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Foi aquela maldita música no rádio.

Se ela não tivesse ligado o rádio naquele momento, não teria ouvido a
música e não estaria parada no acostamento agora, com a porta do motorista
aberta, inclinada para fora com ânsia de vômito e a perigo de ser atingida por
outro veículo em alta velocidade.
Ela não podia imaginar. Não ouvia a música há mais de 20 anos. E
agora, lá estava ela. Transformada em uma mixagem-dance ridícula, que para
ela não fazia sentido algum. Mas ela a reconheceu. Demorou uns segundos: a
música parecia conhecida, parecia alguma coisa que ela já tinha ouvido antes...
Quando fez a associação, foi como se um raio de eletricidade tivesse
atravessado seu corpo.

I know, caught up in the middle


I cry just a little
When I think of letting go
Oh no, gave up on the riddle

A música em si não significava nada para ela, era até meio


desconhecida (uma parte de sua mente se perguntava quem é que tinha tido a
ideia de desencavar Piano in the Dark, canção que nem em sua época tinha
sido um grande sucesso).
Mas o eco dela em sua mente trouxe tudo de volta. Tudo, tudo, tudo.
Não as memórias, propriamente ditas. Ela achava que tinha esquecido e
bloqueado a maior parte. Mas sim as sensações. A angústia.
Aquela angústia que ela não sentia desde então.
De repente, ela tinha 13 anos de novo.
A perna bambeou, ficou mole e quente, e ela não conseguia mais
apertar os pedais do carro. Teve que parar de qualquer jeito, cruzando as
pistas até o acostamento da direita e tomando buzinadas frenéticas dos outros
motoristas. Foi uma sorte não terem batido nela.
Agora estava ali, debruçada, num ataque de náusea súbita, porta do
carro escancarada e cuspindo saliva no asfalto sujo.
Ela nunca tinha conhecido o pai. Ele tinha ido embora antes de ela se entender
por gente. Mas seu tio se lembrava. O tio era o irmão temporão de sua mãe, só
alguns anos mais velho do que a garota, e que tinha sido criado por seus pais
como se fosse filho. Mas ele não falava do pai dela. Sua mãe também não,
então para a garota era como se ele nunca tivesse existido. Sua presença ou
falta nunca tinha influenciado em nada sua vida. Na da mãe e do tio, talvez.
Mas para ela, não havia a sensação de estar perdendo algo. E ela sempre foi
feliz com a ausência dele, mais do que eles. A falta pode ser uma coisa terrível,
na vida das pessoas, e é melhor para nós que algumas pessoas simplesmente
não existam nunca, para começo de conversa.
Quando tudo aconteceu, eles moravam em uma velha casa de vila.
Eram 8 casinhas pequenas e grudadas, que dividiam infiltrações e heras no
muro, e de onde se ouviam todos os suspiros dos vizinhos. A mãe trabalhava o
dia inteiro, então ela e o tio ficavam sozinhos em casa, sendo vigiados com
muita má vontade pela avó, que morava na casa em frente.
Ela não se lembrava quando foi a primeira vez em que percebeu que
havia alguma coisa errada com ele. Mas aos onze anos ela já tinha certeza
absoluta disso.
Ela podia ter demorado todos aqueles anos para conseguir colocar em
palavras, para si mesma, mas talvez ela sempre tivesse sabido. Que ele era
mau.
A mãe e suas comadres balançavam a cabeça e abaixavam o tom de
voz quando falavam dele entre si, e diziam que ele era “revoltado”. A avó, que
era mãe de seu pai desaparecido, censurava a mãe por se preocupar. É assim
mesmo que os meninos são! Deixa ele em paz; falta é um pai para dar um
corretivo nele. Depois cresce e melhora o comportamento.
Mas a menina desconfiava que a mãe sabia. Que no fundo todos
sabiam. Que havia uma coisa escura e má se escondendo dentro dele. E que
não era porque ele fosse arteiro ou levado ou malcriado.
A mãe devia saber XXX ela também tinha medo dele. Imagina se ela
soubesse o que a menina sabia, se visse o que ela via. Porque ele escondia
essa coisa dentro de si. Controlava um pouco quando os adultos estavam por
perto. Não muito, que passasse despercebido, mas o suficiente, para que eles
pudessem ignorar sem peso na consciência.
Assim como as empregadas percebiam e nunca paravam na casa, e iam
embora repentinamente sem dar muita explicação. Uma ou outra ainda
comentava:
XXX Não dá pra cuidar do menino, não, dona.
E a mãe sorria amarelo e se desculpava com os outros:
XXX Ele é difícil... Só está passando por uma fase.
Quando sua mãe estava, ele era difícil, sim; quando ela não estava, ele
piorava, virava outra pessoa. Cruel e violenta.
Certa vez, estava sentada no sofá assistindo desenhos, quando ele veio
da cozinha como um foguete e lhe deu um soco tão forte na lateral do rosto,
que ela foi parar no chão do outro lado da sala. Não viu nem seu punho se
aproximando. Quando finalmente conseguiu escutar acima do zumbido no
ouvido, ouviu-o dizer:
XXX Você bebeu o resto do refrigerante! Por que não bebeu o suco?
Você sabe que eu não tomo suco, sua egoísta!
Mesmo se ela não estivesse zonza de dor e conseguisse falar, não se
atreveria a abrir a boca para lembrá-lo que ele mesmo tinha tomado o
refrigerante na noite anterior.
A garota sabia que se contasse essas coisas para alguém, iriam achar
que ela estava inventando XXX sabia que achavam que ela era só uma criança
e afinal, ele era o mais velho. Tomariam satisfação com ele, brigariam com ele
e depois... ela teria que se ver com ele. Às vezes achava mesmo que estava
inventando, exagerando, que ele não poderia ser tão ruim assim.
Principalmente quando ele ficava alguns dias sem incomodá-la.
Naquela idade, ela tinha se especializado em uma coisa: ser invisível.
Tinha percebido que o melhor era ficar fora de seu radar. Passava dias como
um fantasma, sem falar perto dele, movendo-se na ponta dos pés, sem chamar
a atenção para si mesma. E dava certo. Ele parecia esquecer-se dela, e ficava
entretido com suas coisas. Preocupava-se em torturar outros moleques da vila
ou algum gato vira-latas que aparecesse por ali. Nesses dias, ela dizia a si
mesma que tudo tinha melhorado e ficava se convencendo de que ele era um
garoto normal, e ficava fantasiando como seria bom se ele fosse o típico tio ou
irmão mais velho XXX amigo e companheiro.
Mas aí, do nada, ele percebia sua presença e parecia voltar toda sua
raiva para ela. Qualquer coisa era motivo para punição – até respirar. Se ela
tirasse alguma coisa dele do lugar, se tropeçasse em algo seu, se pegasse o
último pedaço de sobremesa que ele queria, se visse televisão muito alto, se
esquecesse de avisar que um amigo ligou, se, se, se... Tudo era desculpa, as
coisas mais banais. E quando não havia motivo, isso também parecia irritá-lo e
ele inventava alguma coisa. E ela virava alvo.
Ela achava que seria até tolerável se fosse só isso, se a coisa fosse tão
simples assim, tão limpa e direta. Não era: o grande prazer dele era a
expectativa do castigo. Ele dava prazo para a surra. E saboreava isso.
Quando a mamãe sair, vou te bater. À noite. Amanhã de manhã.
Quando a dona Gerusa for embora.
Era o prazo que a deixava louca.
Ela ficava até aliviada quando a hora chegava, quando recebia os
golpes. Era libertador. Doía menos do que a espera, a ansiedade. O medo de
ter medo de apanhar era maior do que o apanhar em si.
Foi nessa época em que começou a fazer qualquer coisa para ficar fora
de casa, para não ficar sozinha com ele. Muito sutilmente tinha convencido a
avó a matriculá-la em um curso de inglês, que ficava a poucas quadras da vila.
Ela não queria ter que convencer a mãe, porque ela podia “farejar” alguma
coisa, podia perceber a desculpa e seu desespero. Elas faziam um jogo:
ambas sabiam que algo estava errado, mas fingiam que não. A mãe parecia
tensa cada vez que ela ameaçava contar essas coisas que aconteciam, porque
teria que tomar uma providência. Então ela simplesmente não dizia nada. Esse
era o acordo.
Ela começou a ir a essas aulas duas vezes por semana, e eram as
melhores horas das suas tardes. Infelizmente, eram poucas. Quando ela
voltava, parecia receber atenção redobrada dele. Como se ele estivesse
ressentido de ter sido privado de seu brinquedo de pancadas.
Então ela começou a ir ao curso todos os dias. Eles ofereciam reforços:
aula de música, aula com filmes, aula de monitoria. E ela assistia a todas.
Repetidamente.
Foi nesse período em que decorou toda a letra de Piano in the Dark. As
duas primeiras vezes em que fez a aula, a professora não reparou e nem disse
nada a respeito. Mas lá pela quinta vez, veio falar com ela:
XXX Você já sabe toda a letra dessa música, já veio a essa aula um
monte de vezes. Por quê?
A garotinha magricela olhou fixo e duro para a professora, forçando-se a
não chorar.
XXX Eu não vou atrapalhar. Prometo ficar quietinha no canto XXX disse,
sem responder diretamente à pergunta.
Seu olhar implorava para que a professora não insistisse, não
perguntasse mais. E ela pareceu entender, de alguma forma. Balançou a
cabeça e não tocou mais no assunto.
Em casa, as coisas pioravam.
Ela tinha preocupações redobradas. O garoto a espancava, e a
ameaçava:
XXX Se você contar para a mãe ou ela perceber, eu te mato.
E ela acreditava. Tinha visto a última experiência dele com um gato. Ele
a fez assistir enquanto estripava o bicho com um alicate XXX dizia que era isso
que faria com ela.
Por isso, sua preocupação se redobrava e ela passava horas e mais
horas trancada em seu quarto, para que a mãe não visse os hematomas.
Trancada não, pois a ordem dele era de que ela não trancasse o quarto. Assim
ele podia entrar e quebrar alguma coisa que ela gostasse muito, a qualquer
momento. Essa era uma variação do castigo. E ela torcia para que ele não
percebesse que isso lhe doía mais do que o resto.
Até que um dia, por acaso, ela descobriu como se livrar de uma surra.
A avó não disfarçava a antipatia pelo garoto, que não conseguia chamar
de neto. Ela nunca tinha aceitado o fato do filho recém-casado ter assumido o
garoto como seu. E não importava que o próprio filho tivesse sumido, anos
depois XXX ela acreditava piamente que ele estava viajando e que voltaria a
qualquer momento. Era uma senhora altiva, dessas severas, que nunca têm
um fio de cabelo fora do lugar.
Por isso fulana e o rapaz não frequentavam muito a casa da avó, que
era a melhor da vila. Tinha dois andares, um cheiro persistente de naftalina (a
velha tinha pavor de baratas e traças) e uma quantidade assustadora de
bibelôs. Parecia um museu. Tudo na casa gritava “crianças não são bem-
vindas!”. Ainda assim, entravam lá eventualmente.
Nesse dia, ela nem se lembrava mais o que tinha feito para despertar a
ira do garoto, mas ele a ameaçou entre dentes: Assim que a gente for pra casa,
você vai ver.
E continuaram a tomar lanche com a senhora, como se nada houvesse
acontecido. A avó sentia-se na obrigação de convidá-los para o lanche
algumas vezes por semana, quando a mãe não estava, pois achava que era
seu dever cristão. Obrigava-os a comer no terraço, para não sujar a sala e
pedia que não falassem nada. Fulano, apesar de ainda estar entrando na
adolescência, era alto e grande como um homem, e a senhora ficava mais
desconcertada com sua presença a cada ano.
A menina suava um suor frio e pegajoso, quando eles se despediram
para ir embora. De nervoso e ansiedade. Desceu descuidada a escada pelo
lado de fora da casa, que levava ao térreo, e que era daquelas muito íngremes
e em caracol, e acabou tropeçando nos últimos degraus. Sorte sua não ter
caído mais do alto, pois podia ter quebrado uma perna.
Mas machucou-se um pouco, e como andava frouxa para lágrimas,
chorou e reclamou bem. Chegou a ficar com o tornozelo inchado.
Ele passou por ela, olhou-a bem e disse:
XXX Bem feito.
E foi atrás dos moleques na rua, deixando-a para trás.
Ela foi para casa mancando e naquele dia esperou pela surra até à
noite. Ela nunca veio.
O garoto entrou em casa distraído, e nem percebeu sua presença.
E ela entendeu: bastava ser punida. Se ele achasse que ela tinha sido
castigada, era como se a conta ficasse zerada.
Tudo o que ela tinha que fazer... era se machucar! Era se jogar da
escada! Era brilhante!
Durante os meses seguintes, fulana teve uma série de “acidentes”:
cortou a mão com a faca, se queimou no fogão, deu com a cara em uma porta
fechada...
Mas a escada era sua favorita. Ela controlava a queda e feria-se só um
pouco.
Cada vez que ela se machucava e evitava uma surra, sorria por dentro.
Não importava que às vezes doesse até mais do que apanhar (como quando
ela não parava de sangrar, por causa da faca). ELA controlava. ELA decidia
quando ia acontecer. Não ele. Ela o enganava, tinha algum poder sobre ele.
A mãe e a avó chegaram a comentar como a escada era perigosa. E
assim passou-se algum tempo.
O pensamento que mudou tudo e que deu um clique dentro dela, o
momento de absoluta clareza, só lhe ocorreu muitos acidentes depois.
Ela estava mais uma vez estatelada nos degraus: o joelho esfolado do
mau jeito da queda e ficando roxo rapidamente. Dessa vez ela berrava de dor e
tentava manter a perna esticada, quando ele chegou.
Ele fez questão de passar pisando nela XXX bem no joelho machucado,
fazendo-a gritar. Por um segundo ela achou que fosse desmaiar, e ele saiu
rindo. Rindo.
E foi então que ela soube.
Não podia continuar assim para sempre.
Vitor tinha que morrer.

Durante os dois meses que se seguiram, a ideia tomou corpo e começou a


persegui-la e dominá-la como uma obsessão.
As coisas que o garoto tinha feito com ela, a vida inteira, estavam
voltando à lembrança. Ela não recordava uma vez em que tivesse tido paz na
vida. Em que tivesse falado livremente, em voz alta. Em que não cuidasse do
que fazia.
Apesar da pouca idade, sentia-se idosa. Como se já tivesse vivido 100
anos. Todos os dias levantava-se lentamente, como se o peso do mundo
estivesse em suas costas, e se olhava no espelho à procura de fios de cabelo
branco. Ela estava convencida de que eles apareceriam a qualquer momento.
Aparentemente, todo aquele sofrimento respeitava sua meninice XXX ela só via
seu rosto magro e cabelos finos, nada de brancos. Mesmo assim, ser um
espectro era custoso.
Naquele último dia, na escada, quando o entendimento a atingiu, tinha
tido uma visão muito clara dos próximos 10 anos. De como nada mudaria. De
como ele ficaria cada vez mais forte, cada vez pior. Afinal, ele vinha piorando
nos últimos anos, não? Ela não lembrava, mas sua mãe e avó comentavam,
como um “causo” engraçado de família, a vez em que ele tinha colocado todos
os travesseiros em cima dela, no berço.
Coitadinho, ele queria botar todos os travesseiros para a “irmãzinha”, e
quase sufoca ela! Ela se arrepiava toda quando ouvia isso. E tinha vontade de
gritar: Vocês não perceberam?
É claro que não XXX ela sabia que às vezes só enxergamos o que
queremos ver. Ele mal tinha 5 anos, na época. Quem iria pensar quê...?
Mas ela sabia. Ela tinha certeza.
Fulana era uma menina pacata, sem grande graça ou vivacidade.
Sempre tinha vivido à sombra. Tudo em si era esquecível. Não se destacar era
seu lema. Não era uma aluna nem brilhante, nem medíocre. Sua aparência era
infantil e pouco desenvolvida, para sua idade. Contraste com sua mente
inquieta e alerta 24h por dia. Forçava-se a dormir todo o tempo que podia; essa
era sua fuga. Quando acordada, refugiava-se na música. Plugava seus fones
de ouvido e desligava-se do resto em volta. Ria de si mesma, às vezes,
comparando-se à uma planta: só parada, respirando. Para dentro e para fora.
Para dentro e para fora. Por vezes imaginava-se criando raízes em um parque
lindo, e por mais triste que fosse, a ideia parecia tão atraente...
Mas agora ela queria mais.
Como Pinóquio, na sua história favorita: queria ser uma menina de
verdade! Queria poder correr pela casa, sem medo. Queria poder rir alto. Sabia
que chegaria a hora em que gostaria de ter a atenção dos meninos. Como
seria? Como Vitor reagiria? Como explicaria algum dia a alguém no mundo,
como era o seu mundo? Sentia, mesmo em toda sua ingenuidade, que tinha
perdido sua infância. Mas não estava disposta a perder o que viria a seguir.
Naquele dia, pela primeira vez não tinha sentido medo, angústia e
resignação XXX tinha sentido raiva. Tanta, mas tanta, que parecia que ia sair
pelos ouvidos, escorrer pela boca! Se tivesse uma arma qualquer à mão,
quando ele a pisou, sabia que teria usado.
Parecia que os dias e anos tinham se acumulado, as maldades tinham
atingido seu grau máximo XXX não achava que poderia suportar mais
nenhuma vez. Nenhuma. Achava que começaria a gritar feito uma louca. E
tinha medo de não parar mais.
Então, começou a namorar a ideia dele ir-se... para sempre.
Ela sabia que ele não iria embora de casa tão cedo. E se fosse, isso
mudaria alguma coisa? Cresceriam ambos tão viciados naquela dinâmica, que
mudariam depois de adultos? Ela tinha medo de que ele lhe aleijasse para
sempre. Não de corpo, mas de alma. Que a estragasse de vez para qualquer
outra relação. Como as de amizade, que ela não tinha. Já se sentia tão distante
e alienada de todos... seu segredo a afastava das pessoas.
E ela era só uma menina! Cada pensamento desses, cada conclusão
dessas não vinha de forma racional e organizada XXX era um processo
confuso. Ela mesma não entendia bem o que sentia, não sabia se as
conclusões que tirava estavam acertadas. Debatia-se entre muitos sentimentos
que mal começara a administrar: culpa, medo, ansiedade, revolta.
Sabia que era uma fantasia, a de que ele não existisse, mas não
conseguia abandonar a ideia de que não fosse. Era uma menina de bons
sentimentos; talvez por ter sofrido tanto, não seria capaz de machucar
ninguém. Nem mesmo ele, que ela já nem considerava totalmente humano.
Não seria capaz de violência real: pegar uma faca e cortar a garganta dele
dormindo. Pinóquio e as princesas dos contos que ela gostava jamais fariam
uma coisa assim. Só os vilões agiam dessa forma e em sua cabeça ele era o
vilão.
Mas, e se as coisas... acontecessem? Por... acidente? E se ela...
ajudasse a acontecer? Não seria justo? Ela não merecia?
Desde o primeiro episódio da escada, sentia-se mais forte. Esquivara-se
dele manipulando a situação, sendo esperta. Isso tinha lhe dado força. Ela
sentia que tinha direito a usar esse novo poder em seu proveito XXX afinal, se
não se defendesse, quem a defenderia? A mãe omissa? A avó inatingível?
Onde estava sua fada madrinha quando precisava dela?
Começou a pensar que seria tão bom, tão bom, tão bom se ELE caísse
da escada da avó. Lá do alto, sabe? Um empurrãozinho e... Mas depois achou
arriscado XXX e se ele sobrevivesse? Ela é que estaria morta. Não, qualquer
movimento dela para... facilitar o acaso, teria que ser muito definitivo. Ou sutil.
Sua pouca idade, que a desacreditava, acabaria por ser seu álibi XXX
não consideravam ela para nada. Nunca acreditariam que ela seria capaz de
tramar dessa forma. Ela seria ignorada, desconsiderada. Nunca veriam sua
inteligência por trás da coisa toda.
Se não a escada... então, o quê? Onde acidentes aconteciam?
Na rua. Com carros. E bicicletas.
Vitor tinha uma rotina: todos os dias chegava do colégio, almoçava e
saía correndo de bicicleta para ir até outro quarteirão. Ele tinha amigos em
outra vila. Mas para chegar lá, atravessava uma grande avenida movimentada,
onde carros passavam a toda velocidade. Ele costumava se exibir para os
moleques mais novos, costurando no meio do trânsito. Sua mãe resmungava
um pouco em preocupação, sugeria que ele não corresse com a bicicleta e
atravessasse no sinal. Mas ele sempre respondia atravessado e com um
palavrão, e a ignorava. Ela engolia em seco e saía sem insistir.
E se um parafuso se soltasse da bicicleta?
E se a roda saísse voando?
E se?
Sentia-se um pouco culpada só de pensar na hipótese. Culpada, mas
desejosa. Em outros tempos, teria rezado para seu anjo da guarda soltar a
roda da bicicleta dele. Mas já tinha rezado tanto, em vão. Rezado para ele não
arrancar tanto seu cabelo, quando o puxava, porque ela tinha muito medo de
ficar careca. Rezado para que ele não encontrasse seu walkman, o único
prazer que ela tinha, antes dele quebrá-lo. Rezado para não perder mais
nenhum dente com uma bofetada, pois não tinha mais nenhum de leite.
Rezado pelos gatinhos que ela viu passar pelas mãos dele.
Nunca tinha adiantado nada. Ela achava que seu anjo da guarda não se
importava. Ou a achava muito insignificante, para ter o trabalho. Não seria
agora que ele a ouviria. E ela achava que anjos da guarda não faziam
maldades XXX nem mesmo um anjo incompetente como o seu.
No fundo sabia que era maldade e errado pensar e querer essas coisas,
mas não se importava mais.
Finalmente, começou a arquitetar tudo em sua cabeça, uma tarde.
Suas bicicletas eram guardadas na pequena garagem da casa, que era
só um depósito de tranqueiras, porque eles não tinham carro. Entre tantas
coisas esquecidas ali, ela tinha certeza de que havia uma maleta de
ferramentas. Sua mãe, que era também o faz-tudo da residência caquética,
tinha recentemente usado uma delas para apertar algo que ficara frouxo.
Parecia que tudo andava frouxo naqueles tempos, não só ela.
Teve vontade de correr para lá na mesma hora, mas se segurou. Já
tinha assistido filmes policiais demais para saber como fazer dar certo: não
podia deixar nenhum rastro até ela. Iria à noite, quando todos dormissem.
Procuraria a caixa de ferramentas e daria uma boa olhada na bicicleta.
Consertar uma coisa era difícil, mas ela achava que seria razoavelmente
fácil quebrar.

A noite estava só morna. Era outono, então o céu estava perfeitamente limpo e
estrelado, e uma brisa fresca passava de tempos em tempos, para refrescar.
Não era uma das abafadas noites de verão, quando todos os ar-condicionados
das casas estariam ligados. Nenhum residente daquela rua era especialmente
bem provido de dinheiro, ninguém podia esbanjar, então as famílias
reservavam o luxo dos ar-condicionados para essas noites em que o asfalto
das ruas ainda continuava quente mesmo às 8 da noite, e as nuvens de
mosquitos perturbavam o sono. Hoje, todos estariam com as janelas abertas.
Isso era ruim para fulana. O zumbido constante do ar-condicionado e as
janelas fechadas seriam uma cobertura melhor para ela. Haveria menos risco
de ser vista ou ouvida.
Tinha programado ir até a garagem quando fosse duas da madrugada.
Ela nunca tinha ficado acordada até tão tarde, então imaginava, em sua
inocência, que duas da madrugada era uma hora absurdamente longínqua e
morta. Sua avó certa vez tinha comentado:
XXX É um absurdo que a programação da TV acabe depois das duas da
manhã. É uma afronta com quem tem insônia!
Ela apostava que até quem tivesse insônia estaria dormindo, nessa
hora, e ela estaria segura. De qualquer forma, a vila era composta de famílias
trabalhadoras e as pessoas se deitavam cedo por ali.
Deitara-se apreensiva de cochilar e perder a hora, mas essa
preocupação tinha sido completamente infundada: não havia jeito de pregar o
olho. A hora arrastava, os minutos pingavam. Cada vez que olhava de relance
para o despertador na mesinha de cabeceira, parecia que só tinham se
passado uns míseros minutos. Seus olhos se acostumaram à penumbra, então
não precisava nem se aproximar dele para verificar o horário.
Ficou revirando na cama, pensando.
O que suas colegas de escola estariam fazendo agora? Dormindo, com
certeza, pois já era tarde para quem tinha aula no dia seguinte. Mas como
seriam suas vidas? Estariam dormindo seguras, em seus quartos? Teriam
ganhado beijos de boa-noite? Apostava que tinham ido dormir depois de um
jantar em família. Que tinham assistido programas divertidos. Que só
pensavam na próxima festa de aniversário, na próxima ida ao cinema. Se
ficariam mocinhas logo. Como iriam pentear o cabelo para ir à aula no dia
seguinte, e na prova de matemática, que tinha sido tão difícil.
Não era justo que ela não tivesse nada disso. Não era justo que ela
estivesse revirando-se na cama, pensando em fazer as coisas que estava
pensado em fazer.
Ela já se sentia excluída do mundo, se fizesse o que estava planejando
então, nunca mais seria uma pessoa normal. Iria cruzar um limite que não
podia ser cruzado: seria uma criminosa. Seria um pouco como ele, má, e isso a
deixava doente. E esse seria um segredo que teria que guardar para sempre.
Por outro lado, se não fizesse, não sabia que futuro teria. Ou se teria algum.
Tinha chegado a pensar em desistir, mais cedo. Mas o garoto tinha sido
especialmente odioso, naquela noite. Tinha discutido com a mãe, por causa de
uma ameaça de expulsão que tinha levado no colégio. Aparentemente ele tinha
feito alguma coisa muito ruim com um menino mais novo, e o caso tinha
acabado na diretoria. Eram sempre os mais novos, com ele.
Quando a discussão ficou acalorada, a mãe tinha colocado a mão nele,
e ele a tirara com um safanão. A mãe tinha gritado como uma histérica, mas
tinha ido se trancar no quarto.
Aquilo foi a certeza que ela precisava.
Mesmo assim, agora sofria, ali deitada. Pelo feio do que tinha que fazer.
Por si mesma, para se defender.
Uma lágrima teimou em escorrer até o travesseiro, mas ela achou que
tudo bem XXX pelo menos dessa vez ninguém estava vendo.

Passar pelo quarto do tio e da mãe tinha sido fácil, já que ambos dormiam de
portas fechadas. Chegou até a sala sem acender nenhuma luz, e sem fazer
nenhum ruído. Mas para chegar até a garagem teria que sair pela porta da
frente, que se abria para um minúsculo quintalzinho e dava para a lateral da
casa. Todas as casinhas da vila tinham somente pequenas muretas baixas,
então qualquer um poderia vê-la indo até a garagem. Teria que ser rápida.
Olhou para os dois lados da rua e tudo parecia vazio e adormecido: até
a luz esbranquiçada do poste mais próximo parecia sonolenta. Nem os gatos,
que às vezes faziam serenata por ali, estavam à vista. Talvez já tivessem
aprendido que aquele não era um bom lugar para gatos.
Esgueirou-se até a garagem e agachou-se no chão, certa de que a
escuridão a cobriria, se alguém olhasse de alguma janela. Havia um mundo de
coisas perdidas por ali: pilhas de caixas de papelão, que ela não imaginava o
que continham; uma poltrona rasgada em um canto; brinquedos velhos; algum
material de construção; sacos de cimento; uma bola de futebol; uma mangueira
de jardim toda embolada; e nos fundos, as bicicletas.
A de Vitor estava encostada na parede; a sua, jogada no chão. Ela não
usava nunca. Procurou em volta a maleta de ferramentas e encontrou-a logo
atrás de uma caixa. Abriu-a. Martelo, pregos, porcas, parafusos, algumas
coisas de metal que ela não sabia o que eram, chave de fenda e outras chaves
que ela desconhecia o nome. Arrastou a maleta com cuidado até perto das
bicicletas.
Examinou com cuidado as peças da bicicleta XXX correia, roda, e
muitos, muitos parafusos. Achou uns pontos que podia afrouxar. Sim, se
afrouxasse aqui e ali, talvez funcionasse. Mas não demais, pra não soltar antes
que ele chegasse à rua.
Achou melhor testar na sua, primeiro. Ninguém iria reparar se aquele
monte de ferro-velho estivesse quebrado. Achou uma daquelas chaves que se
encaixava nos parafusos da bicicleta, e começou a desparafusar aqui e ali.
Achou também o cabo que levava ao freio. Isso seria a cereja do bolo XXX se
ele não pudesse frear.
Testes feitos, partiu para a bicicleta dele. Afrouxou parafusos e cortou o
cabo com um alicate (felizmente não era o que ele usava nos gatos, eca.
Nesse ela não teria coragem de botar a mão). Não achava que iriam perceber
que tinha sido cortado de propósito, porque ela não o cortara direto; tinha
girado-o, para que ele arrebentasse, como se estivesse desgastado.
Encostou a bicicleta de novo na parede, milimetricamente do jeito que
tinha encontrado, guardou as ferramentas e fez o caminho de volta até seu
quarto com a mesma atenção.
Quando se deitou, seu coração estava disparado. Ela tinha feito! Tinha
mesmo! Nunca tinha feito nada de propositalmente errado, na vida. Será que
daria certo? E se não desse? Sua mente de criança não conseguia visualizar o
acidente, porque isso era duro demais. Ela só conseguia se concentrar nele
pegando a bicicleta e não voltando nunca mais.
Agora teria que agir como se essa noite nunca tivesse acontecido, fosse
como fosse. Não importava o resultado que desse XXX para todos os efeitos,
ela não tinha feito nada. Só assim ninguém descobriria.
Se ela fingisse para si mesma que nada tinha acontecido, talvez até
funcionasse: nada teria acontecido de fato. Ela tinha sonhado tudo isso. Sim,
tudo tinha sido um sonho!
Dormiu e sonhou com uma grande chave-inglesa perseguindo-a.

Fulana era um zumbi na manhã seguinte. Vestiu-se e tomou café da manhã


completamente entorpecida. Olhou para ele na mesa, esperando sentir algum
remorso, mas não sentiu nenhum.
Assistiu à aula sem ver nada, lanchou sem sentir o gosto e voltou para
casa correndo como nunca tinha corrido. Sempre chegava antes dele, mas
nesse dia chegou bem antes. Sentou-se na cozinha e esperou. Sua mente
estava vazia, não conseguia se concentrar em nada XXX só esperava para vê-
lo chegar, pegar a bicicleta e sair.
A hora passou, e todo o seu plano de aparentar naturalidade e disfarçar
tinha ido por água abaixo; ela estava imóvel na mesa da cozinha, paralisada,
olhando para o relógio.
Ele chegaria a qualquer momento agora. A qualquer momento...
Passou-se uma eternidade e ele parecia não chegar nunca. Ela serviu-
se do almoço deixado pela mãe em cima do fogão, e sentou-se novamente à
mesa. Nem tocou no prato.
Mais meia hora, ele oficialmente atrasado, e ela começou a zanzar de
um lado para o outro. Começou a ficar preocupada. Não com ele! Mas alguma
coisa não estava certa.
O telefone tocou e ela correu apara atendê-lo. Era da escola.
XXX Boa tarde, preciso falar com os responsáveis do aluno Vitor.
XXX É a minha mãe. Mas ela está no trabalho e só volta de noite. Quer
deixar recado? Ele ainda não chegou da escola.
Silêncio do outro lado da linha.
XXX Existe algum telefone onde eu possa falar com ela? Ou alguém
para contato, em caso de emergência?
A palavra “emergência” soou um alarme dentro dela. Teve o impulso de
sair correndo até a garagem e ver se a bicicleta ainda estava lá. Depois se
lembrou que ele tinha ido a pé para o colégio, como sempre. Ela tinha visto.
XXX Pode ligar no trabalho dela. Espera que eu vou te passar o número.
Passou o telefone de sua mãe para a mulher, que desligou
imediatamente.
O que teria acontecido?
Passou-se mais de uma hora, antes de qualquer outra novidade. Ela
permaneceu todo o tempo sentada no sofá, olhando para a parede e com a
certeza de que alguma coisa estava errada, mas sem saber o quê. Não teve
nem coragem de ligar para a mãe.
A avó chamou no portão. Isso era inusitado XXX a velha não ia lá, se
pudesse evitar.
Ela abriu a porta meio trêmula.
XXX Oi, vó.
XXX Vai se trocar, minha filha, que sua mãe me ligou e pediu pra eu vir
te buscar. XXX A avó estava vestida para ir para a rua e agitada, coisa rara. A
menina ficou sem saber se estava mais surpresa pela visita fora de padrão, ou
se pelo tratamento carinhoso com que se dirigiu à ela.
Chegou a abrir a boca para perguntar alguma coisa, mas desistiu. Não
sabia se queria saber. Não já.
Colocou uma calça jeans, o tênis e voltou para a sala, muda.
Assim foram até a casa da senhora, que não parecia disposta a falar e
aparentemente ficou surpresa e satisfeita de não ter que dar explicações à
neta.
Os eventos a partir desse ponto sempre pareceram nebulosos na
lembrança de fulana.
Ela lembrava-se de ficar muito tempo na casa da avó, do telefone tocar
sem parar e de ter ficado de frente para a televisão, alienada do mundo
comendo biscoitos (coisas que normalmente não se podiam fazer ali).
Lembrava-se da avó ter dito em determinado momento que “tinha havido um
acidente” e de ir até o hospital com ela. Lembrava-se do mundo de gente que
havia lá: professores da escola, alunos gritando, pais de alunos que ela não
conhecia, policiais e no meio do caos, sua mãe.
Não falou com ela, pois parecia que todos falavam com ela, aos berros
ou não, ao mesmo tempo.
Lembrava-se de ter voltado para a casa da avó, e só ter ido para a sua
muito tarde naquela noite. Lembrava-se da casa estar cheia de vizinhos e das
comadres da mãe tentando lhe agradar e lhe botando na cama.
Só deitada é que ouviu falarem na sala o que já intuíra no momento em
que chegou ao hospital: Vitor tinha morrido.

No dia seguinte, só se mencionava um “acidente”, mas ninguém se deu ao


trabalho de lhe explicar mais nada. Os adultos falavam com ela de forma
condescendente, como se ela fosse retardada ou tivesse cinco anos, dizendo
que ela já era uma “mocinha” e que tinha que ser forte pela mãe nesse
momento. Ela tinha vontade de rir na cara deles.
A mãe, em determinado momento, desembaraçou-se das pessoas e
veio até ela. Abraçou-a brevemente e passou a mão carinhosamente em sua
cabeça. Mas não a olhou nos olhos.
Ela entendeu e a perdoou.
Achava que ela tinha medo que a menina visse o conflito em seu rosto.
A tristeza misturada ao alívio. Era imoral e impensável que ela sentisse
qualquer outra coisa além de profunda tristeza e choque pela perda do irmão,
que era quase filho. A menina entendia.
Ela mesma demorou para conciliar sentimentos. Chegou a sentir uma
inesperada pontada, que não soube definir o que era. Era uma dor que
começou de leve e terminou por quase rasgá-la. Era um aperto no peito, uma
pressão que a impedia de respirar direito e um constante arrepio em sua nuca.
Era, mais do que tudo, uma descrença no que estava acontecendo, misturada
com alegria e tristeza. Alegria por ter conseguido finalmente o que mais queria:
liberdade. E tristeza infinita por tudo, mais do que esperava sentir. Por ela
mesma, pela mãe e até por Vitor, pela vida que ele tinha tido. Vai que
houvesse mesmo o céu e o inferno que a avó tanto falava. Ela nunca duvidou
que ele merecesse esse inferno e que ficaria feliz quando ele fosse enviado
direto para lá. Mas agora sentia um pouco de tristeza por ele. Mesmo
merecendo, era tão triste isso. Era tão triste ser merecedor do inferno.
Tinha a sensação ainda de que a qualquer momento viriam lhe avisar
que tinha sido tudo um engano, que o garoto estava vivo. Ou que ela iria
acordar de um sonho. E quando percebeu que essas coisas não iriam
acontecer, foi engolfada por uma onda de alívio avassaladora. Passou por ela
de forma tão forte, que deixou suas orelhas dormentes.
Foi no momento em que o caixão fora colocado dentro do buraco de
parede, que serviria de cova. Ali estava. Era definitivo. Nunca mais surras.
Nunca mais medo. Nunca mais ele, Ele, que era quase como um sinal de
nascença agarrado a ela. Uma parte ruim dela, como um câncer, devorando-a
aos poucos.
Foi nesse momento em que ela viu que não havia volta. Nunca mais.
Nunca mais.
Seu corpo tremeu inteiro de vontade de rir alto. A mão foi colocada às
pressas na frente da boca, enquanto o padre entoava uma cantilena, e tudo se
passou por soluços, que ficaram quase histéricos XXX o que só atraiu a
simpatia dos que estavam à sua volta e a fez ter ainda mais vontade de rir.
O riso transformou-se aos poucos em lágrimas, e ela se perguntou,
exausta, se algum dia na vida voltaria a ter controle de suas emoções; se
algum dia não choraria ou ficaria histérica.
A avó postou-se o tempo todo ao lado de seu corpo franzino, coberto
com um vestido preto emprestado e muito maior do que ela. Segurou um de
seus ombros com tanta força, que chegou a deixar marca, mas ela se comoveu
com aquela demonstração de solidariedade.
A mãe não a encarava e ela retribuía: também não tinha coragem.
Também tinha vergonha do seu alívio, que ela sabia que era muito maior, muito
mais difícil de esconder.
A morte de Vitor sempre ficaria entre elas.
Quando tudo se encerrou, ela voltou para a casa da avó e nunca mais
voltou para casa. Voltou, mas para ir buscando suas coisas aos poucos e para
breves encontros com a mãe. O mais breve que ela conseguia.
Elas nunca conversavam sobre nada realmente importante, e muito
menos sobre o que tinha acontecido. Eram sempre as notas, as fofocas da
rua...
Ela convenceu a avó a deixá-la morar com ela XXX ofereceu-se para ser
sua empregada, limpar a casa e cozinhar para ela, e a persuadiu dizendo que
seria bom para ela ter uma acompanhante.
A mãe não se opôs.
No dia em que comunicou que estava indo definitivamente morar com a
avó, a mãe somente pediu que ela se cuidasse e viesse às vezes em casa. Era
mera formalidade: a garota já tinha levado quase todos os seus poucos
pertences há semanas.
Até os 16 anos, fulana cuidou da avó e da casa, passou todo o tempo
que pôde na escola e guardou o dinheiro que a mãe lhe enviava. Entrou com
um pedido de emancipação nesse mesmo ano e arrumou um emprego informal
de “ajudante” em uma veterinária XXX era ela quem limpava o chão e a mesa
depois das consultas, trazia as gazes e auxiliava à veterinária, dona da clínica,
no serviço pesado. Ela adorava ajudar a tratar dos bichinhos.
Três meses depois, receberam no consultório uma emergência: um gato
atropelado e agonizante. Ela foi embora sem olhar para trás e nunca mais
voltou.
Aos 18, prestou vestibular para serviço social e passou. A faculdade não
era pública, e ela mesma entrou com um pedido de bolsa.
Via a mãe nos aniversários e natais, aos domingos e quando se
encontravam na entrada da vila. Sempre falavam de amenidades, mas ela se
sentia desconfortável. Como se escondesse algo.
Sempre se perguntava sobre o que tinha feito, sobre o que teria
acontecido. Nas semanas que se seguiram ao enterro, ela ficou sabendo pelas
crianças da escola a história toda: Vitor tinha sido esfaqueado por um garotinho
do colégio. Ela não sabia, mas ele tinha torturado sistematicamente o menino
durante aquele semestre, até o garoto surtar e vir para a escola com um facão
de cozinha na mochila. Ele nem tentou esconder XXX atacou o rapaz no meio
do pátio da escola, na hora do intervalo e na frente de alunos e professores. Os
amiguinhos da turma dele, que era uma série antes da dela, sussurravam como
ele tinha ficado lá, parado, olhando Vitor sangrar no chão. E como o menino
tinha sido levado para o hospício depois. Ela engoliu em seco quando ouviu
isso.
Depois de muito procurar saber, descobriu que na verdade o menino não
estava em um hospício, e sim internado em uma clínica psiquiátrica particular
(ela não sabia a diferença de hospício, mas parecia menos assustador). Ela
pensou em ir visitá-lo XXX sentia muita compaixão por ele. Entendia, melhor do
que ninguém, o que ele tinha feito. Mas ficou com medo.
Sabia que nada do que tinha acontecido era sua culpa, mas ainda assim
tinha medo. Por isso também não teve coragem de voltar para casa. Por causa
da bicicleta.
Ela era um lembrete do que ela tinha feito. Do que quase tinha
acontecido. Da história que podia ter sido. Que podia ser ela, na clínica.
No começo, quando ainda estava aliviada e corria pela vila como um
passarinho que fugiu da gaiola, nem tinha perdido tempo com esses
pensamentos. Estava tudo acabado e pronto. Mas. As coisas que nós fazemos
voltam para nos assombrar, mais cedo ou mais tarde. Fulana descobriria isso
meses depois. Ninguém é verdadeiramente livre, enquanto tem consciência.
Cada vez que passava pela casa de sua mãe, que ela agora não
chamava mais de sua, e via a bike lá nos fundos, alguma coisa se mexia dentro
dela. Um estranhamento.
Teve ímpetos de entrar na casa e ir desfazer o que tinha feito XXX mas
sabia que nada mudaria. A presença da bicicleta era como uma espinha, que
cresce e incha e quando menos se espera é um enorme furúnculo, pronto para
explodir se você o tocar. Havia dias em que ela imaginava um barulho de
ranger no fundo da garagem, como se a bicicleta viesse à vida, pronta para
acusá-la. Mas logo em seguida se sacudia e repetia infinitamente para si
mesma que estava delirando.
Não sentiu falta da mãe nos anos que se seguiram ao enterro e em que
cresceu praticamente sozinha: alguma coisa nela tinha morrido junto com o
garoto. E essa parte era a parte em que a mãe vivia, dentro dela. Tinha ido
dormir uma e acordado outra, como uma cigarra saindo da casca e deixando-a
para trás.
Adulta, fazia exatamente o que queria XXX ajudava crianças. Ganhava
mal, trabalhava mais horas do que devia e eventualmente se frustrava por não
conseguir ajudar alguém. Aí, trancava-se em casa por uns dias, até a vontade
de estar com as crianças ser maior de novo. Dava aulas na faculdade, e
quando seus alunos perguntavam qual sua maior motivação para trabalhar com
serviço social, ela só sorria. Não pensava que tinha relação com o que tinha
acontecido. Sempre contava que tinha sido criada pela avó e só. E de tanto
contar essa versão, passou a acreditar nela. E assim, esqueceu-se da bicicleta.
Até aquele dia, no carro. Ouvindo aquela maldita música.

Fechou a porta do carro e procurou lenços de papel no porta-luvas XXX


acabou limpando a boca na manga da blusa. Foi olhar-se no espelho retrovisor,
e teve a nítida sensação que veria seu rosto de criança de novo, encarando-a
de volta.
Como tinha se esquecido de tudo? Como tinha jogado tudo para
escanteio, para debaixo do tapete e tinha simplesmente ignorado a coisa toda?
E como se convencera de que suas escolhas não se baseavam nisso?
Há seis meses, quando o namorado de anos terminara com ela, nem
tinha lhe ocorrido. Ele queria ter filhos, ela não. Não queria e não iria querer.
Amava crianças, inferno, trabalhava com elas! Mas disse a ele que o mundo já
estava cheio de crianças e que ela preferia cuidar das dos outros. Não achava
que mudaria de ideia sobre o assunto, mas deveria ter enxergado o que a
motivava, o que a levava a pensar assim. Talvez tivesse sabido explicar melhor
para ele, e ele não teria ido embora, acusando-a de ser emocionalmente
inatingível.
Talvez a música não fosse tão maldita assim, no final das contas. Talvez
lembrar-se não seja tão perigoso quanto se obrigar a esquecer.
Pegou o celular e ligou avisando que não poderia dar a aula daquela
noite.
Depois respirou fundo e ligou o carro.
Ia ver a mãe.

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