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Ele tirou os óculos e deixou em cima da mesa – suscetível a ser esquecido,

sempre arrumando desculpas pra voltar depois, mas agora ele tinha a
desculpa perfeita pros próximos dezoito anos, a criança. Mas ele é tão
gostosinho, assim, de preferência quando fica de boca fechada e melhor
ainda quando fecha os olhos, que mania de ficar cavocando reação no meu
rosto, por que não fica de boa em ter o corpo inteiro ali pra ser desbravado?
Não, ai, assim, olha pra lá, assim ele goza e ele não pode e nem vai gozar
dentro, de jeito nenhum.
Ele tirou os óculos pra poderem se beijar sem bater aro com aro – ele
sempre estava pronto pra despir qualquer camada fosse física, psíquica ou
moral. Essa mulher que eu amo, pensou, talvez porque temos um filho ou
porque ela foi a única pessoa que eu transei nos últimos quantos anos, ah,
tanto faz, ah assim, assim, contato visual, contato visual que assim eu sei
que ela goza.
Ela não tirou os óculos como forma de defesa. Eu não vou tirar esses óculos
porque eles são parte da minha máscara social de pessoa séria que não
estaria aqui se entregando de bandeja, só faltando os sushis por cima – ao
passado. Não, os óculos ficam. Assim eu continuo no controle, mesmo que
minhas roupas estejam no chão e o DNA dele já dentro de mim há um ano
e dez meses. Em algum momento eu escorreguei e caí nessa areia movediça
de gostar de uma pessoa que eu não amo e quanto mais eu me mexo pra
correr, mais eu afundo. Mas, no fim, talvez isso fosse melhor do que gostar
de alguém que se tivesse ódio como naqueles filmes passionais.
Ele diz que não vai me fazer carinho com o pé porque é grosso, o pé, não o
carinho, ainda que seja um pouco grosseiro o carinho, também, ele ri:
- Não devia nem tocar tua pele com essas mãos grossas de servente de obra.
- Para, nada a ver, são mãos que constroem coisas no mundo, mãos que
fazem as casas das pessoas. E eu que tenho essas mãos finas, mas só
construo dentro da cabeça e ninguém vive nas ideias.
- Pode ser – eles se beijam. Mas eu admiro o que tu faz, acho massa mesmo
isso de ler e escrever coisas e dar aulas, eu não tenho cabeça pra isso, vai
me dando uma angústia, não consigo me concentrar, prefiro carregar saco
de areia, limpar um pátio, roçar a grama.
Ela sorri:
- Percebe-se, né? Tá sempre pra lá e pra cá e aquele livro espírita que eu te
emprestei?
- Li algumas páginas ontem, leio um pouco e paro, também não adianta
continuar sem entender.
Seria menos difícil se ele tivesse estudado além da oitava série. Mas dizer o
quê. Sua própria mãe tinha sido assim, a mãe dela, no caso, mas
provavelmente que a dele, também. Pararam de estudar lá pela quinta série,
tinham que trabalhar, ajudar em casa. Ele, não exatamente, foi adotado aos
três anos pela tia-avó dela.
Mas a verdade é que o cara do óculos é meu amigo, um companheiro, ainda
que não sempre, alguém que, uma vez que se dobrou a vontade de estar
com ela – as resistências iniciais do medo da entrega, está ali, enquanto ela
nunca entregou tudo porque o tudo já tinha ficado há muito no passado e
não tinha sequer contato com determinadas partes de si mesma, nem pra
que endereço mandar buscar, tantas coisas perdidas, várias delas, claro,
reimaginadas e re encenadas, mas outras surgem espontâneas, no calor da
hora, e são genuínas.
Ela faz amor comigo, decerto me ama. - vê se no fundo daqueles olhos
castanhos e fundos que parecem ter muito mais que vinte anos, mais até
que cem, talvez uma tristeza milenar, talvez herdada pela escravidão, mas
isso é bobagem, ele não é um grande militante/defensor da sua cor,
advogado do antirracismo, ainda assim sua cor é seu lugar de fala e os
preconceitos e menosprezos que já passou, talvez, nesses, se inclua até não
estar na certidão da filha, o pai dela nem queria que ele soubesse da criança.
- Quando ela tiver 18 anos, se ela quiser, ela procura.
Ela lembrou das palavras do pai, que também tinha dito que ela tinha
arruinado a vida, que ele tinha conseguido dar um ‘golpe’ nela. O que ela
não entendeu, por que, afinal, quem receberia pensão era ela, ela não ia
casar, ele não ganharia nada, ele, inclusive, gastaria, pouco, é verdade,
pagava 300 reais de pensão, que poderia ser 500, mas de que adianta
sangrar os outros? No mais, ele pagava por ser o certo, não tinha medida
judicial, ela nem era ‘dele’ de papel passado. Na verdade, já tinham
discutido algumas vezes por causa daquilo. Ela sabia que era o certo. Só
queria que não precisasse ser no cartório, onde a notícia se espalharia como
um outdoor, anunciar na rádio pra quê? Se tem sempre uma boca de alto-
falante versado em aumentar as coisas, fazer todo mundo perguntar, será
que é dele mesmo? Mas ela é branca e ele é preto. As pessoas são bem
ignorantes em biologia, uma criança pega o código genético de um só dos
pais e não uma mistura, como se pensava, então a pele pode ser de um, os
olhos, o formato do rosto ou a altura de outro. E nem só, claro, as da mãe
ou do pai, a filha deles, inclusive, se parecia bastante com o falecido avô.
Com o qual a filha não estava assim tão próxima nos últimos tempos por
causa daquele segredo tão novelesco e a situação tão ridícula em pleno
século XXI – em que ela poderia muito bem ter saído de casa pra se tornar
Adriano e trabalhar numa fábrica de pneus ou de trans na primeira
transversal que melhor lhe prouvesse, mas eu não morava numa metrópole
e quebras do status quo não eram vistas com bons olhos. Melhor um casal
casado que discute todo dia do que um casal que mora separado e, quando
se vê, quase todos os dias, acha bom.
- Você parece tão longe, as vezes – ele reclama, como se a chamasse de
volta, as vezes ela tinha esse problema, essa dificuldade em estar no aqui e
agora, coisa que era tão natural pra ele, sendo, principalmente, o que ele
conhecia e praticava sempre, acostumado com a labuta diária, com a
mistura da argamassa com a água e a espalhar com a espátula no tijolo e
fazer muros e paredes, ele era literal, não se perdia tão fácil, exceto pelo dia
que ficou lembrando dela e quase enfiou o carro num barranco.
- Não tô não, tô exatamente aqui – ela ameniza, mente. De que adianta
falar nisso agora?
Um barulho no outro quarto, a bebê chora. É, hora de vestir a roupa e ir lá
ser mãe. Como se tivesse deixado de ser por meia hora. Ou esquecido por
um minuto sequer.
Um barulho no outro quarto, a bebê chora.
Ela chorou, cadê minha cueca, não posso deixar a cueca. Veste, parece que
o choro para. Será que dá tempo de terminar? Beijo. Tu acha que dá
tempo?- ele pergunta.
- Não, acho melhor não, ela dorme melhor comigo.- ela disse, já
completamente brocha e se perguntando por quê daquilo tudo, se resultava
num trabalho integral e vitalício. Lembrou de quando disse pro obstetra que
ter bebê era muito bom, mas preferia nunca mais transar a ter outro e ele
riu e brincou que era bobagem e reduziu a questão a: agora por que pode
ser atropelada, nunca mais vai atravessar a rua? E eu estava, de novo, ali,
no meio da rua, os carros passando ao meu redor, o caos do trânsito da BR e
dos planetas e eu só queria estar na minha cama.
- Tá bom, tá certo. Amanhã? - quem sabe amanhã a gente termina, por
mim, eu nem ia embora, a gente dormia aqui mesmo – ele pensa, mas não
diz.
- Tá, amanhã então. Vou lá. Não vou te levar até o portão, tudo bem? - ela
tem pressa porque agora que passou o calor da hora, lembra que a filha
espera e que possivelmente está com fome ou xixi ou com alguma dor e
parece que faz horas que está ali naquele quarto, quando vê no telefone,
não foram nem cinquenta minutos. E que eles ainda assistiram meio
episódio de Simpsons.

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