
– Não, não, de nada. O médico disse que deve ter sido uma espécie de
febre. Aposto que nunca o saberemos.
– Talvez… – disse Bill, e sacudiu a cabeça como se quisesse afastar o
pensamento despropositado. – Talvez não o deva dizer.
– O quê?
– Estive a pensar se ele não se terá cansado demasiado a adivinhar as
cartas em casa da menina Walker.
Bebeu um gole do café e aguardou. Finalmente, quando Octavia falou fê-
lo num tom tenso de apreensão e zanga.
– Miss Walker ajuda o Isaiah com a aritmética, porque ele tem problemas
com as contas. Não sei nada disso das cartas.
– Pronto, já falei de mais. Não ligue, Miss Octavia.
– Gostaria muito, senhor Johnson…
– Bill.
– Bill, agradecia que me dissesse o que sabe, obrigada.
Não conseguia ver Octavia, mas ouviu o sussurrar do vestido quando ela
se chegou para a borda da cadeira e apercebeu-se de que a tinha na mão.
– Bem, minha senhora, suponho que não sei tudo. O rapazinho disse-me
que tinha um dom e que a menina Walker o ensinava a usá-lo. Tinha o que a
minha avó chamava «visão». – Bill pegou noutra bolacha e molhou-a no
café. Era deliciosa. – Mas sabe como são as crianças. Imagino que o
rapazinho me tenha estado a contar histórias. A armar-se em importante.
– Bem vejo. – Octavia estava zangada. Bill tinha a certeza de que não
haveria mais visitas a casa da menina Walker.
– Posso ir ver o Isaiah, se não fosse muito incómodo?
– Bem, ele está a descansar – disse Octavia desconfiada.
– Oh, compreendo. Não quero incomodar. Gostaria apenas de rezar junto
dele.
– As orações são sempre bem-vindas.
– Sim, minha senhora, acho que sim.
Octavia levou Bill ao quarto das traseiras e aproximou-o da cama de
Isaiah.
– Oh, Senhor – disse Bill, curvando a cabeça. – Desculpe, senhora
Octavia, mas fico um pouco envergonhado quando rezo diante de outras
pessoas.
– Claro – disse ela, e Bill ouviu-a fechar a porta.
Bill estendeu a mão e tocou na cabeça do rapaz, macia como um cordeiro.
Só um toque. Era o que precisava. Só outro número. Desta vez teria
cuidado. Sentiu a energia do rapaz fluir até ele, mas logo a seguir sentiu-se
sufocado. Retirou rapidamente as mãos com os dedos trémulos. O que seria
aquilo? O que teria sentido?
Na escuridão do quarto, Bill divisou a mais breve das formas – um
armário enorme, a luz fraca de uma janela. Formas. Luz. Podia... ver. Só um
pouco, mas estava ali. E Bill percebeu que alguém usara o poder curativo
no rapaz. Alguém com um dom maior do que Isaiah Campbell. Muito
maior. As mãos de Bill desejavam tentar de novo, mas ouvia a tia do rapaz
chamá-lo pelo nome. Recordou-se da história que ouvira nos campos
quando era pequeno. Uma coisa qualquer acerca de uma lebre e de uma
tartaruga. Devagar se vai ao longe, era essa a conclusão. Paciência. Era
preciso ter paciência. Bill saberia ser a tartaruga. Sim, haveria tempo de
sobra.

Bill Johnson partira havia muito quando Memphis chegou a casa, mas a tia
Octavia estava sentada na sala da frente com as mãos a trabalhar numa
camisola, como se a quisesse matar em vez de a tricotar.
– Que se passa? Aconteceu alguma coisa ao Isaiah? – perguntou
Memphis.
– Já sei das tuas idas a casa da irmã Walker e a história das cartas. Já sei e
isso vai acabar – disse em tom irritado. – E creio que tudo isto foi
provocado pelo que andas a fazer com essa mulher.
Memphis olhou para o chão.
– Ele tem um dom.
– O que lhe fez ela?
– Nada. Já lhe disse. Ele tem um dom.
– Vai buscar a Bíblia. Vamos rezar.
Octavia dirigiu-se ao quarto de Isaiah. Memphis seguiu-a com relutância.
– Memphis John, vem para o pé de mim. Vamos rezar pelo teu irmão,
rezar para que essa mulher não tenha trazido o Diabo para esta casa.
Memphis ajoelhou-se ao lado da tia, à cabeceira do irmão, mas não estava
a gostar daquilo. Porquê?, pensou. Porque tenho de rezar a Deus? Que fez
ele por mim ou pela minha família? Sentiu a raiva invadi-lo e transformar-
se em lágrimas.
– Não rezo.
O choque de Octavia transformou-se em firme decisão.
– Prometi à vossa mãe que tomaria conta dos filhos dela e tenciono fazê-
lo. Agora reza comigo.
Memphis explodiu.
– Porque não pergunta a Deus por que razão levou a minha mãe? Porque
não Lhe pergunta por que razão o meu pai não volta? Porque não Lhe
pergunta o que tem contra o meu irmãozinho? – Tinha vontade de bater
nalguma coisa ou em alguém. Queria incendiar o mundo inteiro, curá-lo e
incendiá-lo de novo.
Esperava que Octavia gritasse com ele por blasfemar ao Senhor e que o
expulsasse de casa. Mas ela acabou por dizer em voz baixa:
– Vai buscar frango à geleira para comeres. Eu rezo e falamos depois. –
Quase foi pior. Octavia baixou a cabeça. – Senhor Jesus... por favor protege
este rapaz que não sabia o que fazia. É um bom rapaz, meu Jesus...
Isaiah acordou.
– Tia, porque está a rezar? Memphis, onde vais?
Memphis não tinha fome e não havia lugar para ele ficar. Não voltara ao
cemitério desde que vira o fantasma de Gabe. Já não queria sentar-se com
os mortos. Precisava dos vivos. Queria Theta. Foi à biblioteca e aí, no
silêncio, Memphis rezou a sua própria oração. Abriu o caderno e escreveu
até sentir cãibras nos dedos e a luz do restaurante em frente se apagar.
Escreveu até se sentir vazio. Tinha razão para escrever e alguém para quem
escrever. No fim escreveu apenas duas palavras: Para Theta. A sua
confissão completa; dobrou o papel, meteu-o num envelope e deixou-o para
o carteiro levar.

No Globe Theatre, a revista de Ziegfeld estava no auge. Nessa noite, o


público mostrava-se entusiasmado. Soltava gargalhadas e aplaudia com
gosto. A noite estava a ser frenética e febril. Desde o assassínio de Daisy
que o interesse pelo espetáculo era maior que nunca; dizia-se nos bastidores
que os «olheiros» procuravam agora a próxima Louise Brooks e o próximo
Eddie Cantor. Todos davam o máximo. Sob os projetores, Theta cintilava
num vestido brilhante e decotado trocando piadas com Henry.
– Este é o meu irmão Henry – dizia Theta com voz de mimo, abanando
uma anca em direção ao piano. – Pelo menos é o que digo ao meu senhorio.
Piscou o olho e o público ficou ao rubro. Estavam a adorar e a imprensa
falava deles. Florenz Ziegfeld sorria nas traseiras do teatro. Havia
desgraçados que trabalhavam toda a vida e nunca viam os seus nomes no
cartaz. Mas outros tinham qualquer coisa e Theta Knight era uma dessas
pessoas. Estava prestes a transformar-se em estrela, quer lhe agradasse quer
não.
– Sou uma vampe que adora o seu paizinho. Não uso joias falsas se
houver pérolas para mim. Por isso se tens massa é assim que eu gosto,
porque sou uma miúda assim – cantava Theta.
– Foi a nossa mãezinha que nos ensinou! – gritou Henry e o público ria às
gargalhadas.
A canção era uma mentira, para distrair as pessoas das suas preocupações
e tristezas. E todos concordavam tacitamente deixar-se cegar por ela. As
luzes do palco voltavam-se para Henry e Theta numa pantomima contra o
cenário de um prédio que tinham por trás. Henry batia nas teclas e Theta
cantava a plenos pulmões.
Mantinham a mentira e as pessoas adoravam.

***

Sam estava sentado a uma mesa empenada, nas traseiras de um bar perto
dos estaleiros da Marinha. Era o tipo de estabelecimento frequentado por
rufias e velhos marinheiros e cheirava a álcool de má qualidade e a suor.
Sam encostava-se à parede para poder avistar todo o local. Viu um homem
com um casaco molhado pela chuva sacudir-se junto à porta e encaminhar-
se lá para trás. O homem deslizou para o reservado onde Sam se
encontrava. Ficaram por uns instantes em silêncio. Sam colocou o postal
sobre a mesa. Momentos depois o homem ergueu o postal e meteu no bolso
os cinquenta dólares que estavam por baixo dele. Voltou o postal, leu-o e
devolveu-o a Sam.
– O Projeto Buffalo. Disseram que o tinham terminado depois da guerra.
Mas não foi assim.
– De que se trata?
O homem abanou impercetivelmente a cabeça.
– Um erro. Um sonho que correu mal. A velha história.
Sam apertou os lábios.
– Dei-lhe cinquenta dólares. Sabe o que me custou arranjar esse dinheiro?
O homem levantou-se e enfiou o chapéu na cabeça, lançando uma sombra
sobre o rosto.
– Ela está viva, se é o que deseja saber.
– Onde?
– Há verdades neste mundo que as pessoas preferem não saber. É por isso
que contratam gente como nós para poderem continuar a dançar e a
trabalhar e a ir para casa com as suas famílias. A comprar telefonias e pasta
de dentes. Quer um conselho? Esqueça isto, rapaz. Saia daqui e goze a vida,
pelo menos aquela que resta.
– Não sou assim.
– Então desejo-lhe sorte.
– Só isso? Vai mesmo pôr-se a andar e deixar-me sem nada?
O homem mordeu o interior da face e lançou um rápido olhar para se
certificar de que ninguém os observava. As pessoas que os rodeavam
pareciam desinteressadas, como a maioria. Retirou uma caneta barata do
bolso e escreveu um nome num guardanapo.
– Quer respostas? Eis um bom sítio por onde começar.
Sam olhou para o nome e apertou o maxilar.
– Isto é alguma piada?
– Disse-lhe que devia esquecer o assunto, não disse? – O homem dirigiu-
se à porta e desapareceu na chuva e na noite.
Sam deixou-se ficar a olhar para a mesa. Tinha vontade de dar um murro.
Queria embebedar-se e atirar uma garrafa até à lua. Olhou para o nome
escrito no guardanapo e amachucou-o, metendo-o no bolso. Encontraria a
mãe e saberia a verdade, por muito tempo que levasse e por muitos perigos
que corresse. Não importava quem magoasse pelo caminho.
Um homem voltou-se ligeiramente para ele.
– Não me vejas – resmungou Sam e o homem olhou em frente sem o ver.
Sam deslizou pela multidão sem ser visto, roubando carteiras pelo caminho.

Uma rajada de vento soprou pelas pedras da Rua Doyers, entrechocando as


lanternas da Casa de Chá. No quarto das traseiras, a jovem dos olhos verdes
saiu sufocada do seu transe.
– O que se passa? – perguntou um homem mais velho. – O que viste?
– Nada. Não vi nada.
O homem franziu a testa.
– Disseram-me que tinhas o poder de caminhar nos sonhos, de falar com
os mortos.
Ela encolheu os ombros e recebeu o dinheiro.
– Talvez os mortos não queiram nada consigo.
– Sou um homem honrado! – gritou ele.
– Veremos.
– És uma mentirosa! Uma mestiça sem honra! – acusou-a o homem. Ao
sair, bateu a porta com tanta força que os vidros estremeceram.
O jovem saiu da cozinha assustado.
– Pensei que tinhas dito que conseguias afastar os fantasmas.
A rapariga olhou para a janela.
– Enganei-me.

Mabel mal conseguia estudar com o barulho da sala ao lado. Os pais


realizavam uma das suas reuniões. Nos últimos vinte minutos a conversa
tornara-se mais acalorada, o que a levava a crer que a reunião se estenderia
até altas horas.
– Não apoiamos a violência – dizia o Sr. Rose. – Queremos reformas, não
uma revolução.
– Sem revolução não haverá reformas. Vejam a Rússia – insistiu um
homem com um sotaque cerrado.
– Sim. Vejam a Rússia – disse outro. – Está num caos.
– E os trabalhadores? Se não nos unirmos, caímos. A união faz a força.
Mabel espreitou pela porta para ver o que se passava. A sala estava cheia
de fumo e gente. Havia jornais e panfletos por toda a parte. A mãe falava
das condições na fábrica de roupa onde as mulheres não tinham qualquer
proteção.
– Tal como na fábrica Triangle Shirtwaist – explicava.
Mabel ficou admirada ao ver um jovem sentado no sofá. Olhava para ela
e ela tinha a certeza de já o ter visto algures. Mabel voltou para o quarto e
dirigiu-se à saída de incêndio em busca de ar fresco e limpo. Pouco depois o
jovem saiu pela janela e foi ter com ela.
– Lembra-se de mim?
– Em Union Square – disse ela, recordando-se. – Salvou-me.
Ele estendeu a mão.
– Arthur Brown.
– Mabel Rose – disse ela, apertando-lha.
Ele sorriu, olhando-a de soslaio.
– Bem sei.
– Não devia estar ali dentro com os outros?
– Vão passar a próxima hora a discutir sem chegar a parte alguma – disse
ele a rir e Mabel sorriu. Era exatamente o que acontecia naquelas noites. –
No final, concordarão em fazer um novo discurso ou em escrever um
editorial no jornal. Talvez tentem sindicalizar os estivadores ou fazer
piquetes numa ou duas fábricas.
– E não é bom? – perguntou Mabel.
– Intitulam-se radicais, mas, de facto, não o são.
– E tu és, suponho? – Mabel sentiu-se um pouco insultada em nome dos
pais. – Os meus pais sacrificaram muito pelo bem dos outros.
Arthur Brown lançou-lhe um olhar firme.
– Incluindo a filha?
Mabel sentiu o golpe no seu âmago. Corou.
– Não estás a ser delicado.
– Pois não. Desculpa. As intenções deles são boas.
Mabel inclinou a cabeça.
– Mas…?
Arthur sorriu como quem pede desculpas.
– Há ocasiões em que a mudança precisa de uma pequena ajuda. Pertenço
a um grupo que quer que as coisas mudem mais depressa. À nossa maneira.
Se um dia quiseres juntar-te a nós, fazia-nos jeito uma rapariga esperta,
como tu.
– Geralmente ajudo os meus pais – disse Mabel.
Ele acenou afirmativamente.
– Tens razão. Esquece que falei neste assunto. Não tem de ser uma
reunião. Há um estabelecimento lá ao pé que faz uns ótimos egg creams.
Gostas de egg creams?
Arthur tinha uns lindos olhos castanhos. Mabel sentia uma emoção
eletrizante quando olhava para eles.
– Quem é que não gosta?
Meteu a mão no bolso e Mabel viu o vulto de uma arma.
– Tens aqui o meu cartão.
Mabel olhou para as letras pretas.
ARTHUR BROWN.
– É o teu nome verdadeiro? – perguntou.
Ele esboçou um breve sorriso.
– Agora é.
Mabel estremeceu no ar frio.
– Tenho de voltar ao estudo.
– Foi um prazer, Mabel Rose. – Tocou no chapéu e segurou na janela para
que ela entrasse, antes de se dirigir à casa de jantar e à discussão, que,
conforme Mabel sabia, iria até altas horas.
Em segurança no seu quarto, Mabel observou Arthur Brown a expor
apaixonadamente os seus pontos de vista. Falava com uma confiança pouco
comum para uma pessoa tão jovem. Em determinada altura viu-a e sorriu,
mas Mabel saiu rapidamente do seu campo de visão. Refletiu por uns
instantes, abriu a gaveta secreta da sua caixa de música e guardou o cartão
de Arthur Brown.

No apartamento em desordem do velho Bennington, a menina Addie saiu


da janela e andou pela sala, sem saber o que havia de fazer. Por fim, voltou-
se para a irmã.
– Deixa-me mudar de vestido, minha irmã.
Algum tempo depois saiu do quarto envergando uma velha camisa de
dormir e um avental.
– Pronto.
A menina Lillian trouxe um dos gatos da cozinha, o gato maior chamado
Felix que era um excelente caçador de ratos, o que era uma pena. Estava
mole nos braços dela depois do leite com ópio. Deitou-o na mesa da
cozinha que fora coberta com jornais. Cantarolando, a menina Addie abriu a
gaveta da escrivaninha e retirou um punhal. Este era antigo, mas muito
afiado.
– Que canção tão bonita, minha irmã. O que é? – perguntou Lillian.
– Uma coisa qualquer que ouvi na telefonia, cantada por uma soprano.
Mas não gostei da voz dela. Demasiado aguda.
– Acontece por vezes – comentou a menina Lillian a rir. – Estamos
prontas?
– Chegou o momento – disse a menina Addie.
A menina Lillian agarrou Felix com força e o pequeno coração do gato
disparou. Tentou debater-se, mas estava demasiado drogado para o fazer.
– Em breve tudo estará terminado, gatinho – garantiu a menina Lillian.
Fechou os olhos e falou numa longa confusão de palavras, antigas como o
tempo, enquanto a menina Addie mergulhava o punhal no ventre do gato,
fazendo a necessária incisão. O gato imobilizou-se. A menina Addie meteu
a mão na cavidade do estômago e retirou os intestinos, para os colocar
numa taça. Sujou o avental e sentiu-se satisfeita por ter mudado de roupa.
Ficou a olhar para a taça, de testa franzida. A menina Lillian deixou o
cadáver ensanguentado do gato e juntou-se a ela.
– Que se passa, minha irmã?
– Eles vêm aí – disse a menina Addie. – Oh, minha querida irmã, eles
estão a chegar.

No silêncio do museu, Will estava sentado à secretária, iluminado apenas


pela luz verde do candeeiro.
Anteriormente, reparara num carro estacionado do outro lado da rua com
dois homens sentados no interior, de vigia. Um deles comia frutos secos de
um cartucho de papel, deitando as cascas pela janela. Will trancara tudo e,
assobiando uma descuidada melodia, dirigira-se à máquina automática com
a imagem do museu para comer uma sandes e beber um café, que mal
provara. Regressou ao museu apenas quando viu o automóvel afastar-se,
franzindo a testa ao notar que o bocado de celofane, que deixara na
ombreira da porta, fora quebrado. Percorreu lentamente o edifício,
examinando todas as salas. Depois de um cuidadoso inventário, chegou à
conclusão de que nada faltava. Fora apenas uma ronda. Por enquanto.
Will esticou o pescoço para olhar para o mural da sala, os anjos e os
demónios pairando sobre montes, planícies e rios, sobre os patriotas, os
pioneiros, os índios e os imigrantes do Novo Mundo. Depois na luz
esverdeada da silenciosa biblioteca caminhou até encontrar uma enorme
edição encadernada a couro da Declaração da Independência. Do interior
das páginas retirou um envelope gasto selado no canto superior direito:
DEPARTAMENTO DO PARANORMAL DOS ESTADOS UNIDOS, 1917. Abriu a pasta na
primeira página.
Memorando. Para: William Fitzgerald, Jacob Marlowe, Rotke
Wasserman, Margaret Walker
Confidencial.
Projeto Buffalo.
Will sentou-se à secretária para ler mais uma vez a ficha. Quando
terminou, deixou-se ficar a olhar as sombras.
E ali continuou durante muito tempo.
O HOMEM DO CHAPÉU ALTO

A terra era uma promessa e uma ideia de liberdade, nascida da ânsia


coletiva de uma nação inquieta, construída sobre sonhos. Cada pedra, cada
ribeiro, cada nascer e pôr do Sol pareciam um bom ajuste, uma garantia de
mais. A terra era robusta. Os rios corriam rápidos em correntes de desejo.
As montanhas cor de púrpura coroavam planícies cobertas de erva. Uma
festa de ulmeiros e carvalhos, poderosas sequoias e pinheiros acolhedores
cantavam nas encostas que desciam suavemente para os vales, gratos por
essa canção. Os postes de telefone brotavam junto às estradas, com os fios
solitários estendendo-se pelos campos abertos em finas promessas de
ligação. Toscas sebes de nogueira, das que fazem boa vizinhança, limitavam
as quintas rústicas, rodeando celeiros vermelhos e corajosos moinhos. O
milho sussurrava ao de leve na brisa quente.
Nas cidades havia ruas principais como as que preenchem os corredores
da memória sombria e agradável. O campanário de uma igreja. A barbearia.
A loja dos gelados. A praça e um parque perfeito para piqueniques. O talho.
A padaria. A fábrica de velas. No extremo das cidades imaginárias, pontes
cobertas embelezadas pelo reflexo da maravilhosa folhagem de outono
pairavam sobre rios cheios de peixe dignos de um rei ferido. No tribunal,
sob uma asmática ventoinha, os dedos das mulheres atarefavam-se a bordar
– LAR DOCE LAR, DEUS ABENÇOE A AMÉRICA – e os maridos abanavam-se com
jornais dobrados enquanto discutiam sonolentos se o homem fora feito à
imagem de um mestre artesão, com uma chave de corda nas costas, posto a
funcionar para cumprir o seu papel num destino misterioso, preordenado,
ou se tinha saído a rastejar da lama e de entre as árvores das selvas, primo
das feras, uma experiência evolucionária de livre-arbítrio, deixado em
liberdade num mundo de escolhas e possibilidades. Não se obteve qualquer
veredito.
As estradas precisavam de espaço. Estendiam-se. Vagueavam e
conquistavam. Ultrapassavam espaços abertos. Os veados e o antílope. O
búfalo. Passavam pelas tribos empurradas para os lados sob a vigilância da
cruz, pois esta nação tem as suas reservas. Acompanhavam o passo do
caminho de ferro, a grande e metálica espinha dorsal do progresso, a coluna
da indústria. O canto das cigarras juntava-se ao assobio do comboio a
vapor, o sinal agudo das fábricas de tijolo, libertando os seus suados
operários às cinco horas, depois recebendo-os de novo às sete. Os mineiros
de carvão cortando e içando a carga, sempre de olho no canário. O nosso
oeste salpicado de petróleo vindo da terra dura, manchando tudo de
dinheiro. Nos campos de algodão, os infelizes deixavam as suas harpas
sobre as árvores.
As estradas chegavam às cidades. Cidades cintilantes, frenéticas de
ambição, ricas de comércio de desejos, um paraíso dourado de empresários
profetas, cartazes anunciando a abundância pressentida nos jornais,
prometida pela Avenida Madison: «Médicos recomendam Lucky Strikes –
torrados para o seu prazer!» «Acompanhe os tempos! Imperial Airways.»
«Claro que quer usar Creme Dentífrico Colgate!» «Studebaker – o
automóvel com reputação!»
As pessoas esculpiram monumentos aos grandes homens, aos homens que
construíram a nação, conduziram exércitos, as suas crenças guardadas em
mármore e granito. As pessoas construíam ídolos e destruíam-nos,
batizando-os em desfiles com serpentinas e papelinhos, abençoando-os com
longas lágrimas de perdas e ganhos, tributos desperdiçados, lançados com
abandono das altas janelas, comemorando os bons tempos que pareciam
eternos e a terra um vitelo gordo.
A roda do céu voltou-se para o crepúsculo; as estrelas ainda apagadas.
Um vento ansioso inquietou as copas das árvores, as mães chamaram os
filhos dos seus jogos de escondidas e do trapo queimado, para se lavarem e
darem graças antes do jantar. As crianças queixaram-se, mas as mães foram
firmes e os jogos deixados como promessas de amanhã.
Acenderam-se os candeeiros da rua. O silêncio caiu sobre fábricas,
escolas, tribunais e igrejas. Uma leve bruma vespertina rolou como um
bálsamo de esquecimento.
Nos cemitérios os mortos dormiam de olhos abertos.
O homem cinzento de chapéu alto saiu da bruma e observou a terra.
Havia algum tempo que não aparecia e muita coisa mudara na sua ausência.
As coisas mudavam sempre. A sua pele era da cor cinzenta sarapintada das
asas das traças. Os olhos semicerrados e negros, o nariz aquilino e os lábios
finos como um pensamento novo. O casaco rasgado cobria-o como uma
mortalha aberta. Sacudiu o pó das suas muitas dobras. Os corvos voavam,
crocitando, para o céu agora tinto de misteriosas nuvens de uma tempestade
iminente. Falou com os corvos num murmúrio. Depois com as árvores, com
as rochas, com os rios e os montes. Falou em muitas línguas e numa língua
para além das palavras.
Os mortos escutavam nas suas sepulturas.
O homem cinzento entrou no campo cor de mel, deixando que os troncos
lhe tocassem as gretas calejadas das mãos. O brilho já baço do seu chapéu
refletia a embaciada miniatura da terra. Um coelho saltitava por ali,
farejando alimento. Curioso, rodopiava junto à ponta afiada da bota do
homem cinzento. Este ergueu o animal assustado pela pele do pescoço. O
coelho debateu-se e esperneou violentamente. Rápido como o golpe de um
mágico, o homem cinzento abriu o pelo e a pele do coelho com os seus
longos dedos e retirou-lhe o pequeno coração, ainda febril nas suas
pulsações.
O coelho esperneou exatamente mais duas vezes e depois aquietou-se. O
homem do chapéu alto apertou o coração com o seu pulso quebradiço. O
sangue caiu na terra fértil, gota a gota.
Os mortos ouviram.
O homem do chapéu alto fechou os olhos e inalou a doçura do ar. Na sua
mão, o coração do coelho batia levemente.
– Chegou o momento – disse numa voz tão esfarrapada quanto o seu
casaco.
O coração escorregou-lhe da mão. Lançou a cabeça para trás e ergueu os
longos dedos ensanguentados para o céu cor de ardósia. As nuvens
rodopiavam. O vento açoitava o trigo. Ele disse as palavras e os relâmpagos
estalaram-lhe nas pontas dos dedos. Subiram e espalharam-se. Do céu vinha
uma luz violenta. Um raio atingiu o lado de uma árvore solitária e lançou
um sinal ardente na grande planície ocre, visto apenas pelo vento, ouvido
apenas pelos mortos que acordavam.
O homem do chapéu alto atravessou o campo devastado em direção às
vilas e cidades adormecidas, às fábricas e aos campos de algodão, às linhas
férreas, às estradas, aos postes dos telefones, aos desfiles. Em direção aos
monumentos, aos heróis, em direção aos desejos e desilusões das pessoas.
Os relâmpagos estalavam em seu redor, enquanto ele caminhava, deixando
atrás de si o solo negro como as cinzas.
SENTADO NO TOPO DO MUNDO

À entrada da floresta envolta em nevoeiro, James acenou. Evie ouvia o huh-


huh da sua própria respiração enquanto o seguia através da neve e das
árvores. O cheiro dos pinheiros era forte, o ar frio, e até no seu estado
onírico Evie tinha consciência de que aquilo era diferente. Não estava bem.
Nunca escutara a sua própria respiração nem aspirara o cheiro dos
pinheiros. Evie passou a mão pela árvore e sentiu a casca grossa. Como já
acontecera, seguiu James até à clareira com os seus soldados assombrados.
Olhou para a direita. O nevoeiro cerrado era mais leve no cimo, permitindo-
lhe ver uma linha de telhados em ameias e o que pareciam ser torreões. Um
castelo?, perguntou a si mesma.
O sargento deixou cair o cigarro e Evie quis gritar-lhe que tivesse
cuidado. Mas não conseguiu. Era apenas espetadora naquele sonho. A luz,
quando apareceu, era infinitamente mais brilhante, mais forte do que antes.
Evie saiu da trincheira e correu pelos campos ensanguentados de papoilas.
James esperou. A dormir, tinha os músculos tensos, aguardando o momento
em que ele retiraria a sua máscara de gás e se transformaria numa horrenda
aparição.
A mão de James pousou na máscara. Quando a puxou, era ainda o belo
rapaz, o filho favorito.
Abriu a boca e, mais uma vez, Evie esperou um novo horror.
– Olá, miúda – disse ele numa voz que Evie não escutava havia dez anos.
– Nunca o deviam ter feito.
Evie acordou com uma pequena exclamação estrangulada e a testa
molhada de suor. Tremiam-lhe as mãos. Ele falara com ela! Ar. Precisava
de ar. Subiu a escada de incêndio e foi para o telhado. O ar da noite secou-
lhe o suor dos braços. Estava gelada – era novembro; o verão partira de vez
– mas não conseguia suportar a ideia de voltar para o seu quartinho e para o
seu sono perturbado. À entrada do Central Park, um bêbado andava aos
ziguezagues do passeio para a rua, gritando um nome de mulher e
chorando. De vez em quando voltava o rosto para o céu, como se
implorasse misericórdia a um tribunal invisível. Depois, abanou a cabeça.
Evie sobressaltou-se ao ouvir um ruído atrás de si.
– Desculpa, não quis perturbar-te – disse Jericho.
– Já estou perturbada.
– Estás a tremer.
– Estou bem.
– Não. Não estás. – Tirou o casaco e colocou-lho sobre os ombros.
– Agora vais tu ficar com frio.
– Nem por isso o sinto.
– Oh – disse Evie.
– Sonhaste outra vez?
Ela acenou afirmativamente.
– Mas foi diferente. Ele falou comigo, Jericho. Olhou diretamente para
mim e disse: «Nunca o deviam ter feito.»
– O quê? Feito o quê?
– Não sei. Mas não posso deixar de sentir que foi mais do que um sonho,
que ele quer dizer-me uma coisa muito importante.
– Ou é apenas um sonho porque sentes a falta dele. Por vezes ainda sonho
com a minha família.
– Talvez.
Jericho pegou-lhe na mão. A emoção do toque dele viajou pelo braço de
Evie que tentou ignorar a sensação.
– Não pensei... nunca me atrevi a esperar que compreendesses. Pensei que
me consideravas um fenómeno.
– Somos todos fenómenos. Podíamos arranjar trabalho numa feira.
Venham ver os Inadaptados de Manhattan! Proibida a entrada a crianças e
mulheres grávidas. – Evie riu amargamente, tentando evitar as lágrimas.
– Durante todo este tempo, pensei que estava sozinho. Diferente. Mas tu
também és diferente. – Olhava-a agora de outra forma. – Durante muito
tempo quis morrer. Imaginava-me já morto por dentro, que me tinham
matado quando me transformaram em máquina. Mas agora não me sinto
morto. – Tinha o rosto junto ao dela. Pousou-lhe a mão nas costas. – Sei
bem o que quero.
– O que é? – murmurou Evie.
Nada havia de hesitante ou desajeitado no beijo de Jericho. Encostou a
boca à de Evie com feroz insistência. E ela sentiu-se acordada e viva.
Evie empurrou-o.
– Não posso.
– Porque não? – Jericho tinha uma expressão dura. – É por causa do que
sou?
Ela abanou a cabeça.
– É por causa da Mabel.
Ele olhava-a nos olhos.
– Mas eu não quero a Mabel. Quero-te a ti. Diz-me que não queres que eu
te beije e não te beijo.
Evie nada disse. Jericho puxou-a para si e beijou-a mais uma vez. Evie
retribuiu o beijo, feliz por sentir os lábios dele nos seus. Feliz por sentir as
mãos dele nos seus cabelos, feliz por lhe poder puxar a camisa com as suas.
Era assim que o mundo funcionava, não é verdade? Estabelecemos um
objetivo e vem a vida e prega-nos uma partida. Mabel queria Jericho;
Jericho queria Evie. E, nesse momento, Evie queria esquecer. O beijo de
Jericho nessa noite não tinha obrigatoriamente de significar alguma coisa.
No dia seguinte a manivela giraria ao contrário e as mudanças do mundo
seriam postas em movimento. Poderia arranjar as coisas no dia seguinte ou
no outro. Mas aquele momento era o agora e precisava dele. Precisava de
Jericho. Evie aninhou-se de encontro ao peito largo de Jericho e deixou que
ele a embalasse nos seus braços. Ele beijou-a no alto da cabeça, enquanto
olhavam para oriente, onde o Sol ia nascer, manchando os edifícios com
uma leve esperança de aguarela.
Mas aproximava-se qualquer coisa. Qualquer coisa que ela não
compreendia. Qualquer coisa terrível, e tinha medo.
– Estás bem? – murmurou Jericho, com os lábios no pescoço dela.
– Sim. Tudo ótimo – mentiu.
Lá em baixo na rua o bêbado deixou de chamar pela mulher. Ajoelhou-se,
descansou a cabeça nas pedras duras e chorou.
– O que perdemos, o que perdemos…
Algures num dos edifícios sem rosto tocava uma telefonia. A voz alegre
de Al Jolson afogava a tristeza do bêbado na sarjeta: «I’m sitting on top of
the world… just rolling along… just rolling along…»21
O Sol iluminou o horizonte. A luz feriu os olhos dela.
– Beija-me – disse Evie.
Ele tomou-lhe o rosto nas mãos e o beijo ocultou o céu.
21 «Estou sentado no topo do mundo… rolando… rolando». (N. da T.)
NOTA DA AUTORA

Levei a cabo uma extensa pesquisa para criar o mundo de Os Adivinhos.


Passei longas horas em várias bibliotecas e arquivos, debrucei-me sobre
livros, PDF, fontes primárias e fotografias. Não fiz mal a historiadores ou
bibliotecários durante a feitura do livro, mas assediei-os extensivamente
com perguntas. Estou muito grata pela ajuda e pelos conhecimentos dessas
pessoas tão maravilhosas e conhecedoras do assunto.
Dito isto, saibam que se trata de uma obra de ficção e, para servir os
deuses da história, tive de tomar certas liberdades. A autora assume todas as
responsabilidades por este ato de remendo narrativo (Remendo Narrativo,
Narrative Tinkering, é o nome da minha nova banda. Imagino que seja uma
banda pós-moderna com diversos graus de pilosidades. Mas estou a
divagar.)
Perguntam-me que tipo de remendos. Bem, havia realmente um Hotsy
Totsy Club gerido pelo famoso gangster Legs Diamond. Situava-se no
Bairro dos Teatros de Nova Iorque e não no Harlem. Mas o nome pareceu-
me tão encantador que não resisti a mantê-lo. Não existe qualquer cemitério
secreto africano em Upper Manhat-tan, ou então será tão secreto que nem
eu o conheço. Também não existe um Museu dos Arrepios; e só na minha
imaginação há um edifício de apartamentos chamado Bennington, ocupado
por estranhas senhoras com gatos, e com iluminação duvidosa.
Mas grande parte do que acabaram de ler veio diretamente dos livros de
história e alguns dos cenários mais perturbadores são baseados em factos: O
movimento eugenista é real, tal como são reais os assustadores placards
iluminados nas feiras dos estados. O mesmo em relação às Famílias
Saudáveis para as Futuras Lareiras, o Ku Klux Klan, o Ato de Exclusão
Chinesa (e o Ato de Imigração de 1924), a Igreja do Pilar de Fogo. Muitas
vezes os monstros que criamos na nossa imaginação não são tão
assustadores como os monstruosos atos perpetrados por vulgares seres
humanos tendo uma qualquer causa como objetivo.
Tentei manter-me o mais fiel possível ao período e à sua história enquanto
construía um enredo que inclui mistério, magia, monstros e o inexplicável –
ou, como dizemos em minha casa, «uma terça-feira como qualquer outra».
Existem vastos recursos se estiver interessado em pesquisar sobre esta
época. Pode encontrar a bibliografia completa no site.
«http://www.thedivinersseries.com/». Feliz e arrepiante leitura.
AGRADECIMENTOS

Muitas pessoas foram imprescindíveis para conseguir que Os Adivinhos


ultrapassasse o impulso inicial de «Tenho uma ideia maluca...» e chegasse a
ser uma obra completa.

Seria imperdoável da minha parte não agradecer aqui as suas preciosas


contribuições. Devo agradecimentos imensos a toda a equipa da Little,
Brown Books for Young Readers: Megan Tingley, Andrew Smith, Victoria
Stapleton, Zoe Luderitz, Eileen Lawrence, Melanie Chang, Lisa Moraleda,
Jessica Bromberg, Faye Bi, Stephanie O’Cain, Renée Gelman, Shawn
Foster, Adrian Palacios e Gail Doobinin.
À minha editora, a surpreendente Alvina Ling, que trabalha mais do que o
James Brown (principalmente porque ele já morreu) e conduziu este
manuscrito com segurança, brilho e um ou outro intervalo para karaoke. O
mesmo para a assistente editorial Bethany Strout, que tem um jeito
fantástico para o pormenor e que canta uma maliciosa versão de «Baby Got
Back».
Ao meu agente Barry Goldblatt, como sempre admirável; diria o mesmo
dele se não fôssemos casados. Mas somos, o que é uma sorte para mim.
À revisora JoAnna Kremer, semelhante a uma agente governamental
criada em laboratório, com o objetivo de defender os manuscritos de erros
egrégios. Sem dúvida a investigadora de factos Elizabeth Segal veio do
mesmo laboratório. Os meus eternos agradecimentos a ambas as senhoras.
Nada disto me teria sido possível sem a temeridade da minha incrível
assistente Tricia Ready, que me ajudou em tudo, desde a investigação às
marcações, da leitura do manuscrito à luta pela lata de Dr Pepper.
Fiquei abismada com a generosidade dos especialistas prontos a ajudar os
infelizes escritores na investigação. Assim, tenho de agradecer à
incomparável Lisa Gold, deusa da investigação. Queria ser egoísta e
guardá-la só para mim, mas é demasiado fantástica para que isso aconteça:
«www.lisagold.com».
A cidade de Nova Iorque tem maravilhosas bibliotecas e maravilhosos
bibliotecários; muitos deles ajudaram-me como super-heróis sem capa.
Muito obrigado e um recorte em tamanho natural de Ryan Gosling às
amigas bibliotecárias Karyn Silverman, da Escola Secundária Elizabeth
Irwin e a Jennifer Hubert Swan, da Little Red School House. Mais
agradecimentos e um cesto de fruta a Eric Robinson da New York
Historical Society; Richard Wiegel e Mark Ekman do Paley Center for
Media; Virgil Talaid do New York Transit Museum; Carey Stumm e Brett
Dion dos Arquivos do New York Transit Museum; e ao pessoal da
Biblioteca Pública de Nova Iorque, do Schomburg Center for Research in
Black Culture e da Biblioteca Pública de Brooklyn.
Nunca agradecerei completamente aos historiadores Tony Robins e Joyce
Gold que me conduziram em passeios históricos pelo Harlem e
Chinatown/Lower East Side, respetivamente, pelo tempo que gastaram
comigo. O Dr. Stephen Robertson, da Universidade de Sydney, autor de
Playing the Numbers: Gambling in Harlem Between the Wars e do blogue
Digital Harlem, que teve a bondade de responder às minhas perguntas sobre
o jogo dos números, depois da sua conferência na Universidade de
Columbia. E ao músico Bill Zeffiro, uma fonte de conhecimentos sobre a
música dos anos 1920.
Tenho uma dívida de gratidão para com os meus leitores Beta, Holly
Black, Barry Lyga, Robin Wasserman, Nova Ren Suma e Tricia Ready,
pelas suas preciosas opiniões acerca dos primeiros rascunhos. Muito amor e
agradecimentos aos meus colegas de escrita, companheiros nesta viagem,
que escutaram os meus lamentos, responderam às minhas perguntas e me
deixaram desenvolver os vários cenários do enredo sem engolirem uma
cápsula de cianeto: Holly Black, Coe Booth, Cassandra Clare, Gayle
Forman, Maureen Johnson, Jo Knowles, Kara LaReau, Emily Lockhart,
Josh Lewis, Barry Lyga, Dan Poblocki, Sara Ryan, Nova Ren Suma e Robin
Wasserman.
Como sempre obrigada ao meu filho Josh pela sua bem-humorada
paciência quando dizia revirando levemente os olhos: «Ela fica assim no
fim dos prazos.» Saíste perfeitinho, miúdo.
Por fim, mas não menos importante, um grito de agradecimento aos
maravilhosos empregados do Red Horse Café em Brooklyn – Chris,
Derrick, Bianca, Aaron, Jen, Julia, Seth, Brent, Carolina – que tanto café
me serviram.
Se me esqueci de alguém, aceitem por favor as minhas mais sinceras
desculpas. Da próxima vez que me encontrarem, zanguem-se a sério, até
que eu vos compre um gelado para agradecer.

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