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“Luciano Ferraz quer ser seu amigo no Facebook”.

A mensagem piscava na sua caixa de entrada.

Ela já a olhava imóvel por uns 5 minutos. Porque seu dia tinha parado no
momento exato em que ela chegou. O telefone tocava em algum lugar dentro
do escritório, mas o som parecia abafado, há léguas de distância. O copo
plástico de café, largado ao lado do teclado, tinha começado a suar e já
marcava a madeira da mesa, enquanto esfriava lentamente.

Ela batia rítmica e nervosamente uma das unhas, recém manicuradas, em cima
do mouse.

O problema não era o email. O problema não era a solicitação. Não era nem o
Facebook.

A questão era quem tinha enviado a solicitação.

Sua cabeça estava longe. Em meio a gritarias de crianças, e lembranças há


muito esquecidas. Um gosto de pitangas azedas invadiu subitamente sua boca,
e ela sorriu antes mesmo de perceber.

Ele roubava pitangas para ela, ela lembrou, da casa da vizinha macumbeira. E
elas nunca estavam doces, sempre azedas... porque eles surripiavam todas
antes de dar tempo delas amadurecerem.

Isso tem, o quê, 20 anos? - ela se perguntou, suspirando.

E o email continuava lá.

Parecia estar escrito em legras garrafais. Parecia que tinha negrito. Parecia
que gritava.

“Luciano Ferraz quer ser seu amigo no Facebook”.

E cada vez que ela olhava de soslaio pra tela, a entonação parecia mudar.
Começou a parecer uma ordem.

“Luciano Ferraz QUER ser seu amigo no Facebook”.

Ela sabia que a mensagem era automática. Mas a impressão que ela tinha era
que ele estava, nesse mesmo minuto, em frente ao computador esperando sua
resposta. Do outro lado da conexão. Esperando, esperando...

Não tinha muito o que pensar, na verdade. Ela não recusaria o convite dele.
Era só a surpresa que fazia ela adiar. Era a surpresa de ouvir falar dele depois
de tantos anos. Como é que ele tinha achado ela? Seu nome era comum. Seu
sobrenome mais do que comum. Eles não tinham amigos conjuntos... nada.
Como ele tinha conseguido?
Nem tinha ocorrido procurar por ele. Pelo simples motivo de que ele não
entrava em seus pensamentos há décadas. Era como se eles tivessem se
conhecido em outra vida, quase. Tinha passado anos pensando nele sim.
Imaginando onde estaria e o que tinha acontecido com ele. Afinal tinham se
separado bruscamente. Sem poder manter contato, nem se despedir. Mas
depois a vida vai seguindo, e a gente vai crescendo, fazendo outras coisas,
outras coisas acontecem...e as coisas ficam no passado.

Luciano... quem diria. Depois do choque, ela ficou morrendo de curiosidade.


Como será que tinha ficado, adulto? Aquele menino de cabelo romeuzinho,
queimado de sol, joelhudo. Sempre com um dente faltando na frente, fosse
porque era de leite e tinha caído, fosse porque tinha se machucado. A mãe
vivia gritando que iria acabar mandando fazer uma dentadura pra ele, que
sairia mais barato.

O menino que tinha a bicicleta mais bacana da rua. De dar inveja. A maioria
das crianças da rua só tinha bikes capengas. Herdadas dos irmãos mais
velhos. Ele até cobrava uns trocados pra deixar os outros moleques darem
voltas nela. Era a Caloi mais incrível que tinham lançado. E era azul metálica.
Ele nunca cobrou dela. Era a única que andava na bicicleta à vontade.

Será que tinha casado? – ela divagou, enquanto fechava o computador. Iria pra
casa mais cedo. Tinha mercado a fazer, e a cabeça já estava em outro lugar.

Será? Casado e com filhos? Não conseguia imaginar! Só o via pequeno em


sua mente. Eles tinham sido melhores amigos. Tão estranho não saber nada
dele. Como é que você pode conhecer alguém tanto quanto eles tinham se
conhecido, sem conhecer? Ele dizia que queria ser mecânico. Adorava carros.
Passava o dia sentado no meio fio da rua calma, vendo passar os modelos,
vibrando com as cores. Duvidava – devia ter virado engenheiro, era tão
inteligente... Não, não, odiava matemática. Quem sabe...

Ai, mas que exercício mental inútil! Não era melhor aceitar logo o diacho da
solicitação, e ver por si mesma, ao invés de ficar tentando adivinhar? – deu-se
uma bronca. Profissão, status de relacionamento, tudo isso ela saberia sem
nem mesmo perguntar.

***

O perfil não tinha foto. O perfil não tinha informação nenhuma. Sobre nada.

Foi a constatação que ela fez, meio aborrecida, mais tarde naquela noite,
quando entrou no site e aceitou o convite.

Olhou e olhou novamente. Nada. Só a cidade de residência, a mesma dela. Só


a data de aniversário. Nada que ajudasse a montar uma imagem mental do que
a pessoa tinha se tornado. Nada.
Frustração é pouco.

Quem é que faz uma página no Facebook desse jeito, meu pai?! Vai ver ele
não era amante de tecnologia. Vai ver era daqueles mais “analógicos”, que não
tem tempo de ficar online.

Depois de mais uma olhada, percebeu uma coisa estranha: ele não tinha
amigos. Nada de amigos adicionados.

Como pode ser? – ela se perguntou, torcendo uma mecha de cabelo entre o
polegar e o indicador. Começou a achar muito estranho. Muito estranho
mesmo. Afinal, não é porque a gente foi amigo de uma pessoa mais de 20
anos atrás, quando criança, que a pessoa necessariamente cresceu NORMAL.
E se ele fosse algum tipo de psicopata??

Ela revirou os olhos pra si mesma. Isso que dava assistir muito seriado. Mais
provável é que ele tivesse acabado de entrar no Facebook mesmo, e ainda
estivesse adicionando as pessoas aos poucos. Isso. Devia ser isso.

Não tinha nem 10 minutos que ela tinha aceitado o convite, acendeu um
quadradinho vermelho indicando mensagem. Dele.

“Oi”.

Simples assim. Nada de “Quanto tempo!”, “E aí, menina?”, “Nem acredito que é
você!”, “Lembra de mim?”, ou qualquer coisa do gênero. Nada disso. Só oi.
Como se tivessem batido papo no dia anterior. Como num daqueles dias de sol
de rachar, que ele simplesmente entrava no quintal dela sem tocar a
campainha, e puxava a mangueira pra eles brincarem com a água. “Oi”.
Simples assim. Mas não tinha sido sempre simples com eles?

Então ela respondeu.

“Oi. É você mesmo? rs”

E a frase ficou lá. Um minuto. Dois. Cada minuto se arrastando depois do


outro, e nada dele responder de volta. Será que estava pensando no que
dizer?

Aquilo tudo estava deixando ela... emocionada. Sabe quando você fica
ansioso, como se sentisse que alguma coisa está prestes a acontecer, mas
não consegue saber o quê?

Seu melhor amigo de infância! Só por uns seis meses, mas, mesmo assim...

Nunca tinha tido um amigo tão amigo. Mais diferentes impossíveis, sim, mas
que se entendiam como ninguém.
Ela, uma menina pálida e raquítica que vivia doentinha. E que sempre que
estava fora da cama, se esgueirava pra rua, pra fugir do barulho da família
portuguesa enorme. Filha caçula, com irmãos e irmãs. Seu irmão mais velho a
chamava de saguí, pois ela tinha ossos muito finos, olhos enormes e vivia com
os cabelos presos. “Como se fosse um rabo”, ele implicava. Ela não ligava;
apesar da sua fragilidade física, vivia sorrindo, vivia inventando brincadeiras,
vivia tagarelando. Só se cansava rápido. Então quando a agitação de sua casa
ficava demais, ela ia sentar na rua.

Foi assim que o viu pela primeira vez. Quando a mudança dele chegou. Ele
estava sentado na calçada em frente ao portão, emburrado, enquanto
passavam as caixas e os móveis.

Filho único. Sua mãe vivia reclamando que ele “tinha o tinhoso do corpo”, e que
só aprontava. Naná não sabia bem o que o pai dele fazia, mas devia ser algum
tipo de caixeiro viajante. Eles se mudavam muito.

Naquele primeiro dia, ela sentou ao lado dele na calçada e falou e falou e falou.
No começo ele nem respondia. Estava desconfiado e mal-humorado. Ela
insistiu:

- Eu também fico muito sentada aqui na rua. Quando tem almoço de domingo,
minha casa fica muito barulhenta e cheia. A sua também?

- Não – ele resmungou – minha casa nunca é barulhenta.

Ela não se fez de rogada.

- Então você vai ficar sentado aqui por quê?

- Vou ficar vendo os carros – ele falou, sem nem olhar pra ela.

Ela riu. E perguntou se podia ficar vendo os carros com ele.

- Vai arrumar alguém pra brincar, garota! - ele respondeu, irritado.

Ela não fez caso, e continuou tagarelando, sem se aborrecer.

- Eu queria... eu até vou às vezes. Tá vendo ali? Aqueles brinquedos velhos de


ferro? Os pais chamam de “parquinho”, aquela porcaria. Agora é hora do
almoço, mas de tarde vai ficar cheio de criança. Mas eu nunca fico muito lá.

Ela fez uma pausa. Ele não perguntou nem disse nada.

- Eu não gosto muito de brincar com eles, porque eu me canso rápido e eles
ficam implicando comigo. As meninas brincam de correr o tempo todo, só pra
eu não ficar com elas. Elas são maiores, sabe? E eu atrapalho...
Ele olhou pra ela. Olhou mesmo. E depois disse que ela podia ficar vendo os
carros com ele.

E os dois não se desgrudaram mais depois disso.

Uma mensagem entrou em resposta, e trouxe-a das lembranças de volta para


o presente.

“Eu te procuro há muito tempo. Tenho tanta coisa pra te contar. Tenho tanta
coisa pra conversar. Será que a gente podia se encontrar?”

Ela piscou surpresa.

Era tudo tão... estranho. Ela tinha vontade de gritar pra tela “eu não te conheço
mais! É muito esquisito a gente se encontrar assim do nada, depois desse
tempo todo, sem nem bater um papinho de reencontro antes!”

Ficou pensando no que responder, quando entrou outra mensagem.

“Eu juro que não vai ser nada estranho. Vamos num lugar público, você
escolhe. Eu prometo que não virei um assassino em série. É só que não quero
conversar com você, pela primeira vez em 20 anos, através de uma máquina.
Olha, nem de falar ao telefone eu gosto muito. Eu estive em tantos lugares... e
pela primeira vez eu volto pra essa cidade. Não podia perder a chance de te
ver”

Ela engoliu em seco. E ficou entalada. Um nó de emoção parou ali e se


recusava a descer. Quando a gente é criança, não consegue entender que
gosto muito de algum amigo. Só sabe que é amigo e pronto. A gente briga,
brinca, empresta as coisas, faz merda junto e pronto. Não sabe definir.

Adulto a gente sabe reconhecer o sentimento. E ela viu ali. Lembrou tudo. Viu
todas as vezes em que eles brigaram de manhã, e fizeram as pazes de tarde.
Todas as vezes em que ele chamou ela de mané, e todas as vezes que ela
gritou de volta que ele era um cabeção. A vez em que uma das meninas da rua
o chamou de cabeção também, e que ele foi pra casa com raiva e ela jogou
uma pedra na menina e ficou de castigo dois dias.

Tanta coisa, tanta vida em tão pouco tempo!

Sentiu-se uma boba, mas não conseguia ser racional. Estava empolgada de
ver o amigo. Como se tivesse 10 anos de novo.

“Tá bom”

E eles marcaram. Ele deixou ela escolher.

Ela escolheu um café. Onde daria pra conversar.


Ele não perguntou nada dela. Ela ficou com vontade de perguntar um monte de
coisas sobre ele, mas segurou.

Então eles se despediram.

“Pôxa, estou feliz que você me achou. Vai ser legal conversar com você. A
gente perdeu contato mesmo. Achei que nunca mais fosse te ver.”, ela disse.

A mensagem de resposta demorou um nada pra chegar.

“Eu sei. A gente vai conversar sobre o que aconteceu. Te vejo lá. PS: ainda
durmo com a luz acesa”

Ela quase caiu da cadeira ao ler.

E a lembrança esquecida, daqueles últimos dois dias em que eles estiveram


juntos, a atingiu como um raio.

E ela também ainda dormia de luz acesa.

***

Como é que ela tinha esquecido isso?

Aqueles seis meses que Luciano morou em sua rua, foram seis meses muito
agitados. Pegaram o final das férias, mas mesmo depois que as aulas
começaram, os dois não paravam. Viviam na rua, só entrando em casa para
comer rápido. Pra desespero dos pais. Principalmente dos dela, que morriam
de medo da sua saúde. Que inexplicavelmente nunca esteve tão boa quanto
naqueles meses.

Eles viviam queimados de sol, pois não se tinha hábito de passar protetor solar
naquela época. Estavam sempre descalços e imundos como dois
trombadinhas, e cheios de machucados.

Era machucado de guerra de mamona, era machucado de correr, era


machucado de andar de bicicleta...

Eles brincavam com as outras crianças da rua também, mas sempre em dupla.
Uma das vizinhas chamava-os de dupla dinâmica. Já uma das tias da garota,
que também morava lá, não gostava que a sobrinha doente andasse com ele.
O pai dele nunca estava e a mãe era uma carola de igreja enjoada. O menino
tinha as piores famas. De atentado, de malcriado...

Em um dos meninos que usava óculos, ele botou o apelido de Stevie Wonder,
e sacaneou tanto o garoto que ele não quis mais sair pra brincar. Tinha
quebrado o skate de outro. Se metido em brigas feias com mais uns dois. E
vivia depredando as obras da rua – os pedreiros subiam uma parede num dia,
e quando chegavam no dia seguinte, os tijolos estavam todos arrebentados no
chão.

Mas os pais dela fingiam não tomar conhecimento de nada. Afinal, ela nunca
tinha ficado tanto tempo fora da cama, e eles achavam ótimo.

A mãe dele, não dizia nada. Só queria que ele tivesse hora certa pra entrar no
final da tarde, e fosse à missa com ela no domingo. O que ele fazia fora de
casa, não lhe interessava.

Ele odiava as manhãs de domingo. Odiava com todas as forças. Naná ficava
esperando-o no portão todo domingo, e quando ele vinha chegando, lá da
esquina, já vinha tirando a camisa engomada e o sapato. Jogava tudo dentro
do quintal dela, e largava lá enquanto eles brincavam. E devolvia depois pra
mãe cheio de lama, só de sacanagem.

Ele era o catiço, mas não com ela.

Rei do estilingue, nada estava a salvo dele; nem outras crianças, nem
cachorros, nem janelas de vidro... Gatos, então, eram preferidos. Ia o que
estava à mão: chapinhas de garrafa, pedregulhos, brinquedinhos de plástico
pequenos, bolinhas de gude...

Naná adorava biquinhos-de-lacre. Aqueles passarinhos pequeninos e ariscos


do bico vermelho, e que voam em bandos. Eles viviam nos arbustos dos
terrenos baldios.

Até o dia em que ele, de molecagem, deu uma estilingada num dos arbustos.

Apesar de pequenos os pássaros, e da chance de acertar um ser pequena, ele


acertou.

O bichinho ficou caído lá, imóvel.

Ela não disse uma palavra.

Ela não gritou, xingou, nem brigou com ele. Só olhou por uns instantes pra
avezinha ali na terra, com uns olhos muito grandes, e cheios de sofrimento.
Sem chorar.

Abaixou-se, pegou o passarinho e o levou apertado no peito para enterrar no


quintal.

Ele nunca mais usou o estilingue.

Mas eles gostavam mesmo era das pitangas. Havia uma casa, uma rua acima.
Era uma casa esquisita, como toda vizinhança tem sua casa esquisita. Muro
fechado, mais alto do que os outros, portão de madeira, que não dava pra ver
dentro. Quase nunca entrava nem saía ninguém de lá. A não ser à noite,
algumas vezes por semana, quando ficava um entra e sai danado de gente. E
ouviam-se batuques, cantos e gritos.

As crianças na rua comentavam medrosas que a casa era “de macumba”, e


todos falavam do lugar muito secretamente. Não que algum deles soubesse o
que fosse macumba. Mas pelo que os meninos mais velhos falavam, era coisa
“do mal”.

Os pais da Naná cumprimentavam a senhora que morava lá, e que ela achava
que se vestia de forma muito engraçada. A mãe do Luciano o proibia de sequer
passar perto da casa.

Só que a danada da casa tinha uma pitangueira maravilhosa, que dava


pitangas o tempo inteiro! A árvore ficava do lado de dentro do terreno, mas
metade dos galhos passava pra rua. Mesmo sendo alta para uma pitangueira,
Luciano dava um jeito de subir pelo canto do muro, se esticar e catar as
pitangas que davam mole pra fora. Eles iam lá quase todo santo dia, ver se já
tinha alguma outra pitanga “comível”, e pegavam as que começavam a ficar
vermelhas. Mesmo as que estavam laranja ainda, se bobeassem eles
pegavam.

O papel de Naná era essencial na travessura – acontece que uma outra


senhorinha que morava na casa (moravam algumas mulheres lá, mas nenhum
homem!), mais jovem do que a que falava com os pais dela, ficava brava se
pegasse criança rondando a casa. Mais ainda se estivesse pendurada feito
macaco no muro, roubando pitanga! Então Naná ficava embaixo de “vigia”,
vendo se não vinha ninguém, e botando as pitangas que ele arremessava
numa bolsinha de palha velha.

Depois eles iam chupar o produto do roubo longe dali. Até os caroços se
aproveitavam depois, em guerrinhas.

Naquele dia, infelizmente parecia que estava tudo fadado a dar errado.

Os galhos e folhas que penduravam para fora do muro, estavam vazios. Não
tinham nem pitangas verdes. Em compensação, a outra metade da árvore, que
ficava bem dentro do jardim, estava coalhada de pitangas enormes e
vermelhas cor de sangue. Parecia que nenhum dos moradores se incomodava
em tirá-las do pé.

Só que eles PRECISAVAM de pitangas naquele dia.

Naná tinha passado a manhã no hospital. Fazendo exames. Voltou cheia de


olheiras, cansada e com os braços com hematomas, de colher sangue. Luciano
tinha chegado da escola e ficado de plantado no portão da casa dela, até o
final da tarde, esperando ela chegar. Ela chegou molinha, querendo ir pra
cama. Meio triste. E ele cismou que eles tinham que ir até a pitangueira. Ficou
animando e provocando ela, até ela concordar.

A luz da rua já estava acesa, e as crianças todas já tinham entrado pra tomar
banho e jantar. O sol estava caindo, e estava fresco. Quase sem carros e nem
barulho na rua. Só o som das tvs ligadas nas novelas, que vinha de uma ou
outra janela, o cheiros dos bifes fritando, e as cigarras que gritavam
enlouquecidas.

- Fica de guarda, tá? – ele dizia pra ela enquanto ia subindo – A sua parte é a
mais importante, você sabe, vigiar se não vem ninguém, porque se pegam a
gente... – falava como se ela fosse uma menina muito menor do que ele, e ele
estivesse tentando incentivá-la.

Só que, fora do seu habitual, ela hoje não era estava a felicidade em pessoa.

- Não vem ninguém. Não tem ninguém na rua. Ninguém vai te pegar. Não faz a
menor diferença se eu ficar aqui ou não - ela falou entristecida.

Ele riu bem moleque lá de cima.

- Para de palhaçada. Você é a nossa guardiã – ele fez graça, e chegou no


topo do muro, se equilibrando lá. Dali ainda não dava pra ver o jardim, por
causa da copa. Mas ele nunca tinha ido tão alto.

- Você só tá falando isso pra eu não me sentir mal, porque sou uma doente
inútil e “estrevada”!– ela gritou como nunca fazia, bem vermelha e com os
olhos injetados, tentando repetir o que tinha ouvido tantas vezes de forma
velada – Você só tá falando isso porque sabe que eu NÃO CONSIGO SUBIR!!

Ele não fazia ideia do que fosse “estrevada”. Nem “entrevada” ele saberia. Mas
pelo tom adivinhou.

Toda a família era condescendente com ela. E as outras crianças a


sacaneavam, por ela ser fracote.

Ele não.

- É claro que você consegue subir – disse distraído, enquanto afastava os


galhos. Tinha escurecido rápido, e ele não estava vendo bem as frutas.

Ela olhou atônita pra ele. Ele insistiu.

- Claro que consegue. Pedi pra você ficar de guarda porque você é muito boa
nisso. Quer subir? Eu te dou a mão – ele ficou de bruços na largura do muro e
esticou um dos braços na direção dela.

- Você acha que eu consigo?? – ela perguntou encantada.


- Para de onda e vem logo, meu braço vai ficar dormente, mané! Tá com
medo? – ele começou a se balançar, fazendo graça com ela.

Ela olhava pra mão dele como se nunca tivesse visto antes. Mas dali um a
segundo estava com uma expressão resoluta e concentrada, e começou a
procurar apoio pros pés, e onde botar a outra mão. No meio da subida ele fez
mais uma gracinha e afrouxou os dedos como se fosse soltar. Os dois riram. E
quando ela viu, estava segurando num dos galhos da pitangueira. De leve, pois
a árvore tinha ramos finos. Ela virou de costas pra casa, e espiou a rua,
daquela altura. O asfalto, os bueiros, os canteiros, os outros muros – tudo
parecia tão baixinho! Ela estava tão alta! No topo do mundo. E ela começou a
dar voltas e voltas em torno de si mesma na murada, cantarolando a
musiquinha do super-homem. Feliz. Feliz. Feliz. O dia no hospital
completamente esquecido.

Passou um bando de vira-latas pela calçada abaixo, e ela de safadeza jogou


uns gravetinhos neles. Ela estava fora do alcance deles.

Isso era melhor do que tudo. Melhor até do que as pitangas.

Só que Luciano não tinha desistido das frutinhas. Estava todo dependurado em
cima da árvore, com somente um pé apoiado no muro. Ela ficou nervosa que
ele caísse, e abriu a boca para avisá-lo.

Não deu tempo.

Ela nem viu como aconteceu. Só ouviu o barulho de galhos quebrando, folhas
amassando, e o estrondo que o corpo dele fez ao bater no chão. E nem foi só
isso, porque ele berrou e xingou feito um louco. Ela sabia que ele estava
vivinho da silva, porque mesmo se poder vê-lo direito no chão do jardim, ouvia
as coisas cabeludas que ele dizia. Se sua mãe pegasse ela falando uma
dessas coisas, certeza que lavaria sua boca com sabão!

- Tá bem? – falou tentando fazer a voz sair baixa, pra não chamar a atenção.

A resposta dele foi mais uma enxurrada de palavrões.

Ela tentou ver mais adiante, na casa, mas estava bem escuro agora. Sinal de
que não tinha ninguém lá. O que era bom. Imagina a encrenca que os dois iam
se meter se aparecesse um dos donos da casa e encontrasse ela no muro, e
ele no chão?

Mas podia ter cachorro...

Ela avisou apressada:

- Lú, sobe de volta correndo! Pode ter cachorro!

- Torci meu pé! – ele gemeu.


- Tá muito ruim?

- Não, tá ótimo. Eu só resolvi tirar uma soneca aqui no chão! – ele esbravejou.

- Mas o cachorro...

- Acho que não tem cachorro não! Se não ele já estava em cima de mim! Acho
que não tem ninguém em casa. Me ajuda a subir.

E foi o que eles fizeram na meia hora seguinte – ela tentou de todo os jeitos
ajuda-lo a subir de volta, dali de onde estava. Esticou a mão, o pé, mandou-o
procurar outra coisa de apoio... Só que o quintal da casa estava muito escuro
com as luzes apagadas, e ele não conseguia ver nada. Só a pitangueira que
estava bem na sua frente. A casa ficava muitos metros à frente, e o quintal era
enorme.

Eles já estavam ficando nervosos. Estava ficando tarde, e os pais de ambos


iam ficar preocupados.

Naná se rendeu:

- Você me espera aqui que eu vou lá chamar a sua mãe.

- Não!! – ele foi veemente – Tá maluca? Minha mãe me mata se descobre que
cheguei perto dessa casa! Ela acha que mora o demônio aqui!

Ela suspirou.

- Então eu desço e vou chamar meu pai. Ele pode ajudar a gente.

- Seu pai vai brigar com você e vai contar pra minha mãe. Vai que ele fica tão
bravo que proíbe a gente de brincar junto? – ele falou angustiado, e tentando
subir na árvore com o pé machucado.

- A gente tem que fazer alguma coisa! Você quer passar a noite aí? Eu não
quero! – ela pensou um minuto – Se a gente esperar a dona da casa chegar...
é o único jeito. Ela abre o portão e você sai.

- E se ela for mesmo do demônio...? – ele soprou de forma quase inaudível,


com um tremor na voz.

- Ah, minha mãe falou que isso é a maior besteira! Que não tem demônio nada.
Que esse negócio de macumba é só uma religião, que tem umas pombas que
giram, e umas cantorias. Nada que tem pombinhas pode ser do demônio, né? –
ela falou cheia de “autoridade” no assunto – Na igreja da sua mãe também não
tem cantoria? Então!

- Mas na igreja da minha mãe eles gostam do Jesus. Duvido que tenha um
Jesus nesse negócio de macumba com pombas! – ele disse nervoso.
E eles estavam nessa surreal discussão teológica quando Naná viu, lá longe na
esquina, uma roupa branca. Virou tão nervosa pra ele que quase caiu também:

- Uma das moças tá voltando! – ela sussurrou – Vamos esperar ela chegar, e
pedir pra você sair!

- Não! Vai você então – ele não admitiria que estava morrendo de medo. Ele só
não sabia se era mais da mãe ou da moça – Desce e sai correndo. Eu vou me
esconder. E quando der, se ela não trancar o portão, eu saio.

- Vamos! Deixa eu falar com ela!

- Não! Vai, vai, garota chata!

A mulher, andando distraída a veria a qualquer segundo em cima do muro.

Ele parou de brigar e falou com uma voz conformada.

- Pode ir, quando der eu vou.

Ela deu mais uma olhada pra trás, pra mulher que estava quase chegando, e
pulou para dentro da casa.

***

Aterrissou em cima dele como uma lagartixa caindo da parede. Mas


inacreditavelmente, não se machucou.

Quase matou o amigo do coração, isso sim. O garoto ficou estatelado no chão,
de olho arregalado, de tal forma que ela pensou mesmo se não tinha
amassado ele até a morte!

Começou a puxá-lo pelo braço, impaciente, e a falar baixinho:

- Anda! Anda molenga! Ela vai ver a gente!

Bem aos pés da pitangueira, eles conseguiram divisar uma casinha de


concreto, dessas de registro de água. Agacharam no vão entre a casinha e a
árvore. Tinha um resto de água ali, e eles literalmente enfiaram os pés na lama.
Ela fez uma careta. A pintura da parede naquela parte tinha uma cor de bolor
esverdeada. O cheiro também não era dos melhores, e Luciano ficou
seriamente preocupado com aranhas. Ele tinha verdadeiro pavor de aranhas.

O portão se abriu, e eles respiraram um uníssono ao perceber que estavam


bem escondidos naquele ponto. Não dava pra vê-los, o que fez os dois
relaxarem um pouco. Eles esperaram ansiosos e em silêncio.

Ouviram o barulho da mulher entrando, batendo o portão e... passando a chave


nele. Ela apertou a mão dele, e ele apertou de volta, em sinal de que tinha
ouvido também.
Barulhos abafados de pisar na grama, e logo em seguida um interruptor foi
aceso em algum lugar.

A maior parte do quintal ficou iluminada.

E o que eles viram...

... Não parecia com nada do que os dois já tinham visto antes. A casa não era
uma casa comum. Bom, o corpo da casa até era, até onde eles conseguiam
ver. O quintal é que era estranho.

Era enorme mesmo e vazio no meio. Ali, a grama não crescia e o chão era de
terra batida. Em um dos lados, mais perto do outro muro lateral, havia cadeiras
espalhadas. De tudo quanto é tipo: cadeiras de metal dobráveis, cadeiras de
madeira daquelas que a gente usa na mesa de jantar, e até uns banquinhos
mais baixos.

Ao lado, e mais pra perto da varanda da casa, tinha o que parecia uns
instrumentos.

Nenhum dos dois tinha visto instrumentos como aqueles antes. Pareciam
tambores, ou bumbos. Naná depois não saberia descrever; só dava pra ver que
os negócios eram de bater.

Os dois continuavam agachados onde estavam, espiando tudo daquele canto,


enquanto a mulher calmamente se dirigia pra porta da casa.

Era muito detalhe pros dois assimilarem de uma vez só. Em volta do centro do
quintal estava tudo meio... sujo. Tinha resto de vela, resto de flor, tinha umas
coisas brilhantes, que eles não sabiam o que era.

Depois do esforço de subir no muro, e de ficar aqueles minutos agachada, as


perninhas de sagui de Naná pediram arrego, e ela meio que caiu sentada
naquela pocinha de água e terra onde eles estavam parados. Ela fez outra
careta, e ele balançou a cabeça, como indicando pra ela ficar quieta.

Eles estavam paralisados.

Naná, com sua tagarelice, não conseguiu ficar muito tempo quieta, e com as
mãos em concha, cochichou no ouvido do garoto:

- E agora?

Ele respondeu do mesmo jeito:

- Não sei.

Ela botou a cabecinha pra pensar e disse:


- Acho melhor a gente ir ficando aqui, até ter uma oportunidade de sair. Daqui a
pouco chega mais alguém, e vai deixar o portão destrancado.

E foi como eles fizeram. Se mexendo o mínimo possível, mudando de posição


algumas vezes quando dava câimbra nas pernas, e tentando ver o máximo que
eles conseguissem, pra achar uma saída de lá.

- Você não conta pra ninguém? – ele juntou as mãos pra falar de novo no
ouvido dela, depois de muito tempo. Um tempo que parecia não passar.

- Não. O quê?

- Tô com medo da gente não sair daqui nunca mais – ele falou com voz de
choro.

Engraçado, ela achava que ele era o menino mais valente do mundo, o que
brigava com todos os outros, que fazia sempre o que queria.

- Não fica não! – ela seguiu falando no tom baixinho, e deu o braço a ele. Ele
ficava meio arisco com as demonstrações de carinho dela, como abraçar, mas
nessa hora não reclamou – É só uma casa, tá vendo? Não tem nada demais
aqui. A gente espera o portão ficar destrancado. E se não ficar e a gente ficar
com sono, ou não tiver jeito, a gente chama a dona da casa, aguenta a bronca
e vai embora, tá?

Nisso a campainha tocou. E os dois ficaram em alerta. Até se enfiaram mais


fundo no vão da parede, preparados pra entrada de mais alguém.

Eles não estavam eram preparados pra quantidade de gente que chegou,
intercaladamente, nos 20 minutos seguintes. E pra movimentação que
começou no jardim. Gente chegando e trazendo coisas. Mulheres de branco,
com coisas esquisitas na cabeça. Homens com comida. Pessoas espalhando
uma coisa que parecia palha no chão. Muita falação, cadeiras puxadas, tochas
sendo acesas, umas coisas cheirosas que ardiam o nariz sendo queimadas,
velas por todos os cantos. Um zunzunzum que foi deixando-os bem
apavorados.

Até a hora em que começaram a cantar e a bater nos instrumentos, e


apagaram as luzes do quintal.

Era dia de terreiro.

***
“[...] Vou abrir minha aruanda
Vou abrir meu juremá
Com a licença de mamãe oxum e nosso pai oxalá
Santo Antônio é ouro fino arreia a bandeira e vamos trabalhar[...]”
A cantoria seguiu durante uma hora. Com pausas aqui e ali. Algumas pessoas
conversavam. Umas com a fala meio arrastada. Ouviam-se aqui e ali
gargalhadas. E em determinado momento, as pessoas dançaram de um jeito
que os dois nunca tinham visto.

A fumaça das velas, das tochas, da “queimação”, e a iluminação delas, deixava


tudo meio nebuloso. Cheio de sombras ameaçadoras.

Algumas músicas eram alegres, mas outras eram medonhas e sombrias e


faziam o coração apertar, embora eles não entendessem o significado de
nenhuma delas.

No começo, os dois choraram de medo. Ele, meio escondido; ela, abertamente.


Convencida de que ele tinha razão – eles não iam mais sair dali. Estavam no
meio de alguma coisa do diabo mesmo! A menina dobrou os braços em cima
dos joelhos e apoiou a cabeça, de olhos fechados. Não queria mais ver!

Mas ele foi acalmando, ao observar as pessoas. Todo o ritual era mesmo muito
estranho, mas ainda assim eram só pessoas. E pareciam todas felizes.

- Você tinha razão – Luciano se convenceu, e começou a puxar o braço dela –


Pode olhar.

- Não quero!

- Olha, boba! Não tá acontecendo nada. Eles estão cantando e dançando. É


até mais divertido e engraçado do que na igreja da minha mãe.

Ela levantou a cabeça desconfiada.

- É mais divertido?

- É, na igreja da minha mãe me dá muito sono. A cantoria é numa língua que


eu não entendo, e é arrastada. E as pessoas só sentam, levantam e ajoelham,
não dançam assim.

- Ainda tô achando tudo muito “sinistro” – ela fungou.

- Não é não – ele levantou a cabeça um pouco mais detrás da casinha, pra ver
melhor – Eles parecem criança que a nem a gente, olha lá!

Ela olhou e teve que concordar. Os adultos pareciam se divertir. Os dois ainda
estavam apreensivos, mas atentos pra não perder nenhum detalhe – imagina
as histórias que eles iam poder contar depois?

Os dois já bocejavam quando a reunião foi se encerrando. As últimas pessoas


saíram e, os dois viram ansiosos que o portão parecia ter ficado sem chave.
Uma das mulheres da casa ainda estava recolhendo alguns objetos aqui e ali,
e eles combinaram que quando ela entrasse, eles esperariam mais uns
minutos e iriam embora. Já devia ser muito muito tarde, porque Naná estava
dando cabeçadas de sono. Eles não podiam fazer ruído nenhum, porque sem o
barulho da “festa”, dava pra ouvir qualquer sussurro.

A dona da casa apagou as últimas chamas das velas, a luz, e se recolheu.

O pátio ficou quieto, e nem o som de grilos e outros insetos se ouvia. Começou
a esfriar, e um vento quase de nada bagunçava um pouco as folhas da árvore
perto deles.

Estar muito escuro atrapalhava um pouco atravessar os metros até o portão.


Mas os olhos foram acostumando com as sombras em volta, e eles começaram
a distinguir alguns contornos – da própria casa, de algumas cadeiras...

As folhas da pitangueira se agitaram mais. A única outra árvore no local, um


coqueiro que ficava junto à varanda, começou a ranger.

Os dois amigos estavam muito próximos um do outro, doidos para fugir do


lugar, mas com medo demais pra dar o primeiro passo.

O vento parecia rodopiar em volta deles agora, e fazia mais barulho.

Barulho como suspiros, como... risadas.

Eles olharam espantados um pro outro, mesmo que mal se vissem. Como que
para se certificar de que não tinha sido o outro a fazer o barulho, e de que o
outro também tinha ouvido.

O quintal de repente parecia maior ainda do que já era, cheio de cantos. Cheio
de farfalhadas, estalos, sombras enganadoras...

De novo a risada. Mais alta. Mais nítida. Mais... próxima.

Risada de criança. Mesmo sem se falarem, os dois petrificaram, pensando a


mesma coisa. Como podiam estar ouvindo risada de criança? O lugar tinha
estado cheio a noite toda, mas eles só tinham visto adultos. Será que moravam
crianças ali?

Naná teve a impressão de ver uma sombra se destacar das outras, do outro
lado do pátio. Levemente.

Os sussurros continuaram indo e voltando. Como uma transmissão mal


sintonizada de rádio. Eram muito suaves. Daqueles que você duvida se está
mesmo ouvindo ou só imaginando.

Mais sombras pareceram se mexer, do outro lado do quintal.


Naná e Luciano, já de mãos dadas, se apertaram com força.

Um assobio agudo se ouviu em algum lugar, e logo ali ao lado deles, o som
abafado de passinhos correndo na grama. As risadas, antes sutis, agora eram
bem audíveis.

A garota não aguentou. Esqueceu o esconderijo, a dona da casa e falou em


voz alta e aguda:

- Eu quero sair daqui!

Luciano começou a puxá-la em direção ao portão.

Mais passos se ouviram atrás deles.

Os sussurros sem palavras pareciam chamá-los.

Eles continuaram avançando, tropeçando, seguindo a parede. Ela soluçava, e


ele falava alto “Vem! Vem!”

Agora as vozes veladas pareciam suplicar.

Luciano soltou o ar dos pulmões em alívio, quando sentiu o ferro do portão na


mão. Avançou ávido na maçaneta e... a porta não abriu.

Ele tentou de novo mais forte. Pra cima e pra baixo. Pra cima e pra baixo.

Nada. Começou a chutar o portão, e a bater com os punhos. Naná se juntou a


ele, gritando inconformada.

- Não tá trancado! Ninguém trancou! Eu vi!

Ele se enraiveceu.

- Abre aqui! Abre aqui! Alguém abre aqui pra gente!

E continuou esbravejando e esmurrando o portão, até que sentiu a amiga puxar


a manga da sua blusa e falar num fiapo de voz:

- Lú...

Ele olhou para trás, por cima do ombro.

Naná, toda suja de terra, tremia dos pés à cabeça. A ponta do rabo de cavalo
sacudia de um lado para o outro, e os olhos expressivos estavam arregalados
como faróis. Olhando na direção do gramado atrás.

Nos primeiros segundos, o menino não entendeu bem o que estava vendo.
Uma luminosidade meio bruxuleante se movimentava pelo pátio. Pequenas
formas espectrais muito suaves apareciam no breu do lugar. Ele continuou
olhando confuso, até que achou que as formas pareciam... pareciam...
Os dois berraram tão alto que toda a vizinhança devia ter ouvido dessa vez.

Um grito de puro horror mesmo.

E aí duas coisas aconteceram ao mesmo tempo: uma luz acendeu-se dentro


da casa, e o portão atrás deles fez um audível “clec”.

Os dois estavam tão aturdidos com os acontecimentos, que não perceberam


imediatamente que o estalo tinha sido no portão. Naná enfiou a mão na
maçaneta, e como por mágica ela abriu. Sem dificuldade. Como se nunca
tivesse estado travada.

Eles nem olharam em volta, e se arremessaram na rua, correndo como se


estivessem numa maratona. Ainda ouviram alguém chamando da casa: “quem
está aí?”, mas não pararam pra explicações.

Só pensavam em sair daquele pesadelo de sons e luzes sobrenaturais!

Os barulhos da rua os alcançaram num instante, como se eles estivessem


estado presos numa bolha de silêncio antes: barulho de carros passando ao
longe, televisões e um zumbindo constante da eletricidade dos postes. Tudo
audível agora. Sabe lá Deus por que!

Continuaram correndo sem falar por um tempo, e chegaram a esbarrar num


bêbado que cambaleava, tal era a vontade de colocar a maior distância
possível entre eles e a casa maldita. Agora e aqui ventava, e Luciano encheu
os pulmões, mais de uma vez. Queria tirar aquele cheiro doce, que ele não
sabia se chamar defumador, do nariz.

Só reduziram a velocidade quando entraram na sua rua.

E viram os carros de polícia.

Duas “joaninhas”, paradas na frente das casas de ambos.

Trocaram um olhar angustiado. Devia ser bem mais tarde ainda do que
pensavam. Não precisaram falar pra adivinhar o que tinha acontecido: eles
tinham desaparecido e os pais tinham chamado a polícia.

Começava o segundo pesadelo da noite

***

Enquanto terminava de se arrumar pra ir tomar o café marcado com o amigo


perdido, ela ficou com os olhos cheios de lágrimas.

Ela tinha passado o dia todo relembrando a história de como eles tinham
deixado de ser amigos, e agora que chegava no ponto crucial, tudo ficava meio
nebuloso em sua memória. Só a vontade de chorar permanecia.
Talvez porque tinham acontecido muitas coisas ao mesmo tempo, e fosse tudo
um tanto quanto traumático. A verdade é os momentos que ambos passaram
na casa vizinha estavam claros como água na lembrança. Nos mínimos
segundos. Tinha enterrado tudo isso fundo em sua cabeça, e não revivia isso
há anos. Mas agora era capaz de lembrar os cheiros, sons, sensações... tudo
com riqueza de detalhes.

Mas a partir daí, ficava tudo confuso. Tinha sido um baque, o depois.

Pegando a bolsa pra sair, fez um esforço mental.

Lembrava de flashes: de chegar no portão e ser agarrada com força por


alguém, achava que tinha sido sua mãe.

Lembrava de muitos gritos histéricos. E achava que tinha sido a mãe do


Luciano.

Lembrava de estar muito cansada. De terem feito muitas perguntas a ela, sobre
onde tinha estado, com quem, se alguém tinha feito alguma coisa. Lembrava
da voz do policial gordo falando suavemente com ela. De muita gente falando
ao mesmo tempo, de umas discussões e de ter dormido umas 12 horas direto
depois disso, e ter faltado à escola no dia seguinte.

Lembrava, isso com certeza, de que nem ela nem o amigo tinham contado
nada do que se passara na casa – para todos os efeitos, eles tinham pulado o
muro e tinham ficado presos lá. Só.

Lembrava agora com mais nitidez de depois de tudo explicado, ter tomado uma
bronca dos pais e ter ficado de castigo. Três dias em casa, sem botar o nariz
pra fora, e sem sequer ver o menino. Seu castigo tinha sido leve, porque seus
pais ficaram aliviados de tê-la de volta sem danos.

E lembrava de ter começado aí a saga de conseguir falar com Luciano.

Primeiro tinha ido à casa dele, chamá-lo. A mãe tinha avisado que ele estava
de castigo.

Depois de uma semana, ele ainda não vinha pra rua. Ela voltou lá, e a mãe
dele avisou muito ríspida que o castigo ainda estava valendo, e que de
qualquer forma não queria que ele andasse mais com ela, e nem na rua.

Naquela época as crianças não tinham celulares e computadores pra se


comunicarem como hoje em dia, então ela ficou mais uma semana sem vê-lo.

Nem na janela do quarto ela aparecia.

Nesse meio tempo, seus pais a obrigaram a voltar à casa da vizinha pra se
desculpar pela invasão. Ela se recusou a passar do portão.
A vizinha foi muito paciente e educada, aceitou as desculpas, e ficou olhando
cúmplice pra ela. No dia seguinte foi à sua casa, e pediu pra conversar com a
menina. Sem os pais dela presentes.

Aí, como se tivesse adivinhado tudo, explicou cautelosamente a ela sobre sua
religião, e que nada do que eles faziam no local era para o mal. Falou de forma
amigável que ela ainda era muito pequena pra entender tudo, mas que as
crianças eram mais sensíveis a certos tipos de coisas, e viam coisas que os
adultos não podiam. E que ela não tinha nada o que temer.

Naná lembra que não prestou atenção em nada, e não confirmou nada - só
queria que a mulher fosse embora o mais rápido possível.

Só pensava em Luciano, trancafiado em casa. Foi reclamar preocupada com


seus pais, porque tinha medo que a mãe do garoto tivesse dado uma surra
nele. Pediu pra sua mãe ir falar com a dele.

Ela foi e voltou falando horrores da senhora, chamando-a de “casca-grossa” e


outras coisas pouco elogiosas. E disse pra menina que era melhor ela se
conformar e esperar o castigo do menino acabar.

Mais uns dias se passaram. Até o sábado que ela acordou com o barulho da
mudança.

Quando chegou na calçada, viu abismada a caçamba do caminhão cheia de


móveis e caixas de papelão, na porta dele.

Ficou de plantão por um tempão, observando os carregadores irem para lá e


para cá.

Quando tudo parecia estar pronto, o pai do garoto apareceu.

Muito sério e sisudo. Passou por ela sem vê-la, e abriu o carro da família. Logo
atrás veio a mãe e o menino. O rosto vermelho de quem tinha chorado muito.

Ela tentou parar e falar com ele, mas a mãe o levava pelo braço e praticamente
o arrastou na direção do carro. Naná, mesmo franzina e delicada, não se
intimidou:

- Lu, onde você tá indo? – ela chamou alto.

Ele virou pra responder, e tomou outro puxão. Ele era um menino forte, e
ofereceu resistência.

- Lú!! Você vai mudar?? Pra onde?? – ela chegou na porta do carro junto com
os dois, tentando passar pela mãe e chegar mais perto dele.

Ele acabou entrando no carro, emburrado e chorando.


Os pais não fizeram caso, nem dele, nem da menina e o automóvel ligou e
partiu.

Ela saiu correndo atrás do carro que se afastava, enquanto ele colava o rosto
no vidro, olhando fixo pra ela.

E foi assim a última vez que ela tinha visto-o. Seu melhor amigo no mundo.

O menino que trocava embalagens vazias por pintinhos, para dar pra ela. O
menino que era o terror da vizinhança, mas que deixava ela sempre pegá-lo no
“polícia e ladrão”. Que mudava a brincadeira quando percebia que ela estava
sem fôlego. Que preferia ir brincar com a mangueira de água com ela, do que
jogar bola com os outros moleques.

Aquele amigo que era muito pequeno pra saber pedir desculpas, quando fazia
alguma coisa errada, mas que sempre aparecia com balas “Juquinha” como
quem não quer nada, quando eles brigavam.

O menino que nunca achou que ela era uma fracota e doente.

O que disse que sabia que ela podia subir na árvore, se quisesse. O que a
entendeu e a viu exatamente como ela era.

O amigo que nenhum mais foi, até sua vida adulta. Fosse homem ou mulher.

Esse amigo que ela agora corria pra encontrar.

Foi dando um medo. Um medão! Porque ela agora não era mais a Naná
daquela infância. Era uma mulher adulta. Dona de si. Com uma história. Sem
asma como marca registrada.

Tinha vivido uma outra vida inteira depois daquele pedaço de infância. Com ele
seria a mesma coisa. Ele seria outra pessoa. Alguém que ela não conhecia.

Tinha sido muito cruel o jeito como eles tinham se afastado. Mas essas coisas
passam. São esquecidas. Pessoas e situações são esquecidas. É o normal.
Não seria possível que esse tipo de elo que eles tinham se sobrepusesse ao
tempo. A todo o resto.

Seria?

O quanto do Lú da sua infância ainda haveria nele? E se não houvesse nada?


Só um estranho que compartilhava meia dúzia de lembranças com ela?

Eles dariam umas risadas, trocariam umas histórias, e aquela sensação de


amizade, de conexão, voltaria a ficar no passado?

Isso se ele lembrasse de tudo. Ele lembraria? Ela achava que ele talvez
lembrasse das brincadeiras. Daquele momento.
Mas e do que eles tinham dividido naquela casa, naquele dia?

Dificilmente. E isso a deixava cada vez mais triste, conforme chegava no lugar
marcado. E insegura sobre o que esperar. Talvez fosse melhor relaxar e não
pensar muito, não esperar mais desse reencontro do que realmente era.

Isso. Faria isso. Curtiria o momento e só. Sem expectativas.

Chegou hesitante no café e olhou entre as mesas, sem saber se ia reconhecê-


lo.

O lugar estava meio vazio, o que facilitaria um pouco. Engraçado que não tinha
ocorrido a nenhum dos dois avisar como estaria vestido, ou como era
fisicamente – espera-se que as pessoas mudem um bocado em 20 anos, mas
isso nem passou por suas cabeças!

Numa mesa do canto, um homem alto e magro olhava pro celular.

Ele levantou os olhos pra ela, e sorriu.

Ela sentiu como se tomasse um tombo – os olhos, mesmo com marcas de


expressão em volta, eram os mesmos. O cabelo, mesmo com um corte adulto,
ainda era o mesmo queimado de sol.

Ela o reconheceria em qualquer lugar.

Ele se levantou, e no jeito dele se mexer e de olhar pra ela, ela viu o menino.

Seu coração deu um salto.

Em cima da mesa, com uma fita de presente, uma caixa de pitangas


vermelhas.

***

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