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Se ela não tivesse ligado o rádio naquele momento, não teria ouvido a
música e não estaria parada no acostamento agora, com a porta do motorista
aberta, inclinada para fora com ânsia de vômito e a perigo de ser atingida por
outro veículo em alta velocidade.
Ela não podia imaginar. Não ouvia a música há mais de 20 anos. E
agora, lá estava ela. Transformada em uma mixagem-dance ridícula, que para
ela não fazia sentido algum. Mas ela a reconheceu. Demorou uns segundos: a
música parecia conhecida, parecia alguma coisa que ela já tinha ouvido antes...
Quando fez a associação, foi como se um raio de eletricidade tivesse
atravessado seu corpo.
A noite estava só morna. Era outono, então o céu estava perfeitamente limpo e
estrelado, e uma brisa fresca passava de tempos em tempos, para refrescar.
Não era uma das abafadas noites de verão, quando todos os ar-condicionados
das casas estariam ligados. Nenhum residente daquela rua era especialmente
bem provido de dinheiro, ninguém podia esbanjar, então as famílias
reservavam o luxo dos ar-condicionados para essas noites em que o asfalto
das ruas ainda continuava quente mesmo às 8 da noite, e as nuvens de
mosquitos perturbavam o sono. Hoje, todos estariam com as janelas abertas.
Isso era ruim para fulana. O zumbido constante do ar-condicionado e as
janelas fechadas seriam uma cobertura melhor para ela. Haveria menos risco
de ser vista ou ouvida.
Tinha programado ir até a garagem quando fosse duas da madrugada.
Ela nunca tinha ficado acordada até tão tarde, então imaginava, em sua
inocência, que duas da madrugada era uma hora absurdamente longínqua e
morta. Sua avó certa vez tinha comentado:
XXX É um absurdo que a programação da TV acabe depois das duas da
manhã. É uma afronta com quem tem insônia!
Ela apostava que até quem tivesse insônia estaria dormindo, nessa
hora, e ela estaria segura. De qualquer forma, a vila era composta de famílias
trabalhadoras e as pessoas se deitavam cedo por ali.
Deitara-se apreensiva de cochilar e perder a hora, mas essa
preocupação tinha sido completamente infundada: não havia jeito de pregar o
olho. A hora arrastava, os minutos pingavam. Cada vez que olhava de relance
para o despertador na mesinha de cabeceira, parecia que só tinham se
passado uns míseros minutos. Seus olhos se acostumaram à penumbra, então
não precisava nem se aproximar dele para verificar o horário.
Ficou revirando na cama, pensando.
O que suas colegas de escola estariam fazendo agora? Dormindo, com
certeza, pois já era tarde para quem tinha aula no dia seguinte. Mas como
seriam suas vidas? Estariam dormindo seguras, em seus quartos? Teriam
ganhado beijos de boa-noite? Apostava que tinham ido dormir depois de um
jantar em família. Que tinham assistido programas divertidos. Que só
pensavam na próxima festa de aniversário, na próxima ida ao cinema. Se
ficariam mocinhas logo. Como iriam pentear o cabelo para ir à aula no dia
seguinte, e na prova de matemática, que tinha sido tão difícil.
Não era justo que ela não tivesse nada disso. Não era justo que ela
estivesse revirando-se na cama, pensando em fazer as coisas que estava
pensado em fazer.
Ela já se sentia excluída do mundo, se fizesse o que estava planejando
então, nunca mais seria uma pessoa normal. Iria cruzar um limite que não
podia ser cruzado: seria uma criminosa. Seria um pouco como ele, má, e isso a
deixava doente. E esse seria um segredo que teria que guardar para sempre.
Por outro lado, se não fizesse, não sabia que futuro teria. Ou se teria algum.
Tinha chegado a pensar em desistir, mais cedo. Mas o garoto tinha sido
especialmente odioso, naquela noite. Tinha discutido com a mãe, por causa de
uma ameaça de expulsão que tinha levado no colégio. Aparentemente ele tinha
feito alguma coisa muito ruim com um menino mais novo, e o caso tinha
acabado na diretoria. Eram sempre os mais novos, com ele.
Quando a discussão ficou acalorada, a mãe tinha colocado a mão nele,
e ele a tirara com um safanão. A mãe tinha gritado como uma histérica, mas
tinha ido se trancar no quarto.
Aquilo foi a certeza que ela precisava.
Mesmo assim, agora sofria, ali deitada. Pelo feio do que tinha que fazer.
Por si mesma, para se defender.
Uma lágrima teimou em escorrer até o travesseiro, mas ela achou que
tudo bem XXX pelo menos dessa vez ninguém estava vendo.
Passar pelo quarto do tio e da mãe tinha sido fácil, já que ambos dormiam de
portas fechadas. Chegou até a sala sem acender nenhuma luz, e sem fazer
nenhum ruído. Mas para chegar até a garagem teria que sair pela porta da
frente, que se abria para um minúsculo quintalzinho e dava para a lateral da
casa. Todas as casinhas da vila tinham somente pequenas muretas baixas,
então qualquer um poderia vê-la indo até a garagem. Teria que ser rápida.
Olhou para os dois lados da rua e tudo parecia vazio e adormecido: até
a luz esbranquiçada do poste mais próximo parecia sonolenta. Nem os gatos,
que às vezes faziam serenata por ali, estavam à vista. Talvez já tivessem
aprendido que aquele não era um bom lugar para gatos.
Esgueirou-se até a garagem e agachou-se no chão, certa de que a
escuridão a cobriria, se alguém olhasse de alguma janela. Havia um mundo de
coisas perdidas por ali: pilhas de caixas de papelão, que ela não imaginava o
que continham; uma poltrona rasgada em um canto; brinquedos velhos; algum
material de construção; sacos de cimento; uma bola de futebol; uma mangueira
de jardim toda embolada; e nos fundos, as bicicletas.
A de Vitor estava encostada na parede; a sua, jogada no chão. Ela não
usava nunca. Procurou em volta a maleta de ferramentas e encontrou-a logo
atrás de uma caixa. Abriu-a. Martelo, pregos, porcas, parafusos, algumas
coisas de metal que ela não sabia o que eram, chave de fenda e outras chaves
que ela desconhecia o nome. Arrastou a maleta com cuidado até perto das
bicicletas.
Examinou com cuidado as peças da bicicleta XXX correia, roda, e
muitos, muitos parafusos. Achou uns pontos que podia afrouxar. Sim, se
afrouxasse aqui e ali, talvez funcionasse. Mas não demais, pra não soltar antes
que ele chegasse à rua.
Achou melhor testar na sua, primeiro. Ninguém iria reparar se aquele
monte de ferro-velho estivesse quebrado. Achou uma daquelas chaves que se
encaixava nos parafusos da bicicleta, e começou a desparafusar aqui e ali.
Achou também o cabo que levava ao freio. Isso seria a cereja do bolo XXX se
ele não pudesse frear.
Testes feitos, partiu para a bicicleta dele. Afrouxou parafusos e cortou o
cabo com um alicate (felizmente não era o que ele usava nos gatos, eca.
Nesse ela não teria coragem de botar a mão). Não achava que iriam perceber
que tinha sido cortado de propósito, porque ela não o cortara direto; tinha
girado-o, para que ele arrebentasse, como se estivesse desgastado.
Encostou a bicicleta de novo na parede, milimetricamente do jeito que
tinha encontrado, guardou as ferramentas e fez o caminho de volta até seu
quarto com a mesma atenção.
Quando se deitou, seu coração estava disparado. Ela tinha feito! Tinha
mesmo! Nunca tinha feito nada de propositalmente errado, na vida. Será que
daria certo? E se não desse? Sua mente de criança não conseguia visualizar o
acidente, porque isso era duro demais. Ela só conseguia se concentrar nele
pegando a bicicleta e não voltando nunca mais.
Agora teria que agir como se essa noite nunca tivesse acontecido, fosse
como fosse. Não importava o resultado que desse XXX para todos os efeitos,
ela não tinha feito nada. Só assim ninguém descobriria.
Se ela fingisse para si mesma que nada tinha acontecido, talvez até
funcionasse: nada teria acontecido de fato. Ela tinha sonhado tudo isso. Sim,
tudo tinha sido um sonho!
Dormiu e sonhou com uma grande chave-inglesa perseguindo-a.