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Ela já a olhava imóvel por uns 5 minutos. Porque seu dia tinha parado no
momento exato em que ela chegou. O telefone tocava em algum lugar dentro
do escritório, mas o som parecia abafado, há léguas de distância. O copo
plástico de café, largado ao lado do teclado, tinha começado a suar e já
marcava a madeira da mesa, enquanto esfriava lentamente.
Ela batia rítmica e nervosamente uma das unhas, recém manicuradas, em cima
do mouse.
O problema não era o email. O problema não era a solicitação. Não era nem o
Facebook.
Ele roubava pitangas para ela, ela lembrou, da casa da vizinha macumbeira. E
elas nunca estavam doces, sempre azedas... porque eles surripiavam todas
antes de dar tempo delas amadurecerem.
Parecia estar escrito em legras garrafais. Parecia que tinha negrito. Parecia
que gritava.
E cada vez que ela olhava de soslaio pra tela, a entonação parecia mudar.
Começou a parecer uma ordem.
Ela sabia que a mensagem era automática. Mas a impressão que ela tinha era
que ele estava, nesse mesmo minuto, em frente ao computador esperando sua
resposta. Do outro lado da conexão. Esperando, esperando...
Não tinha muito o que pensar, na verdade. Ela não recusaria o convite dele.
Era só a surpresa que fazia ela adiar. Era a surpresa de ouvir falar dele depois
de tantos anos. Como é que ele tinha achado ela? Seu nome era comum. Seu
sobrenome mais do que comum. Eles não tinham amigos conjuntos... nada.
Como ele tinha conseguido?
Nem tinha ocorrido procurar por ele. Pelo simples motivo de que ele não
entrava em seus pensamentos há décadas. Era como se eles tivessem se
conhecido em outra vida, quase. Tinha passado anos pensando nele sim.
Imaginando onde estaria e o que tinha acontecido com ele. Afinal tinham se
separado bruscamente. Sem poder manter contato, nem se despedir. Mas
depois a vida vai seguindo, e a gente vai crescendo, fazendo outras coisas,
outras coisas acontecem...e as coisas ficam no passado.
O menino que tinha a bicicleta mais bacana da rua. De dar inveja. A maioria
das crianças da rua só tinha bikes capengas. Herdadas dos irmãos mais
velhos. Ele até cobrava uns trocados pra deixar os outros moleques darem
voltas nela. Era a Caloi mais incrível que tinham lançado. E era azul metálica.
Ele nunca cobrou dela. Era a única que andava na bicicleta à vontade.
Será que tinha casado? – ela divagou, enquanto fechava o computador. Iria pra
casa mais cedo. Tinha mercado a fazer, e a cabeça já estava em outro lugar.
Ai, mas que exercício mental inútil! Não era melhor aceitar logo o diacho da
solicitação, e ver por si mesma, ao invés de ficar tentando adivinhar? – deu-se
uma bronca. Profissão, status de relacionamento, tudo isso ela saberia sem
nem mesmo perguntar.
***
O perfil não tinha foto. O perfil não tinha informação nenhuma. Sobre nada.
Foi a constatação que ela fez, meio aborrecida, mais tarde naquela noite,
quando entrou no site e aceitou o convite.
Quem é que faz uma página no Facebook desse jeito, meu pai?! Vai ver ele
não era amante de tecnologia. Vai ver era daqueles mais “analógicos”, que não
tem tempo de ficar online.
Depois de mais uma olhada, percebeu uma coisa estranha: ele não tinha
amigos. Nada de amigos adicionados.
Como pode ser? – ela se perguntou, torcendo uma mecha de cabelo entre o
polegar e o indicador. Começou a achar muito estranho. Muito estranho
mesmo. Afinal, não é porque a gente foi amigo de uma pessoa mais de 20
anos atrás, quando criança, que a pessoa necessariamente cresceu NORMAL.
E se ele fosse algum tipo de psicopata??
Ela revirou os olhos pra si mesma. Isso que dava assistir muito seriado. Mais
provável é que ele tivesse acabado de entrar no Facebook mesmo, e ainda
estivesse adicionando as pessoas aos poucos. Isso. Devia ser isso.
Não tinha nem 10 minutos que ela tinha aceitado o convite, acendeu um
quadradinho vermelho indicando mensagem. Dele.
“Oi”.
Simples assim. Nada de “Quanto tempo!”, “E aí, menina?”, “Nem acredito que é
você!”, “Lembra de mim?”, ou qualquer coisa do gênero. Nada disso. Só oi.
Como se tivessem batido papo no dia anterior. Como num daqueles dias de sol
de rachar, que ele simplesmente entrava no quintal dela sem tocar a
campainha, e puxava a mangueira pra eles brincarem com a água. “Oi”.
Simples assim. Mas não tinha sido sempre simples com eles?
Aquilo tudo estava deixando ela... emocionada. Sabe quando você fica
ansioso, como se sentisse que alguma coisa está prestes a acontecer, mas
não consegue saber o quê?
Seu melhor amigo de infância! Só por uns seis meses, mas, mesmo assim...
Nunca tinha tido um amigo tão amigo. Mais diferentes impossíveis, sim, mas
que se entendiam como ninguém.
Ela, uma menina pálida e raquítica que vivia doentinha. E que sempre que
estava fora da cama, se esgueirava pra rua, pra fugir do barulho da família
portuguesa enorme. Filha caçula, com irmãos e irmãs. Seu irmão mais velho a
chamava de saguí, pois ela tinha ossos muito finos, olhos enormes e vivia com
os cabelos presos. “Como se fosse um rabo”, ele implicava. Ela não ligava;
apesar da sua fragilidade física, vivia sorrindo, vivia inventando brincadeiras,
vivia tagarelando. Só se cansava rápido. Então quando a agitação de sua casa
ficava demais, ela ia sentar na rua.
Foi assim que o viu pela primeira vez. Quando a mudança dele chegou. Ele
estava sentado na calçada em frente ao portão, emburrado, enquanto
passavam as caixas e os móveis.
Filho único. Sua mãe vivia reclamando que ele “tinha o tinhoso do corpo”, e que
só aprontava. Naná não sabia bem o que o pai dele fazia, mas devia ser algum
tipo de caixeiro viajante. Eles se mudavam muito.
Naquele primeiro dia, ela sentou ao lado dele na calçada e falou e falou e falou.
No começo ele nem respondia. Estava desconfiado e mal-humorado. Ela
insistiu:
- Eu também fico muito sentada aqui na rua. Quando tem almoço de domingo,
minha casa fica muito barulhenta e cheia. A sua também?
- Vou ficar vendo os carros – ele falou, sem nem olhar pra ela.
Ela fez uma pausa. Ele não perguntou nem disse nada.
- Eu não gosto muito de brincar com eles, porque eu me canso rápido e eles
ficam implicando comigo. As meninas brincam de correr o tempo todo, só pra
eu não ficar com elas. Elas são maiores, sabe? E eu atrapalho...
Ele olhou pra ela. Olhou mesmo. E depois disse que ela podia ficar vendo os
carros com ele.
“Eu te procuro há muito tempo. Tenho tanta coisa pra te contar. Tenho tanta
coisa pra conversar. Será que a gente podia se encontrar?”
Era tudo tão... estranho. Ela tinha vontade de gritar pra tela “eu não te conheço
mais! É muito esquisito a gente se encontrar assim do nada, depois desse
tempo todo, sem nem bater um papinho de reencontro antes!”
“Eu juro que não vai ser nada estranho. Vamos num lugar público, você
escolhe. Eu prometo que não virei um assassino em série. É só que não quero
conversar com você, pela primeira vez em 20 anos, através de uma máquina.
Olha, nem de falar ao telefone eu gosto muito. Eu estive em tantos lugares... e
pela primeira vez eu volto pra essa cidade. Não podia perder a chance de te
ver”
Adulto a gente sabe reconhecer o sentimento. E ela viu ali. Lembrou tudo. Viu
todas as vezes em que eles brigaram de manhã, e fizeram as pazes de tarde.
Todas as vezes em que ele chamou ela de mané, e todas as vezes que ela
gritou de volta que ele era um cabeção. A vez em que uma das meninas da rua
o chamou de cabeção também, e que ele foi pra casa com raiva e ela jogou
uma pedra na menina e ficou de castigo dois dias.
Sentiu-se uma boba, mas não conseguia ser racional. Estava empolgada de
ver o amigo. Como se tivesse 10 anos de novo.
“Tá bom”
“Pôxa, estou feliz que você me achou. Vai ser legal conversar com você. A
gente perdeu contato mesmo. Achei que nunca mais fosse te ver.”, ela disse.
“Eu sei. A gente vai conversar sobre o que aconteceu. Te vejo lá. PS: ainda
durmo com a luz acesa”
***
Aqueles seis meses que Luciano morou em sua rua, foram seis meses muito
agitados. Pegaram o final das férias, mas mesmo depois que as aulas
começaram, os dois não paravam. Viviam na rua, só entrando em casa para
comer rápido. Pra desespero dos pais. Principalmente dos dela, que morriam
de medo da sua saúde. Que inexplicavelmente nunca esteve tão boa quanto
naqueles meses.
Eles viviam queimados de sol, pois não se tinha hábito de passar protetor solar
naquela época. Estavam sempre descalços e imundos como dois
trombadinhas, e cheios de machucados.
Eles brincavam com as outras crianças da rua também, mas sempre em dupla.
Uma das vizinhas chamava-os de dupla dinâmica. Já uma das tias da garota,
que também morava lá, não gostava que a sobrinha doente andasse com ele.
O pai dele nunca estava e a mãe era uma carola de igreja enjoada. O menino
tinha as piores famas. De atentado, de malcriado...
Em um dos meninos que usava óculos, ele botou o apelido de Stevie Wonder,
e sacaneou tanto o garoto que ele não quis mais sair pra brincar. Tinha
quebrado o skate de outro. Se metido em brigas feias com mais uns dois. E
vivia depredando as obras da rua – os pedreiros subiam uma parede num dia,
e quando chegavam no dia seguinte, os tijolos estavam todos arrebentados no
chão.
Mas os pais dela fingiam não tomar conhecimento de nada. Afinal, ela nunca
tinha ficado tanto tempo fora da cama, e eles achavam ótimo.
A mãe dele, não dizia nada. Só queria que ele tivesse hora certa pra entrar no
final da tarde, e fosse à missa com ela no domingo. O que ele fazia fora de
casa, não lhe interessava.
Ele odiava as manhãs de domingo. Odiava com todas as forças. Naná ficava
esperando-o no portão todo domingo, e quando ele vinha chegando, lá da
esquina, já vinha tirando a camisa engomada e o sapato. Jogava tudo dentro
do quintal dela, e largava lá enquanto eles brincavam. E devolvia depois pra
mãe cheio de lama, só de sacanagem.
Rei do estilingue, nada estava a salvo dele; nem outras crianças, nem
cachorros, nem janelas de vidro... Gatos, então, eram preferidos. Ia o que
estava à mão: chapinhas de garrafa, pedregulhos, brinquedinhos de plástico
pequenos, bolinhas de gude...
Até o dia em que ele, de molecagem, deu uma estilingada num dos arbustos.
Ela não gritou, xingou, nem brigou com ele. Só olhou por uns instantes pra
avezinha ali na terra, com uns olhos muito grandes, e cheios de sofrimento.
Sem chorar.
Mas eles gostavam mesmo era das pitangas. Havia uma casa, uma rua acima.
Era uma casa esquisita, como toda vizinhança tem sua casa esquisita. Muro
fechado, mais alto do que os outros, portão de madeira, que não dava pra ver
dentro. Quase nunca entrava nem saía ninguém de lá. A não ser à noite,
algumas vezes por semana, quando ficava um entra e sai danado de gente. E
ouviam-se batuques, cantos e gritos.
Os pais da Naná cumprimentavam a senhora que morava lá, e que ela achava
que se vestia de forma muito engraçada. A mãe do Luciano o proibia de sequer
passar perto da casa.
Depois eles iam chupar o produto do roubo longe dali. Até os caroços se
aproveitavam depois, em guerrinhas.
Naquele dia, infelizmente parecia que estava tudo fadado a dar errado.
Os galhos e folhas que penduravam para fora do muro, estavam vazios. Não
tinham nem pitangas verdes. Em compensação, a outra metade da árvore, que
ficava bem dentro do jardim, estava coalhada de pitangas enormes e
vermelhas cor de sangue. Parecia que nenhum dos moradores se incomodava
em tirá-las do pé.
A luz da rua já estava acesa, e as crianças todas já tinham entrado pra tomar
banho e jantar. O sol estava caindo, e estava fresco. Quase sem carros e nem
barulho na rua. Só o som das tvs ligadas nas novelas, que vinha de uma ou
outra janela, o cheiros dos bifes fritando, e as cigarras que gritavam
enlouquecidas.
- Fica de guarda, tá? – ele dizia pra ela enquanto ia subindo – A sua parte é a
mais importante, você sabe, vigiar se não vem ninguém, porque se pegam a
gente... – falava como se ela fosse uma menina muito menor do que ele, e ele
estivesse tentando incentivá-la.
Só que, fora do seu habitual, ela hoje não era estava a felicidade em pessoa.
- Não vem ninguém. Não tem ninguém na rua. Ninguém vai te pegar. Não faz a
menor diferença se eu ficar aqui ou não - ela falou entristecida.
- Você só tá falando isso pra eu não me sentir mal, porque sou uma doente
inútil e “estrevada”!– ela gritou como nunca fazia, bem vermelha e com os
olhos injetados, tentando repetir o que tinha ouvido tantas vezes de forma
velada – Você só tá falando isso porque sabe que eu NÃO CONSIGO SUBIR!!
Ele não fazia ideia do que fosse “estrevada”. Nem “entrevada” ele saberia. Mas
pelo tom adivinhou.
Ele não.
- Claro que consegue. Pedi pra você ficar de guarda porque você é muito boa
nisso. Quer subir? Eu te dou a mão – ele ficou de bruços na largura do muro e
esticou um dos braços na direção dela.
Ela olhava pra mão dele como se nunca tivesse visto antes. Mas dali um a
segundo estava com uma expressão resoluta e concentrada, e começou a
procurar apoio pros pés, e onde botar a outra mão. No meio da subida ele fez
mais uma gracinha e afrouxou os dedos como se fosse soltar. Os dois riram. E
quando ela viu, estava segurando num dos galhos da pitangueira. De leve, pois
a árvore tinha ramos finos. Ela virou de costas pra casa, e espiou a rua,
daquela altura. O asfalto, os bueiros, os canteiros, os outros muros – tudo
parecia tão baixinho! Ela estava tão alta! No topo do mundo. E ela começou a
dar voltas e voltas em torno de si mesma na murada, cantarolando a
musiquinha do super-homem. Feliz. Feliz. Feliz. O dia no hospital
completamente esquecido.
Só que Luciano não tinha desistido das frutinhas. Estava todo dependurado em
cima da árvore, com somente um pé apoiado no muro. Ela ficou nervosa que
ele caísse, e abriu a boca para avisá-lo.
Ela nem viu como aconteceu. Só ouviu o barulho de galhos quebrando, folhas
amassando, e o estrondo que o corpo dele fez ao bater no chão. E nem foi só
isso, porque ele berrou e xingou feito um louco. Ela sabia que ele estava
vivinho da silva, porque mesmo se poder vê-lo direito no chão do jardim, ouvia
as coisas cabeludas que ele dizia. Se sua mãe pegasse ela falando uma
dessas coisas, certeza que lavaria sua boca com sabão!
- Tá bem? – falou tentando fazer a voz sair baixa, pra não chamar a atenção.
Ela tentou ver mais adiante, na casa, mas estava bem escuro agora. Sinal de
que não tinha ninguém lá. O que era bom. Imagina a encrenca que os dois iam
se meter se aparecesse um dos donos da casa e encontrasse ela no muro, e
ele no chão?
- Não, tá ótimo. Eu só resolvi tirar uma soneca aqui no chão! – ele esbravejou.
- Mas o cachorro...
- Acho que não tem cachorro não! Se não ele já estava em cima de mim! Acho
que não tem ninguém em casa. Me ajuda a subir.
E foi o que eles fizeram na meia hora seguinte – ela tentou de todo os jeitos
ajuda-lo a subir de volta, dali de onde estava. Esticou a mão, o pé, mandou-o
procurar outra coisa de apoio... Só que o quintal da casa estava muito escuro
com as luzes apagadas, e ele não conseguia ver nada. Só a pitangueira que
estava bem na sua frente. A casa ficava muitos metros à frente, e o quintal era
enorme.
Naná se rendeu:
- Não!! – ele foi veemente – Tá maluca? Minha mãe me mata se descobre que
cheguei perto dessa casa! Ela acha que mora o demônio aqui!
Ela suspirou.
- Então eu desço e vou chamar meu pai. Ele pode ajudar a gente.
- Seu pai vai brigar com você e vai contar pra minha mãe. Vai que ele fica tão
bravo que proíbe a gente de brincar junto? – ele falou angustiado, e tentando
subir na árvore com o pé machucado.
- A gente tem que fazer alguma coisa! Você quer passar a noite aí? Eu não
quero! – ela pensou um minuto – Se a gente esperar a dona da casa chegar...
é o único jeito. Ela abre o portão e você sai.
- Ah, minha mãe falou que isso é a maior besteira! Que não tem demônio nada.
Que esse negócio de macumba é só uma religião, que tem umas pombas que
giram, e umas cantorias. Nada que tem pombinhas pode ser do demônio, né? –
ela falou cheia de “autoridade” no assunto – Na igreja da sua mãe também não
tem cantoria? Então!
- Mas na igreja da minha mãe eles gostam do Jesus. Duvido que tenha um
Jesus nesse negócio de macumba com pombas! – ele disse nervoso.
E eles estavam nessa surreal discussão teológica quando Naná viu, lá longe na
esquina, uma roupa branca. Virou tão nervosa pra ele que quase caiu também:
- Uma das moças tá voltando! – ela sussurrou – Vamos esperar ela chegar, e
pedir pra você sair!
- Não! Vai você então – ele não admitiria que estava morrendo de medo. Ele só
não sabia se era mais da mãe ou da moça – Desce e sai correndo. Eu vou me
esconder. E quando der, se ela não trancar o portão, eu saio.
Ela deu mais uma olhada pra trás, pra mulher que estava quase chegando, e
pulou para dentro da casa.
***
Quase matou o amigo do coração, isso sim. O garoto ficou estatelado no chão,
de olho arregalado, de tal forma que ela pensou mesmo se não tinha
amassado ele até a morte!
... Não parecia com nada do que os dois já tinham visto antes. A casa não era
uma casa comum. Bom, o corpo da casa até era, até onde eles conseguiam
ver. O quintal é que era estranho.
Era enorme mesmo e vazio no meio. Ali, a grama não crescia e o chão era de
terra batida. Em um dos lados, mais perto do outro muro lateral, havia cadeiras
espalhadas. De tudo quanto é tipo: cadeiras de metal dobráveis, cadeiras de
madeira daquelas que a gente usa na mesa de jantar, e até uns banquinhos
mais baixos.
Ao lado, e mais pra perto da varanda da casa, tinha o que parecia uns
instrumentos.
Nenhum dos dois tinha visto instrumentos como aqueles antes. Pareciam
tambores, ou bumbos. Naná depois não saberia descrever; só dava pra ver que
os negócios eram de bater.
Era muito detalhe pros dois assimilarem de uma vez só. Em volta do centro do
quintal estava tudo meio... sujo. Tinha resto de vela, resto de flor, tinha umas
coisas brilhantes, que eles não sabiam o que era.
Naná, com sua tagarelice, não conseguiu ficar muito tempo quieta, e com as
mãos em concha, cochichou no ouvido do garoto:
- E agora?
- Não sei.
- Você não conta pra ninguém? – ele juntou as mãos pra falar de novo no
ouvido dela, depois de muito tempo. Um tempo que parecia não passar.
- Não. O quê?
- Tô com medo da gente não sair daqui nunca mais – ele falou com voz de
choro.
Engraçado, ela achava que ele era o menino mais valente do mundo, o que
brigava com todos os outros, que fazia sempre o que queria.
- Não fica não! – ela seguiu falando no tom baixinho, e deu o braço a ele. Ele
ficava meio arisco com as demonstrações de carinho dela, como abraçar, mas
nessa hora não reclamou – É só uma casa, tá vendo? Não tem nada demais
aqui. A gente espera o portão ficar destrancado. E se não ficar e a gente ficar
com sono, ou não tiver jeito, a gente chama a dona da casa, aguenta a bronca
e vai embora, tá?
Eles não estavam eram preparados pra quantidade de gente que chegou,
intercaladamente, nos 20 minutos seguintes. E pra movimentação que
começou no jardim. Gente chegando e trazendo coisas. Mulheres de branco,
com coisas esquisitas na cabeça. Homens com comida. Pessoas espalhando
uma coisa que parecia palha no chão. Muita falação, cadeiras puxadas, tochas
sendo acesas, umas coisas cheirosas que ardiam o nariz sendo queimadas,
velas por todos os cantos. Um zunzunzum que foi deixando-os bem
apavorados.
***
“[...] Vou abrir minha aruanda
Vou abrir meu juremá
Com a licença de mamãe oxum e nosso pai oxalá
Santo Antônio é ouro fino arreia a bandeira e vamos trabalhar[...]”
A cantoria seguiu durante uma hora. Com pausas aqui e ali. Algumas pessoas
conversavam. Umas com a fala meio arrastada. Ouviam-se aqui e ali
gargalhadas. E em determinado momento, as pessoas dançaram de um jeito
que os dois nunca tinham visto.
Mas ele foi acalmando, ao observar as pessoas. Todo o ritual era mesmo muito
estranho, mas ainda assim eram só pessoas. E pareciam todas felizes.
- Não quero!
- É mais divertido?
- Não é não – ele levantou a cabeça um pouco mais detrás da casinha, pra ver
melhor – Eles parecem criança que a nem a gente, olha lá!
Ela olhou e teve que concordar. Os adultos pareciam se divertir. Os dois ainda
estavam apreensivos, mas atentos pra não perder nenhum detalhe – imagina
as histórias que eles iam poder contar depois?
O pátio ficou quieto, e nem o som de grilos e outros insetos se ouvia. Começou
a esfriar, e um vento quase de nada bagunçava um pouco as folhas da árvore
perto deles.
Eles olharam espantados um pro outro, mesmo que mal se vissem. Como que
para se certificar de que não tinha sido o outro a fazer o barulho, e de que o
outro também tinha ouvido.
O quintal de repente parecia maior ainda do que já era, cheio de cantos. Cheio
de farfalhadas, estalos, sombras enganadoras...
Naná teve a impressão de ver uma sombra se destacar das outras, do outro
lado do pátio. Levemente.
Um assobio agudo se ouviu em algum lugar, e logo ali ao lado deles, o som
abafado de passinhos correndo na grama. As risadas, antes sutis, agora eram
bem audíveis.
Ele tentou de novo mais forte. Pra cima e pra baixo. Pra cima e pra baixo.
Ele se enraiveceu.
- Lú...
Naná, toda suja de terra, tremia dos pés à cabeça. A ponta do rabo de cavalo
sacudia de um lado para o outro, e os olhos expressivos estavam arregalados
como faróis. Olhando na direção do gramado atrás.
Nos primeiros segundos, o menino não entendeu bem o que estava vendo.
Uma luminosidade meio bruxuleante se movimentava pelo pátio. Pequenas
formas espectrais muito suaves apareciam no breu do lugar. Ele continuou
olhando confuso, até que achou que as formas pareciam... pareciam...
Os dois berraram tão alto que toda a vizinhança devia ter ouvido dessa vez.
Trocaram um olhar angustiado. Devia ser bem mais tarde ainda do que
pensavam. Não precisaram falar pra adivinhar o que tinha acontecido: eles
tinham desaparecido e os pais tinham chamado a polícia.
***
Ela tinha passado o dia todo relembrando a história de como eles tinham
deixado de ser amigos, e agora que chegava no ponto crucial, tudo ficava meio
nebuloso em sua memória. Só a vontade de chorar permanecia.
Talvez porque tinham acontecido muitas coisas ao mesmo tempo, e fosse tudo
um tanto quanto traumático. A verdade é os momentos que ambos passaram
na casa vizinha estavam claros como água na lembrança. Nos mínimos
segundos. Tinha enterrado tudo isso fundo em sua cabeça, e não revivia isso
há anos. Mas agora era capaz de lembrar os cheiros, sons, sensações... tudo
com riqueza de detalhes.
Mas a partir daí, ficava tudo confuso. Tinha sido um baque, o depois.
Lembrava de estar muito cansada. De terem feito muitas perguntas a ela, sobre
onde tinha estado, com quem, se alguém tinha feito alguma coisa. Lembrava
da voz do policial gordo falando suavemente com ela. De muita gente falando
ao mesmo tempo, de umas discussões e de ter dormido umas 12 horas direto
depois disso, e ter faltado à escola no dia seguinte.
Lembrava, isso com certeza, de que nem ela nem o amigo tinham contado
nada do que se passara na casa – para todos os efeitos, eles tinham pulado o
muro e tinham ficado presos lá. Só.
Lembrava agora com mais nitidez de depois de tudo explicado, ter tomado uma
bronca dos pais e ter ficado de castigo. Três dias em casa, sem botar o nariz
pra fora, e sem sequer ver o menino. Seu castigo tinha sido leve, porque seus
pais ficaram aliviados de tê-la de volta sem danos.
Primeiro tinha ido à casa dele, chamá-lo. A mãe tinha avisado que ele estava
de castigo.
Depois de uma semana, ele ainda não vinha pra rua. Ela voltou lá, e a mãe
dele avisou muito ríspida que o castigo ainda estava valendo, e que de
qualquer forma não queria que ele andasse mais com ela, e nem na rua.
Nesse meio tempo, seus pais a obrigaram a voltar à casa da vizinha pra se
desculpar pela invasão. Ela se recusou a passar do portão.
A vizinha foi muito paciente e educada, aceitou as desculpas, e ficou olhando
cúmplice pra ela. No dia seguinte foi à sua casa, e pediu pra conversar com a
menina. Sem os pais dela presentes.
Aí, como se tivesse adivinhado tudo, explicou cautelosamente a ela sobre sua
religião, e que nada do que eles faziam no local era para o mal. Falou de forma
amigável que ela ainda era muito pequena pra entender tudo, mas que as
crianças eram mais sensíveis a certos tipos de coisas, e viam coisas que os
adultos não podiam. E que ela não tinha nada o que temer.
Naná lembra que não prestou atenção em nada, e não confirmou nada - só
queria que a mulher fosse embora o mais rápido possível.
Mais uns dias se passaram. Até o sábado que ela acordou com o barulho da
mudança.
Muito sério e sisudo. Passou por ela sem vê-la, e abriu o carro da família. Logo
atrás veio a mãe e o menino. O rosto vermelho de quem tinha chorado muito.
Ela tentou parar e falar com ele, mas a mãe o levava pelo braço e praticamente
o arrastou na direção do carro. Naná, mesmo franzina e delicada, não se
intimidou:
Ele virou pra responder, e tomou outro puxão. Ele era um menino forte, e
ofereceu resistência.
- Lú!! Você vai mudar?? Pra onde?? – ela chegou na porta do carro junto com
os dois, tentando passar pela mãe e chegar mais perto dele.
Ela saiu correndo atrás do carro que se afastava, enquanto ele colava o rosto
no vidro, olhando fixo pra ela.
E foi assim a última vez que ela tinha visto-o. Seu melhor amigo no mundo.
O menino que trocava embalagens vazias por pintinhos, para dar pra ela. O
menino que era o terror da vizinhança, mas que deixava ela sempre pegá-lo no
“polícia e ladrão”. Que mudava a brincadeira quando percebia que ela estava
sem fôlego. Que preferia ir brincar com a mangueira de água com ela, do que
jogar bola com os outros moleques.
Aquele amigo que era muito pequeno pra saber pedir desculpas, quando fazia
alguma coisa errada, mas que sempre aparecia com balas “Juquinha” como
quem não quer nada, quando eles brigavam.
O menino que nunca achou que ela era uma fracota e doente.
O que disse que sabia que ela podia subir na árvore, se quisesse. O que a
entendeu e a viu exatamente como ela era.
O amigo que nenhum mais foi, até sua vida adulta. Fosse homem ou mulher.
Foi dando um medo. Um medão! Porque ela agora não era mais a Naná
daquela infância. Era uma mulher adulta. Dona de si. Com uma história. Sem
asma como marca registrada.
Tinha vivido uma outra vida inteira depois daquele pedaço de infância. Com ele
seria a mesma coisa. Ele seria outra pessoa. Alguém que ela não conhecia.
Tinha sido muito cruel o jeito como eles tinham se afastado. Mas essas coisas
passam. São esquecidas. Pessoas e situações são esquecidas. É o normal.
Não seria possível que esse tipo de elo que eles tinham se sobrepusesse ao
tempo. A todo o resto.
Seria?
Isso se ele lembrasse de tudo. Ele lembraria? Ela achava que ele talvez
lembrasse das brincadeiras. Daquele momento.
Mas e do que eles tinham dividido naquela casa, naquele dia?
Dificilmente. E isso a deixava cada vez mais triste, conforme chegava no lugar
marcado. E insegura sobre o que esperar. Talvez fosse melhor relaxar e não
pensar muito, não esperar mais desse reencontro do que realmente era.
O lugar estava meio vazio, o que facilitaria um pouco. Engraçado que não tinha
ocorrido a nenhum dos dois avisar como estaria vestido, ou como era
fisicamente – espera-se que as pessoas mudem um bocado em 20 anos, mas
isso nem passou por suas cabeças!
Ele se levantou, e no jeito dele se mexer e de olhar pra ela, ela viu o menino.
***