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Quando Jenny compra um jogo para o namorado, Tom, ela se vê inexplicavelmente atraída
pelo cara atrás do balcão. Há algo misteriosamente atraente nos olhos claros de Julian e
nos cabelos loiros descoloridos. E quando ele coloca o jogo em suas mãos, ela sabe que a
conexão deles é algo mais profundo.
Mas quando Jenny e seus seis amigos começam a jogar o jogo na festa de aniversário de
Tom, uma noite de amigos e diversão rapidamente se transforma em uma noite de terror e
amor obsessivo. Porque o jogo não é apenas um jogo - é a nova realidade dos sete
amigos, onde Julian reina como o Príncipe das Sombras. Um por um, os amigos devem
enfrentar suas fobias para ganhar o jogo. Perder o jogo é perder a vida. E isso é só o
começo...
Jenny olhou por cima do ombro. Eles ainda estavam atrás dela, do outro
lado da rua, mas defini vamente seguindo-a. Combinaram o ritmo com o
dela; quando ela diminuiu a velocidade para fingir olhar na vitrine de uma
loja, eles diminuíram também.
Eram dois homens, um ves do com uma camiseta preta e jaqueta de
couro, com uma bandana preta na cabeça; e o outro com uma camisa
comprida de xadrez preta e azul, desabotoada e suja. Ambos pareciam
problemas.
A loja de jogos estava a alguns quarteirões à frente. Jenny acelerou um
pouco o passo. Este não era o melhor bairro da cidade e ela viera aqui
especificamente porque não queria que nenhum de seus amigos a visse.
Não nha percebido, no entanto, que a Eastman Avenue tornara-se
perigosa. Após os úl mos tumultos, a polícia interviu, mas muitas das lojas
vandalizadas ainda nham janelas com tábuas, o que dava a Jenny uma
sensação assustadora entre as omoplatas. Eram como olhos enfaixados
voltados para ela.
Nem todo lugar é para se estar ao entardecer... Mas ainda não está
entardecendo, Jenny disse a si mesma ferozmente. Se ao menos esses dois
caras se mudassem para outra rua. Seu coração estava batendo
desagradavelmente.
Talvez eles vessem ido embora...
Ela diminuiu a velocidade novamente, tentando com que os pés no tênis
Triton não fizessem barulho na calçada suja. Por trás e à esquerda, ouviu o
ruído de tênis de corrida e botas de motoqueiro. Os passos diminuíram.
Eles ainda estavam lá.
Não olhe para trás, ela disse a si mesma. Pense. Você precisa atravessar a
Joshua Street para chegar à loja - mas isso significa atravessar a esquerda,
para o lado da rua. Má ideia, Jenny. Enquanto você es ver atravessando,
eles podem alcançá-la.
Tudo bem, então, ela cortaria caminho antes disso e iria para a próxima rua
ali acima - qual era mesmo? Montevidéu. Ela iria direto para Montevidéu e
encontraria uma loja para se esconder, um lugar para se esconder até que
os dois homens passassem.
A Tower Records, na esquina da Eastman e Montevidéu, não estava mais
ali. Que pena. De costas retas, teimosamente fingindo que estava
perfeitamente calma, Jenny passou pelas janelas escuras. Teve um
vislumbre de si mesma em uma delas: uma garota esbelta com cabelos que
Michael havia dito uma vez ser da cor do mel à luz do sol. Suas
sobrancelhas eram retas, como duas pinceladas decisivas, e seus olhos
verde-floresta eram escuros como agulhas de pinheiro e ainda mais sérios
que o normal. Ela parecia preocupada.
Jenny virou à direita na rua transversal. Assim que saiu da Eastman Avenue,
ficou parada como um cervo, a mochila balançando da mão, os olhos
procurando desesperadamente Montevidéu em busca de abrigo.
Bem em frente à ela havia um terreno baldio e, ao lado, um restaurante
tailandês fechado. Atrás dela, a maior parte da loja de discos apresentava
uma parede em branco para a rua até o parque.
Nada. Nenhum lugar para esconder.
O pescoço de Jenny formigou e dedos começaram a formigar. Ela se virou
para Eastman e abraçou a parede, jogando os cabelos para trás para ouvir.
Foram isso passos ou apenas as pancadas doen as de seu próprio coração?
Ela desejou que Tom es vesse com ela. Mas é claro que esse era o ponto.
Tom não podia estar com ela, já que era algo para sua festa que ela estava
comprando.
Era para ter sido uma na piscina. Jenny Thornton era conhecida por suas
festas na piscina, e ali, no sul da Califórnia, no final de abril, era um tempo
perfeitamente ó ma para uma. A temperatura pairava frequentemente em
meados dos anos setenta à noite, e a piscina dos Thornton brilhava como
uma enorme jóia verde-azulada no quintal, emi ndo pequenos fiapos de
vapor de sua super cie. O cenário perfeito para um churrasco ao ar livre.
Então, três dias atrás, a onda de frio chegou... e os planos de Jenny foram
arruinados. Ninguém, exceto os ursos polares, nadava nesse po de clima.
Ela pretendia repensar as coisas, ter outra ideia brilhante, mas nha sido
uma semana daquelas. O schnauzer de quatorze anos de Summer
finalmente teve que ser sacrificado, e ela precisava de Jenny para apoio
moral. Dee fez um teste de kung fu e Jenny fora torcer por ela. Audrey e
Michael veram uma briga, e Zach gripou...
E então de repente já era sexta-feira à tarde, apenas algumas horas antes
da festa e todos esperando algo especial e original.
Felizmente, uma ideia veio à ela no meio da aula de Aplica vos para
Computador. Um jogo. As pessoas davam festas de mistério sobre
assassinato, festas de Pic onary e coisas assim. Por que não um jogo hoje à
noite? Mas teria que ser um muito especial, é claro. Algo chique o
suficiente para Audrey, sexy o suficiente para Tom e até assustador, se
possível, para manter o interesse de Dee. Algo que sete pessoas poderiam
jogar de uma só vez.
Noções vagas passaram pela cabeça de Jenny dos únicos jogos realmente
emocionantes que já brincara quando criança. Não os que os adultos
arranjaram, mas o po que você inventava por conta própria quando saía
de casa em segurança. Verdade ou desafio e O Jogo da Garrafa. Alguma
combinação desses dois mas mais sofis cados, é claro; mais adequado
para alunos do ensino médio.
Foi isso o que a levou à Eastman Avenue. Ela sabia muito bem que não era
o melhor bairro, mas imaginara que pelo menos nenhum de seus amigos a
veria e descobriria essa disputa de úl ma hora por entretenimento. Jenny
havia entrado nessa confusão; ela se livraria dela.
Só que agora a bagunça estava ficando maior do que ela esperava.
Ela defini vamente podia ouvir passos agora. Eles pareciam muito
próximos e estavam se aproximando rapidamente.
Jenny olhou novamente para Montevidéu, sua mente observando detalhes
irrelevantes com precisão obsessiva. A parede da loja de discos não estava
realmente em branco, no final das contas. Havia um mural, uma pintura de
uma rua que parecia muito com a Eastman Avenue antes dos tumultos.
Partes estranhas dele pareciam reais. Como a vitrine pintada no meio,
aquela com a placa que Jenny não conseguia entender. Tinha uma porta
que parecia real: a maçaneta parecia tridimensional. De fato...
Assustada, Jenny deu um passo em direção a ela. A maçaneta parecia
mudar de forma enquanto ela se movia, como qualquer objeto
tridimensional. Ela olhou mais de perto e descobriu que podia ver a
diferença de textura entre a porta de madeira e a parede de concreto
pintada.
A porta era real.
Não poderia ser, mas era. Havia uma porta presa no meio da pintura.
Como Jenny não sabia. Mas não havia tempo para pensar nisso. Ela
precisava sair da rua, e se essa porta es vesse destrancada...
Impulsivamente, ela pegou a maçaneta.
Era lisa como porcelana e virou na mão dela. A porta se abriu para dentro.
Jenny viu uma sala mal iluminada. Um instante de hesitação depois, então
ela entrou.
Assim que o fez, conscientemente percebeu a placa acima da porta. Dizia:
More Games.
E ali estava uma trava por dentro da maçaneta, a qual Jenny pressionou.
Não havia janelas com vista para Montevidéu, então ela não podia ver se
os dois caras a haviam seguido. Ainda assim, teve uma tremenda sensação
de alívio. Ninguém a encontraria ali.
Então, ela pensou, mais jogos? Ela costumava ver cartazes com "Mais
livros" nas livrarias gastas e ar s cas por ali, com uma seta apontando para
uma escada estreita que dava acesso à outro andar. Mas como poderia
haver mais jogos quando ainda não havia jogos?
O fato de entrar logo em uma loja de jogos era estranho, mas muito
conveniente. Podia fazer suas compras enquanto esperava os caras durões
irem embora. O dono provavelmente ficaria feliz em tê-la; com aquele
mural camuflado na porta, talvez não vendesse muita coisa.
Ao olhar em volta, viu o quão estranha a loja realmente era. Mais estranha
do que as lojas estranhas de sempre na Eastman Avenue. A sala estava
iluminada por uma pequena janela e várias luminárias an quadas com
persianas de vidro colorido. Havia prateleiras, mesas e mais prateleiras
como em qualquer loja, mas os objetos nelas eram tão exó cos que Jenny
sen u como se vesse entrado em outro mundo. Eram todos jogos? Não
poderiam ser.
A mente de Jenny se encheu de repente com imagens selvagens de As Mil
e Uma Noites, imagens de bazares estrangeiros aonde qualquer coisa -
qualquer coisa - poderia ser vendida. Ela olhou para as prateleiras com
espanto.
Deus, que tabuleiro de xadrez estranho. Triangular. Como alguém poderia
realmente jogar em um tabuleiro assim? E havia outro, com peças de
xadrez estranhas e entalhadas, esculpidas em cristal de rocha. Parecia mais
do que an go... parecia ancestral.
Assim como uma caixa de metal coberta com arabescos e inscrições. Era de
latão ou talvez bronze, decorada com ouro e prata e escrita árabe. O que
quer que es vesse naquela caixa, Jenny sabia que não podia pagar.
Alguns dos jogos que ela conseguiu iden ficar, como a mesa de mogno
mah-jongg com azulejos de marfim derramados descuidadamente no topo
de feltro verde. Outros, como uma caixa esmaltada estreita repleta de
hieróglifos e uma outra vermelha gravada com uma estrela de David
dourada em círculo, Jenny nunca nha visto antes. Havia dados de todos os
tamanhos e descrições: alguns de doze lados, outros em forma de
pirâmides e alguns cúbicos comuns feitos de materiais estranhos. Havia
baralhos de cartas fantas camente coloridos como se fossem manuscritos
iluminados.
O mais estranho de tudo é que as estranhas coisas an gas eram
misturadas com estranhas coisas ultramodernas. Um quadro de avisos de
cor ça na parede traseira exibia letreiros com a inscrição: "Chama".
"Grito". "Delírio." "Ande nas bordas." "Diversão baratas". Cyberpunk, Jenny
pensou, reconhecendo vagamente os termos. Talvez eles vendam jogos de
computador aqui também. De uma caixa de som no balcão, vinha uma
ácida música ambiente de 120 ba das por minuto.
Este, pensou Jenny, é um lugar muito peculiar.
Parecia tão isolado de tudo lá fora. Como se o tempo não exis sse aqui ou
corresse de maneira diferente. Até a luz solar empoeirada que se inclinava
naquela janela parecia errada. Jenny poderia jurar que deveria vir de outra
direção. Um calafrio a atravessou.
Você está confusa, disse a si mesma. Desorientada. E não é de admirar,
depois do dia que teve; depois da semana que teve. Apenas se concentre
em encontrar um jogo, se houver algo aqui que você possa realmente
jogar.
Havia outro sinal na placa, uma espécie de quadrado:
BEMV
INDAA
OMEUM
UNDO
Jenny inclinou a cabeça, lendo-a. O que as letras diziam? Ah, claro, ela
entendeu agora. Bem-vinda...
— Posso ajudá-la?
A voz falou logo atrás dela. Jenny se virou e perdeu o fôlego.
Olhos. Olhos azuis. Exceto que eles não eram apenas azuis, eram uma
sombra que Jenny não conseguia descrever. O único lugar que ela viu um
azul assim foi uma vez quando ela acordou no preciso instante do
amanhecer. Então, entre as cor nas da janela, ela vislumbrou uma cor
inacreditável e luminosa, que durou apenas um segundo antes de
desaparecer no azul comum do céu.
Nenhum garoto nha olhos tão azuis quanto aquele, muito menos
cercados por cílios tão grossos pareciam pesar nas pálpebras. Esse garoto
nha a coloração mais surpreendente que ela já vira. Seus cílios eram
pretos, mas o cabelo era muito branco, da cor da geada ou da névoa. Ele
era... bem, bonito. Mas da maneira mais exó ca e estranha que se possa
imaginar, como se vesse acabado de sair de outro mundo. A reação de
Jenny foi instantânea, total e absolutamente aterrorizante. Ela esqueceu a
existência de Tom.
Eu não sabia que pessoas poderiam ser assim. Pessoas reais, quero dizer.
Talvez ele não seja real. Deus, tenho que parar de encarar...
Mas ela não conseguia. Não pôde evitar. Aqueles olhos eram como o azul
no centro de uma chama. Não como um lago de milha de profundidade
situado em uma geleira. Não...
O cara se virou e foi ao balcão. A caixa de som foi desligada. O silêncio
rugiu nos ouvidos de Jenny.
— Posso ajudar? — ele repe u, educada e indiferentemente.
O calor subiu para as bochechas de Jenny. Ai meu Deus, o que ele deve
pensar de mim.
No momento em que aqueles olhos se afastaram dela, ela saiu de si, e
agora que ele estava mais longe, ela podia olhá-lo obje vamente. Não era
algo de outro mundo. Era apenas um sujeito da sua idade: magro,
elegante e com um ar inconfundível de perigo. Seus cabelos eram louros-
pla nados, presos nas laterais, compridos nas costas e tão longos na testa
que caíam em seus olhos. Ele estava todo ves do de preto, numa estranha
combinação de cyberpunk e poeta birônico.
E ainda con nua lindo, Jenny pensou, mas quem se importa?
Honestamente, parece que você nunca viu um garoto antes. E logo no
aniversário de Tom, um flash de vergonha a atravessou. Era melhor ela
começar a fazer compras ou sair dali. As duas alterna vas pareciam
igualmente atraentes, exceto que os caras durões ainda poderiam estar do
lado de fora.
— Eu quero comprar um jogo — disse ela em voz alta. — Para uma festa,
para o meu namorado.
Ele nem sequer piscou com a palavra namorado; de fato, parecia mais
lacônico do que nunca.
— Fique à vontade — disse ele. Então, pareceu despertar para fazer uma
venda. — Alguma coisa em par cular?
— Bem...
— E o Senet, o jogo egípcio dos mortos? — ele disse, acenando para a caixa
esmaltada com os hieróglifos. — Ou o I-ching? Ou talvez você queira
desenhar runas. — Ele pegou uma xícara de couro e a sacudiu
suges vamente. Houve um som de ossos chocalhando.
— Não, nada disso. — Jenny estava se sen ndo ni damente nervosa. Ela
não podia colocar o dedo nela, mas algo sobre esse cara enviou sussurros
de alarme através de seu sangue. Talvez es vesse na hora de par r.
— Bem, sempre há o jogo Tibetano an go de cabras e gres. — Ele
ges culou para uma placa de bronze esculpida com pequenas figuras. —
Os gres ferozes perseguem as cabrinhas inocentes e as cabrinhas
inocentes tentam fugir dos gres. Para dois jogadores.
— Eu não... — Ele estava rando sarro dela? O meio sorriso lábios dele fez
Jenny pensar que sim.
Com dignidade, ela disse:
— Eu estava procurando... um jogo que muitas pessoas possam jogar ao
mesmo tempo. Como Pic onary ou Outburst. — acrescentou ela em tom
desafiador. — Mas já que você parece não ter nada parecido na loja...
— Entendo — disse ele. — Esse po de jogo. — De repente, olhando-a de
lado, sorriu. O sorriso enervou Jenny mais do que qualquer coisa ainda.
Defini vamente hora de ir, ela pensou. Não se importava se os caras
durões ainda estavam lá fora.
— Obrigada — disse ela com polidez automá ca e virou-se para a porta.
— Mistério. — ele con nuou. Sua voz capturou Jenny no meio do caminho.
Ela hesitou da própria decisão. O que diabos ele quer dizer? — Perigo.
Sedução. Medo.
Jenny voltou-se para encará-lo, encarando-o. Havia algo quase
hipno zante em sua voz - estava cheia de música elementar, como água
correndo sobre rochas.
— Segredos desvendados. Desejos revelados. — Ele sorriu para ela e
pronunciou a úl ma palavra dis ntamente: — Tentação.
— Do que você está falando? — ela disse, preparada para bater nele ou
correr se ele desse um passo em sua direção.
Ele não o fez. Seus olhos eram tão inocentemente azuis quanto fiordes
nórdicos.
— Do jogo, é claro. É isso que você quer, não é? Algo... muito especial.
Algo muito especial. Exatamente o que ela mesma pensava.
— Acho — ela disse lentamente. — que seria melhor eu...
— Temos algo assim em estoque — Ele desapareceu por uma porta na sala
dos fundos.
Você pode simplesmente sair daqui. E ela estava indo, estava prestes a sair,
quando ele apareceu novamente.
— Eu acho que é isso que você está procurando.
Jenny olhou para o que ele estava segurando e depois para seu rosto.
— Você deve estar brincando — disse ela.
A caixa era do tamanho e formato de um jogo de monopólio. Era branco e
brilhante e não havia uma única palavra, linha ou figura impressa.
Uma caixa branca em branco.
Jenny esperou o final da piada. Havia algo sobre àquilo, no entanto.
Quanto mais ela olhava para aquela caixa, mais se sen a...
— Eu posso ver? — perguntou. Tocar, foi o que quis dizer. Por alguma
razão, queria sen r o peso dela nas mãos, a ni dez dos cantos nas palmas
das mãos. Era bobo, mas ela queria. Realmente queria.
O cara se inclinou para trás, inclinando a caixa entre as próprias mãos,
olhando para o topo brilhante. Jenny percebeu que não havia uma única
impressão digital no acabamento brilhante, nem mesmo uma mancha.
Também notou que os dedos dele eram longos e finos. E que ele nha uma
cobra tatuada no pulso direito.
— Bem... — ele disse. — Eu não sei. Pensando bem, não tenho certeza se
posso vender para você depois de tudo.
— Por que não?
— Porque é realmente especial. Não é algo mundano. Não posso deixar
isso para qualquer pessoa, ou por qualquer mo vo.
Ora, ele é um provocador, pensou Jenny. Sem o mínimo de medo,
perturbação ou qualquer outra coisa que sen ra desde que entrara na loja,
Jenny começou a se diver r também. Descontroladamente,
inexplicavelmente se diver ndo.
Talvez se eu parecesse com ele, fosse tão linda, seria uma provocadora
também, pensou. Ela disse seriamente:
— É para uma festa hoje à noite, para o meu namorado, Tom. Ele faz
dezessete hoje. Amanhã à noite teremos a grande festa, você sabe, com
todo mundo convidado, mas hoje à noite é apenas para nossos amigos.
Nosso grupo.
Ele inclinou a cabeça para um lado. A luz brilhou no brinco que ele usava -
uma adaga ou uma cobra, Jenny não sabia dizer qual.
— E?
— E preciso de algo para fazermos. Não dá pra simplesmente colocar sete
pessoas em uma sala, jogar Doritos neles e esperar que se divirtam. Eu
estraguei as coisas por não me organizar até agora, sem comida de
verdade, sem decorações. E Tom...
O cara inclinou a caixa novamente. Jenny viu sua super cie ficar leitosa,
depois brilhante, depois leitosa novamente. Era quase hipnó co.
— E Tom vai se importar? — ele disse, como se não acreditasse.
Jenny sen u-se na defensiva.
— Não sei, ele pode ficar decepcionado. Ele merece o melhor. —
acrescentou ela rapidamente. — Ele é... — Ah, como explicar Tom Locke?
— Ele é... bem, ele é incrivelmente bonito e até o final deste ano terá bolsa
de estudos em três esportes...
— Já entendi. — ele a interrompeu.
— Não, você não entendeu — Jenny disse, arrepiada. — Tem mais. Tom é
maravilhoso. É tão maravilhoso que às vezes é preciso correr para
acompanhá-lo. E ficaremos juntos para sempre, e eu o amo, desde a
segunda série. Entendeu? — A raiva deu coragem e ela avançou um passo
em direção ao cara. — Ele é absolutamente o melhor namorado do
mundo, e quem disser que não...
CAPÍTULO 02
Ela parou. O garoto estava segurando a caixa para ela. Jenny hesitou,
perplexa.
— Você pode pegá-la se quiser — disse ele gen lmente.
— Tudo bem — Jenny disse, envergonhada, sua veemência
desaparecendo. Ela pegou cuidadosamente a caixa brilhante entre as
palmas das mãos e esqueceu tudo o resto. Era legal e pesado o suficiente
para ser intrigante. Algo dentro sacudiu um pouco, misteriosamente. Havia
uma qualidade que Jenny não conseguia descrever, uma espécie de
corrente elétrica que corria pelos dedos enquanto a segurava.
— Estamos fechando — disse o garoto rapidamente, com outra de suas
mudanças de humor arbitrárias. — Você vai comprar?
Ela ia. Sabia perfeitamente que só alguém louco o suficiente compraria
uma caixa sem olhar o que nha dentro, mas ela não se importava. Ela
queria e sen a uma estranha relutância em rar a tampa e espiar. Não
importava o que, seria uma ó ma história para contar a Tom e aos outros
hoje à noite. A coisa mais louca aconteceu comigo hoje...
— Quanto? — ela perguntou.
Ele foi ao balcão e apertou uma tecla em uma caixa registradora de latão
com aparência an ga.
— São vinte dólares.
Jenny pagou. Ela notou que a gaveta do caixa estava cheia de dinheiro de
aparência estranha, todos misturados: moedas quadradas, moedas com
furos no centro, notas amassadas em tons pastel. A injus ça disso cortou
um pouco seu prazer na caixa, e ela sen u outro calafrio, como aranhas
andando na pele arrepiada.
Quando ela olhou para cima, o garoto estava sorrindo para ela.
— Divirta-se — disse ele, e então seus cílios pesados caíram como se
fossem uma piada par cular.
De algum lugar, um relógio tocou a pequena música inacabada que
significava meia hora e meia. Jenny olhou para o relógio e ficou tensa de
horror.
Sete e meia, não podia ser! Não havia como ela estar nesta loja por mais de
uma hora, mas era verdade.
— Obrigada; eu tenho que ir — ela ofegou distraidamente, indo para a
porta. — Vejo você depois.
Era apenas uma cortesia, não para ser respondida, mas ele respondeu. Ele
murmurou o que parecia "às nove", mas sem dúvida era "tudo bem" ou
algo assim.
Quando ela olhou para trás, ele estava parado na sombra, com o vitral de
uma lâmpada jogando listras azuis e roxas em seus cabelos. Por apenas um
segundo, ela captou algo em seus olhos - um olhar faminto. Um olhar
completamente em desacordo com a maneira indiferente que ele usava
enquanto falava com ela. Como um gre faminto prestes a caçar. Chocou
tanto Jenny que seu "adeus" congelou na garganta.
Então se foi. O garoto de preto estendeu a mão e ligou a música ambiente
ácida.
Terrível isolamento acús co, Jenny pensou quando a porta se fechou atrás
dela e a música foi cortada. Ela se sacudiu mentalmente, jogando fora a
imagem persistente daqueles olhos azuis. Agora, se ela corresse todo o
caminho de casa, talvez vesse tempo de jogar um pouco de Cheez Whizz
no microondas e enfiar um punhado de CDs no aparelho. Oh Deus, que
dia!
Foi quando ela notou os caras durões.
Eles estavam esperando por ela do outro lado da rua, escondidos nas
sombras cinza-azuladas do crepúsculo. Jenny os viu chegando e sen u uma
sacudida no estômago. Rápida e automa camente ela deu um passo para
trás, alcançando atrás dela a maçaneta da porta. Onde estava? E por que
ela era tão estúpida hoje? Deveria ter perguntado ao sujeito de preto se
poderia usar o telefone; ela deveria ter chamado Tom - ou Dee - onde
estava a maçaneta?
Eles estavam perto o suficiente para que ela pudesse ver que o da camisa
de flanela nha uma pele ruim. Aquele com a bandana estava sorrindo de
uma maneira muito assustadora. Ambos estavam vindo em sua direção e
onde estava a maçaneta da porta? Tudo o que ela podia sen r atrás dela
era frio, concreto pintado.
Onde está, onde está...
Jogue a caixa neles, ela pensou, subitamente calma e clara. Jogue e corra.
Talvez eles parem para inves gá-la. Sua mente, totalmente prá ca,
ordenou que sua mão parasse de procurar uma maçaneta que não estava
lá. Perda de tempo.
Com as duas mãos, Jenny levantou a caixa branca para jogá-la. Não nha
certeza exatamente do que aconteceu a seguir. Os dois caras a encararam e
então se viraram e começaram a correr.
Corrida. O de flanela estava à frente, e o de bandana bem atrás dele, e eles
corriam como cervos, com uma graça animal e economia de movimento.
Rápido.
E Jenny não nha jogado a caixa antes disso.
Meus dedos... não joguei a caixa porque não podia deixar de ir porque
meus dedos...
Cale a boca, sua mente disse a ela. Se você é burra o suficiente para se
importar mais com uma caixa do que com sua própria vida, tudo bem, mas
pelo menos não precisamos insis r no assunto.
Andando rapidamente, com os braços suados segurando a caixa no peito,
ela foi para casa.
Ela não se virou para ver como nha perdido a maçaneta da porta com
todo o seu atrito nas costas. Na época, ela simplesmente esqueceu.
Eram dez para as oito quando Jenny finalmente se aproximou de sua rua.
As salas iluminadas nas casas pelas quais ela passava pareciam
aconchegantes. Ela estava no escuro frio.
Em algum lugar a caminho de casa, ela começou a ter receios sobre o jogo.
Sua mãe sempre dizia que era muito impulsiva. Agora ela nha comprado
isso, sem nem mesmo saber exatamente o que havia dentro. No momento
em que ela pensava, a caixa parecia vibrar levemente em seus braços,
como se es vesse carregada de poder oculto.
Não seja boba. É uma caixa.
Mas aqueles caras correram, algo sussurrou no fundo de sua mente.
Aqueles caras estavam assustados.
Assim que ela chegasse em casa, ela iria conferir este jogo. Examine-o
completamente.
Um vento brotou e movia as árvores na rua Mariposa. Jenny morava em
uma casa enorme em es lo de fazenda, situada entre aquelas árvores.
Quando ela se aproximou, algo fur vamente fur vamente junto à porta da
frente. Uma sombra pequena.
Jenny sen u um formigamento na nuca.
Então a sombra se moveu sob a luz da varanda e se transformou no gato
mais feio da América. Seu pêlo estava manchado de cinza e creme (como
uma caixa de sarna, disse Michael), e seu olho esquerdo nha um olhar
permanente. Jenny havia pegado-o um ano atrás e ele ainda era selvagem.
— Ei, Cose e — disse Jenny, disparando para a frente e acariciando o gato
enquanto o alívio a varria. Estou realmente ficando nervosa, pensou ela,
assustada com cada pequena sombra.
Cose e colocou as orelhas para trás e rosnou como a garota possuída em
O Exorcista. Ela não mordeu, no entanto. Os animais nunca morderam
Jenny.
Uma vez no corredor da frente, Jenny cheirou desconfiada. Óleo de
gergelim? Seus pais deveriam estar saindo para o fim de semana. Se eles
mudassem de ideia...
Alarmada, ela largou a mochila - e a caixa branca - na mesa da sala de estar
enquanto galopava para a cozinha.
— Finalmente! Estávamos começando a pensar que você não viria.
Jenny ficou olhando. A garota que falara usava uma jaqueta surrada do
exército e estava sentada no balcão, uma perna incrivelmente longa
apoiada na mesa de cozinha de madeira de louro da mãe de Jenny, a outra
pendurada. Seus cabelos estavam tão presos à cabeça, parecendo
pequenas mechas de veludo preto no crânio. Ela era tão bonita quanto
uma sacerdo sa africana e estava sorrindo maliciosamente.
— Dee... — Jenny começou.
A outra habitante da cozinha usava uma jaqueta de xadrez preta e branca e
brincos Chanel. Ao seu redor, havia um mar de utensílios e ingredientes:
cutelos e conchas de metal, ovos, uma lata de brotos de bambu, uma
garrafa de vinho de arroz. Uma frigideira estava chiando no fogão.
— ...e Audrey! — Jenny disse. — O que vocês estão fazendo aqui?
— Salvando sua vida.
— Mas você está cozinhando!
— É claro. Por que eu não deveria cozinhar? Quando papai foi designado
para Hong Kong, nhamos um chef que fazia parte da família; ele
costumava conversar cantonês comigo enquanto papai trabalhava e
mamãe estava no salão de beleza. Eu o amava. Naturalmente, posso
cozinhar.
Enquanto esse discurso prosseguia, Jenny olhava de uma garota para a
outra. Quando acabou, caiu na gargalhada, balançando a cabeça. Claro. Ela
deveria saber que não poderia enganar essas duas. Elas devem ter visto
isso sob sua fachada de autoconfiança sobre a festa em que ela estava
frené ca. Elas a conheciam muito bem - e vieram para resgatá-la.
Impulsivamente, Jenny abraçou cada uma delas.
— Como Tom adora comida chinesa, decidi cuidar da comida. — con nuou
Audrey, colocando algo parecido com bolinho de massa na panela. — Mas
onde você esteve, hein? Está com algum po de problema?
— Ah, não — disse Jenny. Se ela explicasse o que havia acontecido, seria
apenas repreendida por ir em um bairro perigoso.
Não por Dee, é claro - a imprudência de Deirdre Eliade era acompanhada
apenas por seu senso de humor um tanto distorcido - mas pela sempre
prá ca Audrey Myers.
— Eu estava comprando um jogo para hoje à noite, mas não sei se vamos
precisar, afinal.
— Por que não?
— Bem... — Jenny também não queria explicar isso. Ela não sabia como
explicar. Só sabia que precisava olhar para a caixa antes que alguém mais
chegasse. — Pode ser chato. Então, o que você está fazendo? — Ela olhou
para a panela para mudar de assunto.
— Oh, apenas alguns Mu shu rou e alguns Heijiao niu liu. — Audrey estava
andando pela cozinha com sua graça habitual, suas roupas feitas sob
medida, sem serem danificadas por um único ponto de graxa. — Isso é
carne de porco frita e rolinhos primavera para vocês, provinciais. Também
arroz frito e guarnições.
— Carne de porco — disse Dee, tomando um gole da Carbo Force, sua
bebida energé ca favorita — é a morte sobre rodas. Você precisa ir na
academia por uma semana para perder uma costeleta de porco.
— Tom adora.
Dee deu uma risada enlouquecedora e a hos lidade atravessou a sala
como um raio. Jenny suspirou.
— Ah, supere isso. Você não pode dar uma trégua por apenas um dia no
ano?
— Acho que não — murmurou Audrey, habilmente pescando um rolinho
primavera na panela com pauzinhos.
Os dentes de Dee brilharam brancos em seu rosto escuro da noite.
— E arruinar um disco perfeito? — ela disse.
— Olha, não vou arruinar a festa de Tom, nem mesmo pelas minhas duas
melhores amigas. Entenderam?
— Ah, vá para o seu quarto e fique linda — disse Audrey com indulgência e
pegou um cutelo.
A caixa, pensou Jenny - mas ela precisava trocar de roupa. É melhor fazer
isso logo.
No quarto, Jenny trocou seu suéter e jeans de gola alta por uma saia
esvoaçante de cor creme, uma blusa de linho e um colete de ba k com
brilhantes que brilhavam com centenas de minúsculos fios dourados.
Seus olhos foram atraídos para um coelho branco de pelúcia na cômoda. O
coelho estava segurando uma margarida com as palavras amor que você
estampava em seu centro. Um presente de Páscoa de Tom, uma coisa
ridícula, mas ela sabia que guardaria para sempre. O fato de ele não dizer
as palavras em público apenas tornou essa confissão secreta ainda mais
doce.
Desde que conseguia se lembrar, ela era terrivelmente apaixonada por
Tom. Sempre que pensava nele, era como uma dor súbita e rápida, uma
doçura quase demais para suportar. Ela sen u isso em vários lugares do
corpo, mas era uma coisa emocional, principalmente, e centralizada no
peito. Tinha sido assim desde a segunda série. Em volta da moldura do
espelho, havia fotos deles juntos - no Halloween Hop da sexta série
(fantasiado), no baile de formatura da nona série, no baile de formatura
duas semanas atrás, na praia. Eles eram um casal há tanto tempo que todo
mundo pensava neles como Tom e Jenny, uma única pessoa.
Como sempre, a própria imagem de Tom parecia envolver um cobertor fino
de conforto sobre ela. Desta vez, porém, Jenny sen u algo incomodando-a
por baixo do conforto. Algo a puxando para pensar sobre isso.
A caixa novamente.
Ok, vá dar uma olhada. Então pense na festa.
Ela estava passando uma escova pelos cabelos quando houve uma ba da
superficial na porta e Audrey entrou.
— Os rolinhos de primavera estão terminados e o refogado tem que
esperar até o úl mo minuto. — O cabelo de Audrey era castanho brilhante,
quase cobre. Seus olhos eram castanhos e agora se estreitaram em
desaprovação. — Nova saia, entendi — acrescentou. — Longa.
Jenny estremeceu. Tom gostava dela em saias longas, especialmente do
po macio e fluido. Audrey sabia disso e Jenny sabia que ela sabia.
— E? — ela disse perigosamente.
Audrey suspirou.
— Você não consegue ver? Está deixando ele comandar você.
— Audrey, por favor...
— Existe algo que é bom demais — disse Audrey com firmeza. — Ouça-me,
porque eu sei. Os caras são esquisitos, n'est-ce pas? Você nunca deve
querer que alguém tenha tanto domínio sobre você.
— Não seja ridícula — Jenny começou, depois parou. Por alguma razão,
por apenas um segundo, ela pensou no cara da loja de jogos. Olhos azuis
como o núcleo de uma chama.
— Estou falando sério — disse Audrey, a cabeça inclinada para trás para
olhar Jenny através dos cílios pon agudos, pretos como jato, que tocavam
franjas de cobre igualmente espetadas. — Se um cara se sente muito
seguro, você perde a atenção dele, ele supera você. Começa a olhar para
outras garotas. Você deve mantê-lo desequilibrado, sem saber o que fará a
seguir.
— Como você faz com Michael — Jenny disse distraidamente.
— Ah, Michael. — Audrey fez um gesto desdenhoso com unhas
polidamente requintadas. — Ele está apenas mantendo o assento
aquecido até eu decidir quem é o próximo. Ele é um marcador. Mas você
entende o que estou dizendo? Até Dee acha que você cede demais a Tom.
— Dee? — Jenny levantou as sobrancelhas ironicamente. — Dee acha que
todos os caras são cães men rosos. Como namorados, pelo menos.
— Verdade — disse Audrey. — É estranho — ela acrescentou, pensa va. —
como ela pode estar tão certa sobre isso e tão errada sobre todo o resto.
Jenny apenas fez uma careta para ela. Então disse:
— Sabe, Audrey, talvez se você tentou ser legal primeiro...
— Hmm, talvez... quando o diabo pa nar no gelo — ironizou Audrey.
Jenny suspirou. Audrey era o recém-chegado ao grupo deles; ela se mudou
para Vista Grande no ano passado. Todos os outros se conheciam desde o
ensino fundamental, e Dee conhecia Jenny por mais tempo. Quando
Audrey chegou, Dee ficou, bem, com ciúmes. Elas estavam brigando desde
então.
— Apenas tentem não se matar durante a festa — disse Jenny.
Deliberadamente, ela puxou os cabelos sedosos para trás - do jeito que
Tom gostava - e o amarrou com um elás co.
Então sorriu para Audrey e disse: — Vamos voltar para a cozinha.
Foi quando elas descobriram que Michael e Zach haviam chegado -
parecendo, como sempre, tão diferentes quanto noite e dia.
Michael Cohen nha a forma de um ursinho de pelúcia, com cabelos
escuros tão amarrotados quanto seu suor cinza e os olhos de um spaniel
sarcás co. Zach Taylor nha cabelos claros puxados para trás em um rabo
de cavalo casual, um rosto intenso de nariz pon agudo e olhos cinzentos
como o céu de inverno.
— Como está a gripe? — Jenny perguntou, beijando a bochecha de
Zachary.
Ela podia fazer isso com segurança porque fora exposta aos germes dele a
semana toda e, além disso, ele era seu primo. Os olhos cinzentos de Zach
se suavizaram por um instante, depois esfriaram novamente. Jenny nunca
nha certeza se Zach gostava dela ou simplesmente a tolerava da maneira
que ele fazia com todos os outros.
— Oi, Michael. — disse ela, dando-lhe um tapinha em vez de um beijo. Os
olhos líquidos de spaniel se voltaram para ela.
— Sabe — começou Michael. — às vezes me preocupo conosco, com toda
a nossa geração. Sabemos o que estamos fazendo? Somos melhores do
que a geração Me? O que devemos esperar, exceto dirigir melhor carros
que nossos pais? Quero dizer, qual é o sen do?
— Oi, Michael. — cumprimentou Audrey.
— Olá, ó luz da minha vida. É um rolo de ovo que vejo diante de mim? —
Michael perguntou, alcançando-o.
— Não coma isso. Coloque-o de volta no prato com os outros e leve-o para
a sala de estar.
— Vivo para servi-la. — disse Michael e par u.
CAPÍTULO 03
A sala era redonda. Jenny estava deitada em uma mesa que se adaptava à
forma do seu corpo. Seus olhos estavam ardendo e lacrimejando, e ela
sen u uma grande falta de vontade de se mover. Uma luz branca brilhou
sobre ela de cima.
— É exatamente do jeito que pensei que seria — disse uma voz rouca.
Jenny lutou contra o cansaço o suficiente para virar a cabeça. Dee estava
em outra mesa a alguns metros de distância. — É como o que li sobre os
Visitantes, assim como os meus sonhos.
Jenny nunca nha pensado muito sobre OVNIs, mas não era isso que ela
esperava. A única coisa que sabia sobre alienígenas era que eles faziam
coisas com as pessoas.
— Então esse foi o seu pesadelo — murmurou ela.
O perfil perfeito de Dee estava inclinado para os holofotes brancos acima
dela, parecendo exatamente como uma escultura egípcia.
— Ah, brilhante. Mais alguma dedução? — ela rebateu.
— Sim. Temos que sair daqui.
— Não consigo me mexer — Dee disse. — E você?
Não havia restrições óbvias, mas os braços e as pernas de Jenny estavam
pesados demais para levantar. Ela podia respirar e mover um pouco o
torso, mas os membros eram pesos mortos.
Estou com medo, pensou. E então pensou sobre como Dee deveria estar se
sen do. Como uma atleta, o desamparo sico era o pior medo de Dee. O
corpo forte e esbelto que cul vara com tanto cuidado não lhe era ú l
agora.
— Este lugar... parece tão esterilizado — disse Dee, suas narinas dilatadas.
— Está sen ndo? E aposto que eles são como insetos de colmeias, todos
iguais. Se pudéssemos nos levantar para combatê-los... mas eles têm
armas, com certeza.
Jenny entendeu. Músculo e ingenuidade não fariam nada contra a
tecnologia esteril e infernalmente eficiente. Não é à toa que era o pesadelo
pessoal de Dee.
Jenny notou um movimento em sua visão periférica. Eles eram pequenos
como Summer. Para Jenny, pareciam demônios: sem pêlos, com corpos
esguios e grandes olhos escuros brilhantes. Sem nariz, apenas fendas como
bocas. A pele brilhava como cogumelos podres, cogumelos muito pálidos
cul vados em um porão sem nunca verem a luz.
Jenny notou um odor de amêndoas. Eles estavam vivos, mas eram tão
estranhos e tortos quanto coisas alvejadas que rastejavam em fundos de
cavernas. Apenas a visão deles a ngiu Jenny com um terror doen o.
Estavam nus, mas Jenny não conseguia ver nada que os iden ficasse como
homens ou mulheres. Seus corpos eram espaços em branco hediondos,
como corpos de bonecas.
Eles farão isso, Jenny pensou. De alguma forma, sabia que eles as
machucariam.
Dee fez um som fraco e Jenny virou-se para ela. Era mais fácil do que nha
sido na outra vez e, depois de um instante, ela percebeu que os holofotes
acima de si haviam diminuído fracamente. A luz de Dee estava mais
brilhante, porque ela tentava fugir.
Jenny nunca nha a visto assustada antes - mesmo na sala, ela parecia
mais alerta do que qualquer outra coisa. Mas agora Dee parecia um animal
aterrorizado. Gotas de suor estavam em sua testa pelo esforço de se
mover. Quanto mais se deba a, mais brilhante a luz acima dela ficava.
— Dee, pare com isso! — Jenny disse, agoniada. Não suportava assis r. —
É apenas um sonho, Dee! Não deixe isso chegar até você.
Mas Julian havia dito que se eles se machucassem no sonho, se
machucariam de verdade.
Os visitantes estavam agrupados em torno de Dee, mas não pareciam
alarmados. Pareciam absolutamente indiferentes. Um deles empurrou um
carrinho para o outro lado da mesa de Dee. Jenny viu uma bandeja de
instrumentos brilhantes.
Deus, não, Jenny pensou, e Dee caiu de volta na mesa, exausta.
Outro pegou algo longo e brilhante da bandeja e examinou-o com
brilhantes olhos negros. Ele flexionou a coisa algumas vezes, como um
pintor pra cando corridas com um pincel. Parecia insa sfeito, embora com
seu rosto parecido com uma máscara, Jenny não soubesse como podia
dizer isso. Então casualmente jogou a coisa para cima da coxa de Dee e ela
gritou.
Foi como ouvir seu pai gritar. Jenny ficou tão assustada que tentou se
levantar e só conseguiu escorregar ligeiramente as pernas. Um dos seres as
reposicionou cuidadosamente, es cando os pés em direção aos cantos
inferiores da mesa.
Ela nunca se sen ra tão exposta, tão vulnerável.
A calça legging preta de Dee ficou aberta aonde a coisa cortara. Jenny
podia ver o sangue.
O ser entregou o instrumento a um dos outros, que o levou embora. Se
eles estavam conversando ou se comunicando, Jenny não conseguia dizer.
Certamente, não tentaram se comunicar com Dee ou ela.
Eles estavam se movendo novamente. Um deles - o mesmo que cortara
Dee? - pegou um novo instrumento e foi para a mesa de Jenny. Com um
movimento rápido e hábil, ele pousou o instrumento na mão de Jenny. Ela
sen u um beliscão.
Então a sonda entrou em seu ouvido. Ultrajada, Jenny tentou rolar a
cabeça, mas mãos pequenas, fortes como garras dentro de cogumelos,
seguravam sua testa. Ela sen u a sonda se aprofundar e se contorceu
frene camente. Tocou seu mpano e doeu como um cotonete esfaqueado
muito fundo.
Ela estava completamente desamparada. O que quer que quisessem fazer
com ela, eles fariam.
Lágrimas de dor e fúria escorriam de seus olhos, pelas têmporas. Eles
colocaram a sonda em seu outro ouvido. Um deles enxugou o olho dela.
Jenny sen u o toque de metal frio contra o globo ocular.
— É apenas um sonho! — gritou para Dee, quase chorando, quando a
sonda foi re rada. — Não é real!
Ela não conseguiu ouvir nenhuma resposta da outra mesa.
Que po de jogo era esse aonde você não nha chance? Julian falou sobre
"superar" os pesadelos, mas Jenny não achou que isso significava apenas
esperar que passassem. Ela deveria fazer alguma coisa, mas não sabia o
quê e não conseguia se mexer. E não achava que ela e Dee sobreviveriam a
isso se apenas ficassem ali.
— O que você quer de nós? — Ela gritou. — O que devemos fazer?
Houve uma mudança entre os visitantes. Um novo po de ser chegou.
Mais alto que os outros, claramente no comando, com a pele branca como
cera. Seus dedos nham o dobro do comprimento dos de um humano.
Embora Jenny vislumbrasse apenas seu rosto, parecia mais ameaçador do
que os outros, seus traços ainda mais exagerados.
Ele pegou algo do carrinho de instrumentos e foi até o outro lado da mesa
de Dee. Olhou para Jenny e ela viu que seus olhos eram azuis.
Não brilhava como os olhos dos outros seres. Lagos azuis infinitamente
profundos, profundos como uma montanha é alta. Olhos que olhavam
dentro de você.
Jenny olhou para trás, seus próprios olhos se arregalando. Então viu o que
ele segurava.
Uma agulha. Fina como um fio, assassinadoramente longa, mais longa que
as usadas em cirurgias de coluna. O Visitante alto estava segurando-a
sobre o estômago de Dee.
O estômago de Dee estava arfando loucamente em uma luta pela
respiração. Sua camiseta cáqui estava grudando no corpo enquanto ela se
contorcia em uma tenta va inú l de escapar. Seu cabelo encharcado de
suor brilhava como mica na luz.
— Não toque nela! — Jenny chorou. Observar isso acontecer com Dee foi
pior do que acontecer com ela mesma.
A agulha pairava logo abaixo do umbigo. O abdômen de Dee ficou côncavo,
tentando evitá-la. Dee fez movimentos de balanço, como se es vesse
tentando deslizar pela mesa, mas só se moveu no mesmo lugar. A luz
acima dela se intensificou e, abruptamente, suas lutas se tornaram mais
fracas.
— Seu desgraçado! Deixe-a em paz!
O que eu posso fazer? Jenny pensou. Ela nha que parar com isso, mas
como?
A luz.
Chegou à ela de repente. A luz acima dela havia diminuído quando a de
Dee se iluminou. Talvez pudesse se mexer agora. E se ela pudesse se
mover...
Ela começou a se balançar e conseguiu um pouco de controle sobre seu
corpo. Mas não muito. Seus braços e pernas ainda eram inúteis, como
enormes pedaços de carne morta presos à ela. Mas Jenny podia mexer o
tronco, a cabeça e o pescoço.
Usando toda sua força, ela balançou seu peso de um lado para o outro.
Dee a viu. Todos os outros olhos na sala, todos aqueles olhos negros
líquidos e inclinados e o único par de azul profundo, estavam focados no
estômago de Dee, na agulha. Mas a cabeça agitada dela virou-se para
Jenny e, por um momento, as duas se entreolharam, se comunicando sem
palavras.
Então, Dee começou a lutar novamente. Quanto mais lutava, mais
brilhante a luz sobre ela ficava. E quanto mais brilhante à sobre si ficava,
mais fraca ficava a sobre Jenny.
Caía desta mesa e você não terá como controlar isso, a mente de Jenny
disse a ela. Um braço ou uma perna quebrada, pelo menos; talvez um
nariz. Você vai se esmagar de cara no chão.
Ela con nuou balançando. Talvez Dee pensasse que Jenny estava apenas
tentando fugir, mas o que ela queria era distraí-los. Parar aquela coisa com
os dedos muito longos de enfiar a agulha em Dee. Se ela se machucasse,
eles teriam que lidar com ela. Deixariam Dee em paz.
Ela balançou o tronco cada vez mais forte, como uma barata tentando se
virar. Dee estava lutando loucamente, gritando insultos para manter a
atenção dos alienígenas. A luz acima de Jenny diminuiu ainda mais e ela
subiu violentamente, sen ndo seu impulso levá-la ao limite. Por um
momento, ficou ali, equilibrada de lado, depois o peso morto de seus
braços e pernas decidiu a questão, e ela sen u-se começar a cair.
Houve uma explosão de movimento assustado dos alienígenas e a luz
ardeu em brilho acima dela. Não importava nem um pouco. Não eram seus
músculos que estavam no comando, era a lei da gravidade. Algo com que
ninguém poderia discu r.
A iluminação abrasadora refle a o chão branco e Jenny fechou os olhos
quando o chão pareceu encontrá-la. Esperando o som do impacto. Quando
ele não veio, ela abriu os olhos.
Estava flutuando, de bruços, a uma polegada do chão. Suspensa.
Paralisada. Os alienígenas estavam andando histericamente, como se não
es vessem programados para lidar com isso. Como se es vessem tão
surpresos com sua prisão no ar quanto ela.
O reflexo doloroso no chão suavizou. Jenny ainda estava flutuando. Foi
uma sensação muito estranha. Os pequenos alienígenas ainda estavam se
movendo em consternação; Jenny podia ver os pés deles. Um grupo se
amontoou entre as mesas e a levou de volta para a dela.
Jenny estava posicionada muito alta - ela sen u seu rabo de cavalo
pendurado na borda da mesa. E a luz acima de si era mais fraca. Talvez
alguém que não es vesse olhando por meia hora não notasse, mas Jenny
percebeu.
O alienígena de olhos azuis com a agulha estava ao lado dela.
Ela esperava que ele a tocasse, mas ele não o fez. Apenas olhou para baixo
e Jenny olhou para trás.
Por que você não me deixou cair?, ela pensou.
De repente, o alienígena alto se virou. Apontou para os outros, depois saiu
pela porta octogonal da sala redonda. Vários dos pequenos o seguiram,
empurrando o carrinho. Vários outros vieram e derramaram um líquido
verde na boca de Jenny.
Tinha gosto de açúcar e iodo. Jenny cuspiu. Eles seguraram sua cabeça e
encheram sua boca novamente. Desta vez, ela fechou os lábios, prendendo
o líquido dentro da boca, fazendo o possível para não engolir. Ela poderia
cuspi-lo neles e podia sen r seus dedos novamente, mas fingiu que não
podia se mover.
E então, abençoadamente, eles foram embora.
Jenny virou a cabeça e cuspiu. Seus lábios e língua estavam dormentes. Ela
viu Dee fazendo o mesmo. Elas se entreolharam, depois para as luzes.
— Ambas mais escuras — Jenny sussurrou. Dee assen u.
Então, com os olhos na porta, elas se contorceram e se balançaram das
mesas. Não foi fácil, mas com as luzes tão fracas, era possível. Jenny, sem
treinamento para como cair, machucou o braço e o joelho. Mas Dee já a
estava levantando e fora da iluminação das luzes, Jenny percebeu, podia se
mover livremente.
— Olhe — disse, agarrando o braço de Dee.
Era uma porta côncava na parede atrás da cabeça de Jenny. Parecia uma
porta de avião, que Jenny reconheceu porque passara cinco horas
estudando uma quando sua família voou para a Flórida nas férias.
E isso era um absurdo, Jenny pensou, irritada. Por quê os alienígenas
teriam portas de avião? Mas Dee não estava preocupada com isso; ela
estava movendo alavancas e outras coisas. A porta se abriu para fora.
Jenny gritou. Nunca gostou de alturas, e isso era muito mais alto do que
ela já es vera ao ar livre. Ela podia ver nuvens abaixo. Mas nós duas fomos
para a porta ins n vamente, pensou. Deve ser a saída. Entramos no
quarto de Dee e a porta desapareceu. Esta é a primeira que vimos desde
então. Tem que ser a saída.
Ela ainda se sen a fraca quando olhou para baixo.
— Eu não me importo; prefiro morrer a ficar aqui. Além disso, sempre quis
saltar de paraquedas — disse Dee, depois agarrou a mão de Jenny e pulou.
Jenny realmente gritou dessa vez.
O assobio do vento bateu em seu rosto e seus olhos se fecharam. Tudo
estava gelado ao seu redor. Ela se sen u leve, mas sabia que estava caindo.
Se isso é como voar, não gostei...
Ela não desmaiou exatamente naquele momento, mas as coisas ficaram
muito confusas. Jenny não conseguiu ver ou ouvir nada até bater em uma
porta pintada de ocre com um baque, Dee caindo atrás de si. Naquela
direção e velocidade, elas pareciam ter sido jogados pela janela do quarto
de Dee por uma mão gigante. A porta se abriu quando ela bateu nela, e as
duas caíram no corredor.
O corredor da Mansão Assombrada. Escuro como uma cripta.
Jenny olhou para o brilho dourado do quarto de Dee, então a porta bateu
na frente delas e se fechou. Ela e Dee estavam ofegantes, enquanto seus
olhos se ajustavam gradualmente à penumbra. Dee se inclinou lentamente
e socou Jenny deliberadamente no bíceps.
— Conseguimos, matadora! Você me salvou.
— Estamos vivas — Jenny murmurou. — Nós saímos. Dee... Você percebe?
Nós vencemos!
— Mas é claro — disse Dee. Ela enfiou os dedos no buraco da calça e Jenny
viu que o corte ainda estava lá, o sangue seco. Então Dee levantou a blusa.
Jenny podia contar costelas sob a pele escura aveludada da noite, abaixo
do su ã espor vo azul escuro. Mas não havia marca acima do umbigo. —
Eu te disse, você me salvou. Esse foi o meu pior pesadelo... aquelas coisas
me cutucando e eu não sendo capaz de detê-las.
— Nós duas fizemos isso, usando nossos cérebros — disse Jenny. — Enfim,
agora sabemos o que fazer nos pesadelos. Quando entramos, procuramos
uma porta, qualquer porta. Ei, o que é isso?
Um pedaço de papel ficou branco contra o tapete preto. Jenny o limpou e
viu que era um desenho, feito em giz de cera. Uma coisa negra como um
chapéu-coco pairava sobre as árvores, com raios de luz rabiscados ao
redor.
— Eu nunca soube desenhar muito bem — disse Dee. — Mas você
entendeu. Agora, o que fazemos?
O medo dos alienígenas deixou sua marca no rosto de Dee, mas ela
também parecia emocionada, triunfante. Pronta para qualquer coisa. De
repente, Jenny ficou muito agradecida por ter uma garota bonita e corajosa
ao seu lado.
— Nós encontramos os outros. Procuramos outra porta.
Ela deixou o papel amassado cair no chão e se levantou, oferecendo a Dee
uma mão para ajudá-la. Um relógio invisível bateu às onze.
Jenny ficou rígida.
— É isso, o relógio que ouvi na sala. Está contando as horas. Ele disse que o
amanhecer era às seis e onze.
— Então ainda temos sete horas. É tempo de sobra.
Jenny não disse nada, mas seus dedos formigaram. Não conseguia explicar,
mas nha a sensação de que Dee estava muito errada.
O corredor parecia se estender infinitamente nas duas direções. A escada
havia desaparecido.
— O corredor mudou. — disse ela. — Ele con nua mudando... por quê?
Dee balançou a cabeça.
— E como sabemos para que lado ir? É melhor nos separarmos.
Jenny quase se opôs a isso, mas depois do que elas passaram... bem, ela
deveria ser capaz de lidar com um corredor sozinha. Ela começou a descer
e imediatamente perdeu a vista de Dee.
Parecia quase normal estar andando por um corredor infinito de carpete
preto, como algo saído de um filme de terror. Acho que você pode se
acostumar com qualquer coisa, pensou Jenny. Depois da esterilidade
branca e ofuscante da nave alienígena, esse lugar escuro parecia quase
aconchegante.
Não havia portas. Até o monstro, que deveria estar em algum lugar atrás,
desapareceu. As minúsculas chamas das velas con nuavam
incessantemente à frente. Quando Jenny parou embaixo de uma para
descansar, pensou de repente no enigma que havia empurrado para o
fundo da mente mais cedo. Se quisesse sair dali com os amigos, deveria
tentar resolvê-lo.
Sou feito de duas pessoas. Sou quente. Sou frio. Sou pai de números que
não podem ser contados. Sou um presente além da medida. Dou prazer,
quando tomado à força.
O que isso poderia significar? Entre duas pessoas, quente e frio...
provavelmente era algo infan lmente simples.
— Gostando do Jogo até agora? — A voz era como aço envolto em seda.
Jenny virou-se rápido. Julian estava encostado na parede. Ele trocara de
roupa novamente; agora usava jeans preto comuns e uma camiseta preta
com as mangas arregaçadas.
Vê-lo de repente foi como quando a água do chuveiro cai sobre você pela
manhã, um choque de consciência fria.
— Foi você? No navio lá em cima?
— Isso seria revelador. — ele foi breve, mas por um instante os cílios
pesados piscaram.
— Por que você não me deixou cair?
— Você sabia que seus olhos estão escuros como ciprestes? Isso significa
que você está triste. Quando você está feliz, eles ficam mais claros, ficam
dourados.
— Como você sabe? Você nunca me viu feliz.
Ele a deu um olhar, rindo.
— É isso que você acha? Eu sou um homem das sombras, Jenny.
Enquanto Jenny tentava entender isso, ele con nuou.
CAPÍTULO 07
A úl ma vez que conversaram, Jenny ficara furiosa com ele. Era di cil
manter isso em mente agora. O couro branco nha uma aparência tão
macia e se agarrava a ele, quadril e coxa. E havia algo sobre um cara que
olhava para você com olhos como os de um gre faminto. De repente,
Jenny se sen u desconcertada. Tom sempre ficava lindo em roupas casuais,
mas era muito conservador e nunca as ves a nem no Halloween.
Julian, por outro lado, obviamente se mostrou ultrajante. O cinto largo de
couro mostrava o quão liso o estômago estava, enfa zava os quadris
estreitos. Estava modestamente incrustado de safiras. Jenny desejou ter
um igual.
— O Erlking, hein? Desfrutando dos momentos?
— Imensamente — Julian assegurou-lhe gravemente.
— Pelo menos está falando comigo neste pesadelo. Não foi como na nave,
quero dizer.
— Jenny, eu poderia conversar com você à noite toda.
— Obrigada, mas estou correndo contra o tempo, e prefiro ter meus
amigos de volta.
— Diga a palavra.
Jenny olhou para ele, assustada, e então percebeu o que ele queria ouvir.
— Não — ela disse. — Vou fazer o contrário. Nós vamos passar por todos
os pesadelos e vamos vencer o jogo.
— Admiro sua confiança.
— Pode admirar o meu sucesso, começando agora. Eu resolvi o seu
enigma, e você é um porco machista. Não dá prazer, quando é tomado à
força.
— O que não dá?
— Um beijo. — Ela se virou para encará-lo completamente. — Essa é a
resposta, não é? E você me disse que se eu resolvesse o enigma, deixaria
um dos meus amigos ir.
— Errado. — Ele esperou a reação dela, os olhos brilhando em um sorriso
malicioso. — Eu disse que se você me desse a resposta, deixaria um de
seus amigos ir. Mas você ainda não me deu. — Os olhos dele
permaneceram nos lábios dela. — Gostaria de saber agora?
A fúria tomou Jenny.
— Você...! — Ela se virou para que ele não vesse a sa sfação de vê-la com
raiva.
— Eu te chateei. Você está ofendida — disse ele. Ele parecia genuinamente
culpado. Jenny não conseguia acompanhar essas mudanças mercuriais de
humor. — Aqui, darei algo para compensá-la.
Relutantemente, Jenny se virou novamente. Ele estava segurando uma
rosa, uma rosa branca. Ou talvez fosse prateada - sob essa luz, era di cil
dizer. Foi a coisa mais linda que ela já viu.
Quando a pegou, Jenny percebeu que não era real, mas foi
requintadamente trabalhada, perfeita nos mínimos detalhes. Meio aberta,
a flor brilhava em suas mãos. As pétalas eram frias, mas macias.
— Feita de prata escavada por elfos sombrios nas minas mais profundas da
terra — disse Julian. Jenny balançou a cabeça para ele.
— Isso é uma lenda. Você está dizendo que é mesmo o Erlking? Quer que
eu acredite em João e Maria também?
— Eu tenho sido mais do que você pode imaginar. E o que quero que você
acredite é que crianças podem entrar em lugares escuros e desaparecer. E
depois as pessoas podem contar histórias para explicar isso. Às vezes
verdadeiras, às vezes não.
Jenny sen u-se desconcertada novamente.
— Enfim, é uma rosa linda — disse ela e a passou na bochecha. Os olhos
de Julian brilharam.
— Vamos passear no pá o. Você pode mesmo ver o luar de lá.
O pá o nha várias chaminés naturais e o luar o inundava. Jenny sen u-se
quase impressionada com a beleza da paisagem. A luz da lua lançava uma
espécie de brilho mágico sobre tudo e a caverna era estranhamente bonita
com suas sombras escuras e manchas brilhantes de prata.
Julian parecia o mesmo. Todas as sombras em seu rosto estavam
totalmente negras e havia pontas prateadas em seus olhos.
— Você já se perguntou por que pode entrar em lugares perigosos sem se
machucar? — ele disse abruptamente. — Por quê os animais de rua que
você pega nunca a mordem; por quê você não é assaltada, mesmo quando
anda nas partes ruins da cidade à noite?
— Eu... — As pessoas estavam sempre gritando com Jenny exatamente por
essas coisas que ele estava enumerando. Ela mesma nunca havia pensado
muito nisso, mas agora uma suspeita selvagem surgia em sua mente. —
Não — disse. — Não, nunca me perguntei.
Os olhos dele permaneceram nos dela.
— Eu es ve cuidando de você, Jenny. Observando-a. Ninguém pode tocar
em você... ninguém além de mim.
— Isso é impossível. — A voz dela saiu em um sussurro. — Você... eu fiz
essas coisas a vida toda... — As frases dela estavam desembaraçando-se.
— E eu não poderia estar te observando há tanto tempo?! Mas eu estava.
Sempre te amei, Jenny.
O poder do olhar dele era assustador. Jenny estava confusa com suas
próprias emoções. Sabia que deveria sen r apenas ódio, apenas raiva por
ele, mas agora nha que admi r que parte dela era fascinada por ele. Ele
era um príncipe das trevas - e havia a escolhido.
Ela se virou e se afastou dele, tentando se recompor.
— Eu nunca me apaixonei antes. Você foi o primeiro e será meu único
amor. — disse Julian.
Havia música em sua voz. Jenny se virou e ele a tocou.
O toque dele era tão tênue quanto uma gaze na bochecha dela. Ela ficou
tão surpresa que não se mexeu. Então olhou para baixo estupidamente. Ele
pegou a mão dela.
Mas eu pensei que você não podia...
As pontas dos dedos dele eram tão frias quanto jade contra a pele dela.
Formigamentos os seguiram. Ela sen u vontade de pressionar a bochecha
na mão aberta dele.
Não, ela pensou. Não, não, não...
— Não — Jenny sussurrou, mas ele con nuou acariciando sua mão, o
polegar circulando suavemente na palma. Um sen mento sensual e
perigoso. Jenny sen u-se começar a se desfazer.
Seu toque era tão delicado... Ele rou a rosa com tanta delicadeza das
mãos dela...
A rosa, Jenny pensou. O presente dele. Ela a segurou na mão. Acariciou a
bochecha direita, o lado que ele estava tocando agora.
— Você me enganou. — Jeny deu um passo atrás.
Ele ainda segurava a mão dela.
— Isso importa?
— Sim, importa — Jenny disse furiosamente, tentando sair de seu alcance.
Como poderia ter sido tão estúpida? Era um Jogo que ele estava jogando
com ela, para obter permissão para tocá-la cada vez mais. — Entendo
agora. Nunca mais vou tocar em você ou em qualquer coisa que você me
der. Esse truque não funcionará novamente.
Seus lábios estavam sorrindo, mas havia algo quente e mortalmente sério
em seus olhos.
— Talvez não, mas alguém vai. Acredite em mim, Jenny: vou fazê-la minha
inteiramente, antes que você termine o jogo.
— Só nos seus sonhos. — Jenny rebateu e depois desejou ter pensado em
algo mais maduro para dizer.
— Não, nos seus — ele disse. — E lembre-se, você não está sozinha aqui.
Jenny ouviu um grito.
— Audrey — disse ela. — É a voz dela! Algo está acontecendo com ela!
Quando Julian não soltou sua mão, ela a puxou. Então viu os olhos dele - e
o que viu ali a congelou.
— Você sabe — sussurrou. — Você está fazendo isso, para se vingar de
mim.
— Eu te avisei — ele respondeu. Os gritos ainda estavam acontecendo. —
Você quer que isso pare?
Mau, ela pensou. Absolutamente mau. Cruel, caprichoso e perigoso como
uma cobra. Não vou esquecer isso de novo.
— Eu vou parar com isso — disse ela, a voz suave, mas feroz. — Eu te disse
que ia ganhar este jogo. E vou. E nunca vou ceder a você. — Jenny jogou a
rosa de prata aos pés dele.
Então estava correndo para seguir os gritos de Audrey.
Os elfos correram atrás dela quando Jenny mergulhou para fora da sala do
castelo de areia, mas ela desviou bruscamente, afastando-se deles. Os
gritos de Audrey estavam ficando cada vez mais claros. Jenny viu uma
brecha na parede vermelha mais próxima, mergulhou nela, e de repente os
gritos ecoaram ao seu redor.
Ela viu Audrey sentada e Dee em pé na frente dela. Jenny tropeçou nos
úl mos segundos, caindo ao lado delas.
— O que houve?
Audrey estava meio sentada, meio deitada contra a parede incrustada de
gesso de uma pequena caverna. Suas feições estavam contorcidas de
horror e quando Jenny se virou, viu o porquê.
Ela teria pensado que depois de tudo o que passara, não se assustaria mais
com criaturas estranhas. Mas essas coisas, essas coisas eram...
— Meu Deus, Audrey, o que são isso? — ela engasgou.
As unhas dela afundaram no braço de Jenny.
— São draugr. Cadáveres vivos. Eles vieram por nós. Eu... — Ela se virou,
vomitando.
Eles cheiravam como cadáveres - o cheiro agrídoce da decomposição.
Alguns nham corpos inchados. Alguns nham pele de couro, caídas e
enrugadas. Alguns, para horror de Jenny, nham a pele escorregando.
Um nha unhas grossas que ficaram marrons pelo tempo e cresceram em
espirais longos e pendentes. As unhas bateram juntas, emi ndo um som
que arrepiou todo o corpo de Jenny. Eles estavam bloqueando
completamente a saída. Não havia como sair; eles estavam se
aproximando por todos os lados.
— Quando eu contar, corram para a porta! — Dee ordenou.
— Que porta?
Dee apontou e Jenny virou-se. Atrás do draugr mais próximo, à direita,
havia uma parede - e havia uma porta nela. Uma porta gó ca com um topo
arqueado, pintada de azul.
— Certo? — Dee gritou. — Preparem-se para isso!
Ela estava de pé com a perna esquerda para trás, joelho dobrado, todo o
peso sobre ela. Sua perna direita estava tão dobrada que apenas o dedo do
pé tocou o chão. Isso a fazia parecer uma bailarina, mas era chamada de
postura de gato - Dee estava sempre tentando ensinar posturas de kung fu
para Jenny.
De repente, ela chutou, com o pé direito erguendo-se para golpear com
força o draugr sob a mandíbula. Com um estalo seco, a cabeça do draugr
caiu para trás; rolando para trás do corpo. Seu pescoço nha sido
quebrado.
Mas o terrível foi que ele con nuou andando. A cabeça apoiada em suas
próprias omoplatas, em uma posição estranha, mas ele ainda andava.
Jenny gritou e se afastou.
— Levantem-se! — Dee gritou para elas. — Vão, enquanto eu os distraio.
Saiam daqui!
Audrey permaneceu congelada.
— Não podemos deixar você...
— Não se preocupe comigo! Apenas vá! Jenny, leve-a!
Jenny obedeceu ao tom de comando ins n vamente. Pegou Audrey pela
gola de sua jaqueta e puxou-a para a porta. Ela a abriu e as duas caíram.
A porta bateu atrás delas antes que Jenny pudesse detê-la. Ela e Audrey se
entreolharam consternadas.
E então elas esperaram.
Esperaram até que uma sensação de mal estar no estômago de Jenny lhe
dissesse que Dee não viria. Audrey chorava. Jenny tentou a maçaneta da
porta. Não iria ceder.
— A culpa é minha — sussurrou Audrey.
Um de vocês provavelmente não conseguirá...
A porta se abriu. Dee avançou, bateu-a atrás de si, apoiando-se nela.
— Essa foi por pouco — Ela expulsou uma grande rajada de ar. — Mas eu
estava morrendo de vontade de lutar, e foi uma boa. — Ela estava
brilhando com o esforço e a alegria da batalha. Ela olhou para Audrey.
— Você está um caos.
Os cabelos ruivos e lustrosos de Audrey estavam pendurados no rosto; a
franja espetada estava grudada na testa. As bochechas estavam vermelhas
e molhadas, as mãos e pernas arranhadas. Seu batom de cereja sumira.
Com o rosto inescrutável, Audrey estendeu uma mão e lentamente abriu
os dedos. Na palma estavam os grampos de seu toque francês.
— Pelo menos ainda os tenho. — disse, calmamente.
As três caíram em uma gargalhada histérica. Riram e riram, em uma
liberação violenta de emoção.
— Acho que isso conta como vitória: sair viva do seu pesadelo, e com seus
grampos intactos — Dee ofegou finalmente.
Audrey ergueu as sobrancelhas e, em seguida, seus lábios se curvaram
novamente em um sorriso. Ela e Dee estavam sorrindo uma para a outra.
Um relógio invisível soou doze horas.
— Meia-noite — disse Jenny. Saiu suavemente, quase um sussurro. Toda
vez que eles venciam, o relógio tocava para lembrá-los de que o tempo
passava - passando rapidamente. Onde estava, afinal? O som parecia
invadir a casa inteira.
— Seis horas até o amanhecer — Dee estava dizendo a Audrey. — E só
faltam cinco pesadelos. Está bem. Vamos vencê-los fácil.
— Fácil? Acho que não — discordou Audrey.
— Olhem — Jenny disse baixinho, curvando-se para pegar um pedaço de
papel.
CAPÍTULO 09
— Porque está demorando tanto para parar de tocar? — Dee ques onou.
Audrey e Michael foram ver se conseguiam encontrar Zach, quem eles
imaginavam que devesse estar por aqui em algum lugar. Ou água — ou um
cobertor — ou algo parecido para Jenny.
Ela estava péssima, encostada na parede espelhada inclinada em frente à
porta de Summer — o que havia sido a porta de Summer. Não havia
ves gios da saída do pesadelo da amiga, mas Jenny não deixaria este lugar
Tudo doía e tudo o que ela conseguia pensar, entre as ondas de cinza, era
Summer. Summer havia se juntado ao grupo na quarta série, depois que
Jenny, Tom, Dee, Zach e Michael já eram amigos. Minúscula, confusa e
muito doce, Summer precisava cuidar e cuidar dela foi o que Jenny fez de
melhor.
Mas não desta vez. Dessa vez, ela nha estragado tudo. E Summer se foi.
Jenny ainda não acreditava que isso realmente nha acontecido. Summer
chegaria pelo espelho à qualquer momento, o cabelo todo despenteado e
olhos azuis escuros. À qualquer momento agora.
Mas não chegou e Jenny deixou a cabeça cair contra a parede.
— Vou procurá-los — disse Dee. — Eles estão demorando demais, podem
estar com problemas. Você fica aqui, ok? Prometa que ficará aqui. — A voz
dela era lenta e clara, a voz que se usava para conversar com uma criança.
Com os olhos fechados, Jenny fez um leve movimento com a cabeça.
— Tudo bem. Volto em um minuto.
A mente de Jenny voltou para uma névoa. Summer subindo em uma
árvore no acampamento. Summer em Newport Beach, caindo de uma
prancha de surf. Summer na escola, mas gando um lápis. Summer rindo.
Summer intrigada. Os olhos azuis de Summer enchendo-se de lágrimas.
Ela não nha uma parte mesquinha no corpo, Jenny pensou. Era uma boa
pessoa. Algo assim não podia acontecer com uma boa pessoa.
Podia?
Ela viu o flash mesmo através de tampas fechadas.
Summer!, pensou, abrindo os olhos. Mas o espelho à sua frente mostrava
apenas seu rosto pálido e ansioso e cabelos desarrumados.
Talvez vesse vindo do lado. De qual? De pé, Jenny olhou para a direita e
esquerda, deslumbrada com as múl plas reflexões. Nem sabia por qual
Dee nha ido.
Ela foi para a direita, girando de um lado para o outro nos espelhos em
zigue-zague. Virando uma curva, viu dezenas de reflexos de uma lâmpada
azul redonda e prendeu a respiração bruscamente. A luz azul estava acesa,
o botão vermelho embaixo estava pressionado. Ao lado, havia um
retângulo escuro — uma porta aberta.
Sem ser cautelosa, Jenny enfiou a cabeça. Só via a escuridão lá dentro.
Nenhuma luz do corredor parecia penetrar.
Audrey e Michael nham entrado aqui? Dee nha? Ou Summer...
Com um clique, a maçaneta girou e a porta começou a fechar. Jenny teve
um instante para escolher: recuar ou avançar. Ela pulou para frente.
A porta se fechou silenciosamente atrás dela, e ela olhou em volta,
tentando ver na escuridão. Conseguia dis nguir formas como uma fileira
de prateleiras, algo em um tripé, uma lâmpada alta. Então soube onde
estava. Estava escuro, simplesmente porque as luzes estavam apagadas.
Quando seus olhos se ajustaram, reconheceu uma impressão gigante em
uma parede. Mostrava mesas de cafeteria empilhadas em uma gloriosa
pirâmide, uma lata de lixo em cada extremidade de cada nível — uma
maravilha da engenharia. Jenny conhecia bem aquela foto. Ela, Tom e Dee
passaram a noite inteira empilhando aquelas mesas no refeitório da escola
e ouvindo os pedidos de Zach por "só mais uma foto". Tinha sido uma das
aventuras mais loucas e aterrorizantes do segundo ano.
Essa era a garagem de seu primo Zach, conver da em estúdio.
A sala escura, Jenny pensou, e seguiu o corredor especial em forma de L
que Zach havia construído — uma armadilha leve, como ele dizia — para o
quar nho aninhado dentro da garagem. Ela afastou a cor na na entrada.
A luz âmbar segura brilhava nas costas de uma única figura, em uma
camisa xadrez e um rabo de cavalo casual.
— Zach! — Jenny correu até ele, mas ele não se virou. — Zach, sou eu,
Jenny. Zach, o que você está fazendo?
Ele balançava suavemente uma bandeja cheia de produtos químicos com
uma impressão nela. Seu corpo estava rígido e resistente, mas Jenny o
virou à força. Mesmo sob essa luz, podia ver que ele parecia nervoso. O
olhar que vira primeiro na sala de estar quando ele insis a em virar mais
cartas de jogo e depois na sala de estar quando todo o resto estava
enlouquecendo.
— Ah, Zach, o que há de errado com você? — Jenny o abraçou. Ficara
preocupada com ele à noite toda; estava planejando confortá-lo, ajudá-lo.
Mas agora não nha forças. Ela é quem precisava desesperadamente de
ajuda.
Zach mal pareceu notar que ela estava ali. Ele a afastou e voltou a agitar a
bandeja.
— Zachary, Dee veio aqui? Ou Audrey ou Michael?
Sua voz era lenta, arrastada, mas prá ca.
— Não vi ninguém. Estava sentado lá fora. Onde estão os espelhos. Então,
vi um flash de câmera disparar. Quando o procurei, encontrei uma porta.
Apertei o botão e entrei.
Um flash de câmeras, é claro. Era assim que Zach interpretava as explosões
de luz no corredor.
— Estava tudo pronto para mim. A impressão já estava na água. — Em
algum lugar, um cronômetro tocou e ele se afastou da mão estendida de
Jenny. — Tenho que enxaguar agora.
Jenny piscou dolorosamente quando Zach acendeu a luz branca. Observou
os dedos cuidadosos e espertos enquanto ele lavava a impressão e a
observava contra a parede, recuando para avaliar, franzindo a testa.
— Zach, por favor. Você precisa me ouvir. — A dormência da perda de
Summer estava passando. Zach era seu parente de sangue e estava ali, e
com problemas. Sob essa luz, Jenny podia ver o quão pálido seu rosto
estreito estava. Também podia ver o olhar fixo em seus olhos cinza claros.
— Você não percebeu que esse é o seu pesadelo? Não podemos perder
tempo; precisamos encontrar uma porta para sair. Zach!
Ele a afastou novamente.
— Eu tenho que terminar este projeto. Tenho que... — Jenny mal chegou a
tempo de pegá-lo quando ele desabou. Mas quando o fez, ele não a
afastou novamente. Se agarrou à ela como uma criança assustada. —
Jenny... desculpe...
— Está tudo bem. — Ela o segurou com força, quase balançando-o. — Está
tudo bem, estou aqui. É para isso que servem os primos.
Depois de um minuto, ele tentou se endireitar, mas Jenny ainda o
segurava, encorajando-o a segurá-la. Precisava de apoio tanto quanto ele,
e Zach sempre esteve lá por ela. Antes que suas famílias se mudassem para
a Califórnia, eles haviam morado um ao lado do outro. Brincavam de índios
no pomar atrás de suas casas, antes do dia em que Zach decidiu que
gostava mais de fotos do que de pessoas; quando os olhos cinzentos de
Zach estavam quentes em vez de frios no inverno.
— Assim como quando éramos crianças — A mente de Zach parecia
lembrar do mesmo, já que ele disse com o que provavelmente deveria ser
uma risada.
— E você ficava raspando tudo em cima de árvores, e nós lavávamos você
com a mangueira para que a Lil não ficasse brava — o riso de Jenny saiu
abafado no ombro de Zach. Era quase como chorar. — Ah, Zach, estou tão
feliz por ter te encontrado.
— Eu também. — Ele suspirou. — Tenho me sen do bem estranho.
— Tudo foi horrível — disse Jenny, e mais uma vez sua voz tremia. — Fiquei
tão assustada, e agora...
Ela não conseguiu mencionar Summer. As palavras ficaram presas na
garganta.
— Está tudo bem — Zach a confortou. — Estamos juntos agora. Vamos
fazer as coisas ficarem bem.
Uma mangueira e um band-aid não vão ajudar desta vez, Jenny pensou,
mas era mais fácil apenas apertar Zach. Mais e mais. Troca de conforto sem
palavras. Ele estava acariciando seus cabelos e parecia bem reconfortante.
Ela parecia sen r a força fluindo do corpo dele para o dela.
E algo mais.
Um calor que a surpreendeu. Zach geralmente era distante, mas agora
estava segurando-a e acariciando-a quase como se ela fosse uma criança
pequena que precisava ser pacificada.
Ou como se não fosse seu primo, e sim seu namorado.
Jenny afastou o pensamento. Ele estava apenas sendo gen l. Queria
apenas ajudar — e estava ajudando. Ela se sen u melhor, simplesmente
absorvendo sua simpa a, seu carinho. Sua ternura.
Ela se inclinou contra ele, deixando-o suportar seu peso. Sen ndo-se
segura. Cuidada. Segura.
Quando Zach beijou sua nuca, foi tão ternamente que não perturbou a
sensação de segurança. Zach era legal. Ela o amava e ficou feliz em saber
que ele a amava.
Quando ele a beijou novamente, porém, um tremor inesperado a
percorreu. Ela não deveria se sen r assim. Não com Zach. Ele não deveria,
ele realmente não deveria...
Mas Jenny não queria se afastar dele ou estragar o momento.
Os lábios dele estavam quentes na parte de trás de seu pescoço. Um
choque de doçura passou por Jenny, desta vez forte demais para ser
ignorado. Aquele sen mento... ela sabia que não deveria se sen r assim.
As mãos subiram para os braços dele, para afastá-lo.
— Zach — ela sussurrou. — Acho que estamos um pouco perdidos. Não
somos nós mesmos.
— Eu sei — disse Zach, como se isso o machucasse. — Sinto muito, eu... —
Ele se endireitou, afrouxando um pouco o aperto, mas depois beijou o
cabelo dela. Jenny sen u seus lábios se moverem, sen u seu hálito quente.
— Zachary — disse ela. — Isso é errado. Somos primos. — O problema era
que, embora suas palavras fossem fortes, sua voz não era. Ela mal
conseguia respirar. E não se afastou.
— Meio-primos — Era verdade, embora Jenny raramente pensasse nisso.
Sua mãe e a de Zach eram apenas meias-irmãs. — E além do mais, não
posso evitar. Não posso evitar.
Seus beijos estavam chegando mais rápido e sua urgência pegou Jenny
numa onda de sen mentos elementares. Ela con nuou pensando, mas
havia algo mais... mas não conseguia lembrar o quê.
— Mas Tom... — Jenny sussurrou e o choque tomou conta dela.
Não pensava em Tom desde... não conseguia se lembrar desde quando.
Zach estava dizendo que também não podia ajudar Tom.
— Ele não a merece. — As palavras vieram em uma onda quente de
respiração em seu ouvido. — Ele não a ama o suficiente. Sempre ve medo
de dizer isso, mas você sabe que é verdade.
Apesar de sua magreza, os músculos de Zach estavam contra ela. Jenny
tentou protestar, mas as palavras ficaram presas na garganta.
— E agora sei que você também não o ama o suficiente. Você não deveria
estar com ele. — A voz de Zach era suave e razoável, as palavras correndo
juntas em um som aveludado.
Então ele estava olhando para ela. Uma luz clara parecia brilhar em seu
rosto intenso. Seus olhos cinza-inverno pareciam quase azul pálido.
— Você não pode lutar contra algo assim, Jenny — ele sussurrou. — Você
sabe que não pode.
Jenny fechou os olhos e levantou o rosto. Ele a beijou e seus sen dos
giraram.
Eles pareciam derreter juntos. Jenny sen u-se afundar sob o abraço dele.
Era tão suave... beijar nunca nha sido tão suave assim antes. Ela não
conseguia mais pensar. Estava voando; estava no fundo do mar.
A pura sensação a dominou. O estava beijando de volta como nunca havia
beijado Tom. O cabelo dele estava solto sob os dedos de Jenny; deviam ter
saído do rabo de cavalo. Ela queria sen -los. Eram muito mais suaves do
que havia percebido. Lembrava de Zach ter cabelos bastante grossos, mas
agora eram tão macios... como seda ou pelo de gato sob as pontas dos
dedos...
Ela ouviu o som selvagem e choroso que fez, e sabia, sabia, mesmo quando
estava se afastando. Mesmo enquanto se afastava, sabia.
Os olhos de Julian eram como safiras líquidas sob cílios sujos. Pesados e
escuros com paixão. Ele usava uma camisa xadrez como a de Zach, jeans
lavados com pedras como os de Zach e tênis de corrida como os de Zach.
Mas ele nha uma graça lânguida e descuidada que Zach nunca teria. Seu
cabelo parecia brilhante como areia ao luar.
Jenny estava esfregando a boca com as costas da mão. Um gesto
puramente reflexivo e sem sen do. Estava chocada demais para ficar com
raiva.
Eu sabia? Será que antes de ele me beijar ou enquanto estava me
beijando, mesmo antes de me afastar, no fundo eu sabia...?
Ela ainda não conseguia entender qual era a realidade.
— Como você poderia saber...? — sussurrou. — Você agiu como Zach...
sabia coisas que só ele saberia...
— Eu o observei — disse Julian simplesmente. — Eu observei você. Sou o
Homem das Sombras, Jenny, e amo você. — Sua voz era suave e
hipno zante, que algo dentro de Jenny começou a derreter com o próprio
som.
Então ela pensou em Summer.
A raiva, quente e brilhante, surgiu através dela e lhe deu forças. Olhou nos
olhos azul-claros de Julian. Qualquer suavidade que já vera com ele
desapareceu. Ela o odiava agora. Sem uma palavra, se virou e saiu da
câmara escura.
Ele a seguiu, acendendo as luzes da garagem. Ele sabia, é claro, no que ela
pensava.
— Ela concordou. Assim como todos vocês, ela concordou em jogar o Jogo.
— Ela não sabia que era real!
— "Eu reconheço que o Jogo é real." — Julian citou as regras.
— Você pode falar o quanto quiser, Julian, mas você a matou.
— Eu não fiz nada com ela. O próprio medo dela fez isso. Ela não podia
enfrentar seu pesadelo.
Jenny sabia que não havia sen do em discu r com ele, mas não podia
evitar. Em uma voz baixa e selvagem, ela disse:
— Não era justo.
Ele balançou a cabeça. parecendo quase diver do.
— A vida não é justa, Jenny. Ainda não aprendeu isso?
— O que lhe dá o direito de brincar conosco dessa maneira? Como pode
jus ficar isso? — Jenny estava furiosa.
— Eu não preciso me jus ficar. Me ouça, Jenny. Os mundos, todos os nove,
são cruéis. Eles não se importam com você ou com jus fica vas. Não há
bondade defini va. É a lei do selva. Você não precisa ser certo. Precisa ser
forte.
— Eu não acredito em você — rebateu Jenny.
— Que o mundo é cruel? — Havia um jornal no banco; ele o pegou. — Dê
uma olhada nisso, e me diga se o mal perde e o bem vence. Me diga que
não é a lei da selva em seu mundo.
Jenny nem queria olhar para as manchetes. Tinha visto muitos em sua vida.
— A verdade tem garras e dentes — Julian mostrou um sorriso. — E, como
isso é verdade, você não preferiria ser um dos caçadores do que uma das
caças?
Jenny balançou a cabeça. Tinha que admi r a verdade do que ele estava
dizendo — pelo menos sobre o mundo. Mas sen u o estômago embrulhar.
— Estou lhe oferecendo uma escolha — O rosto de Julian endureceu. — Já
disse antes que, se não conseguisse convencê-la, a forçaria de alguma
forma. Se você não concordar, terei que lhe mostrar que posso fazer isso.
Cansei de brincar, Jenny. Quero que isso aconteça, de uma forma ou de
outra.
— Já me decidi. Nunca cederei à você. Eu te odeio. — Os dentes de Jenny
estavam cerrados.
A raiva brilhou como uma chama azul nos olhos de Julian.
— Você não entende que o que aconteceu com Summer pode acontecer
com você?
Jenny sen u uma onda de frio.
— Sim, entendo. — disse lentamente.
E ela entendia, mesmo. Provavelmente não teria acreditado antes. Não
teria acreditado que Julian fosse capaz disso, ou que ela, Jenny, pudessem
ser vulneráveis à tudo. Morrer era para idosos, não para crianças da idade
dela. Coisas ruins — realmente ruins — não aconteciam a pessoas boas.
Mas aconteciam. E agora ela sabia disso, no fundo de seu coração. Às
vezes, coisas ruins aconteciam com pessoas que não mereciam isso. Até
com Summer. Até com ela.
Jenny sen u como se vesse aprendido algum segredo, sido iniciada em
algum clube ou comunidade mundial. A comunidade da dor.
Agora era uma das pessoas que sabia. Estranhamente, lhe dava uma
sensação de conforto saber que havia tantos outros, tantos que veram
amigos ou parentes que morreram, ou que sofreram outras coisas terríveis
que nunca pediram. Muitos de nós, pensou. Sem perceber, começou a
chorar. Estamos em todo lugar. E nem todos nós caçamos e matamos
outras pessoas. Não somos obrigados.
Aba não era. De repente, Jenny lembrou que a avó de Dee havia perdido o
marido em um incidente racial. E lembrou-se de algo que Aba havia colado
no espelho do banheiro, incongruente entre todos os utensílios de vidro,
mármore e ouro. Era uma placa feita à mão que dizia: Não faça o mal.
Ajude quando puder. Pague o mal com o bem.
Jenny nunca perguntou a Aba sobre a placa. Não parecia precisar de
explicação.
Agora sen a a comunidade da dor fortalecendo-a em todas as partes.
Como se es vessem entendendo-a, silenciosamente. Coisas ruins, as
piores, podiam acontecer com Jenny agora. Ela compreendeu isso.
— Você está certo. Talvez as coisas sejam tão ruins. Mas isso não significa
que eu tenha que desis r. Não vou me juntar a você de bom grado, então
pode tentar a força.
— Eu vou.
Tudo começou tão simples. Jenny ouviu um zumbido e uma abelha pousou
em seu ombro. Era apenas uma comum, empoeirada. Agarrou-se com os
pezinhos à blusa de linho. Mas então ela ouviu outro zumbido, e uma
segunda abelha pousou na outra manga.
Outro zumbido. E outro.
Jenny odiava abelhas. Sempre foi a pessoa em piqueniques gritando "Tem
uma no meu cabelo?". Queria espantar essas abelhas, mas nha medo de
provocá-las.
Ela olhou para Julian. Para seus selvagens e exó cos olhos de safira, seu
rosto lindamente esculpido. Naquele momento, usando as roupas sem
brilho de Zach, sua beleza era tão sobrenatural que era assustadora.
Outro zumbido e uma abelha estavam em seus cabelos, suas asas um
borrão de movimento enquanto se enroscava e se agarrava. Jenny ver isso
em sua visão periférica.
Julian sorriu.
Jenny ouviu um som mais profundo, um zumbido e procurou
automa camente a fonte. Um enxame de abelhas estava amontoado em
uma das vigas da garagem, pendendo como uma fruta gigante e pendente.
Ela deu um passo para trás e ouviu um zumbido de aviso em seus cabelos.
A bola de abelhas estava se movendo, se transformando.
Tornando-se uma nuvem negra e indo em direção a ela.
Jenny olhou mais uma vez para Julian, e então as abelhas começaram a cair
sobre ela como granizo. Se agarraram aos braços, ombros e seios. Ela teve
que manter os braços afastados do corpo para não esmagar as de lado.
Sabia que se fizesse isso, doeria.
Então simplesmente se tornou um pesadelo, irreal.
Elas eram pesados, cobrindo-a como um cobertor muito pesado. Jenny
cambaleou. Fechou os olhos porque elas estavam rastejando de seus
cabelos para o rosto. Ela foi inundada com abelhas, camada após camada
delas. Estavam agarradas uma ao outro agora, porque quase não havia
parte do corpo dela livre delas. As pontas dos dedos, algumas partes do
rosto.
Jenny sen u os pés nas bochechas e queria gritar, mas não podia, não
podia gritar, porque se ela fizesse, elas entrariam em sua boca. E então ela
perderia a sanidade. Mas não conseguia respirar bem o suficiente pelo
nariz. Seu peito estava pesado e o peso delas a esmagava. Tinha que abrir a
boca.
Estava chorando silenciosamente, tentando não se mexer, para perturbá-
los mais do que poderia ajudar. A voz de Julian veio até ela.
— Apenas diga a palavra, Jenny.
Ela só podia balançar a cabeça levemente. O mínimo de movimento. Mas o
que conseguiu, ela fez. Ainda estava chorando sem som, com medo de se
mexer, mas não iria — ela não iria — ceder.
Você pode fazer o que quiser comigo, pensou. No escuro, sob os olhos
cobertos de abelha, ela tentou se manter consciente, mas era como um fio
fino deslizando por entre os dedos. Ela o agarrou, sen u que estava sendo
arrancado dela.
Ela estava desmaiando. Caindo. Mas não desis u.
Quando eu a ngir o chão e esmagá-las, elas enlouquecerão e vão me
matar.
Mas Jenny não disse a palavra para impedir.
Sen u a escuridão chegar quando começou a cair.
CAPÍTULO 12
O azul cadete, que parecia pálido no espelho, ficou cinza no papel. Jenny
não era uma desenhista, mas sabia traçar coisas simples.
Como como um quadro — esse era o formato do porão de seu avô. Passos,
saindo do topo do desenho da casa. Uma mesa contra uma parede. Um
sofá. Três ou quatro estantes grandes.
Era tudo o que conseguia se lembrar e esperava que fosse o suficiente.
Olhando por cima do ombro, viu que Julian se fora novamente. Bom.
Ela colocou o pedaço de papel no chão em frente à parede em branco. O
flash de luz era exatamente como uma flash de câmera explodindo em
seus olhos, deixando-a com imagens dançantes. 1x0 para Zach, pensou.
Quando ela pôde ver novamente, se viu olhando no espelho.
Funcionara.
Ela podia sen r o pulsar nos pulsos, na garganta, no peito. Deus, não me
deixe fugir, pediu.
Depois de tantos anos lutando para não se lembrar, ela se jogaria direto
nisso. Seria ruim. Quão ruim, ela teria que descobrir quando acontecesse.
Jenny apertou o botão vermelho. A luz azul acendeu e a porta espelhada
se abriu. Ela não se deu a chance de olhar para nada antes de entrar.
A luz do sol dourada se inclinava das pequenas janelas colocadas no alto
das paredes. Para sua total surpresa, ela sen u uma emoção e
reconhecimento.
Eu lembro daquelas janelas! Eu lembro...
A porta se fechou atrás dela, mas Jenny já estava saindo para o centro da
sala, olhando em volta, maravilhada. Tomando as cores, a profusão de
objetos.
É menor do que eu pensava que seria — e ainda mais cheio. Mas é o porão
do meu avô.
Seu avô, porém, não estava lá.
Certo. Ele não estava aqui naquele dia. Eu lembro. Entrei em casa e fui
procurá-lo, mas não o encontrei em nenhum lugar no andar de cima.
Então... olhei aqui embaixo, eu acho. Devo ter olhado. Não me lembro, mas
devo ter olhado.
Jenny virou-se para as escadas, que terminavam em uma parede em
branco no topo. Sem porta, é claro, porque isso era um pesadelo. A parede
estava tão vazia quanto sua mente — seu senso de reconhecimento sumira
tão rápido quanto viera. Ela não nha ideia do que viria a seguir.
Mas, enquanto olhava, parecia ver o fantasma de uma criança olhando do
degrau mais alto. Uma garo nha de bermuda, com cabelos enrugados pelo
vento e uma crosta no joelho.
Ela própria. Aos cinco anos.
Era quase como assis r a um filme. Jenny podia ver a tanga na mão da
menininha se agitar enquanto ela descia as escadas correndo. Podia ver os
lábios dela abertos enquanto chamava pelo avô, ver a criança surpresa
quando ele acabou por não estar ali embaixo.
Enquanto Jenny assis a sem tentar guiar as imagens, o filme-fantasma
con nuava.
A menina estava olhando em volta, olhos verdes se arregalando quando
percebeu que estava sozinha aqui embaixo, algo que nunca havia
acontecido antes.
Tudo certo. A porta do porão sempre estava trancada quando o avô de
Jenny não estava lá embaixo, mas não naquele dia. Jenny lembrou-se da
sensação deliciosa por estar onde não deveria. Mas não conseguia se
lembrar do que aconteceu depois.
Não tente se lembrar. Você está se esforçando demais. Relaxe e veja o que
acontece.
Assim que decidiu isso, pareceu ver a menina novamente. A imagem
fantasmagórica estava de pé, incerta, balançando na ponta dos pés, entre
o ficar ou ir embora.
Escolheu o ficar. A criança olhou em volta com casualidade elaborada;
então, mordendo o lábio inferior e afetando um ar de indiferença,
caminhou até a primeira estante de livros.
Tudo bem, Jenny pensou. Então, vamos ver o que há na estante. Ela seguiu
a imagem da criança. A garo nha estava passando um dedo sujo por uma
fileira de livros, que, é claro, ela não sabia ler. Nem mesmo os tulos. Mas
Jenny, de dezesseis anos, podia.
Alguns pareciam bastante normais, como Fausto, de Goethe, e OVNIs: Um
Novo Olhar. Mas outros eram completamente desconhecidos, como A
Cabala, Três Livros de Filosofia Oculta e Galdrabók.
A garo nha estava passando para a segunda estante, que con nha todo
po de objetos. Uma prateleira inteira estava cheia de pequenas caixas de
madeira com tampos de vidro, cheias do que pareciam especiarias. Não,
eram ervas, Jenny percebeu. Ervas secas.
A menina estava passando os dedos fascinados por algumas bolas de vidro
colorido presas a cordas. Jenny, de dezesseis anos, estava mais interessada
na cruz presa ao lado delas — nha certeza de que era um Ankh. O pai de
Summer havia dito que o Ankh era um símbolo da vida egípcia que evitava
a má sorte.
E aquela coisa em forma de diamante feita de fio, que era um Olho de
Deus mexicano. Um design de corda que deveria protegê-lo do mal. A mãe
de Jenny nha uma na cozinha, para decoração.
Mas e o bracelete de contas de cobalto e turquesa, alternando com
pequenos encantos de prata? E as imagens religiosas banhadas a ouro? E a
flauta de madeira embrulhada em peles?
Itens de proteção? Jenny cogitou. Não nha certeza do que colocou a ideia
em sua mente, mas quanto mais olhava para as coisas nesta estante, mais
certa se sen a.
Mas... não era apenas essa estante de livros. Jenny se virou lentamente
para olhar ao redor do porão novamente. Todas essas coisas, todas essas
coisas lindas e exó cas — poderiam ser todas para proteção?
Quem precisaria de tanta proteção? E porquê?
A menina estava tocando um grande sino de prata na estante, mas os olhos
de Jenny foram atraídos para um grupo de gráficos na parede. O alfabeto
tebano, um deles estava marcado, e embaixo havia símbolos estranhos. O
Alfabeto dos Magos. O Alfabeto Etrusco Secreto. O Alfabeto da Árvore
Celta. Valores numéricos do alfabeto hebraico. Havia também uma gravura
bastante assustadora de um esqueleto segurando um corvo em uma mão
ossuda.
A criança fantasma estava se movendo novamente, vagando até a grande
escrivaninha. Indo na ponta dos pés com sua tanga, ela apoiou os
cotovelos no feltro da mesa. Jenny se viu olhando através de uma cabeça
loira transparente para os papéis ali.
Muitos papéis, que não interessavam à Jenny de cinco anos, exceto que ela
não deveria tocá-los. A maldade intrínseca era a diversão.
Jenny, dezesseis anos, sabia lê-los. Um deles era um gráfico como aqueles
na parede. O tulo era O Futhark An go, mas Jenny reconheceu os
símbolos angulosos e delgados.
Runas.
Como as que viu nos chifres dos jovens da floresta. Como as da capa
interna da caixa branca. Cada uma nha seu nome escrito ao lado, com a
forte caligrafia preta de seu avô e anotações.
Uruz, ela leu. Para perfurar o véu entre os mundos. Ela reconheceu a
forma, algo entre um U e um V inver do, os dois chifres desiguais
apontando para baixo.
Raidho. Tinha o formato de um R desenhado sem linhas curvas — para
viajar no espaço ou no tempo.
Dagaz, que parecia uma ampulheta de lado. Para despertar.
Uma das runas foi circulada com um forte golpe de caneta. Nauthiz. Com a
forma de um X inclinado para trás, com um golpe mais longo que o outro.
Para contenção. A palavra foi sublinhada fortemente.
Jenny deu outra olhada lenta pela sala.
Meu Deus.
Ela não conseguia mais manter a verdade longe. Estava segurando-a no
comprimento do braço, recusando-se a olhar para ela, mas agora explodira
nela com a força da certeza absoluta. Não havia como negar.
Ah, meu Deus, ele era um sorcerer. O pai de sua mãe era um sorcerer.
Alguém que dedicava a vida ao estudo da magia.
Não pense nisso... não se lembre, a voz em sua mente sussurrou. Ninguém
pode fazer você se lembrar. Fique segura atrás dos bloqueios que criou, ou
então... Ficará muito pior daqui em diante, ela percebeu.
Mas nha que lembrar — por Tom. Mas a imagem de Tom a confundiu.
Tanta coisa havia acontecido desde que o vira noite passada — como
poderia ter sido apenas na noite passada?
Jenny mudara muito desde então. Ela tentou evocar o sorriso malicioso
dele em sua mente, os olhos manchados de verde, mas a imagem que
conseguiu foi como uma fotografia distante e desbotada. Alguém que
conhecia há muito tempo.
Deus, não consigo sen r nada por ele.
Suas mãos estavam formigando e o estômago enjoado.
Eu ainda tenho que lembrar. Por Dee. Zach. Audrey e Michael — e Summer.
Sim. Por Summer.
Todos os outros haviam enfrentado seus pesadelos. Até Summer tentara.
Imagens deslizaram pela mente de Jenny: Dee se debatendo como um
animal; Audrey se encolhendo e gemendo; Michael gritando; os lábios
branco-azulados de Summer; Os olhos vidrados de Zach. Todos estavam
aterrorizados. O pesadelo de Jenny era pior que o deles?
Sim, acho que sim, a pequena voz em sua mente sussurrou, mas Jenny não
estava mais ouvindo. De Não lembre-se, não lembre-se, o canto em sua
cabeça mudou para Lembre-se, lembre-se...
Talvez isso ajude, Jenny disse a si mesma com bastante calma, e com a
sensação de conhecer seu des no, pegou um livro encadernado com a
capa de couro sobre a mesa.
Era um diário. Ou pelo menos um registro de algum po de experimento. A
escrita preta pesada de seu avô degenerou-se em um rabisco em alguns
lugares, mas certas frases se destacaram claramente quando ela folheou.
...de todos os métodos de diferentes culturas, este parece mais seguro ... a
runa Nyd ou Nauthiz fornece uma restrição eterna, impedindo viagens em
qualquer direção ... A runa deve ser esculpida, depois manchada de
sangue, e finalmente carregada de poder quando pronunciado seu nome
em voz alta...
Jenny folheou mais páginas à frente.
...um tratado interessante sobre os métodos tradicionais de lidar com um
Gênio, ou, como os Hauçás os chamam, o Aljunnu. Por que alguém deveria
pensar que isso poderia ser conseguido com uma garrafa está além de
mim... acredito que o espaço que preparei para ser apenas suficiente para
conter as tremendas energias envolvidas...
Santo Deus, ele soava como um cien sta. Um cien sta louco, Jenny
pensou. Ela virou mais páginas.
....Eu finalmente consegui a contenção! Estou muito sa sfeito... métodos
infalíveis... não há o menor perigo... as tremendas forças que eu usei...
tudo em total segurança...
No final, havia algo preso entre as páginas como um marcador. Era uma
folha rasgada de papel amarelado e quebradiço. Parecia muito an go. A
escrita nele era bem diferente da do avô, magra e trêmula, e parte dela
estava obscurecida por manchas marrons enferrujadas.
Era um poema. Não havia tulo, mas o nome do autor, Johannes Eckhart, e
a data de 1943 estavam escritos no topo.
Eu, escorregando nas pedras de gosma, Para aquele lugar escuro aceso por
uma fogueira enferrujada, Onde eles jazem observando, tocando em ossos
velhos, Vá com a minha pergunta. Nas profundezas do poço Da Floresta
Negra, onde o Erlking governa E a verdade é dita, mas sempre a um custo,
pego meu quebra-cabeça. Como os outros tolos que escorregaram nessas
mesmas pedras e brincaram e perderam, Eu venho porque devo. Eu não
tenho escolha. O Jogo é atemporal e ...
O resto foi coberto com manchas escuras, exceto pelas duas úl mas linhas:
deixo-os esperando lá embaixo. Eu os ouço rindo enquanto vou.
Jenny se recostou e soltou o ar. Obviamente, esse poema impressionara o
avô o suficiente para ficar com ele por quarenta anos. Ela sabia que o avô
havia lutado na Segunda Guerra Mundial e sido prisioneiro em um campo
de concentração alemão. Talvez até conhecera Johannes Eckhart na época.
E talvez esse Johannes Eckhart o vesse feito pensar...
Ela nha todas as peças do quebra-cabeça agora. Só não queria reuni-las.
Tudo o que conseguia pensar era dar o próximo passo no drama que estava
representando aqui.
O passo final, pensou.
A criança fantasma com a tanga havia desaparecido; o filme interno parou
de rodar. Mas Jenny não tentou recuperá-lo. Podia finalmente sen r o
puxão irresis vel da memória real e sabia o que nha que fazer.
Ela deu um passo para trás e olhou para a terceira estante. Era maciça,
construída em mogno sólido, e geralmente ficava encostada na mesma
parede da mesa. Hoje fora movida. Puxada para fora em um ângulo. O
padrão de poeira na parede atrás dela mostrava claramente onde
normalmente descansava.
Foi movida para expor uma porta atrás dela.
Jenny não nha notado a porta antes, porque a estante se destacava o
suficiente para bloqueá-la. Você nha que realmente ir além dela para dar
uma boa olhada.
E foi o que Jenny se sen u compelida a fazer agora. Era uma porta de
aparência perfeitamente normal. Provavelmente levando a um armário. A
única coisa estranha a respeito era o enorme X de costas para trás
profundamente esculpido na madeira.
Esculpido e colorido um marrom enferrujado como as manchas no poema.
O filme interno começou de novo, mesmo que Jenny não precisasse ou não
o quisesse. A garo nha fantasmagórica estava surpresa em frente à porta,
balançando-se de um pé para o outro. Obviamente, a tentação estava
lutando com obediência e vencendo. Os cabelos arrepiados pelo vento
foram sacudidos para trás, as pernas bronzeadas brilharam, duas mãos
pequenas agarraram a maçaneta da porta — e o fantasma desapareceu.
E então eu abri, Jenny concluiu. Mas nenhuma imagem de abri-la ou do
que aconteceu depois lhe veio à mente. Ela teria que descobrir isso por si
mesma.
Todo o caminho até a porta, seu coração estava batendo em desaprovação
selvagem. Seu corpo parecia ter mais senso do que ela. Não-não-não-não-
não-não-não-não, dizia o pulso acelerado.
Elasegurou a maçaneta. O baque se tornou um grito.
Não, não. Não-não-não....
Ela abriu a porta.
Gelo e sombras. Isso era tudo que ela podia ver. O armário era largo e
muito profundo, e por dentro havia uma mistura rodopiante e fervente de
branco e preto. O gelo cobria as paredes, pingentes de gelo pendiam como
dentes do teto. Uma rajada de vento gelado atravessou Jenny, a gelando
como se vesse mergulhado nas águas do Ár co. As pontas de seus dedos
ficaram dormentes, a pele enrugada.
Estava tão frio que parou sua respiração. A impediu de se mover. O gelo
estava tão brilhante que a cegou. Ela teve apenas um vislumbre do que
estava no centro daquele redemoinho de luz e escuridão. Olhos.
Olhos escuros, observadores, sardônicos, cruéis, diver dos. Olhos an gos.
Jenny os reconheceu. Eram os olhos que via às vezes no momento de
adormecer ou de acordar. Os olhos que viu naquela noite em seu quarto.
Olhos nas sombras. Olhos malignos, maliciosos e conhecedores. Um par de
um azul indescri velmente bonito.
Jenny não nha ar para gritar; seus pulmões estavam se rebelando contra
o vento gelado que ela estava tentando atrair para eles. Mas teve que
gritar, teve que fazer alguma coisa, porque eles estavam saindo. Os olhos
estavam saindo.
Era como se es vessem vindo de muito longe, correndo em sua direção,
cavalgando na tempestade. Ela teve que se mexer, teve que correr. Os
brilhantes olhos negros dos visitantes alienígenas, os olhos oblíquos dos
Elfos Sombrios — Jenny pensara que aqueles eram assustadores, mas não
eram nada comparados a isso. Eram imitações fracas e mesquinhas.
Nenhum horror que os seres humanos vessem inventado para se assustar
chegou nem perto. Vampiros, alienígenas, lobisomens, ghouls; eles não
eram nada. Histórias inventadas para esconder o verdadeiro medo.
O terror que veio na escuridão, o que todos sabiam e todos esqueceram.
Somente às vezes, acordando entre os sonhos, a realização completa
chegava. E mesmo assim raramente era lembrado e, se lembrado, era
dispensado na manhã seguinte. O conhecimento não poderia sobreviver à
luz do dia. Mas à noite, às vezes, as pessoas vislumbravam a verdade. Que
os humanos não estavam sozinhos. Eles compar lharam o mundo com
eles. Os outros.
Os Observadores.
Os Caçadores.
Os Homens das Sombras.
Que andavam livremente pelo mundo humano e que nham outro mundo.
Que foram chamados de coisas diferentes em diferentes idades, mas sua
verdadeira natureza sempre veio à tona.
Eles concediam favores — às vezes. Mas sempre pediam algo em troca,
geralmente mais do que você poderia pagar.
Gostavam de jogos, enigmas, qualquer po de jogo. Mas não eram
confiáveis, eram caprichosos. Equilibravam qualquer bem que fizeram com
o mal caprichoso.
Atacavam humanos. Quando pessoas perdiam tempo, eram os
responsáveis. Quando pessoas desapareciam, estavam rindo. As pessoas
que entravam no mundo deles geralmente não voltavam.
Eles nham poder. Tentar dar uma boa olhada neles — ou prendê-los —
sempre foi uma má ideia. Mesmo apenas ser muito curioso sobre eles
poderia matá-lo.
Mais uma coisa. Eles eram dolorosamente bonitos.
Tudo isso passou pela mente de Jenny em questão de segundos. Ela não
precisava raciocinar. Ela sabia. Era como se uma crosta vesse
desaparecido de sua mente, e ela via a verdade como um todo completo e
coerente. Tudo o que conseguia pensar era: Então é isso. Eu me lembro
agora.
Os olhos ainda estavam correndo em sua direção. Seu cabelo solto
chicoteava seu rosto com o vento, sua própria respiração cobrindo-o com
gelo. Ela não conseguia se mexer.
— Jenny!
O nome dela foi chamado com uma voz terrível. Antes que ela pudesse se
virar, foi presa pela cintura e levantada como se vesse cinco anos e
pesasse 37 quilos.
— Vovô — ela ofegou e jogou os braços em volta do pescoço dele.
Ele era menor do que ela lembrava também e agora seu rosto cansado e
gen l estava gravado em horror absoluto. Jenny tentou se agarrar à ele,
mas ele a jogou ao redor, empurrando-a para trás da estante.
— Nauthiz! Nauthiz! — Ele gritou. Estava tentando fechar a porta, traçando
a runa na frente com facadas no dedo. Seus movimentos cortantes ao
traçar o X se tornaram cada vez mais violentos e sua voz era a coisa mais
terrível que Jenny já ouvira. — Nauthiz!
A porta não se fechou. Os gritos do velho estavam se tornando gritos de
desespero.
Uma luz branca vinha do armário. Uma tempestade branca, com gavinhas
e chicotadas de névoa. Fios escuros estavam entrelaçados com o branco.
Os tentáculos se contorciam com o avô de Jenny. Ela tentou gritar, mas não
conseguiu.
O vento soprava, espalhando os cabelos esparsos do avô; suas roupas
estavam ondulando. Geada escorria pelo teto, até a mesa, até as janelas do
nível do solo. Ele se espalhou como cristais crescendo ao longo das
paredes.
Lágrimas congelaram nos olhos de Jenny. Ela parecia estar trancada na
forma de uma criança de cinco anos; não conseguia ir até ele.
As vozes que falavam da névoa eram tão frias quanto o vento. Como sinos
feitos de gelo.
— Nós não vamos voltar para lá.
— Você conhece as leis...
— Temos uma reinvidicação, agora...
E a voz de seu avô, cheia de medo desesperado.
— Qualquer outra coisa. Vocês podem ter qualquer outra coisa...
— Ela quebrou a runa...
— ...nos libertou...
— ...e agora, nós a queremos.
— Dê ela para nós. — As vozes falavam todas ao mesmo tempo.
— Eu não posso! — disse seu avô. Foi quase um gemido.
— Então vamos levá-la...
— ...Vamos envolvê-la...
— Não, vamos mantê-la — disse uma voz cheia de música su l e
elementar. Como água correndo por rochas. — Eu quero ela.
— Todos queremos ela...
— ...Estamos todos com fome.
— Não! — o avô de Jenny gritou.
Uma voz como um bloco de gelo quebrando disse:
— Só há uma maneira de mudar as consequências. Fazer uma nova
barganha.
A mandíbula do avô de Jenny estalou, e ele se afastou do armário alguns
passos.
— Você quer dizer...
— Uma vida por uma vida.
— Alguém deve tomar o lugar dela.
— Venha agora, é o único jeito.
As vozes eram delicadas, razoáveis. Malignas.
Apenas a voz como água parecia ter uma objeção.
— Eu quero ela... — argumentou.
— Ah, jovens... — disse uma voz tão lenta quanto uma geleira e todos
riram como sinos de Natal.
— Estou pronto — disse o avô de Jenny.
— Não! — Ela gritou.
Podia se mexer finalmente — mas era tarde demais. Ela se lembrava de
tudo agora. Estava encolhida atrás da estante, sua mente de cinco anos
provavelmente melhor capaz de lidar com a realidade dos Homens das
Sombras do que a de um adulto. Eles eram os monstros que assustavam
todas as crianças daquela idade. O bicho-papão. As coisas ruins. E estavam
levando seu avô.
A Jenny pequenininha pulou e correu, como ela estava fazendo agora. Em
direção ao armário. Em direção às mechas brancas de névoa que
serpenteavam ao redor de seu avô, em direção à tempestade de gelo nos
olhos. Ouviu o avô gritando naquele dia enquanto a tempestade o
arrastava para o armário. O alcançou, pegando a mão dele. Ela também
estava gritando, assim como agora, e o vento gelado uivava ao seu redor,
cheio de vozes raivosas, más e vorazes.
Por um instante, como agora, a briga parecia um horrível cabo de guerra.
Ela, Jenny, agarrada à mão de seu avô com toda a força. Eles, na
tempestade de gelo, o afastando. Nas profundezas de um armário que se
tornara interminável, um túnel a ngindo outro mundo.
Ela nunca poderia esperá-los, é claro. Só conseguiu ser arrastada pelo
chão, com as roupas rasgadas, os sapatos perdidos, os pés descalços
pegando gelo.
Os dois estavam entrando.
Então, o avô fez cócegas em suas mãos e se livrou do aperto.
Jenny caiu no chão, o gelo sob as pernas nuas. Ela estava diretamente na
frente do armário, e nha uma visão perfeita da roda giratória que gritava,
que era um homem, desaparecendo em uma nuvem branca que ficava
cada vez menor como se es vesse se afastando rapidamente e finalmente
desapareceu, tornando-se um parede do armário.
Então, o vento estridente parou e a sala estava vazia e Jenny estava
soluçando sozinha no silêncio.
CAPÍTULO 14
Foi Dee quem fez a ligação, porque Audrey e Michael estavam olhando
pela janela da cozinha juntos, e Zach não era do po que falava. Jenny e
Tom se afastaram um pouco dos outros.
— Eu queria te mostrar isso — disse Tom.
Era um pedaço de papel esfarrapado. Tinha várias coisas desenhadas e
depois riscadas — Jenny pensou que se tratava de um rato. Uma única
coisa não estava riscada estava no meio, mas Jenny não sabia dizer o que
era.
— Sou um péssimo desenhista, mas pensei que você pudesse perceber os
cabelos amarelos e olhos verdes.
— Eu sou o seu pior pesadelo? — Jenny apenas brincou, porque estava
completamente confusa.
— Não. Foi di cil desenhar, mas foi o que eu quis dizer quando disse à
Julian que achava que nha que acontecer. O sen do do Jogo era o nosso
pior pesadelo, e esse era meu. Perder você.
Jenny só conseguiu olhá-lo.
— Não sou bom em dizer isso. Talvez não seja nem em mostrar, mas... eu
te amo. Tanto quanto ele. Mais, até.
Jenny só conseguia pensar nos arbustos de hibisco. O pequeno Tommy na
segunda série. O garoto com quem ela decidiu que se casaria quando o viu
pela primeira vez.
Algo a puxava internamente, mas ela sabia que nha que guardar isso —
mesmo a lembrança disso — para sempre. Nunca pense nisso novamente.
E nunca deixe Tom saber.
Nunca.
— Eu também te amo — ela sussurrou. — Ah, Tom, tanto.
Foi nesse momento que ouviram o vidro quebrar.
Dee não correu por estar ao telefone. Tom, por proteger Jenny
ins n vamente. Os outros estavam simplesmente congelados.
Ainda assim, levaram apenas alguns segundos para voltarem para a sala,
bem a tempo de ver duas figuras saindo pela porta de vidro deslizante
quebrada com uma velocidade realmente surpreendente.
A caixa branca não estava mais na mesa de café.
Tom e Dee, é claro, correram para o quintal. Mas mesmo Jenny, parada
junto à porta quebrada, podia ver que não teriam chance. As duas figuras
pularam por cima do muro e se foram antes que eles se aproximassem.
Depois de escalar a parede do bloco e olhar em volta, Tom e Dee voltaram
lentamente.
— Eles simplesmente desapareceram. — A voz de Dee estava enojada.
— Pareciam até voar. — Tom ofegou.
— Vocês não estão na melhor forma, depois de tudo — disse Jenny. — Não
importa. Eu não queria mesmo entregar o jogo à polícia. Provavelmente
não funcionará para mais ninguém.
— Mas quem eram eles? Homens das Sombras? — Michael perguntou.
— Homens das Sombras de tênis — Dee apontou para uma pegada
lamacenta nos ladrilhos.
— Mas por que eles queriam...
Jenny o silenciou. Estava olhando para o vidro quebrado e tentando não
pensar. Mesmo de costas, aqueles dois caras pareciam familiares.
Mas certamente o que ela disse era verdade. O Jogo nha sido feito para
ela; não deveria funcionar com mais ninguém. Além disso, estava rasgado
agora, arruinado.
E mesmo que funcionasse para outra pessoa, quais eram as chances de
eles chegarem ao terceiro andar, no porão de seu avô? E mesmo que
chegassem lá, quais eram as chances de abrirem uma porta branca do
armário?
— Que façam bom proveito — disse Tom. À luz da manhã, seus cabelos
escuros brilhavam, e as manchas verdes em seus olhos pareciam douradas.
— Tudo o que me interessa está aqui — Ele sorriu para Jenny. — Chega de
pesadelos — ele estendeu os braços para os amigos.
Jenny entrou no círculo.
FIM DO LIVRO 1
A AUTORA:
L .J. Smith tem inúmeros livros para jovens publicados, muitos deles
frequentaram a lista de mais vendidos do New York Times e foram
inspirados em seus próprios pesadelos. Seu primeiro romance, The night of
the sois ce, foi lançado no ano em que ela se formou na faculdade. É
autora das séries "Diários do Vampiro" - que deu origem à série de
televisão Vampire Diaries -, "O Círculo Secreto" e "Mundo das Sombras".
Atualmente, vive na Califórnia com seu cachorro, Victor, três gatos e
aproximadamente dez mil livros.