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Edição: 2023
2C Estúdios Notáveis

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M
inha chegada no condomínio Azul foi um pouco atribulada.
Demorei para encontrar alguém que fizesse o transporte da
mudança em pleno feriado. Como se isso não bastasse, uma
pobre chuva atrapalhou o transbordo das minhas coisas. Mas enfim, eis que estou
com novo endereço. Um simpático prédio de poucos andares dividindo um
diminuto pátio com um estacionamento alugado. Nada que atraísse ninguém
interessado, além de um pobretão como eu. Não tenho muitos bens, por isso, o
lugar veio bem a calhar. Para minha vida de escriturário, que não me permite
conquistar os sonhos que eu ainda sonhava, daria muito bem para o alugar, e eu,
estava consciente.
Tão logo depositei as coisas no lugar, desci para pagar o frete. No caminho
deparei-me com a primeira vizinha que conheci entre todas as visitas que fiz para
escolher o lugar. Tratava-se da Dona Inês, uma velha pouca atrativa, de cabelos
em caracol e um cigarro nos lábios. Ela colocara o nariz para fora, tentando
descobrir o significado da movimentação no corredor e acabou deparando-se
comigo. Olhou-me com curiosidade, minhas coisas passando por sua porta lhe
deram uma visão inusitada. Quando teve coragem para me dirigir palavra, falou
numa voz rouca de fumante inveterada:
- Você é o novo morador do 11?
- Olá, boa tarde. – respondi simpático – Pois sim. Estou me mudando
agora. Muito prazer.
Limitando-se a contrair os lábios e esboçar um sorriso quebrado, ela
permaneceu na minha frente. Esperei falar mais. Aguardei pelas boas-vindas,
mas, de sua boa só saiu uma advertência contra o outro vizinho, que ficava entre
sua e a minha porta.
- Espero que evite o morador do 12. Vai ter que dividir a parede com ele,
mas tome cuidado...
- Como é? – ainda não havia entendido a gravidade do que ela falava.
- Dr. Augusto, do 12 – repetiu enfática – Aquele ali é bem estranho.
- Sério?
- Sim, ele não gosta de barulhos... – notei que a velha estava interessada
prosseguir a fofoca, pois parecia que algo ainda precisava vir a público, por isso
continuei atento. Ela deu uma tragada no cigarro julgando se eu era digno ou não,
da sua confidencialidade. Acho que no fim, concluiu que sim, pois continuou –
Ele quase não fala com ninguém. Depois que a esposa e o filho morreram, mudou
para cá e se trancou ali no 12. Pelo que fiquei sabendo, parece que foi ele mesmo

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quem matou os dois. Questão de dinheiro. Herança... dizem que ele é muito rico
e não quis que ninguém colocasse as mãos no dinheiro... Pareceu ser acidente,
mas tenho minhas dúvidas. Eu que não fico num lugar sozinha com ele...
Ninguém vem visitá-lo, ele só dá as caras para reclamar de barulhos. Muito
difícil...
- Mas isso é mesmo verdade? Quer dizer...
- Dizem que é. Eu é que não vou averiguar.
Pareceu-me exagero. Eu ainda não vira o morador do 12, mas o lábio
torcido da D. Inês deu-me entender que ela não gostava do vizinho e me
preparava para uma guerra imaginária, qual me queria do seu lado. Eu, porém,
não estava interessado. Na verdade, queria viver minha vida tranquila, e se
possível, longe de qualquer confusão partidária. Sem saber muito bem o que
responder, para não alimentar ainda mais aquela fogueira, continuei sorrindo, e
antes que o clima ficasse estranho, voltei para o apartamento, fechando a porta
atrás de mim.

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P
assei o restante do dia no meu pequeno reino. Coloquei minhas
coisas em ordem, instalei o chuveiro e algumas torneiras. Por fim,
senti fome e, sabendo que próximo do condomínio havia uma
panificadora, decidi ir até lá comprar o jantar. Agora a chuva já tinha cessado e a
noite estava convidativa para um passeio. Cumpri com minha missão: comprei
pão, leite e café e forrei meu estomago.
Na volta, que não demorou mais de vinte minutos, ao colocar as chaves no
trinco, eis que escuto a porta do 12, ser movimentada. Me virei em tempo de
encarar pela primeira vez a voz e o rosto do “inimigo” de D. Inês.
Dr. Augusto, era um velho senhor. Magro, pequeno e com um par de óculos
maior que o rosto, parecia um caricato desenho. Tinha olhos claros e um nariz
fino, pontiagudo, lembrava um italiano. Seu farto bigode, bem aparado, escondia
os lábios finos e ao tentar esboçar um sorriso, mal pude ver a cor dos seus dentes.
Não tinha o estereótipo de um assassino de cônjuges e filhos, como descrevera a
outra.
- Boa noite. – falei – Sou o novo morador, aqui do 11.
Ele não respondeu. Pareceu estar meditando em algo. Repeti a saudação,
e então ele me olhou de alto a baixo. Acredito que tenha me julgado
imediatamente pelas minhas roupas e pela rapidez que olhou minha mão, sem
aliança, sentenciou que eu era perdedor. Ainda em silêncio, como se minha
presença fosse insignificante para seu mundo, saiu e fechou a porta fazendo a
chave dar repetidas voltas. Só quando julgou que seu apartamento estava
plenamente seguro é que me dirigiu a primeira palavra:
- O correio passa aqui nas quintas e o lixeiro nas sextas. Não deixe o lixo
acumular, pois, fede todo o condomínio. Os moradores daqui não são muito
higiênicos, eles colocam o lixo para fora em dias errados, as crianças e os animais
ficam fuçando em tudo.
- Ah, obrigado. – agradeci sinceramente.
- E procure não fazer barulho depois das dez da noite. Houve problemas
aqui no passado. Alguns foram expulsos por causa do barulho. Tem muita gente
velha aqui, mais do que nova. Ninguém gosta de incômodo.
- Entendi... eu fico fora o dia todo, e acabo usando minhas noites para ler
ou para descansar. Acredito que do meu apartamento não sairá ouvir barulho
algum...
Eu ainda estava falando quando ele virou as costas indo embora e não
dando muita atenção. Seu caminhar era lento, mas decisivo. Entrei em casa e
fechei a porta lentamente, ainda observando-o colocar um chapéu e continuar seu
caminhar de tartaruga até o portão. Que sujeito estranho, pensei.

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B
em, a vida no condomínio azul não era diferente da minha antiga
casa. A vantagem ficava no fato de ser bem mais próximo do
trabalho. A economia de tempo, entre acordar e seguir para o
labor, fez com que eu optasse pelo lugar e como comentei com o Dr. Augusto,
realmente aproveitar melhor as noites para estudar e ler, dois hobbies preferidos.
Contei duas semanas já no novo endereço. Eu estava me acostumando com
a nova rotina. Ainda não falara com mais ninguém ali, além dos meus rápidos
encontros com a D. Inês e do Dr. Augusto, mas os demais moradores que
encontrei pelo caminho, pareciam ser boas pessoas. Limitaram-se a dizer “boa
tarde”, “boa noite” ou “bom dia”. Notei, entretanto, que a maioria trabalhava fora,
como eu, e que conversa não era o forte deles. As crianças apareciam ali de vez
em quando, quando algum familiar tinha visitas. Não vi nem ouvi nenhum
animal, e isso me fez pensar na inutilidade da advertência que recebi sobre o lixo.
Enfim, a rotina foi chegando. Minha nova casa adaptava-se a mim e eu a
ela. Da minha janela, a vista não era lá grandes coisas, mas dava a um quintal e
um terreno baldio cuja grama estava sempre aparada, o sol batia ali pela manhã,
e no fim do dia, pássaros cantavam. Eu gostava daquilo.
Certa noite, porém, diferente de qualquer rotina previsível, ouvi batidas na
porta. Primeiro pensei estar imaginando coisas, pois era tarde. Mas, quando as
batidas se repetiram, compreendi que a realidade da coisa.
Ao abrir, surpreendentemente deparei-me com o Dr. Augusto do lado de
fora. Ele parecia bem arrumado, pronto para sair. Carregava uma pasta e um
guarda-chuvas fazendo minha curiosidade se atiçar. Estava prestes a lhe
perguntar sobre a estranha impressão, quando notei que trazia uma fisionomia
desconfortável, estava envergonhado por bater à minha porta.
- Desculpe pelo incômodo... – começou se explicando como pôde – Mas
gostaria de pedir um favor.
- Olá, boa noite. Pois, não. Gostaria de entrar?
- Muito obrigado. Mas, não será necessário. O que vou lhe pedir é bem
simples e rápido. É que recebi um telegrama esta tarde e terei que sair em viagem
imediatamente. Visitarei parentes e, gostaria de saber se poderia recolher minha
correspondência enquanto estiver fora.
- Sua correspondência? – não entendi muito bem o pedido.
- Sim, eu estou esperando algumas cartas, e como não estarei aqui quando
chegarem, preciso que as guarde para mim.
- Entendi, certo. Sem problemas. Eu recolho suas cartas... mas, eu também
fico ausente a maior parte do dia, não sei se estarei aqui quando o correio passar.
O senhor não gostaria de pedir para outro vizinho...

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- Não confio em ninguém! – falou com olhos sérios, porém reparando que
me surpreendera com a ênfase usada, tentou corrigir o desconforto – Sabe, é que
você é novo... e parece ser uma pessoa boa. Já confiei minha correspondência
para outros aqui, e algumas cartas sumiram.
- Entendo... – agora compreendi seu desespero – Bem, se é assim, pode
confiar em mim. Só não garanto estar sempre aqui quando o correio passar, mas...
- Aqui está a cópia da chave. – falou interrompendo – Com ela você poderá
abrir minha caixa de correio. Eu só quero que você olhe todos os dias, e se houver
algo, guarde com o você até que eu volte.
Olhando seu desespero infundado, achei que não faria mal ajudar o velho.
Não me traria trabalho adicional checar sua correspondência assim como fazia
com a minha. Esbocei um sorriso. Eu conquistara sua confiança. Peguei a chave,
nos despedimos e então o Dr. Augusto, um velho assustadoramente estranho,
voltou para o 12. Eu ainda mantinha o sorriso no rosto quando ele fechou a porta
fazendo um sinal de agradecimento com a cabeça.
- Boa noite. – falou.
- Boa noite. – repeti com um ar de super-herói fazendo a boa-ação.

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N
a manhã seguinte, fui ao trabalho e nas próximas outras também.
Minha rotina voltou a ser minha prioridade. Todos os dias eu
checava a correspondência minha e a do Dr. Augusto. Nada em
especial aparecia, além de algumas propagandas e catálogos. Nenhuma carta
importante, mas, mesmo assim, fui juntando tudo e guardando para entregar ao
velho, tão logo ele voltasse.
Uma semana passou quando então, tudo começou. Certa noite, acordei
ofegante. Parecia que meu nariz estava trancado, e fiquei com receio de estar
resfriado. No entanto, mesmo não tendo sintomas, eu tomei alguns remédios e
voltei a dormir. Naquela noite, quando o sono voltou, tive um sonho estranho...
Eu me vi deitado em minha cama, quando duas mãos seguravam meus
braços e eu ouvia uma voz dizendo assim: Abra! Abra! Abra!
Acordei assustado, o pesadelo pareceu tão real que eu podia jurar sentir a
pressão dos dedos em meu braço mesmo depois de desperto. Perdi o sono.
Levantei e fiquei aguardando o dia chegar. Durante o trabalho, volta e meia me
pegava pensando nisso tudo. O que fora aquilo? Seria algum sinal? Por que eu me
incomodara tanto com ele? Minha mãe, certa vez, mencionou que sonhos, quando
tão real, eram sinais de que alguma mensagem ou algo estava para acontecer.
Mas, eu pensava... que sinal fora aquele? Que mensagem viriam daquelas mãos
apertando meus braços?
Não, eu não tinha respostas. Por isso, na noite seguinte, demorei para
pegar no sono. Dormi mal, acordando repetidas vezes e ainda temeroso. Mas, no
fim, vencido pelo cansaço, adormeci. Para minha estranha surpresa, acordei
novamente sentindo as mesmas mãos apertando meus braços. Mas, desta vez,
por uma incrível diferença, eu pude sentir o gélido tocar dos dedos em minha
garganta também. A voz, que eu ouvira da outra vez, voltou, mas assustado, meu
espanto foi maior, pois mesmo fraco, o som foi audível parecia real: “Abra”.
Levantei-me da cama desinquieto. Não sabia o que era aquilo. Procurei
entre meus livros, um velho “interpretador de sonhos”, pois, a resposta precisava
aparecer. Frustrado, mesmo folheando o livro e seus significados, não achei a
solução para meu enigma. Nada ali além de fadas, magos e fortunas justificava
“mãos” ou a palavra “abra”. Não havia explicações sobre apertos nos braços,
pescoços ou repetições de sonhos. Decepcionado, fiz um café. O dia começava a
aparecer e definitivamente eu não voltaria a dormir.
Durante o resto da semana, diferente das duas últimas noites, os pesadelos
não vieram mais. O que foi um alívio. Eu ainda dormia receoso, mas não tive
novas surpresas. Graças a Deus, parecia que a vida voltava ao normal e aquilo não
passara de uma indigestão seguida por uma coincidência de fatos.

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N
os dias seguintes, concentrei-me no meu trabalho e na minha
tarefa diária de checar a correspondência. Para minha surpresa,
eis que numa tarde, notei que diferente de folhetos, havia uma
carta endereçada ao velho. Era um envelope grosso, e a julgar pelos selos, devia
vir de longe. Infelizmente o remetente não colocara seu endereço de envio. Havia
apenas o nome do destinatário. Um pouco estranho, mas não tanto assim.
Qualquer pessoa podia fazer isso ocultando-se de mencionar sua origem. Eu já
recebera cartas da mesma forma, mas para minha tristeza, nas minhas, eram
cobranças ou intimações.
O envelope do Dr. Augusto não me incomodou, e mesmo misterioso, não
deixou de se acumular entre a pilha de outras correspondências já recebidas. Dias
depois, porém, novos envelopes chegaram. A cada dois dias para ser exato, um
novo envelope gordo e sem remetente aparecia. Só comecei a me preocupar
quando a pilha de correspondência ficou grande. O velho não dissera quando
voltava e, portanto, eu não sabia também até quando os misteriosos envelopes
continuariam chegando.
Enfim, mais uma semana se passou e ao sair casa, senti pela primeira vez
um cheiro desconfortável no corredor. Como não havia qualquer saco de lixo
pelas redondezas, procurei por algum ralo, de onde o cheiro pudesse estar
brotando. Também não havia nada ali.
Meu horário estava apertado, concentrei-me em seguir para o trabalho e
deixei o problema para que outros moradores encontrassem a solução.
Quando voltei, no fim do dia, novamente o cheiro putrefato exalava no
ambiente. Entrei no meu apartamento e procurei ali dentro se não havia nada que
estivesse produzindo tal odor. Felizmente, após olhar por tudo, concluí que a
carniça vinha de fora. Saí pela porta e notei a intensidade do fedor ali. Pensei em
bater nalgumas portas, mas talvez o problema fosse pontual.
Voltei para dentro e acendi uma vela aromática.
Na manhã seguinte, quando saí, o cheiro parecia pior. Definitivamente
alguém estava deixando o lixo vencer. Porém, como era sexta-feira, e o lixeiro iria
passar, com certeza a imundice partiria no fim do dia.
Mas, eu estava errado. Mesmo depois que o caminhão passou e coletou
tudo o que o condomínio produzira de ruim, o cheiro continuou. E para minha
infeliz tranquilidade, cada vez pior.
Não resistindo mais ao problema, bati na porta da D. Inês.
- Boa tarde, D. Inês!
- Boa tarde. – respondeu resmungando.
- Por acaso, a senhora não tem reparado neste cheiro forte?

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- Cheiro podre, você quer dizer, né?
- Sim, parece que alguém deixou alguma coisa estragar.
- Achei que estava vindo do seu apartamento.
- Do meu? Não, posso te garantir que não é de lá.
- Mas o cheiro está vindo daquele lado.
- Não pode ser, a não ser que seja do apartamento do Dr. Augusto!
- Mas, ele não está viajando?
- Sim, já há quase um mês.
- Com certeza aquele velho rabugento deve ter deixado a geladeira
desligada. Deve ter alguma coisa podre lá dentro...
- Acho que a senhora está certa. E o que vamos fazer? Deve ter alguma
coisa estragando lá.
- Pois é. Quem vai abrir aquele apartamento?
- Não sei... mas, temos que fazer alguma coisa.
- Bem, eu vou ligar para o síndico. Ele é que resolva isso!
- Ótimo, ele deve ter uma cópia da chave. – concluí.
- Espero que tenha mesmo, pois se não tiver, eu mesma vou abrir aquela
porta. Já chega deste cheiro, tem até moscas voando na minha janela.
- Moscas?
- Varejeiras! Daquelas que trazem doenças...
- Então, temos que chamar o síndico urgentemente!
- Vou ligar, vou pedir para ele vir ainda hoje.
- Ótimo! Muito obrigado.
D. Inês, após sentir-se dona da solução, voltou para dentro da sua toca e
buscou o telefone. Eu, que não tinha mais o que fazer, fui à caixa de correio
encontrar mais uma carta gorda, na correspondência do Dr. Augusto.

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I
nfelizmente o Síndico não pode vir no mesmo dia. Só apareceu na
manhã seguinte. Veio com um molho de chaves para abrir o
apartamento. Para tal ação, entretanto, o estatuto dizia que deviam
existir no mínimo duas testemunhas. Tais deviam atestar que ele apenas abrira o
apartamento para averiguar um problema público e, que nada fosse mexido ou
subtraído de lá. Para meu azar, eu estava bem na hora.
- Chegou bem na hora! – comentou D. Inêz, sorridente.
O síndico, que eu já conhecia quando assinei o contrato, me repetiu o
procedimento dizendo que eu devia testemunhar seus próximos atos. Curioso
quando a origem do fedor, aceitei fazer parte do trio que iria solucionar o
mistério. Ele rodou algumas chaves até encontrar aquela que servia na fechadura
e que enfim, liberou a entrada.
Quando abriu a porta, os três parados à porta, quase caíram para trás.
Não foi necessário procurar por nenhuma geladeira, nenhum lixo
abandonado ou qualquer fruta que estivesse estragando. O fedor que havíamos
sentido intensificou de uma forma tão estrondosa que só não foi pior do que a
visão que deparamos.
Um enxame de moscas assentara sobre o que sobrara do cadáver do Dr.
Augusto. Há dias ali, em rigor-mortis, larvas já se alimentavam do que uma vez,
foram tecidos, carnes e ligamentos. O corpo jazia de bruços, sobre uma mancha
negra de sangue apodrecido. Em sua volta, nenhum objeto cortante ou qualquer
arma. E a julgar pela forma que estava o rosto, virado para o nosso lado, nos
dando uma visão clara do sorriso mortal que cobria o velho defunto, a morte fora
por causas naturais.
A primeira pessoa a dar um passo para trás foi D. Inês que vacilante, quase
desmaiando. O síndico, mantendo a frieza, ficou em silêncio, enquanto eu senti
meu estômago embrulhar.
- Meu Deus! Ele está... morto? – perguntei o obvio, sem pensar.
- Sim, pelo visto, há dias! – respondeu o síndico, e continuou - D. Inês,
preciso de um telefone. Temos que ligar para a Polícia...
E foi o que aconteceu nos próximos momentos. Ele ligou, alguns curiosos
apareceram, uma viatura chegou, o movimento foi ficando mais intenso. O IML
entrou, mais pessoas estranhas com jalecos protegidas por luvas e máscaras
mexeram no que sobrou do corpo. Por fim, tudo foi ensacado, catalogado e
levado. O chão onde jazia o cadáver agora era apenas uma mancha negra. Alguém
jogou álcool, desinfetante e uma solução de limpeza. Enfim, o cheio se alastrou e
as pessoas, a medida em que foram tomando conhecimento do ocorrido,
apavoradas decidiram dormir aquela noite em casas de conhecidos. O

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condomínio azul ficou praticamente vazio enquanto os legistas faziam anotações,
questionavam moradores sobre detalhes do que sabiam, e o cheiro forte ia
embora como a alma e o corpo do seu genitor.
Eu não tinha para aonde ir, portanto, fui autorizado a voltar para meu
apartamento.

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O
dia passou e eu não fui trabalhar. Aquela sucessão de coisas foi
demasiada bizarra para mim. Só quando o silêncio da noite
dominou é que finalmente a carga emocional se foi. Por fim, fiquei
imaginando em como tudo acontecera. O Dr. Augusto, passara mal, tido algum
infarto ou sei lá, e caindo no chão da sala, não teve tempo para acionar ninguém.
O tempo e a condição surpresa foram seus maiores inimigos. Sem receber
socorro, ele deve ter agonizado em seus últimos momentos de vida,
desesperadamente procurando por ajuda. No fim, morrera sozinho, trancado e
distante de qualquer conhecido. Ninguém estava por perto, nenhum parente,
nenhum amigo. Nada. A morte viera a seu encontro quando ele não esperava...
A situação foi tão estranha para a vizinhança que nos próximos dias, todos
comentaram o ocorrido. Não houve velório. Ninguém apareceu para reclamar
qualquer espólio ou algo do apartamento. Um caminhão apareceu para coletar
tudo e levar para doações. Um outro, com pessoas veio para desinfetar o lugar e
pintar. O lugar ficou novo em poucos dias e já estava disponível para aluguel. Era
o começo e fim de tudo.
Os antigos moradores, aos poucos, mais conformados com a situação,
voltaram e evitando comentar sobre o caso. Ninguém quis evocar a estranha
situação e achavam que evitando falar sobre ela, talvez pudessem apagar a cena
dramática que ocorrera ali. Eu, como os demais, também me abstive de comentar.
Mais do que qualquer um ali, eu tinha uma ligação direta com o Dr. Augusto.
Diferente de todos, eu fui último a vê-lo vivo. A prova disso, era a correspondência
que continuava acumulada na minha mesa. Mesmo depois destes eventos, ainda
continuei checando sua caixa, e a cada dois dias, recebendo os envelopes gordos.
Agora, diante de tudo, não me restava nada além do que descartar aquelas
cartas e se de alguma forma, encontrar o remetente, informar que não precisava
escrever mais. Então, sentado à mesa do café e com a ajuda de uma faca para
manteiga, abri o primeiro deles, na busca de encontrar vestígios do emissor.
Não preciso dizer qual foi minha surpresa ao constatar de dentro não havia
nada além de uma pilha de dinheiro. Notas verdes e novas, empilhadas e
somadas. Deviam ser os rendimentos das aplicações do Dr. Augusto.
Ao abrir o segundo, eis que mais notas apareceram. Então, já trêmulo, abri
o terceiro, o quarto, o quinto e os próximos setes, todos repletos de cédulas.
Somando-se ali, havia dinheiro para comprar todos os apartamentos do
condomínio azul, e a julgar pelos próximos dias, acreditando que ainda viriam
mais, daria para fazer muito mais coisas. Então, deparei-me com uma surpresa
inacreditável.

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O que fazer com tal milagre? Procurar as autoridades e explicar aquilo ou
ficar quieto assenhoreando-me da fortuna? Contei o dinheiro novamente. Me
levantei, fiquei olhando aquela massa de economias. Era muita coisa! Havia ali,
todos os meus sonhos e desejos... Aquele dinheiro comprava tudo!
Na manhã seguinte, antes de ir ao escritório, corri para a caixa de correio
encontrar-me com uma nova carta. Peguei o envelope e voltei para meu
apartamento. Abri, sim, eram mais recursos! Dinheiro novo! Dinheiro vivo! Até
quando este milagre continuaria acontecendo? Até quando eu seria o único a
saber deste dinheiro? Devia continuar em segredo? Devia falar para mais alguém?
A alegria e a surpresa misturavam-se em meus sentimentos. Se por um lado eu
sentia estar pondo a mão em algo que não era meu, por outro, eu pensava que
aquilo podia ser um milagre só meu!
O Dr. Augusto, decerto não pensava em me presentear com aquilo, mas
também não esperava que fosse morrer...
Diante dos fatos, o que fazer? O dinheiro certamente não teria serventia
para o morto, mas sim para um vivo! Eu devia me assenhorar daquilo? Tudo
indicava que sim! Depositar em minha conta e deixar aquele milagre continuar
até quando fosse possível... E se alguém, algum dia notar que o Dr. Augusto não
está mais vivo e decidir parar de mandar o dinheiro? Sem problemas, eu já terei
guardado uma boa herança...
Certo de que esta sorte não podia ser ignorada, continuei em silêncio nos
dias seguintes e da mesma forma, coletei os novos envelopes que chegavam. Os
gordos espólios continuaram. Enquanto em oculto, ninguém saberia do meu
crime. Tudo ia bem, e eu já pensava em desfrutar lentamente daquela fortuna.

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I
nfelizmente, a lembrança do pesadelo, me fez questionar um pouco
mais naquela fortuita situação. Sobretudo quando, numa noite,
novamente eu senti a mão apertar meu braço, junto com uma voz que
dizia: Abra.
Crendo eu que era a voz do Dr. Augusto, e que eram suas gélidas mãos que
outrora me apertavam, tentei me comunicar com ele. Sentei-me na cama e
balbuciei baixinho:
- Dr. Augusto... é o senhor que está tentando se comunicar? É o senhor
quem aperta meu braço? Se for, me dê um sinal para que eu entenda seu recado.
Todo o dinheiro que chegou, era para o senhor, mas visto que já não está mais
aqui... acredito que queira que fique comigo, não é isso?
Como não obtive resposta na noite silenciosa, eu acreditei que estava certo.
O Dr. Augusto entendera que ninguém além de mim, devia desfrutar daquele
dinheiro. Agora que estava no além-túmulo, o dinheiro não lhe teria serventia,
mas para mim, certamente. Por isso, fui me tranquilizando quanto aos meus
medos, e, pela primeira vez, depois de todos estes dias, senti-me digno e apto a
usufruir da herança.
Levantei-me na manhã seguinte, abri a caixa de sapatos, onde eu havia
escondido o dinheiro e fiquei contemplando todo aquele arsenal. Ali tinha
recursos para resolver minha vida! Eu teria condições de pedir minhas contas e
começar a vida que sempre sonhei, longe daqui. Minha rede em Cancún, ou em
qualquer ilha paradisíaca estava preparada! Seria só uma questão de dias para eu
me desligar da empresa, não fazendo muito alarde, continuar uma semana no
apartamento, e depois, sorrateiramente usufruir do melhor!
Tinha apenas que manter a frequência em checar a caixa de correio, pois
enquanto durasse os depósitos, eu não poderia deixar que as cartas caíssem em
mãos erradas. Enquanto ninguém soubesse de nada, só eu tocaria naqueles
despojos.
Sentei-me no sofá, com um sorriso satisfeito no rosto. O Dr. Augusto, sem
saber, fizera a minha felicidade. Ele sem imaginar, colocava minha vida em outro
patamar. De longe pareceu-me ser o rabugento que a D. Inês falara. Ele tinha seu
jeito senil, isso é verdade, mas, no fundo era uma pessoa boa. Fato é que agora eu
podia me deliciar com suas economias. Dr. Augusto não era assim tão mal. As
histórias que falaram dele, na verdade, eram frutos de inveja ou ciúmes. O velho,
no fim só fizera o bem.
Assim pensando, acabei adormecendo novamente. E foi então, num estado
de torpor ou alucinação, acabei sonhando com o Dr. Augusto.

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E
stava diante de mim, e eu sorria para ele. Dr. Augusto se
aproximou mais, e antes que eu pudesse lhe dizer qualquer coisa,
me perguntou:
- Você está feliz?
Eu não consegui responder. Apenas sorria. Então, ele me abraçou. Senti
neste abraço a confirmação de tudo. Ele me reconhecia como herdeiro direto do
dinheiro, e me dava livre acesso a sua fortuna!
Porém, eu estava errado.
No apertar do seu abraço eu senti novamente o cheiro forte da sua carne
apodrecida. O odor exalou do seu corpo e adentrou minhas narinas com tal efeito
que eu não pude deixar de relembrar a forma horrenda em que ele terminou a
vida.
Senti que abraçava carne podre. Tentei me afastar daquele aperto mortal,
mas ele fora mais rápido do que eu e agarrou meu pescoço com suas mãos, como
se duas garras obstruíssem minhas traqueias, ele apertou meu pescoço.
Tentei remover seus braços, mas senti-me imobilizado. Duas outras mãos
frias, sem corpo, vindas não sei de onde, agarraram os meus membros. Duas em
cada braço, e eu não consegui me mover.
O fantasma do Dr. Augusto, naquele pesadelo horrível apertou-me com
mais força, e eu sequer consegui gritar por socorro. Foi então que a luz foi se
apagando enquanto os olhos sem vida, do cadáver, satisfeitos por estar me
estrangulando continuavam brilhando para mim. Como olhos de um psicopata
quando se delicia tendo a vítima em suas mãos.
Tudo não levou mais do que dois minutos. Meu ar foi acabando e meu
corpo começou a colapsar. Foi então que eu notei não estar dormindo, mas sim
acordado em meu sofá.
Sobre mim, aquele homem metade humano, metade cadáver, continuava
apertando meu pescoço.
A última coisa que vi, antes de desfalecer, foi ao virar meu rosto e reparar
que a caixa de dinheiro continuava onde eu deixara.
Em algumas horas, alguém sentindo a minha falta, abriria a porta do meu
apartamento, como fizemos ao dele, e iria deparar com meu corpo inerte.
Provavelmente usurparia aquele dinheiro e gastaria a seu bel prazer, enquanto
em silêncio, e, pobre, eu desceria a sepultura.
A última coisa que ouvi foi novamente a pergunta: Você está feliz?

-FIM-

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